Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Felippe Lattanzio
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte-MG, Brasil
Resumo
A pergunta sobre a gênese da criação artística perpassa há muito a civilização,
intrigando artistas, filósofos, psicólogos e toda uma gama de teóricos. A partir de
um breve diálogo com alguns escritores e músicos, procuraremos, neste artigo,
pensar o fenômeno do processo criativo principalmente a partir da psicanálise,
considerando diferentes linhas de raciocínio: a sublimação como destino
da pulsão; o fator pulsional-quantitativo como indicação de dom; a relação
oscilante do eu com as instâncias ideais; os processos primário e secundário
como possíveis correlativos de inspiração e método e, por fim, a participação
necessária e muitas vezes destrutiva da pulsão de morte na criação.
Abstract
For a long time, the question about the genesis of artistic creation crosses
the civilization intriguing artists, philosophers, psychologists and several
theoreticals. Starting with a brief dialogue with different writers and musicians,
we will try, in this article, to think the phenomenon of the creative process based
on some psychoanalysis concepts: the sublimation as a destination of the drive;
the drive-quantitative factor; the oscillatory relation of the Ego with the ideals;
the primary and secondary processes as possible correlatives of inspiration
and method; and finally the required participation of the death drive in the
creativeness.
1
Felippe Lattanzio
Por que criamos? Essa pergunta há Dizia ele que o Brasil teria um grande po-
muito perpassa nossa civilização, tendo sido eta quando surgisse alguém com a discipli-
já respondida de várias maneiras distintas. na dele e o talento de Vinícius de Moraes1.
Vários escritores, pintores, músicos e toda Mário Quintana escreveu, em seu Caderno
uma gama de artistas já tentaram respondê- H, que poesia é 10% de inspiração e 90%
la, criando teorias explicativas para a gê- de transpiração. Tais diferenciações, pois,
nese do próprio processo criativo. Por que são muitas vezes difíceis de se proceder,
criamos? Uma pequena frase que, na verda- dado que as coisas se encontram bastante
de, se desdobra em vários outros questiona- amalgamadas. Talvez um grande paradigma
mentos: por que sentimos a necessidade de dessa interpenetração entre a inspiração e
criar? Por que algumas pessoas são artistas os quesitos técnicos seja um improviso de
extremamente criativos e outras não? O que jazz. A esse respeito, conversando certa vez
as diferencia? Até quanto a criação é deter- com Augusto Rennó, um virtuoso guitarris-
minada por fatores psíquicos e até quanto ta de jazz fusion, este me disse que sempre
o é por elementos técnicos? Quais forças que improvisa ou compõe utiliza de várias
estão implicadas num processo criativo? O escalas diferentes (maior, pentatônica, me-
que o faz mover-se? Por que criamos? Está nor harmônica e várias outras), mas no mo-
dada, enfim, a questão. mento em que toca ou escreve não as tem
Antes, porém, de proceder a uma re- em mente. Ele sabe, no entanto, que o co-
flexão propriamente psicanalítica, farei uma nhecimento destas é necessário para que
breve investigação de caráter introdutório, ele tenha essa intuição e sensibilidade mu-
sobre os motivos que os próprios artistas re- sical. Pergunta-se, então: o que é inspiração
latam para o seu “criar”. A escrita, para eles, e o que é técnica? Mais do que isso: de onde
é sentida muitas vezes como uma necessi- vem a inspiração? Veremos, mais à frente,
dade – vários escritores relatam que escre- como essa distinção pode ser comparada
ver não é uma questão de opção, é antes um com os processos primário e secundário,
imperativo: bem como a relação entre estes.
Criar também não deixa de ser uma
A melancolia ameaça. atividade política. Em alguns mais, em outros
Queria ficar alegre
menos, o endereçamento da obra é também
sem precisar escrever,
sem pensar uma variável importante para responder à
que labor de abelhas pergunta inicial a que nos propusemos. Po-
e vôo de borboletas der-se-ia dizer: por que criamos? Para co-
precisam desse registro. (...) municar com alguém, para mostrar algo. De
(PRADO, 2002, p. 433)
fato, para alguns, isso pode ser identificado
como o que os faz criar. Nesse sentido, vale
Esse trecho do poema “Salve Rainha”,
destacar dois trechos da Trilogia Suja de Ha-
de Adélia Prado, relata bem tal caracterís-
vana, de Pedro Juan Gutiérrez, para exempli-
tica. A escrita parece, para muitos artistas,
ficar tal elemento:
cumprir uma função organizadora, talvez de
impedir que algo da ordem do inominável Escrevo para cutucar um pouco e obrigar os
transborde e, assim, dar um destino possível outros a cheirar merda. É preciso baixar o fo-
ao pulsional. cinho até o chão e cheirar merda. Assim ater-
João Cabral de Melo Neto dividia os rorizo os covardes e fodo com todos os que
gostam de amordaçar a nós, que podemos
poetas entre aqueles que tinham a poesia falar. (GUTIÉRREZ, 2003, p. 82).
