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Capítulo Nove

A estrutura do universo na visão de mundo aristotélica1

Nesta parte do livro, iremos explorar a transição da visão de mundo aristotélica para a
visão de mundo newtoniana. O principal objetivo deste capítulo é proporcionar uma
ideia geral de como as pessoas normalmente viam o universo no período entre 300 A.C.
a 1600 D.C. Isso inclui tanto concepções da estrutura física do universo, como crenças
mais conceituais acerca do tipo de universo que habitamos. Nós vamos começar com
um esboço da estrutura física do universo.

A estrutura física do universo

Como indicado anteriormente, a visão de mundo aristotélica foi a visão de mundo


dominante no mundo ocidental por volta de 300 A.C. a 1600 D.C. Quando eu digo que
esta era a visão dominante, eu quero dizer que um sistema de crenças, com raízes fortes
nos pontos de vista de Aristóteles (apesar de não necessariamente idênticas ao seu ponto
de vista), foi o principal sistema de crenças no mundo ocidental. Esta visão de mundo
certamente não foi o único sistema de crenças naquele período – assim como em
qualquer período, houve uma variedade de alternativas e sistemas de crenças
concorrentes –, mas o sistema de crenças de Aristóteles era o mais comum.

Na visão de mundo Aristotélica, acreditava-se que a Terra era o centro do universo. Ao


contrário do que se pressupõe normalmente, as pessoas não acreditavam em uma visão
geocêntrica por razões meramente egoístas. Ou seja, a visão geocêntrica não foi
baseada, ao menos não originalmente, na visão de que os humanos eram especiais, e
assim deveriam estar no centro de tudo que existe. É verdade que a visão de que os
humanos são especiais se encaixa bem na visão geocêntrica, mas os motivos originais
para esta visão foram resultado de um raciocínio sólido, com base empírica. Nós
daremos uma olhada em algumas destas razões no próximo capítulo.

Além disso, ao contrário do que se pressupõe normalmente, durante a visão de mundo


aristotélica a Terra era vista como esférica, não como plana. Estava claro para os nossos

1
Tradução do livro Worldviews: An Introduction to the History and Philosophy of Science, de Richard
DeWitt, publicado em 2010 pela Wiley-Blackwell. Tradução de Ana Alice Soares Monteiro, revisão de
Marco Aurélio Alves. Circulação interna.
antepassados, desde antes do tempo de Aristóteles, que quase certamente a Terra seria
esférica. Novamente, veremos as razões para esta crença no próximo capítulo, mas estas
coincidem largamente com as razões que dispomos hoje.

Em relação à lua, sol, estrelas e planetas, a visão era como se segue. A lua, obviamente,
é o corpo celeste mais próximo à Terra. A região entre a lua e a Terra, ou seja, a região
sublunar, era pensada como sendo bastante diferente da região além da lua, ou seja, a
região supralunar. Discutiremos algumas dessas diferenças em um momento.

Além da lua, o consenso comum era de que a ordem dos planetas e do sol era a
seguinte: primeiro Mercúrio, depois Vênus, o sol, Marte, Júpiter, Saturno, e então a
chamada esfera das estrelas fixas. Alguns comentários acerca dos planetas e estrelas se
fazem necessários.

Considere, por exemplo, o planeta Marte. Hoje em dia, quando pensamos em Marte,
imaginamos um corpo rochoso, um pouco como a Terra, mas com uma paisagem
estéril, com um solo mais avermelhado do que aquele encontrado na Terra. Mas acima
de tudo, tendemos a pensar em Marte como sendo basicamente como a Terra: um
grande corpo rochoso que se move através do espaço.

Nossa visão de Marte é em grande parte colorida pela tecnologia disponível. Nós vimos
fotografias da superfície de Marte, vimos dados da sonda espacial que visitou Marte,
talvez observamos Marte pessoalmente através de um telescópio, e assim por diante. Em
suma, nossa visão de Marte é altamente influenciada pela tecnologia.

Esta tecnologia não estava disponível durante o período da visão de mundo aristotélica.
De fato, crenças a respeito das estrelas e planetas tiveram que se basear a princípio em
observações a olho nu. O que se pode observar acerca de planetas e estrelas a olho nu?
Não muito. De fato, sem a tecnologia moderna, estrelas e planetas parecem muito
similares. Basicamente, tanto estrelas como planetas parecem apenas pontos luminosos
no céu noturno. A principal diferença observável entre as estrelas e os cinco pontos de
luz que chamamos de planetas (pelo menos, os cinco planetas visíveis a olho nu) é que
estrelas e planetas se movem de maneira diferente pelo céu noturno. Este movimento
diferente entre planetas e estrelas é o principal fator que os distingue entre si.

