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Expediente

CONSELHO EDITORIAL
Dr. André Ricardo Fonseca da Silva
Ms. Gustavo Leite Castello Branco

PRODUÇÃO EDITORIAL
Criativa (FICV)

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Ruan Elson

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Ewerton Henrique Patrício

REVISÃO ORTOGRÁFICA
Joyce Henrique Barbosa de Lima

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

Nascimento, Bruno Ribeiro


N244 Introdução à Cosmovisão / Bruno Ribeiro Nascimento. -
Faculdade Internacional Cidade Viva EAD, Curso de Teologia
EAD. – João Pessoa, 2020
156 p.

Apostila do Curso de Teologia EAD


Publicação on-line: https://ead.cidadeviva.br

1. Ideologia. 2. Apologética. 3. Teologia, doutrinária –


obras populares. 4. Ideologia – aspectos religiosos – cristianismo.
I. Título. II. Faculdade Internacional Cidade Viva - FICV

CDU 27-662:3

Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Integrado de Biblioteca FICV/ EICV


Bibliotecário: Tirza Egito Rocha de Souza – CRB–15/ 0607
Revisor textual: Joyce Henrique Barbosa de Lima

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO


1. Influência da Igreja na sociedade CDU 27-662:3
SUMÁRIO
Introdução à
Cosmovisão Cristã

04 Aula 01, Conceito de Cosmovisão


12 Aula 02, Natureza e Graça
20 Aula 03, Histórico do termo “Cosmovisão”
29 Aula 04, Histórico do termo “Cosmovisão na tradição cristã
38 Aula 05, O Drama das Escrituras
47 Aula 06, Criação
56 Aula 07, Queda
64 Aula 08, Redenção
72 Aula 09, Mandato Cultura
81 Aula 10, Cosmovisão e Missão da Igreja
89 Aula 11, Cosmovisão Rivais: Naturalismo
98 Aula 12, Cosmovisão Rivais: Pós-modernidade
108 Aula 13, Cosmovisão e as Narrativas Ocidentais
116 Aula 14, Coração e o Motivo-Base
124 Aula 15, Cosmovisão e a Academia
132 Aula 16, Cosmovisão Cristã e a Civilização Ocidental
140 Aula 17, Críticas ao conceito de Cosmovisão
148 Aula 18, Transformando Cosmovisões
Conceito de
Cosmovisão aula 01
Olá!
Você sabe o que é cosmovisão? Nesta aula você vai compreender o conceito de cosmovisão,
bem como sua relação com o conceito bíblico de coração. Esse conceito vai ser importante
para você perceber os compromissos básicos que fazemos como seres humanos e que
orienta toda nossa vida.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Aprender o conceito de cosmovisão;


Perceber o caráter pressuposicional de uma cosmovisão;
Identificar as sete perguntas básicas que podemos fazer e perceber como
cosmovisões diferentes respondem a elas.

Bons estudos!

04
CONECTAR
Conceito de
Cosmovisão
Não se sabe a origem exata da antiga fábula da tartaruga que sustenta o mundo nas
costas. Vários pensadores, desde a idade média, fizeram referência a essa estória. Abaixo,
leia a versão fornecida por Clifford Geertz:

Há uma história indiana — pelo menos eu a ouvi como [história]


indiana — sobre um inglês a quem contaram que o mundo
repousava sobre uma plataforma apoiada nas costas de um
elefante, o qual, por sua vez, apoiava-se nas costas de uma
tartaruga, e que indagou (talvez ele fosse um etnógrafo; é a forma
como eles se comportam), e onde se apoia a tartaruga? Em
outra tartaruga. E essa tartaruga? ‘Ah, Sahib; depois dessa são
só tartarugas até o fim’. (GEERTZ, 2008 [1073], p. 20)

Bertrand Russell conta a mesma história, mas dá-lhe um final diferente:

Trata-se exatamente da mesma natureza da visão hinduísta


em que o mundo repousava sobre um elefante, e que o elefante
repousava sobre uma tartaruga; e quando alguém perguntava
“Mas e a tartaruga?”, o indiano respondia: “Que tal mudarmos de
assunto? (RUSSELL, 2014, p. 30)

Nessa estória, é possível perceber claramente que não existe uma maneira lógica de
parar o regresso. É preciso assumir algum compromisso pré-teórico a fim de responder à
pergunta “o que são essas tartarugas a perder de vista?”, “Onde isso vai parar?”.
Suponha que você troque a fábula da tartaruga pela história do universo. O que
sustenta o universo? Algumas pessoas afirmarão que o universo é simplesmente um fato
bruto e que não há nenhuma outra razão para ele. “As coisas
são simplesmente assim”, dirão eles. Essa visão é conhecida
como naturalismo. De acordo com Bertrand Russell, “o
universo simplesmente está aí, só isso” (RUSSELL, 2014, p.
166); outros vão afirmar que existe uma tartaruga última,
que está sustentando todas as outras tartarugas e que está
além de todos os animais. “Deus fez assim”, dirão estes.
Essa visão é conhecida como teísmo. Como afirma o autor
de Hebreus: “O Filho [Jesus Cristo] [...] com sua palavra
poderosa, sustenta todas as coisas”. (Hebreus 1:3. NVT). E se
alguém perguntar: “mas quem sustenta Deus?”, o teísta
daria a mesma resposta do naturalista: “as coisas são
simplesmente assim e isso é tudo”.

PARA REFLEXÃO

Antes de começar o estudo dessa disciplina, redija um pequeno texto a partir da


pergunta: qual a coisa mais fundamental de todas? No que consiste tudo isso que
existe? Ao final do seu texto, você perceberá que sua resposta revela seu
compromisso fundamental primário.
05
CRESCER Conceito de
Cosmovisão
Introdução

O autor James Sire (2012) deu o título Dando nome ao elefante ao seu livro porque,
para ele, a estória da tartaruga ilustra duas características essenciais para se entender o
conceito de cosmovisão: primeiro, seu entendimento da realidade primordial; segundo, sua
natureza pré-teórica.
Em primeiro lugar, nossos compromissos fundacionais primários são não evidências
cientificamente comprovadas, mas pressuposições básicas que assumimos sobre a
realidade. Quando o indiano é questionado sobre “o que sustenta o mundo”, ele é forçado a
ver que sua resposta está baseada numa pressuposição, isto é, em algo que ele assume e
que não pode provar de forma definitiva. Ele precisa fazer um compromisso pré-teórico
último a fim de responder à pergunta: “mas o que é essa tartaruga que sustenta todas as
outras coisas?”.
A resposta que damos não é um tipo de “prova evidencial”; nós a tomamos como
certa. Assim, as cosmovisões dizem respeito a questões básicas fundamentais com as quais
somos constantemente confrontados e que, de forma pré-teórica, nós nos comprometemos
a adotar. Elas são tão básicas e óbvias para nós que muitas vezes nem sequer nos damos
conta que estamos assumindo tais compromissos.
Em segundo lugar, uma cosmovisão diz respeito à resposta que damos à
constituição básica do nosso mundo. Quando nos damos conta do mundo, a primeira coisa
que percebemos é que algo existe. Essa suposição primária é o ponto de partida para todas
as cosmovisões; afinal, todas elas assumem que existe algo ao invés do nada.
Mas as cosmovisões começam a divergir a partir das respostas à pergunta do
filósofo Gottfried Leibniz: Por que existe algo ao invés do nada? ou na resposta à fábula da
tartaruga: “mas o que são essas tartarugas a perder de vista?”. As tartarugas são um fato
bruto do universo, como afirma Bertrand Russell? Ou existe algo além das tartarugas que
sustenta todas elas, como afirma o autor de Hebreus?
As respostas a essa pergunta são tão distintas que as pessoas que assumem uma
cosmovisão diferente da sua parecem habitar um outro universo totalmente diferente do
universo que você habita. Assim, quando perguntamos o que é esse algo fundamental que
é a realidade última do universo, estamos no campo das cosmovisões. E elas são tão
importantes que não influenciam apenas a maneira com que pensamos sobre o mundo de
forma teórica, mas a maneira como levamos nossa vida no mundo.

Mas o que é uma cosmovisão?

O que é então essa coisa chamada cosmovisão, que todos nós adotamos? Como
podemos definir melhor esse conceito? Existem várias definições de cosmovisões. Uma das
mais completas, e que adotaremos neste curso, foi proposta por James Sire (2014, p. 237).

Cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do


coração, que pode ser expresso como uma estória ou um conjunto
de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras,
parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos
(consciente ou subconsciente, consistente ou inconsistentemente)
sobre a constituição básica da realidade, e que fornece
ofundamento no qual vivemos, nos movemos, e existimos.
06
CRESCER
Conceito de
Cosmovisão
Essa definição será trabalhada ao longo de todo o curso. Mas para que você conheça
melhor essa definição, vamos trabalhar alguns aspectos dela.

Cosmovisão é um compromisso...

A cosmovisão não é apenas uma questão intelectual, nem um tipo de filosofia, mas,
antes de tudo, uma questão fundamental de coração, um compromisso pré-teórico com
questões últimas da vida que estão no âmago central de todo ser humano. Para Albert
Wolters (2006, p. 20), a cosmovisão “pertence a uma área de cognição mais básica do que a
ciência e a teoria”.
A cosmovisão está próxima do conceito bíblico de coração, que não diz respeito
apenas a um órgão do corpo humano, mas inclui a noção de emoção (Ex 4:14),
espiritualidade (At 8:21), intelecto (Pv 2:6, 10), desejo e vontade (1 Cr 29;18). Para David
Naugle (2017, p. 344), “o cerne da questão da cosmovisão é que ela é uma questão do
coração”. Assim, como um homem ou uma mulher enxergam o mundo? A resposta a esta
pergunta vai depender do coração. De acordo com Sire (2012, p. 187), “existe um
compromisso ou disposição abaixo do nível da razão consciente que caracteriza o coração
de cada pessoa. A partir desse compromisso flui o caráter e o estilo de vida de uma pessoa”.
Assim, o coração é o que molda toda a vida de uma pessoa. Ele é a disposição fundamental
de todo ser humano, estabelecendo as pressuposições básicas da existência. Por isso, o
sábio aconselha no Antigo Testamento que “sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu
coração, porque dele procedem as fontes da vida”. (Pv 4:23). Assim, de acordo com Naugle:

O que entra no coração a partir do mundo externo molda, em última


análise, as disposições fundamentais do coração e determina o que
procede dele como fontes da vida. Consequentemente, o coração
estabelece as pressuposições básicas da vida e, por causa da sua
influência determinante da vida, deve ser cuidadosamente
guardado. (NAUGLE, 2017, p. 347 e 348)

...que pode ser expressa como uma história ou um conjunto de


pressuposições...

Nós sempre pensamos a partir de algumas crenças que tomamos como certas. E
isso não acontece apenas com as pessoas religiosas. De acordo com Ronald Nash (2012, p.
33), os cientistas “assumem, por exemplo, que o conhecimento é possível e que a
experiência sensorial é confiável (epistemologia), que o universo é regular (metafísica) e
que os cientistas devem ser honestos (ética)”. Assim, embora sejamos capazes de dar
razões, não podemos prová-las.
De acordo com Sire (2012, p. 28), essas crenças “são aquelas coisas a que chegamos
quando não podemos mais explicar porque dizemos o que dizemos”. Assim, as cosmovisões
expressam nossas crenças que estão pressupostas. Ela funciona como uma espécie de lente
pela qual nós enxergamos nosso mundo. Uma cosmovisão não é simplesmente um conjunto
de pressuposições, mas ela pode ser expressa a partir de um conjunto de pressupostos.
Além disso, uma cosmovisão pode ser expressa a partir de uma história. Quando
reflito, por exemplo, sobre de onde o ser humano veio, para onde a humanidade está
07
CRESCER Conceito de
Cosmovisão
caminhando e o que há de errado com o mundo, certamente uma cosmovisão está sendo
expressa através de uma narrativa.
Os cristãos afirmam que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, mas
que ele decidiu se alienar de Deus, ocasionando consequências desastrosas – que os
cristãos chamam de queda. Mas Deus instituiu um plano de salvação através da vida, morte
e ressurreição de Jesus Cristo. Para os cristãos, a história de todas as pessoas está inserida
nesse história-mestra.
Já os naturalistas vão contar outra história completamente diferente: uma que
começa por um Big Bang a 15 bilhões de anos, prossegue com a evolução do cosmo, o
surgimento da vida no planeta terra há 4,5 bilhões de anos, bem como seu desaparecimento
à medida que o universo se expande.
As cosmovisões não são exclusivamente essas narrativas, mas são expressas a
partir dessas histórias que nos conectam com um contexto mais amplo do significado
universal cósmico e humano. Além disso, é importante notar que as cosmovisões nunca
pertencem a apenas um indivíduo; elas são sempre compartilhadas, sendo, portanto,
comunitárias.

...e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos movemos,


e existimos.

A cosmovisão não diz respeito apenas a uma questão teórica. Ela se relaciona tanto
com aquilo que pensamos, quanto com aquilo que fazemos. Ela é não apenas a forma como
enxergamos a realidade, mas também um modo de vida. Por isso, Richard Middleton e Brian
Walsh (2010, p. 29) afirmam que a “cosmovisão nunca é meramente uma visão de vida.
É sempre uma visão, também, para a vida”.
Isso porque nossa cosmovisão determina nossos valores, proporcionando “um
modelo de mundo que direciona seus adeptos no mundo” (MIDDLETON & WALSH, 2010, p.
29). Como uma cosmovisão nos mostra como o mundo é, ela também nos adverte sobre
como o mundo deve ser e como devemos nos conduzir nele.
Para Sire (2012, p. 71), “a natureza real de nossa cosmovisão não é apenas o que
pensamos que ela é, mas o que mostramos que ela é”. Quem realmente somos não é apenas
aquilo que afirmamos ser, mas o que mostramos pela forma como nos comportamos.
Como afirma o apóstolo Tiago: “De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se
não tem obras? [...]. Mostre-me a sua fé sem obras, e eu lhe mostrarei a minha fé pelas
obras” (Tiago 2: 14 e 18).
Há, assim, uma relação estrita entre o coração e as coisas que uma pessoa realiza.
Ela geralmente é demonstrada por meio das nossas palavras e ações. Assim, “a cosmovisão
é uma questão de experiência diária da humanidade, um componente inescapável de todo
saber humano” (WOLTERS, 2006, p. 20).

Sete perguntas fundamentais para o conceito de cosmovisão

De acordo com Sire (2009, p. 19-21), uma cosmovisão pode ser expressa como resposta a
sete questões básicas com que todo ser humano se depara na vida. Essas perguntas
funcionam como uma espécie de diagnóstico que nos ajuda a distinguir as linhas gerais de
08
CRESCER
Conceito de
Cosmovisão
uma cosmovisão, tanto nossa quanto das outras pessoas. Dessas sete questões gerais é que
surgem outras questões mais específicas. Em essência, uma cosmovisão é a resposta mais
íntima às seguintes perguntas:

O que é a realidade mais básica?


Poderíamos responder Deus, os deuses, o cosmo material, uma energia vital ou nossa
mente. Caso a resposta seja Deus, ele pode ser pessoal ou impessoal, bom ou indiferente.
Essa é a questão mais fundamental de todas, porque a resposta que damos, provavelmente,
determinará a resposta a todas as outras questões.

Qual a natureza do mundo que nos rodeia?


Com essa questão se quer saber se o universo é criado, autônomo ou fruto de ideias; se é
caótico ou organizado, ou ainda se é um organismo vivo, espiritual ou material.

O que é o ser humano?


Algumas possíveis respostas são que o ser humano é alguém criado à imagem e
semelhança de Deus, um macaco nu ou ainda um deus adormecido.

O que acontece com uma pessoa quando ela morre?


As respostas podem incluir uma ressurreição dos mortos no fim dos tempos, a extinção
pessoal, reencarnação, passagem para uma realidade mais “elevada”, ou ainda a liberdade
do corpo material.

Porque é possível conhecer alguma coisa?


Aqui nossas respostas podem ser porque somos criados à imagem e semelhança de um
Deus pessoal e onisciente; ou porque nossos cérebros se desenvolveram sob a contingência
da sobrevivência da evolução biológica; ou ainda porque nossa mente projeta no mundo
aquilo que conhecemos; ou ainda que não sabemos coisa alguma.

Como sabermos o que é o certo e o errado?


A resposta pode incluir, mais uma vez, a afirmação de que somos criados à imagem e
semelhança de um Deus totalmente bondoso, ou que o certo e o errado são contingências
biológicas da nossa luta evolutiva pela sobrevivência, ou ainda que o certo e o errado são
determinados por escolhas humanas, ou por aquilo que nos faz sentirmos bem.

Qual o significado da história humana?


Por fim, poderíamos responder a essa questão com a compreensão do propósito de Deus
para o estabelecimento de seu reino na terra, ou com o curso do cosmo que foi determinado
na criação, ou ainda com um conjunto totalmente sem sentido de fatos aleatórios.

Enquanto seres humanos, não é possível fugir a tais questões. Para cada uma
dessas perguntas sempre adotaremos um ponto de vista, seja de forma consciente ou
inconsciente, implícita ou explicita. A própria recusa em tentar responder a essas perguntas
ou a ideia de que não é possível oferecer resposta a elas é, em si mesma, uma cosmovisão.
Dado o mundo pluralista em que vivemos, o estudo de cosmovisão é importante tanto para
nós vivermos de forma refletida nossa própria cosmovisão, quanto para podermos
identificar e compreender a cosmovisão das pessoas com quem convivemos diariamente.
09
CRESCER Conceito de
Cosmovisão
Nesta aula você...

Aprendeu sobre o conceito de cosmovisão e percebeu sua disposição fundamental


de estabelecer as pressuposições básicas da existência.

Estudou sobre as sete perguntas básicas que toda cosmovisão faz, percebendo
como cosmovisões diferentes respondem a elas de forma diferentes.

CRESCER+

SIRE, James. Dando nome ao elefante: cosmovisão como um conceito. Brasília:


Monergismo, 2012 (Capítulo 01).

______. O universo ao lado: um catálogo básico sobre cosmovisão. São Paulo:


Hagnos, 2009 (Capítulo 01).

10
COMPARTILHAR
Conceito de
Cosmovisão
Redija um pequeno texto respondendo as setes perguntas fundamentais mencionadas
acima. Em seguida guarde-o, pois será interessante lê-lo depois que você tiver concluído os
estudos que vais agora iniciar, comparando com aquilo que você aprendeu na disciplina
sobre sua própria cosmovisão.

11
Natureza
e Graça aula 02
Olá!
Na aula passada, você estudou sobre o conceito de cosmovisão e percebeu que ele não é
apenas uma ideia teórica, mas um compromisso fundamental de coração que molda nosso
modo de vida. Nesta aula, você vai aprender sobre alguns dualismos - como natureza e
graça, fato e valor ou público e privado - que uma cosmovisão cristã procura superar.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Perceber como a cosmovisão cristã se aplica a todas as áreas da vida;


Analisar o dualismo entre natureza e graça presente na sociedade moderna;
Relacionar o conceito de cosmovisão com a superação desses dualismos trazidos
pela modernidade.

Bons estudos!

12
CONECTAR
Natureza
e Graça
No dia 12 de setembro de 1960, o candidato à presidência dos Estados Unidos pelo
Partido Democrata, John Kennedy, fez um conhecido discurso sobre o papel da religião na
política em Houston, no Texas. Como era
católico e como jamais um católico havia
sido eleito presidente dos EUA, os
eleitores americanos temiam que, no
desempenho de seu cargo, Kennedy
impusesse a doutrina católica nas
diretrizes públicas. Por isso, ele resolveu
falar para um grupo de ministros
protestantes sobre o papel que a
religião teria no seu governo:

Eu acredito que a posição religiosa de um presidente seja um


assunto particular [...]. Quaisquer que sejam as questões que me
anteceda como presidente – controle de natalidade, divórcio,
censura, jogo ou qualquer outro – minha decisão será tomada [...]
de acordo com o que minha consciência disser que é do interesse
da nação, desconsiderando pressões ou determinações religiosas
externas. (KENNEDY, 1960)

O discurso foi considerado um grande sucesso político na época. Nas eleições


presidenciais, Kennedy foi eleito.
O discurso de Kennedy reflete a posição liberal
clássica bem conhecida quando se aborda o papel que a
religião deve ter no espaço público: como vivemos numa
sociedade pluralista onde impera a diversidade e as
discordâncias sobre questões religiosas, ninguém deve
impor às outras pessoas que pensam diferente suas
crenças pessoais ou sua concepção de vida boa. A religião
é uma questão privada e não uma questão pública; é uma
questão de valor, não uma questão de fatos; é uma
questão de escolha subjetiva, de fórum íntimo, não uma
questão objetiva sobre verdade e racionalidade.
Por isso, o governo, qualquer que seja, deve
manter-se neutro quanto a questões morais e religiosas
a fim de que as pessoas possam, livremente, fazer suas escolhas e adotar o que elas
entendem por vida boa. Assuntos como casamento, drogas, aborto, clonagem,
célula-tronco e eutanásia são de interesse público e não devem ser decididos a partir de
uma visão de mundo religiosa. E não apenas isso: como mostra a charge acima, assuntos
como ciência, psicologia, filosofia, entre outros, também deve estar fora do alcance da
religião. É preciso que haja um largo muro de separação entre a religião e a esfera pública.
Por isso, os religiosos não devem trazer suas crenças religiosas para o espaço
público, mas mantê-las como uma questão de preferência pessoal, dentro do seu coração.

13
CRESCER Natureza
e Graça
Introdução

No livro Verdade Absoluta, Nancy Pearcey conta uma história curiosa:

Em certa escola secundária cristã americana, um professor de


teologia colocou-se à frente da sala de aula e, de um lado do quadro
negro, desenhou um coração e, do outro, um cérebro. Os dois
desenhos ocupavam partes iguais do quadro. Virando-se para a
classe disse: O coração é o que usamos para a religião, ao passo que
fazemos uso do cérebro para a ciência. (PEARCEY, 2017, p. 21)

Essa narrativa ilustra bem a tentativa de restringir a religião ao domínio do “coração”


– entendendo coração não no sentido bíblico do termo, mas no sentido pós-moderno de
sentimento subjetivo e fórum íntimo. Na sociedade pós-moderna, muitos cristãos e
não-cristãos parecem concordar que a religião é apenas uma questão subjetiva de escolha
pessoal e que não tem ligação com a racionalidade, com a cultura, com o espaço público ou
com fatos verdadeiros sobre o mundo.
Mas de onde vieram essas ideias? De onde surgiu esse dualismo que é abraçado na
nossa sociedade tanto por religiosos quanto por não religiosos?

Separação entre Natureza e Graça

O teólogo cristão Francis Schaeffer (2014) afirmou que a origem do homem


moderno pode ser atribuída a um dos mais importantes filósofos do período medieval:
Tomás de Aquino (1225-1274). Aquino fez uma separação entre natureza e graça que pode
ser representada por meio do seguinte diagrama:

GRAÇA
______________
NATUREZA

Por natureza entende-se a criação humana conforme pervertida pelo pecado; por
graça, a obra salvífica de Deus. No andar de cima, estão as opções religiosas como “Deus”,
“céu”, “sobrenatural”, “a alma humana” e a “unidade”; no andar inferior, natureza, está a
“criação”, bem como as “coisas terrenas”, como o “corpo humano”, o “homem”, o “visível” e a
“diversidade”.
Dentro deste dualismo havia uma superioridade do andar de cima sobre o andar de
baixo; a vida humana e todas as coisas que fazemos devem estar voltadas para cima, para o
sobrenatural, na direção de Deus. Já no andar inferior, se encontra a ciência e a possibilidade
de a razão humana analisar as leis da natureza. Aquino afirmava que a vontade humana está
decaída, mas não o intelecto. Por isso, em um aspecto significativo, a razão, o homem
passou a ser independente e autônomo. Com base nesse princípio da autonomia, a filosofia
separou-se da revelação e os vários campos do conhecimento humano se tornaram
independentes da teologia.
De acordo com Michael Goheen e Craig Bartholomew (2016), Tomás de Aquino não
deu autonomia à esfera do andar de baixo, mas a separação entre esses dois domínios foi se
tornando cada vez mais incisiva nos séculos seguintes por outros filósofos como João Duns
14
CRESCER
Natureza
e Graça
Scotus (1266-1308) e Guilherme de Ockham (1285-1349). Com o tempo, o andar de baixo foi
sendo cada vez mais desvinculado do andar de cima. Passou-se a ter um dualismo entre as
coisas de Deus, o sagrado, e as coisas do mundo e da sociedade, o secular. Conforme
explicam Goheen e Bartholomew (2016), essa separação trouxe consequências
significativas para a vida humana:

A maior parte da vida humana seria separada da autoridade de


Deus e do poder do evangelho. A razão foi divorciada da fé, uma
natureza autossuficiente foi divorciada da palavra sustentadora de
Deus, e a sociedade humana foi divorciada da palavra de ordenação
normativa de Deus [...]. De fato, ao longo dos cincos séculos
seguintes, Deus e o evangelho foram cada vez mais excluídos da
vida natural e cultural do Ocidente. (GOHEEN & BARTHOLOMEW,
2016, p. 127)

Uma das principais consequências desse tipo de dualismo é que Deus e o


cristianismo passaram a ser reduzidos à esfera “religiosa”. Com isso, a Bíblia se tornou
irrelevante para a maior parte da vida das pessoas. Passaram a existir atividades “sagradas”,
“religiosas”, como a oração, o culto e a leitura das Escrituras, ao passo que o sexo e o
entretenimento eram vistos como de “domínio secular”; atividades como “pastor” e
“missionário” eram trabalhos voltados “para Deus”; “jornalista”, “professor” e “político”
eram atividades seculares que as pessoas exerciam simplesmente para “ganhar a vida”. O
mais importante, no final, era a salvação da alma individual.
Schaeffer (2014, p. 17) afirma que à medida que a natureza ficou cada vez mais
autônoma, ela passou a “devorar a graça”. Assim, os vários elementos da natureza, as artes,
a filosofia, a política, a ciência, foram desvinculados do seu sentido bíblico, tratados de
forma autônoma e repensados a partir de uma visão de mundo secular, sem Deus.
Passou-se, assim, a pensar que as “coisas para Deus”, entendidas como atividades
religiosas, eram superiores às atividades do domínio secular, onde Deus não tinha espaço.

PARA REFLEXÃO

Pense numa pessoa que passa oito horas de seu dia no trabalho, durante cinco
dias na semana; além disso, ela passa, durante dois dias da semana, duas horas
em um culto em sua igreja local. Reflita e discuta com seus colegas sobre como
o dualismo “natureza/graça” pode tornar o cristianismo irrelevante para a maior
parte da vida dos cristãos.

Esse tipo de dualismo trouxe o seguinte impacto para a modernidade: ou a natureza


“devorava” a graça, negando totalmente as contribuições da Revelação bíblica para as várias
atividades do mundo, como a cultura, as artes e a ciência; ou a graça “desprezava” a
natureza, dando ênfase a uma experiência mística sobrenatural com o divino em detrimento
das coisas “menores” e “seculares”.
O iluminismo aprofundou esse dualismo fazendo a distinção entre fato e valor,
esfera pública e esfera privada.
De acordo com o primeiro tipo de dualismo, os fatos estão ligados ao andar de baixo,
15
CRESCER Natureza
e Graça
da ciência e da razão autônoma, que são consideradas verdades públicas que dizem respeito
a todo mundo; já no pavimento de cima, estão os valores. Este último não é o campo da
razão nem das escolhas cognitivas, mas da subjetividade, das verdades particulares,
daquilo que é “verdade para mim, mas não para você” ou aquilo que é “certo para você,
mas pode ser errado para outra pessoa”. O campo dos valores é subjetivo; nele se encontra
não apenas a religião, mas a moralidade e as artes. Essas escolhas não são racionais,
mas pessoais.
O segundo dualismo é fruto do primeiro. Como o campo dos fatos diz respeito a
verdades que interessam a todos, ele é de esfera pública e pode ser racionalmente
discutido, uma vez que nela se encontra a esfera do verdadeiro e do falso. Para isso, ela deve
ser livre de valores; já na esfera particular imperam as preferências pessoais. Nela, não é
possível discutir de forma objetiva o belo, o gosto estético e a religião, já que eles se tratam
apenas de preferências subjetivas. Assim, “a religião não é considerada uma verdade
objetiva à qual nos submetemos, mas trata-se de mera questão de gosto pessoal que
escolhemos” (PEARCEY, 2017, p. 23).

Cosmovisão e integridade

Como vimos na aula passada, todos nós temos uma cosmovisão, quer tenhamos
consciência disso, quer não. Todos nós vemos o mundo e agimos com base em
determinadas pressuposições sobre a realidade que foram formadas no recôndito do nosso
coração.
No entanto, é possível passar a impressão que a cosmovisão é apenas um assunto
particular, subjetivo, que diz respeito apenas ao fórum íntimo, mas isso não é verdade: se
por um lado somos seres individuais, por outro lado somos membros de uma família,
cidadãos de um país e participantes de alguma comunidade mais ampla que transcende o
nosso eu individual. Por isso compartilhamos com a nossa cultura teias de crenças e
pressuposições em comum. Logo, a cosmovisão não é apenas algo privado, mas ela também
tem uma faceta pública.
A cosmovisão é uma parte integral de quem nós somos, seja como indivíduo, seja
como sociedade. Assim, não é possível simplesmente “retirá-la” para adotarmos uma
postura neutra ou dualista sobre a realidade. Como afirma Sire (2012, p. 159): “não haverá
momento algum durante o dia ou à noite, sequer em meus sonhos, onde a minha
cosmovisão não será uma parte integral de quem eu sou”. Como veremos em outra aula, a
posição que afirma ser dualista sobre a realidade já é, em si mesma, uma cosmovisão,
construída da separação entre natureza e graça e moldada pelo iluminismo, que separou o
espaço público do espaço privado.
Biblicamente, a visão do homem é de um ser integral. Enquanto que na concepção
dualista, o andar de cima é mais importante que o andar de baixo, isto é, as coisas espirituais
são mais importantes que as materiais, a perspectiva bíblica adota uma postura muito
diferente: “Deus criou o homem no seu todo, e o homem todo é importante” (SCHAEFFER,
2014, p. 34). Assim, o ser humano é importante em sua totalidade, e não apenas parte dele;
Deus fez o homem todo e, por isso, está interessado em sua totalidade.
Além disso, o fato histórico da queda, que estudaremos melhor numa aula
posterior, afirma que o homem foi afetado por inteiro e não apenas em uma de suas partes.
Por fim, “com base na obra de Cristo como Salvador e graças ao conhecimento que temos na
16
CRESCER
Natureza
e Graça
revelação das Escrituras, há redenção para o homem no seu todo. No futuro, o homem
integral será levantado dentre os mortos e redimido perfeitamente” (SCHAEFFER, 2014, p.
34 e 35).
Assim, qual a implicação desse fato para uma cosmovisão cristã? O que ele sugere?
Uma vez que Cristo está interessado no ser humano como um todo, então o senhorio de
Cristo tem que atingir não apenas nossas almas individuais, mas também a cultura de uma
forma geral. Afinal, Cristo é senhor de ambas as áreas, tanto da natureza, quanto da graça.
Por isso que o notório jornalista, político, educador e teólogo, Abraham Kuyper (1837-1920),
afirmou: “não há um único centímetro quadrado, em todos os domínios de nossa existência
humana, sobre o qual Cristo, que é soberano sobre todas as coisas, não clame: ‘É meu!’”
(KUYPER, 1988, p. 488).
N.T. Wright é um forte crítico da tentativa iluminista de promover um mundo de dois
níveis. Para ele, se alguém acha que a salvação consiste em um mero salto de fé em relação
a Jesus, isso apenas mostra o quanto a cosmovisão dessa pessoa foi influenciada pela ideia
iluminista do mundo dividido em dois:

Na verdade, Jesus é o motivo de tudo. Dentro da narrativa bíblica


maior, como diz Paulo, todas as promessas de Deus encontram
o sim nele [...]. A tarefa daqueles que seguem Jesus é continuar
a lutar contra tudo o que ameaça achatar essa visão bíblica nas
caixas estranhas de outras visões de mundo; ter nosso grande
cenário, nossa visão do lado direito do cérebro, revigorado
e renovado pela história ampla e pelas imagens poderosas da
Bíblia, e, assim, continuar com o trabalho do lado esquerdo
de nosso cérebro, seja qual for, na confiança de que, uma vez
que Jesus é o Senhor do mundo, toda verdade pertence a ele
(WRIGHT, 2015, p. 146)

Essa postura não é apenas teológica, mas bíblica: o apóstolo Paulo recomendou aos
coríntios que tudo que eles fizessem na vida tivesse o propósito de glorificar a Deus:
“Portanto, quer comais quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória
de Deus” (I Cor 10:31. Grifos nosso); a ideia de que existe uma parte autônoma do nosso ser
que não precisa se submeter ao senhorio de Jesus Cristo não é verdadeira: “não existe nada
autônomo – nada à parte do soberano senhorio de Jesus Cristo e da autoridade das
Escrituras. Deus fez o homem todo e está interessado no homem todo, e o resultado é a
unidade” (SCHAEFFER, 2014, p. 35).
Por isso, o ser humano não pode simplesmente se desvencilhar de suas crenças
quando entra no espaço público, na universidade, no trabalho, no laboratório. Se por um
lado, é verdade que outras pessoas possuem cosmovisões diferentes, e que por isso um
cristão não pode impor sua cosmovisão aos outros; por outro lado, a ideia do presidente
Kennedy de que “a posição religiosa de um presidente seja um assunto particular” é falsa na
teoria e impossível na prática.

17
CRESCER Natureza
e Graça
Nesta aula você...

Percebeu como a cosmovisão cristã se aplica a todas as áreas da vida.

Analisou o dualismo entre natureza e graça presente na sociedade moderna, e como


o conceito de cosmovisão pode superar tais dualismos trazidos pela modernidade.

CRESCER+

PEARCEY, Nancy. Verdade absoluta: libertando o cristianismo do seu cativeiro


cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2017. (Introdução e capítulo 03).

SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. São Paulo: ABU Editora; Viçosa: Ultimato,
2014.
18
COMPARTILHAR
Natureza
e Graça
01. Pesquise outros exemplos de discursos ou artigos de políticos, jornalistas,
educadores, filósofos, sociólogos ou acadêmicos semelhantes ao que vimos na
seção ‘Conectar’ sobre o papel da religião no espaço público. Em seguida, compare
os resultados da sua pesquisa com a dos seus colegas.

02. Pense na sua própria profissão. Em seguida, faça uma pesquisa respondendo à
seguinte pergunta: como minha área específica pode ser redimida para o senhorio
de Jesus Cristo?

19
Histórico do termo
“Cosmovisão” aula 03
Olá!
Nesta aula você vai aprender a história do conceito de cosmovisão fora da tradição cristã.
Faremos um breve percurso histórico a partir de três autores importantes sobre o assunto:
Immanuel Kant, Wilhem Dilthey e Michel Foucault. Além disso, veremos duas aplicações do
termo na área acadêmica. Na próxima aula, você vai estudar o histórico do conceito de
cosmovisão dentro da tradição cristã.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender a origem do termo Cosmovisão;


Analisar o histórico do termo nos séculos XIX e XX;
Avaliar o uso do termo em duas áreas acadêmicas, nas ciências naturais e nas
ciências sociais.

Bons estudos!

20
CONECTAR
Histórico do termo
“Cosmovisão”
As cosmovisões possuem um impacto significativo na forma como levamos nossas
vidas. Elas são tão basilares e dão significado a nossas ações de tal forma que são elas que
nos dirão o que devemos pensar e como devemos nos comportar; quais ações são boas e
quais ações são más; o que é correto e o que é errado; qual o padrão de feio e de bonito. A
depender de qual cosmovisão adotemos, talvez não haja nenhum desses padrões – eles
serão relativos.
Desde o seu início, com os estudos de Wilhelm Dilthey (1833-1911), as cosmovisões
eram entendidas como perspectivas historicamente produzidas sobre a realidade, isto é,
veículos de expressão da forma como enxergamos o mundo. O historiador Yuval Noah Harari
(2016) conta uma estória que pode nos ajudar a entender como uma cosmovisão afeta cada
faceta da nossa vida; nela, é possível perceber nitidamente como duas cosmovisões
diferentes lidam com uma situação de adultério: a cosmovisão cristã católica medieval e a
cosmovisão humanista moderna.

Suponha que em 1300, em alguma cidadezinha inglesa, uma


mulher casada se sinta atraída pelo vizinho e faça sexo com ele. Ao
se esgueirar de volta para casa, escondendo um sorriso e ajeitando
o vestido, sua mente dispara: ‘o que significa isso? Por que fiz isso?
Foi bom ou foi ruim? O que implica isso no que diz respeito a mim?
Faço novamente?’. Para responder a essas perguntas, supunha-se
que a mulher deveria ir ao sacerdote local, se confessar e pedir
orientação ao santo padre. O sacerdote era bem versado nas
escrituras, e os textos lhe revelariam exatamente o que Deus
pensava sobre o adultério. Com base na palavra eterna de Deus, o
sacerdote poderia determinar, além de toda dúvida, que a mulher
cometera um pecado mortal, que, se não se penitenciasse, acabaria
no inferno e que tinha de se arrepender imediatamente, fazer uma
doação de dez moedas de ouro para a próxima cruzada, não comer
carne nos próximos seis meses e fazer uma peregrinação no túmulo
de são Thomas Becket em Canterbury. E nem é preciso lembrar que
não poderia recair em seu terrível pecado. (HARARI, 2016, p. 229)

Perceba que, para esta mulher medieval, a forma como ela enxerga a realidade
determinará se aquele ato foi bom ou ruim; determinará também como ela deveria se
comportar a partir daquele momento. No caso da estória contada por Harari, o ato foi
negativo (e mais do que isso: foi pecado) porque a mulher enxerga a realidade a partir de
uma cosmovisão cristã católica.
Agora suponha que essa mesma mulher seja
transportada para o século XXI. Agora, a visão católica de
mundo não é mais a fonte de autoridade última que era na
idade média. Ao contrário, a nova visão de mundo é baseada
fortemente nos desejos, sendo os sentimentos a fonte
suprema de significado e a mais alta de todas as autoridades.
Assim, são os sentimentos humanos os verdadeiros
responsáveis por determinar o verdadeiro quadro das nossas
ações. Por isso, o significado de como aquele ato é visto
mudará drasticamente:

21
CONECTAR Histórico do termo
“Cosmovisão”
Assim, quando quer compreender o significado de um caso que
esteja tendo, uma mulher moderna mostra-se muito menos
propensa a aceitar cegamente o julgamento de um padre ou de um
livro antiquado. Em vez disso, ela examinará seus sentimentos com
cuidado. Se eles não estiverem muito claros, ela irá procurar uma
amiga para tomar um café e abrir seu coração. Se as coisas ainda
permanecerem vagas, ela irá ao terapeuta e lhe falará sobre isso.
Teoricamente, o terapeuta moderno preenche o lugar que cabia ao
sacerdote medieval, e já e um clichê surrado comparar as duas
profissões. Mas, na prática, um enorme abismo os separa. O
terapeuta não possui um livro sagrado que define o bem e o mal.
Quando a mulher termina de contar sua história, é altamente
improvável que ele exclame: ‘Sua perversa! Você cometeu um
pecado terrível!’. Tampouco é provável que diga: ‘Maravilha! Que
bom!’. Em vez disso, não importa o que ela tenha feito e dito,
possivelmente o terapeuta irá perguntar com voz afetuosa: ‘Bem, e
como você se sente em relação ao que aconteceu?’

PARA REFLEXÃO

Crie, através de estórias, outras situações onde duas cosmovisões olham o mesmo
ato a partir de perspectivas completamente diferentes.

22
CRESCER
Histórico do termo
“Cosmovisão”
Introdução

Immanuel Kant

O termo cosmovisão é uma tradução do termo alemão Weltanschauung. A palavra


foi cunhada pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) na sua obra Crítica da faculdade
de julgar, pulicada em 1790. O contexto do seu primeiro aparecimento se dá quando Kant
comenta sobre o poder da percepção da mente humana na interpretação do mundo:

No entanto, para simplesmente pode pensar o infinito dado, sem


contradição, é requerido uma faculdade na mente humana que é
ela própria suprassensível. Pois é somente através dela, // e da sua
ideia de um número – que não admite ele próprio qualquer intuição,
mas é colocado como substrato subjacente à [nossa] intuição do
mundo [Weltanschauung] como mero fenômeno -, que o infinito do
mundo sensível é, na estimação intelectual pura da grandeza,
inteiramente compreendido sob um conceito, ainda que jamais
possa ser inteiramente pensando, por meio de conceitos
numéricos, na estimação matemática. (KANT, 2017 [1790], parte 1,
livro 2, seção 26. Grifos do autor)

Apesar de esse trecho não ser de fácil interpretação, David Naugle (2017) afirma que
o sentido que Kant dá ao termo Weltanschauung é o da percepção do mundo pelos sentidos.
Isso porque “várias frases no contexto dessa citação, como ‘mundo aparência’ e o ‘mundo
dos sentidos’, sugerem que para Kant a palavra Weltanschauung significava simplesmente a
percepção do mundo pelos sentidos” (NAUGLE, 2017, p. 93 e 94). O filósofo alemão utilizou a
palavra apenas uma vez e não deu muita importância ao termo. No entanto, historicamente
é a partir de Kant que a palavra Weltanschauung ganhara importância, tanto na filosofia,
quanto nas ciências de forma geral, denotando uma concepção intelectual do universo pela
perspectiva de um conhecedor humano.
Depois de Kant, o termo se tornou uma das concepções intelectuais centrais na
filosofia, na hermenêutica, na psicanálise, principalmente no idealismo e no romantismo
alemão do século XIX. G. Hegel (1770-1831), Søren Kierkegaard (1813-1855), Wilhem Dilthey
(1833-1911), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Martin Heidegger (1889-1976), Ludwig
Wittgenstein (1889-1951) e Michel Foucault (1926-1984) foram alguns dos pensadores mais
notáveis a lançarem mão desse conceito na história da filosofia.
Para nossos objetivos, iremos estudar o uso do termo cosmovisão por Wilhem
Dilthey, uma vez que ele foi responsável por um tratamento pioneiro e sistemático de sua
filosofia nos termos desse conceito.

