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Capítulo Um1

Visões de mundo

O principal objetivo deste capítulo é introduzir a noção de visão de mundo. Tal como
acontece com a maioria dos tópicos que vamos explorar neste livro, a noção de visão de mundo
acaba por ser substancialmente mais complexa do que parece à primeira vista. Nós
começaremos, porém, com uma caracterização relativamente direta dessa noção. À medida que
o livro avançar, e nós começarmos a compreender mais a respeito da visão de mundo
aristotélica e a respeito da nossa própria visão de mundo, alcançaremos uma melhor
compreensão de algumas das complexidades envolvidas.
Embora o termo ‘visão de mundo’ tenha sido extensivamente utilizado por mais de 100
anos, não é um termo que possui uma definição padrão. Tomarei então um momento para
esclarecer como usarei este termo. De maneira resumida, usarei ‘visão de mundo’ para me
referir a um sistema de crenças que estão interconectadas de maneira semelhante ao modo com
que as peças de um quebra-cabeça se interconectam. Isto é, uma visão de mundo não é
meramente uma junção de crenças separadas, independentes e não relacionadas, mas sim um
sistema de crenças entrelaçadas, inter-relacionadas e interconectadas.
Frequentemente, a melhor maneira de entender um novo conceito é através de um
exemplo. Com isso em mente, podemos começar analisando a visão de mundo aristotélica.

As crenças de Aristóteles e a visão de mundo aristotélica

No mundo ocidental, o que estou chamando de visão de mundo aristotélica foi o sistema
de crenças dominante no período de 300 a.C. até cerca de 1600 d.C.. Essa visão de mundo era
baseada em um conjunto de ideias articuladas de maneira mais clara e completa por Aristóteles
(384-322 a.C.). Curiosamente, o termo ‘visão de mundo aristotélica’ não se refere propriamente
ao conjunto de crenças defendidas por Aristóteles, mas a uma série de crenças compartilhadas
por um largo segmento da cultura ocidental após sua morte e que eram, como observado, em
grande parte baseadas em suas ideias.
Para entender a visão de mundo aristotélica, será mais fácil começarmos com as ideias do
próprio Aristóteles. Em seguida, discutiremos de que maneiras essas ideias evoluíram nos
séculos após a morte de Aristóteles.

Crenças de Aristóteles

Aristóteles possuía um grande número de crenças que eram radicalmente diferentes das
que temos hoje. Eis aqui alguns exemplos:

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Tradução do livro Worldviews: An Introduction to the History and Philosophy of Science, de Richard
DeWitt, publicado em 2010 pela Wiley-Blackwell. Tradução de André Araújo e Erasmo Martins, Revisão
de Marco Aurélio Alves. Circulação interna.

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(a) A Terra está localizada no centro do universo.
(b) A Terra é estacionária, isto é, não orbita nenhum outro corpo celeste como o sol, e nem gira
em torno do seu próprio eixo.
(c) A lua, os planetas, e o sol giram em torno da Terra, completando a órbita em
aproximadamente 24 horas.
(d) Na região sublunar, isto é, a região entre a Terra e a Lua (incluindo a própria Terra), existem
quatro elementos fundamentais, sendo estes a terra, a água, o ar e o fogo.
(e) Os objetos na região supralunar, ou seja, a região além da lua, incluindo a lua, o sol, os
planetas e as estrelas, são compostos por um quinto elemento fundamental, o éter.
(f) Cada um dos elementos fundamentais possui uma natureza essencial, e esta natureza
essencial é o que explica o comportamento de cada elemento.
(g) A natureza essencial de cada um dos elementos fundamentais é refletida na maneira com que
cada elemento tende a se mover.
(h) O elemento terra possui uma tendência natural de se mover em direção ao centro do
universo. (Por isso as rochas caem diretamente para baixo, uma vez que o centro da Terra é o
cento do universo).
(i) O elemento água também possui a tendência natural de se mover em direção ao centro do
universo, porém sua tendência não é tão forte quanto a do elemento terra. (Por este motivo,
quando água e terra são misturados, ambos tendem a se mover para baixo, mas a água
eventualmente vai acabar por cima da terra).
(j) O elemento ar naturalmente se move em direção a uma região acima da terra e da água, mas
abaixo do fogo. (É por isso que o ar, quando soprado dentro da água, sobe através da água na
forma de bolhas).
(k) O elemento fogo possui a tendência natural de se afastar do centro do universo. (É por isso
que o fogo queima em direção ascendente, através do ar).
(l) O elemento éter, que compõe objetos tais como os planetas e estrelas, tende naturalmente ao
movimento circular perfeito. (Razão pela qual os planetas e estrelas movem continuamente em
círculos ao redor da Terra, isto é, ao redor do centro do universo).
(m) Na região sublunar, um objeto em movimento tende naturalmente a parar, ou porque os
elementos que o compõem alcançaram seu lugar natural no universo, ou mais frequentemente
porque algo (por exemplo, a superfície da Terra) impediu o objeto de continuar em direção ao
seu lugar natural.
(n) Um objeto em repouso se manterá em repouso, a não ser que haja alguma fonte de
movimento (seja por movimento autômato, como quando um objeto se move em direção ao seu
lugar natural no universo, ou através de uma fonte externa de movimento, como quando se
empurra uma caneta pela mesa).

