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O CIRCO NA GARAGEM

Assisti há pouco mais de uma hora ao espectáculo Circo, do Teatro da Garagem.


Apetece-me escrever um pouco sobre o que vi, mas antes de mais deixo um aviso à
navegação: o que se segue não é uma crítica, é apenas um brevíssimo conjunto de notas
de alguém que escreve e faz teatro e, sobretudo, gosta muito de teatro.

Não vi todos os espectáculos da Garagem. Mas desde há uns anos a esta parte que
procuro acompanhar as suas produções. A Garagem é um dos projectos que me apetece
acompanhar, independentemente do grau de conforto e de prazer que cada um dos seus
espectáculos em mim suscita. Hoje deu-me para pensar a causa disso. Longe de
qualquer tentativa de fechamento analítico, sei, ou julgo saber, é melhor assim, duas ou
três coisas (coisas que suspeito serem partilhadas por outras pessoas). Como outros
projectos (em todo o mundo), este é um projecto de um criador, o Carlos Pessoa; não
por ele ser escritor e encenador (e às vezes muitas outras coisas) em simultâneo, mas
porque é ele que unifica e procura dar coerência a cada espectáculo no interior de um
outro projecto, muito pessoal, que é fruto das suas especificas manias, preocupações,
obsessões, vontades, ideais (e podem pôr-se aqui muitíssimos etcs). Creio que é
paradigmático desta ideia de projecto os seus ciclos antecipadamente programados
(Pentateuco - Manual de Sobrevivência para o Ano 2000 e O Livro das Cartas do
Tesouro). Outra particularidade, e apercebo-me agora da dificuldade de falar disso,
respeita ao modo muito singular como se aborda na Garagem, por processos distintos, o
trabalho com o texto, com os actores e com a matéria plástica (chamemos-lhe assim em
falta de outra designação mais apropriada). Os actores: sinto sempre uma enorme
liberdade no seu trabalho, mas uma liberdade que não despreza o sentido da eficácia
comunicativa; e este não é um factor desprezável, sobretudo se considerarmos que os
actores se debatem sempre com dois espartilhos muito fortes: o texto, fragmentário até
aos limites e excessivo (prolixo e neo-barroco, diz o Carlos serem os seus textos antes
de Os Donos dos Cães, de 2002 - e aqui, Carlos, deixa-me dizer-te, discordo de ti; mas
teremos oportunidade de falar disso); e a matéria plástica que funciona simultaneamente
como dispositivo simbólico (igualmente excessivo) e como matéria orgânica (muitas
vezes duplamente orgânica: no seu jogo corpóreo relacional e nas próprias matérias
utilizadas). Do texto, que acabei por ir aflorando nas linhas atrás, hei-de falar mais
demoradamente noutra ocasião. Refiro somente uma discordância com o que o Carlos
diz a propósito desta sua nova fase que considera ser a de uma "escrita concisa e
sintética": não duvido da sinceridade da sua intenção mas não me parece atingido esse
desiderato - o texto que hoje ouvi tem uma forte marca barroca (uma nota: o texto que
ouvi ler, outro dia, na livraria Eterno Retorno, O Significado da Mobília, pareceu-me
mais próximo dessa intenção, uma escrita mais "enxuta" mas sem perder, digamos,
automatismos de escrita, um certo descontrolo, que a mim muito me agrada, eivada de
tiradas surrealizantes e de non sense).

Vou ter que parar por aqui (é que isto de escrever também cansa...). Mas hei-de voltar -
com gosto - a reflectir sobre a Garagem (agora quase não falei do espectáculo que hoje
vi! E já agora, para os comparsas deste blog: não percam o CIRCO!

Últimas notas, muito pessoais: gostei muito de ver as "minhas duas meninas"! E gostei
muito de ti, Carlos O.! E gostei muito de ti, Miguel! Cláudia: a tua Diadora da terceira
parte é uma beleza de contenção e de emoção interior! Luís: foi uma bela surpresa ver-
te! Adoro os actores, esses "heróis frágeis"!

Carlos: gosto da ideia da senha, assim a modos que uma maneira de entrarmos nos
mundos mágicos...

"Longa Vida e outros iogurtes ao Teatro da Garagem."


