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concluir que a violência não é episódica, mas faz limpar esses bandidos, tem que limpar a periferia, 11

parte do próprio DNA do Estado brasileiro. só os homens de bem…”, esse tipo de fala é muito
Quero citar outro autor, também pouco co- presente no discurso das pessoas, demonstrando

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nhecido, mas que acho central para entendermos as que as práticas de violência institucional, das for-
relações raciais no Brasil. É o Professor Clóvis Mou- ças policiais, estão carregadas de uma ideologia de
ra, falecido já há 11 anos, cujo livro chamado Dia- limpeza étnica, limpeza social, higienização.
lética Radical do Brasil Negro2, é fundamental para Para concluir, trago alguns aspectos para a
compreender as relações raciais no Brasil. Segundo reflexão. Primeiramente qual seria o papel nosso,
o autor, a transição da sociedade escravocrata brasi- enquanto intelectuais, de vocês, como psicólogos?
leira para a sociedade capitalista assalariada se deu Um psicólogo social, Ignacio Martin Baró, discute
sem rupturas. Nesse período do final do século 19 a questão da violência na América Central. Nós es-
e no século 20, vai se constituindo uma base capi- tamos vendo que a violência, o genocídio tem uma
talista brasileira dependente, mantendo intactas as base material, ele atende a expectativa de uma so-
estruturas da sociedade anterior. Os textos que vão ciedade de classes, de uma sociedade de concen-
fundamentar a ideia de república no Brasil não tem tração de renda. Claro que não é com a psicologia

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nada a ver, por exemplo, com os ideais iluministas que vamos resolver isso, nem com nenhuma outra
do século 18 na França. É muito interessante obser- área, mas é papel nosso, enquanto intelectuais,
var que a questão racial vai permear a classificação enquanto atores sociais, enquanto profissionais,
de cidadania, e isso é muito explícito nos textos dos quebrar as ideologias. É disso que o Baró fala,
pensadores brasileiros do século 19. Por exemplo, quando diz: “Qual é o papel do psicólogo social no
no final do século 19 e no século 20, algumas es- combate da violência na América Central? É des-
colas públicas proibiam a entrada de crianças com naturalizar essas práticas”, quebrar isso. Então, o
doenças infectocontagiosas e de crianças negras. A nosso papel enquanto intelectuais é exatamente
política de branqueamento da população brasileira isso, denunciar e quebrar, mostrar que isso não
foi uma política de Estado, como política estratégi- é natural, isso é socialmente criado. As práticas
ca do desenvolvimento brasileiro, já que a ideia que sociais, as práticas subjetivas, são construídas so-
se colocava naquele momento era a de que o Brasil cialmente a partir de uma dimensão da sociedade.
era um país subdesenvolvido, cuja composição ét- E a segunda coisa que eu quero trazer para re-
nica era inferior. Isso mostra como o racismo está flexão é pensar as consequências do genocídio.
no DNA da construção da república brasileira. No Nós tínhamos feito, há cerca de 10 anos, um estu-
final do século 19 e no século 20, alguns expoentes do muito interessante sobre a “feminização da po-
abolicionistas negros eram monarquistas e houve breza, constatando que boa parte dessa “femini-
muita crítica a isso. Mas, por que aconteceu, então? zação” da pobreza está vinculada a mulheres que
Quando a república se constituiu, pouco mudou a chefiavam sozinha as famílias, por abandono ou
vida das pessoas. Da mesma forma, hoje falamos morte dos maridos E, por conta dessa situação, es-
da importância da democracia institucional, mas, sas mulheres entravam precariamente no mercado
na periferia, pouco se viu de uma mudança signifi- de trabalho criando uma situação de vulnerabili-
cativa, quando se observa que práticas autoritárias, dade social muito intensa que obrigava seus filhos
com a polícia invadindo as casas, matando impu- a ingressar precocemente no mercado de trabalho
nemente continuam existindo. Muitas vezes, as também. Podemos observar, por exemplo, em da-
mudanças institucionais não significam mudanças dos educacionais, o altíssimo índice de evasão do
qualitativas na periferia. ensino médio, aos 16 anos, que, não por coinci-
O terceiro aspecto que eu queria trazer para dis- dência, é o perfil dos jovens que estão morrendo.
cutir o genocídio é a ideologia da higienização, que É uma questão interessante abordar essa relação
vem também dessa concepção do Estado brasileiro de gênero. As mães desses meninos que estão sen-
que está presente nas forças policiais brasileiras. do assassinados, em que situação estão ficando?
Um professor da PUC fez uma pesquisa sobre o que Isso é produto de um processo de exclusão social
pensam os matadores, os policiais presentes na que passa por relações de gênero. A maior parte
morte de jovens aqui em São Paulo. É muito inte- dos que estão morrendo são meninos, homens,
ressante observar como é que eles se imbuem de negros. Volta a se construir uma situação de vul-
um papel de limpeza, eles falam muito: “Tem que nerabilidade mais intensa, inclusive emocional,
para as mulheres que estão envolvidas, que estão
2 http://books.google.com.br/books/
about/Dial%C3%A9tica_radical_do_Brasil_negro.
próximas a esses meninos. Essa é uma questão im-
html?id=4GEYAAAAYAAJ portante sobre a qual refletir e discutir.
12 HAMILTON BORGES
MILITANTE DO MOVIMENTO NEGRO, ARTICULADOR E COORDENADOR DA CAMPANHA REAJA,
COORDENADOR E ARTICULADOR DO QUILOMBO X, AÇÃO CULTURAL COMUNITÁRIA.

