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ó

Usos da interjeição

ó
Expressão/Indicação de:
Admiração
Dor
Repugnância
Surpresa
Tristeza
Estrutura e Organização
25 narrativas com divisões enumeradas.
18 são de temáticas que se entrecruzam ao longo da narração -
matérias distintas relacionadas de alguma maneira ao corpo físico,
àquilo que é corpóreo, à matéria do corpo;
7 trazem os Ós e suas relações com os corpos.
Sumário
1. Manchas na pele, linguagem 14. Prédios vazios, contra fatos, arquitetura
2. Túmulos ruim, simultaneidade
3. Tocá-la, engordar, pássaros mortos 15. Quinto Ó
4. Ó 16. Sinais de um pai sumido, canção
5. Perder tempo, vontade, uma cena escura 17. Elogio ao bode, ironia
18. Sexto Ó
6. Galinhas, justiça
19. Coisas abandonadas, gargalhada,
7. Segundo Ó
canção da chuva, previsão do tempo, ida à
8. Terceiro Ó
Lua, ida a Marte
9. Bonecas russas, lição de teatro 20. Infância, TV
10. Canhota, bagunça, hidrelétricas 21. Esquecer os sonhos, ovas
11. Manias, trincheira 22. Epifania, provas, erotismo, corpo-sim,
12. Recobrimento, lama-mãe, urgência e corpo-não
repetição, cachorros sonham? 23. Mulheres nuas, segunda via autenticada
13. Quarto Ó 24. Sétimo Ó
25. No espelho
,elep an sahcnaM
Meu corpo se parece muito comigo, embora eu o estranhe às vezes.
Tateio minuciosamente as pequenas saliências da pele, os pequenos pelos
que vão crescendo enquanto caem, e empalidecem, e parecem, aos
m e g a u g ni l
poucos, cobertos de giz. [...] Os pequenos pelos haviam caído em rigorosa
geometria, como aqueles círculos em plantações de milho, ou trigo, na
Europa, Austrália e nos Estados Unidos, que muitos tomam por sinais
extraterrestres. Encontrei ainda, sobre meu lábio direito, um semicírculo
menor, um pouco mais pálido, produto do mesmo fenômeno. Micose?
Stress? Fungo? Musgo? – logo alguns amigos diagnosticaram, com
aquele devaneio da medicina amadora, e me alegrei com a possibilidade
de ganhar a companhia, mesmo que de uma doença, de alguma coisa com
nome definido. Mas não perdi o espanto sobre a origem daquilo. Qual gen
ou terminal nervoso ordenou que caíssem neste formato circular perfeito?
Em que língua interna conversaram? [...] (p.11-12)
[...] Apenas a nós, que trocamos tal fluxo pelas finas modulações da voz,
,elep an sahcnaM
que entre todas as matérias internas e externas, entre todos os sólidos, os
musgos e as mucosas, entre o que voa e o que afunda, entre o que plana e
m e g a u g ni l
o que nasce do apodrecimento, selecionamos apenas a voz e o vento,
organizados em acordes, para tomar por mundo [...] (p. 21)

[...] Isolados em seu próprio corpo, que já não parecia parte desta escrita
única, tiveram de usar a matéria mais leve e de fácil manuseio de que
dispunham (a voz), e substituir com ela o que haviam perdido. Procuraram
então marcar, para cada coisa que sumira, um som próprio, que a
substituísse e presentificasse, ainda que de modo incompleto. [...] E assim,
por precaução, nunca mais atribuíram matéria à linguagem, mas apenas
vento e signos sem matéria. Com isto, não corriam mais perigo. Traziam
em seu próprio pulmão e memória toda a riqueza e diversidade de que
antes faziam parte. (p. 30)
mais alto que o som das notícias rasgando as revistas, a pancada de chuva,
um único ó que seja mas seja contínuo, não um mantra mas um zumbido de
vespa, um zangão na avenida, [...]

feito microfonia, um ó que fosse crescendo também nos bichos, nas colmeias,
no pelo dos ursos, na lã das mariposas e das taturanas, no chiado do leão
ó

sem dentes que segue de longe a própria matilha sem ouvir o ó crescente das
hienas que comem, comem neste momento o seu próprio cadáver, um ó aos
ratos, à astúcia entocada, ao espinho na pata, um ó em dó, em si, de lata, de
lata, panelas de querosene incendiadas, um ó pelo menino assassinado por
outro menino, um ó pelo seu assassino, um ó de todos os meninos, sem barba,
sem pelo e sem castigo (p. 60)
Recobrimento, lama-mãe, urgência e
repetição, cachorros sonham?
[...] Debaixo desta capa laranja pequenos besouros, pistões de pó e tempo, unidades
de luz e de asa, cabelo e água escondem-se, protegidos pela cor. A lama imóvel
acima deles perscruta enquanto emite ainda os mesmos sinais – ventos ionizados,
chuva ácida, futuras ovas de salmão – mas confunde-se, pois não vê que criou ela
mesma a cor laranja em sua tentativa de recuperar aqueles que deixou fugir.

Além disso, [...] a crosta calcinada dessa região de contato, ao produzir tantos
disfarces diferentes, fez com que comunicassem entre si e se reproduzissem. Quer
esta comunicação e sexualidade sejam uma sombra distorcida daqueles que ali se
escondem, quer, ao contrário, um movimento autônomo, espécie de declaração de
independência para além de qualquer controle, o fato é que línguas e cópulas
multiplicaram-se por todo o orbe. Tudo fala, tudo penetra e reproduz, dissolve-se
para amalgamar-se novamente, morrendo para alimentar. [...] (p. 21)
O inferno, se existe, é com certeza um lugar cheio. O sofrimento solitário pode
ser melancólico ou extremamente assustador – em filmes de terror, as vítimas
estão quase sempre sozinhas –, mas o horror maior está associado à multidão.
açitsuj ,sahnilaG
[...] Como não sentir aflição numa estrada, quando ficamos presos atrás de um
caminhão cheio de porcos? Ou numa granja, diante de uma jaula de galinhas
que tentam se mover num espaço absurdamente comprimido? (p.73)

[...]A multidão, tornada coisa física, peso e matéria, torna-se também


repugnante [...] (p.78)

Talvez a própria ideia de justiça comungue este movimento de compressão, se


não física, simbólica, aplicada a cada uma das histórias a ser julgada. A
sentença, para que sentencie, precisa encarar cada sentenciado um pouco como
uma ave no galinheiro, sem especificar a cor de sua penugem, as notas de seu
canto nem o tom do seu penacho. Deve ignorar a longa cadeia causal que levou
ao ato ilegítimo que, caso fosse reconstruído minuciosamente, acabaria quase
sempre por justificar-se.(p.82)
Bonecas russas, lição de teatro
Ainda como numa gravura, um enorme processo de transferência literal de uma
superfície para outra está na base de tudo o que funciona ali – o pé na areia, a marca
do lençol na pele de um corpo depois de horas de sono, os sulcos de um pente no
cabelo, a fossilização de uma superfície mole pelo mineral. Esta é a boneca russa
principal, no centro de todas as outras: o fato de uma superfície aceitar a outra,
deixando-se imprimir por ela. (p.102)

Canhota, bagunça, hidrelétricas


Na verdade, a bagunça e a desordem são o que resta da promessa de harmonia, de
sermos sequestrados pelo acaso, incluídos numa cifra de poeira e ventania. São elas
que nos unem ainda à enchente, à ruína, à liberdade da catástrofe, como frações
homeopáticas do tombo da cachoeira ou do despedaçar de corpos. (p.116)

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