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As disputas políticas e a Constituinte brasileira de 1987-1988:

projetos, sonhos e utopias*

Fernando Perlatto**

1. Introdução

Quando se pensa em um texto constitucional, a tendência é a de se refletir especialmente


sobre o conteúdo do mesmo, destacando-se seus avanços, limites e problemas. Poucas vezes se
constrói uma análise mais detalhada acerca dos “bastidores” da sua preparação, isto é, sobre os
processos anteriores à elaboração daquele texto constitucional, processos estes que fizeram com
que ele assumisse determinadas características e direcionamentos. Modificar o enfoque da
análise e olhar para estes “bastidores” implica em conceber um texto constitucional como um
documento que se configura como o resultado de pressões, disputas e lutas políticas travadas não
apenas no âmbito das instituições políticas formais, como os parlamentos e tribunais, mas
também por embates que reverberam e decantam na sociedade como um todo. É claro que cada
contexto nacional possui sua história própria destes “bastidores” que antecedem a elaboração de
um texto constitucional; mas, não restam dúvidas, de que todas as constituições, independente
dos territórios nos quais tenham sido elaboradas, se conformam como a materialização de
disputas e de divergências, que resultaram em vitórias de alguns atores sociais e em derrotas e
silenciamentos de outros, a depender da correlação de forças na conjuntura política específica.
O objetivo deste artigo é precisamente refletir sobre os “bastidores” da constituição
brasileira de 1988. Ao longo do texto, procurarei analisar os embates e as disputas em torno da
conjuntura política brasileira nos anos 1980, que resultaram na elaboração deste texto
constitucional que consolidou a transição da ditadura para a democracia no Brasil. Trata-se de
pensar, em diálogo com a bibliografia produzida sobre o tema, de que maneira o texto
constitucional nasceu, em grande medida, dos conflitos políticos e das tensões que tiveram curso

*
Agradeço aos professores Paulo Borges do Santos e Ernesto Castro Leal pelo convite para a participação no
Seminário Internacional Constitucionalismo e conflito político: os momentos constituintes em Portugal de no Brasil
(1822-1988), realizado em 2015 na Universidade Nova de Lisboa, no qual pude apresentar as reflexões
posteriormente organizadas neste artigo.
**
Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Juiz de Fora. Coordenador do Laboratório de História Política e Social (LAHPS-UFJF).
entre, de um lado, as disputas ocorridas no interior de um Congresso Nacional com perfil
majoritariamente conservador – embora também composto por personagens com projetos
orientados para acelerar os processos de democratização política e social do país –, e, de outro,
da forte pressão que vinha das ruas, por parte dos movimentos sociais, demandando abertura
política e renovação, em um contexto marcado por uma ampla mobilização popular. A
Constituição de 1988, com seus vários avanços e suas múltiplas contradições, portando
elementos do “velho” e do “novo”, é precisamente o resultado dos conflitos e embates políticos
dessa sociedade brasileira em ebulição dos anos 1980, década esta atravessada por tensões de
diversas ordens, com avanços e recuos em relação à redemocratização do país.
O final dos anos 1970 e a década de 1980 testemunharam transformações fundamentais
na conjuntura política brasileira que impulsionaram o processo de redemocratização do país,
culminando na realização da Assembleia Constituinte em 1987 e 1988, responsável pela
elaboração da Constituição de 1988. Para que este processo de redemocratização tivesse curso,
alguns acontecimentos foram centrais, a exemplo das vitórias em eleições importantes do
Movimento Democrático Brasileiro (MBD) – partido de oposição à legenda oficial da ditadura, a
Aliança Renovadora Nacional (Arena) –, especialmente nos pleitos de 1974, 1976 e 1978, cujos
resultados evidenciaram que o regime ditatorial perdia gradativamente sua legitimidade e
aceitação frente à população brasileira (Alencastro, 2014). O próprio regime militar, a partir do
governo de Ernesto Geisel (1974-1979), a despeito de algumas medidas em direção contrária, a
exemplo do “Pacote de Abril” de 1977, começou a, paulatinamente, imprimir uma agenda no
sentido de promover a abertura política do país, agenda esta que se acelerou no governo seguinte,
de João Baptista Figueiredo (1979-985), embora convenha ressaltar que esta abertura devesse se
dar, nos termos das próprias forças da ordem, de forma “lenta, gradual e segura”, de sorte a
evitar maiores tensões e confrontos (Velasco e Cruz; Martins, 1983; Teixeira, 2013).
Outro momento importante para marcar o processo de redemocratização brasileiro foi o
fim do bipartidarismo, em 1979, que deu impulso a um movimento importante de formação de
novos partidos políticos, sejam partidos sucessores diretos das legendas recém-extintas – o
Partido Democrático Social (PDS), com quadros da Arena, e o Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB), oriundo do MDB –, sejam partidos que foram retomados do
período democrático anterior de 1946 a 1964, como o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) –,
seja com a criação de experiências partidárias novas, com destaque para o Partido dos
Trabalhadores (PT) e do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), já no final dos anos
1980, como uma divisão do PMDB. Estes serão os partidos principais das disputas eleitorais
travadas nos anos 1980, que resultarão na elaboração da Constituição de 1988, e nas disputas
políticas no Brasil nos anos posteriores. Porém, o marco fundamental para acelerar o movimento
de redemocratização foi a Emenda Constitucional de 1985, que pôs fim a muitas das restrições à
livre organização política e social que havia no regime anterior e, sobretudo, consagrou o
princípio das eleições diretas para todos os cargos do Poder Executivo, em âmbito nacional,
estadual e municipal (Kinzo, 1990).1
É importante ressaltar, porém, que o processo de redemocratização do Brasil no final dos
anos 1970 e na década de 1980 não se deu em uma linha reta, em um movimento contínuo e
unidirecional rumo à democracia, apenas com avanços e vitórias. Houve resistências, recuos e
derrotas de diferentes ordens. Se é possível identificarmos um movimento, ao longo destes anos,
no sentido de se avançar, em um ritmo mais forte, rumo à redemocratização do país, havia, de
outra parte, uma espécie de “contra movimento” orientando se não no sentido de barrar, ao
menos de assegurar que este processo de abertura tivesse uma cadência mais lenta e compassada
do que desejavam as forças da oposição. Isso fica evidente em episódios fundamentais da
redemocratização do país, a exemplo da Lei da Anistia de 1979, que, embora permitisse o
retorno dos exilados políticos, outrora combatentes contra a ditadura, acabou por contemplar
também, no acordo político realizado, os membros do “antigo regime”, que escaparam de
quaisquer tipos de julgamento e punições futuras pelos crimes cometidos por eles durante a
repressão. Outro exemplo deste “contra movimento” em relação à redemocratização foi a derrota
do movimento pelas “Diretas Já!”, em 1984 – que teve como consequência o fato de a primeira
eleição do regime democrático ter se dado de forma indireta, via Colégio Eleitoral, e não por
sufrágio popular – e a posse de José Sarney, em 1985, como o primeiro presidente da “Nova
República”, após o falecimento de Tancredo Neves, tendo sido Sarney um quadro importante de
apoio e sustentação do regime militar. Todos esses episódios evidenciam, de diferentes maneiras,
quer a presença das forças do “antigo regime” na condução da nova república brasileira, quer os
freios e limites impostos pelas forças da ordem no sentido de desacelerar o ritmo do processo de
redemocratização do país.