espontaneamente, como presente dos deu-
ses, e aqueles - entre os quais ele mesmo se
situava - que a obtinham após uma elabo-
1 Quem conta desse episódio é Caetano Veloso, no documen-
ração demorada, como conquista humana. tário Vinícius (2005), dirigido por Miguel Faria Júnior.
Não me interessa o decorativo, nem o boni- res de laço social e que, no entanto, mantêm
to, nem o doce, nem o delicioso. [...] A arte uma relação indireta com a sexualidade.
só serve para alguma coisa se é irreverente,
atormentada, cheia de pesadelos e desespe-
O termo sublimação aparece publica-
ro. Só uma arte irritada, indecente, violenta, do pela primeira vez nos Três ensaios sobre
grosseira, pode nos mostrar a outra face do a teoria da sexualidade, de 1905. Nesse tex-
mundo, a que nunca vemos ou nunca quere- to, Freud vê a sublimação como um dos três
mos ver, para evitar incômodos à nossa cons-
possíveis desfechos da pulsão após a dispo-
ciência. (GUTIÉRREZ, 2003, p. 27).
sição perversa polimorfa infantil. Da primei-
ra possibilidade, Freud afirma que “quando
Procedida essa breve investigação, que
todas as disposições se mantêm em sua pro-
considero importante por suscitar algumas
porção relativa, considerada anormal, e são
questões que pedem uma elucidação me-
reforçadas com o amadurecimento, o desfe-
tapsicológica, passemos à reflexão psicana-
cho só pode ser uma vida sexual perversa”
lítica, que buscará responder, até onde lhe
(FREUD, 1905, p. 223). O segundo desfecho
cabe, a tais questionamentos.
ocorre quando,
cas individuais favoreçam esse processo, psiquismo das pessoas, dadas as restrições
como especularemos mais adiante. Mesmo à satisfação pulsional direta que a moral se-
sem saber dessas características, podemos xual civilizada impõe (FREUD, 1908, 1929):
pensar na sublimação e no recalque como
excludentes? De maneira alguma. É preci- Uma outra técnica de resistência contra o so-
frimento se serve das transposições da libido
so enfatizar: a sublimação não é excludente
(...). A tarefa a ser desempenhada é trans-
em relação ao recalque. Pelo contrário, po- por os alvos da pulsão de tal modo que eles
de-se até pensar que o recalque impõe que não possam ser atingidos pela repressão do
a libido se desvie do alvo original, dando, mundo exterior. A sublimação das pulsões
então, margem tanto à sublimação quanto à presta aqui a sua ajuda. Na maioria dos ca-
sos se alcança quando se consegue aumentar
formação de sintomas. De fato, a análise que suficientemente o ganho de prazer a partir
Freud faz de Leonardo da Vinci no texto de de fontes oriundas do trabalho intelectual e
1910 mostra a co-ocorrência, no artista, de espiritual. O destino pode, então, ser menos
profunda capacidade sublimatória e sinto- avassalador para a pessoa. (FREUD, 1929, p.
211)3
mas neuróticos. Além disso, as expressões
artísticas de da Vinci guardam estreita re-
lação com seus complexos inconscientes, De acordo com essa passagem de O
como podemos perceber na análise feita mal-estar na civilização, poderíamos pensar
do famoso quadro Mona Lisa: após ter exa- que sublimamos para encontrar um meio
minado vários trechos do diário de da Vinci, de satisfazer a pulsão no cerne de uma so-
Freud suspeita que o sorriso enigmático da ciedade repressiva. Não podemos é cair na
Gioconda é, na verdade, o sorriso da mãe perigosa armadilha de inverter esse racio-
de Leonardo, que este perdera “e que muito cínio e pensar que a repressão de nossa so-
o fascinou, quando novamente o encontrou ciedade é saudável e favorece as grandes
na dama florentina” (FREUD, 1910, p. 118)2. realizações culturais, já que deixa à dispo-
Dessa forma, os produtos da sublima- sição dos sujeitos uma libido reprimida que
ção não só convivem com a neurose como está pronta para receber o desígnio de se
são passíveis de interpretação, revelando as- sublimar. Alguém poderia argumentar: “se
pectos recalcados da sexualidade do artista. a sublimação é um desvio dos interesses
Se não é excludente, ela também não favo- sexuais, a civilização e sua moral, ao exigir
rece o recalque. A consciência, afinal, não renúncias sexuais aos indivíduos, contribui
irá gastar forças libidinais com a repressão para que ocorra o processo sublimatório”.
