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Immanuel Wallerstein Capitalismo Histori
Immanuel Wallerstein Capitalismo Histori
Civilização Capitalista
Sumário
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................................................... 2
A MERCANTILIZAÇÃO DE TUDO: PRODUÇÃO DO CAPITAL..................................................................................................... 4
A POLÍTICA DE ACUMULAÇOM: A LUITA POLO LUCRO ........................................................................................................ 24
A VERDADE COMO ÓPIO: RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇOM ........................................................................................ 41
CONCLUSOM: SOBRE O PROGRESSO E AS TRANSIÇONS ...................................................................................................... 54
INTRODUÇÃO
Na origem deste livro estivérom duas solicitaçons. A primeira surgiu no Outono de I980,
quando Thierry Paquot me convidou a elaborar um pequeno livro para umha colecçom editada
em Paris. Ele sugeriu-me “O Capitalismo” como tema. Manifestei-lhe a minha disponibilidade,
mas dixem-lhe que preferia o tema do “Capitalismo Histórico”.
Como muitos outros, acredito que esta realidade é um todo integrado. Mas muitos
daqueles que manifestam esta opiniom socorrem-se dos argumentos que lhes permitem atacar
os oponentes polo seu alegado “economicismo” ou “idealismo” cultural, ou pola excessiva
ênfase dada a factores políticos ”voluntaristas”. Tais críticas tendem geralmente, por ricochete,
a cometer o pecado oposto daquele que elas próprias procuram suprimir. Por conseguinte,
tentei apresentar a realidade do capitalismo como um todo integrado, abordando em seguida
as suas manifestaçons concretas nas áreas económica, política e ideológico-cultural.
Finalmente, umha breve referência a Karl Marx. Ele foi umha figura proeminente da
moderna história intelectual e política. Deixou-nos um enorme legado, conceptualmente rico e
moralmente inspirador. Porém, a afirmaçom de Marx, segundo a qual ele próprio nom era
marxista, deve ser interpretada literalmente, e nom como umha mera figura de retórica.
Contrariamente a muitos dos seus auto-proclamados discípulos, ele sabia que era um
homem do século XIX, e que a sua visom estava inevitavelmente circunscrita a essa realidade
social. Ao contrário de muitos, ele sabia que um modelo teórico só é compreensível e útil por
oposiçom a outro modelo teórico alternativo que, implícita ou explicitamente, pretende refutar; e
que é totalmente irrelevante por oposiçom a outros modelos, relativos a outros problemas,
baseados noutras premissas. Ao contrário de muitos, ele sabia que na sua obra existia umha
tensom (que, historicamente, nunca se verificou de facto) entre a exposiçom do capitalismo
enquanto sistema consumado e a análise da realidade concreta e quotidiana do mundo
capitalista.
A palavra capitalismo deriva de capital. Seria pois legítimo presumir que o capital é um
elemento-chave do capitalismo. Mas o que é o capital? Em certo sentido, trata-se apenas de
riqueza acumulada. Contudo, quando usado no contexto do capitalismo histórico, tem umha
definiçom mais específica. nom é apenas o conjunto de bens consumíveis, maquinaria ou
títulos de aquisiçom de objectos materiais sob a forma de dinheiro. É certo que, no capitalismo
histórico, o termo capital continua a referir-se a acumulaçons de esforços de trabalho anterior,
ainda nom utilizadas. Mas se fosse apenas isso, entom todos os sistemas históricos, desde o
Homem de Neanderthal, poderiam ser classificados como capitalistas, umha vez que em todos
eles existiu umha qualquer forma de acumulaçom de bens que consubstanciavam trabalho
anterior.
O que distingue o sistema social histórico a que chamamos capitalismo é o facto de,
neste sistema, o capital passar a ser usado (investido) de forma muito especial. Passou a ser
utilizado com o objectivo primário de auto-expansom. Neste sisterna, as acumulaçons
anteriores apenas som “capital” na medida em que som usadas com vista à obtençom de
acumulaçons ainda maiores. O processo foi sem dúvida complexo, mesmo sinuoso, como
veremos. Mas é a este objectivo, inexorável e peculiarmente auto-centrado, do detentor de
capital (acumulaçom exponencial de capital), e também às relaçons sociais necessárias para
se realizar esse objectivo, que podemos atribuir a designaçom de capitalista. É certo que este
objectivo nom era exclusivo. Ao processo produtivo estavam associados outros propósitos.
Contudo, em caso de conflito, que propósitos tendiam a prevalecer? Sempre que, num dado
período, a acumulaçom de capital assumiu prioridade sobre outros objectivos alternativos, há
justificaçom para caracterizar o sistema como capitalista.
Um indivíduo (ou um grupo) pode, é claro, decidir em qualquer altura que pretende
investir capital, com o objectivo de adquirir ainda mais capital. Mas, até umha dada época
histórica, teria sido muito difícil a esse indivíduo fazê-lo com sucesso. Nos sistemas anteriores,
o processo de acumulaçom do capital era longo e complexo, sendo quase sempre bloqueado
nurn ponto ou noutro. Isso acontecia mesmo nos casos em que existiam as condiçons iniciais –
a posse ou a concentraçom nas maos de alguns de um conjunto de bens ainda nom
consumidos. O nosso capitalista putativo teria obrigatoriamente de recorrer ao trabalho alheio,
o que implicaria a existência de pessoas que pudessem ser aliciadas ou compelidas a fazer
esse trabalho. Umha vez obtidos os trabalhadores e os bens produzidos, esses bens teriam de
ser comercializados, o que implicaria a existencia quer de um sistema de distribuiçom, quer de
um grupo de compradores, com os meios suficientes para adquirirem os bens. No ponto de
venda, os bens teriam de ser vendidos a um preço superior aos custos totais suportados polo
vendedor. Além disso, este diferencial teria de ser superior ao que o vendedor necessitava para
a sua própria subsistencia. Na nossa linguagem moderna, teria de existir lucro. O dono desse
lucro teria entom de ser capaz de o reter até surgir umha oportunidade razoável para o investir,
e todo o processo teria de se repetir ao nível da produçom.
De facto, antes dos tempos modernos, esta cadeia de processos (por vezes designada
circuito do capital), raramente era concluída. Desde logo porque, nos sistemas sociais
anteriores, muitos dos elos da cadeia eram considerados irracionais e/ou imorais polos
detentores da autoridade política e moral. Mas, mesmo sem a interferência directa destes, o
processo geralmente abortava, devido à ausência de um ou mais elementos do processo –
provisons monetárias acumuladas, força de trabalho a mercê do produtor, rede de
distribuidores, consumidores na qualidade de compradores.
Nos sistemas sociais anteriores, tais elementos estavam ausentes, por nom serem
“mercantilizados” ou serem-no de modo incipiente. Isto significa que o processo nom era
transaccionável através de um “mercado”. O capitalismo histórico implicou, pois, a
mercantilizaçom generalizada dos processos –nom apenas os processos de troca, mas
também os de produçom, de distribuiçom e de investimento– que até aí eram efectuados sem a
intervençom do “mercado”. E, no decurso desta procura de acumulaçom exponencial de
capital, os capitalistas procuraram mercantilizar mais intensamente estes processos sociais, em
todas as esferas da vida económica. Umha vez que o capitalismo é um processo auto-
centrado, daí decorre que nengumha transacçom social estava intrinsecamente impedida de
ser integrada no circuíto. É por estas razons que podemos afirmar que o desenvolvimento
histórico do capitalismo implicou um impulso para a mercantilizaçom de tudo.
Deste modo, a economia capitalista tem sido governada polo intuito racional de
rnaximizar a acumulaçom. Mas o que era racional para os empresários nom era
necessariamente racional para os trabalhadores. E, mais importante ainda, o que era racional
para o conjunto dos empresários nom era necessariamente racional para todo e qualquer
empresário individual. Por conseguinte, nom basta afirmar que toda a gente prosseguia os seus
próprios interesses. Os interesses de cada pessoa impeliam-na freqüentemente, com toda a
“racionalidade” , a envolver-se em actividades contraditórias. O cômputo geral dos interesses
reais a longo prazo tornou-se entom extremamente complexo, mesmo se ignorarmos, por
agora, que a percepçom dos interesses individuais estava, de algum modo, conturbada e
distorcida por complexos véus ideológicos. De momento, e a título provisório, eu suponho que
o capitalismo histórico criou de facto um homo economicus. Todavia, devo acrescentar que
esse homo economicus era, quase inevitavelmente, um pouco confuso.
Havia, apesar de tudo, umha condicionante “objectiva” que limitava a confusom. Sempre
que um dado indivíduo (ou empresa) cometia constantes erros de julgamento económico, por
ignorancia, fatuidade ou preconceito ideológico, arriscava-se a nom sobreviver no mercado. A
bancarrota era o amargo fluído de limpeza do sistema capitalista, forçando permanentemente
todos os actores económicos a manterem-se no trilho certo, e pressionando-os a actuar de
modo a que, colectivamente, se produzisse ainda mais acumulaçom de capital.
