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O corpo é uma encruzilhada

Tenho escrito em tentativa de dar passagem. Tem angústia querendo passar. Lembrei muito do
que me veio quando eu abri meus braços e vi que meu corpo era uma encruzilhada. O Orí de
terra é o que aponta pro céu e meus braços ao mar e às montanhas. É esse o meu corpo: um
terra-tório de caminhos e passagens. Eu sou o meu caminho e moro na encruzilhada. Também
moro em outros lugares, mas é que o meu corpo é o que abre os caminhos justamente por ser
ele é a própria encruzilhada de mim. Sinto a manada passar. É o barulho que faz desse
bando que passa e que me desperta para ver o tanto de coisas que estão passando
por mim e em mim de dentro pra fora. São as palavras que, como búfalos, pisoteiam meu
corpo-caminho e vão em busca de algum lugar. Vão dar destino às minhas dores. E dão. Não
morrem em papel, pelo contrário, vivem no tempo e no espaço, tomando outras formas que
geram a cura em mim. Tenho encontrado, nas palavras que saem de dentro, possibilidade de
cura. Mesmo uma cura efêmera, mas indiscutivelmente cura. Agora pensando, percebo e
reavalio a efemeridade das coisas. Tudo é efêmero? O que é tudo? Nada é tudo. Porque as
coisas são apenas parte. Ser parte é ser mistério, e mistério é o vácuo do Cosmos que tem me
rodeado, mas rodeia precisamente o centro da Terra do meu coração. O coração mora no meu
corpo e isso é óbvio, o que fica em aberto é em qual lugar dessa encruzilhada ele habita.
Ele habita parte, mas liga a parte ao todo. Enquanto os búfalos passam, eu ouço a manada
passar. É o tambor atabaque que palpita em mim e que pulsa enquanto a palavra
percorre o caminho, o corpo, a encruzilhada. A cura vem, e só vem se houver passagem. É
quase como uma troca. Eu dou a palavra e em troca recebo a cura. Na verdade eu não recebo
nada. O que o ocorre é que cura, é o vento que passa depois da manada dar espaço e seguir
seu curso. É ele quem vem atrás, limpando os rastros que ficam depois que as angústias
carregadas em palavras se vão. Tenho vivido essa cura, tenho encontrado passagem. Se o
caminho está fechado, tenho feito de meu corpo o próprio caminho em forma de abertura. Meu
corpo é a encruzilhada e é nas encruzilhadas que se oferendam os pedidos, os
agradecimentos. Eu peço e agradeço. Peço a cura, agradeço a cura. Eu escrevo a cura,
porque enquanto escrevo, percebo a mim. Vejo o tanto de entulho que coloco para fora e tenho
de me lembrar que meu corpo não é caçamba. Meu corpo é caminho, é passagem, é fluxo, é
encruzilhada, é encontro com Exu. Sigo me curando, sentindo o vento passar. Na verdade,
ainda não, porque ainda não terminei. Preciso de silêncio. É só assim que consigo ouvir a
palavra búfalo passando em manada dando vazão. Por muito tempo, duvidei dessa capacidade
de escrever e dar passagem. Agora percebo que só é possível curar e dar passagem se tiver
coragem para ver o que tem de passar. Tempo é uma coisa que tem chegado em incógnita e
pensamento e eu tenho pensado muito sobre o tempo enquanto o tempo... passa. No final
das contas, percebo que a passagem, o caminho, o fluxo, o movimento e o que mais
eu puder entender como aquilo que gira, é o que vai determinar o lugar das coisas. Troca
não é dar e receber, troca é gira. Determinar o lugar das coisas também é cura. Muitas coisas
vêm vindo como cura nesse meu aprender. Percebo que tem coisinhas que se tornam cura
e que eu nem imagino... Parece que a cura está em lugares reinventados que eu tenho
tentado redescobrir e perceber que os que vieram antes de mim já tinham descoberto. É o giro
do tempo que não termina, mas passa. Quem é o tempo? Quero saber. Nessa relação de
tempo-espaço, eu sou espaço, pois eu sou o caminho. Eu sou a passagem do tempo e o
caminho para a cura, para o vento, que é o que derrama e limpa o que f icou em mim.
Meus dedos conseguem escrever e contar. Meus dedos são a boca e o coração do caminho.
São eles que tocam o mar e a montanha, são neles que termina a encruzilhada. São eles os
capazes de me curar. Agora percebo que a encruzilhada não termina. Nem nas pontas dos
meus dedos, nem no ponto em que termina cada frase. Meus dedos são a extensão de meu
corpo-encruza porque tocam, escrevem e curam. Minhas mãos são cura, porque tenho recriado
o mundo com elas. O dedo é a periferia do meu coração. Peito é núcleo. Tenho descoberto
essas coisas à medida que vou escrevendo. A descoberta é preciosa, pois tenho me
descobertado e virado do avesso. Olho para os ossos deste corpo-caminho. Olho para esses
ossos que são as raízes de minha encruzilhada. Em meus ossos habitam as incertezas do
destino e são as incertezas que me dão sustentação. Mesmo sendo caminho, mesmo sendo
encruzilhada, tenho que aprender a caminhar, a encruzilhar. Encruzilhar é fazer sentir. É fazer
sentido. Fazendo e sentindo no meio do caos. E eu tenho encruzilhado bastante, mesmo em
meio à manada que já agora vem em seu fim. A cura vem, eu sinto. A cura vento vem
passando e girando tudo e parte deste lugar. É tempo de mistério e isso não tem fim. Não sei
por quanto tempo permanecerei curada, mas isso já não me inquieta mais, porque a angústia
agora mesmo já passou. Eu ouvi o palpitar de meu coração anunciando a passagem da
manada carregada em palavra. Agora, descansarei meus dedos e meu peito latente. Os
caminhos também descansam (mas não dormem) enquanto o vento vem curar. Retornarei
quando for preciso, usando a palavra para encruzilhar.

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