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Mulheres Negras: como nos vemos?

Geny Ferreira Guimarães

Nunca antes vivemos um momento como o atual no qual a questão racial negra
feminina estivesse tão largamente na pauta de discussões realizadas por mulheres e
homens negras/os, mas também não negras/os.
Contudo, destacaremos que existem algumas reflexões entorno de ao menos três
expressões mais centrais como: movimento de mulheres negras, feminismo negro e
womanism, que muitas das vezes estão restritas aos espaços acadêmicos.
O que não podemos deixar de ressaltar é que existem variadas possibilidades de
afirmação e de expressões que representam as mulheres negras e seus movimentos
revolucionários, de revoltas e/ou oposições à sociedade opressora, ou seja, contrários
aos sistemas de suas épocas desde o período colonial e escravista até o momento
presente e, as encontramos quando nos debruçamos em buscá-las na história. Em
momentos mais recentes nos quais as mulheres negras se posicionam contrárias às
opressões socioeconômicas, ao machismo e ao sexismo, ao sistema patriarcal como um
todo e ao atualmente intitulado feminicídio, essas pautas estão vinculadas às
composições de militâncias dos movimentos sociais.
Por um lado, para alguns, discussões sobre mulheres negras, feminismo negro e
womanism significa apenas pensar temas, assuntos, objetos de pesquisa (grupo o qual eu
não faço parte), por outro lado, para muitas mulheres esses estudos e produções de
conhecimentos representam a nossa própria existência, a nossa ancestralidade e o nosso
futuro. Diz respeito a sermos protagonistas das nossas histórias, seus reconhecimentos e
das pesquisas em busca da inscrição de nossos nomes de maneira apropriada (neste
grupo que me insiro). Corresponde ao mosaico1 de memórias, histórias e sentimentos que
as mulheres dividem e carregam juntas.
Ao buscarmos os nomes femininos e negros na história, percebemos que a lista na
América Latina é longa, porém neste ensaio e no momento apresentaremos apenas
alguns exemplos do Brasil.2 Na maior parte das vezes, esses nomes ficaram relegados ao

1
Notas:
Que encontramos em tantas escritas femininas negras sob a forma ou em alusão à colcha de retalhos. Tanto Alice
Walker (2011) no seu conto Everyday use com a colcha de retalhos como um elemento de aproximação negra familiar
e criação feminina e como bell hooks (2019a)com suas histórias feitas a mão utilizando tecidos guardados e utilizados
nos momentos certos. Ambas autoras tratam desse assunto de maneira bastante significativa.
2
Em um movimento recente no Brasil, muitas publicações vêm sendo recorrentes sobre o protagonismo feminino
negro na construção da nação. Destaco as publicações que apresentam o protagonismo negro-feminino tanto na
elaboração da obra como na seleção de nomes a serem exemplificados. Assim, livros como Xavier (2019), Brasil (2013),
anonimato, mas possuímos alguns mais conhecidos que ficaram marcados na história,
como os da Princesa Aqualtune (séc. XVI) e Rainha Agotime3 (entre séc. XVIII e XIX),
mas elas não foram as únicas princesas e rainhas, a serem violentamente trazidas para o
Brasil como escravizadas; nomes de revolucionárias como Dandara (séc. XVIII) e Luiza
Mahin (séc. XIX) também são recorrentes.
Mas, queremos ressaltar o caso de Esperança Garcia4 (1751-?), mulher negra
escravizada que redigiu uma carta em 1770 relatando os maus tratos do seu senhor,
encaminhada ao Governador da época. Com isso, sua escrita pode ser entendida como
de uma precursora do que atualmente discutimos em termos de autoria feminina na
literatura negra pelo fato da escrita ser em própria defesa e de sua família, direcionada a
uma pessoa de poder decisório na sociedade. A Ordem dos Advogados do Brasil no
Estado do Piauí – OAB/PI) reconhece a carta como uma petição e Esperança Garcia
como a primeira advogada do Brasil. Sem contar a perspectiva de uma mulher negra
escravizada sob um olhar familiar, o que para muitos é inimaginável que escravizadas
compusessem um lar, pela histórica e sabida construção sociohistórica da imagem
hipersexualizada ou apenas servil para essas mulheres dentro da perspectiva elencada
desde a história colonial brasileira até os dias atuais, afastando-lhes de um perfil de
esposas e mães.
Outro nome que gostaríamos de ressaltar aqui é o de Maria Firmina dos Reis
(1822-1917), considerada a primeira mulher no Brasil a escrever um romance, intitulado
“Úrsula” (em 1859) e o conto “A Escrava” (em 1881, fruto de campanha abolicionista).
Mulher negra, professora e abolicionista que usava codinomes para os seus textos, uma
das razões pelas quais demorou mais de 100 anos para que fosse reconhecida a autoria
dos seus principais textos. Autora que deixou um legado como hinos, poemas, contos e
textos diversos.
Ainda, posso citar Maria Felipa de Oliveira (?-1973) que por alguns é considerada
uma mitologia patriótica devido as poucas evidências sobre a sua existência. Por outros,
ela é considerada uma revolucionária e heroína, principalmente, pela comunidade local, o
que possibilita a leitura da sua história pela perspectiva de Patrimônio da Comunidade da
Ilha de Itaparica (Bahia). As histórias a seu respeito revelam que esta mulher foi
protagonista nos enfrentamentos contra os portugueses e pela independência do Estado
da Bahia (séc. XIX), além disso, vivia da pesca e da catação de mariscos.