Vejamos, pois, como o sistema capitalista tem funcionado realmente. Dizer que o
objectivo de um produtor é a acumulaçom de capital é igual a afirmar que ele tentará produzir o
máximo possível de um certo bem e vendê-lo com a maior margem de lucro possível. Mas terá
de ter em conta um certo número de condicionantes económicas que existem, como se di, “no
mercado”. A sua produçom total é forçosamente limitada pola disponibi- lidade, relativamente
imediata, de determinados factores, nomeadamente materiais, força de trabalho, clientes e
acesso a dinheiro para expandir a sua base de investimento. A quantidade de produçom
lucrativa e a margem de lucro que ele pode obter estam também limitadas pola capacidade de
os seus “competidores” oferecerem o mesmo produto a preços de venda mais baixos. Neste
caso, nom som todos os competidores existentes no mercado mundial, mas somente aqueles
que estam localizados na mesma área específica em que ele habitualmente vende (qualquer
que seja a área de mercado em apreço). A expansom da sua produçom será também
condicionada polo grau em que o acréscimo dessa produgao gera umha reduçom de preços no
mercado “local” que acabe por reduzir o lucro total realizado com a sua produçom total.
Tudo isto som condicionantes objectivas, ou seja, existem independente- mente de
eventuais decisons de um dado produtor ou de outros intervenientes no mercado. Estas
condicionantes som conseqüência do processo social total, que ocorre num espaço e num
tempo localizados. Adicionalmente, existem como é óbvio, outras condicionantes mais sujeitas
a manipulaçom. Os governos podem adoptar, ou terem já adoptado, diversas regras que, de
algumha forma, transformam as opçons económicas e, consequentemente, o cálculo do lucro.
Um dado produtor pode ser beneficiário ou vítima das regras existentes. Um dado produtor
pode procurar persuadir as autoridades políticas a modificar as regras em seu favor.
É claro que esta estatística depende de como se mede e daquilo que é medido. Se
usarmos as estatísticas oficiais dos governos sobre a chamada populaçom activa –
principalmente adultos masculinos que se declaram formalmente disponíveis para o trabalho
remunerado–, poderemos concluir que a percentagem de trabalhadores assalariados é
relativamente elevada (embora, a escala mundial, a percentagem seja inferior ao que a maioria
das proposiçons teóricas presumem). Se, contudo, considerarmos todas as pessoas cujo
trabalho, de umha maneira ou outra, é incorporado nas cadeias de mercadorias –incluindo
virtualmente todos os adultos femininos e umha larga proporçom das pessoas de idade pré-
adulta ou pós-adulta, isto é, os novos e os velhos–, entom a percentagem de proletários baixa
drasticamente.
Foi no contexto da estrutura doméstica que a distinçom social entre trabalho produtivo e
nom produtivo começou a ser imposta a classe trabalhadora. Na prática, o trabalho produtivo
acabou por ser definido como trabalho que traz dinheiro (sobretudo trabalho assalariado), e o
trabalho nom produtivo, como trabalho que, embora muito necessário, era mera actividade de
“subsistência” e, portanto, considerado como nom produtor de “excedente” que pudesse ser
apropriado por alguém. Este trabalho nom era mercantilizado ou, quando muito, correspondia a
umha pequena produçom de mercadorias. A distinçom entre géneros de trabalho estava
ancorada na criaçom dos respectivos papéis sociais específicos. O trabalho produtivo
(assalariado) tornou-se umha tarefa típica do adulto masculino/pai e, secundariamente, de
outros adultos masculinos (mais novos) do agregado familiar. O trabalho nom produtivo (de
subsistência) tornou-se umha tarefa típica do adulto feminino/mae e, secundariamente, de
outras mulheres, das crianças e dos idosos. O trabalho produtivo era realizado fora do lar, no
“local de trabalho”; o trabalho nom produtivo era efectuado dentro do lar.
As linhas de divisom nom eram entom absolutas, mas, durante o capitalismo histórico,
tornárom-se bem claras e compulsórias. Esta divisom do trabalho efectivo, segundo o sexo e a
idade, nom foi, é claro, umha invençom do capitalismo histórico. Provavelmente, sempre
existiu, quanto mais nom fosse porque, para certas tarefas, há pré-requisitos e limitaçons
biológicas (ligadas ao sexo, mas também a idade). Também nom foi o capitalismo que
engendrou a hierarquia familiar e/ou a estrutura doméstica. Isso já existia há muito.
A novidade introduzida polo capitalismo histórico foi a correlaçom entre a divisom das
tarefas e a valorizaçom do trabalho. Já existia a diferenciaçom do trabalho segundo critérios
etários e sexuais mas, com a emergencia do capitalismo histórico, o trabalho das mulheres (e
dos novos e idosos), sofreu umha constante desvalorizaçom, à par da concomitante
valorizaçom do trabalho dos homens adultos. Enquanto, noutros sistemas, os homens e as
mulheres desempenhavam tarefas específicas (mas normalmente equiparadas), no capitalismo
histórico o homem assalariado passou a ser considerado como “sustento da família” , enquanto
a mulher, trabalhadora doméstica, passou a ser vista como “dona-de-casa”. Assim, quando as
estatísticas nacionais –elas mesmas um produto do sistema capitalista–, começárom a ser
compiladas, todos os ”sustentadores” eram considerados elementos da populaçom activa,
enquanto nengumha dona-de-casa o era. Assim, o sexismo foi institucionalizado. Os aparelhos
legais e para-legais da distinçom e discriminaçom sexuais seguírom-se, logicamente, a esta
diferenciaçom básica na valorizaçom do trabalho.
Como explicar este fenómeno? nom me parece ser muito difícil. No pressuposto de que
um produtor que recorre ao trabalho assalariado prefere sempre, e em qualquer circunstancia,
pagar o mínimo possível, o nível mínimo de remuneraçom que os assalariados podiam aceitar
dependia do tipo de espaço doméstico em que viviam. Pondo a questom de modo mais
simples: para trabalho idêntico, a níveis identicos de eficiência, um traba- lhador de um
agregado familiar com umha alta percentagem de rendimento salarial (chamemos-lhe agregado
proletarizado), encontra-se num limiar monetário mais elevado –abaixo do qual acharia
manifestamente irracional fazer trabalho assalariado–, do que um trabalhador de um agregado
familiar com baixa percentagem de rendimento salarial (chamemos-lhe agregado semi-
proletarizado).
A razom desta diferença –que podemos denominar como limiar mínimo de salário
aceitável–, está relacionada com a economia de sobrevivência. Como os agregados
proletarizados dependiarn sobretudo de rendimentos salariais, estes tinham de fazer face aos
custos mínimos de sobrevivência e reproduçom. Contudo, quando os salários constituíam
umha parte menos importante do rendimento total do agregado, era freqüente que um indivíduo
aceitasse emprego a um nível de remuneraçom que contribuía menos do que a sua quota parte
proporcional (em termos de horas de trabalho), para o rendimento real doméstico, garantindo
ainda assim o ganho de algum dinheiro líquido (necessidade essa imposta muitas vezes por
lei). Em certos casos, esse mesmo emprego era aceite como alternativa a outras tarefas ainda
menos remuneradas.
Ao caracterizar este processo como oculto, queremos com isso dizer que os preços
parecem ser negociados num mercado mundial, com base em forças económicas impessoais.
Em cada transacçom concreta, nom era preciso invocar o enorme aparato de força latente
(usado esporadicamente em guerras e na colonizaçom), para assegurar que essa troca fosse
desigual. O aparato militar só era utilizado quando surgiam fortes desafios num nível
determinado de troca desigual. Umha vez ultrapassada a fase de conflito político agudo, as
classes empresariais do mundo podiam fazer crer que a economia funcionava somente com
base nas consideraçons da oferta e procura, sem se tomar em conta como historicamente se
atingiu determinado ponto da oferta e da procura, nem que estruturas de coerçom sustentavam
nesse momento os diferenciais “normais” dos níveis salariais e da qualidade de vida real entre
as forças de trabalho no mundo.
A competiçom tenaz entre capitalistas foi sempre umha das digerentia specifica do
capitalismo histórico. Mesmo quando parecia voluntariamente restringida (por acordos de tipo
cartel), isso decorria do facto de cada competidor pensar que essa restriçom optimizava as
suas próprias margens. Num sistema caracterizado pola incessante acumulaçom de capital,
nengum participante se podia permitir relaxar este ímpeto constante de rendibilidade a longo
prazo, excepto correndo o risco de auto-destruiçom.
Estes rearranjos tenhem tido três conseqüências principais. umha delas tem sido a
própria reestruturaçom geográfica permanente do sistema-mundo capitalista. No entanto,
embora as cadeias de mercadorias sofram reestruturaçons significativas, aproximadamente de
cinqüenta em cinqüenta anos, o sistema de cadeias de mercadorias hierarquicamente
organizadas tem prevalecido. Alguns processos produtivos particulares tenhem descido na
hierarquia, enquanto outros ascendem ao topo. E, ao longo do tempo, algumhas zonas
geográficas particulares tem acolhido processos de diferentes níveis hierárquicos. Assim, cada
produto tem tido o seu “ciclo de produto”, começando como produto central e acabando
eventualmente por se tornar produto periférico. Além disso, a posiçom de alguns locais tem
melhorado ou piorado, em termos de bem-estar relativo dos seus habitantes. Mas, para chamar
a estas mudanças “desenvolvimento”, teríamos primeiro de demonstrar ter havido umha
reduçom da polarizaçom no sistema. Empiricamente, isto parece nunca ter acontecido; polo
contrário, historicamente, a polarizaçom tem-se acentuado. Assim, pode dizer-se que estas
recolocaçons geográficas e de produtos tenhem sido verdadeiramente cíclicas.