Queria agradecer, em nome de vários mili- Professor Dennis, quer dizer, o Estado brasileiro
tantes negros e negras do Brasil inteiro, a opor- foi construído sobre uma violência que não tem
tunidade de estar aqui, sendo tratado de forma tamanho, não tem registro nas historia, foram 6
tão boa, de forma tão fortalecedora para minha milhões de pessoas sequestradas, arrancadas de
humanidade e para a humanidade coletiva, por- vários lugares da África, para serem colocadas
que, para falar com psicólogos sobre genocídio, como coisas que poderiam ser vendidas, e isso há
é sobre isso que a gente vem falar, sobre a nossa muito pouco tempo sob o ponto de vista históri-
humanidade. co. Doze pessoas negras é o primeiro registro que
Queria fazer um comentário, que é um comen- se tem, doze pessoas negras foram arrancadas da
tário muito pessoal, mas é muito importante. On- África e entregues de presente a um determinado
tem, eu arrastei mala por toda a rua Oscar Freire rei de Portugal. O fato é que nós ainda hoje, te-
e aí, quando eu cheguei na Avenida Rebouças, eu mos a prática odiosa do Estado brasileiro de tra-
entendi o texto do intelectual, que eu considero tar as pessoas como coisas, nós vamos tratar do
um dos mais importantes do país, que é o Mano sistema prisional, dessa situação do sistema pri-
Brown. Ele fala o seguinte: “Avenida Rebouças, sional que é um grande negócio em que a merca-
dinheiro, não tive pai, não sou herdeiro”. Só vou doria principal são pessoas. Vejam, no Estado da
dizer essa parte, porque eu vi o que significa o Bahia, que é um estado democrático popular, go-
ódio das periferias de São Paulo contra a elite vernado por forças políticas democráticas, quer
branca paulista, eu percebi porque existe esse dizer, de partidos democráticos, foram usados
ódio. Na verdade, esse ódio é um espelho refleti- contêineres para prender presos. Ora, container
do, porque existe muito ódio da elite paulista con- guarda mercadoria, e nós viemos para esse terri-
tra nós, negros e negras, e eu vi esse ódio na car- tório dentro de contêineres, conhecidos como na-
ne, sabe por quê? Porque nós não estamos a salvo vios negreiros. Parece que aquele governador, de
das sequelas que o racismo provoca em qualquer algum modo, olha para os negros do seu partido
negro dentro dessa sociedade, não importa se e para os negros da sociedade de um modo geral
você é conselheiro do CRP, não importa se você é e diz assim: “Eu vou sacanear com vocês, eu vou
advogado, se você é médico, não importa se você colocar pessoas em contêineres, eu vou colocar
é ministro do STF, você vai receber as sequelas pessoas em navios negreiros, como a gente fez
do racismo dentro dessa sociedade. Não é a toa para trazer vocês aqui”.
que a gente recebe aí, acho que pela primeira vez Mas vamos falar de genocídio, do termo ge-
na história, uma denuncia de um Ministro do STF nocídio. Nós fomos muito atacados em 2005 por
e, olhe que na perspectiva da Campanha Reaja, setores do Movimento Negro, setores da intelec-
da nossa perspectiva, nós não homenageamos tualidade, da academia, dizendo que estávamos
nenhum político, por mais gostoso que ele seja, fazendo um reboliço intelectual, que aquilo era
mas também, nós não podemos assistir calados a um artefato político sem nenhuma noção cien-
um baile de racismo que é jogado para qualquer tífica, porque não se tratava de genocídio dentro
negro dessa sociedade, a gente tem que reagir. do Estado brasileiro, um estado em que todas as
Eu queria começar a falar aqui de um tema pessoas eram brasileiras. Genocídio dizia respeito
que nós da Campanha Reja temos tratado, que a a um ataque de determinada nação contra outra
gente tem levantado. Em 2005, nós tomamos as nação e que não poderia ser considerada dentro
ruas de Salvador no momento em que se celebra- do perfil do Estado brasileiro. Na verdade, o que
vam muitos avanços da política racial com uma era era extermínio, e algumas organizações do
nomenclatura, que para a gente era nova, que era Movimento Negro criavam inclusive teses, que
de Promoção da Igualdade. Era nova para a nos- diziam: “É extermínio programado”, mas a gente
sa luta cotidiana histórica do Movimento Negro, dizia: “É genocídio, os números e as condições
porque o que nós temos, efetivamente, que fazer, em que nós estamos morrendo, em que as nossas
é combater o racismo. O racismo é a contradição vidas estão desprotegidas e disponíveis para que
principal do Estado brasileiro, como bem disse o o Senhor, o mandatário, possa fazer o que quiser
da nossa vida, matar ou deixar viver”, era uma si- Outra diáspora, uma diáspora violenta, é o 13
tuação de genocídio. O genocídio, efetivamente, processo de escravização. Nós ocupamos a Pe-
é o assassinato deliberado de pessoas motivadas nínsula Ibérica e ficamos lá quase 400 anos, in-

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por diferenças étnicas nacionais, raciais e religio- clusive ensinando os europeu a comer de garfo
sas. É a desintegração da vida daquela pessoa, do e faca, a fazer incisão na barriga para não perder
ponto de vista da sua completude. Ora, uma ga- os filhos e não morrer de parto, que é a chamada
rota, na Campanha Reaja, em 2005, falou uma cesárea. Um monte de coisas nós fizemos lá, mas
coisa: “Quando a polícia chega para matar, nós o processo de escravização foi um processo que
estamos praticamente mortos”, foi o que ela falou. nos retirou ou pretendeu retirar a nossa humani-
Nós estamos tratando do genocídio e, para nós, dade, e esse é um debate importante com vocês,
o genocídio vai para além da bala da polícia que psicólogos. A psicologia africana é uma psicolo-
mata, ele diz respeito a situações a que nós esta- gia que pretende questionar essa psicologia euro-
mos submetidos em nosso cotidiano, é um cotidia- peia que nega a nossa humanidade, que acredita
no de extrema desgraça e é um cotidiano em que que apenas exista uma forma de pensar as nossas
nossa humanidade, o tempo todo, é colocada em entranhas sentimentais, os nossos sentimentos.