Dito isso, não havia nenhuma razão para que as pessoas na visão de mundo aristotélica
pensassem nos planetas como sendo parecidos com a Terra. De fato, durante a visão de
mundo aristotélica, pensava-se que o sol, estrelas e planetas eram compostos de uma
substância semelhante, bastante diferente de qualquer coisa encontrada na Terra.
Pensavam que esta substância (o éter) só seria encontrada na região supralunar, e
pensava-se que ela possuia propriedades incomuns que explicavam porque objetos nos
céus se comportavam daquela maneira.

Na periferia do universo ficava a esfera das estrelas fixas. O pensamento era de que
todas as estrelas estavam à mesma distância da Terra, incorporadas a uma esfera. A
esfera girava em torno do seu eixo, completando uma volta mais ou menos uma vez a
cada 24 horas. Quando a esfera girava, carregava consigo as estrelas, e isso explicava o
fato observável de que as estrelas pareciam girar em círculo em volta da Terra a cada 24
horas.

Por fim, uma observação sobre o tamanho do universo. Durante a visão de mundo
aristotélica, as pessoas consideravam que o universo seria de que tamanho, ou seja, o
quão distante de nós estaria a esfera das estrelas fixas? Temos que ser cuidadosos aqui.
Pelos padrões do tempo, considerava-se que o universo era bastante grande. Mas nós
consideramos que o universo é inimaginavelmente maior do que eles pensavam, e talvez
infinito. Para os padrões modernos, a visão de universo deles nos impressiona como
tendo um universo relativamente pequeno. Colocando a mesma questão de outra forma,
eles consideravam que o universo era grande, mas eles não tinham a menor noção do
quão imenso ele se mostraria depois.

Crenças conceituais sobre o universo

Quando deixamos de lado as crenças sobre a estrutura física do universo, e


consideramos as crenças mais conceituais a respeito do universo, os dois aspectos mais
importantes de tais crenças dizem respeito à teleologia e ao essencialismo. Isto é, o
universo era considerado como teleológico e essencialista. Acima de tudo, a teleologia e
o essencialismo estavam intimamente interligados, na medida em que podem ser vistos
como dois lados de uma mesma moeda. Segue uma pequena explicação desses
conceitos.

Para entender a teleologia, vamos começar com a noção de uma explicação teleológica.
Suponha que perguntemos: “Por que plantas frutíferas dão frutos, por que macieiras têm
maçãs?” Evidentemente, a resposta tem a ver com reprodução, isto é, maças contêm
sementes, e sementes são o meio pelo qual as macieiras se reproduzem, então
claramente maçãs têm alguma coisa a ver com reprodução. Mas note que muitas plantas
não envolvem suas sementes em frutos, então por que plantas frutíferas o fazem? A
propósito, ao contrário do que frequentemente se pensa, frutos não provêm nenhuma
fonte de nutrientes para as sementes (desta forma, frutos são muito diferentes das
castanhas/nozes, nas quais o interior possui uma fonte de nutrientes). Temos então uma
boa questão: macieiras, por exemplo, gastam uma grande quantidade dos seus recursos
para produzir maçãs e encerram suas sementes nas mesmas, mesmo que estas não
tenham nenhum uso direto para prover nutrientes para as sementes. Então por que as
macieiras passam por tantas dificuldades e custos para encerrar suas sementes em
maçãs?

Uma boa resposta seria que as maçãs provêm um meio de dispersar as sementes.
Falando antropomorficamente por um momento, veja a situação do ponto de vista da
macieira. Lembre-se, plantas não se movem. Então, se você larga suas sementes
diretamente abaixo de você elas irão aterrissar em um pedaço de solo que já está
ocupado, por assim dizer. Você precisa de uma forma de levar suas sementes para longe
de você. A maioria das plantas tem esse problema, o qual é resolvido de diferentes
maneiras. Algumas plantas envolvem suas sementes em estruturas macias e leves, que
são capturadas e levadas pelo vento. Algumas envolvem as sementes em recipientes
grudentos, que se prendem nos pelos de animais que estiverem passando e são
carregadas por eles. Algumas usam estruturas como hélices de um helicóptero, que
giram para longe da planta, e assim por diante. Plantas frutíferas envolvem suas
sementes em estruturas que são uma boa fonte de alimento para animais, e quando estes
ingerem o fruto engolem as sementes junto. Depois de um ou dois dias o animal excreta
as sementes, nesse momento a alguma distância da planta parental (juntamente com
uma conveniente quantidade de fertilizante, deve ser notado).