Wilhelm Dilthey

O termo cosmovisão está intimamente ligado ao trabalho de Wilhelm Dilthey


(1833-1911). O objetivo dele era fornecer para as ciências humanas o que Immanuel Kant
havia fornecido para as ciências naturais, isto é, a possibilidade de um conhecimento que
conseguisse ser objetivo e certo. Para Dilthey, o alvo da ciência natural era a explicação
causal, enquanto que o objetivo das ciências humanas era alcançar a compreensão por meio
da interpretação. Para Dilthey, cada interpretação ocorre dentro de uma compreensão
23
CRESCER Histórico do termo
“Cosmovisão”
maior do mundo, ou seja, de uma cosmovisão. Isso faz
com que elas sejam historicamente condicionadas. Não
haveria nenhum constructo absoluto, científico ou
metafísico que fosse capaz de definir a natureza da
realidade. Por isso, os intérpretes da história e da cultura
humanas devem reconhecer sua imersão em uma
situação e tradição histórica particular e, nesse processo,
chegar a um acordo com a finitude de sua perspectiva.
Logo, para os pensadores das ciências humanas,
tudo que resta são cosmovisões que “estão arraigadas
nas contingências das experiências humanas e históricas
e que buscam elucidar os enigmas da vida” (NAUGLE,
2017, p. 139). Assim, para Dilthey, as cosmovisões eram
perspectivas historicamente produzidas sobre a
realidade.
A ironia das conclusões historicistas de Dilthey reside no fato de que elas minam seu
objetivo original de estabelecer validade universal para o julgamento nas ciências humanas.
Com isso, “o conceito de cosmovisão [...] gera aparentemente um ceticismo inescapável
sobre a verdade e a natureza última das coisas” (NAUGLE, 2017, p. 140).

Michel Foucault

Para Michel Foucault, o


termo cosmovisão deve ser
entendido à luz de outro termo
muito empregado pelo autor:
episteme. Às vezes o autor
contrasta esses dois termos, às
vezes ele trata-os basicamente
como sinônimos. Para o autor, a
episteme era um conjunto de
regras e regulamentos, um modo
de raciocinar, um padrão de
pensamento e um corpo de leis
que governam todos os padrões do conhecimento. Sendo a episteme esse conjunto de
regras para governar o pensamento, ela seria um tipo de cosmovisão. Nas palavras do autor:

Suspeitaremos, talvez, que a episteme seja algo como uma visão do


mundo [cosmovisão], uma fatia de história comum a todos os
conhecimentos e que imporia a cada um as mesmas normas e os
mesmos postulados, um estágio geral da razão, uma certa
estrutura de pensamento a que não saberiam escapar os homens
de uma época - grande legislação escrita, definitivamente, por mão
anônima. (FOUCAULT, 2008, p. 157)

Para Foucault, há uma aproximação entre seu entendimento de cosmovisão e as


relações de poder. Isso porque, de acordo com o autor, não existem verdades objetivas sobre
24
CRESCER
Histórico do termo
“Cosmovisão”
a realidade, ou seja, “a verdade não existe fora do poder ou sem poder” (FOUCAULT, 2009, p.
10). Há apenas discursos produzidos e todos eles visam a um jogo de poder que “existem a
serviço de alguma agenda sociopolítica e algum bastião de poder” (NAUGLE, 2017, p. 241). Ou
seja, as cosmovisões são responsáveis por criar mundos por meio de um discurso a fim de
serem utilizados para o benefício dos poderosos. Por isso, “as cosmovisões são meramente
construções linguísticas de uma elite de poder” (NAUGLE, 2017, p. 241).
Assim, para Foucault, o conceito de verdade está próximo do conceito de
cosmovisão. A ‘verdade’ diz respeito a um conjunto de procedimentos que formam as
cosmovisões e que servem aos poderosos:

Por ‘verdade’, entender um conjunto de procedimentos regulados


para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento
dos enunciados. A ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas
de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela
induz e que a reproduzem. (FOUCAULT, 2009, p. 11)

PARA REFLEXÃO

Para Dilthey, o conceito de cosmovisão é historicamente determinado pelas


contingências sociais, históricas e culturais; já Foucault afirma que o conceito de
verdade é uma construção histórica que serve para a criação de cosmovisões que
funcionarão a serviço dos poderosos. Perceba que, para esses dois autores, a
cosmovisão implica é uma visão subjetiva sobre a realidade. Como esse pensamento
vai contra uma cosmovisão cristã?

Cosmovisão e outras disciplinas acadêmicas

O conceito de cosmovisão está presente não apenas em autores de filosofia, mas


em várias disciplinas acadêmicas, especialmente nas ciências naturais e sociais, seja de
forma direta, seja de forma indireta. “Na medida em que as formas básicas de conceber o
mundo e o lugar dos seres humanos nele afetam o modo como os domínios natural e social
são entendidos, a importância da cosmovisão nessas disciplinas é difícil de ser
superestimada” (NAUGLE, 2017, p. 245). Apontaremos brevemente dois usos do conceito de
cosmovisão na área acadêmica.

Cosmovisão e as Ciências Naturais

A Estrutura da Revolução Científica, do físico americano Thomas Kuhn, é um dos


livros mais lidos, estudados e analisados de filosofia da ciência de todos os tempos. Logo no
começo da obra, Kuhn (2006, p. 19) afirma: “se a história fosse vista como um repositório
para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação
decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina”. Ou seja, Kuhn afirma que
dificilmente os exemplos da história da ciência demonstram que as teorias científicas
progridem da forma como os cientistas e filósofos geralmente pensam, isto é, através da 25
CRESCER Histórico do termo
“Cosmovisão”
através da acumulação linear de novos conhecimentos. Se fôssemos a história da ciência,
veríamos uma outra imagem.
A ciência progride por “revoluções” periódicas, que ele classifica como mudanças de
“paradigma”. Apesar de existir ambiguidades e dificuldades de definir precisamente o
conceito, em resumo, Kuhn (2006) define paradigma como um conjunto de suposições
teóricas gerais e de leis e técnicas para a sua aplicação adotadas por uma comunidade
científica específica. Eles geralmente são “revelados nos seus manuais, conferências e
exercícios de laboratório” (KUHN, 2006, p. 67). Os cientistas trabalham em cima dessas
suposições tácitas, produzindo a “ciência normal”. Assim, por paradigma, entende-se os
pressupostos básicos adotados por uma comunidade científica.
Com o tempo, a “ciência normal” apresenta anomalias, isto é, suas suposições teóricas e
seus experimentos não dão conta dos dados que se apresentam. Isso dá início a um estado
de “crise” que foge ao controle dos cientistas que trabalham naquele paradigma específico.
Como esse estado de crise é resolvido? Através do surgimento de um paradigma
completamente novo que atraia a adesão de um número crescente de cientistas, ao mesmo
tempo em que o paradigma original e problemático é abandonado. Essa mudança é
chamada por Kuhn de “Revolução Científica”. Esse novo paradigma orientará a nova
atividade científica “normal”.
Esse conceito de paradigma no contexto das ciências naturais, de acordo com David Naugle
(2017), é próximo do conceito de cosmovisão tal como entendido dentro da tradição
teológica originária em Agostinho, Calvino e Kuyper, isto é, “o empreendimento científico e
acadêmico é sempre realizado com base num conjunto influente de pressupostos que
direcionam a teoria” (NAUGLE, 2017, p. 269).

Cosmovisão e as Ciências Sociais

Por sociologia do conhecimento entende-se duas coisas: primeiro, é o estudo da


relação entre o pensamento humano e o contexto social no qual ele surge; segundo, diz
respeito aos efeitos que as ideias predominantes exercem sobre as sociedades.
De acordo com Peter Berger e Thomas Luckmann (2012), os seres humanos
constroem uma realidade social compartilhada. A sociologia do conhecimento trata tanto
da “multiplicidade empírica do ‘conhecimento’ nas sociedades humanas”, quanto “dos
processos pelos quais qualquer corpo de ‘conhecimento’ chega a ser socialmente
estabelecido como ‘realidade’.” (BERGER & LUCKMANN, 2012, p. 13).
Uma vez que a sociologia do conhecimento deve preocupar-se não apenas com o
conhecimento ‘teórico’ mas com tudo aquilo que, numa sociedade, é considerado
conhecimento; e uma vez que todo conhecimento humano acontece em situações sociais, a
sociologia do conhecimento preocupa-se em compreender o processo pelo qual o
conhecimento é desenvolvido, transmitido e mantido, isto é, “a sociologia do conhecimento
diz respeito à análise da construção social da realidade” (BERGER & LUCKMANN, 2012, p. 14.
Grifos dos Autores).
Em um primeiro momento, Berger & Luckmann (2012) afirmam que o conceito de
cosmovisão não é tão importante para uma sociologia do conhecimento porque “o
pensamento teórico, as ‘ideias’, Weltanschauungen [cosmovisão] não são tão importantes
assim na sociedade” (BERGER & LUCKMANN, 2012, p. 28). Isso porque, para eles, cosmovisão
diz respeito a uma construção teórica intelectualizada sobre a realidade e a sociologia do
26
CRESCER
Histórico do termo
“Cosmovisão”
conhecimento “deve acima de tudo ocupar-se com o que os homens ‘conhecem’ como
‘realidade’ em sua vida cotidiana, vida não teórica ou pré-teórica’.” (BERGER & LUCKMANN,
2012, p. 29).
No entanto, ainda que eles não estejam dispostos a considerar como um aspecto
central dentro da sociologia do conhecimento o conceito de “cosmovisão”, Naugle (2017, p.
297) “o que eles estão descrevendo certamente soa como uma”. Ou seja, o que definimos na
primeira aula como cosmovisão é precisamente o que Berger & Luckmann (2012) apontam
como o objeto de compreensão sociológica do conhecimento. Os autores entendem
cosmovisão como uma noção intelectualizada, teórica, muito presente no campo das ideias;
mas como vimos, a cosmovisão diz respeito aos nossos compromissos pré-teóricos,
presentes no senso-comum e que todos os seres humanos possuem. Por isso, há aqui uma
aproximação teórica entre os dois conceitos.

Nesta aula você...

Compreendeu a origem do termo Cosmovisão, bem como o histórico do termo nos


séculos XIX e XX.
Avaliou o uso do termo em duas áreas acadêmicas, a saber, nas
ciências naturais e nas ciências sociais.

CRESCER+

NAUGLE, David. Cosmovisão: a história de um conceito. Brasília: Monergismo, 2017


(Capítulos 03, 04, 06, 07 e 08).

27
COMPARTILHAR Histórico do termo
“Cosmovisão”
David Naugle (2017) aponta várias aplicações do termo cosmovisão, não apenas na
sociologia e nas ciências naturais, mas também na antropologia e na psicologia. Faça uma
breve pesquisa da aplicação desse termo em outros campos do conhecimento e em seguida
compartilhe com seus colegas.

28
Histórico do termo
“Cosmovisão” na
tradição cristã aula 04
Olá!
Nesta aula, estudaremos o conceito de cosmovisão a partir de alguns pensadores cristãos
reformados que fizeram um uso valioso do termo em seus escritos teológicos e filosóficos.
Além disso, veremos a diferença entre o conceito de cosmovisão como utilizado na tradição
cristã e fora da tradição cristã.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender o início do termo cosmovisão dentro da tradição cristã reformada;


Analisar como o termo cosmovisão foi empregado nos escritos de alguns dos
principais teólogos e filósofos da tradição reformada;
Identificar as diferenças entre as abordagens cristãs e não cristãs ao conceito de
cosmovisão.

Bons estudos!

29
CONECTAR Histórico do termo “Cosmovisão”
na tradição cristã
Nas duas últimas décadas, a igreja evangélica brasileira vem testemunhando um
interesse genuíno sobre o conceito de cosmovisão, bem como suas aplicações filosóficas e
teológicas. Vários autores como James Sire, Francis Schaeffer, David Naugle, Carl Henry,
Nancy Pearcey, Charles Colson, Ronald Nash, Michael Goheene e Craig Bartholomew
introduziram e sinalizaram a importância do termo, tanto para uma fé cristã genuína e
integral, quanto para a aplicação do evangelho na esfera pública, superando o dualismo
entre “vida espiritual” e “vida secular”.
Um dos principais pensadores da tradição
reformada, responsável não somente por desenvolver
o termo cosmovisão, mas também por aplicá-lo à
esfera pública foi Abraham Kuyper (1837-1920). Kuyper
era teólogo, jornalista, político e educador. Ele foi o
fundador da Universidade Livre de Amsterdam em
1880 e primeiro ministro da Holanda entre 1901-1905.
Kuyper trouxe contribuições notáveis para a
Holanda. Ele sempre ressaltava que as fontes do seu
empreendimento se encontravam numa poderosa
visão espiritual derivada da teologia cristã protestante,
oriunda principalmente de João Calvino. Para ele, o
Deus bíblico era soberano sobre todos os aspectos da
realidade, da vida, do pensamento e da cultura. No
discurso de posse de inauguração da Universidade
Livre de Amsterdam ao falar sobre a soberania de
Cristo sobre todas as áreas da existência, Kuyper
pronunciou aquela que tem sido uma das mais
lembradas referências no contexto de cosmovisão
cristã reformada: “não há um único centímetro
quadrado, em todos os domínios de nossa existência humana, sobre o qual Cristo, que é
soberano sobre todas as coisas, não clame: ‘É meu!’” (KUYPER, 1988, p. 488).
Nas suas palestras Stone Foundation Lectures, na Universidade de Princeton em 1889,
publicadas no Brasil sob o título Calvinismo, Kuyper (2014, p. 28 e 41) apresentou o
cristianismo calvinista como um “sistema de vida” abrangente que foi capaz de ajudar a
civilização ocidental para um “estágio superior em seu desenvolvimento”.

30
CRESCER
Histórico do termo “Cosmovisão”
na tradição cristã
James Orr

O primeiro teólogo cristão a introduzir o conceito de cosmovisão na teologia cristã


foi o presbiteriano escocês James Orr. No livro The Christian View of God and the World [A
visão cristã de Deus e do mundo], fruto das palestras Kerr Lectures na United Perbyterian
Theological College, em Edimburgo. Orr buscou oferecer uma exposição completa e
racionalmente defensável do cristianismo frente aos desafios intelectuais e culturais de
uma era que estava começando a se tornar pós-cristã.
Para realizar essa tarefa, o conceito de cosmovisão foi escolhido a fim de demostrar
como o cristianismo pode ser uma visão abrangente capaz de conceber o mundo inteiro,
bem como o lugar do homem nele, envolvendo tanto o intelecto, quanto as ações humanas.
Para ele a cosmovisão cristã “era um sistema superior que sintetiza e reunifica todas
as verdades num todo vivo com o Cristo supremo” (NAUGLE, 2017, p. 38). A fé cristã, assim,
pode ser concebida como um sistema “cristocêntrico e autoautenticável de verdade bíblica
caracterizado por integridade interior, coerência racional, verossimilhança empírica e poder
existencial” (NAUGLE, 2017, p. 40).

Abraham Kuyper

Abraham Kuyper partiu de uma visão reformada protestante que se concentrava na


soberania de Cristo sobre todos os aspectos da existência humana a fim de buscar renovar a
igreja e a nação holandesa. E foi no conceito de cosmovisão que o teólogo holandês
expressava sua visão abrangente do significado de sua fé. Para ele, a cosmovisão cristã
calvinista era um sistema de vida abrangente. Ele coloca o crente “diante da face de Deus,
não apenas em sua igreja, mas também em sua vida pessoal, familiar, social e política”
(KUYPER, 2014, p. 77).
Kuyper identificou outros sistemas de vida que também eram abrangentes, como o
paganismo, o islamismo, o catolicismo e o modernismo. No entanto, era a visão de mundo
cristã a que melhor conseguia dar conta das “três relações fundamentais de toda existência
humana: a saber, nossa relação com Deus, com o homem, com o mundo” (KUYPER, 2014, p.
40). Isso porque, como ele explica, toda cosmovisão precisa dar conta dessas três relações
fundamentais:

Para nossa relação com Deus: Uma comunhão imediata do homem


com o Eterno, independentemente do sacerdote ou igreja. Para a
relação do homem com o homem: O reconhecimento do valor
humano em cada pessoa, que é seu em virtude de sua criação
conforme a semelhança de Deus e, portanto, da igualdade de todos
os homens diante de Deus e de seu magistrado. E para nossa
relação com o mundo: O reconhecimento que no mundo inteiro a
maldição é restringida pela graça, que a vida do mundo deve ser
honrada em sua independência, e que devemos, em cada campo,
descobrir os tesouros e desenvolver as potências ocultas por Deus
na natureza e na vida humana. (KUYPER, 2014, p. 40)

Portanto, toda cosmovisão, de acordo com Kuyper, articula posições coerentes em


cada um desses relacionamentos fundamentais da existência humana. Pelo fato de o
mundo ter sido criado por um Ser racional, é possível detectar no cosmo uma ordem 31
CRESCER Histórico do termo “Cosmovisão”
na tradição cristã
inteligível. Por isso, “toda vida criada necessariamente traz em si mesma uma lei para sua
existência, instituída pelo próprio Deus” (KUYPER, 2014, p. 78). Há, assim, ordenanças
divinas para todas as áreas da existência: para o firmamento, para nossos corpos, para
regular nosso pensamento, nossa imaginação estética e nosso campo moral.

Assim, como a ordenança de Deus determina o curso do menor


asteroide tanto quanto a órbita do astro mais poderoso, do
mesmo modo, estas ordenanças morais de Deus descem aos
menores e mais particulares detalhes, declarando para nós o que
em cada caso deve ser considerado como vontade de Deus.
(KUYPER, 2014, p. 78)

Por isso, ele explicou que o cristão não pode fechar-se “em sua igreja e abandonar o
mundo a sua sorte. Antes, sente seu alto chamado para promover o desenvolvimento deste
mundo a um estágio ainda mais alto e fazer isto em constante acordo com as ordenanças de
Deus” (KUYPER, 2014, p. 81). Em suas palestras, Kuyper explicou como a visão cristã de
mundo é não apenas abrangente em extensão e de longo alcance, mas é também
qualitativamente superior às outras visões de mundo, capaz de desenvolver a cultura de
forma mais ampla e próxima da perfeição, não apenas na religião, mas na política, na ciência
e nas artes:

Como fenômeno central no desenvolvimento da humanidade, o


Calvinismo não está apenas habilitado a uma posição de honra ao
lado das formas paganistas, islâmicas e romanistas, visto que
como estes ele representa um princípio peculiar dominando o todo
da vida, mas também satisfaz cada condição requerida para o
avanço do desenvolvimento humano a um estágio superior.
(KUYPER, 2014, p. 47)

Francis Schaeffer

Francis Schaeffer foi um dos mais populares divulgadores do conceito de


cosmovisão cristã no século XX a partir de sua trilogia clássica: Deus que se revela, O Deus
que intervém e A morte da razão. Como já vimos na aula 02, Schaeffer procura mostrar como
a raiz do mundo moderno está na dicotomia entre Natureza e Graça, que criou uma
realidade de dois andares: no andar de cima, estão as opções religiosas e sagradas; no andar
inferior, natureza, estão as coisas terrenas. Com isso, o andar inferior foi ficando cada vez
mais autônomo e, com o passar do tempo, devorando o andar superior. O cristianismo
passou a ser cada vez mais irrelevante para boa parte da existência humana.
Schaeffer afirmava que esse dualismo trouxe uma consequência nociva para o
homem moderno: o ser humano tentou criar um sistema autônomo de conhecimento,
significado e valores que fornecia uma visão coerente da vida, mas como sua única
referência era a si mesmo, ele percebeu que não era possível racionalmente fazer tal coisa e
partiu para a “linha do desespero”. De onde provém exatamente esse desespero? Schaeffer

32
CRESCER
Histórico do termo “Cosmovisão”
na tradição cristã
Schaeffer responde:

Que é esse desespero? É a resultante da perda da esperança de


uma resposta unificada ao conhecimento e à vida. O homem
moderno continua a se apegar ao racionalismo e à revolta
autônoma que o caracterizam, embora para agir assim, ele tenha
de abrir mão de qualquer esperança racional de uma resposta
unificada” (SCHAEFFER, 2014, p. 17)

Assim, o homem moderno vive uma realidade de dois andares: no andar superior
estão ideias como Deus, beleza, valor, sentido e propósito para existência humana; no andar
inferior, está a ciência, o conhecimento racional e a natureza. Esses dois andares são
independentes e não é possível unificá-los.
Assim, ideias como valor, propósito e beleza estão no andar superior e são tidas
como irracionais, o homem moderno vive no andar inferior, no andar do mundo natural, da
ciência e da razão. E foi essa dicotomia que jogou o ser humano em um desespero profundo,
fazendo com que a filosofia chegasse à constatação de que vida não tem valor algum.
Como há uma completa dicotomia entre os dois andares, “o homem não tem
significado, não tem propósito e não tem sentido. Há apenas pessimismo quanto ao homem
como homem” (SCHAEFFER, 2014, p. 54). Mas o homem não consegue viver assim, isto é, em
uma vida desprovida de propósito e significado. É impossível colocar esse pessimismo em
prática o tempo todo. Então o que ele faz? Como ele consegue superar essa dicotomia?
O homem moderno dá um “salto de fé” para o andar superior a fim de ter uma ilusão
de sentido e procurar viver de alguma forma com propósito. “O salto é comum a toda esfera
de pensamento do homem moderno. O homem é forçado ao desespero desse salto porque
não pode viver como uma simples máquina” (SCHAEFFER, 2014, p. 58). Como um ser criado
à imagem e semelhança de Deus, o homem não consegue viver como se fosse um completo
nada. Por isso, ele coloca no andar superior, e faz um salto não racional, todo tipo de coisa
que poderia trazer algum otimismo e sentido para sua existência.
Ou seja, no andar em que ele vive, governado pela razão e pelas leis da natureza,
não há sentido, propósito ou valor. “Mas em cima, com base num salto não racional, não
razoável, há uma fé não racional que dá otimismo. Essa é a dicotomia total do homem
moderno (SCHAEFFER, 2014, p. 54).
Para Schaeffer, o cristianismo é um sistema total de vida e de pensamento que pode
superar essa dicotomia; e a cosmovisão cristã era a única resposta crível para o profundo
desespero do homem moderno. Assim, os cristãos precisam reconhecer que sua fé tem
coisas importantes a serem ditas não apenas sobre questões religiosas, mas a vida humana
como um todo.

Albert Wolters

O teólogo Albert Wolters deu destaque ao conceito de cosmovisão reformada. Para


ele, o termo se deve à reforma protestante que “redescobriu o ensino bíblico da
profundidade e da extensão do pecado e da redenção” (WOLTERS, 2006, p. 11).
Uma das questões importantes ressaltadas por Wolters é a percepção de que existe
uma diferença entre teologia, filosofia e cosmovisão. Geralmente, as pessoas tendem a
afirmar que qualquer perspectiva que apele à autoridade da Bíblia é chamada de “teologia” 33
CRESCER Histórico do termo “Cosmovisão”
na tradição cristã
e qualquer uma que apele à razão é chamada de “filosofia”.
No entanto, o problema dessa percepção é que, além de supor erroneamente que a
teologia não pode ser pagã ou humanista e que a filosofia não pode ser bíblica, “ele falha ao
fazer uma distinção entre a perspectiva de vida que cada ser humano tem pela virtude de
ser humano e as disciplinas acadêmicas especializadas ensinadas pelo professor”
(WOLTERS, 2006, p. 19):

Teologia e filosofia são campos especializados de questionamento


nos quais nem todos podem se envolver. Elas requerem habilidades
especiais, certo tipo de inteligência e uma considerável instrução.
São campos para especialistas [...]. Porém, a cosmovisão é um
assunto completamente diferente. Você não precisa de graus ou
habilidades para ter uma perspectiva de vida [...]. A filosofia e a
teologia, como disciplinas acadêmicas, são científicas e teóricas,
enquanto a cosmovisão não é. (WOLTERS, 2006, p. 19 e 20)

Assim, o conceito de cosmovisão em Wolters abrange algo que é mais básico o


pensamento teórico humano. Nas palavras do autor:

Para nossos propósitos, cosmovisão será definida como


‘a estrutura compreensível da crença de uma pessoa sobre as
coisas’ [...]. Cosmovisão é uma questão de experiência diária da
humanidade, um componente inescapável de todo saber humano
e, como tal, é não-científica ou preferivelmente [...] pré-científica,
em natureza. Ela pertence a uma ordem de cognição mais básica do
que a ciência e a teoria. (WOLTERS, 2006, p. 12 e 20)

Ronald Nash
Ronald Nash ofereceu uma das visões mais claras e simples do conceito evangélico
recente de cosmovisão. De acordo com o autor, a importância de se ter consciência tanto da
própria cosmovisão, quanto da cosmovisão e de outras pessoas são duas: (i) ela nos ajuda a
ter uma melhor autocompreensão; (ii) ao conhecer internamente a cosmovisão de outra
pessoa, podemos entender o que faz com que elas ajam da forma como agem. Para o autor,
a cosmovisão é uma espécie de lente com a qual olhamos a realidade. Elas funcionam como
“esquemas conceituais interpretativos para explicar porque ‘vemos’ o mundo tal como
vemos e por que frequentemente pensamos e agimos de uma determinada forma” (NASH,
2012, p. 46).

Em seus termos mais simples, cosmovisão é um conjunto de


crenças sobre as questões mais importantes da vida [...].
Cosmovisão é, portanto, um esquema conceitual pelo qual,
consciente ou inconscientemente, aplicamos ou adequamos todas
as coisas em que cremos, e interpretamos e julgamos a realidade.
(NASH, 2012, p. 25)

Esse “esquema teórico” se fundamenta, em última instância, em pressuposições


não teóricas. Para o autor, “uma cosmovisão equilibrada inclui crenças em pelo menos cinco
áreas principais: Deus, realidade, conhecimento, moralidade e humanidade” (NASH, 2012,
34 p. 38).
CRESCER
Histórico do termo “Cosmovisão”
na tradição cristã
Comparando o conceito de cosmovisão
dentro e fora da tradição cristã

Existe uma diferença significativa na forma como autores não cristãos como Dilthey
e Foucault e autores cristãos como Orr, Kuyper, Wolters, Nash e Sire definem o termo
“cosmovisão”.
Para a tradição não cristã, a cosmovisão diz respeito a categorias mentais que
determinam a forma como vemos o mundo. Kant afirma que a mente humana fornece ao
mundo as estruturas com as quais vemos a realidade. A partir dessa noção, Dilthey vai dar
ênfase ao caráter subjetivo da cosmovisão. Tudo que sabemos é determinado por essas
categorias pré-teóricas que usamos para saber algumas coisas. As cosmovisões, assim, irão
depender do tempo, cultura e lugar.
Foucault leva essa visão mais além e faz uma relação entre cosmovisão e
reivindicação de poder: as cosmovisões não são verdadeiras nem falsas em qualquer
sentido objetivo, mas são declarações sobre a realidade que residem na capacidade de
garantir poder a alguém ou a uma comunidade. Logo, o foco desses autores não está no
mundo que deve ser compreendido, mas na natureza dessa compreensão.
Do ponto de vista cristão, essa percepção é bem diferente: o foco do conceito de
cosmovisão está no mundo que deve ser compreendido, na realidade e não na natureza da
compreensão em si. Orr, Kuyper, Sire, Nash e Wolters não estão tão interessados nas
categorias mentais que usamos para compreender o mundo, mas no caráter do mundo em
si. Esses autores também enfatizam o caráter subjetivo de uma cosmovisão, mas sua base
última está na realidade, não na compreensão.

O foco da maioria das – se é que não de todas as – definições cristãs


evangélicas de cosmovisão nunca está nas categorias pelas quais
compreendemos Deus, a humanidade e o mundo, mas no que Deus,
a humanidade e o mundo realmente, objetivamente (i.e., fora de
nossa vida de pensamentos) são. (SIRE, 2012, p. 63)

35
CRESCER Histórico do termo “Cosmovisão”
na tradição cristã
Nesta aula você...

Compreendeu o início do termo cosmovisão dentro da tradição cristã reformada,


analisando como o termo cosmovisão foi empregado nos escritos de alguns dos
principais teólogos e filósofos da tradição reformada;
Identificou as diferenças entre as abordagens cristãs e não cristãs
do conceito de cosmovisão.

CRESCER+

NAUGLE, David. Cosmovisão: a história de um conceito. Brasília: Monergismo, 2017


(Capítulo 01).

SIRE, James. Dando nome ao elefante: cosmovisão como um conceito. Brasília:


Monergismo, 2012 (Capítulo 02 e 03).
36
COMPARTILHAR
Histórico do termo “Cosmovisão”
na tradição cristã
Ao comparar o conceito de cosmovisão nos autores de tradição cristã com os autores de
tradição não cristã, é possível perceber que existem semelhanças, mas também diferenças
significativas. É por isso que James Sire (2012, p. 58 e 59) afirmou certa vez que “a forma
como uma pessoa concebe cosmovisão depende de sua cosmovisão”.

37
O Drama das
Escrituras aula 05
Olá!
A partir desta aula daremos início ao aprofundamento do estudo do conceito de cosmovisão
cristã. Para isto, vamos analisar como a Bíblia conta uma história unificada e coerente da
jornada de Deus para a salvação de sua criação decaída. Veremos que uma cosmovisão cristã
se dá a partir de uma estrutura narrativa de criação, queda e redenção.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender como a Bíblia conta todas as suas histórias no contexto de um enredo


único;
Analisar como uma cosmovisão cristã precisa operar a partir do enredo criação,
queda e redenção;
Perceber como as narrativas são importantes para contextualizar qualquer ação da
vida humana.

Bons estudos!

38
CONECTAR
O Drama das
Escrituras
Somos criaturas narrativas. Não apenas fazemos parte de uma história particular
nossa, como também entendemos nossa existência participando de uma história mais
ampla e universal sobre a vida e o mundo. Observe, por exemplo, os documentários que
narram a origem do universo e a origem da vida, ou as controvérsias sobre o tema criação e
evolução. Você perceberá que existem várias polêmicas em cima desse tópico. Mas por que
essa questão científica particular é um assunto tão controverso e não, por exemplo, a teoria
da relatividade? Porque ela envolve nossa história e o enredo da nossa existência – coisa que
a teoria das cordas ou a lei da gravidade universal dos corpos, por exemplo, não faz.
Todo ser humano precisa de uma narrativa maior para fornecer o contexto e o
enredo apropriado na interpretação dos nossos atos. Qual história uma pessoa vive faz uma
diferença grande na interpretação dos acontecimentos de sua vida. Para perceber isso,
considere o exemplo citado por Goheen e Bartholomew (2017). Observe esta figura e
responda: o que você acha que está acontecendo?
É possível ter uma imaginação fértil o suficiente para criar uma ou mais
estórias sobre o que está acontecendo entre a raposa e o corvo. No entanto, não é possível
ter certeza sobre qual a intenção do
autor no evento apresentado a partir
das poucas informações que estão na
figura. Isso porque não existe um
contexto maior no qual é possível
localizar esse diálogo em um
significado mais amplo. Agora, Goheen
e Bartholomew (2017) acrescentaram
mais informações. Tente responder
novamente à pergunta: o que você
acha que está acontecendo?
GOHEEN, Michael & BARTHOLOMEW, Craig (2017, p. 19)
É possível ter uma imaginação
fértil o suficiente para criar uma ou
mais estórias sobre o que está
acontecendo entre a raposa e o corvo.
No entanto, não é possível ter certeza
sobre qual a intenção do autor no
evento apresentado a partir das
poucas informações que estão na
figura. Isso porque não existe um
contexto maior no qual é possível
localizar esse diálogo em um
significado mais amplo. Agora, Goheen
e Bartholomew (2017) acrescentaram GOHEEN, Michael & BARTHOLOMEW, Craig (2017, p. 20)

mais informações. Tente responder


novamente à pergunta: o que você acha que está acontecendo?
É possível ter uma imaginação fértil o suficiente para criar uma ou mais estórias
sobre o que está acontecendo entre a raposa e o corvo. No entanto, não é possível ter
certeza sobre qual a intenção do autor no evento apresentado a partir das poucas
informações que estão na figura. Isso porque não existe um contexto maior no qual é
possível localizar esse diálogo em um significado mais amplo. Agora, Goheen e
Bartholomew (2017) acrescentaram mais informações. Tente responder novamente à
39
CONECTAR O Drama das
Escrituras
pergunta: o que você acha que está acontecendo?
Perceba que agora as coisas mudaram completamente: antes você tinha
fragmentos de informações e, por isso, não conseguia entender o que estava acontecendo
entre a raposa e o corvo. Mas agora, quando é revelado que há fome na floresta e
animais como a raposa procuram usar da sua expertise para conseguir alimento, esse
fragmento é colocado em um contexto mais amplo, com início, meio e fim. É só assim
que podemos compreender ações episódicas específicas, uma vez que elas estarão dentro
de um enredo maior.

PARA REFLEXÃO

Relembre um trecho específico de sua vida que pode ter mais de uma interpretação
a depender do contexto narrativo maior em que ele está localizado. Como o enredo
pode oferecer inteligibilidade às ações humanas?

40
CRESCER
O Drama das
Escrituras
Introdução

“O homem”, disse MacIntyre (2001, p. 363), “é, em suas ações e práticas, bem como
em suas ficções, essencialmente um animal contador de história”. E isso se dá,
essencialmente, porque somos seres humanos. Os conceitos de inteligibilidade e narrativa
só fazem sentido para seres pessoais como nós.
Pense na distinção entre seres humanos e outros seres não pessoais.
Diferentemente do mundo da natureza, os seres humanos podem ser considerados
responsáveis por aquilo de que são autores. Os outros seres não. Mas por quê? Por que um
ser humano é responsável por contar uma mentira ou assinar um documento falso, mas um
leão não é responsável por matar sua presa?
Porque a ação do primeiro está dentro de um fluido inteligível de intenções,
motivações, paixões e propósitos que só um agente pessoal poderia “produzir”. Um ato feito
por um ser pessoal é algo pelo qual esse ser é responsável porque outro ser pessoal sempre
pode pedir a ele uma explicação inteligível. Pense em alguns casos quando a polícia
consegue identificar o autor de um crime, mas não consegue compreender as motivações
que o levaram a praticar tal crime. Geralmente, a polícia fica frustrada, sem saber como
reagir porque uma das grandes distinções entre uma ação inteligível e uma ação
meramente natural ficou ofuscada – ainda que ela saiba quem cometeu o crime.
Enquanto seres humanos, nós procuramos inteligibilidade para nossas ações, isto é,
as intenções, motivações e propósito dos atos humanos. E isso se dá porque, enquanto
seres pessoais, os seres humanos não são robôs, nem seres determinados pela natureza,
mas seres que possuem objetivos e intenções. Com isso, podemos não apenas sermos
responsáveis por nossos atos, mas pedir explicações aos outros do porquê eles agiram
como agiram.
É por isso que a inteligibilidade das ações é de extrema importância para
compreendermos o que estamos fazendo. MacIntyre (2001) observa que não existe algo
como um ser humano “universal” e “abstrato”. O ser humano, como agente moral, é sempre
um ser situado, que participa das circunstâncias culturais e sociais, com laços que o
prendem a uma comunidade específica, dentro de uma tradição específica. Ele é um ser
histórico, não abstrato. E por isso ele precisa ser um sujeito de uma narrativa a fim de ser o
responsável pelos atos e experiências que, no final das contas, compõem uma vida narrável.

Narrativas e o ‘quem sou eu’?

Pense na seguinte história contada por MacIntyre (2001, p. 353): suponha que você
está esperando um ônibus e o jovem ao seu lado diz subitamente “o nome do pato selvagem
comum é Histrionicus histrionicus histrionicus”. Você entende bem o significado da frase
que ele pronunciou; o problema é que você não consegue entender o que está se passando.
Mas por quê? De forma direta, porque você não consegue responder à pergunta “o que ele
está fazendo ao dizer isso?”.
Suponha agora que você coloque esse fragmento numa narrativa maior: talvez o
jovem tenha lhe confundido com alguém que se aproximou dele na biblioteca e lhe
perguntou: “você saberia o nome do pato selvagem comum?”; Ou ele acaba de sair de uma
seção de psicoterapia e foi estimulado a vencer a timidez conversando com estranhos,
falando-lhes a primeira coisa que vem na cabeça; ou ainda ele é um espião russo que marcou 41
CRESCER O Drama das
Escrituras
um encontro e está dizendo a senha que o identificará a pessoa que o espera. Em cada um
dos casos, a frase pronunciada pelo jovem tornou-se inteligível porque encontrou o seu
lugar dentro de uma narrativa.
MacIntyre (2001) afirma que nossos atos não devem apenas lidar com a correção das
ações individuais, mas fornecer orientação sobre o tipo de características e
comportamentos que uma pessoa procurará alcançar. E isso só é possível dentro de uma
narrativa mais abrangente. “Só posso responder à pergunta ‘o que devo fazer’? se souber
responder à pergunta ‘de que história ou histórias estou fazendo parte’?” (MACINTYRE,
2001, p. 363).
O “eu”, afirma MacIntyre (2001), deve ser pensado dentro de uma história narrativa,
considerando todos os aspectos que fazem parte dessa história, como seus personagens, os
cenários sociais e, principalmente, o próprio autor-personagem dessa história. Quando há
uma “narrativa de vida”, todas as ações se tornam inteligíveis porque puderam encontrar em
algum momento passado o sentido para que fossem exercidas. Assim, o “eu” faz parte de
uma história que, quer reconheçamos, quer não, quer gostemos, quer não, “é um dos
sustentáculos de uma tradição, aqui entendida como uma discussão histórica e socialmente
encarnada, acerca dos bens que constituem a tradição, cuja busca lhes dá sentido e
propósito” (MACINTYRE, 2001, p. 372).
Quando esse conceito de narrativa é perdido, nossas ações tornam-se apenas atos
isolados, sem nenhuma referência que possam torná-los compreensíveis. Mais
especificamente, toda ação realizada por uma pessoa só pode ser compreendida quando a
associo a uma intenção maior. E tal ação só ganha inteligibilidade quando podemos
explicá-las dentro de um contexto histórico-social. Como afirmam Goheen e Bartholomew:

Do mesmo modo, precisamos de uma grande história como pano de


fundo se quisermos entender a nós mesmos e o mundo em que nos
encontramos. Experiências individuais fazem sentido e adquirem
significado somente se vistas no contexto ou na estrutura de uma
história que acreditamos ser a verdadeira história do mundo: cada
episódio das histórias de nossa vida encontra seu lugar ali.
(GOHEEN E BARTHOLOMEW, 2017, p. 22)

E isso se dá não apenas com nossas ações, mas também com nossa identidade
pessoal. Eu só posso responder o “quem sou eu”, se consigo responder o “de que narrativa
eu faço parte?”. Quando isso se perde, o sentido de fazer qualquer coisa ao invés de outra em
momentos cruciais da existência parece ter sido perdido:

Quando alguém reclama – como alguns dos que tentam ou


cometem suicídio – que a vida não tem sentido, essa pessoa está
quase sempre, e talvez caracteristicamente, reclamando que a
narrativa de sua vida se tornou inteligível para ela, que não tem
razão de ser, não se dirige a um clímax nem a um telos.
(MACINTYRE, 2001, p. 365)

Por isso, para uma ação ser inteligível é preciso encontrar seu lugar no cenário social e,
sobretudo, numa narrativa. Quando conferirmos inteligibilidade a uma ação, nós a
encaixamos numa sequência de ações que se ligam como numa narrativa. E estas narrativas
de vida devem ser compreendidas como uma história da vida pessoal de um sujeito, contada
e interpretada por ele mesmo e por outros. “A identidade pessoal é exatamente aquela
42
CRESCER
O Drama das
Escrituras
identidade pressuposta pela unidade do personagem que a unidade da narrativa requer.
Sem tal unidade, não haveria protagonistas sobre os quais se pudesse contar histórias”.
(MACINTYRE, 2001, p.366).