1
Sobre a transição democrática brasileira, ver especialmente Sallum Jr. (1996) e Kinzo (2001).
E o que mais interessa para a discussão proposta neste artigo, a própria composição e o
formato assumido pela Assembleia Constituinte, responsável pela elaboração da Constituição de
1988, evidencia a força dos atores da antiga ordem no sentido de buscar reduzir o espaço dos
atores progressistas na condução dos direcionamentos da “Nova República” brasileira.
Contrariando a posição de segmentos organizados da sociedade civil – a exemplo da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) –, que pressionavam pela convocação de uma Constituinte
Exclusiva, extraordinária, para a elaboração da Constituição, decidiu-se pela fórmula
deliberadamente conservadora de Constituinte Congressual, valendo-se, para tanto, da
composição do Legislativo eleito no pleito ordinário de 1986 para a produção do texto
constitucional. Ressalte-se, inclusive, que um terço dos senadores havia sido eleito nas eleições
de 1982, não portando, dessa forma, legitimidade e reconhecimento da sociedade para a
elaboração do texto constitucional. O resultado principal disso foi que a Constituição de 1988 foi
elaborada por um Congresso Nacional majoritariamente conservador (Araujo, 2013).
O que é interessante perceber é que, não obstante se identifique, a partir dos diferentes
exemplos acima mencionados, a força dos atores do “antigo regime” no sentido de controlar o
andamento do processo de abertura política do país, a Constituição de 1988 – ponto de
culminância do processo de transição democrática –, se configura, ao fim do processo, como um
documento com vieses muito mais progressistas do que conservadores, constituindo-se como um
texto fundamental no sentido de assegurar direitos e apontar caminhos para o aprofundamento da
democratização política e social do país. É possível interpretá-la como um documento que, a
despeito de seus problemas, abriu possibilidades concretas para a efetivação de um Estado de
Bem-Estar Social no Brasil, em um contexto, é importante ressaltar, de crise política e ideológica
das esquerdas – como decorrência do fim do chamado “socialismo real” – e no qual diversas
partes do mundo caminhavam no sentido de reduzir o peso do Welfare State, sob a influência
direta das políticas neoliberais. Essa característica do processo de transição democrática no
Brasil – a saber, uma Assembleia Constituinte com perfil majoritariamente conservador,
operando em um contexto internacional também majoritariamente conservador, ter gestado um
texto majoritariamente progressista – somente se explica a partir da compreensão dos conflitos
políticos travados no momento constituinte.2

2
Para uma discussão mais ampla sobre o processo constituinte e seus desdobramentos, ver os artigos das coletâneas:
Brandão et. all (2009), Rezende de Carvalho (2009) e Mendes (2012).
É precisamente sobre essa conjuntura que procuraremos refletir neste artigo. Tomando
como pano de fundo as disputas em torno do ritmo da transição democrática, buscaremos
analisar os principais embates e conflitos políticos envolvidos na produção do texto da Carta de
1988. Para tanto, deteremos o foco, em primeiro lugar, sobre as disputas internas na Assembleia
Constituinte – dando especial atenção, de um lado, para os embates travados entre as forças
partidárias e, de outro, para o papel desempenhado por importantes juristas na elaboração do
texto constitucional – e, posteriormente, voltaremos o olhar para as ruas e a pressão vinda da
sociedade no sentido de disputar os rumos a serem tomados pelos congressistas constituintes.
Buscaremos, nesse sentido, mostrar de que maneira os atores que atuaram nesses dois espaços –
os parlamentos e as ruas – influenciaram, de diferentes maneiras, na elaboração do texto
constitucional da Carta de 1988, que, a despeito da permanência de fortes marcas do passado,
logrou se constituir como um documento fundamental orientando no sentido de assegurar o
aprofundamento da democratização política e social do país.