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questão. Existe uma subumanidade colocada para A psicologia africana coloca a disponibilidade de
nós e vocês, psicólogos, sabem muito bem disso, nós, os negros, nos mantermos como humanos
aprofundam-se muito bem nesse sentido de hu- mesmo diante de tanta humilhação e desgraça
manidade. Portanto, a situação é de guerra racial que foram o tráfico negreiro e a escravidão. A es-
a que nós estamos submetidos, sendo que nós não cravidão nos concebeu como uma humanidade
temos armas para lutar de igual para igual nessa inferior ou sem humanidade, mas a religiosida-
guerra. Obviamente que nós não estamos aqui, de, a cultura, os acúmulos históricos da popula-
falando que existe um conluio, uma reunião de ção negra, sobretudo das mulheres negras que
pessoas brancas fumando charuto e dizendo: “Va- construíram poderosas instituições políticas e
mos sacanear os negros, vamos matar os negros”, religiosas para nos manter enquanto povo, foi a
mas existe uma cultura implantada no interior da ferramenta fundamental para estarmos aqui nos
sociedade brasileira que permite que nós possa- conhecendo, conversando e tratando de um novo
mos ser eliminados sem que ninguém chore por passo para a nossa libertação.
isso, sem que ninguém diga uma palavra. Portan- Essa é uma questão que eu gostaria de tratar
to, quem tem sua dor, quem geme, quem precisa e, a partir daqui, falar um pouco da conjuntura a
chorar e quem precisa lutar e quem precisa politi- que estamos submetidos aqui no Brasil. Nós es-
zar a sua dor e a sua morte são os próprios negros tamos submetidos a uma conjuntura de guerra
dentro dessa sociedade, e nós precisamos ser diri- racial. Todas essas coisas que essa turma do Paul
gentes dessa luta que é uma luta de libertação. O Gilroy chama de pós-racismo, afirmando que pre-
genocídio fala do profundo sofrimento de pessoas tos se juntarem para falar de si mesmos e para
negras, homens e mulheres no interior dessa so- lutarem pela sua autodefesa e para construir um
ciedade. Agora nós estamos falando da sociedade outro modelo de sociedade baseada no acúmulo
brasileira, mas nós estamos tratando de um debate que esse povo mesmo tem, isso é uma coisa sem
internacional. Nós precisamos relacionar a nossa sentido, que não se discute mais porque o racis-
luta contra o genocídio à uma luta internacional, a mo vai acabar tranquilamente. Marchas feitas,
uma luta que diz respeito ao processo da diáspora. como a de Farrakhan em 1993, que pretendeu
Nós tivemos várias diásporas africanas, a primei- dizer aos negros americanos que eles poderiam
ra diáspora africana foi quando uma humanoide, fazer as coisas do seu próprio jeito e por si pró-
que vocês podem chamar de Eva, a depender da prios, eram fascistas. Negros se reunirem para
sua religião, apareceu nesse planeta e povoou a falar sobre si próprios era uma espécie de fascis-
terra. Dessa humanoide, surgiram civilizações mo, porque existia uma contradição muito maior
fantásticas. A maioria dos conhecimentos que es- e isso a esquerda fala muito bem que é a contra-
tão disponíveis para nós surgiram desse continen- dição do capitalismo e que isso vai ser superado,
te. Antropologia, arqueologia, todos os “gias” já que o racismo vai ser superado quando a gente
disseram, já comprovaram que fatores climáticos tiver acesso ao consumo, tiver acesso aos bens.
fizeram com que nós tivéssemos fenótipos diferen- Esqueceu-se de dizer que os brancos, ao longo da
tes, mas todos descendemos de uma única huma- história, organizam-se como nação. Não é à toa
noide que vocês podem chamar de Eva, Essa é a que eles próprios inventaram o nome europeu,
primeira diáspora. mesmo sendo diferentes, sendo ingleses, sendo
14 franceses, eles são europeus. Não é à toa que eles ção principal de luta e de rebeldia dentro do sis-
se organizam, inclusive politicamente, e na Co- tema prisional. Aqueles relatórios psicológicos,
munidade Europeia, os partidos fascistas e na- os laudos psicológicos, que são uma espécie de
zistas ascenderam ao poder. Os brancos podem, minority report em que vocês… os intelectuais, os
mas nós não podemos, organizar-nos para nos iluminados, vão determinar se aquela pessoa vai
defender e para falar sobre nós próprios. É impor- praticar um crime ou não vai praticar o crime. Sei
tante falar dessas coisas, dessas questões, trazer que o Conselho Regional de Psicologia já foi con-
essas provocações para nós, negros e brancos, tra isso, mas isso tem que se tornar uma coisa real
percebermos em que nós estamos mergulhados e concreta no interior do sistema prisional e um
dentro dessa sociedade, qual é a escolha que nós debate no interior da sociedade brasileira. Nós,
vamos fazer do ponto de vista de luta, porque isso da Campanha Reaja, não atuamos achando que
aqui não é uma reunião de intelectuais para não o genocídio é uma coisa longe de nós. Nós cria-
dar em nada, isso aqui é uma reunião para resul- mos um know-how de enterrar pessoas e a impor-
tar em luta e mudança. Isso aqui é um ato fan- tância das mulheres nesse debate não é colocada
tástico, de fortalecimento comunitário, da nossa devidamente, porque as mulheres, nossas mães,
comunidade, do nosso povo, o entendimento dos avós, irmãs, elas têm segurado o sistema prisio-
negros e negras enquanto povo dentro do territó- nal. Elas têm tido a extensão da pena dos seus en-
rio brasileiro. É fundamental para nós acabarmos tes queridos que estão enterrados nas masmorras
com a situação de desrespeito e de eliminação a da prisão brasileira, elas têm tido a humilhação
que estamos submetidos. E, repito, nós estamos da revista vexatória. Essas mulheres nos criaram
submetidos, porque ninguém, aqui, está a salvo, e cuidam da nossa comunidade, essas mulheres
os negros não estão a salvo de um esculacho da são as primeiras que vão reconhecer o corpo na
polícia, de uma bala da polícia, de ser enterrado pedra do IML e, portanto, essas mulheres são as
no cemitério clandestino. Ninguém está a salvo, coordenadoras e a vanguarda de nossa luta por
essa é a primeira questão que nós precisamos tra- libertação. Precisamos de que psicólogos, de for-
tar, porque a gente não pode tratar isso como se ma voluntária, ou de forma organizada, pensem
estivéssemos a salvo num círculo cósmico. em como criar grupos com essas mulheres, gru-
Nós, da Campanha Reaja, temos uma atua- pos para atender, para discutir com elas os danos
ção da Quilombo X dentro do sistema prisional, psicológicos que elas têm. Assim como ninguém
no sentido de tratar com o nosso povo, que é a pensa no defensor, a maioria de nós, chamados
maioria encarcerada, dos motivos que os levaram de defensores de direitos humanos, que somos
ao sistema prisional. O sistema que mais cresce militantes do Movimento Negro, a maioria de nós
na América Latina, nós somos a quarta popula- carrega sequelas muito fortes e grandes por conta
ção carcerária do mundo, nós batemos em países do que nós temos vivido no cotidiano: uma luta
mais importantes e nós somos a maioria de sis- em que você é acusado de defensor de marginal,
tema de encarceramento, porque a lógica é essa, defensor de bandido e, invariavelmente, é amea-
você elimina, quando você não elimina, você çado de morte. Estamos na linha de tiro, na linha
neutraliza, e como é que você neutraliza? Dentro de frente e somos o alvo dessa polícia que mata,
do sistema prisional. Os psicólogos têm uma fun- desse Estado que mata.
DEBATE 15