Cosmovisões e estórias

Ser humano significa adotar alguma história básica de algum tipo por meio da qual
possamos entender o mundo e traçarmos nosso caminho nele. E a história que adotamos vai
influenciar decisivamente o significado de nossos atos e a verdade acerca de quem somos.
Qual a implicação disso para uma cosmovisão? E mais especificamente, qual o significado
disso para uma cosmovisão cristã?
Toda cosmovisão pressupõe uma narrativa que lhes dê inteligibilidade. Não apenas
o cristianismo, mas o naturalismo, o pós-modernismo, o existencialismo, o islamismo e
várias outras cosmovisões possuem uma narrativa básica que guia suas afirmações sobre o
mundo e a vida: elas procuram responder a questões sobre como tudo começou, por que o
mundo é do jeito que é, como seus adeptos devem viver e como seremos no futuro. De
acordo com Nancy Pearcey (2017, p. 151), um método simples e eficaz a partir do qual as
cosmovisões podem ser comparadas se dá através da grade “criação-queda-redenção”:

Criação
Traduzido em termos de cosmovisão, a criação refere-se às origens básicas. Cada
cosmovisão ou filosofia tem de começar com uma teoria de origens: De onde tudo veio?
Quem somos nós e como chegamos aqui?

Queda
Cada cosmovisão também oferece um correlativo da queda, uma explicação da fonte do mal
e sofrimento. O que deu errado com o mundo? Por que há guerras e conflitos?

Redenção
Para cativar o coração das pessoas, toda cosmovisão tem de instilar esperança oferecendo
uma perspectiva de redenção — um programa de trabalho para inverter a "queda" e pôr o
mundo em ordem outra vez”.

Essa grade é familiar para as pessoas que leem a Bíblia. É interessante que, nos
últimos anos, um dos desenvolvimentos teológicos mais sofisticados na área acadêmica foi
a compreensão de que a Bíblia tem a forma de uma única história, de que suas várias partes
fazem parte de um enredo maior e coerente, formado por essa grade de criação, queda e
redenção. Os 66 diferentes livros da Bíblia, com suas várias narrativas particulares – com
Adão e Eva, Noé, Abraão, Moisés, Davi, Jesus e Paulo – formam uma história única. Ele está
sempre dentro da grade: Criação, Queda e Redenção.

Criação
O mundo foi criado por um Deus todo-poderoso, a partir do nada (ex nihilo). Deus criou o
mundo e, ao final, deu seu veredito de que tudo era muito bom: sua beleza, os seres criados,
e o ser humano de forma especial. Deus criou homem e mulher à sua imagem e conforme
sua semelhança para cultivar e expandir a Sua glória por todo o mundo.
43
CRESCER O Drama das
Escrituras
Queda
O pecado distorceu a criação de Deus. Esse evento é conhecido como a queda. Com ele, o
mal se entrelaçou com cada aspecto da criação de Deus, com cada dimensão da vida
humana e do planeta terra, em suas esferas físicas, sociais, intelectuais e espirituais. Além
disso, como Deus foi retirado, a criação tende a ser divinizada ou endemoninhada, ou seja,
torna-se um ídolo ou um demônio.

Redenção
Deus não deixou o mundo à sua própria sorte, mas providenciou uma forma pela qual a
criação pode retornar ao senhorio de Cristo, restaurando-a ao propósito para o qual foi
originalmente criada.

Assim, para uma cosmovisão cristã ser legítima, ela precisa ser moldada e testada
pelas Escrituras. Por isso que N. T. Wright afirma que: “viver sob a autoridade da Bíblia,
então, significa viver no mundo da história contada por ela” (WRIGHT, 2008, p. 199). As
Escrituras funcionam, assim, como uma história básica por meio da qual entendemos nossa
própria experiência e pensamento, sendo o fundamento sobre o qual alicerçamos nossas
decisões e ações.
Caso isso não aconteça, os cristãos se apropriarão das crenças e cosmovisões rivais.
Por exemplo, caso os cristãos não orientem sua cosmovisão pelas Escrituras, eles tenderão
a adotar narrativas como “o ser humano é bom, a sociedade é que o corrompe” ou “você é
um produto aleatório do tempo e do acaso”, acreditando que o que há de errado com o
mundo é sua organização social ou a crença no transcendente, ao mesmo tempo que
diviniza a condição humana antes da civilização ou o mundo natural e a razão. Por isso, esse
tipo de cosmovisão dá origens ao mito do bom selvagem e ao mito da ciência como a
salvadora da civilização.
A Bíblia coloca todo o mundo dentro de uma narrativa abrangente, que fornece o
relato do todo. E isso não apenas para identificar a inteligibilidade das suas partes, mas
também para que ela funcione como a Palavra de Deus imbuída de significado para nós
quando se torna uma única narrativa. “A Bíblia nos fornece a história básica de que
precisamos a fim de entender o nosso mundo e viver nele como povo de Deus” (GOHEEN E
BARTHOLOMEW, 2017, p. 27).
Essa visão foi importante para a missão dos primeiros cristãos. Christopher Wright
(2012) questiona: por que os primeiros cristãos eram apaixonados por missões? A resposta
de Wright é porque eles compreendiam claramente a dinâmica da história de redenção
narrada pela Bíblia. “Eles viam a história [deles] como a história da própria missão de Deus e
viam sua própria parte nesta história como participantes de seu último grande ato, como
‘cooperadores de Deus’”. (WRIGHT, C. 2012, p. 58). Os primeiros cristãos estavam imersos na
história da qual faziam parte; sua história estava relacionada à história de como o messias
deveria ser conduzido à missão das nações.
De acordo com Christopher Wright (2012), precisamos prestar atenção a toda a
história da Bíblia e ver nossa missão à luz das Escrituras. Por isso, é preciso perguntar com
sinceridade “até onde conhecemos realmente a história bíblica” (WRIGHT, C. 2012, p. 47).

44
CRESCER
O Drama das
Escrituras
Nesta aula você...

Compreendeu como a Bíblia conta todas as suas histórias no contexto de um enredo


único, percebendo como uma cosmovisão cristã precisa operar a partir do enredo
criação, queda e redenção.
Percebeu como as narrativas são importantes para contextualizar qualquer ação da
vida humana.

CRESCER+

GOHEEN, Michael & BARTHOLOMEW, Craig. O drama das escrituras: encontrando


nosso lugar na história bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2017.

A Bíblia não é um conjunto de histórias desconectadas. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=hk2kIWhfCp0>.

45
COMPARTILHAR O Drama das
Escrituras
David Naugle (2017) aponta várias aplicações do termo cosmovisão, não apenas na
sociologia e nas ciências naturais, mas também na antropologia e na psicologia. Faça uma
breve pesquisa da aplicação desse termo em outros campos do conhecimento e em seguida
compartilhe com seus colegas.

46
Criação aula 06

Olá!
Na aula passada nós vimos a importância da narrativa para dar inteligibilidade às nossas
ações. Vimos também que toda cosmovisão segue uma grade simples de três atos: criação,
queda e redenção. Nesta aula, iremos estudar o primeiro desses três atos dentro de uma
cosmovisão cristã: a criação.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender que a cosmovisão cristã começa com a doutrina da criação e não com
a da salvação individual;
Analisar a doutrina da criação, bem como sua importância para a cosmovisão cristã;
Perceber o papel do ser humano, bem como suas implicações na doutrina da
criação.

Bons estudos!

47
CONECTAR Criação

Wikimedia Commons.

A Criação de Adão é um afresco de Michelangelo, que faz parte do teto da Capela Sistina,
pintado entre 1508–1512. O objetivo de Michelangelo foi ilustrar a narrativa da criação bíblica
do livro de Gênesis; mais especificamente, foi ilustrar o episódio no qual Deus dá vida a
Adão, o primeiro ser humano. O afresco é parte de um complexo esquema iconográfico e é,
cronologicamente, o quarto da série de painéis que retratam episódios de Gênesis.
Na imagem, há um contraste acentuado no corpo
de Adão: por um lado, ele está excessivamente detalhado
com uma notável perícia anatômica, com o braço
descansando em seu joelho como alguém que espera ser
despertado; por outro lado, esse mesmo corpo de Adão
está inerte, sem forças, energia e expressão, quase
incapaz de erguer a mão em direção à majestosa e
imponente figura divina, que se aproxima para lhe
transmitir a centelha de vida.
Há um segundo contraste na imagem
apresentada por Michelangelo, mas dessa vez entre
Adão e Deus: enquanto Adão é apresentado como uma
figura imóvel, sem vida, o retrato de Deus, ao contrário,
se mostra no afresco de forma poderosa e intensa,
cheio de energia.
Adão levanta lentamente seu dedo em direção a Deus, com seu rosto inerte
levemente voltado para trás, sem nenhuma expressão definida; é impossível saber para
onde Adão olha, já que seu olhar está vazio, sem detalhes, em contraste com o restante do
seu corpo. Já a figura de Deus é exibida como o retrato de uma pessoa já madura e com
vitalidade, com cabelos grisalhos e compridos, barba e bigode, flutuando no ar em intenso
movimento e rodeado por uma assembleia divina. Na imagem, Deus está acima, Adão
abaixo; assim, Deus está claramente em uma posição superior a Adão.

48
CONECTAR
Criação

No centro, a imagem que ficou


imortalizada na história da arte do
toque, que não acontece, entre o dedo
de Deus e o dedo de Adão. Porque
esses dois não se tocam? Não há
unanimidade nas interpretações, mas
uma possibilidade é a tentativa de
Michelangelo de apresentar de forma
vívida uma separação acentuada entre
Criador e criatura. Entre os dedos de
ambos, há um vazio absoluto, que é
ampliado para trás das duas figuras em
primeiro plano, contrastando assim
Criador e criação com o nada, o absoluto vazio a partir do qual o mundo foi criado.

49
CRESCER Criação

Dois equívocos sobre a doutrina da criação

Há dois tipos de equívocos muito comuns em que os cristãos correm o perigo de cair
quando se trata de pensar o ensino bíblico da criação para uma cosmovisão cristã.
O primeiro diz respeito a equiparar o ensino da criação na Bíblia apenas à questão
das origens, ou seja, pensar que a doutrina da criação diz respeito primariamente à
controvérsia criacionismo versus evolucionismo. Por um lado, é claro que o entendimento
bíblico da criação remete à origem de todas as coisas por um Deus todo poderoso e que ela
inclui também o entendimento sobre como as coisas começaram; por outro lado, não
podemos esquecer que Gênesis 1 e 2 não foram escritos como resposta a Charles Darwin, ao
evolucionismo ou às controvérsias científicas atuais, mas para se contrapor às polêmicas da
antiguidade sobre o porquê o mundo existe e de onde veio tudo que existe.
Um segundo equivoco diz respeito à ideia de que a cosmovisão cristã começa com a
salvação individual. Como afirma Pearcey (2017, p. 49), “a mensagem cristã não começa com
‘aceite Jesus como Salvador’, mas com ‘no princípio, criou Deus os céus e a terra’”. É
importante enfatizar esse ponto porque a construção de uma narrativa verdadeiramente
cristã a respeito da cosmovisão não deve começar com o pecado e a salvação de seres
humanos individuais, nem muito menos com a desordem do atual estado de coisas, mas
com a verdade bíblica de que o mundo é a boa criação original de Deus, que havia um
propósito ao criar a raça humana à sua imagem e semelhança, que esse propósito foi
desconfigurado pelo pecado, mas que pode ser novamente recolocado no caminho certo ao
ser restaurado para o propósito original.
Quando esses dois equívocos são cometidos, os cristãos tendem a perder de vista
como a doutrina da criação pode servir de base para pensarmos e atuarmos na realidade
conforme o propósito original de Deus. Por isso, é importante sabermos os principais pontos
do ensino bíblico da criação a fim de entendermos como podemos ter uma ideia cristã
saudável do mundo.

Cosmovisão e a doutrina da criação

Segundo a cosmovisão cristã, primeiro de tudo há Deus, o criador dos céus e da


terra; Ele é o Ser principal do universo, que não tem princípio, nem fim. A narrativa bíblica
começa com a afirmação “No princípio Deus...”. Como afirma John Stott, essas três primeiras
palavras da Bíblia não são apenas uma introdução à história da criação ou ao livro de
Gênesis: “elas fornecem a chave que abre nossa compreensão da Bíblia como um todo,
revelando-nos que na religião bíblica a iniciativa é de Deus” (STOTT, 2007, p. 11).
Diferentemente das narrativas pagãs, nas quais os deuses criam o mundo a partir de um
embate cósmico ou de material pré-existente, houve um tempo em que o mundo, a matéria
e toda a criação não existiam, apenas Deus. Uma cosmovisão bíblica precisa incluir a
compreensão básica entre Deus e tudo o que existe, uma vez que as coisas só existem
porque Deus as chamou à existência.
Assim, Deus é a fonte de tudo o que existe. “Todas as coisas foram feitas por
intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito” (Jo 1:3. Grifos nosso). Ele não
criou o universo de si mesmo, mas o chamou à existência ex nihilo (a partir do nada). Como
afirma o salmista: “Antes de nascerem os montes e de criares a terra e o mundo, de
50 eternidade a eternidade tu és Deus” (Sl 90:3).
CRESCER
Criação

Deus é um ser pessoal. Deus é o tipo de ser que tem consciência de tudo que o
rodeia; Deus também, como um ser pessoal, tem afeições, como amor e ódio (amor por suas
criaturas e ódio pelo pecado), aprova algumas coisas e desaprova outras (aprova que os
seres humanos o adorem e desaprova que amem a si mesmos mais que aos outros), quer
que as coisas sejam de certo modo (quer que o evangelho seja pregado a todo mundo). Além
disso, Deus tem objetivos e intenções, isto é, como qualquer ser pessoal, ele visa a agir de
determinada maneira, objetiva fazer com que as coisas sejam de um dado modo e age para
causar essas intenções. A realidade última do universo é pessoal.
A narrativa de Gênesis continua afirmando que Deus foi falando e as coisas
acontecendo: “E disse Deus: Haja luz; e houve luz” (Gn 1:3). Deus age e atua no mundo pelo
seu querer: Se ele quer que as coisas sejam de uma certa maneira, as coisas serão daquela
maneira. E Deus comunica sua vontade pelo poder de sua palavra: ele fala e as coisas
acontecem. “Pela fé entendemos que o universo foi formado pela palavra de Deus, de modo
que o que se vê não foi feito do que é visível”. (Heb 11:3). Ele poderia simplesmente desejar e
o mundo vir a existência, mas a narrativa de Gênesis é clara ao enfatizar o caráter
comunicacional de Deus: “Deus disse [...]. E Deus disse [...]. E Deus disse”.
Assim, diferentemente de algumas religiões orientais, como o panteísmo, em que a
realidade última é impessoal e/ou abstrata e onde os métodos de meditação precisam ser
intelectualmente sem conteúdo a fim de chegar a realidade suprema, Deus tem propósitos;
seus atos são racionais e inteligíveis, podendo comunicá-los aos outros seres da realidade;
Deus pode transmitir conteúdo intelectual para os seres de sua criação quando Ele lhes
revela e eles podem entender aquilo que Deus disse.
Outra diferença em relação às religiões orientais é que Deus é transcendente em
relação à criação. Ele não pode ser identificado com nada na natureza porque Ele, como
Criador, está além da natureza criada. “Assim como os céus são mais altos do que a terra,
também os meus caminhos são mais altos do que os seus caminhos e os meus pensamentos
mais altos do que os seus pensamentos” (Is 55: 8-9). Deus não é algo criado à imagem e
semelhança do homem; os homens é que, em certos aspectos, são a imagem e semelhança
de Deus. A transcendência de Deus implica também, de forma indireta, que Ele é
autossuficiente, não necessitando de coisa alguma para se completar. Paulo afirma aos
atenienses que Deus “não é servido por mãos de homens, como se necessitasse de algo,
porque ele mesmo dá a todos a vida, o fôlego e as demais coisas” (At 17:25).
Uma característica particularmente importante é que Deus criou livremente as
várias estruturas do mundo. Ele não foi obrigado, por sua natureza ou por alguma estrutura
anterior, a criar alguma coisa, nem foi obrigado a criar apenas as coisas que criou, nem, por
fim, foi obrigado a criar da forma que criou. Deus cria a partir de sua livre e irrestrita vontade.
“O senhor faz tudo que lhe agrada, nos céus e na terra, nos mares e em todas as suas
profundezas” (Sl 135:6). As coisas criadas são contingentes, isto é, Deus poderia ter feito o
que fez de um modo diferente.
Ao enfatizarmos a transcendência, poderíamos cair no erro de achar que a doutrina
da criação implica que Deus é totalmente transcendente; diferentemente do deísmo, no
qual um deus todo poderoso criou o universo, mas depois o deixou funcionar por sua própria
conta, isto é, maneira autônoma, o Deus do cristianismo está intimamente ligado àquilo que
Ele criou. Deus não apenas criou o universo, mas o mantém e o sustenta: “criaste todas as
coisas, e por tua vontade elas existem e foram criadas” (Ap 4:11). É a presença de Deus que
preenche tudo aquilo que foi criado. Como afirma o apostolo Paulo: “pois nele vivemos, nos
movemos e existimos” (At 17:28).
51
CRESCER Criação

Assim, Deus não é distante e remoto, mas imanente em relação à sua criação. Deus
é aquele que “dá vida a todos os seres” (Ne 9:6) e continua “sustentando todas as coisas por
sua palavra poderosa” (Hb 1:3). Deus continua ativamente envolvido com sua criação de
forma que “Ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e
injustos” (Mt 5:45). Ou seja, é Deus que faz com que as coisas aconteçam na natureza da
forma como acontecem. A natureza não é uma entidade independente que funciona de
forma autônoma, nem uma “Mãe” que age da forma como lhe apraz, mas uma realidade que
depende continuamente da executora vontade de Deus.
Deus criou um mundo ordenado e não caótico; Deus também governa o mundo de
tal forma que este exibe regularidade e constância. Os homens não podem plantar quando
bem entendem; o feijão alimenta as pessoas, mas a poeira não; perto da superfície da terra
e graças à gravidade, os objetos caem ao invés de subirem; é possível respirar na superfície
da terra, mas não embaixo d’água. Assim, há padrões físicos, químicos e biológicos
presentes na criação de Deus. E essas diretrizes criacionais não estão presentes apenas nas
leis da natureza, mas possuem um amplo alcance. Como afirma Kuyper:

Toda vida criada necessariamente traz em si mesma uma lei para


sua existência, instituída pelo próprio Deus [...]. Há ordenanças de
Deus para nossos corpos, para o sangue que corre através de
nossas artérias e veias, e para nossos pulmões como o órgão de
respiração. E assim, logicamente, há ordenanças de Deus para
regular nossos pensamentos; ordenanças de Deus para
nossa imaginação no campo da estética; e também, ordenanças
estritas de Deus para toda a vida humana no campo da moral.
(KUYPER, 2014, p. 78)

Uma doutrina da criação enfatizará que a extensão da criação diz respeito não
apenas às realidades investigadas pelas ciências naturais, restrita ao domínio físico, mas
também a áreas como sociedade, emoções, sexualidade, politica, estética, cultura, filosofia,
educação e economia; em todos esses campos há limites e padrões, critérios e normas,
formas corretas e erradas de agir. Sendo assim, todas elas estão fundamentadas, em última
instância, nas ordenanças de Deus; elas não surgiram ex nihilo (do nada). “Nada há na vida
humana que não pertença à ordem criada” (WOLTERS, 2006, p. 37). No entanto, é importante
citar que mesmo com esses padrões e regularidades, há liberdade e espaço para respostas
criativas, uma vez que “os seres humanos encarnam e implementam a ordem divina em
situações históricas e culturais específicas” (GOHEEN E BARTHOLOMEW, 2016, p. 73).
Outros dois pontos são importantes para uma doutrina bíblica da criação: o primeiro
é que a criação é muito boa. O clímax da narrativa de Gênesis afirma: “Deus viu tudo quanto
fizera, e era muito bom” (Gn 1:31). Por que esse ponto é importante? Porque a criação de
Deus não possui partes “más”; o mal, como veremos, é uma mancha no tecido puro
criacional de Deus, fruto da queda. Mas nenhuma parte da criação pode ser identificada
como má em si; nenhuma parte da criação pode ser identificada como a raiz da
perversidade.
Esse ensino contrasta fortemente com as percepções não cristãs de que a matéria,
a beleza, a riqueza, o casamento, o alimento, a liberdade, a igualdade, a política, a
propriedade privada, os gêneros masculino e feminino ou qualquer outro elemento é
intrinsecamente mau ou inferior e que sua eliminação acarretará o fim do sofrimento no
mundo ou a chegada de alguma bem-aventurança paradisíaca. Algumas ideologias afirmam
52 que a raiz do mal no mundo está na propriedade privada, ou na distinção entre homem e
CRESCER
Criação

mulher, ou na liberdade dada aos seres humanos, ou na igualdade, ou na matéria ou


na beleza.
Todavia, todas essas formas são negações do veredito de Deus em Gênesis de que
“tudo era muito bom”. Como afirmam Goheen e Bartholomew (2016), cada parte da criação
é individualmente “boa”; quando a criação é concluída, Deus afirma que o conjunto da
criação é “muito bom”. Dessa forma, a criação de Deus funciona como uma sinfonia, que
deve funcionar em harmonia com todas as suas partes. O mal surge a partir da desarmonia
de uma de suas partes.

A tecnologia e a arte, as escolas e as empresas, a imaginação e a


emoção – tudo isso dá sua contribuição para a sinfonia da criação
de Deus. Cada um deles é bom na medida em que está em
conformidade com o propósito da criação de Deus, e todos são
muito bons na medida em que, juntos, servem a ele em harmonia.
A idolatria, a discórdia e a dissonância surgem quando começamos
a apanhar um aspecto da criação e a exaltá-lo a uma posição
fora do lugar estabelecido por Deus na criação. (GOHEEN E
BARTHOLOMEW, 2017, p. 73)

Outro ensino importante diz respeito ao papel dos seres humanos na boa criação de
Deus. No clímax de Gênesis 1, Deus cria um ser à sua imagem; diferentemente das narrativas
pagãs, que afirmavam que os humanos ou eram escravos dos deuses, ou acidentes da
natureza ou meros selvagens - com exceção do rei que era o único à imagem de Deus -,
Gênesis afirma que todos os seres humanos foram criados à imagem de Deus.
Para Goheen e Bartholomew (2016), isso significa quatros coisas: (i) o ser humano só
existe por derivação, por isso, existe uma dependência nele como criatura; o homem não é
original (visto que é semelhante a Deus), nem coisa alguma sem o original (visto que é
imagem de algo, i.e., Deus); (ii) o ser humano foi criado para um relacionamento com esse
Deus; (iii) o ser humano, por ser imagem e semelhança, reflete o caráter divino e é capaz de
imitar a Deus em determinadas coisas, como a capacidade de amar, raciocinar, falar, entre
outras; (iv) o ser humano é o representante de Deus na ordem criada, atuando como
mordomo da criação.

O jardim, com todas as criaturas vivas, plantas e animais, foi


planejado para alcançar seu potencial por meio do trabalho das
criaturas que carregavam a imagem de Deus. O objetivo era o
jardim se estender e colonizar o resto da criação, e o homem era a
criatura encarregada de realizar o plano. Assim, o homem fica no
meio: reflete Deus para o mundo e reflete o mundo para Deus.
Essa é a base da vocação verdadeiramente humana [...].
Deus colocou o homem no jardim para refletir a imagem dele no
novo mundo que criara. (WRIGHT, 2012a, p. 83)

Com isso, há um potencial na criação que precisa ser desenvolvido pelo ser humano,
e que veremos numa próxima aula.

53
CRESCER Criação

Nesta aula você...

Compreendeu que a cosmovisão cristã começa com a doutrina da criação e não com
a da salvação individual.
Analisou a doutrina da criação, bem como sua importância para a cosmovisão cristã,
percebendo o papel do ser humano, bem como suas implicações na doutrina da
criação.

CRESCER+

GOHEEN, Michael & BARTHOLOMEW, Craig. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo


na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. São Paulo: Vida Nova, 2016
(Capítulo 03).

______. O drama das escrituras: encontrando nosso lugar na história bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2017 (Capítulo 01).
54
COMPARTILHAR
Criação

Pesquise na internet, por meio de músicas, filmes, documentários ou notícias, ideias que
são contrárias à doutrina da criação. Depois coloque-as no fórum para discussão com
seus colegas.

55
Queda aula 07
Olá!
Na aula passada, nós vimos o ensino bíblico sobre a criação. No entanto, o mundo parece
não ser a boa criação de um Deus bom; algo está muito errado com o mundo e o cristianismo
também tem uma narrativa sobre isso: é o que os cristãos chamam de queda. Nesta aula,
iremos estudar o segundo desses três atos dentro de uma cosmovisão cristã, mas
focaremos nos efeitos da queda se concentrando em aspectos que são importantes para
uma cosmovisão cristã.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender os efeitos da queda na boa criação de Deus;


Analisar o ensino bíblico da depravação total;
Perceber a extensão dos efeitos do pecado.

Bons estudos!

56
CONECTAR
Queda

Expulsion from Paradise é um quadro do holandês Cornelis Van Poelenburgh,


pintado em 1646. Van Poelenburgh foi um pintor e desenhista holandês de paisagens. Neste
quadro, seu objetivo foi ilustrar a narrativa bíblica da queda, presente no livro de Gênesis;
mais especificamente, foi ilustrar o episódio no qual Deus expulsa Adão e Eva do Jardim do
Éden, no capítulo 3.

Wikimedia Commons.

No primeiro plano, Adão está completamente envergonhado. No lugar de colocar a


mão no rosto, como alguém que está humilhado, ele cobre de modo exagerado toda sua
cabeça com o braço, de forma que é impossível ver qualquer coisa em seu rosto,
intensificando assim o sentimento de embaraço pelo qual o personagem está passando. Seu
corpo está inclinado para frente, deixando rapidamente o Jardim do Éden, como alguém que
chora de forma intensa e amarga. A tristeza de Adão é tão expressiva como é a tristeza dos
orientais quando lamentam por alguma coisa. Eva segue a “vergonha” e a humilhação do
marido, mas em vez de cobrir o rosto, ela cobre sua nudez com as mãos. Seu olhar triste e
vago olha para trás, em direção ao Jardim, como alguém que lamenta o que está
acontecendo. Ambos estão completamente humilhados e demostram isso, mas de formas
diferentes: ela, com vergonha de sua nudez, cobrindo-a; ele, com a cabeça exageradamente
encoberta pelos braços; ambos também estão andando no limite do quadro, para um futuro
incerto, e nós não sabemos para onde eles vão.

57
CONECTAR Queda

Também em primeiro plano, mas na margem superior esquerda, um anjo expulsa o


casal do jardim. A linguagem corporal dele é de alguém implacável, rodeado por outros
anjos que observam o casal e com uma espada em sua mão direita.
No fundo, uma das especialidades de Van Poelenburgh: as paisagens. Os elementos
pessoais da cena - Adão, Eva e os anjos - contrastam fortemente com os animais pastando
no jardim; enquanto Adão, Eva e o anjo se mostram claramente em conflito, aflitos,
angustiados e implacáveis (no caso do anjo), a natureza permanece como se nada estivesse
acontecendo, com os bois comendo e descansando e com a beleza das montanhas em
segundo plano. A natureza descansa sem ter consciência do que acontece ao seu redor.

58
CRESCER
Queda

Significado bíblico da doutrina da queda

O veredito de Deus é que o conjunto da criação é muito bom; mas quando olhamos
ao redor, parece que estamos no meio de uma grande confusão e de uma rebelião violenta.
O que aconteceu? Por que as coisas não parecem mais tão boas como o veredito de Deus no
sexto dia? A resposta é o que os cristãos chamam de pecado. Uma cosmovisão
verdadeiramente bíblica não pode parar no ensino da criação; algo mais aconteceu: esse
algo é o que a teologia cristã chama de queda.
Esse é um dos tópicos que mais escandalizam o homem ocidental do século XXI:
devido a todos os desenvolvimentos tecnológicos, científicos, econômicos e sociais
promovidos nos últimos anos, há uma resistência à ideia de que os seres humanos são
“pecadores”; o termo parece ser religioso demais para explicar a extensão dos problemas
humanos. Alguns teólogos afirmam que a ideia de pecado original sequer existe.
Para G. K. Chesterton, a realidade do pecado é algo tão claro e nítido, quanto são as
coisas comuns da vida – como as batatas. Tal realidade era tão óbvia que os antigos mestres
da religião sempre começavam com o fato do pecado; “Pudesse ou não o homem ser lavado
em águas milagrosas, não pairaria nenhuma dúvida de que ele desejava lavar-se”
(CHESTERTON, 2008, p. 27). No entanto, algo vem acontecendo, que mudou essa realidade:
“certos líderes religiosos [...] começaram a negar nos dias de hoje não a altamente
questionável água, mas sim a inquestionável sujeira”. Chesterton conclui:

Certos novos teólogos questionam o pecado original, que constitui


a única parte da teologia cristã que pode realmente ser provada.
Alguns seguidores do rev. R. J. Campbell, em sua espiritualidade
quase exigente demais, admitem a ausência de pecado em Deus,
que não podem ver nem em sonhos. Mas eles essencialmente
negam o pecado humano, que eles podem ver na rua. Os santos
mais poderosos, assim como os mais poderosos céticos, tomaram o
mal positivo como ponto de partida de sua argumentação. Se for
verdade (como certamente é) que o homem pode sentir uma
felicidade extraordinária em esfolar um gato, então o filósofo
religioso só pode fazer uma dentre duas deduções. Ou ele deve
negar a existência de Deus, como fazem todos os ateus; ou deve
negar a presente união entre Deus e o homem, como fazem todos
os cristãos. Os novos teólogos parecem pensar que uma solução
altamente racionalista é negar o gato. (CHESTERTON, 2008, p. 27)

Como afirma Chesterton, o pecado é uma realidade inegável. Mas de onde ele veio?
Em Gênesis 2, Deus coloca Adão e Eva em um jardim e apresenta dois mandamentos: o
primeiro é um mandamento positivo, presente no verso 16, mas que poucos cristãos
percebem: “coma livremente de qualquer árvore do jardim” (Gn 2:16). Adão e Eva deveriam
usufruir da criação de forma plena, comendo livremente do que o Senhor Deus preparou
para eles; mas havia um limite, algo que lembrasse que eles não podiam tudo, que existiam
na condição de criatura e que, para continuar usufruindo da plenitude da criação,
precisavam se submeter ao senhorio de Deus: “mas não coma da árvore do conhecimento
do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá” (Gn 2:17).
De acordo com Goheen e Bartholomew (2016, p. 80), “o comando concentra a
atenção no senhorio absoluto de Deus”, isto é, Deus deu uma ordem para Adão e Eva sem
nenhuma razão aparente; eles precisam aprender a obedecer e confiar na palavra de Deus -
a mesma palavra que, no capítulo anterior, foi poderosa o suficiente para criar tudo que 59
CRESCER Queda

existe. Mas em Gênesis 3 entra em cena a serpente que procura seduzir Eva com a
possibilidade de uma forma alternativa de existência, por meio de outras promessas; para
Goheen e Bartholomew (2016), ela faz isso ao gerar dúvidas quanto à bondade de Deus (“Foi
isto mesmo que Deus disse”), ao suscitar incredulidade (“Certamente não morrerão!”) e ao
retirar a barreira entre Criador e criatura (“Deus sabe que, no dia em que dele comerem,
seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus, conhecedores do bem e do mal").
Adão e Eva escolheram abandonar a relação de dependência que mantinham com
seu Criador a fim de se tornarem independentes e autônomos. A partir dessa busca de
autonomia e independência do Criador, todas as nossas afeições e capacidades foram
seriamente danificadas e distorcidas de forma devastadora, ocasionando o que Agostinho
(2017) chama de desordenação dos afetos.
De acordo com Agostinho (2017), existe uma ordem na criação trazida à existência
pelo próprio Deus; o ser humano foi criado em uma ordem na qual as coisas funcionam bem
quando funcionam do modo como deveriam funcionar; nesse sentido, os afetos do homem
estavam ordenados, isto é, o homem amava devidamente cada coisa da boa criação de Deus
de acordo com o grau que lhe era próprio: amava Deus sobre todas as coisas e ao próximo
como a si mesmo, colocando os interesses dos outros na frente dos seus e os objetos em
último lugar, mas o pecado subverteu completamente este quadro, rompendo com a ordem
criada: agora, tendemos a amar a nós mesmos acima de tudo, as coisas acima dos outros e a
não estar mais em harmonia com Deus, nem com nosso semelhante, tendendo a odiá-los.
Assim, para Agostinho, o mal é um parasita na boa criação de Deus: “o mal não é senão a
privação de bem, até o limite total do não ser” (AGOSTINHO, 2017, 3.7.12).
C. S. Lewis afirma que uma das formas pelas quais é possível ver isso é quando
refletimos sobre o porquê adotamos determinadas atitudes más: elas são sempre formas
de buscar algum bem. “O prazer, o dinheiro, o poder e a segurança, considerados em si
mesmos, são coisas boas. A maldade consiste em tentar obtê-las pelos métodos errados, ou
de forma errada, ou em excesso” (LEWIS, 2005, p. 58). Ou seja, a maldade é uma forma
equivocada de buscar o Bem. Por isso, uma pessoa pode decidir ser boa por amor à própria
bondade, mas não pode ser má por amor à maldade. E por quê? Porque a maldade não
possui substância. “A bondade, por assim dizer, é ela mesma, ao passo que a maldade é
apenas o Bem pervertido” (LEWIS, 2005, p. 58 e 59).
Outro aspecto significativo da queda para uma cosmovisão cristã é que ela não foi
apenas um ato isolado, mas um acontecimento catastrófico que trouxe consequências
devastadoras para a criação de Deus como um todo.

Não apenas toda a raça humana, mas também todo o mundo


não-humano foi afetado pelo fato de Adão não atender aos
mandamentos e à advertência explicita de Deus. Os efeitos do
pecado tocaram toda a criação: toda coisa criada, está, em
princípio, tocada pelos efeitos corrosivos da queda. Se
examinarmos as estruturas da sociedade, como o Estado ou a
família, ou as atividades culturais como a arte ou a tecnologia, ou
as funções físicas como a sexualidade ou a alimentação, ou ainda
qualquer coisa no vasto âmbito da criação, descobriremos que o
bom trabalho da mão de Deus foi arrastado para a esfera da
rebelião humana contra Deus. (WOLTERS, 2006, p. 64)

Assim, o pecado afeta todas as facetas da vida humana; ele é universal. O veredito bíblico é
claro: “não há um só justo na terra, ninguém que pratique o bem e nunca peque”. (Ec 7:20).
60
CRESCER
Queda

Mas pecado é mais do que mera desobediência individual. Uma vez que toda criação está
permeada com a presença e com a glória de Deus e uma vez que o pecado é uma rebelião
contra Deus, então segue-se que o pecado afetou todos os aspectos da ordem criacional,
fazendo com que ela se insurja contra seu Criador.
Os seres humanos foram criados de forma religiosa. Agostinho afirma que “Tu
[Deus] o incitas [o homem], para que goste de te louvar, porque o fizeste rumo a ti e nosso
coração é inquieto, até repousar em ti” (AGOSTINHO, 2017, 1. 1.1). Mas o pecado rompe com
essa dinâmica: o ser humano troca de lealdade religiosa, colocando algum aspecto da boa
criação de Deus no centro da sua existência, ocasionando aquilo que a Bíblia chama de
idolatria. Ou seja, o ser humano foi criado como uma criatura inerentemente religiosa, que
não pode viver sem algum deus, ainda que ele seja obras de nossas mãos. O pecado
da idolatria consiste em romper a barreira Criador/criatura, elevando à condição de
divindade algum aspecto criado. Como afirma Paulo de forma vívida sobre o funcionamento
da idolatria:

Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu


eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente,
sendo compreendidos por meio das coisas criadas, de forma que
tais homens são indesculpáveis; porque, tendo conhecido a Deus,
não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças, mas os
seus pensamentos tornaram-se fúteis e os seus corações
insensatos se obscureceram. Dizendo-se sábios, tornaram-se
loucos e trocaram a glória do Deus imortal por imagens feitas
segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros,
quadrúpedes e répteis. [...] Trocaram a verdade de Deus pela
mentira, e adoraram e serviram a coisas e seres criados, em lugar
do Criador, que é bendito para sempre. Amém. (Romanos 1:23 e 25)

Ou seja, Paulo afirma que a ordem criada revela a grandeza, a majestade e a glória
de Deus. Elas são vistas claramente, desde a criação do mundo. Mas o que o homem faz com
esse conhecimento? O suprime; troca a glória do Deus imortal por ídolos feitos por mãos
humanas à semelhança do homem mortal.

Impactos da doutrina da queda

O pecado macula todos cada milímetro da boa criação de Deus, inclusive o homem.
Não existe uma parte no ser humano que não tenha sido afetada pela queda: sua
capacidade de raciocinar, de amar, de sentir, de falar. A teologia cristã chama tal ensino de
depravação total. Isso não significa dizer que todo ser humano é absolutamente perverso
em todos os sentidos, sendo assassinos e molestadores; significa sim que a boa criação de
Deus é corrompida e desorientada, em cada uma das suas partes.
Com a queda, o ser humano se torna absolutamente escravo do pecado – ensino
que a teologia cristã chama de pecado original. O homem, mesmo quando sabe qual o bem
a ser feito e deseja realizar tal bem, não consegue realizá-lo, pois está enfermo pelo pecado:
“Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse eu continuo
fazendo”. (Rm 7:19). Há, no ser humano, desde o seu nascimento, uma tendência, um
pendor, uma inclinação para praticar aquilo que desagrada a Deus. Assim, por causa desse
distúrbio, nós tendemos a procurar aquilo que é mau.
61
CRESCER Queda

Logo, uma vez que o pecado é uma desordenacão da ordem criada, não sendo
intrínseco à boa criação de Deus, ele provém da própria natureza ou do coração do ser
humano, que está infectado. Ou seja, apesar de o pecado contaminar a ordem da criação, ele
não provém da criação (que é boa), mas do distúrbio presente no coração humano. Como
afirma Jesus:
Pois do interior do coração dos homens vêm os maus pensamentos,
as imoralidades sexuais, os roubos, os homicídios, os adultérios, as
cobiças, as maldades, o engano, a devassidão, a inveja, a calúnia, a
arrogância e a insensatez. Todos esses males vêm de dentro e
tornam o homem ‘impuro’. (Marcos 7:21-23)

O pecado também afeta outro aspecto da nossa humanidade: Middleton e Walsh


(2010) afirmam que o ídolo vai contra a imagem de Deus no homem. Como vimos na aula
passada, os seres humanos são representantes de Deus perante o restante da criação; como
um todo, refletimos a glória de Deus por meio da nossa presença física completa diante das
coisas criadas. Mas a idolatria tenta fazer Deus visível (a tarefa humana) de maneira errada:
“em vez de aceitar e cumprir nossa responsabilidade, criada para representar o Senhor no
âmbito completo de nossas atividades culturais, projetamos essas responsabilidades nos
ídolos” (MIDDLETON & WALSH, 2010, p. 58). Assim, os ídolos é que passam a ter a
responsabilidade de levar a imagem de Deus perante a ordem criada, não nós.
O pecado possui uma dinâmica sedutora e destrutiva não apenas para com Deus,
mas também para com a criação, a realidade e a existência humana. Deus deixa isso muito
claro ao questionar sobre as consequências do pecado de Israel à Jeremias: “Mas será que é
a mim que eles estão provocando?, pergunta o Senhor. Não é a si mesmos, para a sua
própria vergonha?” (Jr 7:19).
Assim, há uma reação à nossa desobediência, tanto da parte de Deus, quanto da
parte da ordem criada. O caminho da obediência é o caminho da paz na ordem criacional;
o caminho da desobediência é o caminho de morte, “pois a desobediência vai contra a
própria natureza da criação em si. O pecado é rebelião contra a estrutura e contra o
Estruturador da realidade. Tal rebelião é, inevitavelmente, autodestrutiva” (MIDDLETON &
WALSH, 2010, p. 60).

Nesta aula você...

Compreendeu os efeitos da queda na boa criação de Deus.


Analisou o ensino bíblico da depravação total, percebendo a extensão dos efeitos do
pecado sobre o mundo.

CRESCER+

GOHEEN, Michael & BARTHOLOMEW, Craig. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo


na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. São Paulo: Vida Nova, 2016
(Capítulo 03).

MIDDLETON, Richard & WALSH, Brian. A visão transformadora. São Paulo: Cultura
Cristã, 2010 (Capítulo 04).
62
COMPARTILHAR
Queda

O pecado desfigura cada aspecto da boa criação de Deus. Sendo assim, mostre exemplos de
como o pecado afetou instituições da ordem da criação como o casamento, o trabalho, entre
outros, e leve para nosso fórum.

63
Redenção aula 08
Olá!
Com essa aula, fechamos o estudo da cosmovisão cristã a partir da grade criação, queda e
redenção. Já vimos como a boa criação de Deus foi feita e, em seguida, como ela foi
corrompida. Nesta aula, veremos que Deus não deixou as coisas ficarem dessa forma, mas
providenciou um meio para redimir sua criação.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender a importância do ensino bíblico da redenção para uma cosmovisão


cristã;
Analisar as implicações do ensino bíblico de redenção;
Perceber a abrangência da restauração promovida por Deus para sua boa criação.

Bons estudos!

64
CONECTAR
Redenção

A Incredulidade de São Tomé é uma pintura a óleo feita entre 1600 e 1601 pelo pintor
italiano Caravaggio. O quadro retrata o episódio no qual, de acordo com o evangelho de
João, o apóstolo Tomé, depois de perder uma das aparições de Jesus aos apóstolos após a
ressurreição, disse: "se eu não vir as marcas dos pregos nas suas mãos, não colocar o meu
dedo onde estavam os pregos e não puser a minha mão no seu lado, não crerei" (Jo 20:25).
Uma semana depois, Jesus apareceu e disse especificamente a Tomé: “coloque o seu dedo
aqui; veja as minhas mãos. Estenda a mão e coloque-a no meu lado. Pare de duvidar e creia”.
(Jo 20:27).