[post do blog Campo de Afectos (http://teatroescrito.blogspot.com/), de 18 de Julho de 2003]

O CIRCO NA GARAGEM
1 espectáculo X 3

Conheço aquela voz d’algum lado! Juro qu’é verdade! Tem cor de farturas, de choques
de carrinhos eléctricos, de cheiro a sardinhas e a frango nas brasas, de rodopio, da gente
a tar assim a modos qu’a’cair dum abismo abaixo, de anda cá meu malandro que são
horas de jantar! E tá aqui na minha rua, agora mesmo, à minha hora de mandar os putos
prá mesa e jantar e depois cama q’amanhã bem cedinho vamos todos p’rá Caparica.
Com o cheiro a hambúrguer e a batatas fritas do nosso jantar mistura-se, vindo lá da rua,
o de chóriço assado e um outro que não sei de que é. É de maçaroca de milho, ri-se o
amigo do meu mais velho que vive prás bandas da Damaia. Vou ali e já volto, digo à
família – embaraçado como os traquinas dos meus filhos q’ando se piram c’uma

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mentirola qualquer mal enjorcada.
A voz é daquele rapaz magro que segura um microfone e uma espécie de amplificador –
como os das manifes da Inter, mas mais moderno. No meio da rua diz qu’é o Circo e o
que vamos ver é Circo. Circo! Eu bem sabia. Vou lá ver um bocadinho, é só o tempo de
palitar os dentes, juro. São muitos, os artistas, rapazes e raparigas muita novos. O moço
magricelas, vestido de preto, como nos casamentos, nã pára de falar. Anuncia coisas.
Números de circo, acho. Mas isto nã parece bem um circo. Ah, tá ali um tipo, meio
monhé, a assar chóriço e maçaroca de milho. E dá à malta pra comer. Vou lá ver se me
dá uma rodelita de chóriço. Já não há, merda! Só maçaroca. Nã gosto. Acho que nã
gosto. Anda tudo aos saltos e a fazer maluquices. Vou ver se percebo o que diz o asas de
grilo. Olha, um maluco tá a tentar mergulhar na tampa de plástico duma garrafa d’água.
E a garina ao pé dele tá a tentar acender um fósforo olhando só pró espelho da carrinha.
Outra maluca tá no tejadilho a enrolar cabos. Pra quê? Outra ó lado dela tem asas de
anjo e parece triste. Nã percebo. Outro gajo bate num bidon com outro lá dentro e diz
qualquer coisa de impostos e da Manela Azeda o Leite. Boa! Um que faz de velho põe-
se a fazer o pino e a dizer números de passes sociais. Ganda maluqueira. O asas de grilo
diz q’agora vai haver a rendição da guarda. Tá tudo maluco! Uns imitam cães a ladrar,
outros cacarejam! E agora o gajo diz q’o circo continua lá dentro, prá malta mostrar ós
guardas o bilhete ó o convite. Que se lixe, nã entro. Lá dentro ainda deve ser uma
maluqueira maior. Vou mas é ao café e ao bagacinho, q’amanhã, bem de madruga, ala!
prá Caparica. Gandas malucos! A ‘nha’maria nem vai acreditar. Memo aqui ao pé de
casa. Circo!

Coitado do trolha. Ainda bem que não entrou para o espectáculo. Ainda se ia sentir
mal. Isto não é teatro para a malta aqui da rua. Malta popular só gosta do La Féria, da
Amália e de sardinhas assadas. Deixa-me prestar atenção. Parece que os espectáculos
deste grupo são muito difíceis, cheios de referências culturais, é o que me dizem. Não
sei porquê, nunca me deu para ver nenhum. Sempre que ouvia falar em Garagem
lembrava-me logo aqueles tempos do PREC em que saia sempre com dores nas costas
daqueles malditos bancos corridos. Gosto mais do Teatro Aberto, do Villarett,
confortáveis, teatro sério, com bom gosto. Esta malta parece um bocado maltrapilha,
espero que me engane. Que chatice, as cadeiras são desconfortáveis, eu já desconfiava.
Bom, paguei o bilhete, deixa-me lá ver no que isto dá. “Talking heads”. Não percebo
nada. Palavras, tantas palavras: “cortaram-me as partes sujas”, “cortam as mãos a