Em resumo, se é feita a pergunta “Por que macieiras têm maçãs?”, uma boa resposta é
que elas têm maçãs para dispersar suas sementes. Esta explicação é um exemplo
paradigmático de uma explicação teleológica. Aqui estão outros exemplos. Por que o
coração bate? Para bombear sangue. Por que você está lendo este livro? Para aprender
sobre história e filosofia da ciência. Por que o estegossauro tem grandes placas ósseas
em suas costas? Para regular a temperatura.

Em geral, uma explicação teleológica é qualquer uma que é dada em termos de um


objetivo, ou propósito, ou função a ser satisfeita. Em todos os casos acima, o objetivo,
propósito, ou função devem estar claros: dispersar sementes, bombear sangue, aprender,
e regular temperatura são todos objetivos, propósitos ou funções.

Agora, vamos comparar as explicações acima com as explicações mecânicas. Uma


explicação mecânica é aquela que não é dada em termos de objetivos, propósitos, ou
funções. Suponha, por exemplo, que eu deixe uma pedra cair. Se fizermos a pergunta
“Por que a pedra caiu?”, desde o final dos anos 1600 a explicação padrão é que a pedra
caiu por conta da gravidade. Note que nesta explicação não há nenhuma indicação (de
maneira alguma) de nenhum objetivo, propósito ou função. A pedra não tem nenhum
objetivo ou propósito em cair, nem há nenhuma função envolvida. É simplesmente um
objeto sob a influência de uma força externa. Tais explicações sem objetivo, propósito
ou função, são mecânicas. Então em geral, uma explicação teleológica é aquela dada em
função de objetivos, propósitos ou funções, enquanto uma explicação mecânica é aquela
que não faz uso de objetivos, propósitos ou funções.

Note que muitas perguntas podem admitir tanto explicações teleológicas como
mecânicas. O exemplo acima, de que macieiras têm maçãs para dispersar sementes, é
uma explicação teleológica. Mas para a mesma pergunta pode ser dada uma explicação
mecânica perfeitamente boa, como se segue. Na história evolutiva das macieiras, os
ancestrais das macieiras atuais que produziam maçãs (ou os antepassados das maçãs),
sobreviveram e se reproduziram com mais sucesso do que aqueles que não o faziam.
Assim, as macieiras que tinham maçãs (ou melhor, suas antepassadas) passaram a estar
em maior número na população. Em resumo, a resposta à questão de por que macieiras
têm maçãs é simplesmente uma história evolutiva envolvendo diferentes taxas de
sobrevivência e reprodução.

Note que esta consideração evolutiva não faz uso de nenhum objetivo, propósito ou
função. E, novamente, esta é uma explicação perfeitamente precisa de por que macieiras
têm maçãs. Em geral, as perguntas frequentemente admitem tanto explicações
teleológicas quanto mecânicas.

Tenho insistido por algum tempo nas explicações teleológicas porque tais explicações
ilustram uma diferença importante entre a forma como nós conceituamos o universo e a
forma como nossos ancestrais o faziam. Dentro da visão de mundo aristotélica,
explicações teleológicas eram consideradas o tipo adequado de explicação científica, o
que contrasta grandemente com a ciência moderna, na qual explicações mecânicas
dominam. A razão porque explicações teleológicas eram consideradas o tipo adequado
de explicação científica é bem clara: dentro da visão de mundo aristotélica, considerava-
se que o universo era realmente teleológico. Isto é, a teleologia não era simplesmente
uma característica da explicação; ao invés disso, ela era considerada uma característica
do próprio universo.

Alguns exemplos podem ajudar a ilustrar isso. Suponha que voltemos ao exemplo da
pedra que cai. Novamente, na era moderna, a explicação do porque a pedra cai é dada
em termos da gravidade. Entretanto, a noção de gravidade (no nosso senso moderno do
termo) não existia até 1600. Qualquer que fosse a explicação para a pedra cair, dentro
da visão de mundo aristotélica, esta não poderia ser dada nos termos da nossa noção de
gravidade. (Inclusive, o termo ‘gravidade’ aparece com frequência nos escritos antes de
1600, mas não se refere a nada parecido com o nosso senso comum do termo, isto é, não
é vista como uma força atrativa. Ao invés disso, antes de 1600, ‘gravidade’ se referia
simplesmente à tendência dos objetos pesados se moverem para baixo.) Dentro da visão
de mundo aristotélica, a pedra cai porque é composta primariamente do elemento
pesado da Terra, e como mencionado no capítulo 1, o elemento terra tem a tendência
natural de se mover em direção ao centro do universo. Em outras palavras, o elemento
terra tem a tendência natural de cumprir um certo objetivo, de se dirigir ao centro do
universo.