Wikimedia Commons.

Tomé está no centro da cena, tocando o corpo ressurreto de Jesus. O foco está na
sua mão direita, firmemente guiada pelo Cristo ressurreto, enquanto um assombrado
apóstolo examina a ferida com o dedo indicador. Tomé se encontra temeroso, ao mesmo
tempo que curioso e perplexo. Sua testa exageradamente franzida mostra uma expressão
de estresse e espanto pelo que está à sua frente.
Tomé não apenas toca a ferida do corpo de
Jesus; ele a examina detalhadamente como um
materialista curioso que não acreditasse em Deus,
o faria de forma rústica. Ele não toca devagar, nem
muito menos de forma sutil, mas empurra o seu
dedo para ver se aquilo é exatamente da forma
com que seus olhos enxergam.

65
CONECTAR Redenção

A ferida de Jesus se apresenta como um algo


tangível, físico, expressão de sua existência como homem
corpóreo. Jesus não se impacienta com o incrédulo
apóstolo. Suavemente, uma de suas mãos afasta a roupa,
enquanto a outra, calmamente, guia a mão de Tomé para
suas feridas. Mesmo Jesus estando em um ângulo superior
ao apóstolo, Cristo, de forma consoladora, baixa a cabeça
para o incrédulo apóstolo. Ele vem aos três apóstolos como
alguém de carne e de sangue; não há, aqui, um espírito
desencarnado, mas um corpo ressurreto literal, que guia a
mão de Tomé às suas feridas; não vemos nenhum sinal do
Cristo divino, apenas do homem de Nazaré.
Apesar de nada na cena apontar para Sua divindade,
a fisionomia e os traços do Cristo ressurreto são mais
r e fi n a d o s
que os dos
três apóstolos, demarcando assim uma
diferença entre ambos. A luz bate sobre
Tomé e sobre os outros dois apóstolos,
como que iluminados pela graça divina.
Mais especificamente, a luz que vem da
parte esquerda da cena ilumina a dúvida e o
espanto dos três apóstolos. Não
conseguimos ver a mão dos dois discípulos,
mas eles não conseguem disfarçar a
curiosidade; pela expressão facial, ela
parece ser tão intensa quanto à de Tomé.

66
CRESCER
Redenção

Conceito bíblico de redenção

O cristianismo é uma religião de redenção: para salvar os homens dos seus pecados,
Deus toma a inciativa, através de Jesus Cristo. A queda ocasionou uma distância, uma
separação entre os seres humanos e Deus, ou seja, há um abismo entre um Deus santo,
glorioso e justo e os seres humanos pecadores; por causa da sua santidade, Deus não pode
compactuar com o pecado, nem com criaturas rebeldes. “As suas maldades separaram
vocês do seu Deus; os seus pecados esconderam de vocês o rosto dele, e por isso ele não os
ouvirá” (Is 59:2).
Os seres humanos mereciam apenas a ira de um Deus santo que não é
condescendente com a perversidade. Como Deus então resolve o problema do pecado? Ele
extermina todos os seres humanos e começa uma nova criação? Ou ele procura fazer a
reconciliação com suas criaturas rebeldes? De acordo com a Bíblia, Deus toma o lugar do
homem pecador para reconciliá-lo consigo através da morte e ressurreição de Cristo. A cruz
de Cristo restaurou aquilo que o pecado danificou. Como afirma John Stott (2007, p. 111): “O
pecado provocou separação; a crucificação de Cristo trouxe reconciliação. O pecado
produziu inimizade; a cruz nos trouxe a paz. O pecado criou um abismo entre o homem e
Deus; a cruz construiu uma ponte entre eles; o pecado quebrou a comunhão; a cruz a
restaurou”.
Por causa da morte de Jesus na cruz, o ser humano pode nascer novamente, se
libertar de seu pendor para o mal e viver de acordo com o Espírito. Há uma substituição: na
cruz, o santo e imaculado Jesus toma a ira que o homem merecia, para que o perverso
homem tenha a vida eterna que só Cristo merecia.

Pode-se dizer, portanto, que o conceito da substituição está no


coração tanto do pecado quanto da salvação. Pois a essência do
pecado é o homem substituindo-se a si mesmo por Deus, ao passo
que a essência da salvação é Deus substituindo-se a si mesmo pelo
homem. O homem declara-se contra Deus e coloca-se onde Deus
merece estar; Deus sacrifica-se a si mesmo pelo homem e coloca-se
onde o homem merece estar. O homem reivindica prerrogativas que
pertencem somente a Deus, Deus aceita penalidades que
pertencem ao homem somente. (STOTT, 2006, p. 166)

Qual a implicação da cruz de Cristo para uma cosmovisão cristã? Ela é central.
Muitas vezes, os cristãos tendem a pensar no sacrifício de Jesus como algo individual, isto é,
que serve apenas para salvação particular. Mas essa não é a visão bíblica sobre o assunto.
Em primeiro lugar, a salvação não diz respeito apenas a salvar o homem de um estado de
coisas, mas a fazê-lo retornar para um estado original. Assim, a redenção é, antes de tudo,
uma obra restauradora, curativa. Como afirma o teólogo Albert Wolters: “É surpreendente
que todas as palavras básicas que descrevem a salvação na Bíblia sugerem o retorno a um
estado ou situação originalmente bom” (WOLTERS, 2006, p. 79). O objetivo de Deus não é
abandonar sua criação, mas restaurá-la novamente para que ela volte a ser “muito boa”.
Na redenção, não faz parte do propósito divino levar os seres humanos para um
paraíso etéreo, para um outro mundo, uma vez que este mundo é mau, perverso e cruel; a
Bíblia não trabalha com a ideia de “fuga” deste mundo porque os seres humanos foram
criados para viver no contexto deste mundo; Deus quer redimir este mundo, fazer com que
a vontade dEle seja estabelecida aqui para que seus propósitos criacionais possam ser,
novamente, colocados na ordem da criação – como era nos capítulos 01 e 02 de Gênesis. 67
CRESCER Redenção

Assim, N. T. Wright afirma que “nosso destino final não é um lugar qualquer no universo,
abandonado e de menor importância. Os tiranos é que pretendem acabar com esta terra.
Deus deseja recriá-la” (WRIGHT, 2011, p. 73). O problema deste mundo não é a materialidade
da criação, mas o pecado que a infectou.

A boa criação original deve ser restaurada. As implicações práticas


dessa intenção são muitas. O casamento não deve ser evitado pelos
cristãos, mas santificado. As emoções não devem ser reprimidas,
mas purificadas. A sexualidade não deve simplesmente ser evitada,
mas redimida. Os políticos não devem ser declarados inalcançáveis
pela lei, mas reformados. A arte não deve ser pronunciada
mundana, mas reivindicada para Cristo. Os negócios não devem
mais ser relegados ao mundo secular, mas ser feito novamente
de acordo com os padrões que honram a Deus. Cada setor da vida
humana produz exemplos como esses. Num sentido muito
importante, essa restauração significa que a salvação não traz
nada de novo. A redenção não é uma questão de acrescentar
uma dimensão sobrenatural ou espiritual à vida humana; antes,
é uma questão de dar nova vida e vitalidade ao que já estava
lá o tempo todo. (WOLTERS, 2006, p. 80 e 81)

Em segundo lugar, a redenção é tão abrangente quanto foram a criação e os efeitos


da queda. Isso significa dizer que, uma vez que a criação tem um sentido cósmico e uma vez
que a queda afetou cada milímetro da boa criação de Deus, a redenção também tem um
sentido universal e abrangente, que afeta toda a realidade criacional: “Pois foi do agrado de
Deus que nele habitasse toda a plenitude, e por meio dele reconciliasse consigo todas as
coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão no céu, estabelecendo a paz pelo seu
sangue derramado na cruz” (Cl 1:19,20. Grifos nosso). Assim, a redenção de Deus alcança não
apenas a vida espiritual, mas a totalidade da existência humana.

Da mesma maneira que toda a criação era originalmente boa e tudo


foi afetado pela queda, assim tudo será redimido. A promessa
última de Deus é novos céus e nova terra, o que significa que a vida
terrena não vai terminar, mas será de todo santificada. O céu não
será um lugar de espíritos irreais e ilusórios ou com mentes
desincorporadas flutuantes. Nosso corpo físico será ressuscitado e
restaurado, e moraremos em uma nova terra. No credo apostólico
afirmamos a ressurreição física de Jesus e a nossa. Sua
ressurreição é a garantia de que também ressuscitaremos (1 Co 15).
Como parte da boa criação de Deus, o mundo material participará
da redenção final. (PEARCEY, 2017, p. 97)

Perceba que uma ideia errada sobre a criação e a queda traz consigo uma ideia
errada sobre a redenção. Por isso que as implicações teológicas do significado dessas
realidades - criação, queda e redenção - precisam ser bem compreendidas, tanto pelos
cristãos, quanto para aplicação à uma cosmovisão cristã. Se pensarmos na criação apenas
em termos de origens e na queda apenas em termos de “pecados individuais”, não iremos
enfatizar o aspecto universal da redenção como mostrada no Novo Testamento: “E nos
revelou o mistério da sua vontade, de acordo com o seu bom propósito que ele estabeleceu
em Cristo, isto é, de fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na
dispensação da plenitude dos tempos” (Ef 1:9,10. Grifos nosso).

68
CRESCER
Redenção

Redenção, cosmovisão e escatologia

O ensino do Novo Testamento enfatiza uma relação profunda entre a esperança


cristã, a ressurreição de Cristo e o novo mundo de Deus que teve início. A restauração da boa
criação de Deus não acontecerá apenas na consumação final de todas as coisas, quando
teremos novo céu e a nova terra. De acordo com o ensino bíblico, ela começou com a morte
e ressurreição de Jesus Cristo. Por isso, ela já pode ser usufruída e implantada no presente.

Logo no começo deste capítulo [João 20] aparece o comentário que


nos revela do que trata tudo isso [...]. Segundo João, era tarde
daquele dia, o primeiro da semana. Aquela expressão, 'o primeiro
dia da semana', deu início ao capítulo 20; quando João repete assim,
algo importante está acontecendo. Todo o seu Evangelho é
concebido como ecos de Gênesis 1, começando como tal com 'no
primeiro dia'. Agora - diz ele -, a velha semana acabou. No sexto dia,
a sexta feira, Deus criou a humanidade à sua própria imagem;
na sexta feira da história de João, Pôncio Pilatos colocou Jesus
diante da multidão, dizendo: 'Vejam! Aqui está o homem!’. Ao cair da
tarde daquele dia, Jesus declarou o que Deus declarou no final de
Gênesis 1: 'Está consumado'. Está feito. Assim como o Pai concluiu a
obra da criação, o Filho terminou a obra da redenção. Então,
no sétimo dia, o sábado, Deus descansa, e o Deus encarnado
descansa no túmulo, com sua obra consumada. Então - Então! -
'no primeiro dia da semana, bem cedinho, ainda de madrugada,
Maria Madalena foi ao sepulcro' e o encontrou vazio, porque esse é
o primeiro dia do novo mundo de Deus, a sua nova criação.
(WRIGHT, 2015, p. 202 e 203. Grifos do autor)

Perceba que a narrativa da ressurreição em João não é apenas um final feliz para a
história da cruz, nem uma metáfora para afirmar que o descanso e a alegria vêm depois do
sofrimento e da morte; ao contrário, com a cruz e a ressurreição de Jesus, tem início o novo
mundo de Deus, a nova criação, o novo homem cheio do Espírito Santo que tem um trabalho
a fazer na antiga ordem das coisas.
Como afirmamos, muitos cristãos possuem uma mentalidade individualista e
moderna, lendo a história da cruz e da ressurreição como Jesus morrendo para me salvar,
perdoando meu pecado a fim de me levar para o céu. Parece que tudo que Jesus fez foi para
me livrar desse mundo terrível. Por isso, deve-se evitar esse mundo mal e perverso,
enclausurando-se cada vez mais em casa, na igreja ou no campo, convencendo o máximo de
pessoas a participarem dessa fuga, esperando o céu onde irei, enfim, descansar.
Mas por todo o Novo Testamento é possível perceber que essa narrativa é
combatida, não celebrada ou fomentada. Como afirma Paulo, os cristãos não deveriam fugir
da sua antiga vida, mas redimi-la: “cada um continue vivendo na condição que o Senhor lhe
designou e de acordo com o chamado de Deus. Esta é a minha ordem para todas as igrejas”.
(1 Co 7:17). A cruz é a base cristã para redimir a boa criação de Deus; a ressurreição é a base
cristã para o novo mundo. Os cristãos devem tanto aplicar as conquistas da cruz, redimindo
este mundo, quanto dar continuidade à nova criação implantada por Deus na ressurreição.

A cruz é a mais nítida e bela janela através da qual vemos o amor de


Deus na história; quanto mais aprendemos sobre a cruz, em suas
dimensões históricas e teológicas, mais descobrimos sobre aquele
à imagem de quem fomos criados, e sobre nossa vocação de
sermos o povo da cruz, através de quem Deus é conhecido. Quando 69
CRESCER Redenção

falamos sobre moldar o mundo, não estamos simplesmente


tratando a cruz como aquilo que nos salva pessoalmente, e
que depois perde seu valor – podendo ser desprezada. A tarefa
de moldar o mundo é mais bem entendida como uma
tarefa redentora de aplicar as conquistas da cruz neste mundo.
(WRIGHT, 2012b, p. 108)

Assim, uma cosmovisão cristã precisa enfatizar que a redenção não significa que
não devamos esperar um futuro no último dia, no fim de todas as coisas, porque o futuro
invadiu o presente. A ideia do Novo Testamento é que o primeiro dos filhos de Deus já
ressuscitou; os frutos do Espírito já podem ser experimentados no presente; os cristãos
podem (e devem) adiantar aqui e agora o Reino de Deus que será consumado
completamente Ali e Além. “Nós mesmos, que temos os primeiros frutos do Espírito,
gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa adoção como filhos, a redenção
do nosso corpo” (Rm 8:23. Grifos nosso).
Por outro lado, é claro que não é possível afirmar que haverá apenas continuidade
entre o atual estado de coisas e a nova criação. De acordo com N. T. Wright (2015, p. 91),
“alguns teólogos ficaram tão impressionados com a presença e a atividade divina no mundo
presente que imaginaram que Deus deseja simplesmente continuar a trabalhar nele como
ele está, aprimorando-o até que, no final, torne-se o lugar perfeito que ele tem em mente”.
Mas o ensino bíblico não endossa tal visão. Existe um elemento de descontinuidade entre a
criação original e a criação redimida. Nosso corpo mortal atual será diferente do corpo
incorruptível ressurreto; somente Deus será capaz de redimir plenamente toda sua criação.
No entanto, isso não significa dizer devemos esperar Deus colocar em ordem todas
as coisas. O ensino bíblico é que enquanto o Reino de Deus não é completamente
consumado, Deus não nos pede para fugir do mundo, mas Ele nos envia ao mundo enfermo,
para começar o processo de cura. Nas palavras das Escrituras, o cristão que esquece desta
vocação de ser sal da terra e luz do mundo, "não servirá para nada, exceto para ser jogado
fora e pisado pelos homens" (Mt 5.13); Jesus enfatizou mais de uma vez esse ensino quando
afirmou: "não rogo que os tires do mundo, mas que os protejas do Maligno. [...] Assim como
me enviaste ao mundo, eu os enviei ao mundo". (Jo 17.15 e 18).
A razão de ser dos cristãos é implementar a conquista única e legítima da cruz de
Cristo neste mundo. Assim, as imagens bíblicas de redenção devem trazer para uma
cosmovisão cristã a renovação da boa criação retornando a ser conforme o plano original.

Nesta aula você...

Compreendeu a importância do ensino bíblico da redenção para uma cosmovisão


cristã, analisando as implicações de tal doutrina para uma visão de mundo cristã.
Percebeu a abrangência da restauração promovida por Deus para sua boa criação.

CRESCER+

STOTT, John. A cruz de Cristo. São Paulo: Vida, 2006.

WRIGHT, NT. Surpreendido pela Esperança. Viçosa: Ultimato, 2009.


70
Redenção

COMPARTILHAR
Escolha uma área enferma da boa criação de Deus como o casamento, o trabalho, entre
outros e, biblicamente, mostre como podem ser implantadas as conquistas da cruz naquela
área da boa criação de Deus.

71
Mandato
Cultural aula 09
Olá!
Um dos conceitos centrais para uma cosmovisão cristã é o de mandato cultural: a ordem de
Deus para que os seres humanos deem continuidade à criação de Deus construindo cultura
e sociedade. Nesta aula, estudaremos os fundamentos deste importante conceito, bem
como suas implicações para uma mundo pós-queda.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender a relação entre cosmovisão cristã e o mandato cultural;


Entender o princípio bíblico de graça comum;
Perceber as implicações do mandato cultural em um mundo pós-queda.

Bons estudos!

72
CONECTAR
Mandato
Cultural
O primeiro capítulo de Gênesis traz um dos temas mais importantes para o desenvolvimento
de uma cosmovisão cristã: o mandato cultural. Ele está baseado no seguinte texto:

Então disse Deus: ‘Façamos o homem à nossa imagem, conforme a


nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as
aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos
os pequenos animais que se movem rente ao chão’. Criou Deus o
homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher
os criou. Deus os abençoou, e lhes disse: ‘Sejam férteis e
multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os
peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se
movem pela terra’. (Gênesis 1:26-28)

Nos outros seis dias da criação de Gênesis 1, Deus sempre afirmava de forma
impessoal “haja” (ou seus equivalentes), e as coisas apareciam: “Disse Deus: ‘Haja luz’, e
houve luz” (v. 3); no sexto dia, a dinâmica muda: o “haja” impessoal dos atos criativos de
Deus é substituído pelo pessoal “façamos”. Bruce Waltker (2010, p. 74) afirma que essa é a
forma com que o narrador de Gênesis coloca a humanidade mais próxima de Deus que o
restante da criação. É somente com o ser humano que Deus anuncia seu propósito de
antemão.
Ao anunciar a criação do homem, Deus usa os temos no plural: “façamos o homem à
nossa imagem”. O ser humano será um reflexo direto da pluralidade presente na divindade.
A trindade é três em um sentido e um em outro sentido; o ser humano irá refletir essa
dinâmica divina: o casal criado deve ser uma unidade em um sentido (“uma só carne”) e
plural em outro sentido (“homem e mulher”).
O que separa o ser humano de outros animais é ele ser imagem [tselem] de Deus.
“Enquanto as demais criaturas são criadas ‘segundo suas espécies’ (Gn 1.21, 24, 25), a
humanidade é feita ‘à imagem de Deus’ (WALTKER, 2010, p. 76). Por ser imagem, a
humanidade representa Deus perante a criação. Na antiguidade, costumava-se acreditar
que apenas o rei era a imagem de Deus; por derivação, cria-se também que o espírito divino
poderia ser colocada em um estátua, de forma que a imagem funcionasse como um
representante ou substituto a fim de anunciar que o rei era soberano sobre aquele território;
além disso, assim, o termo tselem dizia respeito à construção de imagens régias: “embora o
rei não pudesse estar fisicamente presente em todos os seus domínios, estabelecia imagens
de si mesmo por todo o reino, a fim de lembrar o povo acerca de sua autoridade” (LONGMAN
III, 2009, p. 128). Gênesis afirma que não apenas alguns seres humanos escolhidos são a
imagem de Deus, mas que essa é uma característica de toda a raça humana. Exercer a
soberania divina sobre a criação: eis o propósito real para o qual o ser humano foi criado.
“Assim, o homem fica no meio: reflete Deus para o mundo e reflete o mundo de volta para
Deus” (WRIGHT, 2012a, p. 83).
Enquanto o ser humano foi criado à imagem de Deus, ele não pode ser equiparado
ao próprio Deus, visto que ele também é semelhança. Diferentemente do pensamento da
Nova Era, Gênesis serve para nos lembrar que não somos deuses em potencial, nem
adormecidos; o termo serve para mostrar que há uma distinção cuidadosa entre criador e
criatura. “Enquanto no antigo Oriente Próximo a imagem da divindade é igualada à própria
divindade, na visão bíblica a palavra semelhança serve para distinguir claramente Deus dos
humanos” (WALTKER, 2010, p. 77).
“Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os
criou”. Homem e mulher refletem a imagem de Deus perante a criação: não somente o 73
CONECTAR Mandato
Cultural
homem, nem somente a mulher, mas ambos (“os criou”). Essa verdade é enfatizada três
vezes no texto. Deus abençoou o casal dando-lhe uma ordem: “Sejam frutíferos e cresçam
em número; encham a terra e a dominem”. Os humanos, então, recebem um duplo mandato
cultural: primeiro, eles devem encher a terra; enquanto a nossa época afirma que ter filhos
é algo desaconselhável, o veredito de Gênesis é que ter filhos é algo abençoador; em
seguida, Deus ordena que eles “encham a terra e a dominem”, isto é, Adão e Eva deveriam
governar a criação como reis benevolentes.

74
CRESCER
Mandato
Cultural
Mandato cultural

O termo mandato cultural vem de uma expressão latina (mandatum) que significa
“dado às mãos, isto é, ‘aquilo que foi dado nas mãos do ser humano’, aquilo que foi confiado
à sua administração responsável” (SCHWAMBACH, 2011, p 31); ou seja, o termo mandato diz
respeito àquilo que foi confiado à administração responsável de alguém; pense no termo
“mandato político”: ele remete à ideia de pessoas confiando nas mãos de uma pessoa a
administração pública por um período específico de tempo (geralmente de quatro anos). Na
teologia, o termo mandato cultural diz respeito à responsabilidade cristã em relação à
cultura e à sociedade.
Existem várias definições para o termo “cultura” e vários debates sobre a
possibilidade de defini-la precisamente. De acordo com Clifford Geertz (2008, p. 66), o
conceito de cultura “denota um padrão de significados transmitido historicamente,
incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas
simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
conhecimento e suas atividades em relação à vida”; para nossos propósitos teológicos,
dentro do nosso contexto do mandato cultural e dada a definição de Geertz, definiremos
cultura como tudo o que está relacionado ao ato humano de obedecer às duas ordenanças
divinas no momento da criação: “cultivar e guardar” o “jardim” no qual Adão e Eva serão
colocados (veja Gn 2.5ss); e exercer a ordem de “dominar” a terra (Gn 1.26- 28).
O ensino do mandato cultural afirma que está na ordem da criação seres humanos
exercendo atividades culturais. Uma cosmovisão cristã baseada nas Escrituras precisará
trabalhar com a ideia de que, desde o princípio, a essência do que significa agir como ser
humano está diretamente ligada ao estabelecimento da cultura neste mundo; e os arranjos
culturais não são meras formas de entretenimento, mas ordens do próprio Deus: foi Deus
que concedeu aos seres humanos autoridade como um meio pelo qual devemos exercer o
domínio sobre a criação; mais especificamente, por sermos a imagem e semelhança de
Deus, a vontade divina é que sejamos Seus co-criadores, sendo “o meio presente e visível
pelo qual o cuidado dele [Deus] para com o jardim e os animais se tornaria real” (WRIGHT,
2012a, p. 83).
De acordo com Albert Wolters (2006), há uma distinção entre os primeiros seis dias
de desenvolvimento do mundo criado pelo próprio Deus e a tarefa subsequente da
civilização humana, dada por Deus. O desenvolvimento da criação implica que Deus colocou
na ordem criada uma imagem de si mesma com o objetivo de continuar aquilo que ele
começou nos seis primeiros dias. Assim, na narrativa de Gênesis 1 e 2, Deus cria de forma
direta e indireta; há modos diretos de estabelecer sua lei no cosmos e modos indiretos.
Primeiro Deus cria a partir do nada. A Creatio prima refere-se ao ato primordial de
Deus de criar o universo ex nihilo. Essa é uma prerrogativa divina, algo que somente um
criador todo-poderoso consegue realizar. Atualmente, artistas pensam que conseguem
produzir obras de arte a partir do nada, mas o ensino bíblico afirma que toda criação
humana só pode ser feita a partir de algo já criado, nunca a partir do nada. Por mais criativos
que os artistas sejam, é impossível para as criaturas criar ex nihilo.
Em seguida, temos o processo de ordenação divina, de leis da natureza
estabelecidas por Deus governando a ordem da criação, processo chamado de creatio
secunda. Por fim, Adão e Eva, como representantes de Deus, deveriam colocar em prática
normas de governança na terra; essas normas foram estabelecidas por Deus, mas seriam
implantadas pela humanidade, que atuaria na criação como seus "parceiros menores”; “os 75
CRESCER Mandato
Cultural
homens deveriam capacitar o jardim a frutificar e falar palavras que trouxessem ordem
articulada à maravilhosa diversidade da criação divina” (WRIGHT, 2012a, p. 82).

Nossa vocação ou trabalho profissional não é uma atividade de


segunda classe, algo que fazemos para pôr comida na mesa. É a
grande obra para a qual fomos criados. O modo como servimos ao
Deus Criador pode ser demonstrado ao utilizarmos, com
criatividade, os talentos e dons que Ele nos deu. Poderíamos dizer
que somos chamados a continuar a obra criativa de Deus. Claro que
não criamos do nada, ex nihilo, como Deus fez; nosso trabalho é
desenvolver a capacidade e potencial que Ele construiu na criação,
usando madeira para edificar casas, algodão para fazer roupas ou
silício para fazer chips de computador.” (PEARCEY, 2017, p. 51)

Assim, desenvolver a civilização não é uma necessidade pós-queda, mas o propósito


original para o qual o ser humano foi criado. Quando Deus ordena “sejam férteis e
multipliquem-se. Encham e governem a terra" (Gn 1.28), Ele quer que os seres humanos
desenvolvam as potencialidades do mundo social, através da formação de famílias, igrejas,
escolas, cidades, governos e leis, além de agir na subordinação do mundo natural, de forma
a plantar algodão, construir estradas, projetar casas, escrever roteiros, produzir filmes,
fomentar a ciência e edificar casas. Ou seja, a humanidade continuaria criando, não a partir
do nada, mas a partir dos atos criativos de Deus. “O jardim, com todas as criaturas vivas,
plantas e animais, foi planejado para alcançar seu potencial por meio do trabalho das
criaturas que carregavam a imagem de Deus” (WRIGHT, 2012a, p. 83).

A terra havia sido completamente sem forma e vazia; no processo


de seis dias de desenvolvimento, Deus a formou e preencheu,
mas não completamente. As pessoas devem agora prosseguir
na obra de desenvolvimento: sendo frutíferas, devem enchê-la
ainda mais; subjugando-a, devem formá-la ainda mais. A
humanidade, como representante de Deus na terra, prossegue do
ponto que Deus parou. Mas agora, isso deve ser um
desenvolvimento humano da terra. A raça humana encherá a terra
com o seu tipo, e formará a terra para o seu tipo. De agora em
diante, o desenvolvimento da terra criada será social e cultural em
natureza. Nunca única palavra, a tarefa à frente é a civilização.
(WOLTERS, 2006, p. 53. Grifos do autor)

Dessa forma, embora a criação por si mesma seja “muito boa” em sua totalidade, “a
tarefa de explorar e desenvolver seus poderes e as suas potencialidades, a tarefa de
construir uma civilização, Deus entrega aos que levam a sua imagem” (COULSON &
PEARCEY, 2015, p. 38). Deus delega à humanidade a tarefa de dar continuidade ao projeto
iniciado por ele nos primeiros dias. Cabe aos seres humanos construir, modelar, ensinar,
pesquisar, educar, em suma, construir de forma mais plena possível a civilização.
A humanidade junta-se ao Deus criador como cooperadora na realização do
trabalho do mundo. Ao ordenar que os humanos “encham e governem” a terra, Deus
pretende que os seres humanos continuem a mover a criação, desenvolvendo suas
potencialidades. Dessa forma, não apenas no Éden, mas toda vez que os seres humanos
formam e estabelecem cultura, no sentido amplo do termo, estão agindo conforme a
vontade do Criador. Como afirma o Salmo 8:6: “Tu o encarregaste de tudo que criaste e
puseste sob a autoridade deles todas as coisas” (NVT).
76
CRESCER
Mandato
Cultural
O mandato cultural ainda implica que a vida dos não-cristãos seja vigiada, e que seu
bem-estar seja protegido, que seus direitos sejam assegurados, independentemente da
descrença. A base disso é que cada pessoa é feita à imagem e semelhança de Deus. Como
veremos em outra aula, foi este ensino que derrubou a escravidão e fomentou o
desenvolvimento tecnológico para o bem de toda a humanidade.

Graça comum

Um outro conceito importante que está ligado ao conceito de mandato cultural é o


de graça comum. A ordem de desenvolver cultura não foi dada apenas aos cristãos, mas a
toda humanidade, no princípio de todas as coisas, no sexto dia da criação.
Todos os povos de todos os tempos fazem parte do mandato cultural; esse é um
projeto humanitário, comum a toda a humanidade, não limitado apenas a “pessoas
religiosas”. Esse é o conceito de graça comum, ensino teológico do cristianismo protestante,
desenvolvido principalmente na tradição reformada, que se refere à graça de Deus que é
comum a toda a humanidade. Ela é comum porque seus benefícios são experimentados ou
destinados a toda a raça humana, sem distinção entre uma pessoa e outra. É graça porque é
imerecida e soberanamente concedida por Deus. A Bíblia afirma que Deus “faz raiar o seu sol
sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos” (Mt 5.45). Essa graça comum
não tem caráter salvífico. Ela afirma simplesmente que os talentos para o desenvolvimento
das potencialidades da criação de Deus são dados por Ele tanto aos crentes, quanto aos
não-crentes. Pense na genialidade de não-cristãos, seja no campo intelectual, seja no
campo artístico, como Platão, Aristóteles, Albert Einstein, Stephen Hawking, Tom Cruise,
Christopher Nolan, Bertrand Russell, Arthur Clarke, Stan Lee e Alan Turing: todos eles
trouxeram contribuições notáveis para as ciências naturais, a literatura, a tecnologia,
o cinema e a filosofia.
Como vimos, a criação de Deus está caída. O pecado ocasionou sérias desordens na
ordem da criação; por natureza, os seres humanos são totalmente incapazes de se dirigir a
Deus e fazer o bem, além de serem inclinados ao egoísmo e ao mal, a não ser que Deus mude
seu coração, regenerando-o. No entanto, se isso é assim, “parece que, necessariamente,
todas as pessoas incrédulas e não regeneradas devem ser homens maus e repulsivos. Mas
isto está longe de ser nossa experiência na vida atual. Pelo contrário, o mundo incrédulo
leva vantagem em muitas coisas (KUYPER, 2014, p. 128).
A graça comum é a forma como Deus interrompe os efeitos devastadores do pecado
sobre a criação, concedendo a todos os homens capacidades intelectuais, morais, estéticas,
físicas, sociais, entre outros. Os não-cristãos também são a imagem e semelhança de Deus,
por isso a graça comum atua sobre eles; não-cristãos também têm a capacidade de
descobrir verdades sobre a realidade e conhecimento genuíno sobre o mundo, seja na ética,
seja nas ciências naturais, na política, nas artes, ou em qualquer campo do saber.
E os cristãos devem se aproximar e celebrar tais descobertas, uma vez que toda verdade é
verdade de Deus, como afirmavam os Pais da Igreja. Os cristãos podem celebrar as boas
músicas, assistir aos bons filmes, usar da tecnologia, fazer uso de desenvolvimentos
lógicos, assistir bons jogos de futebol e de basquete, ler boa literatura e celebrar a bondade
de Deus em conceder a toda humanidade a capacidade de dar prosseguimento à ordem
criacional.

77
CRESCER Mandato
Cultural
Foi então entendido que foi a ‘graça comum’ de Deus que produziu
na antiga Grécia e Roma os tesouros da luz filosófica, e desvendou
para nós os tesouros da arte e da justiça, o que despertou o amor
pelos estudos clássicos, a fim de renovar para nós o benefício de
uma herança tão esplêndida. Não foi claramente visto que a
História da humanidade não é tanto um espetáculo aforístico de
paixões cruéis quanto um processo coerente com a Cruz como seu
centro; um processo no qual cada nação tem sua incumbência
especial, e o conhecimento da qual pode ser uma fonte de bênção
para todos os povos. (KUYPER, 2014, p. 132)

Pearcey (2017, p. 50) afirma que, apesar de o sistema global de pensamento


não-cristão estar incorreto, uma vez que ele parte de uma cosmovisão não Teísta, “os
não-crentes ainda atuam no mundo de Deus, portam a imagem dEle e são sustentados por
sua graça comum, fatos que significam que têm a capacidade de descobrir segmentos
isolados de conhecimento genuíno”. Por isso, é possível que, dada a graça comum, possa
“haver ocasiões em que os cristãos estejam enganados em algum ponto, e os não-crentes,
certos”.

Implicações para o mandato cultural

Qual a implicação do mandato cultural para nós hoje? Como vimos na aula sobre
redenção, o ensino cristão é que quando aceitamos a salvação em Cristo, não fugimos desse
mundo, mas somos recolocados no caminho certo; e isso significa sermos restaurados ao
nosso propósito original. Redenção não diz respeito apenas a sermos salvos do pecado, mas
retomar a tarefa para a qual fomos originalmente criados. O mandato cultural faz parte
dessa dinâmica redentiva.

Embora a queda do homem tenha introduzido o pecado e o mal


na história humana, ele não apagou o mandato cultural [...].
O pecado introduz um poder destrutivo na ordem criada por Deus,
mas ele não anula aquela ordem. E quando formos redimidos, não
apenas seremos libertados das motivações do pecado que nos
orientam, mas também renovados para cumprir o nosso objetivo
original, capacitados para fazer aquilo que fomos criado: construir
sociedade e criar cultura – e, ao fazer isso, restaurar a ordem criada.
(COULSON & PEARCEY, 2015, p. 38)

Com a cruz de Cristo, nosso trabalho no escritório, em um estádio de futebol, numa


sala de aula, em um hospital, ou onde quer que aconteça, assume um novo aspecto, pois
torna-se um meio de participar dos propósitos redentores de Deus. E isso não somente no
atual estado de coisas: “Na eternidade, continuaremos cumprindo o mandato cultural, mas
sem o pecado, criando coisas que são bonitas e benéficas com as matérias-primas da
renovada criação de Deus” (PEARCEY, 2017, p. 97).
Assim, quando trabalhamos, nós cultivamos a criação, recuperando nosso propósito
original e trazendo uma força redentora para anular o mal e a corrupção que entraram pela
queda na boa criação de Deus, usando todo nosso esforço físico, social, cultural e criativo
para a glória de Deus e para servir ao próximo.
É importante falar que isso não significa dizer que os cristãos irão redimir a cultura
78 ao engajar-se em atividades criativas e sociais. Somente Deus fará isso complemente.
CRESCER
Mandato
Cultural
No entanto, os cristãos podem atuar como agentes do seu reino, manifestando sua graça
salvadora em tudo que é feito. “O próprio Deus está comprometido no trabalho de salvação
(graça especial) e no trabalho de conservação e desenvolvimento de sua criação (graça
comum). Quando obedecermos ao mandato cultural, participaremos do trabalho do próprio
Deus, como agentes da sua graça comum” (PEARCEY, 2017, p. 53).

Nesta aula você...

Compreendeu a relação entre cosmovisão cristã e o mandato cultural.


Entendeu o princípio bíblico de graça comum, percebendo as implicações do
mandato cultural em um mundo pós-queda.

CRESCER+

COLSON, Charles & PEARCEY, Nancy. O cristão na cultura de hoje. Rio de Janeiro:
CPAD, 2015 (Capítulo 02).

PEARCEY, Nancy. Verdade absoluta: libertando o cristianismo do seu cativeiro


cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2017 (Capítulo 01, 02 e 03).
79
COMPARTILHAR Mandato
Cultural
Pense no ensino bíblico da graça comum, bem como em suas implicações e leve para o
nosso fórum exemplos - na história, nas artes, na cultura, na filosofia ou na ciência - de como
não cristãos contribuíram com o desenvolvimento da civilização humana.

80
Cosmovisão e a
Missão da Igreja aula 10
Olá!
Como vimos, o objetivo da obra redentora de Deus é restaurar sua criação dos efeitos
devastadores do pecado. Em sua morte, Jesus derrotou o pecado; em sua ressurreição,
inaugurou a nova era de salvação e restauração. Nós vivemos entre o início do novo mundo
de Deus e a consumação final de todas as coisas. Durante esse período intermediário, Cristo
estabeleceu um corpo, a igreja, que reúne pessoas para experimentarem e espalharem o
poder renovador da era vindoura.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender como a igreja atua para levar a cosmovisão cristã aos diferentes
lugares do mundo;
Analisar a missão da igreja enquanto ela aguarda a consumação final de todas as
coisas;
Perceber como a igreja pode dar seu testemunho fiel em comunidade entre a
ressurreição e a segunda vinda de Cristo.

Bons estudos!

81
CONECTAR Cosmovisão e a
Missão da igreja
Crescimento do cristianismo

No livro A próxima cristandade, o historiador Philip Jenkins (2004) narra a explosiva


expansão do cristianismo na África, Ásia e América Latina. De acordo com o autor, o centro
numérico do cristianismo deslocou-se do norte do globo, isto é, dos Estados Unidos e da
Europa, para o sul global. Nele, estão incluídos os países com maior crescimento
populacional do mundo. Por exemplo, o número de cristãos em território africano saltou de
10 milhões em 1900 para mais de 160 milhões em 2000.

Nos últimos cem anos, o centro de gravidade do mundo cristão


deslocou-se inexoravelmente para o Sul, para a África, a Ásia
e a América Latina [...]. Se quisermos visualizar um cristão
contemporâneo ‘típico’, deveremos pensar numa mulher
residente numa aldeia da Nigéria ou numa favela brasileira.
(JENKINS, 2004, p. 16)

As análises de Jenkins são feitas a partir de dados geográficos e demográficos,


oriundos de uma ampla gama de fontes. Diferentemente das projeções que anunciavam o
fim da cristandade e o declínio acentuado do número de cristãos no século XX, Jenkins
prevê que o crescimento exponencial da igreja cristã no Sul até 2050 trará ao mundo a vinda
de um “cristianismo global”, isto é, um cristianismo completamente diferente do
encontrado atualmente nos Estados Unidos e na Europa.

Não seria fácil convencer uma congregação de Seul ou Nairóbi


de que o cristianismo está morrendo, quando sua grande
preocupação é construir locais de culto suficientemente grandes
para os 10.000 ou 20.000 membros que eles conquistaram nos
últimos anos. E esses novos convertidos, em sua maioria, são
adolescentes e adultos jovens, pouquíssimos deles com cabelos
brancos. E também não é fácil dizer a essas igrejas que, para
atingirem uma plateia de massa, elas devem compatibilizar melhor
suas mensagens com as ortodoxias seculares (ocidentais).
(JENKINS, 2005, p. 26)

Enquanto nesses países há uma forte influência da teologia liberal, “os cristãos do
Sul são muito mais conservadores, no que se refere às suas crenças e seus ensinamentos
morais” (JENKINS, 2005, p. 23). As igrejas cristãs nesses países conservam uma orientação
sobrenatural muito acentuada, mais interessados na conversão social que na prática
política. Por isso, o crescimento mais acentuado no hemisfério sul não se dá de igrejas com
tendências liberais, mas de denominações conservadoras, como a Igreja Católica Romana e
as denominações pentecostais.
Jenkins afirma que essa mudança de centro geográfico do cristianismo não é algo
recente: o cristianismo começou como uma religião global, espalhando-se rapidamente
pela África, Ásia e Europa durante o primeiro milênio. Foi somente em 1500 que a Europa
começou a ser o centro geográfico e a voz dominante no cristianismo. O cristianismo era e,
segundo Jenkins, ainda é, de acordo com seus membros norte-americanos e europeus, uma
religião ocidental, branca e liberal, praticada de uma maneira que se encaixa no estilo de
vida das classes média e alta.
Mas, para Jenkins, isso ocorreu porque os cristãos europeus e os norte-americanos
82 não perceberam plenamente o sucesso do cristianismo no hemisfério sul. Alguns dos
CRESCER
Cosmovisão e a
Missão da igreja
nativos que se tornaram cristãos como resultado de atividades missionárias aceitaram a fé
porque queriam ser como cristãos ocidentais, em termos de status; mas a maioria deles
achavam que o cristianismo era um socorro ao seu status marginalizado ou explorado.
Onde abundava a opressão, o cristianismo ganhava conversos, e esses convertidos
espalharam sua fé por suas terras e através de gerações, cavando raízes profundas para sua
crença. É significativo que quando as potências coloniais saíram de suas terras conquistadas
nas décadas de 1950 e 1960, o cristianismo não apenas permaneceu, como também
floresceu.

Jesus está voltando: plante uma árvore!