Essas ideias são apenas uma porção bem pequena das visões de Aristóteles. Ele também
tinha visões abrangentes sobre ética, política, biologia, psicologia, o método correto de se
conduzir investigações científicas, além de outras tantas. Assim como a maioria de nós,
Aristóteles tinha milhares de crenças, a maior parte das quais eram bem diferentes das nossas.
Importante dizer que as ideias de Aristóteles eram tudo menos um conjunto aleatório de
crenças. Quando eu digo que as ideias não eram aleatórias, parte do que eu quero dizer é que ele
tinha bons motivos para acreditar em grande parte delas, e as crenças estavam longe de serem
ingênuas. Cada uma das crenças listadas acima se mostrou incorreta, mas dadas as informações
disponíveis na época, cada uma delas era bem justificada. Para tomar apenas um exemplo, os
melhores dados científicos da época de Aristóteles indicavam fortemente que a Terra estava no
centro do universo. A crença estava errada, mas não era nada ingênua.

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Ao dizer que as ideias não eram aleatórias, também quero dizer que elas formam um
sistema de crenças inter-relacionado e integrado. Para ilustrar a forma como as crenças de
Aristóteles eram inter-relacionadas e integradas, considere uma maneira errada e uma maneira
certa de retrata-las.
Primeiro, a maneira errada, a qual irei ilustrar por uma analogia com listas de compras.
Quando a maioria de nós faz listas de compras, acabamos com uma lista aleatória de itens
relacionados apenas pelo fato de que podemos, ou esperamos, encontra-los no supermercado.
Nós poderíamos organizar nossa lista de compras – com os laticínios em uma parte da lista, os
artigos de padaria em outra parte, e assim por diante –, mas a maior parte de nós simplesmente
não se dá ao trabalho. E o resultado disso é uma lista aleatória com nenhuma relação particular
entre seus itens.
Quando pensar nas crenças de Aristóteles, não pense nelas como uma lista de compras
com itens não relacionados. Ou seja, não imagine suas crenças ao modo de uma lista
desordenada, como na figura 1.1. Ao invés disso, eis uma imagem mais adequada. Pense no
conjunto de crenças como um quebra-cabeça. Cada peça dele é uma crença particular, com as
peças se encaixando de uma maneira coerente, consistente, inter-relacionada e integrada, assim
como um quebra-cabeça. Isto é, imagine o sistema de crenças de Aristóteles mais como aparece
na figura 1.2.

Figura 1.1 Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar 0 ao texto que deverá aparecer aqui.

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Figura 1.2 Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar 0 ao texto que deverá aparecer aqui.

A metáfora do quebra-cabeça ilustra as principais características do modo como estou