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Pessoa da plateia centenas, milhares de outras histórias, mas o que
Quero fazer uma pergunta bem pontual, por- fica, na verdade, é o efeito, olha-se o efeito e não
que agora vamos ter as eleições, e uma das ques- se vê a causa. Quando você convoca o CRP de São
tões que vai ser levantada é justamente a redução Paulo, em âmbito nacional para que realmente se
da maioridade penal. A princípio, o que se debate olhe a partir de agora, já que se está discutindo
em relação à redução da maioridade penal é que genocídio, para as mulheres negras, ninguém faz
pelo menos reduzissem de 16 para 14 anos, de ideia da dor que essas mulheres passam e, sendo
18 para 14. Acredito que seja um consenso que a a maioria da população, significa que a maioria
redução da maioridade penal não resolve o pro- da população brasileira não tem condições psico-
blema da violência. Mas, com o passar do tempo, lógicas para definir o seu futuro. Na imagem tele-
existem algumas categorias de conservadores visiva, de várias formas de propaganda, ela não
que estão propondo a redução da maioridade pe- se vê, e não vê os filhos. Exemplo máximo disso,

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nal para aqueles crimes hediondos e não para to- eu participei do lançamento da campanha contra
dos os delitos. Ou seja, essa redução da maiorida- o HPV aqui no CÉU Butantã, e, na campanha, ti-
de penal seria aplicada apenas a mais ou menos nha uma menina estudiosa, a outra roqueira… três
5 a 10% dos crimes. meninas lindas e todas brancas, só que não são as
A pergunta que eu coloco é a seguinte: como filhas da maioria da população brasileira, a maio-
vocês entendem essa questão da redução da ria é negra. Mas eu me alegro que nós estejamos
maioridade penal para esses casos específicos, nesse espaço para que a gente consiga avançar um
que estão ganhando o apoio popular, e como vo- pouco mais, porque o Brasil é um Brasil de todos,
cês enxergam isso dentro de um contexto muito dos negros, dos brancos, orientais, e tal, assim por
maior que tem a ver com o mercado ilegal das diante. Ou nós nos assumimos como nação e nos
drogas, que recruta menores colocando-os em unimos, ou nós não vamos ter futuro nenhum,
conflito direto com a polícia. porque, por essas dores, isso aqui vira um inferno,
vira uma guerra civil terrível.
Pessoa da plateia
Meu nome é Adão, milito na questão racial já Professor Dennis
há alguns anos. Vou contar um caso bem curto no Na verdade, a pergunta sobre a redução da
foco da questão da Psicologia. Eu viajei para Salva- maioridade penal é uma questão muito complexa.
dor agora em fevereiro, fui participar do enterro da Há um problema muito sério que é uma desinfor-
minha ex-sogra, Judith Maria de Jesus, e o esposo mação que acaba gerando esse tipo de proposta. A
dela, que eu não conheci, chamava-se Francisco desinformação é que a criança adolescente menor
Pinto. Ela morreu com 90 anos, ia fazer 91 no dia de idade fica impune. Isso não é verdade. O Esta-
22 de maio passado, e ele morreu com 104 anos tuto da Criança e do Adolescente, o ECA, prevê me-
em 1976. Segundo a minha ex-esposa, ela e os ir- didas de punição, de julgamento desses criança e
mãos, eles tiveram cerca de 20 filhos, nunca viram adolescente infratores. É falso dizer que eles ficam
o pai sem camisa, nem uma única vez e, quando impune. E nem tão pouco quem defende os direitos
ela tinha 10 anos, ela acordou à noite,, ouvindo humanos, quem defende o ECA, que é contra a re-
um choro, era ele que estava chorando. Quando dução da maioridade penal, não defende a impuni-
ele faleceu, ela tinha 13. Isso foi aos 101 anos. A dade. É claro que os crimes hediondos precisam ser
mãe dela dizia pra ele: “Esquece, isso ai já passou, julgados. Mas a discussão que é complicada fazer
já foi. Foi há muito tempo, esquece”, ele chorava nesse campo é o seguinte: o que está por trás dessa
porque quando jovem, aos 15, sei lá, 16, 20 anos, ideia da redução da maioridade penal e de inten-
ele apanhou muito, várias chibatadas nas costas e sificar as punições criminais é a ideia da higieni-
ficou marcado e por isso, ele não podia ficar sem zação, ou seja, essas pessoas que praticam delitos
camisa e não queria passar essa dor para os filhos. são pessoas que não têm o que fazer, e devem ser
Sempre criou os filhos da maneira correta, agindo exterminadas. No fundo, o que as pessoas querem
da maneira correta, sendo honesto e trabalhando, é defender o extermínio, o genocídio. A ideia é que
sempre segurando as coisas. E a gente conta essas essas pessoas são pessoas que não servem, tem que
histórias, e nós ouvimos da parte do Movimento ser exterminadas. Alem de um espírito vingativo,
do Negro Unificado, igual a essa, muitas outras há uma ideia de higienização muito forte.
16 Em primeiro lugar, o Estatuto da Criança e do trabalho forçado, contenção das pessoas e conten-
Adolescente, que se critica muito, não é uma le- ção da rebeldia. Do mesmo modo que acontecia
gislação só para criança infratora, é para todas as antes: se você era um negro da casa, você podia