Um dos capítulos do livro Surpreendidos pela Alegria, de N.T. Wright (2015), possui
um título bem curioso: Jesus está voltando: plante uma árvore! O objetivo é mostrar como
uma ampla extensão da teologia ocidental tem sido sub-bílbica ao aceitar um dualismo pelo
qual o destino final do povo de Deus é o céu, um lugar separado da terra, enquanto que no
Novo Testamento há outra ênfase: a ressurreição de Jesus inaugurou a nova criação de Deus
nesta terra, não completamente consumada, mas com seus primeiros sinais de cura e
restauração.
Um dos textos que mais influenciaram N. T. Wright foi 1 Coríntios 15:58, no qual
Paulo afirma o seguinte: “Portanto, meus amados irmãos, mantenham-se firmes, e que
nada os abale. Sejam sempre dedicados à obra do Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor,
o trabalho de vocês não será inútil”. Qual o significado desse texto no final de um capítulo
sobre a ressurreição? Para Wright, “a ressurreição significa que aquilo que você faz no
presente é importante para Deus [...]. O que fazemos nele pelo seu Espírito no presente não
é desperdício. Durará e será aperfeiçoado no novo mundo de Deus” (WRIGHT, 2015, p. 108.
Grifos do autor). Wright também mostra como a ênfase de Paulo em outros textos sempre
diz respeito à dinâmica de iniciar aqui o trabalho que Deus consumará além.

É por isso que Paulo fala, em 1 Coríntios 3.10-15, sobre Jesus como
fundamento, e sobre o povo construindo sobre aquele fundamento
com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno e palha. Se você
constrói na presente era com ouro, prata ou pedras preciosas, seu
trabalho durará. No Senhor seu trabalho não é vão. Você não está
cuidando de um carro que será jogado no ferro velho. Pelo
contrário, está construindo o Reino de Deus com seus esforços.
Você está seguindo a Jesus e moldando o mundo no poder do
Espírito; quando a consumação final vier, o trabalho que você tiver
feito permanecerá – seja ele numa escola dominical ou em
atividades que nada tenham a ver com agenda eclesiástica.
(WRIGHT, 2012b, p. 204)

Neste contexto, ressurreição dos mortos é central; “parte da questão sobre a


ressurreição do corpo é que há uma vital e importante continuidade, assim como
descontinuidade, entre este mundo e o vindouro” (WRIGHT, 2012b, p. 203). O ministério de
Jesus nesta terra já chamava seus seguidores para viver esta tensão. O desafio de Jesus no
Sermão do Monte é justamente fazer com que as pessoas vivam uma proposta de existência
completamente diferente daquelas que estão no mundo. “O ministério de Jesus era
entendido como uma manifestação da Palavra de Deus, criadora, restauradora, com poder
83
CRESCER Cosmovisão e a
Missão da igreja
de cura, evidente na criação e prometida pelos profetas como meio através do qual a
restauração viria sobre aquela terra” (WRIGHT, 2012b, p. 129).

A questão é que o Reino anunciado por Jesus apresentava um novo


mundo, em um novo contexto, desafiando seus ouvintes a serem
novas pessoas; pessoas que desafiariam seus contemporâneos a
viverem um novo estilo de vida, um estilo que valorizasse o perdão,
a oração, e a celebração da vida; coisas que poderiam ser
praticadas no lugar onde eles viviam, sem que eles precisassem
partir para qualquer outro lugar. (WRIGHT, 2012b, p. 51)

A obra do Cristo ressurreto é derramar sua salvação sobre o mundo. E como Cristo
faz isso? Através de seu corpo, isto é, da igreja cristã. A obra de Jesus não encerrou na cruz
nem na ressurreição; Cristo continua atuando sobre este mundo enfermo e caído; ele quer
aplicar os benefícios da cruz e da ressurreição à esta criação enferma. Por isso, por meio do
seu Espírito, que distribuir dons espirituais entre um povo redimido, Cristo ‘enche’ a igreja,
dando poder à comunidade de seus seguidores, por meio da qual Ele leva sua mensagem de
salvação ao mundo.
Assim, o Cristo ressurreto objetiva trazer salvação à igreja e por meio da igreja a
todo mundo através do Espírito Santo. O Espírito Santo é um prelúdio, uma prévia, de como
será a salvação no novo mundo. “Aqueles que seguem a Jesus, os que creem que ele é o
verdadeiro Senhor do mundo e que ressuscitou dentre os mortos, recebem o Espírito como
uma amostra de como será o novo mundo” (WRIGHT, 2008, p. 138).
No entanto, dada uma cosmovisão cristã, por que precisamos da igreja? Não
podemos simplesmente aplicar os benefícios da cruz no nosso trabalho, na nossa família,
com nosso testemunho pessoal, em algum serviço voluntário, sem necessariamente
precisar se reunir com outras pessoas ou sem precisar fazer parte de algum grupo mais
amplo?
Uma visão verdadeiramente bíblica sobre cosmovisão terá a igreja como uma peça
central. Depois de ressurreto, Jesus disse a seus discípulos: “Assim como o Pai me enviou, eu
os envio" (Jo 20:21). Dessa forma, Jesus inclui seu povo na missão de resgate da sua criação;
e a igreja é o instrumento escolhido por Ele para dar continuidade à sua missão. Por isso, o
mandato cultural deve ser fomentado pelas igrejas; é a igreja a responsável pelo ensino de
que tudo quanto for feito, deve ser realizado para o Senhor. A igreja é central na
implantação do Reino de Deus; este era um dos ensinos centrais do ministério de Jesus. Por
“Reino de Deus” entende-se o domínio soberano de Deus, tanto na terra quanto nos céus, ou
seja, sobre toda a criação. Deus reina quando sua vontade é feita; dessa forma, atuamos
como seus embaixadores, seus agentes, levando a mensagem do seu reino para todos os
homens e mulheres da terra.
A cultura ocidental possui entre seus valores supremos a importância do indivíduo
acima de qualquer coisa. Isso gerou uma sociedade radicalmente individualista, onde o
indivíduo é mais importante que qualquer ordem social acima dele; eles apenas devem
seguir uma ética minimalista baseada no princípio do dano: as pessoas têm o direito de agir
como quiserem, desde que suas ações não prejudiquem as outras pessoas. A igreja, neste
contexto, é uma comunidade mais voltada para bem-estar pessoal do que para servir ao
Messias. Mas a visão cristã de mundo, apesar de dar importância ao indivíduo, é
comunitária.

84
CRESCER
Cosmovisão e a
Missão da igreja
Desde o princípio ficou claro que o cristianismo é algo que fazemos
juntos. Desde começo da igreja, os escritores também tinham
a preocupação de que todos os membros do Corpo de Cristo
estivessem despertos e ativos em sua fé pessoal, reconhecessem
suas responsabilidades e entendessem a adoração como um
privilégio. Desse modo, quando toda a congregação se reunia,
cada um compartilhava suas alegrias e tristezas, suas
preocupações e questionamentos. É por isso que todo cristão,
e se possível toda família cristã, deve adquirir o hábito de adorar a
Deus não só individualmente, como também em pequenos grupos.
(WRIGHT, 2008, p. 169)

Há um perigo real em reduzir o mandato cultural ao testemunho de indivíduos


dentro do mundo. As Escrituras dão ênfase tanto ao chamado individual, quanto ao
testemunho comunitário. “É claro que uma pessoa sozinha não pode fazer muita coisa – é
por isso que a missão é tarefa de toda a igreja” (WRIGHT, 2009, p. 282). Assim, a igreja deve
ser uma comunidade alternativa, um corpo contracultural que mostre ao mundo como é
viver sob a nova ótica do novo mundo de Deus. “A tarefa da igreja no mundo é moldar uma
genuína humanidade, como um sinal e um convite para aqueles que estão ao seu redor”
(WRIGHT, 2012b, p. 211).
A igreja não deve ser uma comunidade isolada do mundo, pois Cristo não a enviou
para fora do mundo, mas para o mundo. A igreja precisa saber que as estruturas sociais e
políticas da sociedade fazem parte da boa criação de Deus. Por isso, “a igreja renovada pela
mensagem da ressurreição de Jesus deve ser uma igreja que age exatamente nesse espaço,
tempo e matéria, proclamando-os antecipadamente como o lugar do reino de Deus, do
senhorio de Jesus e do poder do Espírito” (WRIGHT, 2009, p. 279).
Cristo desafiou os seus discípulos a serem luz do mundo. Mas não se pode ser luz
em algum lugar escondido (por exemplo, debaixo de uma vasilha), nem se pode esconder
uma cidade que está construída em cima de um monte, como lembrou o Senhor Jesus em
Mateus 5; ao contrário, luzes são acesas dentro de casa para serem colocadas em algum
lugar apropriado e iluminar a todos. “A missão da igreja deve incluir, em nível estrutural, o
reconhecimento de que nosso espaço, tempo e matéria presentes estão sujeitos à
redenção, e não a rejeição” (WRIGHT, 2009, p. 278).

Deus deseja fazer através de nós e para o mundo aquilo para o qual
o fundamento foi lançado [....]. Seguir a Jesus, no poder do Espírito,
significa trazer ao mundo a forma do evangelho: perdão,
a melhor notícia que qualquer pessoa pode ouvir, para todos os que
quiserem abraçá-lo, e julgamento para os que insistirem em se
desumanizar, bem como aos demais, com seu orgulho, arrogância
e injustiça [...]. Sua tarefa é a de descobrir formas simbólicas
de fazer as coisas de maneira diferente, fincando bandeiras em
solos hostis, ou placas que anunciam a possibilidade de se viver
de forma diferente. (WRIGHT, 2012b, p. 208-209)

Há, assim, uma tendência em ou sermos individualistas e acharmos que não


precisamos da igreja, ou que devamos nos isolar, enquanto igreja, deste mundo cruel. O
cristão que vive no meio dessa tensão precisa entender que ele assumiu um compromisso
com Cristo. Por isso, ao fazer isso, perde a si mesmo. “O que está em moda atualmente é a
ideia de que podemos desfrutar dos benefícios da salvação em Cristo sem aceitar os
desafios do seu senhorio” (STOTT, 2007, p. 155). Mas não é possível aceitar somente uma
85
CRESCER Cosmovisão e a
Missão da igreja
parte; o Deus salvador é também o Deus Senhor. Enquanto vivemos entre a páscoa e a
consumação, seguindo a Jesus Cristo no poder do Espírito, a igreja é comissionada a ser para
o mundo o que Cristo foi para Israel, isto é, o veículo divino de redenção e cura para
remodelar o mundo no qual vivemos.

A tarefa da igreja é prosseguir com o trabalho de implementação da


vitória da cruz no mundo; e se estendermos essa visão e a
aplicarmos em nossa vida, seremos capazes de solucionar alguns
dos problemas enfrentados pela igreja que às vezes parecem
impossíveis de solucionar. A batalha foi vencida; vamos colocá-la
em prática! (WRIGHT, 2011, p. 33)

Logo, a igreja é o corpo de Cristo que tem consciência de que a manhã da páscoa foi
a inauguração do novo mundo de Deus. A redenção não diz respeito a resgatar pessoas para
continuarem vivendo para si, mas para que saiam ao mundo e vivam para os outros e em
torno do Messias. Mas elas não podem fazer isso sozinhas: é preciso todo um corpo, com
dons e talentos variados, para que ao mesmo que tempo que as boas novas de salvação são
anunciadas ao mundo, seja possível trazer a cura e a restauração que pessoas precisam
através da mensagem do evangelho. “Se Jesus ressuscitou isso significa que o reino de Deus
de fato chegou, e indica que temos uma tarefa a fazer. O mundo precisa ouvir o que o Deus
de Israel, o Deus criador, realizou através do Messias” (WRIGHT, 2008, p. 127). Por isso que
Wright afirma que existe uma relação intrínseca entre a esperança cristã futura e nossa vida
cotidiana no presente, pois a salvação não é algo essencialmente distante do nosso mundo.

Qual é a esperança suprema cristã? Há esperança de mudança, de


resgate, de transformação, de novas possibilidades no presente? A
resposta a essa pergunta precisa levar em conta o seguinte:
enquanto entendermos que a ‘esperança cristã’ é ‘ir para o céu’, e
que a ‘salvação’ é algo essencialmente distante deste mundo, as
duas perguntas parecerão inevitavelmente irreconciliáveis.
(WRIGHT, 2009, p. 15)

Missão, cosmovisão e igreja.

Enquanto se aguarda a consumação do novo reino de Deus, é crucial que as igrejas


incentivem as pessoas à maturidade espiritual e equipem os cristãos para cumprir a missão
que Deus deu no mandato cultural. Como é possível fazer isso? Através da exposição do
evangelho, da adoração em conjunto, da comunidade alternativa que deve ser o povo de
Deus.
A cosmovisão cristã só pode ser efetivamente colocada em prática se os cristãos
estiverem conectados ao corpo de Cristo, isto é, a igreja. Não é possível aplicar a cura ao
novo mundo de Deus sozinho. É na igreja que ajudaremos uns aos outros, edificaremos uns
aos outros, aprenderemos a lidar com nosso egoísmo, com nossas falhas, com nossas
dificuldades, seremos supervisionados e prestaremos contas a outros irmãos em Cristo a
fim de lutarmos juntos contra o pecado, implantando o mandato cultural para a Glória de
Deus.
Assim, a igreja precisa seguir o modelo do seu Senhor, o Messias Jesus: mesmo
sendo Deus, negou-se a si mesmo e assumiu a forma de servo, se tornou humano e tomou
86
CRESCER
Cosmovisão e a
Missão da igreja
o caminho de morte – e morte de Cruz. Mas Deus o ressuscitou, inaugurou sua nova criação
e lhe forneceu tanto um corpo físico, quanto um corpo comunitário que vai a todo mundo
pregando o evangelho a toda criatura.

Apenas quando oferecemos tudo que fazemos em adoração a


Deus é que experimentamos seu poder percorrendo cada fibra de
nosso ser. O Deus da Bíblia é tanto o Deus do espírito humano
quanto o da natureza e da história. Nós lhe servimos quando o
adoramos e obedecemos ao mandato cultural. As igrejas cristãs
que querem fazer um bom discipulado devem ensinar os crentes a
continuar vivendo para Deus após saírem da igreja aos domingos.
(PEARCEY, 2017, p. 75)

Nesta aula você...

Compreendeu como a igreja atua para levar a cosmovisão cristã aos diferentes
lugares do mundo.
Analisou a missão da igreja enquanto ela aguarda a consumação final de todas as
coisas, percebendo como ela pode dar seu testemunho fiel em comunidade entre a
ressurreição e a segunda vinda de Cristo.

CRESCER+

WRIGHT, NT. Surpreendido pela Esperança. Viçosa: Ultimato, 2009 (Parte 3).
87
COMPARTILHAR Cosmovisão e a
Missão da igreja
Pense no ensino bíblico da graça comum, bem como em suas implicações e leve para o
nosso fórum exemplos - na história, nas artes, na cultura, na filosofia ou na ciência - de como
não cristãos contribuíram com o desenvolvimento da civilização humana.

88
Cosmovisões Rivais:
Naturalismo aula 11

Olá!
Existem três cosmovisões que, atualmente, lutam pela supremacia no mundo ocidental: o
teísmo cristão, o naturalismo e o pós-modernismo. Até aqui, você já estudou sobre o teísmo
cristão. Nesta aula, estudaremos o naturalismo: a forma como ele pensa a realidade e o
nosso lugar no mundo; em seguida, faremos uma breve análise dessa cosmovisão. Na
próxima aula, nosso objeto de estudo será a cosmovisão pós-moderna.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender o que é o naturalismo;


Perceber as principais características do naturalismo;
Entender como o cristianismo enxerga a cosmovisão naturalista.

Bons estudos!

89
CONECTAR Cosmovisões Rivais:
Naturalismo
O naturalismo é uma das principais alternativas ao teísmo cristão no mundo
ocidental. Assim como a visão de mundo cristã, essa cosmovisão é uma forma totalizante,
um modo fundamental de olhar a natureza do mundo, a nossa própria natureza, o que é
mais importante no universo, como podemos conhecer alguma coisa e o que precisamos
fazer para viver uma vida que vale a pena ser vivida.
O naturalismo não é recente: ele é tão antigo quanto a história da filosofia,
remontando a Epicuro, Demócrito e Lucrécio. O poema De Rerum Natura (Sobre a Natureza
das Coisas), escrito no primeiro século, é um dos poemas mais significativos em favor do
naturalismo; nele, Lucrécio (2016) visa mostrar que o universo descrito no poema opera de
acordo com os princípios físicos, e não por intervenção divina; tudo na natureza pode ser
explicado por leis naturais, sem a necessidade de recorrer a Deus ou aos deuses.
Uma das melhores e mais famosas definições da cosmovisão naturalista foi dada
por Bertrand Russell.

Que o homem é produto de causas que não o tinham qualquer


previsão da finalidade que estavam atingindo; que sua origem, o
seu crescimento, as suas esperanças e receios, os seus amores e
crenças nada são exceto o resultado de arranjos acidentais de
átomos; que nenhum fogo, nenhum heroísmo, nenhuma
intensidade de pensamento e sentimento pode preservar uma vida
individual para além da sepultura, que todos os trabalhos de todas
as épocas, toda devoção, toda a inspiração, todo o mais elevado
brilho do gênio humano, estão destinados à extinção na morte
vasta do sistema solar, e todo o templo dos feitos humanos tem que
inevitavelmente ficar soterrado nos destroços de um universo em
ruínas – todas essas coisas, se não completamente para lá de toda
disputa, são, contudo, tão aproximadamente certas que nenhuma
filosofia que as rejeite pode ter a esperança de resistir. Só se
sustentado nessas verdades, só se fundamentando firmemente no
desespero obstinado, pode a moradia da alma daqui em diante ser
firmemente construída. (RUSSELL, 1949, p. 47-48)

90
CRESCER
Cosmovisões Rivais:
Naturalismo
Introdução

Como vimos na primeira aula, James Sire (2009, p. 19-21) afirma que toda
cosmovisão pode ser expressa como resposta a sete questões básicas com as quais todo ser
humano se depara na vida. Para estudarmos o naturalismo, vamos responder a essas sete
perguntas fundamentais a fim de identificar as suas linhas gerais; faremos isso através de
alguns dos principais pensadores naturalistas. Mas você precisa saber que assim como no
teísmo cristão, em que há protestantes reformados, mas há também católicos, ortodoxos,
pentecostais e anglicanos, há uma miríade de diferenças entre os naturalistas. Não vamos
nos deter a elas, apenas descrever o que é mais comum a boa parte delas.

O que é a realidade mais básica?

O naturalismo começa com a ideia básica de que não existe uma pessoa como Deus,
nem qualquer coisa que seja parecida com Deus. “Os naturalistas se opõem ao sobrenatural.
Eles negam a existência de fantasmas, duendes, deuses e outras entidades assombrosas”
(RITCHIE, 2012, p. 12). O naturalismo não é simplesmente um tipo de ateísmo: o ateísmo é a
negação da existência de Deus; o ateu é aquele que afirma que a proposição “Deus não
existe” é verdadeira. Mas o naturalismo é mais forte que o ateísmo: é possível ser ateu sem
ser naturalista; é possível ser ateu e acreditar na Mente dos estoicos, ou em um espírito
sobrenatural; mas não é possível ser naturalista sem ser ateu.
Assim, o naturalista parte do pressuposto de que o universo material é a soma total
da realidade; ele é tudo que existe. De acordo com Carl Sagan, “o cosmo é tudo o que existiu,
existe ou existirá” (SAGAN, 2017, p. 30). Não existe Deus, mas também não existe espíritos
vagando livremente, nem anjos, nem fadas; não existe o Mundo das Ideias de Platão, nem o
Motor Imóvel de Aristóteles, nem o Absoluto de Hegel; não existe o atma do monismo
panteísta oriental, nem outras dimensões esotéricas da Nova Era. O cosmo é a realidade
fundamental de tudo que há; em última instância, não há relação com qualquer ser
transcendente.

Qual a natureza do mundo que nos rodeia?

“Os corpos”, disse Lucrécio (2016, I, 486) em seu poema De Rerum Natura (Sobre a
Natureza das Coisas) “são, em parte, os elementos primordiais das coisas; e, em parte, os
que constam de um concílio de princípios”. Para Lucrécio, o universo é formado por um
número infinito de átomos, que estão espalhados por um vasto espaço infinito e vazio. A
visão de Lucrécio aqui é a de que o universo (ou os corpos) funciona a partir da relação entre
os elementos primordiais das coisas (os átomos) e seu princípios regentes, que poderíamos
chamar de leis da natureza. Esse tipo de naturalismo autodenomina-se fisicalismo, isto é,
“tudo no universo é físico. Qualquer coisa postulante existente, que não seja física, é,
portanto, assombrosa” (RITCHIE, 2012, p. 13).
Para o naturalismo, como tudo que existe é o cosmo, não existe possibilidade de
transcendê-lo: ele é uma uniformidade de causa e efeito, como uma máquina gigante, que
funciona por meio da interação mecânica de suas partes. Considere uma bicicleta: ela faz o
que faz, isto é, desloca-se de um lugar para outro, em virtude da interação de suas partes; 91
CRESCER Cosmovisões Rivais:
Naturalismo
quando alguém faz girar os pedais, as engrenagens presas à roda traseira movimentam a
bicicleta.
O universo é uma bicicleta, mas extremamente mais complexa. As coisas que
acontecem no cosmos são frutos unicamente de causas físicas, resultados de coisas que
aconteceram anteriormente. A natureza encontra-se organizada de forma autônoma e
independente por meio do arranjo necessário de suas partes. Não há nada que possa vir de
fora, do exterior, e reorganize a engrenagem para que a “bicicleta” rode de outra forma.
Tudo faz parte da uniformidade, do conjunto geral do sistema, das leis da causa e efeito.
Os naturalistas discordam sobre o debate livre-arbítrio versus determinismo. Boa
parte deles são deterministas, embora procurem formas de compatibilizar essa visão de
que estamos numa engrenagem gigante que se mantém unida por uma conexão inexorável
de causa e efeito, com a ideia de responsabilidade; outros procuram mostrar que não é
possível tal reconciliação. Bertrand Russel, por exemplo, afirma sobre a ideia de
livre-arbítrio: “se, quando um homem escreve um poema ou comete um assassinato, os
movimentos corporais envolvidos em seu ato resultam unicamente de causas físicas,
pareceria absurdo erguer uma estátua para no primeiro caso e enforcá-lo no segundo”
(RUSSELL, 2014, p. 59).

O que é o ser humano?

“Existem atualmente cento e noventa e três espécies de macacos e símios”, começa


Demond Morris no seu livro O macaco nu. “Cento e noventa e duas delas têm o corpo
coberto de pelos. A única exceção é um símio pelado que a si próprio cognominou homo
sapiens.” (MORRIS, 2006, p. 9). A descrição de Morris descreve de forma muito precisa a
antropologia do naturalismo: o ser humano é um primata evoluído, um macaco nu, um tipo
de mamífero que até agora conseguiu sobreviver na luta evolutiva para “passar” para frente
seus genes. Ele é mais uma espécie entre as várias espécies do reino animal.
É claro que não costumamos ver o ser humano assim; mas isso se deve a uma ilusão
evolutiva; quando olhamos com atenção para nós mesmos, percebemos quem realmente
somos: “apesar de ter se tornado tão erudito, o Homo sapiens não deixou de ser um macaco
pelado embora tenha adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das
mais primitivas e comezinhas” (MORRIS, 2006, p. 9).
Como os seres humanos fazem parte do cosmo, e como o cosmo é a única
substância que existe, há essencialmente apenas um tipo de objeto no universo; e a
humanidade é um dos objetos entre muitos. É claro que a complexidade mecânica dos ser
humano é muito diferente da dos outros objetos do cosmo. Alguns naturalistas afirmam
que a mente faz parte dessa estrutura gigante; para Russell, “tanto a hereditariedade
como as partes adquiridas da personalidade estão, no que diz respeito ao alcance de
nossa experiência, ligadas às características de estruturas corporais específicas.” (RUSSELL,
2014, p. 71).
Ou seja, como você explica o ser humano? Através da conexão entre algumas
experiências (e.g., tristeza ou alegria) e características estruturais específicas. É possível
explicar todo o nosso comportamento a partir de alguma relação causal anterior ao ato
ou à ação.

92
CRESCER
Cosmovisões Rivais:
Naturalismo
O que acontece com uma pessoa quando ela morre?

O homem naturalista está no meio de dois grandes silêncios: bilhões de anos antes
de ele nascer, ele não existia; bilhões de anos depois que ele morrer, também não existirá.
“O cérebro como estrutura dissolve-se na morte, e pode-se esperar, portanto, que a
memória também se dissolva” (RUSSELL, 2014, p. 70).
A morte, no naturalismo, diz respeito à aniquilação completa do ser. Como a única
substância que existe no universo é a matéria, e como é ela que, ao se organizar, constitui os
nossos corpos, na morte tal arranjo é desorganizado, ocasionando o desaparecimento da
pessoa por completo.

Por que é possível conhecer alguma coisa?

De acordo com o naturalismo, nossas capacidades cognitivas são frutos das


pressões biológicas na odisseia humana rumo à sobrevivência e à propagação dos nossos
genes. Por isso, a diferença mental entre o homo sapiens e os outros animais próximos da
cadeia evolutiva (como os primatas) é de grau, não exatamente de qualidade. Pense na
linguagem, por exemplo: ela talvez seja um resultado incidental de outras faculdades
humanas altamente evoluídas. “Nos últimos anos, vem-se tornando evidente que os
cérebros dos primatas não humanos são preparados da mesma forma, embora
provavelmente em escala menor, para a linguagem” (SAGAN, 1987, p. 59).
Nosso cérebro e nossa impressionante mente é fruto direto da seleção natural; toda
a complexidade organizada surgiu a partir da mente de símios, e estes últimos a partir de
criaturas cronologicamente anteriores, sem nenhuma orientação deliberada. “Embora não
conheçamos nada acerca dos detalhes das forças seletivas que determinam a evolução das
capacidades mentais e linguísticas dos seres humanos, que evidentemente excedem em
muito as de quaisquer outros animais, não há nada particularmente misterioso em
explicá-las em termos evolutivos” (CHARLESWORTH & CHARLESWORTH, 2012, p. 145). A
sobrevivência humana é a razão última das nossas capacidades mentais. Toda a nossa arte
de pensar, calcular, contar histórias, narrar fatos, raciocinar de forma abstrata e criar contos
provém desse contexto evolutivo.

Mas, de fato, como a antropologia mostra, as visões que o homem


tem a respeito do certo e do errado variaram a tal ponto que
nenhum item em particular tornou-se permanente. [...] Nossos
sentimentos e crenças a respeito do bem e do mal são, assim como
tudo o mais no que diz respeito, fatos naturais, desenvolvidos na
batalha da existência, sem qualquer origem divina ou sobrenatural.
(RUSSELL, 2014, p. 73)

No fim das contas, o certo e o errado foram naturalmente selecionados; eles dizem
respeito ao subproduto da evolução biológica, a batalha última pela existência. Uma boa
ação é aquela que promove a sobrevivência da espécie. Esses são os valores que foram
naturalmente selecionados. Os valores morais foram construídos pelo ser humano visando
à melhor relação entre todos. Ela provém, em última instância, da necessidade e do
interesse humano. De acordo com Richard Dawkins:
93
CRESCER Cosmovisões Rivais:
Naturalismo
Somos máquinas programadas para propagar o [DNA] [...]. Em um
universo de forças físicas e replicação genética cega, algumas
pessoas serão machucadas, outras pessoas terão sorte, você não
achará qualquer sentido nele, nem qualquer tipo de justiça. O
universo que observamos tem precisamente as propriedades que
deveríamos esperar se, no fundo, não há projeto, propósito, bem ou
mal, nada a não ser uma indiferença cega, impiedosa. [...]. O [DNA]
não sebe e nem se importa. O [DNA] apenas é. E nós dançamos de
acordo com a sua música. (DAWKINS, 1996, p. 15 e 70)

Qual o significado da história humana?

Para os naturalistas, há uma continuidade entre a história natural e a história


humana. De onde veio o ser humano? Como surgiu a vida? Para onde estamos indo? A forma
naturalista de responder a todas essas questões fundamentais é recorrer ao cosmo: o
universo teve origem com o Big Bang; ninguém o desencadeou; ele simplesmente se
autodesencadeou. A partir daí os naturalistas recorrerão à teoria da evolução para explicar
a vida.
A evolução em si não é uma concepção naturalista; muitos teístas também recorrem
à teoria da evolução para explicar como Deus criou o homem de forma planejada, isto é,
teleológica. No entanto, a diferença de como alguns cristãos enxergam a evolução e como
os naturalistas a enxergam tem a ver com a noção de propósito: não há planejamento para
os naturalistas; o ser humano não era objetivo da evolução; esta, aliás, não possui objetivo
algum. A evolução é inconsciente, acidental, regida pelo acaso e pela necessidade.

A seleção natural, o processo cego, inconsciente e automático que


Darwin descobriu e que agora sabemos ser a explicação para a
existência e para a forma aparentemente premeditada de todos os
seres vivos, não tem nenhum propósito em mente. Ela não tem nem
mente nem capacidade de imaginação. Não planeja com vistas ao
futuro. Não tem visão nem antevisão. Se é que se pode dizer que ela
desempenha o papel de relojoeiro da natureza, é o papel de um
relojoeiro cego. (DAWKINS, 2001, p. 23 e 24. Grifos do autor)

A partir do surgimento da consciência humana, surgiu também a noção de história.


Mas ela, assim como a evolução, não possui um objetivo, um alvo, um propósito a ser
buscado: apesar de alguns naturalistas serem otimistas com relação ao desenvolvimento
humano, atribuindo tal período próspero ao iluminismo, não é possível dizer que exista um
alvo inerente à história. Ela é o que fazemos acontecer.
Como sei se um evento humano é positivo ou negativo, bom ou mau? Vai depender
do significado que os seres humanos lhe darão. A história segue de forma linear, sem um
alvo predeterminado. Ela desaparecerá quando a consciência humana se extinguir de uma
vez por todas, com a extinção da nossa espécie; enquanto isso, a história natural seguirá seu
rumo de forma inexorável.

94
CRESCER
Cosmovisões Rivais:
Naturalismo
Implicações do naturalismo

O naturalismo continua muito vivo na sociedade contemporânea, principalmente


nas Universidades, na mídia e na cultura popular. De acordo com Ritchie (2012, p. 11), ele é a
moda filosófica corrente. Sire (2009) aponta dois motivos para isso: primeiro, ele passa a
impressão de ser “honesto” e “objetivo”; os naturalistas afirmam que sua cosmovisão é algo
fundamentado em fatos, frutos dos resultados seguros e certos da investigação científica.
Os naturalistas procuram sempre se colocar como “neutros”, como se sua cosmovisão fosse
o fim último de uma pesquisa racional sobre a melhor explicação do mundo e da vida. Em
segundo lugar, o naturalismo parece ser coerente. Como não há Deus, são os seres humanos
que estão no centro e são eles que atribuem valor e propósito às contingências do universo.
Depende, assim, deles, desenvolver as implicações da posição especial que ele tem na
natureza.
No entanto, vários filósofos, tanto cristãos quanto pós-modernos, e até mesmo
naturalistas, mostraram que a narrativa “imparcial” e “coerente” dessa cosmovisão
apresenta sérias rachaduras. Alvin Plantinga, William Lane Craig, Alister McGrath, Herman
Dooyeweerd, Rou Clouser e J. P. Moreland foram alguns dos filósofos e teólogos que
mostraram que o naturalismo não é tão objetivo quanto parece, muito menos
intelectualmente superior ao teísmo, como seus adeptos tentam passar. Além disso, há
dificuldades para os naturalistas que se mostraram impossíveis de serem ajustadas
racionalmente dentro dessa cosmovisão.
Primeiro, pense na questão do valor, isto é, do porquê algo importa: se a natureza é
tudo que existe, existiu ou existirá, como é possível falar em termos de valores? Pense no
conceito de dignidade. Como pode seres surgidos por mero acaso terem dignidade? Talvez
um naturalista argumente que a noção de valor está ligada à noção de unicidade: os seres
humanos têm valor porque são únicos. No entanto, cometas, baratas e plantas também são
únicos. O mero fato de se afirmar que algo é digno não torna esse algo digno; o mero fato de
algo ser único, não torna, necessariamente, esse algo importante e valoroso. É preciso algo
mais que isso.
Além disso, dado o naturalismo, não é possível ter conceitos objetivos sobre ética e
moral. Se Deus não existe, como é possível falar objetivamente no certo e no errado? Qual a
diferença moral objetiva entre abraçar uma criança e maltratá-la? Não é possível dizer. Não
é possível definir um ato como “moral” e outro “imoral” de forma objetiva, isto é,
independente da opinião humana. A moralidade será sempre a “moral do rebanho” ou
“aquilo que me agrada”. Mas se é assim, como é possível justificar racionalmente a tentativa
de transformar em leis os próprios sentimentos subjetivos e arbitrários? Dado o
naturalismo, é impossível responder coerentemente e racionalmente a tal questão.
Uma última fraqueza do naturalismo é que ele coloca em dúvida nossa capacidade
de conhecimento. Se a seleção natural está exclusivamente preocupada com nossa
sobrevivência, isso diz respeito também ao nosso cérebro e à nossa capacidade de conhecer
alguma coisa: ele foi gerado, não para obter crenças verdadeiras sobre o mundo, mas para,
na luta pela sobrevivência, possibilitar ao homem sapiens conseguir quatro coisas:
alimentação, fuga, luta e reprodução. A seleção natural não está preocupada com crenças
verdadeiras, uma vez que ela é apenas mais um órgão de sobrevivência e reprodução.
Assim, dada a teoria da evolução, nossa mente não tem por objetivo a produção de crenças
verdadeiras, mas apenas a produção de comportamento adaptado. Mas se for assim, como
posso confiar no meu pensamento e nos meus raciocínios? A questão é que, dado o 95
CRESCER Cosmovisões Rivais:
Naturalismo
naturalismo, não é possível responder a essa pergunta: dentro da cosmovisão naturalista,
nunca é possível saber se a capacidade racional do ser humano é confiável ou não. O
problema é que se ela não for confiável, então nenhuma crença, nenhum raciocínio,
nenhum pensamento é confiável – incluindo o próprio pensamento que afirma que o
naturalismo é verdadeiro.
Assim, longe de ser o restado da ciência e da razão, o naturalismo é na verdade um
grande obstáculo a esses empreendimentos.

Nesta aula você...

Compreendeu o que é o naturalismo, bem como suas principais características do


naturalismo;
Analisou como o cristianismo enxerga a cosmovisão naturalista.

CRESCER+

CRAIG, William Lane. Apologética contemporânea: a veracidade da fé cristã. São


Paulo: Vida Nova, 2012 (Capítulo 02).

SIRE, James. O universo ao lado: um catálogo básico sobre cosmovisão. São Paulo:
Hagnos, 2009 (Capítulo 04).
96
Cosmovisões Rivais:
Naturalismo

COMPARTILHAR
Geralmente, os naturalistas pensam que não existem consequências práticas em uma visão
de mundo sem Deus. Se Deus não existe, não faz diferença para a vida humana. Faça uma
pesquisa em autores como William Lane Craig, Francis Schaeffer e Alvin Plantinga e escreva
um pequeno texto sobre as consequências do naturalismo para a sociedade.

97
Cosmovisões Rivais:
Pós-modernidade aula 12
Olá!
Se o naturalismo é a grande alternativa cristã na universidade, o pós-modernismo é a
grande rival do cristianismo em termos de cosmovisão na sociedade. Ainda que as pessoas
desconheçam o termo, grande parte delas enxergam a realidade a partir dessa visão de
mundo. Nesta aula, estudaremos as características principais do pós-modernismo; em
seguida, faremos uma análise cristã dessa cosmovisão.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender o que é o pós-modernismo;


Perceber as implicações do pós-modernismo para a sociedade;
Entender como o cristianismo enxerga a cosmovisão cristã pós-moderna.

Bons estudos!

98
CONECTAR
Cosmovisões Rivais:
Pós-modernidade
A Fonte é uma das obras mais representativas do artista francês Marcel Duchamp.
Criada em 1917, a peça foi submetida a uma exposição da Associação de Artistas
Independentes de Nova York, em sua exposição inaugural, no Grand Central Palace. Ela
consiste simplesmente em um urinol comum de porcelana branco, assinado por Duchamp
pelo pseudônimo “R. Mutt”.

Wikimedia Commons.

A obra está no contexto do dadaísmo francês, movimento de vanguarda artística das


duas primeiras décadas do século 20, cujo objetivo principal era a utilização da arte como
ferramenta de contestação do status quo da própria arte e do artista. Diferentemente de
outras obras artísticas que colocamos em aulas passadas - sobre as quais comentamos de
forma breve, mas detalhada -, a Fonte de Duchamp não exige muita descrição.
Duchamp subverte completamente o conceito de arte: ao colocar um urinol como
peça artística, ele visa mostrar que a arte não consiste em nada que exija um grande criador
ou um objeto especial feito de forma detalhada, nem qualquer habilidade especial; a arte
pode ser simplesmente algo adquirido em uma loja de materiais de construção produzida
em massa numa fábrica qualquer. A experiência artística também não precisa ser excitante,
muito menos enobrecedora: ela pode ser algo que você usaria para urinar. Dessa forma, o
artista francês selecionou aquilo que poderia ser o mais desagradável possível e com menos
chances de ser apreciado pelos nossos padrões estéticos: um urinol. Afinal, quem pensaria
que exista algo de maravilhoso em um objeto desses? A preocupação de Duchamp não foi
produzir algo belo, mas apenas buscar uma reação que “chocasse” o público.
Atualmente, existem 17 versões desta obra expostas em museus ao redor do
mundo, mas nenhuma delas é a obra original exposta em 1917. Depois de fotografada por
Alfred Stieglitz e publicada na revista The Blind Man (foto ao lado), a Fonte foi jogada no lixo;
o que existe atualmente são apenas réplicas encomendadas por Duchamp nos anos 1960.
Isso não era problema para o artista francês: a ideia de autenticidade de uma obra de arte
não fazia sentido para ele. Uma vez que arte é um objeto comum, seu valor de único poderia 99
CONECTAR Cosmovisões Rivais:
Pós-modernidade
ser facilmente descartado; agora, qualquer um
poderia reproduzi-la com um urinol de louça
semelhante.
A Fonte quer questionar o conceito de
obra de arte e do belo: quem define o que é arte?
Um urinol assinado é arte? Se não é, quem
definiu que não era? A sociedade? Os artistas? É
preciso alguma virtude técnica para produzir
algo artístico? Ou essa ideia é apenas um
constructo, algo construído? A experiência
estética é subjetiva e está nos olhos de quem vê?
No fim das contas, a Fonte quer mostrar
que a arte é aquilo que qualquer pessoa possa
achar que é arte; e a beleza presente na
experiência estética não existe em si mesma,
mas ela é subjetiva, estando nos olhos do
expectador. Se as pessoas acham que um urinol
é uma obra de arte, então que seja.

100
CRESCER
Cosmovisões Rivais:
Pós-modernidade
Parábola do louco

O pós-modernismo é um movimento diverso, oriundo de vários pensadores das


mais variadas disciplinas acadêmicas como arquitetura, artes, história, comunicação,
literatura, sociologia e filosofia. Por isso, é difícil caracterizar precisamente tal cosmovisão
de forma que faça justiça à sua diversidade. Mesmo assim, é possível prover uma
caracterização aproximadamente precisa do pós-modernismo em geral, de forma que seus
defensores se vejam, em algum sentido, representados nelas. Mas é preciso ter em mente
que, apesar de as características que apontaremos abaixo dizerem respeito ao
pós-modernismo no geral, seria errado atribuir a todo pensador pós-moderno tais ideias.
Iremos começar nossa descrição sobre a cosmovisão pós-moderna com uma citação um
pouco longa da Parábola do Louco, de Friedrich Nietzsche (2001), na obra A Gaia Ciência,
Seção 125:

O homem Louco. – Não ouviram falar daquele homem louco que em


plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se
a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como
lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele
despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está
perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança?
Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós?
Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os
outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os
com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós os
matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como
fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem
nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao
desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde
nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos
continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as
direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como
que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do
vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente?
Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o
barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da
putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está
morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos
consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e
sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os
nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água
poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados
teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado
grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses,
para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e
quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma
história mais elevada que toda a história até então!” Nesse
momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus
ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados
para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu
tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda:
não chegou ainda aos ouvidos dos homens.
(NIETZSCHE, 2001, p. 147)

Nessa parábola, Nietzsche disse que um homem louco acende uma lanterna em plena luz do
dia e corre ao mercado gritando que está procurando Deus. Pense nessa situação: quem 101
CRESCER Cosmovisões Rivais:
Pós-modernidade
faria uma coisa dessas? Quando lemos o início desse texto, pensamos que estamos diante
de um homem com algum possível distúrbio psicológico. Mas quando ele fala, percebe-se
que ele não é tão insensato assim. Essa é a primeira ideia: o que o homem faz parece ser sem
nenhum sentido, mas quando ele fala, o que ele pronuncia não é um total disparate.
Os ateus que estão na praça do mercado caçoam naturalmente do homem: “Então
ele está perdido?”, perguntam rindo às gargalhadas; “Ele está se escondendo?”, questiona
um. “Tem medo de nós?”, zomba outro. Aqui os homens da praça estão autoconfiantes,
serenos, zombando de quem procura tal ser como Deus. Pensam que, por acreditarem que
Deus não existe, são superiores. Mas o “homem louco” acha essa atitude ingênua. A
resposta que ele dá às zombarias mostra que aqueles ateus não tinham entendido o que
estava em jogo com a morte de Deus. O que significa dizer que Deus está morto? É óbvio que
o homem louco não se refere à morte literal do Deus tal como proposto pelo Teísmo Cristão,
porque Deus é imortal. Então o que significa dizer que Deus morreu? Quando o homem
louco afirma tal coisa, ele explica o que significa essa proposição: a morte de Deus é a morte
de todo o valor e substância que uma civilização sustenta. A morte de Deus significa que
morreu uma forma de pensar, de olhar para a realidade, de encarar a vida, em suma,
significa que foi extinto um modelo mental.
Quando o homem louco questiona “quem nos deu a esponja para apagar o
horizonte?”, o que está em jogo é justamente a ‘base referencial’ do mundo. Ou seja, no
Teísmo, Deus fornecia fundamento para ordenar o mundo. Havia uma ordem no universo,
isto é, Deus criou o universo, dotando-o de uma ordem moral, do certo e do errado, do justo
e do injusto. Mas o que acontece quando Deus morre? Não existe mais a linha do horizonte.
Não existe mais diretrizes claras sobre como devemos viver e sobre o que devemos
valorizar. Tal linha é apagada.
Afinal, quem agora pode dizer que determinada curvatura é a linha do horizonte?
Ninguém pode. A terra é “desatada” do sol; não sabemos onde estamos nos movendo; não
sabemos que direção tomar. A morte de Deus é, assim, a morte de todo e qualquer
referencial absoluto. Não existe mais “em cima” ou “embaixo”. Essas são medidas que
precisam de alguma referência. Mas se não existe Deus, quem pode oferecer tal referencial?