usando a noção de visão de mundo. Primeiramente, peças de um quebra-cabeça não são
independentes e isoladas; ao contrário, elas são interconectadas. Cada peça se encaixa nas peças
ao lado, e estas se encaixam nas peças ao lado, e assim por diante. Todas as peças estão
interconectadas e inter-relacionadas, e o resultado global é um sistema no qual as peças
individuais se encaixam num todo integrado, interconectado, coerente e consistente.
Da mesma forma, as crenças de Aristóteles se encaixam uma na outra, formando um
sistema integrado e consistente. Cada crença é intimamente ligada às crenças ao redor dela, e
essas crenças por sua vez estão intimamente ligadas às crenças ao redor, e assim por diante.
Para tomar apenas um exemplo de como as ideias de Aristóteles se encaixam uma na
outra, considere a proposição de que a Terra é o centro do universo. Esta ideia é intimamente
interconectada com a ideia de que o elemento terra possui a tendência natural de se mover em
direção ao centro do universo. Afinal, a Terra é composta primariamente de elemento terroso,
então a crença de que o elemento terra naturalmente move em direção ao centro do universo e a
crença de que a Terra está no centro do universo se encaixam perfeitamente. Da mesma forma,
ambas as crenças são ligadas à ideia de que um objeto entrará em movimento apenas se houver
uma fonte motriz. Assim como minha caneta permanecerá imóvel a não ser que algo a mova, o
mesmo acontece com a Terra. Tendo há muito tempo se movido para o centro do universo, ou
tão perto do centro quanto se podia, os elementos pesados que compõem a Terra irão agora
permanecer imóveis, porque não há nada poderoso o suficiente para mover um objeto tão
massivo quanto a Terra. Todas essas crenças estão, por sua vez, intimamente conectadas à
crença de que os elementos fundamentais possuem naturezas essenciais, e à crença de que o
comportamento dos objetos se deve em grande parte à natureza essencial dos elementos de que
são compostos. Mais uma vez, o ponto geral é que as crenças de Aristóteles são interconectadas
assim como as peças de um quebra-cabeça são interconectadas.
Somado a isso, note que em um quebra-cabeça existem diferenças entre as peças centrais
e as peças periféricas. Devido às interconexões, uma peça central não pode ser substituída por
uma peça de formato diferente sem substituir quase o quebra-cabeça inteiro. Uma peça próxima
da periferia, no entanto, pode ser substituída com relativamente pouca alteração no resto do
quebra-cabeça.
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De maneira similar, dentre as crenças de Aristóteles podemos distinguir entre crenças
centrais e periféricas. Crenças periféricas podem ser substituídas sem muita alteração na visão
de mundo como um todo. Por exemplo, Aristóteles acreditava que existiam cinco planetas (sem
contar o sol, a lua e a Terra). Cinco planetas é tudo que podemos observar sem a tecnologia de
nossos tempos. Mas se tivesse surgido alguma evidência, digamos, de um sexto planeta,
Aristóteles poderia facilmente acomodar essa nova crença sem muita alteração no seu sistema
de crenças como um todo. Essa habilidade de ser mudada sem causar alteração substancial no
sistema geral de crenças é típica de uma crença periférica.
Em contraste, considere a crença de que a Terra era estacionária e estava no centro do
universo. No sistema de crenças de Aristóteles isso é uma ideia central. Importante notar que ela
é uma ideia central não devido à profunda convicção que Aristóteles tinha por essa ideia, mas
sim porque, como uma peça de quebra-cabeça próxima ao centro, ela não pode ser removida e
substituída sem alterar dramaticamente as crenças com as quais está conectada, o que por sua
vez requereria alterar quase todo o seu sistema de crenças.
Para ilustrar isso, suponha que Aristóteles tentasse substituir sua crença de que a Terra era
o centro do universo, e substituísse por, digamos, a crença de que o sol era o centro. Poderia
Aristóteles simplesmente remover essa crença, essa peça do quebra-cabeça, e a substituir pela
nova crença de que o sol é o centro, e fazer isso mantendo a maior parte do resto do quebra-
cabeça intacto?
A resposta é não, pois a nova crença, de que o sol é o centro do universo, não se
encaixaria no resto do quebra-cabeça. Os objetos pesados, por exemplo, claramente caem em
direção ao centro da Terra. Se o centro da Terra não é o centro do universo, então a crença de
Aristóteles de que objetos pesados (aqueles compostos principalmente pelos elementos pesados
terra e água) possuem a tendência natural de moverem em direção ao centro do universo teria
também que ser substituída. Isso, por sua vez, exigiria a substituição de uma multidão de outras
crenças interconectadas, tais como a crença de que os objetos possuem naturezas essenciais que
determinam a maneira como se comportam. Resumindo, tentar substituir apenas uma crença
central faz com que seja necessária a substituição de todas as crenças com as quais está
interconectada, e em geral, isso exigiria construir um quebra-cabeça de crenças inteiramente
novo.
Novamente, isso tudo é para reforçar a ideia de que as crenças de Aristóteles não são uma
coleção aleatória e desordenada, mas um quebra-cabeça de crenças interconectadas. Essa noção
de que crenças individuais se encaixam para formar um sistema integrado e consistente é a ideia
chave por trás da maneira como usarei a noção de visão de mundo. Em suma, quando eu falar de
uma visão de mundo, pense na analogia do quebra-cabeça.