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um tipo...”, “lembramo-nos apenas das amputações”, “gostava de tocar flauta” – boa,
eu gostava era de fugir daqui, mas parece mal, estou tramado, o trolha de há bocado é
que fez bem, foi para a tasca embebedar-se. “Apetecia-me tocar flauta e comer
melancia”, “sai ar da minha boca”, “não nos perguntaram nada, esqueceram-se de
nós...” A coisa parece que se repete sempre e depois percebe-se alguma coisa, os
actores são bonzinhos, talvez a coisa melhore. Entra um tipo a correr pela sala e diz
que é o Público. O Apresentador, ou Chefe de Pista ou lá o que é, faz-lhe uma magia
qualquer; outro, que parece um Drácula, quer beber-lhe o sangue, “um público bebível
sempre à mão!” Estão doidos! Há uma Diadora que é marca de ténis! Doidos de todo...
Agora temos que levar a cadeira para a cena. Uma tipa numa espécie de tenda
semitransparente, uma tal Amazona Gorda. Mais palavras que nunca mais acabam. Diz
que começou a inchar por razões de segurança, acho que é trapezista. Olha, agora é a
vez de um Cozinheiro, Francês, parece, que lhe leva um prato de lentilhas. Ela não
quer, mas ele diz que se ela comer as lentilhas lhe dá como sobremesa maçã
caramelizada. A tipa come as lentilhas e a maçã. O Cozinheiro Francês quer matar-se
porque ficou sem uma estrelinha no guia mundial de restaurantes. Ela também quer
matar-se. “Não te suicides, vamos antes praticar equilibrismo”, fazer o “milagre
alquímico da transformação da gordura em vida”, cair lá em baixo e ser um puzzle: as
palavras zumbem à minha volta...”é triste amar mais deus do que a mim...”, “... as
trevas do abismo...”, “por que é que preferes o nome de Deus?”. “Há mais mistério no
amor que na morte” – nisso estou de acordo. Afinal a Trapezista é um rapaz que gosta
de roubar fruta verde: isto deve querer dizer alguma coisa bem profunda... E lá vamos
nós com as cadeiras para outro lado. “Forças Combinadas”, diz o Apresentador. Não
vejo nada. Com a andança das cadeira fiquei atrás de uma coluna da sala. Um tipo e
uma tipa andam à roda numa placa giratória. Parece que falam de desencontros mas
“são os desencontros que fazem com que tudo funcione na perfeição.” Estou cá com
um sono, meu Deus! O quê? Agora querem meter um machado no cu? Valha-me Deus.
Será que ainda vai haver sangue? Que grande chinfrim, os outros actores interrompem
a conversa e desata tudo a fazer barulho na cena principal. Já não ouço nada... Outra
volta na cadeira. Abrem o portão de ferro que dá para a rua. “Domador de Feras”,
agora é que é! Incendiaram o passeio, estão loucos. Um tipo em tronco nu fala como
nas tragédias gregas, Clitenmestra ou não sei quê, não percebo nada de mitologias e de
deuses. O tipo leva aquilo a sério. É Domador de Feras mas o Apresentador é que bate
com um chicote. Repete o Domador: “Como começou tudo?” Sei lá eu! Grito e

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ninguém me ouve! E grita o actor “Mostrem os monstros!” O Apresentador diz que o
circo é um círculo. A minha cabeça é que está a andar à roda! “Se repetirmos o mundo
salvamos o mundo”. Está bem, salvem lá quem quiserem mas acabem com o nosso
sofrimento. O quê? Parece que dormitei. Está uma jovem a torcer-se toda, deve ser
Contorcionista. E fala como uma velha. E uma miúda com totós. Garota, mesmo. “Uma
fantasia perversa pode salvar-nos da falência técnica.” Mais dois garotos. De casaco
da tropa mas com collants. Dizem que os filósofos também se acabaram, tal como os
cães amestrados e não sei quem mais lá do circo. Mas dizem que aquilo não é um
problema, é um número de circo. Não sei. Anda por aqui a correr um tipo vestido de
urso polar. E um deles pergunta se 300 quilos de ternura não é peso a mais. Se eles não
sabem eu também não sei. Ora bolas! O Apresentador apresenta uma parelha de
palhaços – duas miúdas: o Du e o Pont. Obrigado, esta também eu sei, é uma paródia
ao Dupont e Dupond do Tin Tin. “Divirtam-se connosco”, dizem, “vamos fazer coisas
fantásticas, como por exemplo, dormir!” É o que me apetece fazer – há que tempos...
Agora põem-se todos, a trupe toda, parece-me, a preto e branco, a fingir que dançam.
Que sono, meu Deus! Silêncio. Dormir. Uma, pendurada num trapézio. Outra, deitada
no chão com uma coleira branca ao pescoço. A do trapézio, de vez em quando diz
“Rádio Trapézio não fala a verdade” A do pescoço partido vai para o trapézio. Vozes:
“Se largasse o trapézio ficaria no ar para sempre”. “Eu só quero ser feliz”. “Se
recitares um poema suportas melhor essa dor nos pulsos” Acordo com um sujeito a
dizer-me para subir as escadas. É a terceira parte. Andam todos a passar os dedos
nuns copos de água. Fazem uma espécie de música embriagante. Agora é que vou
mesmo dormir. É só apanhar uma cadeirinha lá em cima.