2. Os embates entre as forças partidárias na Assembleia Constituinte

Ainda que a pressão pela convocação de uma Assembleia Constituinte para a elaboração
do texto constitucional que iria regulamentar a ordem democrática após o fim do regime militar
já viesse ganhando força e corpo pelo menos desde o final dos anos 1970, quando o sistema
começava a dar evidência de uma distensão política mais significativa, foi somente em meados
da década de 1980 que este processo passou a assumir novos cursos. Em setembro de 1985, o
então presidente José Sarney criou uma comissão composta por “cidadãos iminentes”, chamada
de “Comissão Especial de Estudos Constitucionais”, sob a presidência do jurista Afonso Arinos,
com o intuito de formular propostas que embasassem as discussões a serem travadas no
Congresso Constitucional. Ainda que o controvertido texto por ela produzido tenha sido, em
grande medida, deixado de lado, ele contribuiu significativamente para ampliar os debates em
torno do que se queria com aquela carta constitucional. Sob o clima de intensos debates que
permeavam a sociedade brasileira sobre o seu futuro, ao final de 1986 foi eleita a Assembléia
Nacional Constituinte, segundo o formato da Constituinte Congressual, derrotando-se, conforme
mencionado anteriormente, a proposta de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva. Em
1º de fevereiro de 1987 foi, finalmente, instalado o Congresso Constituinte (Souza e Lamounier,
1990; Araujo, 2013).
Após a eleição dos deputados constituintes, as discussões que ganharam relevância na
sociedade giraram em torno dos poderes a eles atribuídos, bem como da organização a ser
adotada nos trabalhos seguintes. Ao final do processo, acabou por predominar uma organização
fortemente descentralizada, constituída por diferentes fases: na primeira fase, haveria 08
Comissões Temáticas e 24 Subcomissões Temáticas, que realizariam os estudos iniciais, ouvindo
a sociedade e votando os relatórios preliminares; encerrada esta fase, uma Comissão de
Sistematização se responsabilizaria por preparar o projeto a ser votado pelo plenário. Não
obstante o fato de as discussões conjunturais, relativas ao mandato presidencial do Governo
Sarney, e o quadro de polarização e fragmentação – agravado pela ausência de um anteprojeto
para guiar os trabalhos, uma vez que aquele proposto pela Comissão Afonso Arinos fora
abandonado – terem contribuído para gerar um cenário permanente de incerteza e de “paralisia
decisória”, dificultando a construção de consensos políticos, no princípio de 1988, após um ano e
sete meses de trabalhos da Assembleia Constituinte, o projeto constitucional foi finalmente
levado para uma primeira votação em plenário. Após intensos debates, uma segunda votação
ocorreu e a nova Constituição – a mais extensa e detalhada da história brasileira – foi
promulgada em 05 de outubro de 1988, sendo composta por 250 artigos principais e mais 98
artigos das disposições transitórias, buscando consolidar a democracia e dar uma nova forma à
ordem política brasileira (Souza e Lamounier, 1990; Lopes, 2009).
No que concerne aos embates e disputas políticas que tiveram curso no parlamento nos
mais de 580 dias, entre 1º de fevereiro de 1987 e 05 de outubro de 1988, e que conformaram as
principais características da Constituição de 1988, vale ressaltar que, conforme destacado
anteriormente, não obstante a composição majoritariamente conservadora, os setores
progressistas da Assembleia Constituinte lograram sucesso no sentido de contribuir para a
conformação de um texto constitucional com um viés marcadamente progressista. Um dos
fatores fundamentais para compreender este resultado deve ser buscado nos embates travados
entre as forças partidárias, e suas respectivas lideranças, nas diferentes fases do processo de
elaboração da Carta constitucional. As lideranças do minoritário bloco progressista – constituído
pelos partidos PCB (Partido Comunista Brasileiro), PCdoB (Partido Comunista do Brasil), PDT
(Partido Democrático Trabalhista), PSB (Partido Socialista Brasileiro) e PT (Partido dos
Trabalhadores), bem como pela “esquerda” do PMDB (Partido do Movimento Democrático
Brasileiro, herdeiro do MDB,) – se valeram de uma hábil mobilização das regras e
procedimentos para fazer com que o majoritário bloco conservador – integrado pelo PDS
(Partido Democrático Social), PFL (Partido da Frente Liberal), PL (Partido Liberal), PDC
(Partido Democrata Cristão), PTB (Partido Trabalhista do Brasil) e pela fração “conservadora”
do PMDB –, não tivesse sucesso em ditar os rumos do processo constituinte.3
Desde o início dos trabalhos da Assembleia Constituinte, os partidos de esquerda, com o
apoio da ala “progressista” do PMDB, buscaram ocupar número significativo das Presidências
das Subcomissões e das Relatorias dos foros e Comissões Temáticas, garantindo,
consequentemente, uma vantagem procedimental na definição da agenda deliberativa nas
primeiras fases da constituinte. O papel desempenhado pelo senador Mario Covas, ressalte-se,
foi determinante nesse sentido, assegurando a ocupação de cargos importantes, que
compensavam o reduzido tamanho das bancadas progressistas. Ainda que os constituintes
conservadores tenham buscado enfraquecer o poder de agenda dos relatores progressistas através
de diferentes mecanismos, vetando seus Anteprojetos, e a maioria das suas propostas, os setores
progressistas, ocupando relatorias importantes e explorando brechas procedimentais,
conseguiram incluir na agenda constitucional temas e propostas do seu interesse (Pilatti, 2008).
No momento posterior da Constituinte – a fase da Comissão de Sistematização –, os
setores conservadores procuraram ampliar a resistência às propostas progressistas, mediante a
formação do chamado “Centrão”, que reunia diversas lideranças constituintes de centro (PMDB,
PTB, PL), centro direita (PMDB, PFL, PDS) e direita (PDS), constituindo-se, de acordo com
Adriano Pilatti, na “mais completa tradução do partido da ordem na Constituinte” (Pilatti, 2008,
313, grifos do autor), que exercia uma coalizão de veto, orientada por um “consenso
negativo” sobre a ordem política a ser instaurada no País (Lopes, 2008). Porém, ainda que
tenham tido vitórias importantes, a exemplo do retrocesso no que concerne ao tratamento
constitucional da questão agrária, os setores conservadores mais uma vez viram o protagonismo
ser assumido pelos parlamentares progressistas, sobretudo como decorrência do papel
desempenhado por lideranças importantes próximas do campo progressista, especialmente pelo