e outros mecanismos defensivos – uma vez Em concordância com Freud, penso que
que essa libido está sendo já sublimada. esse ideal do asceta criador não faz sentido,
Freud considera, por muitas vezes, a e um raciocínio do ponto-de-vista econômi-
sublimação como um mecanismo vital para o co do aparelho psíquico argumenta a favor:
as exigências do eu, como disse Freud. Tais Pois como alguém pode continuar falando
exigências relacionam-se com o supereu, em criação, qualquer que seja ela, inclusive a
literária, quando um método está envolvido?
fazendo com que o eu, na sublimação, este- E, do mesmo modo, pode-se continuar falan-
ja comprometido com seus ideais. Ao mes- do em método o caminho que leva a uma pro-
mo tempo, é preciso um desvio, uma trans- dução cuja marca é a originalidade e espon-
gressão dos ideais para se tornar um artista taneidade? (CARVALHO, 2002, p. 68)
criativo: alguém que leva demasiadamente
a sério sua instância ideal, que não se dá A autora continua sua reflexão, apon-
brechas para desligar-se dela ao menos em tando que o método possível para a criação
algum momento, dificilmente se tornará um é de dupla face: um dos lados é a atenção
artista criativo. De outro lado, o eu não faz do autor, ligado à técnica; o outro é a abertu-
nada que não ache que seja valorizado e, ra para o imprevisível, o irruptivo. “Segundo
obviamente, seus critérios de valorização Freud, essa atenção não é outra coisa que
encontram-se nos seus ideais. não o trabalho do pré-consciente/cons-
De uma ponta, transgressão dos ide- ciente, enquanto que a imprevisibilidade e
ais; de outra, auto-apreciação segundo estes inevitabilidade do erro apontam para o in-
mesmos ideais. Essa relação do eu com os consciente e sua presença constante” (CAR-
ideais nos remete, portanto, a um movimen- VALHO, 2002, p. 69). O texto literário nos é
to oscilante, necessário para que haja um apresentado através da elaboração secun-
sujeito que crie. Sua diferença em relação dária, assim como o sonho o é.
ao sujeito inibido é justamente a relação
Entre todos os sinais da secundaridade, a
tensa que o inibido tem com suas instâncias
ligação talvez seja o mais marcante. Passa-
idéias, com as quais ele mede seu desem- gem dos processos primários aos processos
penho. O supereu pode, ao assumir a função secundários: uma energia livre (não ligada)
de ideal do eu, tanto massacrar quanto va- tendendo à descarga, utilizando os compro-
lorizar o ego, tornando-o inibido ou criativo. missos da condensação e do deslocamento,
fazendo coexistir os contrários e indiferente
Imaginemos dois sujeitos afetados por algu- à temporalidade, transforma-se em energia
ma lembrança que, por exemplo, os remeta ligada cuja descarga é adiada, contida e li-
às suas fantasias infantis: um pode achar isso mitada, obedecendo às leis da lógica e su-
ridículo e motivo de vergonha; o outro pode cessão temporal. [...] Com efeito, o escritor
opera com conhecimento de causa, mas o
criar uma obra de arte a partir dessa expe-
trabalho que é objeto de sua consciência e
riência. No seio de tudo isso, afinal, está a de sua profissão se refere à secundaridade
relação desses sujeitos com seus ideais. do texto, ao que funciona para chegar-se a
Pulsão, sensibilidade artística, ca- uma obliteração do inconsciente que ele se
ráter de explorador, condições objetivas esforça em encobrir. Ou, mais precisamente,
a um jogo de claro-escuro pelo qual a relação
e históricas, relação pendular com as ins- de velamento-desvelamento do inconsciente
tâncias ideais... A despeito de todas essas deixa sempre na sombra a eficácia psíquica
características de um artista, como se dá a do texto para se interessar apenas por sua
criação? O que há de aprendizado e o que eficácia literária. (GREEN, 1994, p. 17-19)
há de criação pura? Há como distinguir
isso? Talvez uma comparação dos processos Criar significa transformar, “fazer passar da
primário e secundário do psiquismo com a não-representabilidade da fantasia incons-
inspiração e o método nos ajude a entender ciente para a não-representabilidade da
tal questão. escritura, passando pelas representações
Numa obra de arte, de forma para- pré-conscientes” (GREEN, 1994, p. 25). Se,
doxal, convivem o método e a criação, como portanto, existe método na criação artística,
nos lembra Ana Cecília Carvalho: “ele consiste em um movimento constante e
espiralado de ir e vir nos registros psíquicos
que circunscrevem o campo pulsional, in- cia, aparece no cerne dos processos criati-
cluindo aí a variabilidade irredutível do ob- vos. Trata-se da pulsão de morte, conceito
jeto” (CARVALHO, 2002, p. 72). Dessa forma, introduzido em 1920 por Freud na teoria
entendemos melhor como se dá a relação psicanalítica para dar conta de fenômenos
entre inspiração e técnica no ato criativo. de compulsão à repetição que respondiam
à outra economia que não a do princípio do
prazer. Há um princípio mais fundamental
Há algo a mais: a necessidade de considerar o do aparelho psíquico, que busca restabe-
mortífero lecer um estado anterior das coisas, estado
não organizado.