Outra observaçom empírica imediata sobre o capitalismo histórico é a de que a sua área
geográfica se expandiu constantemente ao longo do tempo. umha vez mais, o ritmo a que
ocorreu este processo oferece a melhor pista para a sua explicaçom. A extensom da divisom
social do trabalho a novas zonas do capitalismo histórico nom ocorreu toda de umha só vez. De
facto, ocorreu em surtos periódicos, embora cada expansom sucessiva pareça ter tido um
alcance limitado. Indubitavelmente, parte da explicaçom está no próprio desenvolvimento
tecnológico do capitalismo histórico. Melhoramentos nos transportes, comunicaçons e
armamentos tornaram cada vez menos dispendioso incorporar regioes mais e mais afastadas
das zonas centrais. Mas esta explicaçom, quando muito, refere-se a umha
condiçom necessária mas nom suficiente deste processo.
Por vezes, tem sido afirmado que a explicaçom está na busca constante de novos
mercados, capazes de garantir os lucros da produçom capitalista. Porém, esta explicaçom,
contradiz pura e simplesmente os factos históricos. Geralmente, as áreas exteriores ao
capitalismo histórico eram compradoras relutantes dos seus produtos, em parte porque nom
“precisavam” deles –nos termos do seu próprio sistema económico–, e, em parte, porque,
freqüêntemente, nom dispunham de meios de troca suficientes para os adquirir. É claro que
houvo excepçons, mas, de um modo geral, foi o mundo capitalista quem procurou os produtos
das áreas exteriores, e nom o contrário. Quando determinados locais eram conquistados
militarmente, os empresários capitalistas queixavam-se regularmente da ausência de
verdadeiros mercados nesses locais, e operavam através dos governos coloniais, no sentido
de “criarem gostos”.
Dedicámos muito tempo a delinear o modo como o capitalismo histórico tem operado
estritamente no campo económico. Podemos agora explicar o que levou a emergencia do
rapitalismo enquanto sistema social histórico. Isto nom é tam fácil como frequentemente se
pensa. A superfície, longe de ser um sistema “natural” –como alguns apologistas o tenhem
considerado–, o capitalismo histórico é patentemente absurdo. Acumula-se capital com vista a
acumular mais capital. Os capitalistas som como ratos brancos numha roda de azenha,
correndo cada vez mais depressa para poderem correr ainda mais depressa. No decurso do
processo, sem dúvida, algumhas pessoas viverám bem, mas outras viverám miseravelmente. E
com que nível de vida, e por quanto tempo, viverám aqueles que vivem bem?
Quanto mais penso sobre o assunto, mais ele me parece absurdo. Acredito que, do
ponto de vista material, a vasta maioria da populaçom mundial está objectiva e subjectivamente
pior do que em anteriores sistemas históricos. E, como veremos, acho que podemos considerar
que também estám politicamente pior. Estamos todos tam imbuídos da ideologia auto-
justificativa do progresso que este sistema histórico talhou, que até nos custa reconhecer as
vastas facetas negativas do sistema. Mesmo Karl Marx, um tam robusto e decidido
denunciador do capitalismo histórico, deu grande ênfase ao seu papel progressivo. Nisso nom
acredito mesmo nada, a menos que por “progressivo” se queira simplesmente qualificar aquilo
que sucede historicamente, e cujas origens se podem explicar por algo que o precedeu. O
balanço do capitalismo histórico, ao qual voltarei, é porventura complexo, mas os cálculos
iniciais, em termos de distribuiçom material de bens e de destinaçom dos recursos, é, do meu
ponto de vista, bastante negativo.
Se isto é assim, por que surgiu um tal sistema? Talvez, precisamente, para atingir este
fim. Haverá algo mais plausível do que umha linha de argumentaçom que afirma que a
explicaçom para a origem de um sistema reside na prossecuçom de um fim que foi de facto
atingido? Sei que a ciência moderna nos desviou da procura de causas finais e de todas as
consideraçons de intencionalidade (sobretudo porque elas som muito difíceis de demonstrar
empiricamente). Mas, como sabemos, a ciência moderna e o capitalismo histórico tenhem
estado em aliança estreita. Assim sendo, devemos suspeitar da autoridade da ciência
precisamente sobre esta questom: a rnodalidade do conhecimento das origens do capitalismo
histórico. Portanto, irei simplesmente delinear umha explicaçom histórica das origens do
capitalismo histórico, sem tentar expor aqui a base empírica para umha tal demonstraçom.
Em comparaçom com outras áreas do globo, a Europa dos séculos XIV e XV era a sede
de umha divisom social do trabalho que –em termos de forças de produçom, da coesom do seu
sistema histórico e do seu estado relativo de conhecimento humano–, constituía umha zona
intermédia: menos avançada que algumhas zonas, e mais evoluída que outras. Marco Polo,
recorde-se, oriundo de umha das sub-regions europeias mais desenvolvidas económica e
culturalmente, ficou positivamente cilindrado com o que encontrou nas suas viagens asiáticas.
A arena económica da Europa feudal atravessava umha crise muito profunda, gerada
internamente, que sacudia as suas fundaçons sociais. As suas classes dominantes estavam a
destruir-se mutuamente a um ritmo acelerado, enquanto o seu sistema fundiário (a base da sua
estrutura económica), se tornava lasso, sujeito a umha considerável reorganizaçom, no sentido
de umha distribuiçom muito mais igualitária do que até aí tinha sido normal. Além disso, os
pequenos camponeses estavam a demonstrar umha grande eficiência como produtores. Dum
modo geral, as estruturas políticas estavam a tornar-se mais fracas, e a sua preocupaçom com
as luitas intestinas dos politicamente poderosos significava que pouco tempo restava para
reprimir a força crescente das massas da populaçom. O cimento ideológico do catolicismo
estava sujeito a umha grande tensom, enquanto movimentos igualitários nasciam no seio da
própria Igreja. As cousas estavam verdadeiramente a cair aos pedaços. Se a Europa tivesse
seguido polo caminho que entom encetara, é difícil acreditar que os padrons da Europa feudal
da Idade Média, com o seu sistema de “ordens” altamente estruturado, pudessem ser
reconsolidados. Muito provavelmente, a estrutura social feudal europeia teria evoluído para um
sistema relativamente igualitário de pequenos produtores, nivelando por baixo as aristocracias
remanescentes e descentralizando as estruturas políticas.
Saber se isto foi bom ou mau, e para quem, é matéria especulativa de pouco interesse.
Mas é claro que esta perspectiva deve ter desconcertado e assustado os estratos superiores
da Europa, especialmente quando sentírom que a sua armadura ideológica estava também a
desintegrar-se. Sem sugerir que alguém tenha algumha vez verbalizado conscientemente um
tal projecto, podemos constatar manifestas diferenças, comparando a Europa de 1650 com a
de 1450. Em 1650, as estruturas básicas do capitalismo histórico, como sistema histórico
viável, tinham sido estabelecidas e consolidadas. A tendência para a igualitarizaçom dos
rendimentos tinha sido drasticamente revertida. Umha vez mais, os estratos superiores
detinham o controlo firme da situaçom, política e ideologicamente. Havia um nível
razoavelmente elevado de continuidade entre as famílias que, em 1450, formavam os estratos
superiores, e aquelas que os integravam em 1650. Ademais, se substituirmos 1650 por 1900,
veremos que a maioria das comparaçons com 1450 continua a ser válida. É só no século XX
que aparecem algumhas tendências significativas noutras direcçons, um sinal de que, como
veremos, o sistema histórico do capitalismo, após quatro ou cinco séculos de florescimento,
entrou finalmente em crise estrutural. Provavelmente, ninguém chegou a exprimir essa
intençom, mas parece que a criaçom do capitalismo histórico, como sistema social, fez reverter
dramaticamente umha tendência que os estratos superiores temiam, estabelecendo em seu
lugar umha outra que serviu ainda melhor os seus interesses. Isso será assim tam absurdo?
Apenas para aqueles que fôrom as suas vítimas.
A POLÍTICA DE ACUMULAÇOM: A LUITA POLO LUCRO
A incessante acumulaçom de capital, como fim em si, pode prima facie parecer um
objectivo socialmente absurdo. Porém, esta tese tem tido os seus defensores, que usualmente
alegam a existência de supostos benefícios sociais de longo prazo. Discutiremos mais tarde em
que medida estes benefícios sociais som reais. No entanto, independentemente de quaisquer
benefícios colectivos, é claro que a acumulaçom de capital gera um forte acréscimo do
consumo, por parte de muitos indivíduos (e/ou pequenos grupos). Se o acréscimo de consumo
melhora realmente a qualidade de vida dos consumidores, isso é outra questom, cuja análise
também deixaremos para mais tarde.