A visão de mundo aristotélica

Até agora, discutimos primariamente as crenças do próprio Aristóteles, e talvez se tenha a


impressão de que uma visão de mundo envolva o quebra-cabeça de crenças de um indivíduo
particular. Pessoas às vezes falam dessa maneira. Num certo sentido, cada um de nós possui um
sistema de crenças específico, uma visão de mundo ligeiramente diferente de todas as outras
pessoas. E é claro, nosso sistema de crenças individual é parte do que torna cada um de nós os
indivíduos que somos.
Porém, para este livro, o sentido mais importante de ‘visão de mundo’ tem um alcance
maior. Por exemplo: grande parte do mundo ocidental, desde a morte de Aristóteles até os anos
1600, partilhou um jeito mais ou menos aristotélico de olhar para o mundo. Isso certamente não
significa que todo mundo acreditava exatamente no mesmo que Aristóteles, ou que o sistema de
crenças não sofreu acréscimos ou modificações nesse período. Várias vezes durante esse

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período, filósofos-teólogos judaicos, cristãos e islâmicos, por exemplo, misturaram crenças
aristotélicas com crenças religiosas, e essas misturas ilustram algumas das maneiras com que as
crenças aristotélicas foram modificadas nos séculos após sua morte. Há também grupos que
adotaram uma visão distinta, não-aristotélica, do universo. Havia, por exemplo, grupos cujas
crenças eram mais próximas das ideias de Platão (428-348 a.C.) do que das de Aristóteles, e
esse sistema de crenças platônico proveu uma alternativa à visão de mundo aristotélica. (Platão,
incidentalmente, era professor de Aristóteles, ainda que as visões do aluno às vezes divergissem
substancialmente das visões de Platão).
A despeito de tais modificações das crenças de Aristóteles, e a despeito da existência de
grupos que adotavam uma visão de mundo não-aristotélica, o sistema de crenças de amplos
segmentos do mundo ocidental, de cerca de 300 a.C. até 1600, compartilhava em grande parte o
espírito aristotélico. A crença de que a Terra era o centro do universo, que objetos possuíam
naturezas essenciais e tendências naturais, que a região sublunar era um lugar de imperfeição e a
região supralunar um lugar de perfeição, e assim por diante, faziam parte do consenso da maior
parte do mundo ocidental. E esse grupo de crenças se encaixava, assim como as crenças de um
indivíduo se encaixam, num sistema integrado, consistente e coerente. E é o quebra-cabeças
desse grupo de crenças, permeado pelo espírito das crenças de Aristóteles, que terei em mente
quando falar da visão de mundo aristotélica.

A visão de mundo newtoniana

Para contrastar com a visão de mundo aristotélica, vamos analisar brevemente um outro
sistema de crenças. No início do século XVII, novas evidências surgiram (principalmente
devido ao recém inventado telescópio) indicando que a Terra se move ao redor do Sol.
Conforme discutimos acima, não podemos simplesmente substituir a crença na centralidade da
Terra, que está no quebra-cabeça aristotélico, sem alterar virtualmente todas as peças do quebra-
cabeça. Portanto, esta descoberta significou que a visão de mundo aristotélica não era mais
viável. Iremos explorar esta fascinante e complexa história mais adiante neste livro, mas por
hora basta dizer que eventualmente um novo sistema de crenças surgiu. Em particular, este novo
sistema incluiu a crença de que a Terra está em movimento.
Chamaremos esta nova visão que substituiu a visão aristotélica de visão de mundo
newtoniana. Esta visão de mundo tem como fundamento o trabalho de Isaac Newton (1642-
1727) e seus contemporâneos, sendo incrementada consideravelmente ao decorrer dos anos.
Assim como a visão aristotélica, a visão newtoniana engloba um grande número de crenças. Eis
algumas delas:

1. A Terra gira em seu eixo, completando uma volta aproximadamente a cada 24 horas.
2. A Terra e os planetas se movem em órbitas elípticas ao redor do Sol.
3. Existem pouco mais de 100 elementos básicos no universo.
4. O comportamento dos objetos é devido principalmente à influência de forças
externas, como a gravidade, que é o motivo porque as pedras caem.
5. Objetos como planetas e estrelas são compostos dos mesmos elementos básicos que
compõem os objetos na Terra.
6. As mesmas leis que descrevem o comportamento dos objetos na Terra (por exemplo,
a lei da inércia) também se aplicam a objetos como planetas e estrelas.