Syd Barret, criador e principal com- É em 1923, com O Ego e o Id, que
positor nos primórdios do Pink Floyd, espe- surge a segunda característica dessa classe
cialmente no álbum The piper at the gates of mais fundamental de pulsões: a destrutivi-
dawn, de 1967. No auge de sua criação ar- dade. Nesse texto, a sublimação é relaciona-
tística, começa a se afundar nas drogas. No da à dessexualização e à desfusão pulsional.
próprio ano de 1967, seu comportamento Para que a libido esteja livre para sublimar,
em palco e estúdio fica cada vez mais im- é preciso que esta abandone, antes, os ob-
previsível e distante. Após gravar algumas jetos, e se volte sobre o Eu. Para tal, ocorre
músicas do álbum A Saucerful of Secrets, de o processo de dessexualização, de desliga-
1968, é dispensado do grupo, devido a pro- mento. Que força, pois, é responsável por
blemas de comportamento. A intenção do desligar, desunir, voltar ao não organizado?
grupo era de, mesmo com a sua saída, con- A pulsão de morte, por excelência. Assim,
vidá-lo para participar de concertos e gra- percebemos como que, no centro do pro-
vações, mas seu comportamento errático e cesso sublimatório, se encontra o mortífero.
estranho aumentava tanto que essa idéia foi Surge, então, um Eu investido libidinalmen-
abandonada pela banda6. te. Por uma identificação narcísica com o ob-
Pergunta-se: que forças fazem com jeto perdido, o Eu incorpora sua caracterís-
que um músico, no auge de sua criação, re- ticas, oferecendo-se ao Id no lugar daquele
conhecimento e carreira, abondone tudo e objeto. O risco é que esse ponto destrutivo
se entregue às drogas? Não é difícil achar tome conta do processo, e o Eu se ofereça
exemplos de grandes nomes do rock que, aos maus tratos e à morte8. O Eu, então, fica
em momentos de intensa criação, morreram sem recursos para conter o transbordamen-
de overdose. Cabe também citar inúmeros to pulsional e, paradoxalmente, para se de-
autores que, no auge de sua criação, come- fender, recorre à auto-destruição, overdose,
teram auto-extermínio7. Fica bastante claro auto-extermínio. O suicídio e a overdose,
se tratar, nesses casos, de uma ação de uma nesses casos, por incrível que possa pare-
força mais arcaica e mais obscura. Força esta cer, são saídas auto-conservadoras para o
que, não obstante, parece estar presente em Eu. Afinal, “um sujeito pode precipitar-se
processos sublimatórios aparentemente em direção a morte em prol de suas con-
bem-sucedidos até então. Penso que, num vicções imaginárias. (...) Da teoria psica-
artigo que procura responder à pergunta nalítica acerca da pulsão aprendemos que
“por que criamos?”, seria irresponsável o paradoxo que se interpõe entre morte e
deixar de lado algo que, com tanta freqüên- auto-conservação não é, senão, aparente”
6 No presente artigo, o tema da música é evocado de forma
(ROCHA, 2008, pp. 147-148).
tangencial, sem maiores pretensões. Para uma discussão A sublimação, contudo, é ao mesmo
aprofundada sobre as interfaces entre psicanálise e música, tempo desligamento e religamento (Eros) a
ver ROCHA (2004, 2008) e também LOPES (2006).
outros objetos. Os dois aspectos fazem par-
7 Sylvia Plath, Paul Celan, Anne Sexton, Ana Cristina Cesar
(CARVALHO, 2006). 8 Tal raciocínio é abordado por CARVALHO (2006).