crianças e adolescentes. É um erro tratar o ECA ficar livre e se desenvolver ali, mas se você era um
como apenas um Código Penal para crianças e ado- negro rebelde, era levado pra senzala e trancado.
lescentes, pois ele é um Código Jurídico para todas Então, tem a mesma lógica.
as crianças e adolescentes. Então, se, por exem- Esse debate de redução da maioridade penal,
plo, alguém de classe média alta não deixa o filho esse negócio de crime hediondo, parece conversa
ir para escola, pode ser processado por não deixar daquela mulher Gloria Perez, isso aí é coisa dela,
o filho ir para escola porque este é um direito dele, que o parlamento abraçou. Quando se fala de cri-
o que consta do ECA. Se as prefeituras, por exem- me hediondo, as mortes, os homicídios são cri-
plo, não dispõem de equipamentos públicos de mes hediondos, mas os crimes hediondos de que
educação próximos à população que está alocada eles estão falando é a guerra às drogas. O proces-
ali, a prefeitura pode ser processada. O ECA é um so de guerra às drogas, o aprisionamento, a re-
Código Jurídico de Direito para todas as crianças e dução da maioridade penal fazem parte de um
adolescentes, não é só para o infrator. Infrator é um mesmo esquema. Então, se a gente fez um debate
capítulo do ECA. Segundo, o ECA não prevê impu- de acabar com as guerras as drogas, de descrimi-
nidade. E terceiro, não existe nenhum estudo que nalização de certas substâncias, etc., etc., os ca-
demonstre que o aumento da punição, o reconhe- ras vão perder lucro, isso é capitalismo, o racismo
cimento da punição significa uma redução da cri- se retroalimentando. Essa que é a questão. Mais
minalidade. Penso que essas são questões ideoló- uma coisa importante que você falou que esse é
gicas que são naturalizadas, são cristalizadas e que um discurso dos conservadores. Não é não, não
ficam no senso comum. Eu concordo com você, é é dos conservadores, o governo da Bahia… eles
bem complicado discutir isso, mas acho que o papel estão dizendo que nós estamos jogando pra di-
nosso é de fato, tentar quebrar essas barreiras, prin- reita, mas nós não podemos mudar o nosso dis-
cipalmente, trazendo essas informações. curso conforme a conjuntura, o debate da gente
não é perfumaria. Imagine se eu vou mudar o
Hamilton Borges meu discurso diante de tanta mãe que perdeu o
A primeira, é que esse debate não é um deba- filho, tanta gente aprisionada, Mas eu tenho que
te ingênuo e nem um debate moral, é um debate dizer ao mundo inteiro, porque é fato, o governo
para nos aprofundar nessas questões sem cair em da Bahia, o candidato do Partido dos Trabalha-
armadilhas. Existe um empreendimento industrial dores, pressionado pela Rede Globo e pelas em-
carcerário baseado nos Estados Unidos e que pau- presas que se beneficiam com essa onda de vio-
ta o mundo inteiro. Os modelos das cadeias brasi- lência, fez esse mesmo discurso: “Para os crimes
leiras é um modelo norte-americano de super max. hediondos, homicídios… a gente tá propondo 17
A gente esteve agora nos Estados Unidos, e fomos anos”, e ele, como candidato a governador, disse
visitar uma cadeia, a gente foi ver como que fun- que vai se empenhar para endurecer ainda mais
cionavam lá a indústria, as lojas, os pretos traba- o código penal, isso pra mim é um discurso con-
lhando, porque não tem emprego pra preto, não servador, mas saiu de um partido de esquerda
tem emprego para os mexicanos, para os latinos e quem é desses partidos precisa pressionar os
de um modo geral, então, é uma coisa que gera lu- seus companheiros a fazerem um retorno ao que
cro. A lógica prisional de construção de presídios eles, pelo menos, dizem que são os seus progra-
no Brasil está fazendo isso, os governos, inclusi- mas, porque o candidato ao senado na mesma
ve os democráticos participativos, estão dizendo: chapa defendeu em bom tom pena de morte e
“Vamos atrair as empresas”. Eles não trabalham prisão perpétua. Pena de morte e prisão perpétua
com a discussão de outra recepção do código de vai facilitar alguma coisa para a vida de pretos e
execução penal, o código de execução penal foi pretas? Vocês acham que a gente tem que ficar
recepcionado da forma que era. A Constituição de calado diante disso? Essa que é a questão, então,
1988 fala que todos são iguais perante a lei, e o não é um discurso de conservador.
código de execução penal de 82 diz que o traba- Adão, esse negócio que você falou das marcas
lhador aprisionado vai ganhar 70% do salário, ou no corpo, essas marcas no corpo vêm de todas as
seja, vai trabalhar de graça, é trabalho forçado. rebeliões da Bahia e talvez, no Brasil inteiro. A po-
Pensamos que a cadeia no mundo inteiro é exten- lícia militar do Brasil nasceu na Bahia em 1835, o
são da escravidão, a mesma lógica da escravidão: regente, o rei, o seja lá o que for da Polônia man-
dou que se criasse uma polícia para combater um logo negro? Do estudante negro para o estudante 17
quilombo chefiado por uma mulher chamada Ze- negro? Como que a gente aumenta isso?
ferina, criou-se a Brigada Militar. A Brigada Militar