outras obras relevantes como Reis (2004); Farias (2010); Werneck et ali (2000), Jesus (1960) dentre outras
publicações.
3
Cuja grafia pode variar muito, alguns exemplos são Nã Agotime, Nã Agontime, Na Agotime, Agotimé, Agõtime etc.
4
Para mais leituras sobre o assunto, ver Mott (1985); Brandão (2011), Souza (2015), Araujo (2011)
Por fim, cito Carolina Maria de Jesus5 (1914-1977), escritora considerada uma
referência na literatura brasileira e na vertente literária negro-brasileira cuja obra mais
conhecida é a célebre publicação Quarto de Despejo: diário de uma favelada, que, no
formato diário, em 1960 revela ao mundo as condições dos moradores das favelas dos
grandes centros do país. Com uma escrita única e singular, a escritora revoluciona a
literatura brasileira de maneira insubmissa e insurgente.
Quanto às religiões de matrizes africanas no Brasil, citarei apenas três exemplos
diante de um movimento que abrange cada canto do país e de maneiras diferenciadas,
mas absolutamente presentes em vários espaços. Assim, tanto as Casas das Minas (no
Maranhão), quanto as Casas de Candomblé (na Bahia) como as Casas de Santo (no Rio
de Janeiro), todas foram lideradas por mulheres religiosas que com muita força,
perseverança, como mantenedoras e cuidadoras das memórias ancestrais, de
conhecimentos e ensinamentos dos cultos religiosos e ao mesmo tempo se colocaram
como protagonistas políticas em suas cidades. No caso, as Tias Baianas (no Rio de
Janeiro) tendo com figura máxima a Tia Ciata6 além de religiosa, referência na memória
da criação das raízes do samba carioca e participante ativa de decisões na política local.
Assim, antes de nos debruçarmos sobre as concepções acadêmicas que envolvem
conceituar mulheres negras em uma sociedade injusta, que lutam por equidade, mas
também preliminarmente por sobrevivência e manutenção de suas existências,
percebemos a necessidade de conhecer a historiografia e as espacialidades das muitas
mulheres negras que fizeram e das que ainda fazem diferença nas sociedades.
Discutindo as mulheres negras pela perspectiva do pensamento de várias intelectuais
negras, dentre elas muitas são feministas negras7 e discutem posicionamentos
sociopolíticos e enfrentamentos acadêmicos é possível compreendermos sentidos de
suas trajetórias. Contudo, nem todas as mulheres negras, mesmo que revolucionárias
históricas, militantes e/ou ativistas na atualidade, nem todas são feministas negras.
Finalizando, reafirmo a expressão cunhada por Alice Walker (1983), o womanism, como o
feminismo negro (com características diferentes do feminismo branco) e que em certos
momentos é criticado, talvez, não compreendido o seu objetivo, que está relacionado à
relação de proximidade, cumplicidade e cuidado entre as mulheres negras, de maneira
consciente ou não. Penso que seria uma discussão para além de uma simples tradução
para o “mulherismo” (como muitas seguem). Eu considero o termo “mulherio” criado por

5
Ver Guimarães (2014).
6
Ver Guimarães (2015).
7
Alguns exemplos relevantes de trabalhos utilizados para as reflexões deste ensaio: Silva (2018); bell hooks (2019b);
Collins (2019) e Adiche (2014).
Lélia Gonzalez (1981), como uma adequada possibilidade diante da discussão da tripla
discriminação à mulher negra (classe, raça e sexual). Também, associo tanto Alice
Walker quanto Lélia Gonzalez na mesma direção para pensarmos sobre o significado de
“sistah” como indicação de “(...) uma/um ancestral comum”8. E, no caso, feministas ou
não, mas em um movimento de mulheres negras.