te do processo, e por isso devemos sempre para, de forma breve, tentarmos dar algu-
analisar, em cada caso, os aspectos funcio- mas indicações sobre as respostas para tal
nais e desfuncionais da sublimação. Cabe indagação. Afinal, por que criamos? Pode-
aqui lembrar algumas palavras do psicana- mos dizer: criamos porque queremos tratar
lista italiano Massimo Recalcati: simbolicamente o excesso pulsional, aqui-
lo que não é possível realizar diretamente;
A condição da sublimação é, com efeito, uma porque queremos “dar forma ao informe,
tomada de distância para com a Coisa. Se nos
alguma permanência ao mutável, uma vida
aproximarmos demais da Coisa não há possi-
bilidade da arte operar; o ar psíquico torna- – tão frágil, como se sabe – ao inanimado”
se irrespirável; não há criação, mas apenas (PONTALIS, 1991, p.133). Ou como diriam os
destruição da obra. (...) O sinistro, como efei- lacanianos: criamos porque queremos sim-
to do encontro do sujeito com o real mudo da bolizar, simbolizamos para tratar o excesso
Coisa, é a “condição” e, ao mesmo tempo, o
“limite” do estético. Sem a relação com o real
ingovernável do real - a arte é uma circuns-
da Coisa a obra perderia sua força, ao passo crição da Coisa, esse abismo que nos aspi-
que uma excessiva proximidade com a Coisa ra, esse excesso de gozo e horror. Mas tam-
acabaria por destruir todo o sentimento esté- bém podemos dizer: criamos porque temos
tico. (RECALCATI, 2005, p. 97)
a capacidade de conferir uma elaboração
secundária àquilo de anamorfo que vem do
Acrescentaria eu apenas: não só des- inconsciente. Ainda: criamos porque temos
truir o sentimento estético, como também a uma relação oscilante com nossas instâncias
vida do próprio artista, em casos extremos. ideais, porque não nos deixamos dominar
por elas, porque vamos além. Criamos por-
*** que existem condições objetivas e históricas
para tal fato se concretizar. Criamos, enfim,
Após percorrermos diferentes di- porque desligamos, mas também porque re-
reções do pensamento psicanalítico sobre ligamos.
a sublimação, voltemos à questão inicial
Referências bibliográficas
CARVALHO, A. C. (2002) “O método e a criação literária: uma visão psicanalítica”. In: Revista de
Psicanálise Psychê, São Paulo, v. 1, p. 67-74.
DUARTE, Rodrigo. (1998) “Sublimação ou expressão? Um debate sobre arte e psicanálise a partir
de Theodor W. Adorno”. Revista Brasileira de psicanálise, São Paulo: Associação Brasileira
de Psicanálise, v. 32, n. 2, p. 319-336.
FREUD, Sigmund. (1905) “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. ESB, vol.VII. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
_____________. (1908) “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna”. ESB, vol. IX. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
_____________. (1910) “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância”. ESB, vol. XI. Rio de
_____________. (1914a) “O Moisés de Michelangelo”. ESB, vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_____________. (1914b) “Sobre o narcisismo: uma introdução”. ESB, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
_____________. (1915) “Os instintos e suas vicissitudes”. ESB, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
_____________. (1920) “Além do princípio de prazer”. ESB, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
_____________. (1925) “Um estudo autobiográfico”. ESB, vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_____________. (1928) “Dostoievski e o parricídio”. ESB, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_____________. (1929) “O mal-estar na civilização”. ESB, vol XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GOMBRICH, Ernst. (1995) “As terias estéticas de Sigmund Freud”. In: Revista de Psicanálise
Percurso. São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae, Ano VIII, nº 15, 2º semestre de 1995, p.
5-16.
GREEN, A. (1992) O desligamento. Psicanálise, antropologia e literatura. Trad. Irene Cubric. Rio de
Janeiro: Imago.
GUTIÉRREZ, Pedro Juan. (2003) Trilogia Suja de Havana. São Paulo: Companhia das Letras.
LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J. B. (2001) Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
LOPES, Anchyses Jobim. (2006) “Afinal, que quer a Música”. Estudos de Psicanálise, v. 29, p. 73-
82.
RECALCATI, M. (2005) “As três estéticas de Lacan”. In: Opção lacaniana, Revista Brasileira
Internacional de Psicanálise. Trad. Vera Avellar Ribeiro. São Paulo, fev. 2005, n. 42, p. 94-
108.
_____________. (2008) Olho clínico: ensaios e estudos sobre arte e psicanálise. Belo Horizonte:
Scriptum Livros.