Cada um dos elementos básicos tem o objetivo natural de alcançar seu lugar natural no
universo, e esses objetivos naturais explicam porque os objetos se movem naturalmente
do jeito como se movem. O fogo queima para cima, porque o elemento fogo tem o
objetivo natural de se mover em direção à periferia, para longe do centro. O mesmo é
válido para outros casos de movimento natural. (Movimentos forçados, quando, por
exemplo, uma pedra é jogada para cima, é uma outra história, que não nos interessa
aqui.)

Relatos similares valem para a região supralunar. O elemento éter tem o objetivo natural
de se mover de maneira perfeitamente circular, e isso explica o movimento circular de
corpos pesados tais como o sol, estrelas e planetas. O universo, em geral, era visto como
um universo teleológico, cheio de propósitos e objetivos naturais.
Complementando a teologia, havia o outro conceito chave mencionado acima, o
essencialismo. Pensava-se que os objetos naturais tinham essências naturais, e estas
seriam o motivo deles se comportarem como se comportam. Todos os objetos são
compostos de certa forma de matéria organizada, e dada a matéria da qual um objeto é
composto, e a maneira que a matéria é organizada, o objeto terá certas habilidades e
tendências naturais, as quais podemos resumir dizendo que os objetos têm uma essência
natural. Os objetos mais simples (os elementos básicos), obviamente, possuem a
essência natural mais simples. Suas essências naturais consistem simplesmente em sua
tendência a se mover em direção ao seu lugar natural.

É importante perceber o quão intimamente teleologia e essencialismo estão conectados.


A essência natural de um objeto é uma natureza teleológica e, novamente, teleologia e
essencialismo são como dois lados da mesma moeda.

Objetos mais complexos têm essências naturais mais complexas, mas a história geral
continua a mesma. Por exemplo, considere uma bolota de carvalho. Esta, como todos os
objetos, é composta de certos tipos de matéria dispostos de certa maneira, e como visto
acima, por conta da matéria da qual é composta, e de sua organização, a bolota terá
certas habilidades e tendências naturais. Em outras palavras, ela terá uma natureza
essencial, e isto é o que a faz se comportar como se comporta. Uma bolota de carvalho
tem o objetivo natural de se tornar um carvalho maduro, e sob as condições apropriadas
ela irá se transformar em um carvalho, eventualmente se reproduzindo através da
produção de outras bolotas. De novo, tudo isso se dá por conta da natureza essencial da
bolota de carvalho, que resulta da sua matéria e da organização da mesma.

Perceba novamente a ligação íntima entre a essência natural da bolota de carvalho e seu
comportamento teleológico orientado para um objetivo. Em linhas gerais, a natureza
essencial da bolota está intimamente relacionada ao seu crescimento, maturação e
eventual reprodução. Em outras palavras, a natureza essencial da bolota é teleológica:
crescer e reproduzir.

Dentro da visão de mundo aristotélica, o trabalho de um cientista natural é em grande


parte buscar compreender as naturezas essenciais, teleológicas, de categorias de objetos.
Um biólogo, por exemplo, buscará entender a natureza essencial das espécies de
animais. Normalmente esta não será uma tarefa fácil ou trivial, mas a ideia geral do que
se busca é clara. É preciso saber a matéria da qual um objeto é composto, a organização
desta, como ela veio a se organizar desta maneira, para que tipos de objetivos ou
funções naturais o objeto é voltado, e assim por diante. Fazendo isso, se chegará a
compreender a natureza essencial, teleológica, do objeto.

Para resumir os principais pontos desta seção: todos os objetos naturais possuem
naturezas essenciais; as naturezas essenciais são teleológicas; e as naturezas essenciais
são o motivo dos objetos se comportarem da maneira como o fazem. Em resumo, o
universo era visto como um universo teleológico e essencialista.
Considerações finais

Em resumo, a respeito da estrutura física do universo, este era concebido como tendo a
Terra no seu centro, com a lua, sol, estrelas e planetas girando em volta dela. Como
veremos no próximo capítulo, estas eram as crenças que melhor se apoiavam nas
evidências disponíveis na época.

Em termos mais conceituais, a visão de mundo aristotélica via o universo como


teleológico e essencialista. O universo estava repleto de objetivos naturais e propósitos,
e entender tais objetivos e propósitos era uma das tarefas chave de um cientista natural
que buscava entender o universo.

No mundo ocidental, essa visão geral do universo foi a visão hegemônica por um longo
período de tempo (quase 2000 anos). É evidente que ao longo deste vasto período de
tempo, vários acréscimos e modificações foram feitos nessa visão de mundo. Por
exemplo, as principais religiões do mundo ocidental (Judaísmo, Cristianismo e
Islamismo) fizeram contribuições. Entretanto, todas elas se situavam dentro da estrutura
aristotélica geral, isto é, dentro de uma estrutura com um universo teleológico,
essencialista, e que tinha a Terra como centro.

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