A morte de Deus

Assim, com a morte de Deus, o homem decide ser autônomo, ou seja, ser lei para si
mesmo, não depender mais de uma divindade sagrada para guiar sua vida, nem de qualquer
outra entidade que tivesse por trás algum vestígio de referência. A morte de Deus não
significa apenas que Deus deixou de ser o fio condutor, mas que qualquer coisa que pode ser
apresentada como uma guia confiável global perdeu seu lugar na sociedade.
O homem louco tem consciência de uma verdade significativa: “eu venho cedo
demais. Não é ainda meu tempo”. Lembre-se de quando o homem estava procurando Deus,
os ateus na praça caçoavam dele. Não entendiam o que significava dizer “Deus morreu”.
Pensavam que ao se livrar de Deus, não haveria consequências mais profundas para a
civilização. Mas o homem louco pensa diferente. Matar Deus significa matar toda uma
estrutura de mundo, toda uma forma de encarar a realidade, todo um modelo mental. Logo,
tal coisa tem implicações profundas para os homens, mesmo que eles não entendam a
implicação daquilo que eles acreditam e mesmo que eles não gostem muito de ouvir tais
coisas. Para o louco da parábola, o homem ainda não está preparado para viver sem Deus.
102
CRESCER
Cosmovisões Rivais:
Pós-modernidade
O que essa história tem a ver com a pós-modernidade? A pós-modernidade começa
justamente com a morte de Deus. Para os pós-modernos, não existe referenciais absolutos
no mundo. Mais especificamente, eles defendem que não existem tais coisas como
“Verdade”, “Beleza” e “Moral”. O homem é a verdadeira medida de todas as coisas e não
algum princípio universal; o homem é quem decide que caminhos seguir, e não algo como a
razão, a religião, Deus, entre outros.
Por pós-moderno entende-se um conjunto de ideias que fazem uma crítica ao
Projeto do Iluminismo. Mais especificamente, a pós-modernidade é uma crítica contundente
ao otimismo que reinou durante o Iluminismo. Tal otimismo dizia que, com a capacidade
racional de modificar o mundo, o ser humano seria livre e alcançaria prodígios
inimagináveis. A crença do Iluminismo era que o conhecimento é algo inerentemente bom e
positivo, dando por isso o monopólio do saber ao método científico. Essa “fé” no
conhecimento era uma das principais características do período iluminista: a razão humana
deve ser central porque ela é capaz de medir e examinar um universo ordenado. Por isso, o
pensar racionalmente é, em última instância, o juiz final de toda verdade.
Mas o pós-moderno não acredita que o conhecimento leva necessariamente ao
progresso e que a razão é capaz guiar a conduta humana por caminhos ‘seguros’. Para um
pós-moderno, a razão é um outro ídolo que os homens construíram porque não souberam
lidar com a morte de Deus. No lugar de Deus, o homem colocou a razão para guiar sua
conduta moral. Mas a razão não é capaz de tal proeza. O termo pós-moderno diz respeito,
assim, à total rejeição a esse otimismo iluminista.
O francês Jean-François Lyotard (2011) foi o responsável por colocar o termo
pós-modernismo no mapa intelectual, através do livro A condição pós-moderna. Para
Lyotard (2011, p. xvi), a pós-modernidade seria “a incredulidade em relação aos
metarrelatos”. Por metarrelatos podemos entender duas coisas: em primeiro lugar, um
procedimento objeto e racional para determinar entre cosmovisões diferentes, qual delas é
a verdadeira; em segundo lugar, as grandes histórias ou narrativas abrangentes que visam
explicar todos os acontecimentos e perspectivas, como objetiva ser uma cosmovisão.
Assim, quando Lyotard (2011) descreve o fim das metanarrativas, ele quer dizer que não
existe uma maneira objetiva de dizer, entre duas narrativas rivais, qual é a correta; não há
como decidir entre o teísmo cristão e o naturalismo, qual delas é verdadeira; e em segundo
lugar, não há uma cosmovisão única e verdadeira para todas as pessoas; o que existe são
narrativas locais, particulares.
Assim, a cosmovisão pós-moderna afirma que as pessoas não apenas ignoram as
metanarrativas globais, mas que elas não mais se guiam por qualquer outra metanarrativa
dominante. “O grande relato perdeu sua credibilidade, seja qual for o modo de unificação
que lhe é conferido” (LYOTARD, 2011, p. 69). O pós-moderno desconfia do relato macro, da
soberania de uma única visão, de um sistema que faça do globo um povo generalizante, mas
preserva os relatos no contexto micro, nas narrativas locais, nas pequenas ficções
particulares.
De acordo com o pós-modernismo, a realidade é fruto de uma construção social. Ela
não é natural, algo que existe independente de nós e em cuja formação não interferimos; ela
não está lá para ser “descoberta” ou “encontrada”. A realidade é da forma que é porque nós,
seres humanos, a construímos de um modo que ela reflete nossos valores e necessidades.
Como não há referenciais últimos, um pós-moderno é alguém que afirma duas coisas:
primeiro, isso ou aquilo não poderia ter existido se não o tivéssemos construído; segundo,
não precisávamos ter construído o que construímos; se fôssemos outro tipo de sociedade e
103
CRESCER Cosmovisões Rivais:
Pós-modernidade
tivéssemos outras necessidades, valores ou interesses, poderíamos muito bem ter
construído algo completamente diferente.
E por que isso? Por que um pós-moderno acredita que a realidade é socialmente
construída? Porque não existe um mundo objetivo fora da nossa percepção e da nossa
linguagem. A realidade é construída através da linguagem. O chamado “mundo real” é na
verdade fruto de uma criação social que está em constante mudança. Alguns pós-modernos
pensam que existe uma realidade em si mesma, mas não é possível alcançar ela tal como ela
é; por isso, a noção de “realidade” não é útil. Para fins práticos, buscar uma verdade sobre a
realidade tal como ela é em si mesma ou é impossível ou inalcançável e, portanto,
irrelevante.
Toda verdade é uma construção humana, por isso ela não existe em si mesma. A
verdade é tudo aquilo sobre o qual obtemos a concordância dos nossos pares (ou da nossa
comunidade). Como não existe uma forma de saber ou de descrever a realidade tal como ela
é, a única coisa que podemos fazer é contar histórias. E nenhuma dessas histórias é mais
verdadeira do que qualquer outra. Todas elas são contingentes.
Além disso, há um problema com a linguagem e com a forma como elas devem ser
interpretadas: as histórias que contamos não possuem um determinado significado porque
existe uma indeterminação inerente à própria dinâmica da linguagem. Todas as histórias
contêm, em si mesmas, potencialidades para serem entendidas das mais diversas maneiras
possíveis. Pense na história de Gênesis: não é possível saber qual a intenção do autor, de
acordo com os pós-modernos. Logo, tal texto significa tão-somente o que os leitores
entendem que ele significa.
Por fim, essas histórias se transvestem de verdades e mascaram jogos de poder.
Michel Foucault é um dos principais teóricos pós-modernos a enfatizar esse ponto:
qualquer história, com exceção da própria, é opressiva porque, como não existe um
conhecimento objetivo, nem uma verdade que descreva o mundo tal como ele é, toda
história é socialmente construída em função de conceder ao narrador poder sobre seus
ouvintes. “A verdade não existe fora do poder ou sem poder” (FOUCAULT, 2009, p. 10). Há
apenas histórias produzidas e todas elas existem a serviço de alguma agenda sociopolítica,
para o benefício dos poderosos.

Implicações da pós-modernidade

Como deve ser uma avaliação cristã da cosmovisão pós-moderna? Em primeiro


lugar, é preciso reconhecer que ela tem aspectos bons e ruins. Do lado positivo, há a
oposição contra a tirania e a opressão, principalmente de minorias; há também uma
saudável ênfase na ideia de que não existe um conhecimento de base “neutra”, mas que
todo conhecimento parte de alguns pressupostos que não são tão objetivos como
pensamos que são. O problema da cosmovisão pós-moderna é que ela pega uma verdade
parcial sobre a realidade, e a transforma numa “verdade” que subjuga tudo – ainda que eles
não acreditem na existência da verdade.
E essa é a primeira fraqueza da cosmovisão pós-moderna: ela é autocontraditória. A
pessoa que afirma “não existe nenhuma verdade” espera que esta afirmação seja aceita
como verdade, isto é, uma descrição da forma como o mundo é em si mesmo; ao afirmar que
não existe nenhuma metanarrativa nem cosmovisão totalizante, essa visão é, em si mesma,
uma metanarrativa. Ou seja, a cosmovisão pós-moderna nega a capacidade de avaliar
104
CRESCER
Cosmovisões Rivais:
Pós-modernidade
objetivamente outras cosmovisões, mas ela se torna justamente aquilo que combate.
Uma segunda fraqueza tem a ver com a negação do conceito de verdade e com a
ideia de que o mundo é aquilo que criamos. De acordo com Alvin Plantinga (2014), essa ideia
que dá origem à pós-modernidade é chamada de “antirrealismo criativo” e tem origem no
idealismo de Kant. Para a cosmovisão cristã, existe uma verdade objetiva; há um modo pelo
qual as coisas realmente são, um modo pelo qual o mundo realmente é e isso não depende
de nossa percepção, de nossas necessidades, interesses, valores ou de uma construção
social.

Essa é a visão que afirma que é o comportamento humano – em


particular, o pensamento e a linguagem humanas – o responsável
pelas estruturas fundamentais do mundo e pelos tipos
fundamentais de entidades que existem. De um ponto de vista
teísta, entretanto, o antirrealismo criativo universal é no máximo
uma mera impertinência, uma fanfarronice risível. Pois Deus,
é claro, não deve sua existência nem suas propriedades a nós
e nossas maneiras de pensar; a verdade é o contrário. Apesar de
o universo, de fato, dever sua existência a atividade de uma pessoa,
tal pessoa não é, certamente, uma pessoa humana.
(PLANTINGA, 2018, p. 10)

Uma terceira e última crítica que podemos fazer ao pós-modernismo é que, apesar
de ser celebrada na teoria, ela é inviável na prática. A vida normal de uma sociedade
depende da existência de valores morais objetivos aos quais possamos apelar, de uma
leitura objetiva de um texto que possamos fazer e de verdades sobre o mundo que
possamos descobrir e buscar. O mundo não é simplesmente fruto dos nossos desejos e da
nossa mente, por mais que queiramos. Há uma forma tal como a realidade é que não
depende de nosso pensamento, nem do pensamento da nossa comunidade. C S Lewis foi
um dos pensadores cristãos que apresentaram essa verdade de forma notável:

A intenção da discussão é mostrar que o outro está errado. Não


haveria sentido em demonstrá-lo se você e ele não tivessem algum
tipo de consenso sobre o que é certo e o que é errado, da mesma
forma que não haveria sentido em marcar a falta de um jogador de
futebol sem que houvesse uma concordância prévia sobre as regras
do jogo. [...] Essa lei era chamada de Lei Natural porque as pessoas
pensavam que todos a conheciam naturalmente e não precisavam
que outros a ensinassem. Isso, evidentemente, não significava que
não se pudesse encontrar, aqui e ali, um indivíduo que a ignorasse,
assim como existem indivíduos daltônicos ou desafinados.
Considerando a raça humana em geral, no entanto, as pessoas
pensavam que a ideia humana de comportamento digno ou
decente era óbvia para todos. E acredito que essas pessoas tinham
razão. Se assim não fosse, as coisas que dizemos a respeito da
guerra não teriam sentido nenhum. Se o Certo não for uma
entidade real, que os nazistas, lá no fundo, conhecem tão bem
quanto nós e têm o dever de praticar, qual o sentido de dizer que
o inimigo está errado? Se eles não têm nenhuma noção daquilo
que chamamos de Certo, talvez tivéssemos de combatê-los do
mesmo jeito, mas não poderíamos culpá-los pelas suas ações,
da mesma forma que não podemos culpar um homem por ter
nascido com os cabelos louros ou castanhos.

105
CRESCER Cosmovisões Rivais:
Pós-modernidade
Nesta aula você...

Compreendeu o que é o pós-modernismo e analisou as implicações do


pós-modernismo para a sociedade.
Percebeu como o cristianismo enxerga a cosmovisão cristã pós-moderna.

CRESCER+

GRENZ, Stanley. Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso


tempo. São Paulo: Vida Nova, 2008.

SIRE, James. O universo ao lado: um catálogo básico sobre cosmovisão. São Paulo:
Hagnos, 2009 (Capítulo 09).
106
COMPARTILHAR
Cosmovisões Rivais:
Pós-modernidade
A cosmovisão pós-moderna está muito presente na sociedade. Como exercício, pesquise
notícias, trechos de filmes, ou partes de literaturas que reflitam a cosmovisão pós-moderna
e leve para nosso fórum.

107
Cosmovisão e as
Narrativas Ocidentais aula 13
Olá!
O secularismo diz respeito à indiferença, rejeição ou exclusão de religião e das
considerações religiosas no cotidiano. Ele procura olhar para a existência a partir de
princípios tomados exclusivamente do mundo materital, sem recorrer à Deus ou a qualquer
princípio transcendental. Nesta aula, vamos estudar cinco narrativas que são frutos do
secularismo e que atualmente moldam as cosmovisões da nossa sociedade a partir do
filósofo Charles Taylor (2010).

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender as cinco narrativas seculares que moldam a cosmovisão do ocidente;


Comparar as cinco narrativas com a cosmovisão cristã;
Refletir sobre como o cristão pode ser uma testemunha fiel e relevante ao se
deparar com pessoas que tomam como certas essas cinco narrativas.

Bons estudos!

108
CONECTAR
Cosmovisão e as
Narrativas Ocidentais
O deísmo é uma das cosmovisões que mais impactaram a civilização ocidental. Ele
começa com a ideia de que existe um Deus todo-poderoso, criador do universo. Até aí ele se
parece com o teísmo cristão; no entanto, a diferença crucial entre o deísmo e o teísmo tem a
ver com a compreensão de quem é esse Deus, bem como da sua relação com o mundo.
No deísmo, não existe um agente pessoal interagindo com os seres humanos e
intervindo na história; Deus é simplesmente o arquiteto de um universo que opera por meio
de leis imutáveis. A única interação que temos com esse ser se dá através da estrutura do
universo que ele criou; de qualquer forma, esse universo é indiferente à nossa existência.
Deus não se revelou à humanidade.
Essa cosmovisão influenciou grandemente a separação entre religião e esfera
pública, que vimos na aula 02. Foi a partir do deísmo que as pessoas deduziram que não
precisavam de Deus para explicar o mundo a nossa volta, guiar suas vidas, praticar seus atos
morais, amar uns aos outros, ou ainda, para que sua existência tenha valor, sentido e
propósito. O deísmo deu lugar a um humanismo que invoca uma ordem moral, cujo
compromisso último é totalmente intra-humano, sem referência a uma transcendência.
As nossas fontes morais são antropocêntricas, isto é, vêm de dentro do ser humano,
não de fora.
Dado o deísmo, de que os seres humanos realmente precisam? Certamente não é de
Deus, uma vez que ele não interage conosco, nem interfere na nossa história. O que
precisamos é sermos livres para viver a vida como bem entendermos; além disso
precisamos também trabalhar juntos para tornar o mundo um lugar melhor. Tal como
entendida por deístas clássicos, a religião geralmente fica no caminho de tudo isso -
restringe nossa liberdade de viver como desejamos e nos divide, para que não possamos
trabalhar juntos. Essa foi, inclusive, a razão do porquê as pessoas abandonaram o
cristianismo nos séculos 17 e 18 e se tornaram deístas: a religião divide as pessoas;
precisamos superá-las para que possamos nos unir (SIRE, 2009).
Essa narrativa é chamada pelo filósofo Charles Taylor (2010) de “história da
subtração”. Trazida pelo secularismo, ela começa com a ideia de que a ciência e a razão
subtraíram Deus da imaginação das pessoas na modernidade. Em seguida, Taylor (2010)
afirma que o secularismo faz uma série de “promessas” que advêm dessa narrativa
antropocêntrica: o universo opera segundo leis objetivas que não precisam recorrer à fé e às
crenças; somos libertos dos nossos ultrapassados valores morais, da nossa estreiteza de
pensamento, dos nossos preconceitos; nossos valores podem oferecer apoio à ideia de
igualdade, aos direitos humanos, fomentando a melhoria da humanidade; por fim, teremos
uma vida de significado pessoal, liberdade e paz de espírito - e tudo isso baseado apenas em
recursos humanos!
Essa é a interpretação que o secularismo faz de si mesmo. De acordo com Harari
(2016, p. 227), “o grande projeto político, artístico e religioso da modernidade consiste em
encontrar um significado cujas raízes não estejam em algum grande plano cósmico. Não
somos atores em um drama divino, e ninguém conosco e com nossas ações, de maneira que
ninguém estabelece limites ao nosso poder”. Elas não são provadas, nem muito menos
autoevidentes, mas fazem parte de uma ordem imaginada, que as pessoas seguem de
forma inconsciente, fazendo parte do seu sistema de crenças. Nesta aula, vamos estudar
cinco narrativas que sustentam essas crenças trazidas por Taylor (2010) e que estão
presentes atualmente na cosmovisão ocidental.

109
CRESCER Cosmovisão e as
Narrativas Ocidentais
Deísmo e teísmo

Charles Taylor (2010) aponta para um paradoxo curioso em seu livro Uma era
secular: as cinco narrativas que moldam a sociedade ocidental se originaram no
cristianismo em sua interação com o paganismo da antiguidade. Ou seja, quando os cristãos
se depararam com os filósofos gregos, bem como com sua visão sobre o que é o mundo
material e a história humana a partir de um universo racional e impessoal, os cristãos
confrontaram os filósofos com respostas baseadas na Bíblia – respostas que, no fim das
contas, moldaram o Ocidente. Esses cinco eixos são baseados nessas respostas e, por isso,
eles não são errados em si mesmos.
No entanto, Taylor (2010, p. 288) afirma que o deísmo moderno integrou esses cinco
eixos “como dimensões essenciais de nossa compreensão da vida humana, mas as excluiu
completamente de nossa relação com Deus”. A partir daí, essas cinco dimensões passaram
a ser tidas como tão óbvias, que não precisavam mais se apresentar como uma crença
visível, mas como parte do senso comum, mesmo que agora estejam totalmente
divorciadas da visão de mundo que lhes serviu como base. Nesta aula, vamos ver esses
cinco eixos a partir de Taylor (2010) e Timothy Keller (2017).

Narrativa 01: Narrativa da Racionalidade

Como os filósofos gregos viam o mundo material? Para Platão, os seres humanos
alcançam seu estado mais elevado e sublime no mundo das ideias, ao se libertar desse
mundo material; esse mundo é um obstáculo ao verdadeiro conhecimento, somente
presente no mundo inteligível. Além disso, o corpo material precisa ser constantemente
controlado por meio da disciplina; o tipo mais elevado de existência não se encontra neste
mundo, mas além desta vida. Claro que essa é uma posição extrema no mundo antigo.
Taylor (2010) lembra que há visões na antiguidade grega que não viam o mundo material de
forma tão negativa. No entanto, a visão platônica foi uma das principais que prevaleceram.
Os cristãos não adotaram tal visão: eles viam o mundo material como a boa criação de Deus.
Por isso, ela não era inferior, mas fazia parte de uma realidade confiável e objetiva. De
acordo com Pearcey & Thaxton (2005), essa visão de que o mundo material é bom e fruto da
criação de um Deus pessoal, ordenado e confiável foi a base para o desenvolvimento da
ciência moderna. O mundo material pode ser livremente pesquisado porque ele pode
oferecer conhecimento verdadeiro sobre a realidade.
Mas aqui o deísmo capta a visão cristã, porém vai além dela: o mundo natural não é
apenas a boa criação de Deus; ela a única realidade que existe. Na contemporaneidade isso
é refletido na frase de Sagan: “o cosmo é tudo o que existiu, existe ou existirá” (SAGAN, 2017,
p. 30). Para tudo existe uma causa física e uma explicação que tem propriedades naturais e
materiais. Até coisas como o amor são propriedades químicas que podem ser encontradas
em determinadas áreas espaciais do cérebro.
Para todos os problemas humanos é possível existir soluções materiais a partir do
uso da tecnologia. “Somos dotados da capacidade de fazer as coisas melhorarem e de
reduzir ainda mais a incidência do sofrimento” (HARARI, 2016, p. 29). Para Harari, fome,
peste e guerras, e até mesmo problemas como a “morte” são problemas ´técnicos’. “Para
pessoas modernas a morte é um problema técnico que pode e deve ser resolvido [...]. E todo
110 problema técnico tem uma solução técnica” (HARARI, 2016, p. 31 e 32).
CRESCER
Cosmovisão e as
Narrativas Ocidentais
O platonismo afirmava que o mundo material era mau e inferior; o teísmo cristão
disse que ele era a boa criação de um Deus pessoal e que por isso pode ser objeto de
conhecimento. Mas o deísmo foi além e afirma que o conhecimento do mundo material é o
único possível, de modo que nossos problemas só serão resolvidos a partir de soluções
tecnológicas, pois a razão humana objetiva e imparcial pode resolver o que nos aflige.

Narrativa 02: Narrativa da História

Como era a história para os antigos? Era cíclica e sem fim. Ela faz parte de uma
eternidade e, por isso, os seus eventos individuais não são importantes, pois para os
filósofos gregos, aderir ao eterno é perder o individual. Os cristãos discordavam dessa visão.
Para eles, a história estava no controle de Deus, que a movia propositalmente para um
clímax final, com a consumação de um reino escatológico.
O deísmo foi além com essa visão de progresso. Paradoxalmente, ela abriu mão de
qualquer intervenção divina na história, ao mesmo tempo que continuou assumindo a ideia
de que a história caminha para algum tipo de avanço que lhe é inexorável. O deísmo adota
aquilo que Lewis (1998, p. 213) chamou de “esnobismo cronológico”, isto é, a “aceitação
acrítica do ambiente intelectual comum à nossa época e a suposição de que tudo aquilo que
ficou desatualizado é, por isso mesmo, desprezível”. Atualmente, quando achamos
absurdas determinadas coisas, exclamamos: “mas em pleno século 21!”, como se o presente
fosse, automaticamente, melhor que o passado.

Narrativa 03: Narrativa da Sociedade

Nas sociedades antigas, o indivíduo era menos importante que sua tribo ou que seu
clã; por isso, os pais poderiam escolher os cônjuges dos filhos independentemente de suas
vontades. Toda a comunidade precisava adotar uma visão de vida boa que fosse
comunitária; o que é importante para o grupo deve estar acima daquilo que é importante
para o indivíduo.
O cristianismo não pensava assim: como seres criados à imagem e semelhança de
Deus, qualquer pessoa merece ajuda e respeito simplesmente por causa das suas condições
ontológicas: como seres criados à imagem e semelhança de Deus, todo ser humano possuía
uma dignidade inviolável, independente de raça, cor, sexo, nacionalidade e religião.
O deísmo não acredita que os seres humanos são criados à imagem de Deus; essa
ideia só faz sentido a partir de uma crença em um Deus pessoal. Mas ele permaneceu com a
crença sobre a importância do indivíduo; mais especificamente, ele amplificou a
importância do indivíduo a ponto de fomentar uma sociedade radicalmente individualista,
onde o indivíduo é mais importante que qualquer ordem social acima dele.
Dessa forma, o individualismo promovido nessa narrativa na contemporaneidade
afirma que não se deve promover os interesses de qualquer grupo, nem promover
quaisquer valores ou virtudes particulares, ou qualquer visão de vida boa. Ao contrário,
deve-se libertar todos os indivíduos para que vivam como quiserem sem impedimentos,
independentemente de quaisquer relações comunitárias.
Apenas devem seguir uma ética minimalista baseada no princípio do dano: as
pessoas têm o direito de agir como quiserem, desde que suas ações não prejudiquem as
111
CRESCER Cosmovisão e as
Narrativas Ocidentais
outras pessoas. “A escolha se torna o valor sagrado e a discriminação o único mal moral”
(KELLER, 2017, p. 163).

Narrativa 04: Narrativa da Moralidade e da Justiça

Os gregos acreditavam que o destino era inexorável, um dado da realidade. O que


poderíamos fazer era aprender a adaptar-nos à ordem que existia por trás do universo. Para
os estoicos, não temos controle sobre aquilo que acontece conosco; não temos controle
sobre nosso nascimento e sobre nossa morte; mas temos controle sobre uma coisa: como
podemos reagir diante desses fatos inexoráveis.
A história de Édipo é um clássico sobre essa questão: apesar de todo seu esforço,
Édipo estava fadado a matar seu pai e casar-se com sua mãe; ele e seus pais tentaram de
todas as formas evitar esse infortúnio depois de ouvir o destino do garoto pelo oráculo, mas
foi justamente isso o que lhe aconteceu.
O cristianismo não via a história dessa forma: o universo não faz parte de uma
ordem impessoal, mas foi feita por um Deus pessoal. Esse Deus criou os seres humanos à
sua imagem, como agentes morais responsáveis; não apenas reagimos ao ambiente que
nos cerca; nós agimos conforme nossa vontade. Mesmo Deus sendo soberano sobre os
propósitos finais da história para este mundo, o modo como os humanos se comportam
importa no fim das contas. Além disso, existem valores morais objetivos, originários da
natureza bondosa de Deus e com os quais os seres humanos devem se conformar.
O deísmo, juntamente com o secularismo, se apropriou da ideia de responsabilidade
moral e da noção de justiça. Assim como o cristianismo, ele está comprometido com a justiça
social, a benevolência universal e os direitos humanos. No entanto, há uma diferença
crucial: esses objetivos não estão alinhados com as normas morais de Deus, nem em
absolutos morais do universo, mas são determinados por nossas próprias escolhas. E o
significado das nossas ações é dado por nós mesmos:

O único lugar em que tais princípios universais existem é na


imaginação fértil do sapiens e nos mitos que eles inventam e
contam uns aos outros. Esses princípios não têm nenhuma validade
objetiva [...]. A ideia de igualdade está intrinsecamente ligada à
ideia de criação. Os norte-americanos tiraram a ideia de igualdade
do cristianismo, que afirma que todo indivíduo tem uma alma de
origem divina e que todas as almas são iguais diante de Deus. No
entanto, se não acreditamos nos mitos cristãos sobre Deus, criação
e almas, o que significa dizer que todas as pessoas são 'iguais'?
(HARARI, 2018, p. 152 e 153)

Narrativa 05: Narrativa da Identidade

Um último aspecto dos cinco eixos apontados por Taylor (2010) tem a ver com nossa
identidade: como as culturas antigas afirmavam que o indivíduo é menos importante que
sua tribo, clã ou família, seguia-se dessa crença que os fortes sentimentos individuais e os
interesses próprios deveriam ser suprimidos em favor do cumprimento do dever da família,
do clã ou da tribo. Vivia-se uma “cultura da honra”, na qual a autoestima do indivíduo
112 advinha da posição que a comunidade lhe concedia. Os indivíduos deveriam fazer de tudo
CRESCER
Cosmovisão e as
Narrativas Ocidentais
para não violar os interesses da comunidade.
O cristianismo pensava diferente, pois mesmo valorizando a comunidade, ele dava
importância aos sentimentos e às afeições. A obra Confissões, de Agostinho (2017), foi uma
das primeiras obras do ocidente a analisar profundamente as motivações e os desejos
interiores. Esses sentimentos precisam ser ordenados e dirigidos, em primeiro lugar, a Deus,
a algo que está fora de nós. O secularismo, no entanto, inverte esta abordagem. Não há nada
fora de nós mesmos pelo qual precisamos prestar contas. Nossa identidade agora é
descoberta dentro de nós, em nossos desejos e escolhas.

A religião humanista cultua a humanidade e espera que esta


assuma na peça o papel que era de Deus no cristianismo e
no islamismo e que cabia às leis da natureza no budismo e no
taoísmo. Enquanto, tradicionalmente, o grande plano cósmico
emprestava um sentido à vida humana, o humanismo inverte
os papéis e espera que as experiências dos humanos deem
significado ao grande cosmo. (HARARI, 2016, p. 228)

De onde vem agora nossa autoestima? De nós mesmos, de como nós nos olhamos,
da valorização e dignidade que nós nos damos. O grande propósito pelo qual vivemos diz
respeito a expressar e satisfazer nossos desejos, independentemente do que nossa
comunidade, família ou religião possa dizer. Devemos ser autênticos, "sermos nós mesmos",
independentemente das expectativas sociais e religiosas. “A principal narrativa heroica de
nossa sociedade é a do indivíduo que se ergue e é verdadeiro consigo mesmo à revelia da
sociedade” (KELLER, 2017, p. 164).

Implicações das cinco narrativas

Esses são os cinco eixos apontados por Taylor (2010) e que funcionam como
verdades autoevidentes; de acordo com Keller (2017), elas são geralmente expressas em
slogans simples que, de tão aceitas, não precisam de justificação. São frases como:
“Mantenha suas opiniões religiosas só para você"; "Eu sou livre para fazer o que eu desejo,
desde que eu não machuque mais ninguém"; “O importante é ser feliz”; "Que direito você
tem de dizer a qualquer pessoa o que é certo ou errado para ela?"; “Seja você mesmo e não
se importe com o que os outros digam ou pensem”; “Você não quer estar do lado errado da
história ”. Para Goheen e Bartholomew (2016), o povo de Deus vive na intersecção entre a
narrativa ocidental e o teísmo cristão. Por isso, ele [o povo de Deus] protagoniza um embate
missionário onde essas duas narrativas se chocam. Como os cristãos devem lidar essas
narrativas básicas?
Em primeiro lugar, é preciso saber que elas são parcialmente verdadeiras; como
vimos, elas se originaram no cristianismo e, por isso, são partes integrantes da cosmovisão
cristã. A procura por autenticidade, por justiça social e por direitos humanos são não errados
em si mesmos.
Contudo, em segundo lugar, deve-se mostrar seus perigos e falhas; deve-se mostrar
como essas narrativas absolutizam e deificam um aspecto da criação de Deus, excluindo o
criador que lhes dá sentido e sustentação. Essas narrativas apontam para coisas que são
boas em si, mas são perigosas quando alguém as diviniza graças à ausência de fé no Autor
de todas essas coisas.
113
CRESCER Cosmovisão e as
Narrativas Ocidentais
Por fim, os cristãos devem oferecer os benefícios do evangelho nos pontos em que
essas narrativas não conseguem: nem o deísmo, nem o secularismo são abrangentes o
suficiente para cumprir as promessas que fazem; apenas o evangelho consegue responder
a essas cinco narrativas de modo satisfatório, pois elas se originaram no contexto do Teísmo
cristão e, por isso, precisam dele para serem integrais.

Nesta aula você...

Compreendeu as cinco narrativas seculares que moldam a cosmovisão do ocidente,


comparando-as com a cosmovisão cristã.
Refletiu sobre como o cristão pode ser uma testemunha fiel e relevante ao se
deparar com pessoas que tomam como certas essas cinco narrativas.

CRESCER+

KELLER, Timothy. Pregação: comunicando a fé na era do ceticismo. São Paulo: Vida


Nova, 2017 (Capítulo 05).

TAYLOR, Charles. Uma era secular. São Leopoldo: Unisinos, 2010 (Capítulo 08).
114
COMPARTILHAR
Cosmovisão e as
Narrativas Ocidentais
Compare a cosmovisão deísta e a interpretação que o secularismo faz de si mesmo com a
proposta de Paulo em Atos 17:28, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos”. Que
diferenças cruciais você encontra?’

115
Coração e o
Motivo-Base aula 14
Olá!
Na primeira aula nós vimos que o conceito de cosmovisão não diz respeito apenas a uma
questão intelectual, nem a um tipo de filosofia, mas antes de tudo a uma questão
fundamental de coração, um compromisso pré-teórico. Nesta aula, nós vamos aprofundar
esse entendimento a partir do pensamento do filósofo cristão Herman Dooyeweerd.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender que o pensamento teórico nunca é neutro ou autônomo;


Analisar a multiplicidade de espectros que formam a realidade;
Entender como o coração é uma força motriz espiritual que impele cada pensador a
interpretar a realidade sob sua influência.

Bons estudos!

116
CONECTAR
Coração e o
Motivo-Base
Cosmos é uma série de televisão de treze episódios escrita e apresentada por Carl
Sagan, com colaborações de Ann Druyan e Steven Soter. A série foi transmitida pela primeira
vez em 1980 pela principal TV pública dos Estados Unidos, a Public Broadcasting Service
(PBS) e foi uma das séries mais assistida na história da televisão pública americana; além
disso, Cosmos é uma das séries mais assistidas do mundo, tendo sido transmitida para mais
de 60 países, incluindo o Brasil, e vista por mais de 500 milhões de pessoas. Ganhou vários
prêmios, como dois Emmys e um Peabody Award1. Toda a série se encontra tanto legendada,
quanto dublada no Youtube.
Uma das coisas mais notáveis na série foi seu
uso inovador, na década de 1980, de efeitos
especiais; no primeiro episódio, The Shores of the
Cosmic Ocean (Os Limites do Oceano Cósmico),
Sagan realiza uma viagem fictícia através da
espaçonave da imaginação, que o acompanha ao
longo de toda a série, viajando pelas extremidades
do espaço através de cem bilhões de galáxias do
universo até nosso planeta; tais efeitos podem ser
comuns hoje, mas na época permitiam Sagan
caminhar por ambientes que são projetados em cima de efeitos especiais, em vez de
montagens de tamanho normal.
Além da série, um livro de nome homônimo, com 13 capítulos (que correspondem
aos 13 episódios da série), foi publicado para acompanhar a série. O livro foi vencedor do
Prêmio Pulitzer e se tornou uma das obras de divulgação científica mais vendidas da
história. No entanto, a série e o livro Cosmos não apenas popularizaram com grande paixão
e elegância a ciência, mas foram responsáveis também por divulgarem uma cosmovisão
naturalista sobre a realidade. Logo no começo da série e do livro, Sagan afirma: “o cosmo é
tudo o que existiu, existe ou existirá” (SAGAN, 2017, p. 30). Ou seja, o fundamento primário a
respeito da existência é a natureza, ou nas palavras de Sagan, o cosmo. Não há um criador
eterno que criou a cena: é o próprio cosmo o responsável final por tudo, aquele que era, que
é e que sempre será. Sagan continua descrevendo o cosmo com tons religiosos:

Nossa contemplação do universo, mesmo as mais breves ou


superficiais, mexem conosco – há sempre um arrepio na espinha,
um embargo na voz, uma sensação de fraqueza, com a memória
distante da queda de uma grande altura. Sabemos que estamos
diante do maior dos mistérios. (SAGAN, 2017, p. 30)

A natureza subsistiu Deus como alvo da veneração: nele, Sagan encontra beleza,
reverência e vastidão, de forma a ficar com “um
embargo de voz” e com um “arrepio na espinha”.
Esse é, para Sagan, o maior de todos os mistérios.
Perceba que uma série tão bem-sucedida e
fascinante como Cosmos, mesmo lançando mão
da racionalidade e da ciência, não consegue ser
neutra em questões religiosas. Cosmos não é
simplesmente uma série de divulgação científica;
em seu texto, Sagan deixa claro que sua visão
científica é também religiosa. 117
CRESCER Coração e o
Motivo-Base
Introdução

Existe algum pensamento neutro que seja livre de amarras religiosas e que consiga
acessar a realidade de forma imparcial sem nenhuma influência cultural, social e religiosa?
Para boa parte da tradição intelectual ocidental, a resposta sempre foi sim. Um exemplo
seria o conhecimento científico; esse tipo de saber foi testado e provado e, por isso, ele é
seguro e absolutamente confiável porque começaria e dependeria apenas das observações
e das análises empíricas objetivas. Qualquer pessoa, empregando seus sentidos de forma
rigorosa e utilizando ferramentas adequadas, pode fazer experimentos e obter um conjunto
X de dados de forma objetiva. Com os fatos adquiridos pela observação, o cientista formula
leis e teorias que expliquem aquele dado fenômeno em condições universais. Em tese, o
conhecimento da ciência seria assim alcançado somente pela observação. Se os dados
apontam para essa universalização, constrói-se uma teoria que sempre explicará essas
informações.
Assim, a tradição intelectual ocidental, seja na filosofia, seja na ciência, sempre
partiu do pressuposto de que a razão nos dá um acesso privilegiado à realidade porque ela
conseguiria não ser influenciada por compromissos extrateóricos; ela seria independente
de quaisquer pressupostos culturais, religiosos, estéticos ou sociais. Mas o filósofo cristão
Herman Dooyeweerd (1894-1977) desconfia dessa autonomia do pensamento teórico. Por
que o pensamento racional não é neutro nem autônomo?
Para Dooyeweerd, os pensadores deveriam desconfiar dessas supostas autonomia
e neutralidade a partir de um raciocínio básico: “se todas as correntes filosóficas que alegam
estabelecer seu ponto de partida exclusivamente na razão teórica não possuíssem, de fato,
pressuposições mais profundas, seria possível resolver todas as discussões filosóficas entre
elas de uma forma puramente teórica” (DOOYEWEERD, 2010, p. 50). Ou seja, se o
pensamento teórico fosse realmente autônomo e tivesse origem apenas na razão
autônoma, as disputas científicas e filosóficas poderiam ser resolvidas apenas no campo da
teoria, uma vez que elas estão fundamentadas unicamente em princípios filosóficos e
científicos.
Mas não é isso que é observado: existe uma grande multiplicidade de teorias e uma
profunda discordância entre as diversas escolas de pensamento, seja na filosofia, seja na
ciência. Logo, é no mínimo estranho que, dada tamanha diversidade, os proponentes de tais
teorias não tenham sucesso em convencer uns aos outros por argumentos puramente
racionais e científicos.
De acordo com Dooyeweerd, isso acontece porque o pensamento teórico não é
neutro, mas depende de uma raiz religiosa fundamental do ser humano em direção ao que
ele crê ser a fonte última de todas as coisas. “Tão logo buscamos penetrar a raiz dessas
concepções fundamentalmente distintas, somos confrontados com uma diferença
fundamental de pressuposições que ultrapassa os limites do pensamento teórico”
(DOOYEWEERD, 2010, p. 49). Há, assim, uma raiz religiosa em todo pensamento que se diz
autônomo e racional. E para determinar a natureza das diferenças mais fundamentais entre
as diversas escolas filosóficas, se faz necessário determinar a natureza de seus respectivos
pressupostos.
Uma das primeiras formas de se chegar a este ponto é a partir de dois fatos: em
primeiro lugar, Dooyeweerd afirma que o pensamento teórico depende de pressuposições
que são, elas mesmas, não teóricas e, na verdade, estão além da teoria, são supra-teóricas.
118 Em segundo lugar, essas pressuposições são de caráter religioso. Por religião entende-se a
CRESCER
Coração e o
Motivo-Base
raiz fundamental da existência que a envolve completamente e lhe confere direção,
orientando assim todas as funções da vida humana; ela é mais do que uma área ou uma
esfera da realidade, mas um impulso do eu humano para se dirigir a uma origem absoluta e
mantenedora de todas as coisas.
Pense em um naturalista como Carl Sagan; para ele, “o cosmo é tudo o que existiu,
existe ou existirá” (SAGAN, 2017, p. 30). Isto é, o cosmo é a realidade fundamental de tudo
que há, a razão fundamental de todas as coisas. As propriedades que Sagan atribui ao
cosmo, os teístas atribuem a Deus: eternidade, sentido, contemplação e celebração. Dessa
forma, seu pensamento não parte de um pressuposto neutro, nem da razão pura e simples,
mas de um motivo religioso que direciona toda sua cosmovisão.