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tinha como modus operandi, encontrar qualquer Pessoa da plateia
negro, matar e chicotear, depois tinha a devassa, Meu nome é Lidiane, sou psicóloga, trabalho na
se você tinha uma marca dessa, marca da escravi- área da saúde, na Atenção Básica, no município de
dão, imagine, no século 20, tinha a marca do mal. São Paulo. Eu queria que vocês falassem um pouco
Então, é por isso que essas pessoas escondiam es- da desmaterialização; e a segunda questão, que me
sas marcas. Agora, a polícia militar do estado da marcou bastante, são as dimensões do genocídio.
Bahia, de um governo democrático popular lan- Porque tem a morte efetiva, a morte clínica, vamos
çou a cartilha Pacto Pela Vida, Terra de Todos Nós. dizer assim, o corpo estendido no chão, os assassi-
Essa cartilha é a cartilha da tatuagem, cartilha natos, mas tem o genocídio dos que ficam. O obje-
lombrosiana, essa cartilha indica as marcas das tivo na Atenção Básica, na Secundária, na Febem,
pessoas que podem ser atingidas pela polícia, que é que se trabalhe com a população que ficou, com
podem ser mortas. Uma das marcas é o símbolo aquela comunidade, com aquelas mães, com os

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de Oxóssi. Várias pessoas negras estão morrendo irmãos. Qual expectativa ter para um adolescente
em Salvador e não têm a atenção do IML para a que está sob esses efeitos desde que nasce?
sua religiosidade. Não tem direito a um enterro, a
ser plantado, não tem direito a uma reza. Várias Hamilton Borges
pessoas estão sendo enterradas em cemitérios Pessoal, me permita ler uma passagem aqui.
clandestinos, aí sim, é a morte para um africano. Esse livro Afrocentricidade: uma abordagem epis-
Essas são as questões que nós precisamos com- temológica inovadora, Elisa Larkin Nascimento,
bater e tudo o que nós estamos falando aqui está Coleção Sankofa. Eu vou ler uma passagem aqui:
completamente relacionado à escravidão. A gente “O (incompreendido) exigiria que se interrogasse
fala com muita emoção porque a gente tá queren- a linguagem e a lógica dos povos africanos tradi-
do que esse negócio pare, que acabe. Nós precisa- cionais para aprender de forma profunda e nítida,
mos reaprender a tratar a morte, e a morte que está o funcionamento dos povos africanos contempo-
colocada. Nós nunca tivemos medo da morte, nós, râneos. Nossos ancestrais foram trazidos para o
africanos Mas nós temos sim, essa antecipação da novo mundo destituídos de liberdade, ou seja, em
morte, a morte na fase mais produtiva, a morte que grilhões, mas não chegaram destituídos de pensa-
não completa um ciclo, dessas pessoas não pode- mentos ou crenças sobre o que eles eram. Nossos
rem ficar velhas, esse que é o grande combate, ancestrais vieram com uma lógica e uma lingua-
essa é a pauta central que nós estamos colocando. gem de reflexão sobre o que significa ser humano
e sobre quem eles eram e a quem pertenciam e por-
Bruno Gonçalves, conselheiro do CRP SP que existiam. Somente por meio de uma interpre-
Hamilton, você falou que é necessário politizar a tação profunda da linguagem e da lógica da nossa
dor para os negros conseguirem se fortalecer. Que- própria ancestralidade. Seremos nós, os africanos
ria que você falasse um pouco dessa perspectiva diastólicos capazes de verificar os significados e
de politizar a dor e politizar o sofrimento. E se você as compreensões que determinadas comunidades
pudesse fazer um gancho com o que você colocou transportaram para o mafa da escravidão. Marim-
agora, com a religiosidade, com a memória ances- ba Ani, 1994, introduz o conceito de mafa e define
tral, com a memória histórica, com a memória da como grande desastre e infortúnio de morte e des-
diáspora, quer dizer, como que todo esse conjunto truição além das convenções e da compreensão
de memórias, de camadas, vai politizar o sofrimen- humana para mim, para ele, característica básica
to e fortalecer a nossa luta pela libertação. do mafa é a negação da humanidade dos africa-
nos, acompanhada do desprezo e do desrespeito
Pessoa da plateia coletivos e contidos ao seu direito de existir, o
Como o Conselho pensa em instrumentalizar mafa autoriza a perpetuação de um processo siste-
tecnicamente os profissionais para isso não ficar mático de destruição física e espiritual dos africa-
uma discussão fechada em guetos? nos individual e coletivamente”.
Por que eu fiz essa leitura aqui? A primeira
Pessoa da plateia questão que eu gostaria de falar era: eu repeti
O que a gente pode fazer para que essa discus- invariavelmente aqui que nós somos africanos,
são não seja só do psicólogo negro para o psicó- nós somos africanos, nós somos africanos, por-
18 que nós somos africanos, nós negros e negras, na apoiem na nossa luta e é importante que apoiem,
diáspora, somos africanos, o judeu em qualquer porque é uma luta do estado brasileiro, é uma
lugar do mundo ele se orgulha de ser judeu, in- luta da sociedade brasileira, mas quem tem que
clusive, tem cemitério, nós somos africanos, esse falar sobre nós somos nós mesmos. Nós quere-
é o grande legado e a partir do momento dessa… mos, inclusive, que os brancos comecem a fazer
eu considero que tem um monte de gente aqui reuniões para se dizerem como é que se sentem
que não é morena, mas mesmo que se diga que é sendo brancos, como é que se sentem na propa-
morena, a gente vai entender que mouro é aquela ganda do xampu, como é que se sentem passan-
pessoa de pele escura, que ocupou a península do pela batida policial, como é que se sentem na
ibérica, de qualquer modo, são africanos, certo? janela da televisão, super representados, os bran-
Essa é a primeira questão e a volta, revirar o pas- cos precisam abrir a boca, porque a gente chega
sado, trazer o nosso passado, mas não trazer só o aqui, fala como morre, como casa, como ama,
passado de sofrimento que também é importan- como chora, os brancos não falam nada. Tem que
te, mas trazer as nossas grandes realizações. Esse vim aqui falar de si, não perguntar como é que a
é um caminho importante e vai ser um caminho gente sofre, e nem querer ensinar a gente como
que vai ser difícil mesmo, não é fácil, nunca nin- é que a gente se defende. (Incompreendido) di-
guém disse que é fácil, é louco, ninguém disse zia o seguinte: “Os brancos são engraçados, eles
que é fácil, esse que é o debate, nós não estamos dão chute na bunda, depois querem nos ensinar
trabalhando com esse negócio, também trabalha- como nos defender do chute na bunda”, por isso
mos agora, mas a gente não trabalha só com esse que é importante, eu abriria até uma nova, um
negócio do real concreto, o movimento que diz novo tempo pra gente ouvir, a gente precisa ouvir
assim: “Olhe, vamos fazer uma reunião no CRP como vocês se sentem, isso é importantíssimo,
e dividir as fichas para depois dar a casa, dividir isso é chamando inclusive para a aliança, funda-
a cesta básica e o teu pedaço de terra”, nós esta- mental, radicalizada, né, dessa luta.
mos fazendo outra coisa, vamos fazer uma reu-
nião no CRP para discutir a vida intangível que Pergunta feita pela internet
ninguém toca, mas que é super importante, essa A partir da desmilitarização, quais os princí-
que é o grande barato desse movimento, foi um pios teóricos funcionais e práticos que o movi-
movimento esse movimento negro, haja respeito mento social detém para sustentar essa impor-
pelo Movimento Negro brasileiro, haja respeito, tante afirmação?
porque nós colocamos essa zorra na pauta nacio-
nal, com todas as dificuldades, com tudo contra a Hamilton Borges
gente, nós colocamos na pauta nacional, vamos São Paulo, tudo aqui é pra frente, só o ódio
começar a responder. do povo preto que é antigo, mas tudo é moderno
Quanto a politizar o sofrimento, concretamen- aqui. Mas o ódio é o mesmo, né, irmão?
te, como foi que nós começamos a falar sobre Então, quando a gente percebeu tudo isso,
isso? Nós, em 2005, vimos, em todos os lugares nós levantamos a seguinte questão: que a gen-
do país, uma pilha de cadáveres se amontoando te tem que parar com esse negócio de ficar indo
na nossa frente. Nos lugares em que nós mora- para os grandes debates, fazendo debates que dá
mos, não existia uma palavra sequer sobre isso, três gatos pingados, sentindo-se a cereja do bolo,
ninguém dizia nada sobre isso. Morreu a Dorothy tirando onda de distinção social. A gente tem que
Stang, nós sentimos, nós sofremos com a morte encarar que nós estamos numa situação muito di-
da freira. A gente viu as organizações de direitos fícil e que nós temos que organizar o nosso povo,
humanos, as organizações sociais, mandarem to- estar junto do nosso povo, e chamar o nosso povo
neladas de cartas para o governo federal para que para a defesa. E, aí, nós articulamos uma grande
o governo tomasse uma providência e intervisse reunião com mais de 18 pessoas e todas as pes-
naquele estado, e foi o que o governo federal fez. soas tinham uma experiência de morte na família
Todas as instituições de proteção dos direitos hu- ou de algum amigo, e morte pelas forças estatais.
manos se mobilizaram para alcançar os autores, Então, pegamos a palavra de ordem, que é Reaja
prender e julgar os autores, enquanto a nossa ou será Morto, e fomos às ruas, ocupamos a Se-
vida, nós percebemos que não tem o menor valor, cretaria de Segurança Pública. Para dizer que nós
se não tiver para nós mesmos. A primeira questão politizamos a nossa morte e o nosso sofrimento,
é fazer o nosso próprio discurso, por mais que nós a gente se espelhou muito no povo palestino,
achemos que é importante que os brancos nos que, a cada morte, os caras pegam o fuzil, bo-
tam a bandeira, botam o caixão no ombro e vão mesmo sendo civil? Porque a desmilitarização não 19
cantando suas músicas. A gente precisava fazer significa a extinção da polícia militar porque a po-
isso, foi o que nós começamos a fazer, politizar a lícia civil também é militarizada, existe uma mili-

