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Às vezes é difícil olhar para o passado encontrar sentido em tudo que se viveu.

Alguns
chamariam de destino, outros de planos de Deus. Eu, hoje, chamo de oportunidades.

Europa, berço da arte, filosofia e das ciências. Uma escola para nobres enfadonhos e
arrogantes escondidos atrás de suas máscaras de mármore, manchando nossa história
com seus dedos podres e ambições desalinhadas.

Pode se dizer que minha história é uma das muitas, marcadas pelo desespero e forjada
neste circo de conquistadores e libertadores hipócritas. Nascida da França em 1780, mas
especificamente na hoje conhecida Occitânia, a tradicional família De la Marc detinha
notória influência política e econômica na região. Porém, quando ainda muito jovem, o
descontentamento dos camponeses com a monarquia, a influência das ideias liberais do
Iluminismo e a fome que se espalhava pelo país, levou a um dos eventos políticos
franceses mais conhecidos: A Revolução Francesa.

Ah, o conhecimento! O doce sabor da verdade. Enquanto romantizado e amplamente


estudado, o que hoje é encarado como um marco histórico, no meu presente é um reflexo
de repressão e perdas. As inúmeras movimentações políticas da época geraram alguns
conflitos violentos. Nobres foram destituídos de seus títulos à medida que a monarquia
perdia forças frente aos revolucionários. Muitas casas foram destruídas e famílias
separadas. Foi o surgimento do primeiro ícone em minha vida. Alguém que viraria meu
mundo de cabeça para baixo… Napoleão Bonaparte.

Destino ou não, órfã das guerras civis, a primogênita da família De la marc começou sua
jornada em um convento no mesmo dia da execução de Luís XVI. Destituída de tudo que
tinha, vivi entre os camponeses e dormi em camas frias por um bom tempo.

Padre Delano Benoir, segundo marco histórico em minha vida. No auge dos meus 8 anos
me ensinou muitas coisas: rezar, ler e escrever, cantar e entre muitas outras a ser “mulher”.
Violada! Uma versão distorcida e deturpada pelas mãos de mais um santo. Pastor dos
cordeiros de Deus. Não se engane, se por um lado essa experiência foi medonha e
repugnante, por outro lado ela foi pior. A delicadeza que uma pequena nobre foi ensinada a
ter e toda a minha inocência e, foi destruída em colchões de palha e lençóis suados. No
fundo, a dor maior era a impotência, a amargura de ser dominada. Mas devo dar o braço a
torcer para os camponeses, se tem algo em que eles são bons, é serem resilientes. Eu
resisti.

Alguns duros anos se passaram, enquanto distanciava minha mente de meu corpo, me
afundando nos livros que conseguia roubar da biblioteca do convento, até que o terceiro
marco em minha vida se fez presente: Uma freira batizada de Dominique Auclair, mas
descendente de tradição pagã druídicas dos povos gauleses. Com ela aprendi a afiar minha
mente e enxergar meu corpo (meu eu) como eu mesma. Aprendi diversos usos de ervas e
rituais diários dos povos antigos.

Porém, de todos os ensinamentos que recebi da velha Auclair, o mais valioso com certeza
foi como eu poderia tirar proveito do caos que minha vida tinha sido forçada. Como eu
aprendi a seduzir Padre Benoir e a dobrar suas vontades. Percebi então, o que todo bom
cristão se esforça a não enxergar: toda mulher tem poder sobre o gado.
Alguns meses se passaram com o avanço de meu pequeno experimento, até que Auclair
me apresentou uma nova perspectiva. O quarto marco. Disse que alguém me observava,
alguém tinha interesse em mim.

Quando finalmente o conheci, fiquei deslumbrada. Era uma noite fria de inverno. Enquanto
todos se abrigavam em suas casas, nós saímos do convento escondidas ao encontro da
pessoa misteriosa. Começamos a nos embrenhar na mata, longe das estradas e trilhas
habituais e confesso que fiquei surpresa ao encontrar o que pode se chamar de uma
pequena vila? Três casas adjacentes a uma mansão. o lugar era bem cuidado e pareciam
ter outros acessos, mas pelo visto, não tinha muita gente que a visitava com frequência.
Entramos…

O lugar era mais simples do que parecia, mais estantes com papéis e livros do que quadros
e outras decorações. As sombras dançavam por entre as prateleiras e, quando finalmente
alcançamos uma sala comunal, eu o vi.