A primeira questom que iremos abordar é a seguinte: quem goza dos benefícios
individuais imediatos? Parece razoável afirmar que a maioria das pessoas nom fica à espera de
benefícios de longo prazo, em termos de melhoria da qualidade de vida individual ou colectiva,
para decidir se vale a pena luitar por benefícios individuais imediatos, que estám tam
obviamente disponíveis. Na verdade, isto tem sido o foco central da luita política no capitalismo
histórico, e é isso que queremos dizer ao afirmar que o capitalismo histórico é umha
civilizaçom materialista.
Do ponto de vista do produtor, a liberdade de movimentos era desejável, caso ele fosse
economicamente competitivo em relaçom com outros produtores do mesmo produto, no
mercado mundial. Porém, caso contrário, as várias barreiras fronteiriças, erguidas contra os
produtores rivais, podiam aumentar os custos destes últimos, beneficiando assim o produtor
que, sem isso, seria menos eficiente. umha vez que, por definiçom, num mercado em que havia
múltiplos produtores de um mesmo produto, a maioria era menos eficiente, tem existido umha
constante pressom a favor de restriçons mercantilistas ao livre movimento transfronteiriço. No
entanto, como os mais eficientes, apesar de estarem em minoria, eram relativamente ricos e
poderosos, tem havido umha constante contra-pressom pola abertura das fronteiras, ou, mais
especificamente, pola abertura de certas fronteiras. Assim, a primeira grande luita –umha luita
feroz e continuada– foi sobre as políticas fronteiriças dos Estados. Além disso, como qualquer
conjunto de produtores (mas particularmente os fortes e poderosos), era directamente afectado
polas políticas fronteiriças nom apenas dos Estados em que baseava fisicamente a sua
actividade económica (que podiam nom ser os Estados do quais eles eram cidadaos), mas
também de muitos outros Estados –alguns produtores tivêrom interesse em promover
objectivos políticos simultáneos em vários, por vezes, mesmo, em muitos Estados. A ideia de
que se deve restringir a participaçom política ao seu próprio Estado era profundamente
antitética para aqueles que promoviam a acumulaçom capitalista como um fim em si.
Umha maneira de modificar as regras relativas ao que pode e ao que nom pode cruzar
as fronteiras (e sob que condiçons), consistia em mudar as próprias fronteiras –através da
incorporaçom total de um Estado por outro (unificaçom, ansch1uss, colonizaçom), da conquista
de um território ou da secessom ou descolonizaçom. O facto de as mudanças de fronteira
exercerem um impacto directo nos padrons da divisom social do trabalho na economia-mundo,
tem sido um aspecto central da argumentaçom de todos os que apoiam ou contestam
determinadas alteraçons de fronteiras. Por seu turno, a circunstáncia de as
mobilizaçons ideológicas, focalizadas na definiçom de naçons, poder facilitar ou dificultar
determinadas alteraçons fronteiriças, tem conferido conteúdo económico imediato aos
movimentos nacionalistas, umha vez que as pessoas envolvidas tendem a realizar conjecturas
sobre políticas estatais específicas, decorrentes das projectadas mudanças fronteiriças.
Todas estas decisons estatais eram tomadas com o objectivo explícito de influenciarem
a acumulaçom de capital. Isso pode ser facilmente verificado, analisando os numerosos
debates que, em cada época, influenciárom a escolha das alternativas estatutárias e
administrativas. Ademais, os Estados dispendiam regularmente consideráveis energias na
imposiçom das suas estatuiçons a grupos recalcitrantes, em particular as forças de trabalho
recalcitrantes. Os trabalhadores raramente podiam ignorar os constrangimentos impostos as
suas acçons. polo contrário, a rebeliom dos trabalhadores –individual ou colectiva, passiva ou
activa–, provocava geralmente umha resposta repressiva imediata por parte dos aparelhos
estatais. É certo que, com o tempo, os movimentos organizados da classe trabalhadora fôrom
capazes de impor certas limitaçons à repressom, levando mesmo a alteraçons, em seu favor,
de algumhas regras vigentes. Mas estes movimentos obtinham tais resultados através,
sobretudo, da sua capacidade de influenciar a composiçom política dos aparelhos estatais.
A tributaçom foi um poder que atraiu hostilidade e resistência sobre a própria estrutura
estatal, que era vista como umha espécie de vilao impessoal, apropriador dos frutos do
trabalho de outrem. Há que ter em conta que, fora do governo, havia forças que pugnavam
pola criaçom de impostos específicos, para beneficiarem da sua redistribuiçom ou, permitindo
ao Governo criar economias externas, para melhorarem a sua posiçom económica e
penalizarem outros, de umha forma que fosse economicamente favorável ao primeiro grupo.
Resumindo, o poder de criar impostos era um dos meios mais imediatos polos quais o Estado
apoiava directamente o processo de acumulaçom de capital, favorecendo certos grupos e
discriminando outros.
Antes de mais, os governos, através dos impostos, reuniam largas somas de capital, que
posteriormente redistribuíam, através de subsídios oficiais, por pessoas ou grupos já grandes
detentores de capital. Estes subsídios tenhem consistido em puras dádivas, geralmente com a
justificaçom duvidosa de finalidade pública (envolvendo essencialmente pagamentos de
serviços sobre-avaliados). Mas tem também adquirido formas menos directas, como quando o
Estado suporta os custos da criaçom de um dado produto (supostamente amortizáveis por
futuras vendas lucrativas), custeando a preço simbólico actividades económicas de
empresários nom-governamentais, precisamente no ponto em que termina a fase onerosa de
pesquisa e desenvolvimento.
Existem assim diversos meios, polos quais o Estado tem desempenhado um papel
crucial na máxima acumulaçom de capital. De acordo com a sua própria ideologia, era suposto
que o capitalismo envolvesse apenas a actividade de empresários particulares, livres da
interferência dos aparelhos estatais. Na prática, porém, isto nunca foi verdade em parte
algumha. É ocioso especular sobre o capitalismo, e se ele poderia ter florescido sem o papel
activo do Estado moderno. No capitalismo histórico, os capitalistas contárom sempre com a
possibilidade de utilizar os aparelhos estatais em seu proveito, das várias maneiras que
esboçamos.
Um segundo mito ideológico tem sido o da soberania estatal. O Estado moderno nunca
foi umha entidade política completamente autónoma. Os Estados fôrom formados e
desenvolvêrom-se como partes integradas num sistema inter-estatal, regido por um conjunto de
regras, dentro das quais os Estados tinham de operar, e um conjunto de legitimaçons, sem as
quais os Estados nom podiam sobreviver. Do ponto de vista dos aparelhos estatais de um dado
Estado, o sistema inter-estatal representou sempre constrangimentos à sua vontade. Estes
constrangimentos reflectírom-se nas práticas da diplomacia, nas regras formais sobre
jurisdiçons e contratos (o direito internacional), e nos limites estatuídos sobre como e em que
circunstáncias se pode conduzir a guerra. Todos estes constrangimentos vam contra a
ideologia oficial da soberania, A soberania, porém, nunca significou total autonomia. Este
conceito refere apenas a existência de limites à legitimidade da interferência de um aparelho
estatal nas operaçons de um outro.
Se estes impulsos nunca tivérom sucesso no capitalismo histórico, foi porque a base
estrutural do sistema económico e os interesses claramente percebidos dos maiores
acumuladores de capital eram fundamentalmente opostos a umha transformaçom da
economia-mundo num império-mundo.
Podemas verificar que o equilíbrio de poder era mantido por algo mais do que a
ideologia política, analisando os três momentos em que um dos Estados fortes acedeu
temporariamente ao relativo domínio sobre os outros – um domínio relativo, a que podemos
chamar hegemonia. Os três momentos som: a hegemonia das Províncias Unidas (Holanda),
em meados do século XVII, a da Gram Bretanha, em meados do século XIX, e a dos Estados
Unidos, na segunda metade do século XX.
O principal factor da vitória nom era, porém, militar, mas sim económico: a capacidade
dos acumuladores de capital, sediados em determinados Estados, para vencerem todos os
concorrentes, nas três principais esferas económicas: produçom agro-industrial, comércio e
finanças. Especificamente, durante breves períodos, os acumuladores de capital no Estado
hegemónico eram mais eficientes do que os seus concorrentes sediados noutros Estados rivais
e, em conseqüência, conquistárom mercados, mesmo nas áreas “domésticas” destes últimos.
Todos estes períodos hegemónicos fôrom breves. Todos tivérom um fim, o qual se deveu mais
a razons económicas do que político-militares.
Deste modo, o equilíbrio de poder –que constrangia tanto os Estados fortes como os
fracos–, nom era um epifenómeno político que pudesse ser facilmente desfeito. Estava
directamente ancorado no modo como o capital era acumulado no capitalismo histórico. O
equilíbrio de poder também nom decorria unicamente da relaçom entre aparelhos estatais,
porque os actores internos de qualquer dos Estados actuavam regularmente para além das
suas fronteiras, directamente ou por intermédio de alianças com actores noutros locais. Deste
modo, na análise da política dos Estados, a distinçom interno-externo é puramente formal e
nom ajuda a compreensom das luitas políticas.