3
Para uma investigação sobre os embates travados entre as forças partidários no parlamento no contexto do processo
constituinte, ver: Kinzo (1990); Pilatti (2008) e Lopes (2008).
relator da Comissão de Sistematização, Bernardo Cabral, e pelo Presidente da Assembleia
Constituinte, Ulysses Guimarães.
Ao final do processo constituinte, o texto aprovado no primeiro turno foi bastante além
daquele desejado pelas forças do “antigo regime”, não sofrendo alterações significativas no
segundo turno das votações, consubstanciando, dessa forma, um direcionamento mais
progressista do que seria possível imaginar no início dos trabalhos constituintes. Não à toa, a
Carta de 1988 – a despeito de conservar elementos importantes do “antigo regime”, a exemplo da
estrutura agrária – foi batizada pelo presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães,
de “Constituição Cidadã”, na medida em que assegurava e protegia os direitos civis e políticos, e,
especialmente, ampliava significativamente o escopo e a cobertura dos direitos sociais. No caso
dos direitos sociais, mais especificamente, o texto constitucional estabelecia que direitos, tais
como educação, saúde, alimentação, segurança, previdência e assistência social, seriam
considerados como “direito de todos e dever do Estado”. Além de proteger os direitos
individuais e assegurar a promoção dos direitos sociais, a Constituição de 1988 contempla a
proteção dos “direitos coletivos e difusos”, associados à proteção de determinados setores da
sociedade, a exemplo dos indígenas, das crianças e adolescentes, e dos idosos. A amplitude e o
detalhamento do texto constitucional no que concerne aos direitos permite afirmar que ele
apontava, conforme destacamos anteriormente, para a conformação de um Estado de Bem-Estar
Social no Brasil, em um contexto no qual se consolidava a hegemonia das reformas neoliberais
pelo mundo, orientadas para a redução do papel do Estado na regulamentação do mercado e na
proteção dos direitos sociais.
Contudo, é importante destacar que, mesmo com esta feição progressista, o texto
constitucional aprovado não foi bem recebido por todas as forças partidárias à esquerda do
campo político. Exemplar, nesse sentido, foi o posicionamento do PT. Principal espaço
institucional de organização da esquerda após a redemocratização, ainda que tenha participado
ativamente do processo constituinte, o PT foi o partido mais crítico à Constituição de 1988,
denunciando a presença de diversos elementos conservadores no texto final, a exemplo da
permissão das Forças Armadas possuírem autonomia para a definição de assuntos de seu
interesse e da não redução da jornada de trabalho para 40 horas. 4 Essa postura do PT contribuiu

4
Exemplo dessa postura pode ser encontrada no artigo “A transição fardada”, de José Genuíno – deputado
constituinte pelo PT –, publicado no primeiro número da Revista Teoria e Debate, do PT, na qual ele aponta para o
sobremaneira para que a nova Constituição fosse recebida com indiferença e até mesmo com
certo desdém por setores dos movimentos sociais – sobretudo sindicatos –, nos quais este partido
tinha enorme capilaridade. Tal posicionamento, de certa maneira, vedou os olhos para diversos
aspectos positivos trazidos por aquela Carta, que representavam a ampliação da esfera pública e
a possibilidade da construção da cidadania a partir de novas perspectivas.

3. A importância dos juristas e o constitucionalismo democrático

Para além da ocupação por parte das lideranças partidárias progressistas em espaços
importantes das comissões e relatorias do processo constituinte, assim como da utilização bem
realizada dos procedimentos disponíveis, outro fator que contribui para explicar o paradoxo
acima destacado – a saber, o de uma Assembleia Constituinte com perfil majoritariamente
conservador, operando em um contexto internacional também majoritariamente conservador, ter
gestado um texto majoritariamente progressista –, se relaciona com a presença, no decorrer do
processo, de vários juristas especializados em direito constitucional – a exemplo de José Afonso
da Silva e Carlos Roberto Siqueira de Castro –, exercendo o papel de destaque como assessores
de influentes parlamentares. Conforme diferentes trabalhos sobre a elaboração da Carta de 1988
vêm demonstrando, a atuação desses juristas na assessoria das comissões temáticas se constituiu
como elemento fundamental de uma profunda mutação institucional, responsável por incluir
diversos mecanismos responsáveis, nos anos posteriores, por acelerar o processo de
democratização política e social do país.5
Sob a influência direta de uma determinada corrente do direito constitucional,
denominada de “constitucionalismo democrático”, esses juristas desempenharam papel
fundamental para estabelecer os contornos normativos da Constituição de 1988. Tendo se
afirmado no mundo europeu após a derrota do nazi-fascismo, o “constitucionalismo