Experiência pré-teórica e o pensamento teórico

De acordo com Dooyeweerd (2010), a experiência humana primeira é ordinária ou


ingênua. Isso não significa que ela seja ilusória, ignorante ou sem sofisticação, mas sim que
ela é a forma da experiência cotidiana, do dia a dia, do modo como experimentamos o
mundo da vida e onde a vida acontece. E como experimentamos a realidade? Através de
vários modos, isto é, de fenômenos concretos da realidade empírica. Na experiência do
senso comum, nos experimentamos a realidade, bem como seus eventos concretos, de
forma integral, unitária com sua continuidade e coerência mútua.
Pense em um pedaço de papel qualquer, há nele uma variedade de modos: ele
possui uma composição física constituída por elementos fibrosos de origem vegetal; ele
também possui uma composição espacial, geralmente distribuído sob a forma de folhas ou
rolos; há também um aspecto químico, uma vez que o papel constitui-se basicamente de
ligações de hidrogênio. Mas o papel não diz respeito apenas a essas propriedades materiais:
esse mesmo papel possui também um aspecto econômico, uma vez que ele possui um baixo
custo, sua matéria bruta é de fácil obtenção na natureza e ele é comercializado em qualquer
lugar do mundo; um aspecto social, sendo de grande utilidade para o sere humano escrever,
desenhar, imprimir e embalar; e também pode possuir um aspecto simbólico a depender
do que escrevo nele ou se uso para imprimir um contrato ou para fazer um barquinho
para brincar com as crianças. Dessa forma, “na ordem do tempo, a existência e a experiência
humanas apresentam uma grande diversidade de aspectos modais” (DOOYEWEERD, 2010,
p. 56).
Cada uma dessas esferas ou modos possui sua própria lógica interna e sua forma de
organização, isto é, há uma forma como as leis da física funcionam que lhe é própria do
modo físico de funcionamento e que é diferente das formas de funcionamento do modo
social. E cada uma dessas formas são irredutíveis: não é possível reduzir os modos de
funcionamento da física aos da sociedade: por exemplo, por mais que uma sociedade queira,
o mundo físico não vai se adequar ao seu desejo, porque ele tem uma forma que lhe é
própria de funcionar (um cometa não vai mudar sua rota porque as pessoas querem); e uma
sociedade não pode ser regida pelas mesmas formas de organização que imperam no
mundo químico. Entre essas esferas existem relações entre si: o ser humano, por exemplo, é
um ser social, mas é também biológico, psicológico e econômico. Quaisquer ações nossas,
por mais banais que sejam, lançam mão de todos esses modos de ser, e um se relaciona com
o outro. Assim, na experiência ordinária, todos esses arranjos se relacionam entre si e nós
percebemos o mundo de forma integral.
119
CRESCER Coração e o
Motivo-Base
A partir dessa realidade múltipla, surge o pensamento teórico. Nele, nós isolamos
um aspecto específico dessa experiência variada, ou seja, a partir da multiplicidade que
constitui a realidade, o pensamento teórico recorta uma parte dessa pluralidade a fim de
analisá-la e estudá-la em profundidade; com isso, teorizamos sobre apenas um único
aspecto da realidade, dando origem a uma abstração teórica de uma única dimensão da
experiência. Esse recorte não se deve a um desleixo ou a uma arbitrariedade, mas é uma
necessidade fundamental da possibilidade de teorizar sobre algo. Para que possa ser visto
com mais profundidade, o pensamento teórico absolutiza um aspecto da realidade,
expande-o a fim de estudá-lo de forma detalhada. Nesse processo, fica claro que as
estruturas da realidade empírica nunca são completamente “pegas” pelo pensamento
teórico.
Pense em um telescópio: a fim de que possamos olhar mais longe e de forma mais
detalhada, precisamos focar na observação de um único corpo celeste. Assim, a relação
entre a experiência pré-teórica e o pensamento teórico, nas palavras de Dooyeweerd (2010,
p. 66 e 67), é que “a experiência ordinária deixa a coerência integral do nosso horizonte
experiencial intacta. A atitude teórica do pensamento e da experiência quebra essa
coerência em partes por meio da dissolução analítica de seus aspectos modais”.
Qual a implicação desse fato? É que o pensamento teórico é um recorte, uma abstração
sobre a realidade, sobre uma dimensão do mundo; elas não são a realidade em si, nem
correspondem aos objetos reais do mundo. As estruturas da realidade, do mundo da vida,
não são integralmente transmitidas a nós na abstração, a partir da teorização, mas apenas
uma das partes diminuta dessa estrutura. Ao mesmo tempo, a atividade teórica nunca é
absolutamente isolada das estruturas da realidade, pois seu sentido é dado justamente pela
realidade, pelo mundo da vida; assim, o recorte feito pelo pensamento teórico nunca é
transmitido a nós na abstração independentemente das estruturas da realidade empírica.

Coração humano como o ponto central da síntese entre a


experiência ordinária e o pensamento teórico

Dooyeweerd (2010) afirma que o pensamento teórico é um recorte abstrato; ele faz
um “Gegenstand”, isto é, abstrai uma modalidade da realidade e torna-o objeto do
pensamento teórico. Mas o pensamento teórico não consegue parar aí; há limites claros e
naturais para o pensamento teórico, e estes limites não podem ser transcendidos pelo
pensamento teórico de forma autônoma.
O pensamento teórico, além disso, faz uma síntese daquele modo específico da
realidade a fim de designar a forma como uma multiplicidade de características é integrada,
sintetizada na unidade de um conceito. Nesse processo existe um aspecto central, que é a
oposição entre a função lógica e a não-lógica, sem prejuízo das outras dimensões da
realidade do ato real de pensar. Ou seja, quando estamos teorizando, estamos dentro da
experiência ordinária, pois o pensamento também é um modo da realidade que
experimentamos no mundo da vida. Surge então um paradoxo: o pensamento teórico faz
um recorte da realidade, mas ele, em si, também faz parte dessa realidade que ele está
recortando. Por isso, ele faz essa síntese entre a experiência ordinária e o pensamento
teórico.
Assim, tanto o pensamento teórico precisa de um ponto de partida para sua síntese,
quanto a experiência ordinária. E, claro, nenhum desses dois polos é responsável por essa
120
CRESCER
Coração e o
Motivo-Base
síntese. De acordo com Dooyeweerd, precisamos nos voltar para o “ego pensante” a fim de
descobrir onde tal síntese é feita. Sendo assim, onde é feita essa síntese?
Só é possível responder a esta pergunta através da auto-reflexão; somente ela pode
nos levar a esse ponto de partida interno. A psicologia, a antropologia, a biologia, a
etnologia, a química, a comunicação, a filosofia, a sociologia, e as diversas ciências que
estudam o ser humano podem dizer muitas coisas sobre a sua vida temporal na experiência
teórica, mas não podem alcançar esse centro interno de unidade a partir do qual são
realizadas essas sínteses, esses atos sintéticos de pensamento.
Onde finalmente acontece essa síntese? Uma vez que não há, no pensamento
teórico, um ponto de partida para a síntese intermodal, a direção concêntrica do
pensamento não pode ter origem teórica. Ela é feita no coração. É no coração que o homem,
ao fazer a síntese entre o pensamento teórico e a experiência ordinária, absolutiza um
aspecto da realidade e busca definir sua origem absoluta, sua identidade e sua direção,
formando um “ídolo teorético”, de modo que todo o resultado do pensamento teórico passa
a ser determinado de forma reducionista a partir desse ponto de partida artificial. No
coração, as diversas funções da vida humana estariam concentradas numa unidade que
transcende o tempo em direção a Deus, a origem de tudo.

Ser religare

“O homem é um ser racional”, disse Aristóteles. Para Dooyeweerd (2010), essa é uma
verdade sobre o ser humano, mas uma verdade parcial. É mais correto dizer que o ser
humano é um ser essencialmente religioso; um ser essencialmente de vontade, mais do que
de razão.
O mundo é composto por uma variedade de sentidos. Esses diversos modos que
compõem a realidade estão numa relação uns com os outros e com Deus. Assim, quando
pensamos sobre o sentido das coisas, tal sentido aponta para uma referência, pois não é
autossuficiente, se dirigindo para além de si mesmo. Todos os aspectos da realidade criada
dependem uns dos outros; nenhum deles tem sentido em si mesmo. Não há um único ponto
neutro na realidade criada; não há um fato, substrato ou esfera que não seja relativo a um
outro fato, substrato ou esfera.
E isso acontece porque a realidade criada não é feita de uma substância
autoexistente; por mais que ela seja grandiosa, ela não é aquilo que “é, que foi e que sempre
será”. A ideia de que existe um aspecto da realidade que seja independente é a característica
essencial de toda divindade; todas as religiões tomam a divindade enquanto realidade
incondicional, não-dependente, que produz tudo mais que existe. E essas crenças a respeito
da divindade são fundamentadas na experiência, não podendo ser justificadas do mesmo
modo que as teorias. Nenhuma evidência ou argumento pode estabelecer uma ideia
particular de divindade como verdadeira sem assumir o que visa provar, pois todo
argumento e toda interpretação de evidência pressupõem alguma crença sobre a divindade.
Assim, Dooyeweerd (2010) nos ajuda a enxergar a raiz religiosa de todo pensamento, mesmo
daqueles que se colocam como neutros. E a raiz disso está no coração humano; é o coração
humano o grande responsável por pegar algum elemento da criação, seja o cosmo, seja os
afetos, seja qualquer outra coisa, uma única esfera da realidade e transformá-lo em um
ídolo teórico. Por isso, as escrituras aconselham que “sobre tudo o que se deve guardar,
guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida”. (Pv 4:23).
121
CRESCER Coração e o
Motivo-Base
Nesta aula você...

Aprendeu que o pensamento teórico nunca é neutro ou autônomo.


Entendeu como o coração é uma força motriz espiritual que impele cada pensador a
interpretar a realidade sob sua influência.

1
COSMOS: A PERSONAL VOYAGE. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2018.
Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Cosmos:_A_Personal_Voyage>. Acesso em: 06 jan. 2019.

CRESCER+

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a


pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010 (Capítulo 01
e 02).
122
COMPARTILHAR
Coração e o
Motivo-Base
Pense em outros exemplos a partir de matérias jornalísticas, séries de TV, filmes e livros, da
divulgação científica quando o naturalismo ou o pós-modernismo é confundido com
conhecimento “objetivo” e com a ciência, e compartilhe com seus colegas.

123
Cosmovisão e
a Academia aula 15
Olá!
Como os cristãos podem contribuir no projeto humano de entender a nós mesmos e o
mundo que nos cerca através do conhecimento acadêmico? É somente através do seu
testemunho pessoal? Ou eles podem fazer algo mais? Nesta aula você vai entender como
uma cosmovisão cristã pode contribuir na Academia. Você verá como os cristãos devem
pensar as diversas áreas do conhecimento a partir de uma visão cristã da realidade.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Entender por que os cristãos precisam demonstrar integridade, autonomia e


coragem na Academia;
Perceber a importância de se pensar as diversas disciplinas acadêmicas a partir de
uma cosmovisão cristã;
Identificar como os cristãos podem relacionar sua área particular com a cosmovisão
cristã.

Bons estudos!

124
CONECTAR
Cosmovisão e
a Academia
No dia 8 de abril de 1966 a Time publicou uma histórica reportagem de capa.
Completamente preta, exceto por três palavras em letras vermelhas bem chamativas, a
revista trazia a seguinte pergunta "Deus está morto?". A reportagem abordava três coisas:
primeiro, o crescente ateísmo entre os americanos na época; depois, o declínio da
religiosidade americana; por fim, a popularidade do movimento conhecido como a "morte
de Deus", então corrente na teologia americana que postulava que o conceito tradicional de
Deus tinha deixado de desempenhar um papel significativo na vida do homem moderno2.
Um ano depois da Time fazer essa provocativa
pergunta, foi publicado nos Estados Unidos um livro que foi
responsável por reacender o debate filosófico sobre a
existência de Deus nos círculos filosóficos anglo-americanos:
God and Other Minds: A Study of the Rational Justification of
Belief in God [Deus e Outras Mentes: Um Estudo sobre a
Justificação Racional da Crença em Deus], escrito por Alvin
Plantinga. Nesta obra, Plantinga demonstrou como os teístas
podiam falar sobre suas crenças com precisão conceitual,
rigor de argumentação, erudição técnica e defesa detalhada
da crença em Deus. Depois desse livro, seguiu-se uma
multidão de filósofos cristãos, todos comprometidos com a
cosmovisão cristã, com títulos de doutorado em
universidades prestigiadas, escrevendo em periódicos
acadêmicos no mais alto nível qualitativo da filosofia
analítica, participando de conferências profissionais e
publicando nas melhores editoras universitárias do mundo,
como a Oxford Press. Nomes como Richard Swinburne,
William Lane Craig, Peter van Inwagen, Robert Adams,
William Alston e Nicholas Wolterstorff passaram a mostrar a
plausibilidade da crença em Deus e a racionalidade das
principais crenças cristãs não apenas para a igreja, mas
também para a comunidade acadêmica mais ampla em
universidades como Oxford, Yale e Notre Dame.
O impacto desses filósofos cristãos foi tão significativo na filosofia anglo-americana
que, em 2001, um dos mais importantes filósofos naturalistas, Quentin Smith, da
Universidade de Western Michigan, lamentou o que ele chamou de "dessecularização da
academia que evoluiu na filosofia desde os fins da década de 1960" (SMITH, 2001, p. 3). No
artigo, ele chama a atenção sobre a passividade dos seus colegas naturalistas em face da
onda dos "teístas inteligentes e talentosos que estão entrando na academia atualmente". Ao
final do artigo, Smith conclui: "Deus não está 'morto' na academia; ele retornou à vida no
final da década de 1960 e agora está vivo e passa bem em sua última fortaleza acadêmica, os
departamentos de filosofia" (SMITH, 2001, p. 4).

PARA REFLEXÃO

Alvin Plantinga mostrou que é possível os cristãos trabalharem bem dentro de uma
cosmovisão cristã a ponto de inverterem a direção de uma disciplina acadêmica,
como a filosofia da religião. Esse é um bom exemplo do que os cristãos podem fazer
quando obedecem ao mandamento de amar a Deus com todo o seu entendimento.
125
CRESCER Cosmovisão e
a Academia
Cosmovisão cristã e a academia

Um dos campos da sociedade mais estratégicos e importantes para a fomentação


de uma cosmovisão cristã é a Academia. Como vimos em outras aulas, uma visão de mundo
cristã não diz respeito apenas a nossa vida espiritual, nem à igreja, mas abarca todas as
áreas da vida humana. Campos como pedagogia, medicina, história, letras, direito, filosofia,
biologia, psicologia são tão vitais para uma cosmovisão cristã quanto teologia. Nesta aula,
estudaremos alguns trechos de dois artigos do filósofo Alvin Plantinga: Sobre a erudição
acadêmica cristã e Conselho aos Filósofos Cristãos. Neles iremos perceber como os cristãos
universitários podem servir melhor a Deus e à sociedade a partir de uma cosmovisão cristã.
Geralmente, boa parte dos cristãos na universidade são altamente influenciados pela
cosmovisão dos seus colegas não-cristãos. Seja na história, nas artes, nas ciências sociais ou
na filosofia, os cristãos aderem com relativa facilidade ao conteúdo e às formas de proceder
e de pensar das cosmovisões naturalistas ou pós-modernistas, pois em todas essas
disciplinas existem visões de mundo concorrentes ao teísmo que influenciam a forma como
elas devem ser pensadas.
Pense no jornalismo: uma parte considerável dos acadêmicos deste campo de
estudo afirma que o conceito de verdade não existe; o que temos são construções sociais
sobre os fatos do cotidiano. Essa visão foi influenciada por uma cosmovisão pós-moderna
que defende que não é possível alcançar um mundo objetivo fora da nossa percepção e da
nossa linguagem. Pense agora em um cristão atuando no campo do jornalismo: ele será
tentado a abraçar uma hipótese sobre a natureza da realidade (‘a verdade não existe’, ‘a
realidade é socialmente construída’) que vai contra a forma como os cristãos enxergam a
realidade.

Em todas essas áreas há maneiras de se proceder, hipóteses


difundidas sobre a natureza da disciplina (por exemplo, hipóteses
sobre a natureza da ciência e seu lugar na nossa economia
intelectual), hipóteses sobre como a disciplina deve ser realizada
ou sobre o que é uma contribuição importante. Nós absorvemos
essas hipóteses, se não quando jovens, de qualquer forma
absorvemos ao trabalhar nas disciplinas. Em todas essas áreas
aprendemos como praticar nossas disciplinas sob a direção e
influência de nossos colegas. Mas em muitos casos essas hipóteses
e pressuposições não se conformam facilmente a uma forma cristã
ou teísta de enxergar o mundo. (PLANTINGA, 2018a, p. 2)

Isso não acontece apenas nas ciências humanas. Nas ciências naturais e exatas,
mesmo no que diz respeito a cursos como engenharia e ciências da computação, também há
formas de proceder e de pensar que vão contra uma cosmovisão cristã integral. No livro “A
Alma da Ciência: fé cristã e filosofia natural”, Nancy Pearcey e Charles Thaxton (2005)
mostram de forma detalhada como importantes debates na matemática, na física, na
química e na biologia tocam em pontos sensíveis de uma cosmovisão; e na maioria das
vezes, por não serem treinandos a pensar de forma cristã sobre o mundo, os teístas abraçam
conteúdos e formas de pensar nessas disciplinas que são incompatíveis com sua
cosmovisão.
Todas essas disciplinas – jornalismo, direito, matemática, biologia, sociologia,
história – partem de alguns pressupostos sobre o que é a realidade, o que é o conhecimento
126 (e a possibilidade de conhecer alguma coisa), o que é o ser humano, de que é constituído o
CRESCER
Cosmovisão e
a Academia
mundo que nos rodeia, entre outros. E isso acontece porque essas disciplinas estão
profundamente relacionadas com a natureza do objeto que estudam; ao estudar o que é a
vida, a biologia precisa partir de alguns pressupostos sobre o que é a realidade e o que é um
ser vivo; ao estudar métodos de educação, um pedagogo parte de pressupostos sobre o que
é o conhecimento e como obtê-lo. E esses são justamente os tópicos que dizem respeito a
uma cosmovisão.
Assim, um cristão que estuda matemática será confrontado com a seguinte
questão: a matemática reflete uma visão de mundo estruturada e ordenada? Ou ela é um
jogo de linguagem que oferece consistência formal através de símbolos? O primeiro tópico
reflete a visão cristã sobre a realidade: como o mundo foi criado por um Deus racional e
ordenado e como o mesmo Deus é responsável pela nossa mente, a matemática é a
linguagem com que Deus estruturou o universo. Por isso ela é mais que coerência interna:
ela reflete a forma como o mundo é; na segunda visão, a matemática torna-se mero
formalismo, um jogo teórico interno, que diz respeito à coerência de um sistema, teoria ou
linguagem e não à verdade.
O que devem os cristãos fazer neste caso? De acordo com Plantinga, devem
demonstrar integridade e autonomia. Se o jornalismo não deixa espaço para o conceito de
verdade, cabe à comunidade cristã desenvolver teorias sobre como a verdade é um bem
valioso para os meios de comunicação e para a sociedade; se a pedagogia contemporânea
coloca ênfase no subjetivo pós-moderno, na construção social (“o conhecimento não é
transmitido, mas construído”) e nos afetos, então devem os pedagogos cristãos
desenvolver alternativas que levem em consideração a cosmovisão cristã – alternativas que
partam do pressuposto de que os seres humanos são criados à imagem e semelhança de
Deus e que, por isso, o conhecimento pode ser transmitido e não simplesmente construído.
Assim, nas diversas áreas do conhecimento os cristãos precisam saber que eles possuem
seus próprios compromissos fundamentais, projetos e preocupações que estão integradas
a uma cosmovisão cristã.

Primeiro, filósofos e intelectuais cristãos devem demonstrar mais


autonomia – mais independência do resto do mundo filosófico.
Segundo, filósofos cristãos devem mostrar integridade –
integridade no sentido original da palavra, ser um inteiro.
Talvez ‘integralidade’ fosse a melhor palavra aqui. E, necessário
aos dois, há um terceiro: coragem cristã, ou ousadia, ou força,
ou talvez autoconfiança cristã. Nós filósofos cristãos devemos
mostrar mais fé, mais confiança no Senhor. Nós devemos vestir
toda armadura de Deus. (PLANTINGA, 2018a, p. 3)

Existe uma outra questão importante aqui: suponha um cristão que estuda história;
no decorrer do curso, ele se encanta pelas ideias do pensador francês Michel Foucault.
Assim, ele começa a defender que qualquer história, com exceção da própria, é opressiva
pois ela será sempre socialmente construída em função de conceder a quem a conta poder
sobre seus ouvintes. “A verdade não existe fora do poder ou sem poder” (FOUCAULT, 2009, p.
10). Graças aos grupos de estudo na universidade, pode ser natural para ele se envolver com
ideias e projetos relacionados a Foucault.
À medida que o tempo passa, ele pode não notar tensões entre a crença cristã sobre
o conceito de verdade e a narrativa de Foucault sobre a verdade como mero jogo de poder;
ou ele pode notar tais discrepâncias e tentar harmonizá-las. Assim, ele irá procurar entender
e reinterpretar a crença cristã de modo a se tornar aceitável ao ponto de vista foucaultiano. 127
CRESCER Cosmovisão e
a Academia
O que se segue dessa tentativa? Para Plantinga, o resultado de tentar enxertar o
pensamento cristão em uma cosmovisão totalmente contrária ao cristianismo “será no
máximo uma bagunça nada íntegra e, no pior, comprometerá, distorcerá ou trivializará
seriamente as alegações do teísmo cristão. O que é preciso é mais inteireza, mais
integralidade” (PLANTINGA, 2018a, p. 4).
Além disso, os acadêmicos cristãos têm seus próprios projetos e interesses sobre os
quais pensar – projetos e interesses definidos pelas crenças da comunidade cristã. É claro
que ele não precisará estar circunscrito apenas ao que a comunidade cristã vem pensando
ou colocando como interessante; ele pode pensar sobre tópicos correntes no mundo
acadêmico mais amplo; ele pode ouvir, debater e entender com a comunidade mais ampla
sobre essas questões. No entanto, quando ele for pensar sobre elas, o cristão as pensará à
sua própria maneira, ou melhor, à maneira cristã de pensar, que será totalmente diferente
da forma com que seus pares pensarão essas mesmas questões.

O filósofo cristão tem um direito (eu diria um dever) de trabalhar


nos seus próprios projetos – projetos definidos pelas crenças da
comunidade cristã da qual ele é parte. A comunidade filosófica
cristã deve trabalhar as respostas às suas questões; e tanto as
questões como a maneira apropriada de desenvolver as respostas
pode pressupor as crenças rejeitadas pelos principais centros
filosóficos. Mas o cristão está procedendo muito apropriadamente
ao começar a partir destas crenças, mesmo se forem rejeitadas.
Ele não está sob nenhuma obrigação de confinar seus projetos
de pesquisa àqueles exercidos naqueles centros, ou de exercer
seus projetos sob as hipóteses que prevalecem lá.
(PLANTINGA, 2018a, p. 7)

Mas não será isso estranho? E se a comunidade pedagógica não aceitar que um
cristão pense a partir de uma cosmovisão cristã sobre esse assunto ou que explore e
desenvolva as implicações do teísmo cristão para a pedagogia?
De acordo com Plantinga, o cristão deve desenvolver autonomia, coragem e
maturidade espiritual e intelectual suficientes para continuar. E ele deve fazer isso
independentemente de poder convencer a maioria dos seus pares céticos de que há de fato
um Deus, de que o cristianismo é verdadeiro ou de que é racional acreditar em conceitos
como o de “verdade”. Ele deve sistematizar, aprofundar e clarificar o pensamento cristão
sobre sua área específica, independentemente da posição da comunidade acadêmica mais
ampla. É claro que ele não pode ignorar a comunidade não-cristã: os cristãos aprenderão
muito discutindo com eles. Na contemporaneidade, o conhecimento é descoberto de forma
comunitária, gerado por comunidades de filósofos, pedagogos, cientistas, psicólogos,
sociólogos, entre outros. Seria ingenuidade e arrogância pensar que se deve dar ouvido
apenas aos pensadores cristãos. Isso seria ignorar o ensino bíblico da graça comum. Os
cristãos precisam estar envolvidos com a comunidade mais ampla da sua área profissional a
fim de aprender e também de contribuir. Mas, em última instância, a maneira que eles
utilizarão para pensar essas questões partirá de uma cosmovisão cristã.

Considere o amor [...]. Quando um psicólogo cristão se envolve com


esse fenômeno, pode ele apropriadamente partir daquilo que ele
sabe como cristão – que, por exemplo, nós fomos criados à imagem
de Deus, que Deus é amor, que o nosso amor é um reflexo do amor
dele? Ou como deveríamos entender o sentimento de beleza que
128
CRESCER
Cosmovisão e
a Academia
beleza que nós seres humanos compartilhamos? Nós exultamos
nos maravilhosos e luminosos dias do outono alguns meses atrás;
Kathleen Battles ou um concerto de Mozart podem trazer lágrimas
aos nossos olhos. Como deveríamos pensar sobre a sensibilidade à
beleza que nós possuímos? Como deveríamos entender esse
fenômeno? Sem dúvida alguns nos dirão que isso surgiu, de alguma
forma, pela mutação genética; sua importância deve ser vista no
fato de que isso foi, de alguma forma, adaptativo, contribuiu à
aptidão, ou foi de alguma forma relacionado a algo que foi
adaptativo. Mas se presumirmos o conhecimento explanatório
cristão, teremos uma opinião totalmente diferente. O que
precisamos aqui é de erudição que considera o que sabemos, e
assim considera o que sabemos como cristãos. O mesmo vale para
um psicólogo cristão que busca entender a agressão e o ódio em
todas suas formas: ele deve considerar a realidade do pecado
(PLANTINGA, 2018b, p. 14)

Implicações de uma cosmovisão na academia

Existem três cosmovisões que lutam pela supremacia no mundo ocidental, pela
forma como eles olham a realidade e o lugar do ser humano dentro dele: o teísmo cristão, o
naturalismo e o pós-modernismo. O naturalismo é mais expressivo nas ciências exatas e
naturais; o pós-modernismo está mais presente nas ciências humanas e nas ciências sociais
aplicadas. Ambas procuram entender importantes questões de áreas como comunicação,
direito, biologia, química e serviços sociais dentro de suas respectivas perspectivas.
Mas, como vimos, os cristãos precisam começar a se questionar por que deveriam
se sujeitar a tentar entender tópicos importantes sobre educação, psicologia, linguística e
jornalismo de uma perspectiva naturalista ou pós-moderna.
Os cristãos devem responder às questões que surgem nas disciplinas
interpretativas e teóricas a partir de coisas importantes que eles sabem e que são cruciais:
que são a imagem e semelhança de Deus; que estão desordenados, juntamente com o
restante do mundo, naquilo que chamam de queda; mas que por meio da vida, morte e
ressurreição de Jesus são colocados novamente em harmonia com Deus. Esses pontos não
são crenças banais; são partes crucialmente relevantes da realidade e essenciais para que
possam chegar a um entendimento apropriado do cristianismo. Por isso, os cristãos
deveriam exercer essas disciplinas de uma perspectiva especificamente cristã.

129
CRESCER Cosmovisão e
a Academia
Nesta aula você...

Entendeu por que os cristãos precisam demonstrar integridade, autonomia e


coragem na Academia.
Percebeu a importância de se pensar as diversas disciplinas acadêmicas a partir de
uma cosmovisão cristã, identificando como os cristãos podem relacionar sua área
particular com a cosmovisão cristã.

2
Time. Is God Dead? Nova York, 08 abr 1966. Disponível em:
<http://content.time.com/time/magazine/article/0,9171,835309-2,00.html>. Acesso em 09 jan 2018.

CRESCER+

PLANTINGA, Alvin. Conselho aos Filósofos Cristãos. Diálogo & Antítese: textos
fundamentais em religião e ciências humanas. São Paulo: ABC2-H, nov 2018.
Disponível em:
<http://www.cristaosnaciencia.org.br/content/uploads/Conselho-aos-Fil%C3%B3s
ofos-Crist%C3%A3os-Alvin-Plantinga.pdf>. Acesso em: 07 jan. 2019.

______. Sobre a erudição acadêmica cristã. Diálogo & Antítese: textos fundamentais
em religião e ciências humanas. São Paulo: ABC2-H, nov 2018. Disponível em:
<http://www.cristaosnaciencia.org.br/content/uploads/Sobre-a-erudicao-academi
ca-crista.pdf>. Acesso em: 07 jan. 2019.

130
COMPARTILHAR
Cosmovisão e
a Academia
Escolha uma área acadêmica específica e redija um pequeno texto sobre como uma
cosmovisão cristã pode influenciar aquela área do conhecimento a partir da grade narrativa
cristã de criação, queda e redenção.

131
Cosmovisão Cristã e
a Civilização Ocidental aula 16
Olá!
O que acontece quando a cosmovisão cristã é colocada em prática na sociedade? Muitas
coisas benéficas! No Ocidente, boa parte dos principais avanços que valorizamos são
oriundas de uma cosmovisão cristã: o progresso científico, médico e tecnológico; a noção de
dignidade humana e o fim da escravidão; a democratização da educação e o conceito de
Universidade. Nesta aula, você vai ver em como a cosmovisão cristã moldou várias facetas
importantes da civilização ocidental.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Refletir sobre as implicações da cosmovisão cristã para a sociedade;


Analisar as críticas que são feitas à religião como sinônimo de atraso, declínio e
violência;
Identificar as contribuições filosóficas, científicas, educacionais e sociais advindas
da cosmovisão cristã para o Ocidente.

Bons estudos!

132
CONECTAR
Cosmovisão Cristã e
a Civilização Ocidental
Imagine é uma canção coescrita e interpretada pelo músico inglês John Lennon em
1971. A música se tornou a mais vendida de sua carreira solo. Nela, o eu lírico encoraja o
ouvinte a imaginar um mundo em paz, sem as barreiras de fronteiras ou as divisões de
religião e nacionalidade, considerando a possibilidade de que toda a humanidade viveria
desapegada de posses materiais.

Imagine não haver o paraíso Mas eu não sou o único


É fácil se você tentar Espero que um dia você junte-se a nós
Nenhum Inferno abaixo de nós E o mundo será como um só
Acima de nós, só o céu Imagine que não há posses
Imagine todas as pessoas Eu me pergunto se você pode
Vivendo o presente Sem a necessidade de ganância ou fome
Imagine que não houvesse nenhum país Uma irmandade dos homens
Não é difícil imaginar Imagine todas as pessoas
Nenhum motivo para matar ou morrer Partilhando todo o mundo
E nem religião, também Você pode dizer que eu sou um sonhador
Imagine todas as pessoas Mas eu não sou o único
Vivendo a vida em paz Espero que um dia você junte-se a nós
Você pode dizer que eu sou um sonhador E o mundo viverá como um só.

A música é uma espécie de hino humanista da década de 1970. Lennon apela a uma
irmandade e harmonia global, que estariam ao nosso alcance. Mas como? Como as pessoas
podem chegar à paz mundial? De acordo com o eu lírico, através da rejeição aos mecanismos
de controle social que restringem o potencial humano, isto é, através da eliminação
completa da ordem social moderna: as fronteiras geopolíticas, a religião organizada e a
classe econômica.
A música apela totalmente para uma cosmovisão secular. Apesar de ser claramente
uma utopia, Lennon pede para imaginarmos um paraíso na terra, onde os seres humanos
vivem somente o presente, sem esperança de um paraíso religioso ou medo de um inferno.
Para o autor, “acima de nós, só o céu”.
Na música, a religião é ligada a uma das causas de divisão entre as pessoas, se
tornando um dos motivos que impedem a paz mundial: “Imagine que não houvesse nenhum
país / Não é difícil imaginar / Nenhum motivo para matar ou morrer / E nem religião,
também / Imagine todas as pessoas / Vivendo a vida em paz”. Religiões e crenças são vistas
como aspectos negativos, algo que vai contra a irmandade dos homens e a partilha das
coisas boas do mundo. Richard Dawkins no livro Deus, um delírio pede para que as pessoas
imaginem um mundo sem religião; como é possível perceber pelo trecho, a religião está
ligada a atrocidades e violência.

Imagine, junto com John Lennon, um mundo sem religião. Imagine


o mundo sem ataques suicidas, sem o 11/9, sem o 7/7 londrino, sem
as Cruzadas, sem caça às bruxas, sem a Conspiração da Pólvora,
sem a partição da Índia, sem as guerras entre israelenses e
palestinos, sem massacres sérvios/croatas/muçulmanos, sem a
perseguição de judeus como ‘assassinos de Cristo’, sem os
‘problemas’ da Irlanda do Norte, sem ‘assassinatos em nome da
honra’, sem evangélicos televisivos de terno brilhante e cabelo
bufante tirando dinheiro dos ingênuos (‘Deus quer que você doe até
doer’). Imagine o mundo sem o Talibã para explodir estátuas
antigas, sem decapitações públicas de blasfemos, sem o açoite da
pele feminina pelo crime de ter se mostrado em um centímetro.
(DAWKINS, 2007, p. 24) 133
CRESCER Cosmovisão Cristã e
a Civilização Ocidental
PARA REFLEXÃO

A religião geralmente é vista pela cultura popular e pela sociedade ocidental como
algo negativo, responsável por muitas injustiças sociais. A que, você acha, se deve
essa visão negativa sobre a religião? Reflita sobre isso e escreva um pequeno texto
sobre o assunto. Depois, compartilhe com seus colegas.

Introdução

Existe uma relação muito próxima entre o cristianismo e a civilização ocidental.


É possível dizer que o impacto que o cristianismo exerceu no mundo está intrinsicamente
entrelaçado com a história e a formação da sociedade ocidental. Nos últimos dois mil anos,
a igreja cristã tem sido uma importante fonte de serviços sociais no mundo, fornecendo
educação e assistência médica; trazendo inspiração para arte, cultura e filosofia; e sendo
influente na política e nas instituições sociais.
Os cristãos afetaram a ética e a moralidade ocidental de maneira significativa. No
Ocidente, festivais como a Páscoa e o Natal são marcados como feriados; o calendário
gregoriano foi adotado internacionalmente como o calendário civil; o próprio calendário em
si é dividido a partir da data do nascimento de Jesus Cristo. Mas o impacto do cristianismo no
ocidente vai além da moral e das datas comemorativas. Nesta aula, estudaremos algumas
das principais influências que estão descritas na obra O livro que fez o seu mundo: como a
Bíblia criou a alma da civilização ocidental, do intelectual indiano Vishal Mangalwadi.

O conceito de dignidade humana

Antes do advento do cristianismo, o infanticídio era prática comum nas antigas


Grécia e Roma. Além disso, nem toda vida humana era considerada inviolável e digna de
proteção. Escravos, “bárbaros”, por exemplo, não tinham pleno direito à vida e eram
considerados inferiores por natureza, assim como as mulheres; era comum a prática de
sacrifícios humanos; nos coliseus, o combate de gladiadores até a morte era visto como algo
aceitável; crianças deformadas eram condenadas à morte ou a uma vida de miséria.
Aos poucos, a cosmovisão cristã derrubou todas essas ideias. Não existem seres
humanos inferiores ou superiores, pois todos os seres humanos foram criados à imagem e
semelhança de Deus. Essa foi uma das ideias-chaves para o fim da escravidão: “os cristãos
começaram a atuar em prol da abolição não por uma compreensão disseminada dos direitos
humanos, mas porque eles viam como violação da vontade de Deus” (KELLER, 2015, p. 91).
Ativistas cristãos como William Wilberforce e John Woolman dedicaram toda a vida para
abolir a escravidão a partir da percepção de que ela é uma afronta à doutrina da imagem de
Deus no ser humano. Os abolicionistas travaram duras batalhas na Grã-Bretanha e nos
Estados Unidos para libertar os escravos. Havia líderes eclesiásticos que eram a favor da
escravidão, mas os ativistas cristãos que eram contra tal prática conseguiram vencer e
abolir a escravidão.
Os países que aboliram a escravidão não ganharam nada com ela, pelo contrário: a
Inglaterra abolicionista, por exemplo, perdeu uma soma assombrosa de dinheiro. De acordo
134 com Keller (2015), um historiador chamou de “econicídio voluntário” os custos da abolição
CRESCER
Cosmovisão Cristã e
a Civilização Ocidental
para o governo inglês. Sendo assim, por que ela conseguiu ser abolida se os custos para o
governo inglês foram tão onerosos? “A escravidão foi abolida porque era errada, e os
cristãos foram os primeiros a dizê-lo. O aparelho de autocorreção do cristianismo, sua crítica
aos atos de injustiça apoiados pela religião, havia se imposto”. (KELLER, 205, p. 92). Abaixo,
segue uma das primeiras críticas no ocidente à instituição da escravidão feita por Gregório
de Nissa, no séc. IV:

'Eu tenho escravos e escravas.' Diga-me: por qual preço? O que você
encontrou na existência que vale tanto quanto a natureza humana?
Que preço você colocou na racionalidade? Quantos obols [moeda
da época] você considerou o equivalente à semelhança de Deus?
Quanto dinheiro você conseguiu por vender aquilo é moldado por
Deus? Deus disse: ‘façamos o homem à nossa imagem e
semelhança’. Se alguém é à semelhança de Deus, e domina sobre
toda a terra, e foi concedido autoridade sobre tudo na terra por
Deus, me diga: quem é o seu comprador? Quem é o seu vendedor?
Somente a Deus pertence este poder; ou melhor, nem mesmo ao
próprio Deus pois os seus presentes graciosos, Ele mesmo diz, são
irrevogáveis! Deus, portanto, não reduziria a raça humana à
escravidão, pois Ele próprio, quando fomos escravizados pelo
pecado, nos lembrou espontaneamente da nossa liberdade. Mas se
Deus não escraviza o que é livre, quem é ele que coloca seu próprio
poder acima do de Deus? [...]. (GREGÓRIO DE NISSA, 1993, p. 74)

Outro exemplo de como os cristãos foram importantes diz respeito à luta pelos
Direitos Civis nos Estados Unidos. Líderes negros se apoiaram na crença bíblica da
pecaminosidade da natureza humana e nas denúncias de injustiça que liam nos profetas
hebreus a fim de combater o racismo entre os americanos. Eles não apelaram a algum tipo
de ética laica abstrata, mas à lei de Deus a fim de propor desobediência civil às leis de
segregação racial dos Estados Unidos. Martin Luther King é um exemplo paradigmático
disso: em seus sermões e na sua “Carta da Prisão de Birmingham”, ele invoca a Lei moral de
Deus e as Escrituras Sagradas a fim de suscitar os cristãos para que lutem contra o racismo
nos Estados Unidos. Apesar de ser um pouco longo, vale a pena ler o argumento de Martin
Luther King contra as leis segregacionistas americanas:

Vocês manifestam uma boa dose de ansiedade quanto à nossa


disposição de violar as leis. Essa é certamente uma preocupação
legítima. Como nós exortamos tão ativamente as pessoas a
obedecerem à decisão de 1954 da Suprema Corte que baniu a
segregação em escolas públicas, à primeira vista pode parecer um
tanto paradoxal que nós conscientemente violemos leis. Também
se poderia perguntar: ‘Como vocês podem advogar a violação de
certas leis e a obediência a outras?’ A resposta está no fato de que
existem dois tipos de leis: as justas e as injustas. Eu seria o primeiro
a advogar a obediência a leis justas. Tem-se uma responsabilidade
não só legal como também moral de obedecer a leis justas. De
modo contrário, tem-se uma responsabilidade moral de
desobedecer a leis injustas. Concordaria com Santo Agostinho em
que ‘uma lei injusta simplesmente não é lei’. Agora, qual é a
diferença entre as duas? Como se pode determinar se uma lei é
justa ou injusta? Uma lei justa é um código produzido pelo homem
que se ajusta à lei moral ou à lei de Deus. Uma lei injusta é um
código que está em desacordo com a lei moral. Para colocar nos
termos de Santo Tomás de Aquino: uma lei injusta é uma lei
135
CRESCER Cosmovisão Cristã e
a Civilização Ocidental
humana que não está radicada na lei eterna e na lei natural.
Qualquer lei que eleve a personalidade humana é justa. Qualquer
lei que degrade a personalidade humana é injusta. Todos os
estatutos segregacionistas são injustos porque a segregação
desfigura a alma e danifica a personalidade. Ela dá ao segregador
uma falsa impressão de superioridade e aos segregados, uma falsa
impressão de inferioridade. (LUTHER KING, 1963)

Ciência, Universidades e Educação

A universidade foi uma instituição inventada e estabelecida por cristãos. Como o ser
humano é alguém criado à imagem e semelhança de Deus, e como faz parte dessa imagem
a racionalidade, os cristãos valorizavam (e ainda devem valorizar) o conhecimento e a
educação. A universidade de Havard é um exemplo: os puritanos fundaram Havard menos
de dez anos depois de terem chegado aos Estados Unidos, antes de iniciarem qualquer tipo
de indústria. O estatuto da universidade de 1646 afirmava que o principal lema da escola
deveria ser “Conhecer a Deus e a Jesus Cristo, a vida eterna”. Esse objetivo foi colocado como
lema da escola em 1692: Veritas Christo et Ecclesiae (Verdade para Cristo e a igreja). Outras
importantes instituições educacionais de excelência, como Oxford, Cambridge e Princeton
também foram fundadas por cristãos.
A cosmovisão cristã também foi importante para a educação: João Amós Comênio
(1592 – 1670) é considerado por muitos o pai da educação moderna. Ele escreveu mais de 90
livros sobre a educação “demonstrando sua filosofia educacional em vários países,
inspirando o nascimento da Real Sociedade de Ciências na Inglaterra e ajudando a organizar
a primeira universidade moderna em Halle, Alemanha” (MANGALWADI, 2012, p. 253). Para
Comênio, a educação era importante porque ela ajudava na criação de um novo mundo,
sendo um instrumento para formar novamente a imagem de Deus no ser humano caído e
desfigurado. A Bíblia sempre foi tida como um importante instrumento educacional. De
acordo com Alister McGrath (2012), Martinho Lutero reconheceu o potencial do sistema de
escolas públicas na Alemanha para instruir as crianças nas Escrituras Sagradas.