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


nossa morte é colocar o aspecto mais importante tarização do espaço urbano. Nós precisamos falar
da nossa existência que é a nossa vida aqui, ago- é da desmilitarização da polícia militar e a desmili-
ra, como uma exigência política, não é uma rei- tarização do espaço urbano.
vindicação mas uma exigência política, porque Quando perguntamos quais são as sequelas
se você não está vivo, tudo mais é perfumaria, do genocídio, nós estamos debatendo é o racismo.
não adianta a gente lutar por mais nada. E esse Nós somos um grupo de familiares, de pessoas
sofrimento é um sofrimento que nós temos, um que perderam familiares e o grupo de familiares
sofrimento profundo. A gente não tem o direito de amigos de presos, nós precisamos nos reunir
de se calar sobre isso Precisamos redefinir a nos- para discutir o impacto disso na nossa humanida-
sa concepção de humanidade e redefinir a nossa de, na nossa vida. É muito cigarro, muita bebida,
concepção de nação. Nós precisamos de uma na- é muita dor, é muito sofrimento, é muita depres-
ção que inclua os indígenas, para que eles não se- são, que não é contabilizado, não tem política para

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


jam chamados de baderneiros quando exigem o isso, nós precisamos lutar para que as pessoas não
pleno direito à sua existência, à sua terra, e à sua morram, como estão morrendo nessa indignidade.
vida digna. Essa que é uma redefinição importan- Continuando a responder as questões, digo que
te. Então, para isso, nós precisamos de uma luta temos uma crítica profunda ao governo federal. A
de libertação, eu não acho que ninguém aqui tá gente tem possibilidade, porque a gente não pega
propondo ninguém pegar em armas, até porque, dinheiro do governo federal, nem de governo ne-
se a gente estivesse propondo isso, não ia falar nhum. Mas o Juventude Viva é o quê? Quem é que
aqui na CRPwebTV. coordena o Juventude Viva? Ela é negra? Então,
Respondendo a pergunta de como atuar, diria Juventude Viva tem sido uma bolsa de emprego e
que existem várias maneiras de atuar. Vocês não nada contra os companheiros, não estamos falan-
imaginam o quanto é importante o tipo de atuação do mal aqui dos irmãos que optaram por essa luta,
que tem sido feito aqui no CRP, que permite que a o momento é de agregar, o momento é de chamar
gente faça esse debate. E existe uma atuação mais para junto, mas nós precisamos perguntar aos ir-
dura, uma atuação que é cultural, existe a atuação mãos como que eles aceitam isso?
que é mais radicalizada, existe uma atuação que Quanto à ação no sistema prisional, porque
é mais negociadora, todas estão no mesmo pata- socioeducativo é sistema prisional, é a mesma
mar, nenhuma é mais importante do que a outra. coisa. Tem uma ação que tem que ser de instituir,
A presença da gente aqui é uma atuação forte, pre- novas formas, brigar. Agora, tem que organizar
cisa se fortalecer esse tipo de ação que não pode para fora também, eu acho, como a gente tá fa-
ser uma coisa sazonal, como é efeito de facebook, zendo, associação de familiares e amigos de pre-
tem que ser uma coisa permanente e que você faça sos, associação de familiares e amigos dos me-
em sua casa, que você faça no seu trabalho, mas ninos, porque essas pessoas que têm, com todo
que você faça. Sobre a desmilitarização, como nós respeito à pastoral carcerária, às associações, são
falamos aqui, essa polícia militar vem perseguin- os familiares que lutam, que têm que cobrar e que
do com o mesmo modus operandi de escolher o têm que representar essas pessoas que estão en-
inimigo interno, de eliminar as pessoas e de usar carceradas, certo? As que estão levando à morte
a brutalidade. A polícia militar ganhou uma for- o nosso povo. Beleza total?
ça no período da ditadura militar, aí chega novo “Povo negro unido, povo negro forte, que não
ordenamento democrático e ela continua. Desmi- teme a luta, que não teme a morte”, essa é a pala-
litarizar a polícia, mesmo com a recomendação vra de ordem.
da ONU, não é fácil. No topo da polícia militar, há
uns brancos ganhando muito bem, obrigado, com Professor Dennis
uns privilégios com direito de dar tapa na cara de Todas as perguntas aqui vão muito na ideia do
soldado. Imagina se eles vão querer perder esses que fazer. Acho que ficamos tão consternados com
privilégios. Agora, nós precisamos fazer a luta po- as situações que ficamos ansiosos para resolvê-
lítica, a luta social para que nós consigamos, nesse las. Quando eu tinha 13 para 14 anos, estava com
primeiro momento, acabar, extinguir a polícia mi- um amigo meu da escola e fomos procurar empre-
litar. O segundo momento é saber como que a gen- go no Shopping Center Ibirapuera. Em um certo
te vai criar instrumentos de controle dessa polícia, momento, uma mulher branca nos olhou, cochi-
20 chou no ouvido de um segurança que nos catou ramente, quando você luta contra o racismo,
pelo braço, nos levou pra sala de segurança, deu contra o machismo também, implica num desloca-
uns tapas na gente dizendo que a gente estava as- mento de pessoas, sujeitos, e isso é muito difícil,