fato da Nova República ter reciclado a questão militar no Brasil, ao manter sua tutela sobre o Estado (Genuino,
1987). Outro exemplo desse posicionamento crítico à Carta de 1988 pode ser encontrado nos diferentes textos
escritos por Florestan Fernandes – um dos principais intelectuais brasileiros e à época deputado constituinte do PT –,
reunidos na obra A Constituição inacabada, vias históricas e significados (1989), no qual o autor estabelece um
acompanhamento dos embates ocorridos na Constituinte, com uma visão muito crítica frente ao processo. De acordo
com Florestan, a transição democrática no país, da qual a Constituinte se configurava como um momento exemplar,
teria se dado de um “regime ditatorial para uma república burguesa institucionalizada”, “uma visão doce da
autocracia burguesa sustentada pelo fuzil” (Fernandes, 1979, p.73).
5
Para uma análise da importância destes juristas na elaboração da Carta de 1988, ver especialmente: Cittadino
(2004) e Werneck Vianna (2008).
democrático”, sob a influência da Declaração dos Direitos do Homem, de 1948, acabou por
influenciar fortemente processos de redemocratização e de constitucionalização de diversos
países europeus, a exemplo, de Portugal, em 1976, e da Espanha, em 1978, reverberando e tendo
ampla audiência na doutrina constitucional de países que também saíam de regimes autoritários,
a exemplo do Brasil. Dentre as características do “constitucionalismo democrático” destaca-se,
especialmente, a crítica ao positivismo jurídico, então hegemônico, no campo do Direito
Constitucional, e a defesa de que a ordem jurídica deveria estar assentada em fundamentos ético-
morais, bem como em um conjunto de direitos constitucionais voltados para assegurar a
igualdade, a dignidade humana e a participação política. Para afirmar a facticidade dos direitos, o
“constitucionalismo democrático”, confere um papel fundamental à Corte Suprema – no caso
brasileiro, ao Supremo Tribunal Federal –, como instância apta a garantir a concretização das
normas constitucionais.
Como demonstrado por Gisele Cittadino (2004), o “constitucionalismo democrático” tem
como um de seus eixos centrais uma forte “dimensão comunitária”. Esta “dimensão comunitária”
atravessa a Constituição de 1988, estando evidenciada, por exemplo, na definição do fundamento
ético da ordem jurídica e na constituição de um amplo sistema de direitos fundamentais. Tal
orientação vem diretamente acompanhada dos institutos procedimentais orientados no sentido de
controlar a omissão do poder público, conferindo aplicabilidade à norma constitucional portadora
de direitos e liberdades e das prerrogativas inerentes à cidadania. Além disso, o texto
constitucional estabelece a Corte Suprema como um órgão de caráter político, conferindo ao
Supremo Tribunal Federal o papel de “guardião da Constituição”. De uma maneira geral, é
possível perceber que a “linguagem comunitária” está presente em todo o texto constitucional,
atravessado por termos como “bem-estar”, “liberdade”, “igualdade”, “justiça” e “harmonia
social”. O artigo 1º, III, do texto constitucional estabelece a “dignidade humana” como um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito, no Brasil.
Orientada pela dimensão “comunitária”, a Carta de 1988 não se limita, nesse sentido, a
instituir procedimentos neutros e positivos para a formação da vontade coletiva e as garantias de
autonomia aos indivíduos. Pelo contrário. O texto constitucional define compromissos ético-
morais e valorativos, estabelecendo no seu corpo normativo um programa substantivo para o
Brasil, como fica evidente nos incisos do artigo que institui os objetivos dos princípios
fundamentais norteadores da República: “construir uma sociedade justa e solidária; garantir o
desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação” (Werneck Vianna, 2008, 99). Dessa forma, ao invés
de se orientar por uma cultura jurídica positivista e privatista, afinada com a perspectiva da
“constituição-garantia”, centrada na “liberdade negativa”, nos termos de Benjamin Constant, a
Carta de 1988 está assentada em uma concepção de “constituição dirigente”, orientada para uma
dimensão da “liberdade positiva”, estabelecendo horizontes normativos éticos e valorativos para
o país (Lessa, 2008, 369).
Além dessa dimensão ética e valorativa, sob a influência dos juristas, o
“constitucionalismo democrático” é incorporado na Constituição de 1988 pela valorização da
democracia participativa. O texto constitucional, além de assegurar a democracia representativa
– inclusive, incluindo, pela primeira vez na história brasileira, sufrágio universal, com a inclusão
dos analfabetos no processo de votação –, estabelece, no art. 14, ao abrir o “Capítulo IV – Dos
Direitos Políticos”, que a soberania popular também será exercida por mecanismos de
participação direta, com destaque para os projetos de iniciativa popular, os plebiscitos e os
referendos, confirmando o princípio basilar da democracia exposto no seu artigo 1º, segundo o
qual, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos da Constituição”. Além disso, a Carta de 1988 prevê a existência de
conselhos e audiências públicas, que além de permitirem que a sociedade exerça um papel mais
efetivo de fiscalização e controle, abrem espaços para que se imprima uma lógica mais
democrática na definição das prioridades de alocação dos recursos públicos. Ademais, ao ampliar
o papel e a autonomia política, administrativa e financeira dos municípios, o texto constitucional
abriu possibilidades para inovações institucionais importantes voltadas para a democratização da
elaboração das políticas públicas, a exemplo do Orçamento Participativo.6 Não restam dúvidas
de que esta dimensão participativa foi incorporada ao texto constitucional, em grande medida,
pela forte pressão dos parlamentares dos partidos de esquerda, em especial do PT, que defendiam
uma combinação entre democracia representativa e participativa para o exercício da soberania
popular. Porém, também não restam dúvidas de que os juristas constitucionalistas, influenciados