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E assim por diante para as milhares de outras crenças que compõem a visão de mundo
newtoniana.
Esta é a visão de mundo em que a maioria de nós, nascidos no mundo ocidental, fomos
criados. E a mesma análise da visão de mundo aristotélica se aplica às crenças que compõem a
visão newtoniana. Em particular, a visão de mundo newtoniana consiste num sistema de crenças
que liga as peças de um quebra-cabeça de forma a criar sistema de crenças coerente, consistente
e interconectado. Apesar de ambos os sistemas de crenças serem coerentes e consistentes, eles
são quebra-cabeças muito diferentes, com crenças centrais muito diversas.
A transição da visão de mundo aristotélica para a newtoniana foi uma mudança
dramática, que será abordada na Parte II deste livro. Como veremos, a transição foi estimulada,
em grande parte, pelas descobertas no início do século XVII. Posteriormente, na Parte III,
iremos explorar algumas descobertas recentes surpreendentes. Assim como as descobertas do
século XVII demandaram mudanças no quebra-cabeça de crenças existentes, essas novas
descobertas também implicam em mudanças no nosso próprio quebra-cabeça de crenças.

Considerações Finais

Antes de concluir essa introdução à noção de visão de mundo, gostaria de fazer duas
rápidas observações. A primeira delas refere-se à evidência que temos para as crenças que
compõem nossa visão de mundo, e a segunda trata do aparente caráter de senso comum de
muitas das crenças que compõem nossa visão de mundo.

Evidência

Já falamos bastante sobre as crenças e, presumivelmente, as pessoas têm razões para


acreditar no que acreditam. Sendo assim, nós supostamente dispomos de algum tipo evidência
para as nossas crenças.
Por exemplo, você provavelmente acredita que Aristóteles estava errado, acredita que a
Terra não é o centro do universo. Você provavelmente acredita que o Sol é o centro do nosso
sistema solar, e que a Terra e os demais planetas se movem ao redor dele. Você deve
supostamente ter boas evidências para acreditar nisso. Mas suspeito que a sua evidência não é
exatamente o que você pensa dela. Pense um pouco e se pergunte: Por que eu acredito que a
Terra se move ao redor do Sol? Qual evidência eu tenho? Sério, deixe este livro de lado e tome
um tempo para ponderar sobre isto.
Pronto? Primeiramente, considere se você tem alguma evidência direta para sua crença de
que a Terra se move ao redor do Sol. Quando falo em ‘evidência direta’, penso no seguinte:
quando ando de bicicleta, tenho evidência direta de que estou me movendo. Eu sinto o
movimento da bicicleta, sinto o vento no meu rosto, vejo que passo adiante de outros objetos,
etc. Você tem alguma evidência direta desse tipo de que a Terra está se movendo ao redor do
Sol? Parece que não. Nós não sentimos como se estivéssemos nos movimentando, nem sentimos
ventos fortes e constantes soprando em nossos rostos. De fato, quando olhamos pela janela, tudo
o que vemos é a Terra parada.
Se pensar sobre as razões que possui para acreditar que a Terra está em movimento,
suponho que você não encontrará nenhuma evidência direta de que a Terra está se movendo ao
redor do Sol. Ainda assim, sua crença é razoável, e você certamente tem alguma evidência
disso. Mas em vez de evidências diretas, suas evidências são mais parecidas com o seguinte:
pare por um instante e tente acreditar que a Terra não se move ao redor do Sol. Você percebe

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que essa crença não se encaixa no seu conjunto de crenças? Por exemplo, essa crença vai de
encontro ao que seus professores te ensinaram. Ela também colide com a crença de que grande
parte do conhecimento que você adquiriu em livros está correto. Tal crença conflita também
com sua crença de que os especialistas de nossa sociedade não poderiam estar todos enganados
acerca de algo tão básico. E assim por diante.
O ponto principal é que você acredita que a Terra se move ao redor do Sol principalmente
porque essa crença se encaixa com as outras peças do seu quebra-cabeça de crenças, enquanto a
crença contrária não se encaixa nesse quebra-cabeça. Em outras palavras, sua evidência para
essa crença está fortemente ligada com as demais peças do quebra-cabeça, que é a sua visão de
mundo.
Eventualmente, não seria irrazoável pensar que mesmo que nós não tivéssemos nenhuma
evidência direta de que a Terra se move ao redor do Sol, certamente especialistas em astronomia
e campos correlatos teriam estas evidências. Mas, conforme veremos nos próximos capítulos,
até mesmo nossos especialistas não possuem evidências diretas. Não queremos sugerir de forma
alguma que não exista nenhuma boa evidência de que a Terra se move ao redor do Sol. Sim, há
boas evidências. Mas essas evidências são mais indiretas do que parecem. E isso se aplica a
muitas (provavelmente à maioria) das nossas crenças.
Em suma, nós temos evidência direta para um número surpreendentemente pequeno das
nossas crenças. Para a maioria das crenças (talvez quase todas), nós acreditamos nelas
principalmente por causa do jeito como elas se encaixam no nosso conjunto interconectado de
crenças. Ou seja, nós acreditamos no que acreditamos principalmente devido à forma como
nossas crenças se encaixam em nossa visão de mundo.