saltando. Eu acho que foi em 77, quando ocorreu porque quando você reivindica a sua posição de
esse episódio. Até mais ou menos anos 90, 92, eu cidadão, como homem negro, como mulher negra,
nunca mais consegui entrar naquele shopping, e significa o homem branco e a mulher branca a se
guardei isso pra mim. Seis irmãos, meu pai falava reposicionar enquanto tal, porque esse homem
assim: “A forma da gente superar o racismo…”, branco, mulher branca, ele se forma a partir da
meu pai é um homem negro, “…é você estudar pressão do negro, não é isso? Os privilégios raciais
muito, você ser competente, você demonstrar que de que eles usufruem é que formam esse éthos
tem competência, supera isso”, e a gente era quase branco, é assim que resolve, tanto é que para o ho-
que forcado Que é muito louco assim, como é que mem branco, mulher branca, a questão étnica não
o meu pai falava pra gente? Minha família… Nós é problema. Tem uma pesquisa muito interessante
fomos bem na chicotada a estudar, eu sempre fui da Lia Shucmann, que discute o conceito de bran-
um bom aluno, não porque eu queria, mas na por- quitude, e o que ela fala é assim: o branco não fala
rada que era isso. Meu irmão mais velho já era que é da etnia branca, ele fala que é ser humano, a
mais malandro, conseguiu escapar desse troço aí. humanidade está resolvida para eles. E que huma-
Então, foi um pouco assim. Por que que eu conto nidade que é essa? Uma humanidade constituí-
essa história? Quando aconteceu esse episódio co- da… não é um conceito universal de humanidade,
migo, eu fiquei com muita vergonha de contar é uma humanidade construída a partir dos privilé-
para o meu pai, fracasso, aquela coisa, guardei pra gios de que eles usufruem, de ser privilegiado
mim, né, fui contar isso só nos anos 90, para a mi- numa seleção de vaga de emprego, de não ter to-
nha esposa. Eu acho assim, por mais que a gente das as barreiras sociais, mesmo sendo brancos po-
fique bastante impactado com os dados, com esse bres, ressalto isso, mesmo sendo branco pobre.
tipo de situação, genocídio, racismo, tem uma coi- Sempre conto uma historinha interessante, famí-
sa que é muito importante, a gente tem que valori- lia branca pobre de uma favela e família negra po-
zar, a nossa luta, a nossa trajetória, não permitir bre de uma favela. Aquela menina pobre vai aos
que isso aconteça, os jovens de hoje não permitem 14 anos procurar emprego, ela consegue emprego
que isso aconteça. Minha filha, ela é farmacêutica de recepcionista, consegue emprego numa loji-
lá da Drogasil, responsável técnica em uma loja lá nha, a mulher negra não, no mínimo vai ser faxi-
em Moema, ela já foi várias vezes discriminada ra- neira. Isso é um dado objetivo, o Hélio Santos es-
cialmente por funcionários subordinados a ela e creveu um livro muito legal, chamado Um homem
por clientes, e ela tem tido uma postura bastante lésbico, é um romance em que ela fala da história
ativa em relação a isso, processando, tal, tudo de duas mulheres negras e um episódio é muito
isso, né? Claro que isso desmonta a pessoa, mas interessante, uma menina negra, ela é órfã, as três
ela tem tido energia. Daí, eu fico muito feliz assim, irmãs vivem juntas, ela casa no Bexiga, com um
que pessoas, jovens, gerações posteriores à minha italiano pobre, operário, já que no bairro, naquela
tenham tido uma postura diferente da minha, eu época, tinha essa presença de italianos operários
acho isso um avanço nosso, um avanço. Eu tô co- imigrantes e pessoas negras. Quando ela casa, en-
locando isso porque a impressão que dá é que gravida, morre etc., e a trajetória dessa família ita-
nada mudou, eu acho que mudou muita coisa, não liana é de enriquecimento, de ascensão social, e a
por parte do Estado, mas por parte da nosso postu- família negra não, mantém-se no mesmo status,
ra enquanto jovens, enquanto sujeitos negros, ne- depois de um tempo, as tias, a vó dessa menina,
gras, e isso mostra pra gente que a gente tem ener- que são brancas, acabam tendo uma condição so-
gia suficiente para resistir e para mudar esse cial muito mais avançada, então, isso é um dado
mundo. Então, por mais que a gente fique bastante objetivo, né? O (incompreendido) raciais, que é o
ansioso, sinta-se um tanto impotente diante da que a população branca tem, lhe confere uma situ-
violência, como se coloca isso, essa trajetória his- ação, um status de humanidade e, quando você
tórica comparada, por exemplo, ao que era antes, propõe, reivindica igualdade, reivindica o fim do
como as pessoas reagiam, o espaço que você tinha racismo, o que significa? Significa deslocar a posi-
para expressar isso, que agora é muito importante. ção dessa pessoa. O que são cotas? Tirar vaga de
Eu penso o seguinte, olha, a questão dos proble- branco, os caras são contra mesmo! Não vamos
mas que foram apontados aqui, a luta contra o ra- pensar que vai ser rapidinho, não é nada, a socie-
cismo, ela tem dois aspectos importantes: primei- dade vai até quando mexe com o seu privilégio! Aí,

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