6
Sobre os instrumentos participativos abertos pela Constituição de 1988, ver: Dagnino (2002), Nobre e Coelho
(2004) e Avritzer (2010).
pelo “constitucionalismo democrático”, também desempenharam papel fundamental na
valorização da dimensão participativa da democracia (Cittadino, 2004).
Por fim, vale destacar que a “dimensão comunitária” do “constitucionalismo
democrático” também se fez presente na Constituição de 1988 nos variados institutos e
procedimentos judiciais que asseguraram a uma pluralidade de atores sociais a possibilidade de
atuarem como intérpretes da constitucionalidade das leis. Dessa forma, as minorias
parlamentares e da sociedade civil organizada encontraram novas formas de acesso junto ao
Poder Judiciário, tanto para a defesa de direitos, quanto para a conquista de direitos novos, sob a
mediação de novos institutos judiciais, a exemplo das ações de controle de constitucionalidade
das leis, das ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, do mandado de injunção e das
ações civis públicas. Além desses mecanismos, o Ministério Público, como representante da
sociedade civil, passou a adquirir um novo papel constitucional, orientado para a defesa do
sistema da ordem criado pela Constituição de 1988. Ao lado da representação política, a
chamada “representação funcional” – relacionada a esses mecanismos judiciais afirmados pelo
texto constitucional – se converteu em um novo lugar de exercício ativo da soberania popular
(Werneck Vianna e Burgos, 2002).
Ao desempenharem papel de destaque como assessores de diversas lideranças
parlamentares constituintes, estes juristas constitucionalistas, imbuídos das perspectivas
norteadoras do “constitucionalismo democrático”, lograram influenciar de forma decisiva no
desenho final da Carta de 1988, quer seja no sentido de assegurar ao texto constitucional um
caráter normativo ético-valorativo, quer seja para ampliar os mecanismos de democracia
participativa, quer seja ainda para garantir a existência de procedimentos judiciais orientados
para ampliar a participação da sociedade civil nos processos de controle da constitucionalidade
das leis. Ao invés de uma “constituição garantia”, fechada, privatista e positiva, a participação
dos juristas contribuiu decisivamente para a elaboração de uma carta constitucional “dirigente”,
aberta para o futuro, atravessada por conteúdos e dimensões valorativas, e orientada para a
participação. Esta atuação dos juristas, somada ao papel desempenhado pelas lideranças dos
partidos progressistas nas comissões e subcomissões temáticas, discutido anteriormente,
contribui para explicar o paradoxo que estamos tentando discutir de um texto constitucional
elaborado por um congresso constituinte majoritariamente conservador ter adquirido uma feição
muito mais progressista do que conservadora.
A explicação deste paradoxo, contudo, não se encerra nas lutas e embates políticos
travados por esses atores que atuavam internamente ao Congresso Nacional. Esta explicação do
que acontecia “por cima” naquele contexto específico da Assembleia Constituinte deve ser
complementada por uma análise que considere aquilo que ocorria “fora” das paredes do
parlamento, isto é, nas ruas do país. É sobre esse movimento e essa pressão que vinha “por
baixo” que dedicaremos a atenção na próxima seção.