Mas, de facto, quem luitava com quem? Esta nom é umha questom tam óbvia como se
poderá pensar, dadas as pressons contraditórias existentes no capitalismo histórico. A luita
mais elementar –e de algum modo a mais óbvia–, era a que opunha um pequeno grupo de
grandes beneficiários do sistema e o grande conjunto das suas vítimas. Esta luita é conhecida
por muitos nomes e sob muitas formas. Sempre que, num determinado Estado, há umha
demarcaçom clara entre os acumuladores de capital e a sua força de trabalho, estamos
perante aquilo a que se chama umha luita de classes entre o capital e o trabalho. Essas luitas
de classes ocorreram em dous locais –na arena económica (tanto no local de trabalho, como
no mais lato e amorfo “mercado”), e na arena política. É claro que, na arena económica, tem
havido um conflito de interesses directo, lógico e imediato. Quanto maior for a remuneraçom da
força de trabalho, menos mais-valia sobrará como “lucro”. É claro que este conflito tem sido
atenuado por consideraçons de longo prazo e de larga escala. Certos acumuladores de capital
e os seus assalariados tinham interesses comuns, por oposiçom aos seus congéneres
localizados algures no sistema. E, em certas circunstáncias, umha melhor remuneraçom da
força de trabalho podia reverter em proveito dos acumuladores de capital como lucro diferido,
por via de um acrescido poder de compra global na economia-mundo. De qualquer modo,
nenguma destas consideraçons podia escamotear o facto de que a divisom de umha
determinada mais-valia era umha operaçom de soma zero. Daí que, forçosamente, a tensom
tenha sido contínua. Consequentemente, essa mesma tensom encontrou expressom
continuada na competiçom polo poder político, dentro dos vários Estados.
Nom obstante tudo isto, se prestarmos atençom unicamente a luita de classes (polo
facto de ser óbvia e fundamental), perderemos de vista umha outra luita política que, durante o
capitalismo histórico, absorveu polo menos tanto tempo e energia. Referimo-nos ao facto de o
sistema capitalista ter impelido todos os acumuladores de capital a luitarem uns contra os
outros. umha vez que o modo de promover a incessante acumulaçom de capital consistia na
obtençom de lucros, provenientes da actividade económica (contra os esforços competitivos de
outros), nengum empresário individual podia ser mais do que um aliado circunstancial de
qualquer outro empresário, sob pena de ser, pura e simplesmente, eliminado de cena.
Constatando a existência de luitas que, embora nom sendo luitas de classes, absorvem
bastante energia política, muitos investigadores concluírom que a luita de classes comporta
umha interpretaçom dúbia para a compreensom da luita política. Esta é umha inferência
curiosa. Seria mais sensato concluir que essas luitas, alheias a lógica de classe, isto é, luitas
entre acumuladores por vantagens políticas, comprovam a existência de umha séria fraqueza
estrutural na luita de classes que estes mantenhem entre si a escala mundial. Estas luitas
políticas podem ser definidas como luitas para moldar as estruturas institucionaís da economia-
mundo capitalista, de modo a construir um tipo de mercado mundial cujo funcionamento
favorece actores económicos particulares. O “mercado” capitalista nunca foi um dado, e muito
menos umha constante. Trata-se de umha construçom que foi regularmente recriada e
ajustada.
Nesta constelaçom de forças institucionais, nom havia estrelas polares fixas. Nom havia
entidades “prirnordiais” que tendiam a prevalecer sobre as formas institucionais suscitadas
polos acumuladores de capital, em alternáncia com (e em oposiçom a) luita dos trabalhadores
para resistirem a apropriaçom do seu produto económico. As fronteiras entre diferentes
variantes de umha forma institucional, os “direitos” que ela podia legalmente e de facto
sustentar, variavam nas diferentes zonas da economia-mundo. Se um analista escrupuloso fica
confuso diante deste vortex institucional, ele pode seguir um rumo seguro lembrando-se que no
capitalismo histórico os acumuladores tinham como objectivo supremo a maximizaçom da
acumulaçom, e que, por conseguinte, as forcas de trabalho nom podiam ter um objectivo mais
elevado do que a sua sobrevivência e o alijar da sua carga. Com isto em mente, podemos
compreender razoavelmente a história política do mundo moderno.
Isto parece tam óbvio que devemos interrogar-nos sobre o que teria levado esses
movimentos a basear a sua estratégia num objectivo tam ilusório. A resposta é bem simples:
dada a estrutura política do capitalismo histórico, nom tinham grande escolha. Nom parecia
existir urna estratégia alternativa mais promissora. A tomada do poder estatal prometia, polo
menos em parte, umha mudança no equilíbrio de poder entre os grupos em contenda. Por
outras palavras, a tomada do poder estatal representou umha reforma do sistema. As reformas
melhorárom de facto a situaçom, mas sempre através do reforço do próprio sistema.
Poderemos entom concluir que o papel dos movimentos anti-sistémicos no mundo, ao longo de
mais de cento e cinqüenta anos, consistiu simplesmente no reforço do capitalismo histórico
através do reformismo? Nom. E isto porque a política do capitalismo histórico é mais do que a
política dos diversos Estados. Tem sido também a política do sistema inter-estatal. Os
movimentos anti-sistémicos existírom desde o início nom apenas individualmente mas como
um todo colectivo, embora nunca organizado burocraticamente (as várias internacionais nunca
incluírom a totalidade destes movimentos). Um factor crucial na força de cada movimento tem
sido sempre a existência de outros movimentos. A existência de outros movimentos tem
garantido a cada um deles três tipos de apoios. O mais evidente é o apoio material. É útil, mas
tem porventura um significado reduzido. O segundo tipo de apoio som as manobras de
diversom. A capacidade de um qualquer Estado forte intervir contra um movimento anti-
sistémico localizado, por exemplo, num Estado mais fraco, foi sempre funçom do número de
questons da sua agenda política imediata. Quanto mais um determinado Estado se preocupava
com um movimento anti-sistémico local, menos capacidade tinha para se ocupar de um
movimento anti-sistémico distante. O terceiro e mais importante apoio está ao nível das
mentalidades colectivas. Os movimentos aprendêrom com os erros e fôrom encorajados polos
sucessos uns dos outros. E os esforços dos movimentos em todo o mundo afectárom o clima
político global –as expectativas e a análise das possibilidades.
Umha das forças dos movimentos anti-sistémicos reside no facto de terem acedido ao
poder num largo número de Estados. Isto modificou a política corrente do sistema-mundo. Mas
esta força tem também sido umha fraqueza, já que os chamados regimes pós-revolucionários
continuárom a funcionar como parte integrante na divisom social do trabalho do capitalismo
histórico, Operárom assim, voluntariamente ou nom, sob a irresistível pressom para a
incessante acumulaçom de capitaI. As conseqüências políticas fôrom, internamente, a
continuaçom da exploraçom da força de trabalho, mesmo se de umha forma atenuada e
melhorada em muitos casos. Isto conduziu a tensons internas paralelas aquelas que se
encontram em Estados que nom som “pós-revolucionários” , criando condiçons para a
emergência de novos movimentos anti-sistémicos. A luita polo benefício económico tem sido
constante, tanto nestes Estados pós-revolucionários como em todo o lado, porque no seio da
economia-mundo capitalista os imperativos da acumulaçomoperárom em todo o sistema. As
mudanças na estrutura dos Estados alterárom a política de acumulaçom, mas nom fôrom ainda
capazes de lhe por fim.
No início deste capítulo, adiamos a resposta a umha questom: quam reais fôrom os
benefícios do capítalismo histórico? Quam consideráveis fôrom as melhorias na qualidade de
vida? Parece agora claro que nom há umha resposta sirnples. “Para quem?”, devemos
perguntar. O capitalismo histórico permitiu umha monumental criaçom de bens materiais, mas
também umha enorme polarizaçom das recompensas. Muitos beneficiárom enormemente, mas
muitos mais conhecêrom umha substancial reduçom do seu rendimento real e da sua
qualidade de vida. A polarizaçom foi também, é claro, espacial e, precisamente por isso, há a
ilusom de nom ter ocorrido em certas áreas. A geografia dos benefícios tem sofrido alteraçons
freqüentes, disfarçando assim a verdadeira natureza da polarizaçom. Mas em todo o espaço-
tempo do capitalismo histórico, a incessante acumulaçom de capital significou um incessante
alargamento deste fosso efectivo.
A VERDADE COMO ÓPIO: RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇOM
O capitalismo histórico tem sido –sabemo-lo– prometaico nas suas aspiraçons, Embora,
historicamente, a mudança científica e técnica tenha sido umha constante da actividade
humana, foi apenas no capitalismo histórico que Prometeu, segundo David Landes, sempre
presente, pode ser “libertado” . A imagem colectiva básica que agora temos da cultura científica
do capitalismo histórico é a de que ela foi fundada por nobres cavaleiros contra a resistência
encarniçada das forças da cultura “tradicional” , nom-científica. No século xvIt, era Galileu
contra a Igreja; no século XX, é o “ modernizador” contra mullah. E, em todos os casos, diz-se
que foi a “racionalidade” contra a “superstiçom” e a “liberdade” contra a “opressom intelectual”
. Presume-se que isso foi paralelo (ou mesmo idêntico) à revolta, na arena da economia
política, do empresário burguês contra o aristocrata latifundiário.