Aquele sujeitinho com ar de administrador de empresas chegou cá acima já a dormir.


Agora ressona baixinho. É um tipo educado, até a ressonar! O que se passará na cabeça
e no corpo de cada um de nós? Que lugar pertence a cada um de nós neste Circo,
círculo? Qual é o meu “número”? Qual é o teu “número”? Os “números” da malta do
bairro de lá de fora, o daquele sujeito bem-posto, o meu também, aspirante a fazedor
destas coisas? Não sei. Ver este espectáculo ajuda-nos no caminho, na procura, só isso.
E é muito. Atenção. Cheguei aqui já com o barulho surdo da pedra rolante que o
Fernando manipula com um imenso, intenso, sentido de ritmo – mas um ritmo que não é
da música, um ritmo que é de antes de existir música. Deixo-me ainda penetrar por esse
ritmo e só depois pela música do gotejar da água na bacia de pedra antiga roubada a um

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qualquer templo antigo. Nesta terceira parte, depois da morte do Circo – do Circo? – o
Domador de Feras toma conta do Circo – qual? Diadora continua a arrastar atrás de si o
Público. Mas os seus pés estão pesados... Agora, é domadora de Pombas – as que têm a
cabeça arrancada pelo Carniceiro, figura que configura uma contemporaneidade de
mistura com tempos míticos: é ele que se convoca para a salvação, por uma espécie de
retorno ao tempo em que é possível pensar tudo de novo – numa geografia onde
também se move o Mago Juba em se que transformou, pela morte, O
Circo/Apresentador/Chefe de Pista/Actor Miguel Mendes. Juba é também o que
questiona o abandono de África, da África “portuguesa”, entenda-se. O Carniceiro
representa o quê, afinal? “Nem tudo vai mal em Portugal // iô!”, “Paciência é a ciência
do pá // iô!” Escárnio, crueza, humor, amor, fim, princípio... o quê? Diadora acaba por
casar com ele – foram felizes durante cinco anos, o Carniceiro adorava a cabeça oca de
Diadora... Diadora está dividida entre o conformismo e a adulação do Público e a
impertinência e a crueldade do Carniceiro. Mas nenhum, na verdade, vencerá. Juba, O
Mágico guarda a sua “portucalidade encaixotada”; deambula pelo tempo e fora dele – à
espera de um tempo em que não se sabe se ainda acredita. “Devíamos ter confiado no
Carniceiro” – em vez de todos os Partidos que diziam defender a (segunda) pátria
(abandonada). Para Juba, o Carniceiro era acima de tudo “um esteta que dominava os
mecanismos do desejo e do medo” – “talvez ele nos salvasse”... Asserção perigosa, no
mínimo, que, fora da história, prega a salvação acima dos homens... “Qual era o nosso
país, afinal?” “Não consigo deixar de pensar que talvez o Carniceiro pudesse ter sido
nosso pai” Ele, o Carniceiro: “Porque a merda cheira sempre mal // independentemente
da classe social” – e põe-nos a cantar! E cantamos. De quê? Por quê? “Os pássaros de
cerâmica inglesa começam a chilrear” – “O teatro é a salvação” “Salvação de quê?”
Juba explica-nos a importância do fototropismo: é necessário o húmido e o escuro para
a vida acontecer: “é por isso que Deus não pôs uma janela na barriga das grávidas.” Os
pássaros de cerâmica inglesa começam a chilrear – sem aspas. O teatro é a salvação – de
quê?

[post do blog Campo de Afectos (http://teatroescrito.blogspot.com/), de 30 de Julho de 2003, após ter presenciado pela segunda vez,
em 29 de Julho do mesmo ano, o espectáculo CIRCO, pelo Teatro da Garagem]

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