4. A voz dos “de baixo”: a pressão das ruas e o processo constituinte

O final dos anos 1970 e a década de 1980 foram marcados por intensa mobilização da
sociedade civil brasileira. As grandes greves do “ABC paulista”, entre 1978 e 1981, que
denunciaram as contradições do “milagre econômico” impulsionado pela ditadura militar, que
ampliou consideravelmente a concentração de renda no país, as mobilizações em torno das
“Diretas Já!”, em meados dos anos 1980, e as pressões, de diversos grupos organizados, pela
convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva para a elaboração do novo texto
constitucional, evidenciam uma sociedade em permanente ebulição social no contexto da
transição democrática. Esta ampla agitação das ruas ganhou ainda maior força e capilaridade, no
contexto dos debates da Assembleia Constituinte, quando a sociedade civil brasileira procurou
participar e influenciar, de diferentes maneiras, na elaboração do texto constitucional. De acordo
com o Presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães, cerca de 10 mil pessoas
percorreram diariamente os corredores do Congresso Nacional nos meses de elaboração da Carta
de 1988, portando interesses diversos e pressionando em diferentes direções e agendas. Não à
toa, o mesmo Ulysses Guimarães, em seu discurso na conclusão dos trabalhos constituintes,
ressaltou que a Constituição promulgada em 1988, trazia em seu bojo “sopro de gente, de rua, de
praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores”.
Essa pressão da sociedade civil junto à Assembleia Constituinte pode ser tomada como o
terceiro fator – junto com a atuação das lideranças partidárias progressistas nos embates
parlamentares e do papel desempenhado pelos juristas constitucionalistas no assessoramento dos
trabalhos constituintes – a explicar o paradoxo de uma Assembleia Constituinte com perfil
majoritariamente conservador, operando em um contexto internacional também majoritariamente
conservador, ter gestado um texto majoritariamente progressista. Esta pressão pode ser analisada
a partir de duas direções: em primeiro lugar, dando-se destaque para a atuação da sociedade civil
organizada, especialmente os movimentos sociais, pressionando os parlamentares de sorte a fazer
com que várias de suas demandas fossem incorporadas no texto constitucional; em segundo
lugar, considerando-se um movimento mais difuso, que se articula com os movimentos sociais
organizados, embora não se encerre neles, relacionado ao envio para a Assembleia Constituinte
de milhares de “emendas populares”, com demandas e reivindicações elaboradas no âmbito da
sociedade civil brasileira.
No que concerne ao primeiro movimento – a saber, a atuação dos movimentos sociais
organizados junto à Assembleia Constituinte – importa destacar que a década de 1980 tem sido
considerada, por diversos analistas, como um período áureo de organização e mobilização da
sociedade civil brasileira. Para dialogar com Eder Sader (1988), este é o período marcado pela
entrada em cena de “novos atores” na cena política, com destaque para o chamado “novo
sindicalismo”, as associações de moradores, os movimentos contra a carestia, o Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra (MST), a União Nacional dos Estudantes (UNE), além dos
movimentos das mulheres e dos negros. A esses movimentos vieram se juntar outros tradicionais
atores sociais, a exemplo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de
Imprensa (ABI), alguns setores da Igreja Católica, instituições científicas públicas e privadas –
como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (CEBRAP). A despeito da pluralidade de agendas, esses grupos
buscavam pressionar pela redemocratização política do país, buscando influenciar decisivamente
os direcionamentos da Constituição de 1988 (Boschi, 1987; Araujo, 2009).
Conforme destacado por Maria D’Alva Kinzo, o texto resultante da Assembléia
Constituinte reflete em muitos aspectos “o mosaico de interesses de uma sociedade heterogênea
e desigualmente organizada” (Kinzo, 1990, 116). Nesse sentido, é importante destacar que a
pressão dos grupos organizados sobre os constituintes não vinha somente de movimentos sociais
progressistas, mas também de setores conservadores. Exemplar, nesse sentido, foi o papel
desempenhado por entidades empresariais, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e
pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), mediante a criação da União
Brasileira de Empresários (UBE) (Diniz & Boschi, 1989), e pela União Democrática Ruralista
(UDR) – associação criada em meados dos anos 1980, reunindo proprietários rurais orientados
para defender o direito de propriedade –, que contribuiu decisivamente para a aprovação de um
texto conservador em relação à reforma agrária, derrotando muitas das reivindicações colocadas
pelos partidos de esquerda e pelo MST (Pilatti, 2008). Contudo, o que importa para o argumento
aqui mobilizado é que os movimentos sociais progressistas também tiveram, mediante pressão
permanente junto aos parlamentares, importância decisiva para assegurar que ao texto
constitucional fossem incorporadas orientações normativas voltadas para a ampliação da
democratização política e social do país.
Exemplar, nesse sentido, foi o papel desempenhando pelo Movimento pela Reforma
Sanitária, cuja pressão foi fundamental para que à Carta de 1988 fosse incorporada uma
dimensão fortemente progressista de saúde. Para tanto, teve papel decisivo a 8ª Conferência
Nacional de Saúde, realizada em 1986, que orientou a atuação dos atores e movimentos sociais
na pressão junto à Assembleia Constituinte em torno da equidade, da justiça social, da
descentralização e da universalização da saúde. O sucesso dessa pressão pode ser verificado na
instituição, a partir da Constituição de 1988, do Sistema Único de Saúde (SUS), orientado para
assegurar acesso universal à saúde para todos os brasileiros. Com o SUS, ampliou-se
consideravelmente a participação do Estado na prestação e na gestão da saúde pública no país,
aumentando a atenção preventiva e clínica dos cidadãos brasileiros. Introduziu-se o conceito de
“direito à saúde”, assegurando-a como um “dever do Estado” e garantido por um sistema de
abrangência universal, com todo o atendimento gratuito e acesso amplo, conforme as
necessidades (Paim, 2013).
A pressão do movimento sindical – especialmente da Central Única dos Trabalhadores
(CUT), constituída em 1983 –, por sua vez, em articulação com partidos de esquerda,
especialmente o PT, foi fundamental para que a Carta de 1988 assumisse contornos mais
progressistas, não pendendo, em demasia, favoravelmente aos empresários. O texto final
contribuiu para cristalizar uma correlação de forças marcada pela acentuação do poder dos
trabalhadores no interior da sociedade brasileira, fortalecendo uma concepção na qual a disputa
entre os atores sociais – representados pelo capital e trabalho – se daria de maneira mais
equânime. Embora mantivesse o mesmo desenho da estrutura sindical consagrada nos anos 1930
e 1940 e, conseqüentemente o imposto sindical e a unicidade sindical – que referendavam a
dependência dos sindicatos em relação ao Estado –, a Carta de 88 avançou no sentido de garantir
diversos direitos aos trabalhadores, como a proteção contra a demissão arbitrária, o seguro-
desemprego (principal foco de oposição do empresariado durante a Constituinte), a participação
dos empregados nos lucros, a redução da jornada de trabalho para 44 horas, a proibição da
redução do trabalho em turnos ininterruptos superiores a seis horas, a elevação da compensação
por horas extras trabalhadas, a criação do adicional de 1/3 do salário para as férias anuais, a
instituição da licença-paternidade, a garantia de proteção aos dirigentes sindicais, a ampliação do
direito de greve, a garantia da presença de representantes dos trabalhadores nas empresas com
mais de 200 empregados, entre outros (Delgado, 2000; Ramalho, 2008; Perlatto, 2009; Werneck
Vianna et. all, 2010).
Outros movimentos importantes no sentido de assegurar um desenho mais progressista à
Constituição de 1988 foram aqueles vinculados à questão urbana. Exemplar, nesse sentido, foi a
constituição do Fórum Nacional da Reforma Urbana, que reuniu diversas entidades
representativas ligadas ao tema – como, por exemplo, a Federação Nacional dos Engenheiros
(FNE), a Federação Nacional dos Arquitetos (FNA), o Movimento de Defesa do Favelado
(MDF), o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e a Articulação Nacional do Solo Urbano
(ANSUR) – com o intuito de propor uma plataforma de reforma urbana, capaz de permitir a
melhoria das cidades e sua efetiva democratização. Dentre as demandas do movimento,
destacavam-se, entre outras, o fortalecimento da regulação pública do solo urbano, a ampliação
de investimentos capazes de ampliar o acesso à cidade para os segmentos populares, a
regularização de áreas ocupadas, a criação de programas habitacionais com finalidade social e o
estabelecimento de conselhos democráticos para a fiscalização e gestão das cidades. Não
obstante todas as resistências que o movimento pela reforma urbana enfrentou na década de
1980, ele teve êxito no sentido de inserir temas importantes na Constituição de 1988, abrindo
caminhos para o estabelecimento de um novo marco jurídico e institucional para as cidades,
possibilitando a sistematização de políticas públicas voltadas para a habitação, para o
saneamento, para a mobilidade urbana e para a destinação de resíduos sólidos (Tonella, 2013).
No sentido de corroborar este argumento quanto à importância da pressão dos
movimentos sociais organizados de sorte a assegurar que a Carta de 1988 tivesse um desenho
mais progressista vale mencionar a mobilização dos movimentos vinculados à questão ambiental,
que resultaram na criação, no Rio de Janeiro, em 1986, de um movimento chamado de
Coordenação Interestadual de Ecologistas para a Constituinte (CIEC), voltado, precisamente,
para pressionar os constituintes em torno da “agenda verde”. A mobilização foi, em grande
medida, bem sucedida, e a Constituição de 1988 dedicou, ao contrário das cartas constitucionais
anteriores, um capítulo exclusivo à questão ambiental, capítulo este que tem sido considerado
por muitos especialistas como inovador, ao incorporar uma série reivindicações realizadas pelos
movimentos organizados em torno da agenda ambiental. Além da inovação de considerar o
meio-ambiente como um direito difuso, em uma perspectiva diferenciada da concepção
constitucionalista liberal, a Carta de 1988 estabelece medidas importantes para proteger o meio-
ambiente, a exemplo da obrigatoriedade de estudos de impacto ambiental previamente à
realização de obras que possam colocar em risco o meio-ambiente (Acselrad, 2008).
Outro movimento social que teve papel importante no sentido de pressionar para que a
Constituição de 1988 incorporasse pautas associadas ao campo progressista foi o Movimento
Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU). Como decorrência das pressões deste
grupo, a Carta de 1988 – que, coincidia, ressalte-se, com as celebrações relacionadas ao
centenário da abolição da escravidão no Brasil, ocorrido em 13 de maio de 1888 – trouxe alguns
avanços importantes para o combate à discriminação e à desigualdade racial. Entre esses
avanços, vale destacar especialmente o reconhecimento ao direito de posse aos remanescentes de
territórios quilombolas, demanda histórica do movimento negro, e, sobretudo, a definição do
racismo como crime “inafiançável e imprescritível”, medida esta que foi posteriormente
regulamentada pela Lei 7716, de 1989, que estabeleceu de forma mais explícita os crimes
resultantes de discriminação ou preconceito racial (Risério, 2007).
Junto e, em alguns casos, articulado à pressão dos movimentos sociais organizados,
destacam-se as chamadas “emendas populares”, enviadas à Assembleia Constituinte nos meses
de elaboração do texto constitucional. Ao longo de todo o processo constituinte, foram subscritas
122 emendas populares, apoiadas por cerca de 12 milhões de brasileiros, com diferentes
assuntos, objetos e temáticas. Ainda que a Mesa Diretora da Assembleia Constituinte tenha
negado o acesso de 39 emendas populares por estas não atenderem às exigências regimentais, ela
admitiu 83 delas, que tiveram papel importante para a configuração dos debates que
atravessaram o processo constituinte de 1987 e 1988 (Michiles, 1989). Ainda faltam estudos
mais detalhados para investigar de modo mais sistemático os principais projetos, sonhos e
utopias que aparecem nestas emendas populares. A despeito disso, é possível perceber de que
maneira elas evidenciam os movimentos que vinham “de baixo” no sentido de pressionar os
parlamentares constituintes, contribuindo, dessa forma, para que o texto constitucional assumisse
feições mais progressistas, não obstante a demografia majoritariamente conservadora do
Congresso constituinte 7