Meu coração esqueceu algumas batidas quando nossos olhos se cruzaram. Ele se
apresentou como Maurice Eugène Clemenceau, o Bibliotecário. Parecia um estudioso, um
eremita, mas suas feições eram jovens (não mais de 35 anos) e pude perceber em alguns
documentos abertos à mesa alguns brasões de grandes famílias. Ofereceu-me um chá. Um
chá! E disse ter interesse em mim, disse me querer como aluna. minha cabeça ficou
enevoada e minha visão estava turva com a possibilidade de ter acesso a tanta coisa. O
lugar era repleto de livros e não pareciam livros de fantasia...

Só voltei a realidade quando ele entendi a condição para que isso acontecesse.
Subitamente veio-me um gosto amargo na boca e tive vontade de levantar e fugir, mas
estava tão fascinada por algo em seu olhar e nas linhas de seu rosto, sua boca, que não
consegui mover um músculo. Ele queria que eu fizesse um sacrifício. queria que eu desse a
ele aquilo que eu tinha de mais próximo na vida como prova da minha.. da minha o que?
Ainda não consigo decidir se entendi o que ele queria de mim naquele momento, o que sei
é que aceitei. Não havia como negar nada a ele naquele momento, não com ele olhando
fundo em meus olhos daquela forma e eu estava faminta demais para conhecer algo além
de meu pequeno inferno.

Depois, pensando mais claramente eu percebi que “mais próximo” não queria dizer “mais
precioso” e isso facilitou minha decisão. Com a ajuda de Auclair inventei uma história para
levar o padre até a cidade, visitar e trazer conforto a um enfermo. Não foi difícil desacordar
o padre, a esta altura eu já havia me tornado em uma jovem mulher com bastante
desenvoltura e subterfúgios.

O Senhor Clemenceau nos recebeu de maneira cordial, mas o sentimento em seus olhos
era indecifrável. Era diferente de qualquer homem que já havia conhecido. Ele levou o
padre a um aposento decorado de maneira estranha. Após despi-lo, fez algumas marcas
em seu corpo e começou a falar em um idioma que me soava bastante estranho. Auclair
havia ficado fora da sala. Estranhamente ela parecia bem acostumada à situação. Não
sabia exatamente o que esperar de toda a cena. Parecia-me que de um estudioso bastante
intrigante meu anfitrião tinha se tornado um lunático cultista de alguma seita que ia contra a
igreja católica. Até que, de cada uma das marcas feitas no corpo, filetes de sangue
começaram a sair de seu corpo em direção aos lábios de Clemenceau. A cena durou alguns
instantes, dos quais eu não conseguia respirar ou mover um músculo. Quando terminou, ele
mirou diretamente nos meus olhos e disse: “O tempo é capaz de apagar e consumir a
sanidade das mentes mais brilhantes. Eu vejo em vc a faísca da curiosidade. Isso sempre
me fascina. Talvez seja a única coisa que ainda o faça… Eu sou um recluso, um homem
saído de um livro de histórias em uma antiga prateleira, quero alguém que seja meus olhos
e ouvidos em meio ao mundo que se abre com as viagens e incursões dos revolucionários e
conquistadores. Quero uma nova perspectiva. Quero alguém que me traga algo que ainda
não vi em meus longos anos. Em troca… lhe darei a oportunidade de me servir. E assim, ter
acesso a todo meu conhecimento e o tempo para compreendê-lo. O que acha, senhorita De
La Marc? Quer viver para sempre?”

Em 1815, eu estava ansiosa. Estudando sobre a tutela de Clemenceau, que havia feito de
meu algoz um servo e informante dentro do clericato local, e assim ele conseguia
informações para um grupo que com tempo vim conhecer como a Camarilla. Descobrimos
algumas movimentações dos revolucionários, já que a igreja acolhia e auxiliava algumas
das famílias que sofriam com as revoltas e guerras civis. Quando completei 25 anos, meu
mentor se tornou meu Sire. Meu mestre e tutor. Auclair, sua fiel serviçal, me transformou de
uma menina perdida e imatura, em uma mulher astuta e perspicaz. Com minha eterna
juventude, curvas voluptuosas e lábios carnudos, o papel que me foi dado, foi o de uma
meretriz. Uma sedutora, uma dominadora capaz de ver e ouvir os momentos mais inocentes
e vulneráveis dos que se rebelam, que governam, que conquistam… Meu eterno gado…

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