Referências:
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras,
2014.
ARAÚJO, Ana Lúcia. History, Memory and Imagination: Na Agontimé, a Dahomean Queen in
Brazil. In: FALOLA, Toyin; FWATSHAK, Sati U. (Orgs.). Beyond Tradition: african women and their
cultural spaces. Trenton, NJ: Africa World Press, 2011, p. 45-68. Disponível em:
https://analuciaaraujo.org/wp-content/uploads/2013/12/Agontime.pdf. Acesso em: 04 set. 2020.
BRANDÃO, Tanya Maria Pires. Rapto de mulheres: estratégia na formação de núcleos familiares,
capitania do Piauí, século XVIII. Revista Clio. v. 29, n. 1, 2011, s/p. Disponível em:
https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaclio/article/view/24357. Acesso em: 05 set. 2020.
BRASIL. Mulheres negras contam sua história. (Prêmio Brasil). Brasília: SPM, 2013.
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro. Tradução: Jamille Pinheiro Dias. São Paulo:
Boitempo, 2019.
FARIAS, Eny Klyde Vasconcelos. Maria Felipa de Oliveira: heroína da Independência da Bahia.
Salvador: Quarteto Editora, 2010.
GONZALEZ, Lélia. Jornal Mulherio. São Paulo: Fundação Carlos Chagas/S.A O Estado de São
Paulo, mar./abr., v.1, n.0, 1981.
GUIMARÃES, Geny Ferreira. Até onde Carolina nos leva com seu pensamento? Ao poder. In:
JESUS, Carolina Maria de. Onde estaes felicidade? São Paulo: Me Parió Revolução, 2014, p.
46-51. Disponível em
https://www.letraria.net/wp-content/uploads/2016/01/Onde-estaes-Felicidade-e-book-Letraria.pdf.
Acesso em 04 set. 2020.
GUIMARÃES, Geny Ferreira. Rio Negro de Janeiro: olhares geográficos de heranças negras e o
racismo no processo-projeto patrimonial. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em
Geografia da Universidade Federal da Bahia. 2015.

8
Kilomba (2019, p. 210)

BIOGRAFIA
Geny Ferreira Guimarães

Doutora em Geografia (UFBA), Mestra em Ciências Sociais (UFRRJ) e Graduação em


Geografia (UFF). Docente de Geografia do Colégio Técnico da UFRRJ (CTUR).
Credenciada como Docente no Programa Nacional de Pós-graduação Profissional
PROF-História (UFRRJ). Coordena o Laboratório de Geografia LABGEO (CTUR/UFRRJ)
e o Grupo de Pesquisa Geo-grafias Negras (UFRRJ). Suas atuais áreas e campos de
pesquisa, extensão e ensino envolvem Geografia Escolar, Geografias Negras (método e
metodologia), Patrimônios, Relações Raciais e Geografia e Literaturas Negras
(Geo-grafias Negras).
Contato: geografia.ctur@gmail.com ou genybr@yahoo.com.br
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess
Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
hooks bell. heranças estéticas: a história feita à mão. In: hooks, bell. Anseios: raça, gênero e
política cultural. São Paulo: Elefante, 2019a. p. 230-243.
hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução Ana Luiza Libânio.
4.ed., Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2019b.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 6.ed., Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1960.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Florianópolis: Editora Mulheres, 2004.
SILVA, Joselina (ORG.). O pensamento de/por mulheres negras. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.
SOUZA, Elio Ferreira de. A ‘carta’ da escrava Esperança Garcia do Piauí: uma narrativa
precursora da literatura afro-brasileira. Anais Abralic, Belém, 2015, Disponível em:
https://abralic.org.br/anais/arquivos/2015_1455937376.pdf. Acesso em 04 set. 2020.
WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maisa; WHITE, Evelyn C. (Orgs.). O livro da saúde das
mulheres negras. Rio de Janeiro: Pallas / Criola, 2000.
XAVIER, Giovanna. Você Pode Substituir Mulheres negras como objeto de estudo por mulheres
negras contando sua própria história. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2019.
WALKER, Alice. Everyday Use. In: CHARTERS, Anna. The Storyand Its Writer: na introduction to
short fiction. Boston: Bedfor/St. Martin's, 2011, p.852–858.
WALKER, Alice. In search of our mothers’ gardens. New York: Harcourt, 1983.

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