5. Conclusão

No decorrer deste artigo, procurei, em diálogo com a bibliografia produzida sobre o tema,
discutir de que maneira é possível explicar o paradoxo de um texto constitucional
majoritariamente progressista como a Constituição de 1988 ter sido elaborado por um congresso
constituinte majoritariamente conservador. Para tanto, busquei focar especialmente a atenção
sobre três fatores, a saber: o papel desempenhado pelas lideranças de partidos progressistas em
cargos importantes para a elaboração das principais diretrizes do texto constitucional; o destaque
de determinados juristas, assessores dos parlamentareis, imbuídos de valores associados ao
“constitucionalismo democrático”; e, por fim, a pressão que vinha das ruas, sobretudo por parte
dos movimentos sociais organizados. Apesar de o aspecto conservador ter mantido sua força e
importância no texto constitucional, seu direcionamento é predominantemente progressista,
abrindo caminhos importantes para as modificações moleculares que ocorreram na sociedade
brasileira nos anos posteriores em direção a uma sociedade mais igualitária e democrática.
Passados vinte e sete anos desde a aprovação da Constituição de 1988, é possível
constatar sua força e permanência, inclusive no sentido de orientar as agendas governamentais
dos presidentes da Nova República brasileira (Arantes e Couto, 2006). Ainda que muitos deles
tenham tentado reformá-la – e, em alguns casos, tenham obtido êxito nesta empreitada –, sob o
argumento de que ela, pelo seu perfil “social-democrata”, não se adequaria mais aos novos
tempos da globalização neoliberal, a Carta de 1988 resistiu, e, espera-se, resistirá por mais
longos anos, mantendo assegurado seus núcleos centrais e suas cláusulas pétreas. 8 Se, por um
lado, seria um exagero afirmar que o texto constitucional de 1988 dá conta de responder a todas
as demandas colocadas em uma sociedade ainda tão desigual como a brasileira, por outro, seria
um equívoco não reconhecer que o espírito que a animou permanece como um norteador
7
Às emendas populares se somaram milhares de cartas manuscritas por pessoas comuns direcionadas aos
parlamentares constituintes, com demandas e reivindicações de diversas ordens (Versiani, 2014).
8
Recentemente, após as manifestações de junho de 2013, que tomaram as ruas do país, o discurso pela convocação
de uma nova constituinte apareceu com destaque na cena pública brasileira, mobilizado por setores da esquerda,
inclusive, do próprio PT. Porém, a proposta pela convocação de uma nova constituinte não foi adiante. Isso
evidencia que, à direita e à esquerda, a Constituição de 1988 permanece sendo um objeto de contestação e de
disputa. Sobre esta questão, ver Chaloub (2016).
importante para se interpretar os conflitos políticos da “Nova República” brasileira e para a
compreensão dos desafios colocados para o aprofundamento dos processos de democratização
política e social do país.

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