Esta imagem básica de umha luita cultural, a escala mundial, tem como premissa oculta
a temporalidade. Presume-se que a “ modernidade” é temporalmente nova, enquanto a
“tradiçom” era temporalmente velha e anterior a modernidade. Na verdade, em certas versons
fortes deste imaginário, a tradiçom era a-histórica e, portanto, virtualmente eterna. Esta
premissa é historicamente falsa e, portanto, profundamente enganosa. As múltiplas culturas, as
múltiplas “tradiçons”, que florescêrom nas fronteiras espaqió-temporais do capitalismo histórico,
nom fôrom mais primordiais do que os seus múltiplos enquadramentos institucionais. Som, em
grande medida, umha criaçom do mundo moderno, e umha parte das suas
fundaçons ideológicas. Existírom, é claro, ligaçons entre as várias “tradiçons” e os grupos e
ideologias que precedêrom o capitalismo histórico, no sentido em que elas fôrom geralmente
erigidas a partir de materiais históricos e intelectuais pré-existentes. Além disso, a
afirmaçom dessas ligaçons trans-históricas desempenhou um papel importante na coesom de
certos grupos, nas suas luitas político-económicas dentro do capitalismo histórico. Mas se
quigermos compreender as formas culturais que estas luitas assumíom, nom podemos tomar
as “tradiçons” polo seu valor facial. Em particular, nom podemos assumir que as
“tradiçons” som, de facto, tradicionais.
Nom estou, obviamente, a sugerir que houvesse algo como um sistema de castas
perfeito no capitalismo histórico. Mas, considerando as categorias ocupacionais
suficientemente amplas, estou a sugerir que existe –e sempre existiu–, umha
correlaçom elevada entre etnicidade e ocupaçom/papel económico, nas várias zonas do
capitalismo histórico. Sugiro ainda que esta distribuiçom de tarefas laborais variou ao longo do
tempo, e que, quando variou, também variou a etnicidade –em termos de fronteiras e de
características culturais definidoras do grupo. Além disso, nom há qualquer correlaçom entre a
presente distribuiçom étnica das tarefas laborais e os padrons culturais dos supostos
antepassados dos actuais grupos étnicos, em períodos anteriores ao capitalismo histórico.
O racismo serviu como ideologia justificadora da desigualdade. Mas foi muito mais do
que isso. Serviu para socializar os grupos, levando-os a assumir o seu papel na economia. As
atitudes inculcadas (os preconceitos, o comportamento quotidiano, abertamente
discriminatório), servírom para que cada indivíduo, no seu próprio lar e no seu grupo étnico,
definisse os padrons de comportamento apropriados e legítimos, O racismo, tal como o
sexismo, funcionou como umha ideologia auto-limitadora, modelando as expectativas e
cerceando-as.
O racismo foi certamente nom apenas auto-limitador, mas também opressivo. Serviu
para manter na ordem os grupos subalternos, e para utilizar os grupos de posiçom média como
soldados Nom-pagos do sistema de polícia mundial. Deste modo, diminuíam acentuadamente
tanto os custos financeiros das estruturas políticas, como a capacidade dos grupos anti-
sistémicos para mobilizarem vastas populaçons, dado que, estruturalmente, o racismo colocava
vítimas contra vítimas.
O racismo nom era um fenómeno simples. Em certo sentido, havia umha linha divisória
básica a escala mundial, demarcando os estatutos relativos no sistema-mundo como um todo.
Era a linha da “cor”. A inclusom nas categorias de “ branco”, ou de estrato superior, tem sido, é
claro, um fenómeno social e nom psicológico, como parece evidente polas
posiçons historicamente variáveis que certos grupos (como europeus do Sul, árabes,
mestiços latino-americanos, e asiáticos orientais), ocupárom nas “linhas de cor” socialmente
definidas no mundo (e em cada país).
A cor (ou fisiologia), era umha marca facilmente utilizável, dado que é inerentemente
difícil de disfarçar. Foi este o critério utilizado, porque foi historícamente conveniente, dadas as
origens do capitalismo histórico na Europa. Mas, sempre que nom era conveniente, a cor foi
posta de lado ou substituída por outras características identificadoras. Em muitos locais, os
atributos de discriminaçom tornaram-se bastante complexos. Considerando o facto adicional de
que a divisom social do trabalho estava em constante evoluçom, a identificaçom étnico-racial
tornou-se umha base altamente instável para delinear as fronteiras dos grupos sociais
existentes. Os grupos formavam-se e desfaziam-se, mudando facilmente as suas auto-
definiçons (e eram facilmente percebidos por outros como tendo fronteiras diferentes). Mas a
volatilidade das fronteiras de qualquer grupo nom era incompatível com a persistência de umha
hierarquia dos grupos, isto é, da etnicizaçom da força de trabalho a escala mundial, sendo
mesmo, provavelmente, umha das suas funçons.
O racismo tem sido, assim, um pilar cultural do capitalismo histórico. A sua vacuidade
intelectual nom o impediu de desencadear terríveis crueldades. Contudo, nos últimos cinqüenta
a cem anos, devido à ascensom dos movimentos anti-sistémicos, a escala mundial, tem estado
recentemente sob ataque cerrado. Na verdade, o racismo hoje, nas suas variantes mais cruas,
sofre algumha deslegitimaçom a escala mundial. O racismo nom foi porém o único pilar
ideológico do capitalismo histórico. O racismo foi da maior importáncia na construçom e
reproduçom de forças de trabalho adequadas. A sua reproduçom, no entanto, era insuficiente
para assegurar a acumulaçom incessante de capital. Nom se podia esperar que as forças de
trabalho actuassem de forma eficaz e contínua, a nom ser que fossem dirigidas por quadros.
Por sua vez os quadros tiveram de ser criados, socializados, reproduzidos. A ideologia
primordial que operou na sua criaçom, socializaçom e reproduçom nom era a ideologia do
racismo. Era a do universalismo.
A verdade como ideal cultural funcionou como um ópio, talvez o único ópio verdadeiro
no mundo moderno. Karl Marx dixo que a religiom era o ópio das massas. Raymond Aron
retorquiu que as ideias de Marx eram, por sua vez, o ópio dos intelectuais. Há umha certa
perspicácia nestas duas estocadas polémicas. Mas haverá verdade onde há perspicácia?
Quereria aqui sugerir que o verdadeiro ópio talvez tenha sido a verdade, tanto a das massas
corno a dos intelectuais. Os ópios, é claro, nom som completamente maus, já que aliviam a
dor. Permitem as pessoas escapar as duras realidades, quando temem que o confronto com a
realidade apenas possa conduzir a umha perda inevitável, ou ao declínio. Apesar disso, muito
pouca gente recomenda os ópios. Nem Marx nem Raymond Aron o figérom. Na maioria dos
Estados, eles som legalmente interditos, para quase todas as finalidades.
Por detrás destas mudanças culturais impostas, havia dous motivos principais. Um era a
eficiência económica. Se se pretendia que certas pessoas desempenhassem determinados
papéis na arena económica, era necessário nom só ensinar-lhes as normas culturais
apropriadas, como também erradicar as normas culturais concorrentes. O segundo motivo tinha
a ver com a segurança política. Acreditava-se que, pola “ocidentalizaçom” , as elites das áreas
periféricas ficariam separadas das “massas” , e assim haveria umha menor probabilidade de se
revoltarem – ficando também menos aptas a apoiarem os promotores das revoltas, Isto
revelaria-se um monumental erro de cálculo, mas parecia entom plausível e, durante certo
tempo, funcionou bem. (Um terceiro motivo era umha hybris da parte dos conquistadores. Nom
quero polo de lado, mas nom é necessário invocá-lo para dar conta das pressons culturais, as
quais teriam sido igualmente fortes na sua ausência).
A cultura científica era, porém, mais que umha mera racionalizaçom. Era umha forma de
socializaçom dos inúmeros quadros de todas as estruturas institucionais. Como linguagem
comum entre os quadros (mas nom entre os operários), tornou-se também um meio de consom
de classe para o estrato superior, limitando as possibilidades ou a extensom de actos
revoltosos, por parte dos quadros que poderiam a isso ser tentados. Além disso, era um
mecanismo flexível para a reproduçom destes quadros. Cobriu-se com o conceito hoje
conhecido por “meritocracia” , anteriormente “la carriere ouverte aux talents” . A cultura
científica criou um enquadramento que possibilitava a mobilidade individual, sem por em causa
a alocaçom hierárquica da força de trabalho. polo contrário, a meritocracia reforçou a
hierarquia. Finalmente, a meritocracia, como operaçom, e a cultura científica, como ideologia,
criárom véus que dificultárom a percepçom das operaçons subjacentes do capitalismo histórico.
A ênfase no carácter racional da actividade científica era a máscara para a irracionalidade da
acumulaçom incessante.
Nom é estranho que, mesmo os quadros que estavam a ser co-optados para
posiçons de privilégio fossem profundamente ambivalentes sobre a mensagem do
universalismo, vacilando entre a atitude de discípulo entusiástico e umha rejeiçom cultural,
causada pola repugnáncia em relaçom aos pressupostos racistas. Esta ambivalência era
expressa em múltiplos movimentos de renaissance cultural. A própria
palavra renaissance, amplamente usada em muitas zonas do globo, encarnava esta
ambivalência, Falando-se de renascimento, afirma-se umha era de antiga glória cultural, mas
também se reconhece a inferioridade cultural do momento. A palavra renascimento foi ela
própria copiada da história cultural específica da Europa.