Senso Comum

A maioria de nós foi criada dentro da visão de mundo newtoniana, e a maioria das
crenças dessa visão que foram mencionadas aqui parece quase senso comum. Mas vamos pensar
um pouco sobre isto: essas crenças são qualquer coisa menos senso comum. Por exemplo, não é
aparentemente perceptível que a Terra se move ao redor do Sol. Se você olhar pela janela, verá
que a Terra parece estar perfeitamente parada. Também parece que o Sol, as estrelas e os
planetas movem ao redor da Terra aproximadamente a cada 24 horas. Considere agora a crença,
que você provavelmente adquiriu nos primeiros estágios da sua educação, de que objetos em
movimento tendem a se manter em movimento. A maioria das pessoas que conheço toma isso
como uma verdade óbvia. Mas em nossa experiência do dia-a-dia, os objetos em movimento
não se comportam dessa maneira. Por exemplo, quando lançamos um frisbee ele não continua
em movimento. Ele logo cai no chão e para. Bolas de baseball também não se mantem em
movimento. Mesmo que ninguém as apanhe, elas logo param de rolar. Em nossa experiência
ordinária, nada continua em movimento.
O que eu quero dizer é que, em geral, mesmo que compartilhemos essas crenças, as
crenças mencionadas acima, que compõem a visão de mundo newtoniana, não são crenças que
adquirimos pelo senso comum ou pela experiência ordinária. Mas fomos criados com a visão
newtoniana, e como estas crenças nos foram ensinadas desde criança, elas nos parecem agora
como obviamente corretas. Mas pense nisso: se fossemos criados com a visão aristotélica, as
crenças de Aristóteles seriam igualmente vistas como senso comum.
Em suma, do interior de qualquer visão de mundo, as crenças dessa visão serão vistas
como obviamente corretas. Então o fato de nossas crenças fundamentais parecerem certas,
parecerem senso comum, parecerem obviamente corretas, não serve como uma evidência
particularmente boa para tais crenças.

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Isto nos leva à seguinte questão: não há dúvida de que a visão de mundo aristotélica
mostrou-se terrivelmente equivocada. A Terra não é o centro do universo, o comportamento dos
objetos não se deve às suas “naturezas essenciais”, etc. Mais importante, não eram apenas as
crenças individuais que estavam erradas, mas todo o quebra-cabeça formado pelo sistema de
crenças mostrou ser o tipo errado de quebra-cabeça. O universo, pensamos hoje, não é nada
como pensava a visão de mundo aristotélica. No entanto, apesar de equivocadas, estas crenças
formavam um sistema consistente e foram consideradas óbvias e senso comum por quase 2,000
anos.
Será que o nosso quebra-cabeça, ou nossa visão de mundo, poderia ser igualmente
equivocado, mesmo possuindo um sistema de crenças consistentes e aparentemente óbvias?
Sem dúvida algumas de nossas crenças individuais se mostrarão incorretas. Mas a pergunta que
eu faço é se a forma como vemos o mundo poderia se mostrar como a forma errada de encará-
lo, assim como a visão de mundo aristotélica mostrou ser o tipo errado de quebra-cabeça.
Colocando a mesma questão de outra forma: quando olhamos para a visão de mundo
aristotélica, muitas de suas crenças nos parecem curiosas e até bizarras. Será que nossos
descendentes, nossos netos ou gerações centenas de anos no futuro, dirão as mesmas coisas
sobre as nossas crenças, que nos parecem hoje tão obviamente corretas? Será que eles acharão
nossas crenças curiosas e até bizarras?
Estas são questões interessantes. No decorrer do livro, discutiremos algumas descobertas
recentes que sugerem que algumas partes de nossa visão de mundo parecem de fato ser a forma
errada de olhar para o mundo. Mas, por enquanto, vamos deixar estas questões para vocês
pensarem e vamos prosseguir para o próximo tópico.

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