Nem o colonialismo nem o comércio disseminaram a educação


moderna ao redor do mundo. Soldados e comerciantes não
educam. A educação foi uma empreitada missionária cristã. Foi
parte integral das missões cristãs, porque a educação moderna é
um fruto da Bíblia. A Reforma bíblica, nascida em universidades
europeias, tirou a educação dos mosteiros e a disseminou por todo
o mundo. (MANGALWADI, 2012, p. 231)

Por fim, observa-se muitas vezes que o surgimento das ciências naturais está
especificamente ligado ao contexto intelectual cristão da Europa ocidental. E por que isso?
Por que foi na Europa Medieval que surgiu a ciência moderna, bem como o método
científico, e não em outros lugares tecnologicamente mais desenvolvidos da época, como a
China ou os países árabes?
De acordo com vários historiadores e cientistas que estudam as raízes da ciência,
como Alfred North Whitehead, Michael Foster, Peter Harrison e Alister McGrath, foi a Europa
Cristianizada que se tornou o berço da ciência moderna. “Pode-se montar um bom caso
argumentando que a doutrina cristã da criação afirma que o universo é regular e ordenado
136 e que o estudo da natureza é uma forma indireta de reconhecer e honrar a sabedoria divina,
CRESCER
Cosmovisão Cristã e
a Civilização Ocidental
conforme percebida na ordem das coisas” (MGRATH, 2012, p. 368).
A investigação científica depende de alguns pressupostos acerca do mundo que
foram concebidos pela cosmovisão cristã: o de que a natureza é real e de grande valor,
sendo portanto objeto digno de estudo; que o mundo não é parte de uma divindade, nem é
deificada, mas é simplesmente algo criado; que o universo é fruto de um Deus racional que
criou um mundo ordenado e, por isso, podemos conhecer as suas regularidades; que Deus
também governa o mundo de tal forma que este exibe essas regularidades e constâncias;
que a estrutura do universo é conforme Deus quer que ela seja; que há padrões físicos,
químicos e biológicos presentes na criação de Deus; e que o estudo da natureza é feito para
a Glória de Deus e para o benefício humano. Não por acaso os cientistas que deram origem a
revolução científica, como Nicolas Copérnico, Galileu Galilei, Johannes Kepler, Francis Bacon
e Isaac Newton eram todos cristãos.

Senhorio de Cristo

Nesta aula você viu importantes contribuições do cristianismo para a civilização


ocidental. É claro que os cristãos não deram apenas contribuições positivas: há relatos de
cristãos que eram a favor da escravidão e das leis injustas dos Estados Unidos; há, ainda
hoje, cristãos que não valorizam o conhecimento e a racionalidade; existem cristãos
preconceituosos e que não colocam o ensino cristão em prática.
No entanto, essas coisas não partem de uma cosmovisão cristã, mas de uma visão
deformada do cristianismo. Se quisermos abraçar uma cosmovisão formada a partir do
drama das Escrituras, devemos nos submeter ao ensino de que somos feitos à imagem e
semelhança de Deus; de que a vida da igreja não se resume a ser ‘fazedora de almas’, mas de
redimir a imagem de Deus no homem a fim de “trabalhar com seres humanos integrais, que
receberão seus corpos no fim dos tempos, à semelhança do modelo do Messias” (WRIGHT,
2012b, p. 162); de que os cristãos devem colocar em prática sua cosmovisão a fim de
beneficiar sua família, escola, empresa, cidade, bairro e país.
Quando a cosmovisão cristã é verdadeiramente colocada em prática, os cristãos
podem funcionar de fato como sal da terra e luz do mundo. Foi assim com uma civilização
ocidental, quando a igreja cristã se tornou uma importante fonte de serviços sociais no
mundo, auxiliando o órfão, o deficiente e a viúva; fornecendo educação e assistência
médica; protegendo o oprimido e o marginalizado; desenvolvendo a ciência e o
conhecimento.

137
CRESCER Cosmovisão Cristã e
a Civilização Ocidental
Nesta aula você...

Refletiu sobre as implicações da cosmovisão cristã para a sociedade, analisando


criticamente as críticas que são feitas à religião como sinônimo de atraso, declínio e
violência.
Identificou as contribuições filosóficas, científicas, educacionais e sociais advindas
da cosmovisão cristã para o Ocidente.

CRESCER+

KELLER, Timothy. A fé na era do ceticismo: como a razão explica Deus. São Paulo:
Vida Nova, 2015 (Capítulo 04).

MANGALWADI, Vishal. O livro que fez o seu mundo: como a Bíblia criou a alma da
civilização ocidental. São Paulo: Vida, 2012.

138
COMPARTILHAR
Cosmovisão Cristã e
a Civilização Ocidental
Faça uma breve pesquisa de outras contribuições importantes do cristianismo para o
Ocidente a partir de uma cosmovisão cristã e compartilhe no nosso fórum.

139
Críticas ao conceito
de Cosmovisão aula 17
Olá!
Apesar da ampla aceitação do conceito de cosmovisão dentro da tradição reformada, a
abordagem promovida pelo termo não deixou de ter críticos. Nesta aula, iremos examinar as
cinco principais objeções ao conceito de cosmovisão.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Entender as críticas ao conceito de cosmovisão;


Analisar a pertinência dessas críticas para a relação entre cosmovisão e evangelho;
Refletir sobre as objeções trazidas pelos críticos.

Bons estudos!

140
CONECTAR
Críticas ao conceito
de Cosmovisão
No dia 15 de janeiro de 2009 o Voo 1549 que iria de
Nova Iorque para Charlotte, na Carolina do Norte,
protagonizou uma das histórias mais heroicas da aviação
mundial. Dois minutos depois da decolagem, enquanto
ganhava altitude, o Airbus A320 atingiu um grupo de
gansos canadenses, o que resultou numa imediata perda
de potência de ambos os motores: ao mesmo tempo, as
duas turbinas sofreram danos graves e perderam força.
Quando isso aconteceu, o avião já seguia para o norte e
sobrevoava o Bronx, uma das áreas de maior densidade
populacional de toda Nova York.
Para salvar a vida não apenas dos 150 passageiros
e cinco tripulantes, mas também de vários nova yorkinos,
o piloto Chelsey B. "Sully" Sullenberger (foto) e seu
copiloto tiveram que tomar decisões importantíssimas em
pouquíssimo tempo e no mesmo instante. Em questão de
segundos, eles perceberam que mesmo com dois
pequenos aeroportos a uma distância visível, eles não
conseguiriam chegar lá; seria possível até tentar, mas eles
corriam o perigo de cair em uma área residencial
densamente povoada. Em seguida, havia próxima uma
autoestrada a New Jersey Turnpike, mas ela era muito
movimentada e poderia colocar em perigo os passageiros,
carros e motoristas na estrada.
Sendo assim, a única opção seria o Rio Hudson. O
problema era que eles teriam que fazer um pouso forçado
dentro d’água e isso era perigoso: um pequeno erro (por
exemplo, bater com o nariz ou com uma das asas do avião
na água), o avião giraria no ar, se despedaçaria e afundaria.
Mas eles conseguiram. Em menos de dois
minutos, Chelsey Sullenberger conseguiu fazer a dificílima
tarefa de pousar um avião com 155 pessoas dentro d´água, de forma que todos
sobreviveram. Seis minutos após decolar, o avião pousou no rio Hudson intacto, perto do
Intrepid Sea-Air-Space Museum, no centro de Manhattan. O governador do estado de Nova
York na época, David Peterson, afirmou que “o pouso de avião no rio foi um milagre”; o
prefeito da cidade, Michael Bloomberg, declarou: “aparentemente ele fez um trabalho de
mestre ao pousar no rio e garantir que todos saíssem do avião” , Por causa de sua extrema
agilidade e da experiência, Chelsey Sullenberger conseguiu salvar centenas de vidas. Ele foi
várias vezes condecorado; sua história resultou em várias entrevistas, documentário e até
em um filme protagonizado por Tom Hanks, chamado Sully.

PARA REFLEXÃO

Pense na habilidade de Chelsey Sullenberger para, em questões de segundos, tomar


decisões extremamente inteligentes a fim de salvar a vida de 155 pessoas. Como
você pensa que Sullenberger conseguiu essa proeza? Comente com seus colegas.
141
CRESCER Críticas ao conceito
de Cosmovisão
Introdução

Como vimos, o conceito de cosmovisão cristã é muito importante para que o


evangelho possa ser entendido do modo mais abrangente possível, para todas as áreas da
vida, não dizendo respeito apenas a nossa vida religiosa, mas à existência como um todo; a
partir do conceito de cosmovisão, é possível aplicar o evangelho às várias esferas da vida,
seja na sociedade, na economia, no direito, nas ciências naturais, entre outros. No entanto,
alguns pensadores levantaram algumas críticas a essa concepção, questionando a utilidade
do conceito de cosmovisão para o evangelho. Nesta aula, vamos examinar alguma dessas
objeções apontadas por Michael Goheen e Craig Bartholomew (2016, p. 42-52), analisando a
resposta que os autores deram.

Objeção 01: “a abordagem de cosmovisão intelectualiza o evangelho.”

A primeira objeção é que a abordagem da cosmovisão intelectualiza o evangelho.


Afirma-se que há um perigo excessivo em fazer com que o cristianismo se adapte à
“modernidade”, que idolatra a razão e o intelecto humano, afirmando que este é o único
caminho seguro para chegar à verdade. Com essa agenda, os cristãos tendem a responder
“a razão de sua fé” a partir de uma noção que é por demais racionalista. Mas isso seria aderir
à agenda modernista, bem como às suas regras e sua ênfase na racionalidade. A cosmovisão
tende a torna a fé cristã em um mero sistema intelectual.
Embora reconheçam os perigos da ênfase excessiva do modernismo na razão,
Goheen e Bartholomew (2016, p. 48) afirmam que “’pensar de modo cristão’ é uma parte
vital da cosmovisão e nossa cosmovisão está profundamente vinculada a nossa vida em
Cristo”. A cosmovisão cristã não é apenas um empreendimento intelectual, mas está ligada
à experiência salvífica com Jesus Cristo. Como vimos desde a primeira aula, os elementos
afetivos do relacionamento entre o coração humano e a realidade estão no centro de uma
cosmovisão.

Uma cosmovisão verdadeiramente bíblica está centrada em


um relacionamento existencial com Cristo; ela estará relacionada
tanto com o cultivo desse relacionamento quanto com a
reflexão crítica e rigorosa que surge desse relacionamento.
(GOHEEN E BARTHOLOMEW, 2016, p. 48)

Como vários autores que estudam o conceito, como David Naugle (2017), o ponto de
partida de uma cosmovisão genuinamente cristã é a revelação de Deus, não a razão
humana; e isso significa dizer que o desenvolvimento do conceito de cosmovisão implica
que, apesar de ser uma observação importante contra alguns excessos, não é válida a
objeção de que uma cosmovisão cristã é dependente apenas do pensamento humano para
ser válida. Geralmente, as atitudes de hostilidades com respeito à ideia de cosmovisão como
um empreendimento puramente intelectual estão ligadas à definição do termo combatida
pelo autor.
Mas quando o termo cosmovisão é corretamente entendido, e quando ele toma o evangelho
como ponto de partida, levando a sério o ensinamento bíblico sobre a dinâmica de criação,
queda e redenção, essas objeções se tornam esvaziadas.
142
CRESCER
Críticas ao conceito
de Cosmovisão
Objeção 02: “a abordagem de cosmovisão relativiza o evangelho.”

Como vimos na nossa aula sobre a História do Conceito de Cosmovisão, Wilhelm


Dilthey deu ênfase ao caráter subjetivo da cosmovisão: tudo que sabemos é determinado
por essas categorias pré-teóricas que usamos para saber algumas coisas. As cosmovisões,
assim, irão depender do tempo, cultura e lugar, pois cada interpretação ocorre dentro de
uma compreensão maior do mundo, que é historicamente condicionada. Assim, para
Dilthey, as cosmovisões eram perspectivas historicamente produzidas sobre a realidade.
Com o historicismo e o relativismo do século XIX aprofundados na contemporaneidade com
o surgimento da pós-modernidade, a diversidade de cosmovisões presentes no Ocidente
pode fazer com que os cristãos sejam tentados a adotar uma atitude pluralista e relativista
com respeito ao evangelho, pois parece impossível julgar entre afirmações de cosmovisão
concorrentes.
Ainda que realmente tenha esse histórico, o conceito de cosmovisão foi modificado
ao longo do tempo. O foco do conceito de cosmovisão cristã, por exemplo, está no mundo
que deve ser compreendido, na realidade e não na natureza da compreensão em si. Autores
como James Sire e Ronald Nash não estão tão interessados nas categorias mentais que
usamos para compreender o mundo, mas no caráter do mundo em si. Embora esses autores
também enfatizem o caráter subjetivo de uma cosmovisão, sua base última está na
realidade, não na compreensão.
De acordo com Goheen e Bartholomew (2016), é preciso ressaltar que o evangelho é
a verdadeira história do mundo, apesar da pluralidade de perspectivas. Isso não significa
que outras cosmovisões não possam oferecer ideias verdadeiras e profundas sobre o
mundo. A graça comum permite isso. “No entanto, é nosso chamado afirmar
e inequivocamente que Cristo é a verdadeira luz do mundo” (GOHEEN E BARTHOLOMEW,
2016, p. 50).
Além disso, os cristãos também precisam ser lembrados de que a articulação de
uma cosmovisão cristã não deve ser confundida com o próprio evangelho, mas está sempre
submissa à crítica das Escrituras. Ainda assim, é preciso insistir que “a narrativa bíblica não é
somente mais uma narrativa ao lado de outras, mas, em vez disso, que é a verdadeira
narrativa do mundo” (GOHEEN E BARTHOLOMEW, 2016, p. 50). Essas respostas ajudam a
responder à objeção do relativismo.

Objeção 03: “a abordagem de cosmovisão pode ficar desconectada das


Escrituras e, portanto, vulnerável às influências da época.”

Essa objeção é menos uma crítica em si e mais uma advertência contra um perigo
sempre presente em qualquer empreendimento cristão significativo. Apesar de a
cosmovisão ser uma ferramenta poderosa e muito útil de reflexão, ela pode se tornar
totalmente alheia às Escrituras. “É possível que, no processo de desenvolvimento de uma
estrutura conceitual da Bíblia, as raízes nas Escrituras se afrouxem, essa estrutura se torne
vulnerável aos vários ídolos de nossos dias” (GOHEEN E BARTHOLOMEW, 2016, p. 50 e 51).
Assim, os cristãos estão em constante tentação de abraçarem ídolos do mundo e
incorporá-los como se fizessem parte da visão de mundo cristã.
Essa tentação se torna extremamente sedutora no espaço público: alguns cristãos
tendem a abraçar determinadas causas políticas, propostas educacionais, concepções
143
CRESCER Críticas ao conceito
de Cosmovisão
filosóficas e deduzirem que aquela é a única visão bíblica sobre o assunto e que uma
cosmovisão cristã necessariamente acarretará aquelas posições.
Mas isso não pode ser assim por dois motivos: (a) uma cosmovisão é uma tentativa
de trabalhar e articular melhor o evangelho nas várias áreas da vida, mas ela não é o
evangelho em si; (b) é possível que em alguns assuntos, haja mais de uma posição cristã
legítima sobre o assunto. Os cristãos não são oniscientes; somente Deus o é. A fim de
articular uma cosmovisão responsável, os cristãos precisam o tempo todo relembrar a
narrativa da qual fazem parte: são seres criados por Deus (e não o próprio Deus), caídos, mas
que vêm sendo redimidos. Essa é a melhor forma de combater a idolatria, principalmente no
Espaço Público, permitindo que as Escrituras corrijam nossos pontos cegos.

Objeção 04: “a abordagem de cosmovisão pode conduzir a um ativismo


messiânico doentio.”

A visão cristã sobre a redenção é energizante: a redenção é tão abrangente quanto


foi a criação e os efeitos da queda, pois, uma vez que a criação tem um sentido cósmico e
uma vez que a queda afetou cada milímetro da boa criação de Deus, a redenção também
tem um sentido universal e abrangente, que afeta toda a realidade criacional. Com isso,
Deus nos convida a participar dos seus atos redentivos, atuando como agentes do seu reino,
manifestando sua graça salvadora em tudo que é feito e trazendo cura para o mundo.
No entanto, é importante falar que isso não significa dizer que os cristãos irão
redimir a cultura ao engajar-se em atividades criativas e sociais. Esse é um perigo real:
acreditar que somos nós que introduziremos o reino e que, se nos esforçarmos bastante,
isso acontecerá na nossa geração; que, uma vez que fomos redimidos, se trabalharmos
freneticamente para transformar o mundo, conseguiremos pela própria força. Perto dessa
tentação, caminha uma visão modernista de progresso. Mas é preciso o tempo todo lembrar
que somente Deus trará a consumação completa para o atual estado de coisas. Uma
cosmovisão cristã não pode negligenciar isso.

Objeção 05: “a abordagem de cosmovisão pode consolidar um cristianismo


intransigente de classe média e até mesmo negligenciar os pobres e
marginalizados do mundo.”

Goheen e Bartholomew (2016) afirmam que o ativismo que é motivado pela reflexão
da cosmovisão cristã surge, muitas vezes, da classe média e da tentativa de se engajar com
a cultura, redimindo-a. No entanto, os cristãos precisam ficar atentos para, ao procurar
transformar as estruturas culturais, bem como suas instituições, não serem moldados por
elas, nem negligenciar aqueles que têm sido marginalizados por aquelas estruturas.

Lições a aprender a partir das críticas

Um cristão verdadeiramente engajado com uma cosmovisão cristã precisa aprender


com estas precauções. Algumas dessas críticas, apesar de não serem fatais, são
fundamentais para uma cosmovisão cristã e os cristãos serão beneficiados ao incorporar
144
CRESCER
Críticas ao conceito
de Cosmovisão
tais avisos e preocupações em seus projetos. Ainda assim, é possível dizer que os benefícios
do conceito de uma cosmovisão cristã superam em muito os riscos.
Uma cosmovisão cristã terá consciência, por exemplo, dos hábitos formadores, que
muitas vezes são inconscientes, mas que apontam para a dinâmica do nosso coração para
aquilo que realmente adoramos e para aquilo que realmente é nossa cosmovisão. Pense em
como o piloto Chelsey B. "Sully" Sullenberger salvou aquelas 155 vidas: sua façanha foi mais
do que uma proeza intelectual ou uma habilidade “natural”; ela foi formada a partir de várias
pequenas decisões, vários hábitos, que formaram uma espécie de “segunda natura”. Ele não
nasceu sabendo pilotar, mas naquele momento ele refletiu todo seu empenho em várias
horas de voo a fim de no momento certo, fazer a coisa certa naqueles três minutos vitais.
Sire (2009) dá um bom exemplo de como muitas vezes uma concepção intelectualista sobre
nossa cosmovisão pode nos iludir: anote em uma folha de papel o que você acredita ser a
importância da oração; do outro lado, anote quantas vezes você realmente ora. Pode ser
que, apesar de você dizer uma coisa, seu coração pode apontar em outra direção, mostrando
assim qual é a sua cosmovisão verdadeira.
Enquanto estivermos atentos aos elementos afetivos e imaginativos da formação
de uma cosmovisão cristã (em oposição a uma cosmovisão puramente intelectual ou a uma
abordagem primariamente cognitiva); ao drama bíblico como a verdadeira história do
mundo (em oposição às tendências relativistas, pós-modernas e pluralistas provindas de
uma diversidade de cosmovisões); a necessidade de estarmos constantemente imersos nas
Escrituras (em oposição a visões extrabíblicas ou antibíblicas do mundo); ao realismo que
entende que somente Cristo trará a consumação final (em oposição à tentação de cair no
messianismo doentio), poderemos continuar a empregar de forma saudável o conceito de
cosmovisão como uma maneira de ajudar as pessoas a entenderem o quadro interpretativo
no qual elas mesmas estão inseridas e a se engajarem para atuar no mundo.

Acima de tudo, temos de entender que até mesmo as teorias mais


robustas do ponto de vista intelectual sobre como as coisas
funcionam ou devem ser, titubeia em uma ou duas gerações, pelo
fato de que os seres humanos titubeiam: ignoramos algo,
ou distorcemos o equilíbrio existente entre as coisas, ou, por ser
este um mundo caído e alquebrado, nossas ações bem
intencionadas suscitam uma reação repulsiva por parte de
incrédulos, e a tensão entre Cristo e a cultura conduz a uma nova
direção [...]. Viveremos na tensão de reivindicar cada centímetro
quadrado para o rei Jesus, embora saibamos muito bem que
a consumação ainda não chegou, que andamos pela fé e não
pelo que vemos e que as armas com as quais lutamos não são as
armas do mundo. (CARSON, 2012, p. 195 e 198)

145
CRESCER Críticas ao conceito
de Cosmovisão
Nesta aula você...

Entendeu as críticas ao conceito de cosmovisão, analisando a pertinência dessas


críticas para a relação entre cosmovisão e evangelho.
Refletiu sobre as objeções trazidas pelos críticos, bem como sobre o que
podemos aprender com elas.

CRESCER+

GOHEEN, Michael & BARTHOLOMEW, Craig. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo


na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. São Paulo: Vida Nova, 2016
(Capítulo 02).
146
COMPARTILHAR
Críticas ao conceito
de Cosmovisão
Redija um pequeno texto a partir das críticas que você analisou nessa aula e a partir do
seguinte questionamento: como uma cosmovisão pode ser legitimamente cristã e fugir
desses perigos reais?

147
Transformando
Cosmovisões aula 18
Olá!
Conversão a Cristo não é apenas uma mudança de comportamento ou uma mudança de
crenças. Essas duas coisas podem ser mudadas e ainda assim não termos uma pessoa
integralmente convertida. De acordo com o Evangelho, a conversão envolve muito mais:
envolve uma transformação de cosmovisão. Nesta aula, nós vamos estudar as implicações
da mudança de cosmovisão no processo de conversão.

Ao final desta aula você deve apresentar os seguintes aprendizados:

Compreender que a mudança de cosmovisão está por trás tanto do


comportamento, quanto da crença;
Perceber como a adoração é essencial para a mudança de cosmovisão;
Entender como mudar uma cosmovisão e outros sistemas humanos.

Bons estudos!

148
CONECTAR
Transformando
Cosmovisões
O missionário e antropólogo Paul Hiebert (2016) conta algumas histórias
interessantes no livro Transformando Cosmovisões; uma delas diz respeito a um evento que
ocorreu com ele no sul da Índia entre cristãos que misturaram cristianismo com hinduísmo
em um auto de Natal:

Na igreja, em uma vila no sul da Índia, garotos vestidos como


pastores subiram cambaleando no palco, como se estivessem
muito bêbados, para a euforia do público. Naquela região, pastor é
sinônimo de bêbado. Entretanto, quando os anjos apareceram
detrás das cortinas, os pastores imediatamente ficaram sóbrios, e o
momento hilário passou. Os magos chegaram ao palácio de
Herodes buscando orientações, e a estrela os guiou até a
manjedoura, onde Maria, José, os pastores, os próprios magos e os
anjos se reuniram em torno do bebê Jesus. ‘A mensagem foi
captada’, pensei. Então, de trás das cortinas surge o Papai Noel, o
maior garoto daquele grupo, dando presentes de aniversário a
todos. Fiquei atordoado. O que deu errado? (HIEBERT, 2016, p. 11)

Hiebert pensou que estava diante de um caso de “sincretismo”. Depois ele começou
a ter dúvidas sobre se aquilo realmente era o caso, pois os missionários haviam trazido
àquelas pessoas tanto Cristo quanto Papai Noel. Além disso, a mensagem do nascimento de
Jesus foi captada por aqueles indianos, bem como a de Papai Noel. Finalmente, ele chegou
à seguinte conclusão:

O problema era que os moradores da vila tinham unido o que, em


minha mente, eram dois tipos diferentes de Natal. Um deles estava
centrado em Cristo: o clima era quente, havia árvores (palmeiras),
animais (jumentos, vacas e ovelhas) e figurantes (Maria, José, os
pastores e os magos). O outro estava focado no Papai Noel:
o clima era frio, havia árvores (sempre-vivas), animais (coelhos,
ursos e, principalmente, renas) e figurantes (Papai Noel e os
duendes) [...]. De algum modo, a mensagem que os missionários
anunciaram estava deturpada. As peças estavam todas ali, porém
foram unidas da forma errada. (HIEBERT, 2016, p. 11)

A preocupação de Hiebert era saber como os novos conversos poderiam ser


realmente convertidos de acordo com o que diz o evangelho, e não simplesmente terem
dado nomes cristãos aos seus deuses e espíritos pagãos, ou seja, “cristianizando” uma
religião pagã. Um outro exemplo desse perigo que ele conta aconteceu com o missionário
Jacob Loewen, que atuava entre o povo waunana, no Panamá.
Certo dia, Loewen perguntou aos líderes de uma igreja recém-formada do que eles
mais gostavam por terem se tornado cristãos. Eles responderam que era da paz que o
cristianismo trazia, pois antes da fé cristã eles viviam em guerra com seus vizinhos; da
adoração comunitária e da comunhão que desfrutavam na igreja. Não satisfeito, Jacob
Loewen pediu para que eles aprofundassem um pouco mais o que queriam dizer com essas
crenças; o povo waunana afirmou que o que mais apreciava eram as novas “palavras
poderosas” que o cristianismo lhes trouxe: “Quando você deseja causar dano a um inimigo,
senta-se imediatamente à frente dele no culto de oração. Assim, quando você se vira para
ajoelhar e orar, ele está exatamente à sua frente. Então, você diz: ‘re-den-ção’, ‘sal-va-ção’,
‘amém’, e a pessoa ficará doente” (HIEBERT, 2016, p. 13); em outro exemplo, agora numa vila
no sul da Índia, Hiebert afirma que os cristãos pintaram uma grande cruz branca na parede
externa de suas casas como um símbolo para defendê-los de mau-olhado. 149
CRESCER Transformando
Cosmovisões
Em ambos os casos, as pessoas haviam reinterpretado
o cristianismo como uma nova e poderosa forma de magia que os
capacitava a obter êxito e causar danos a seus inimigos por meio
de fórmulas corretas. Essa reinterpretação do cristianismo por
meio de uma compreensão essencialmente pagã da realidade
não é incomum. (HIEBERT, 2016, p. 13)

PARA REFLEXÃO

Antes de começar, reflita um pouco sobre a história de Paul Hiebert e redija um


pequeno texto a partir da pergunta: como nossa sociedade brasileira também
procura muitas vezes reinterpretar o cristianismo a partir de uma mentalidade
não-cristã? Cite alguns exemplos.

Papayya é um cristão?

Quando pensamos nas implicações da conversão, nos deparamos com problemas


difíceis e delicados. Paul Hiebert (2016, p. 11) começa a refletir sobre esse problema a partir
da seguinte pergunta: “será que um camponês analfabeto poderia se tornar um cristão
depois de ouvir o evangelho apenas uma vez?”
Suponha que um camponês indiano chamado Papayya esteja voltando para sua vila
depois do trabalho na lavoura. No caminho, ele ouve de um estranho a mensagem de um
novo Deus e algo que escuta o comove profundamente. No final, Papayya pergunta ao
estranho sobre o novo caminho, ora a esse novo Deus que dizem ter aparecido aos humanos
na forma de Jesus Cristo, morrido pelos seus pecados e ressuscitado três dias depois. É claro
que como foi exposto a apenas um sermão, Papayya não compreende toda a mensagem
muito bem, nem conhece as implicações completas dela. Na sua antiga religião, o
hinduísmo, havia mais de 330 milhões de deuses hindus; mas Papayya ouviu naquela noite
que há somente um Deus, e esse Deus se mostrou aos seres humanos apenas uma vez.
Apesar de um pouco confuso, Papayya volta para casa como cristão.
Pense agora nas implicações dessa história: Papayya pode se tornar um cristão
depois de ouvir o evangelho apenas uma vez? Sim, é óbvio. Em Atos 8, há uma história
semelhante de um eunuco etíope que foi batizado por Felipe. E há uma concordância geral
de que não é preciso um grande conhecimento da Bíblia e uma vida impecável para alguém
se tornar cristão. No entanto, o que é realmente preciso para afirmamos que Papayya
respondeu ao evangelho com uma fé sincera?

Certamente, ele obteve alguma informação nova. Ele ouviu a


respeito de Cristo e de sua obra redentora na cruz e escutou uma ou
duas histórias sobre a vida de Cristo na Terra; porém, tal
conhecimento é muito limitado. Ademais, o que ele sabe é moldado
por suas crenças culturais. Papayya não teria condições de ser
aprovado no teste mais simples de conhecimentos bíblicos ou
teologia. Se o aceitamos como irmão, não estamos abrindo as
portas para a ‘graça barata’, o sincretismo e uma igreja nominal?
Se pedirmos que ele espere e aprenda mais, o afastaremos. O
que deve acontecer para que uma conversão seja genuína?
150 (HIEBERT, 2016, p. 14)
CRESCER
Transformando
Cosmovisões
Mudança missiológica

Hiebert (2016) procura apontar algumas pistas para essa difícil pergunta. Em
primeiro lugar, quando buscamos levar alguém a Cristo, procuramos algumas evidências de
conversão. Qual a nossa primeira tendência? Observar sua mudança de comportamento e
nos rituais que pratica. Esse era o ponto central dos missionários no século 19; se algum
deles se deparasse com Papayya, ele buscaria evidências de conversão na vida desse
camponês a partir de coisas que poderiam incluir abandono do álcool e do tabaco, não se
curvar diante dos ancestrais, aceitar o batismo e frequentar uma igreja. É claro que a
mudança de comportamento é uma boa indicação de uma conversão genuína; todavia, é
preciso algo mais. As pessoas podem ter bons comportamentos morais sem
necessariamente terem suas crenças fundamentais transformadas; Papayya pode fazer
todas essas coisas e continuar adorando Vishnu.
Por isso, no século 20, se os missionários protestantes se encontrassem com
Papayya, seu primeiro impulso era saber sobre a transformação das crenças desse
camponês indiano. Para ser realmente convertido, Papayya deveria crer em coisas como a
trindade, o nascimento virginal, a morte e a ressurreição de Cristo. Crenças corretas eram
vistas como fundamentais para a conversão cristã. No entanto, é obvio que a transformação
das crenças professadas não é suficiente para conversão. A própria Bíblia alerta para isso:
“Você crê que existe um só Deus? Muito bem! Até mesmo os demônios creem — e tremem!”
(Tiago 2:19).
Além disso, as pessoas geralmente afirmam acreditar nas mesmas coisas, e até
dizem as mesmas palavras, mas elas dão às suas crenças sentidos completamente
diferentes. “Subjacente às crenças professadas, há um nível mais profundo da cultura que
molda as categorias e a lógica com as quais as pessoas pensam e compreendem a realidade”
(HIEBERT, 2016, p. 13). Por isso, a conversão de Papayya não pode envolver apenas o
comportamento, nem as crenças; ele precisa de algo mais, algo que una essas duas
realidades e vá além: ele precisa ter sua cosmovisão mudada.

A conversão ao cristianismo precisa envolver três níveis:


comportamento, crenças e a cosmovisão subjacente a eles [...].
A conversão pode incluir uma mudança de crenças e
comportamento, mas, se a cosmovisão não for transformada, com
o passar do tempo o evangelho é corrompido, e o resultado é um
sincrético paganismo cristão que tem a forma de cristianismo, mas
não a essência dele. O cristianismo se torna uma nova magia e uma
forma nova e mais sutil de idolatria. (HIEBERT, 2016, p. 14)

Como transformar cosmovisões

A mudança comportamental era o foco do movimento missionário no século 19; já a


mudança de crenças foi o foco do movimento missionário no século 20; qual o foco no
século 21? Para Hiebert (2016), a transformação de cosmovisões. Os dois focos presentes
nos séculos 19 e 20 não devem ser mudados. Mas é preciso discipulá-los para que alcancem
a maturidade cristã, batizando completamente sua cosmovisão.
E isso significa fazer com que suas crenças e comportamentos, seja de um
paraibano no alto sertão, de um índio em uma tribo amazônica ou de um gaúcho na fronteira
com o Uruguai, tenha origem em uma cosmovisão que aponte o que significa ser cristão em
um dado contexto sociocultural e histórico específico. 151
CRESCER Transformando
Cosmovisões
Mas como é possível fazer isso? Como podemos alterar não apenas a crença e o
comportamento, mas a cosmovisão de uma pessoa? Hiebert (2016) aponta três exemplos
que trataremos a seguir. É claro que tudo que falaremos aqui pressupõe a realidade do
cristianismo, isto é, a obra contínua e sobrenatural do Espírito Santo no coração dos
homens. Isso jamais pode ser esquecido ou menosprezado. A transformação espiritual é
obra de Deus na vida de um pecador, que faz dele um filho de Deus e cidadão do reino. No
entanto, o evangelho é ouvido dentro de um contexto cultural por agentes humanos. Foi
assim que Deus decidiu fazer: permitir que os homens levem a mensagem do evangelho em
união com a instigação interna do Espírito Santo.

Examinando cosmovisões

Uma primeira maneira eficaz de transformar uma cosmovisão é trazê-la à tona, isto
é, examiná-la de forma consciente a fim de tornar explícitos os pressupostos que estão
implícitos. Como vimos durante esse curso, as cosmovisões não dizem respeito apenas às
crenças que temos; elas vão além disso, sendo tão fundamentais e básicas que não se
tratam apenas do conteúdo do que pensamos, mas daquilo que usamos para pensar. Por
serem naturalizadas, dificilmente as questionamos. É como alguém que usa óculos: quando
ele olha para a realidade, dificilmente se dá conta de forma consciente do que está usando,
a não ser quando é lembrado disso. É difícil raciocinar fora delas.
Por isso, é preciso primeiro analisar as cosmovisões alternativas ao teísmo cristão
dentro da cultura que nos cerca; neste curso vimos duas delas: naturalismo e
pós-modernismo. É preciso também analisar as grandes narrativas que moldam a forma de
pensar e de viver de uma dada cultura. Na aula 13, também vimos algumas delas.
Precisamos compará-las com a cosmovisão bíblica a fim de transformá-las à luz do
evangelho. E isso não acontecerá do dia para noite: certamente levará uma vida inteira para
ser concluída, pois as narrativas culturais que procuram ganhar nosso coração mudam
constantemente, a ponto de durar apenas uma geração.

Exposição a outras cosmovisões

Uma segunda maneira de transformar uma cosmovisão é ir além de nossa cultura,


procurar analisá-la a distância, pedir a pessoas de fora que nos digam como percebem nossa
cosmovisão. Essa é uma forma importante de olhar a nós mesmos através do olhar do outro,
retornando em seguida à nossa própria cosmovisão a fim de fazer os ajustes necessários.
Por isso, esse processo precisa ser comunitário. Uma pessoa só não consegue
mudar sua cosmovisão: ela precisa estar em um contexto de uma igreja saudável para que
não veja o mundo através de um único par de olhos. Ela precisa dialogar, ouvir outros
cristãos tanto da sua comunidade local, quanto das comunidades cristãs mais amplas,
globais, de regiões não ocidentais, que vão nos alertar para ajustes em pontos cegos da
nossa teia de crenças-comportamentos-cosmovisões que não conseguimos ver.
Nesse processo, o corpo de Cristo se tornará uma comunidade transcultural
formada por pessoas transculturais, “pessoas que podem viver em diferentes culturas, mas
cuja verdadeira identidade é cada vez mais a de alguém de fora/de dentro em todas elas”
(HIEBERT, 2016, p. 351).
152
CRESCER
Transformando
Cosmovisões
Adoração

Uma última forma de mudar nossa cosmovisão tem a ver com a adoração. A
cosmovisão não diz respeito apenas ao que cremos, mas ao nosso mais profundo, o motivo
base de nossos corações. Por isso, a adoração é tão importante nesse processo.
Em primeiro lugar, os cristãos precisam criar rituais vividos e não apenas
discursivos. Quando cantamos em comunidade, não podemos reduzir o conteúdo do que
cantamos a simples elementos de comunicação verbal. É preciso que o louvor interaja com
nossas crenças, afeições e compromissos morais. Os cristãos evangélicos geralmente
possuem resistência a rituais. É comum também eles dizerem coisas como “vou à igreja para
adorar” e muitas vezes classificam a adoração como o que “recebem” no culto; outros
cristãos orientais podem corrigir isso: para eles, o simples fato de ir à igreja é um tipo de
adoração, assim como tudo que eles fazem na vida. Adoração é algo que eles oferecem a
Deus, não que recebem.
Por vezes, nosso cristianismo tende e ser ou anti-intelectualista ou extremamente
intelectual. James Smith (2017) é um dos pensadores que vêm procurando corrigir esse
último excesso. Para ele, nosso coração é moldado fundamentalmente por tudo que
adoramos, mais do que pelas coisas que pensamos. A grande questão não é o que você
pensa, mas o que você quer. “Nosso querer reverbera o que há em nosso coração, o
epicentro da pessoa humana” (SMITH, 2017, p. 20). Por isso, Smith (2017) afirma que o
discipulado precisa dizer mais respeito a desejar e ansiar, do que conhecer e crer. “A ordem
de Jesus para que o sigamos é um chamado a alinhar nossos amores e anseios aos dele –
querer o que Deus quer, desejar o que Deus deseja, ansiar pelo que Deus anseia e almejar
por um mundo onde ele é tudo em todas as coisas” (SMITH, 2017, p. 20).
Mas como alguém pode ter tal mudança de afetos? Através da maneira como
histórias, narrativas, mitos e ícones das pessoas capturam seus corações e imaginações.
Para Smith, em vez de uma abordagem racionalista, que começa com crenças e depois se
move em direção a desejos e ações, ele vê o inverso acontecendo: as práticas humanas
contribuem para a sua imaginação, o que leva à formação do conhecimento e das doutrinas.
São os desejos corretos que nos levam a querer as crenças corretas, não o contrário. Esse
amor que atua no nosso coração é menos uma escolha consciente e mais uma orientação
básica, uma inclinação, uma direção que conduz as próprias escolhas que fazemos.
Como moldamos nossos desejos, então? Para Smith (2017), através das virtudes
cristãs. Por virtudes entende-se bons hábitos morais; é um tipo de treinamento moral de
forma que nos ajude a internalizar um bem. No começo, eles parecem estranhos a nós, mas
com um tempo viram uma espécie de segunda natureza, sendo tão internalizados que não
precisamos mais pensar a respeito ou escolher praticá-los: nós agimos naturalmente.
E como praticamos as virtudes? Através da imitação: aprendemos a sermos justos imitando
exemplos de justiça; a sermos bondosos, imitando exemplos de bondade. Autores como
Agostinho (2017) e N. T. Wright (2012a) já apontavam a validade desse pensamento. Quando
Jesus em Mateus 5 ordena que “amem os seus inimigos e orem por aqueles que os
perseguem”, a base do mandamento está em imitar a Deus: “Porque Ele faz raiar o seu sol
sobre maus e bons e Ele derrama chuva sobre justos e injustos”. (Mt 5:44,45). Devemos amar
os inimigos e orar pelos que nos perseguem porque Deus faz justamente isso: ama sem
discriminação.
Assim, os nossos amores são moldados por práticas culturais e rituais. Nossa
identidade religiosa fundamental está não naquilo que nós fazemos, mas naquilo que as
153
CRESCER Transformando
Cosmovisões
práticas culturais fazem conosco. Por isso é tão importante a adoração comunitária: a ceia
do Senhor, os cânticos, a exposição das Escrituras, as exortações, a confraternização – tudo
isso molda nossos amores e nosso coração em direção ao Senhor Jesus Cristo.
A transformação última de cosmovisão pode ter todas essas dinâmicas dos agentes
humanos, mas sua mudança última vem de Deus. É uma obra imerecida da graça salvífica. E
isso não acontece de forma instantânea, mas é um processo que leva toda a vida. Enquanto
isso, o corpo de Cristo ajudará as pessoas em sua caminhada espiritual, moldando no nível
superficial seu comportamento, progredindo para a transformação das crenças e sistemas
de crenças e, finalmente, impactando de forma profunda a cosmovisão do povo do reino.

Nesta aula você...

Compreendeu as mudanças de cosmovisão que estão por trás tanto do


comportamento, quanto das crenças dos indivíduos.
Percebeu como a adoração é essencial para a mudança de cosmovisão,
principalmente a fim de redimir outros sistemas humanos.

CRESCER+

HIEBERT, Paul. Transformando Cosmovisões: uma análise antropológica de como as


pessoas mudam. São Paulo: Vida Nova, 2016.

SMITH, James. Você é aquilo que você ama: o poder espiritual do hábito. São Paulo:
Vida Nova, 2017.
154
COMPARTILHAR
Transformando
Cosmovisões
James Smith afirma que o conceito de cosmovisão pode ser por demais intelectualizado;
por isso, ele prefere o termo “imaginários sociais”. No entanto, com base no que você
aprendeu nesse curso, redija um texto sobre a abordagem da formação espiritual
excessivamente intelectualizada de uma cosmovisão, mostrando como ela é, antes de tudo,
uma questão de coração.

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Você também pode gostar