Poderia-se pensar que, a escala mundial, os trabalhadores seriam mais imunes a esta
ambivalencia, já que nunca tinham sido convidados para cear a mesa dos senhores. De facto,
porém, as expressons políticas dos trabalhadores, dos movimentos anti-sistémicos, tem estado
profundamente imbuídas da mesma ambivalencia. Os movimentos anti-sistémicos, como já
sublinhámos, adoptaram a ideologia do Iluminismo, ela própria um dos principais produtos da
ideologia universalista. Deste modo, estes movimentos armárom a armadilha cultural em que
permanecêrom desde entom: procurárom minar o capitalismo histórico com estratégias e
objectivos de médio prazo, que derivavam das próprias “ ideias das classes dominantes” , que
eles tentavam destruir.
Desde inícios do século XX e, com crescente veemência, desde os anos 60, o tema do
“projecto civilizacional” , como Anouar Abdel-Malek gosta de lhe chamar, começou a ganhar
força. Enquanto, para muitos, a nova linguagem das “alternativas endógenas” nom passa de
umha variante verbal dos velhos temas do nacionalismo cultural universalizante, outros vem
nesta concepçom um conteúdo epistemológico verdadeiramente novo. O “projecto
civilizacional” reabriu a questom sobre se a verdade trans-histórica existe realmente. Umha
forma de verdade, que reflectiu as realidades de poder e os imperativos económicos do
capitalismo histórico, floresceu e impregnou o mundo. Isso é verdade, como já vimos. Mas
como é que esta forma de verdade poderá esclarecer o processo de declínio deste sistema
histórico, ou a existência de alternativas históricas reais ao sistema histórico baseado na
incessante acumulaçom de capital? É aqui que reside a questom.
Esta nova forma fundamental de resistência cultural tem umha base material. As
sucessivas mobilizaçons dos movimentos anti-sistémicos, à escala mundial, fôrom recrutando
um número cada vez maior de elementos, económica e politicamente mais marginais ao
funcionamento do sistema, e menos susceptíveis de lucrar (ainda que eventualmente), com a
mais-valia acumulada. Ao mesmo tempo, as sucessivas desmitologizaçons destes movimentos
prejudicárom, elas próprias, a reproduçom da ideologia universalista no seu seio, e os
movimentos começárom assim a abrir-se a elementos que questionavam cada vez mais as
suas premissas. A partir de 1950, em comparaçom com o que era normal desde 1850, os
movimentos anti-sistémicos mundiais passárom a ser compostos por mais elementos de zonas
periféricas: mais mulheres, mais elementos de grupos “minoritários” (como quer que estes se
definam), e mais trabalhadores das secçons nom-qualificadas e mais mal remunerados. Esta
mutaçom ocorreu, tanto no mundo em geral, como em cada um dos Estados, tanto no conjunto
dos membros, como entre a liderança. Esta mutaçom na base social nom podia deixar de
alterar as predilecçonsideológico-culturais dos movimentos anti-sistémicos, a nível mundial.
Tentámos até aqui descrever como é que o capitalismo de facto funcionou, enquanto
sistema histórico. Os sistemas históricos, porém, som isso mesmo –históricos. Eles aparecem
e, eventualmente, desaparecem, como conseqüência de processos internos, nos quais a
exacerbaçom de contradiçons internas conduz a umha crise estrutural. As crises estruturais
som massivas, nom momentaneas. Elas levam tempo a manifestarem-se. O capitalismo
histórico entrou na sua crise estrutural nos começos do século XX e, provavelmente, assistirá
ao seu fim, como sistema histórico, algures no próximo século. O que se seguirá é ainda difícil
de prever. O que podemos fazer, desde já é analisar as dimensons da própria crise estrutural, e
tentar perceber em que direcçons a crise sistémica nos conduz. O primeiro aspecto desta crise,
e provavelmente o aspecto fundamental, é que estamos agora mais perto da
mercantilizaçom de tudo. Isto é, o capitalismo histórico está precisamente em crise, porque, na
prossecucao da incessante acumulaçom de capital, começa a aproximar-se daquele estado de
cousas que Adam Smith afirmou ser “natural” no homem, mas que, na verdade, nunca existiu
historicamente. A “propensom (da humanidade) para trocar, permutar e cambiar umha cousa
por outra” entrou em domínios e zonas previamente intocados, e a pressom para expandir a
mercantilizaçom sofre relativamente pouca oposiçom. Marx falou do mercado como sendo um
“véu” que oculta as relaçons sociais de produçom. Isto era apenas verdade no sentido em que,
em comparaçom com a apropriaçom local directa de mais-valia, a apropriaçom de mais-valia
no mercado indirecto (e, portanto, extra-local), era mais difícil de discernir e, portanto, de
combater politicamente polos trabalhadores de todo o mundo. Porém, em termos quantitativos,
o “mercado” operou através de umha medida geral –dinheiro–, e isto clarificou, em vez de
mistificar, tudo aquilo que estava a ser apropriado. Com base numha rede de
segurança política, os acumuladores de capital contavam que apenas parte do trabalho fosse
quantificado em dinheiro.
Contudo, como vimos, as contradiçons desta estratégia criárom, elas próprias, umha
crise ao nível político. Nom se trata de umha crise do sistema inter-estatal, o qual continua a
funcionar muito bem, na sua missom primária de manter a hierarquia e conter os movimentos
de oposiçom. A crise política é a crise dos próprios movimentos anti-sistémicos. Com o atenuar
das diferenças entre movimentos socialistas e nacionalistas, e com a ascensom sucessiva
destes movimentos ao poder político (com todas as suas limitaçons), a generalidade destes
movimentos, a escala mundial, sentiu-se obrigada a reavaliar todas as suas devoçons,
decorrentes da análise originalmente feita no século XIX. Enquanto o sucesso dos
acumuladores criou umha excessiva mercantilizaçom, ameaçando o próprio sistema, o sucesso
dos movimentos anti-sistémicos na tomada do poder provocou um excessivo reforço do
sistema, desaconselhando a aceitaçom desta estratégia auto-limitadora, por parte dos
trabalhadores a nível mundial.
Se há umha ideia que caracteriza o mundo moderno, que é a sua pedra de toque, é a
ideia de progresso. Isto nom quer dizer que toda a gente acredite no progresso. No grande
debate ideológico entre conservadores e liberais, iniciado ainda antes da Revoluçom Francesa,
a essência da posiçom conservadora residia na dúvida de que as mudanças que ocorriam na
Europa e no mundo pudessem ser consideradas progresso, ou mesmo que o progresso
pudesse ser considerado um conceito relevante e significativo. Apesar disso, como sabemos,
fôrom os liberais que simbolizáram a época, e encarnárom o que se tornaria, no século XIX, a
ideologia dominante da economia-mundo capitalista (há muito existente).
Pura e simplesmente, nom é verdade que o capitalismo, como sistema histórico, tenha
representado progresso, em relaçom com os vários sistemas históricos pré-existentes, que ele
destruiu ou transformou. Enquanto escrevo isto, eu próprio sinto o tremor que acompanha a
sensaçom de blasfémia. Eu temo a ira dos deuses, pois fum moldado na mesma forma
ideológica de todos os meus companheiros, e prestei adoraçom nos mesmos altares.
Tem-se dito que, em nengum outro sistema histórico, as pessoas tivérom condiçons de
vida tam confortáveis, ou tivérom um leque tam amplo de experiências de vida alternativas
como o que possuem no presente sistema. umha vez mais, esta afirmaçom soa a verdadeira. A
ela nos conduzem as comparaçons que regularmente fazemos com os modos de vida dos
nossos antecessores imediatos. E contudo, ao longo do século XX, tem surgido
sistematicamente diversas dúvidas neste domínio, como indicam as referências, agora
freqüentes, a “qualidade de vida”, e as preocupaçons crescentes com a anomia, a alienaçom e
as doenças mentais. Finalmente, tem-se dito que o capitalismo histórico trouxo urn aumento
maciço nas margens de segurança humana –contra acidentes, morte por perigos endémicos
(os quatro cavaleiros do Apocalipse), e contra a violência errática. umha vez mais, isto é
incontestável a umha pequena escala (apesar dos perigos recentemente descobertos da vida
urbana). Mas, mesmo até agora, será isto verdade a umha escala maior, mesmo omitindo a
espada de Dámocles da guerra nuclear?
É no mínimo pouco evidente que no mundo actual haja mais liberdade, igualdade e
fraternidade do que havia a mil anos atrás. Poderia-se possivelmente argumentar que a
verdade é o oposto. Nom procuro pintar como um idílio os mundos anteriores ao capitalismo
histórico, eram mundos de pouca liberdade, pouca igualdade e pouca fraternidade. A única
questom é se o capitalismo histórico representou progresso ou regressom nestes domínios.
Nom pretendo falar de umha medida comparativa de crueldade. Isto seria difícil de
discernir, um pouco lúgubre até, embora haja poucas razons para se ser entusiasta quanto aos
registos do capitalismo histórico nesta área. O mundo do século XX pode orgulhar-se de ter
exibido alguns talentos inusuais e refinados nestas artes antigas. Nem falo do galopante e
totalmente incrível desperdício social que decorre da competiçom pola incessante
acumulaçom de capital, um nível de desperdício que começa a tornar-se irreparável.
Ouço já os sussurros amigáveis. “Certamente, nom pode estar a falar a sério; com
certeza quer dizer empobrecimento relativo... Nom está o trabalhador industrial muito melhor
hoje do que em 1800?” O trabalhador industriaI sim, ou polo menos muitos trabalhadores
industriais. Mas os trabalhadores industriais continuam a ser umha fracçomrelativamente
pequena da populaçom mundial. Umha maioria esmagadora das forças de trabalho no mundo,
que vivem em zonas rurais ou se movem entre estas e os bairros de lata urbanos, estam pior
que os seus antecessores de há cinco séculos atrás. Comem pior, e tem certamente umha
dieta menos equilibrada. Embora tenham maiores probabilidades de sobreviver ao primeiro ano
de vida (devido aos efeitos da higiene social promovida para proteger os privilegiados), duvido
que a esperança de vida da maioria da populaçom mundial à idade de um ano seja maior que
anteriormente; suspeito que a verdade é o oposto. Eles trabalham mais arduamente, sem
qualquer dúvida –mais horas por dia, por ano, por vida. E umha vez que fazem isto por umha
remuneraçom total inferior, a taxa de exploraçom subiu muito marcadamente.
Tanto o sexismo como o racismo eram processos sociais, em que a “biologia” definia
posiçons. umha vez que a biologia era, em qualquer sentido imediato, socialmente imutável,
tínhamos umha estrutura que era socialmente criada, mas que nom estava sujeita ao
desmantelamento social. Isto, é claro, nom é inteiramente verdade. O que é verdade é que o
sexismo e o racismo nom podiam, (e nom podem), ser desmantelados, sem se desmantelar
todo o sistema histórico que os criou, e cujo funcionamento os manteve em momentos cruciais.
Umha segunda razom, que nos impede de ver este abismo crescente, é o facto de a
análise histórica e sociológica se ter concentrado naquilo que se tem passado nas classes
médias– isto é, nesses dez a quinze por cento da populaçom da economia-mundo, que
consumiam umha mais-valia superior a que produziam. Dentro deste segmento, tem havido, de
facto, umha aproximaçom relativamente dramática entre o topo (menos de um por cento da
populaçom), e as camadas verdadeiramente “médias” , ou quadros (o resto dos dez a quinze
por cento). Nos últimos séculos do capitalismo histórico, grande parte das políticas
“progressistas” resultárom numha paulatina diminuiçom da distribuiçomdesigual da mais-valia
mundial, no interior deste pequeno grupo que a tem partilhado. Os gritos de triunfo deste sector
“médio” , a propósito da reduçom da sua distanciaçom em relaçom ao um por cento da topo,
tem ajudado a ocultar a dimensom da abismo crescente entre eles e os restantes oitenta e
cinco por cento.
Finalmente, há umha terceira razom para que o fenómeno do abismo crescente nom
tenha sido central nas nossas discussons colectivas. É possível que, nos últimos dez a vinte
anos, sob a pressom da força colectiva dos movimentos anti-sistémicos mundiais –e a
aproximaçom das assimptotas económicas–, tenha havido umha reduçom da
polarizaçomabsoluta, embora nom da relativa. Mesmo isto deve ser afirmado cautelosamente,
e colocado no contexto dos cinco séculos de desenvolvimento histórico em que se verificou um
aumento da polarizaçom absoluta.
Já vimos que é errada a imagem do capitalismo histórico, como tendo surgido através do
derrube da aristocracia passadista por umha burguesia progressista. Em vez disso, umha
imagem mais correcta é a de que o capitalismo histórico foi criado por umha aristocracia
latifundiária, que se trans formou a si própria em burguesia, porque o velho sistema estava em
desintegraçom. Em vez de deixarem a desintegraçom continuar até um fim incerto, eles
mesmos se empenharam numha radical cirurgia estrutural, de modo a manterem e expandirem
significativamente a sua capacidade de explorar os produtores directos.
Se esta nova imagem está correcta, ela alterará radicalmente a nossa percepçom da
presente transiçom do capitalismo para o socialismo, da economia-mundo capitalista para
umha ordem-mundo social. Até agora, a “revoluçom proletária” tem sido modelada, mais ou
menos, a semelhança da “revoluçom burguesa” . Tal como os burgueses derrubárom a
aristocracia, também o proletariado derrubaria a burguesia. Esta analogia foi o conceito central
em que sempre se baseou a acçom estratégica do movimento socialista mundial.
Se nom existiu umha revoluçom burguesa, quererá isso dizer que nom houvo nem
haverá nunca umha revoluçom proletária? De maneira nengumha –pensámos nós–,
independentemente da forma (lógica ou empírica), como encaremos a questom. O que isso
quer dizer, contudo, é que devemos tratar a questom das transiçons de um modo diferente.
Primeiro devemos estabelecer a distinçom entre mudança por desintegraçom e
mudança controlada. É o que Samir Amin designou pola distinçom entre “decadência” e
“revoluçom” , entre o género de “decadência” que ele afirma ter ocorrido na queda do império
romano (e que, segundo ele, ocorre também agora), e essa mudança, muito mais controlada,
que ocorreu na passagem do feudalismo para o capitalismo.
Mas isto nom é tudo. É que, como acabámos de dizer, as mudanças controladas (as
“revoluçons” de Amin), nom som necessariamente “progressivas” . Deste modo, é necessário
distinguir entre o género de transformaçom estrutural, que deixa intacta (ou inclusive agudiza),
a realidade da exploraçom do trabalho, e um outro, que acabaria com este tipo de
exploraçom ou, polo menos, reduziria-a radicalmente. Isto significa que a questom política do
nosso tempo nom é a de saber se haverá ou nom umha transiçom do capitalismo histórico para
qualquer outra coisa, Isso é tam óbvio, quanto possamos estar certos de qualquer assunto. A
questom política do nosso tempo é a de saber se esta outra cousa –o resultado da transiçom–,
será, de um modo fundamental, moralrnente diferente do que temos agora. Se haverá
progresso, portanto.
O progresso nom é inevitável –estamos a luitar por ele. E a forma que esta luita está a
tomar nom é a do socialismo contra o capitalismo. É antes entre a transiçom para umha
sociedade relativamente livre de classes sociais e a transiçom para um novo modo de
produçom, baseado em classes (diferente do capitalismo histórico, mas nom necessariamente
melhor).
Para a burguesia mundial, a opçom nom é entre a manutençom do capitalismo histórico
e o suicídio. A sua opçom efectiva é entre, por um lado, umha posiçom “conservadora”, que
resultaria na contínua desintegraçom do sistema e, conseqüentemente, na sua
transformaçom numha ordem mundial ainda incerta, mas, provavelmente, mais igualitária; e,
por outro lado, umha tentativa arrojada de tomar o controlo do processo de transiçom, no qual a
burguesia, ela mesma, se revestiria de roupagens “socialistas” , tentando criar um sistema
histórico alternativo, que deixaria intacto o processo de exploraçom da força de trabalho
mundial, para benefício de umha minoria.
É à luz destas alternativas políticas reais, abertas a burguesia mundial, que devemos
avaliar a história, tanto do movimento socialista mundial, como dos Estados onde os partidos
socialistas chegárom ao poder, de umha forma ou de outra.
Os seus erros, as suas limitaçons, os seus efeitos negativos, fam parte do balanço do
capitalismo histórico, nom de um outro hipotético sistema histórico, de umha ordem socialista
mundial ainda inexistente. A intensidade da exploraçom do trabalho nos Estados
revolucionários e/ou socialistas, a negaçom de liberdades políticas, a persistência do sexismo e
do racismo, todos estes fenómenos tem muito mais a ver com o facto de estes Estados
continuarem a localizar-se em zonas periféricas e semi-periféricas da economia-mundo
capitalista, do que com propriedades peculiares a um novo sistema social. As poucas migalhas
que, no capitalismo histórico, sobrárom para as classes trabalhadoras, concentrárom-se
sempre em áreas centrais. Estas desproporçons ainda se mantenhem.
A avaliaçom, tanto dos movimentos anti-sistémicos como dos regimes que eles
ajudáram a criar, nom pode pois ser feita em termos das “sociedades justas” , que eles tenham
ou nom criado. Eles só podem ser correctamente avaliados, se inquirirmos sobre o seu
contributo, na luita mundial, para que a transiçom do capitalismo seja orientada para umha
ordem mundial socialista igualitária. Aqui, a contabilidade é necessariamente mais ambígua,
devido ao funcionamento dos próprios processos contraditórios. Todas as iniciativas positivas
provocaram conseqüências, tanto positivas como negativas. Cada enfraquecimento do sistema,
num dado sentido, fortalece-o noutros sentidos. Mas nom necessariamente em graus
equivalentes! Toda a questom reside nisto.