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San

A Natureza e a Metafísica
O cosmos é “uma mensagem de Deus para Si mesmo através do Si mesmo”, como
diriam os sufis.

Sumário
A Natureza e a Metafísica I
I. O que é a natureza?
II. O que é a metafísica?
Os Iluministas II
A Ciência Natural Evolucionista III
Os Corpos Celestes IV
I. As Estrelas
II. Os Planetas
A Ignorância à Luz da Plenitude da Divindade V
A Natureza e a Metafísica

Para iniciarmos, pretendo começar com duas perguntas:

I. O que é a natureza?
II. O que é a metafísica?

O que é a natureza?

Se retornarmos ao passado, na época dos Jônicos1, todas as vezes que eles


formulavam a pergunta «O que é a natureza?», sempre acabavam formulando outra
pergunta: «De que são feitas as coisas?». Meio peculiar, certo? Eu sei que, do ponto de
vista de nós, modernos, eles raciocinavam de uma forma meio estranha, mas caso alguém
faça a mesma pergunta para um moderno, ele responderá de outra maneira também
estranha; respondendo com várias informações da história natural. Deste modo, é
interessante notar também que, o sentido do termo «natureza» que nós, modernos,
utilizamos é totalmente diferente do sentido original da palavra. A palavra «natureza»
significa não aquele que se refere ao conjunto — como nós, modernos concebemos —,
mas a um «princípio», na exata aceitação da palavra, um principium — αρχή — ou fonte.
A palavra φύση é usado em grego neste sentido: significa sempre algo imanente ou
intrinsecamente pertencente a uma coisa, que é a causa, a fonte do seu comportamento;
dizemos que «os cães latem porque é de sua natureza», ou que, «o homem gosta de coisas
gostosas porque sentir prazer e satisfação é de sua natureza». Este sentido permaneceu
por muito tempo na história da literatura grega; num período mais tardio, onde muito
frequentemente, ganhou um novo sentido, um sentido secundário que significava um
«agregado» de coisas, que consequentemente, tornou-se sinônimo da palavra κόσμος – «o
cosmo».
Para o ilustre John Burnet, a palavra φύση, significa “originalmente o elemento
especial de que uma coisa é feita. Por exemplo: as coisas de madeira tem uma φύση, as
pedras tem outra, a carne e o sangue outra. Os milesianos interrogavam-se sobre a φύση
de todas as coisas”.2

1
Os jônios, jônicos ou iônios são um dos povos da antiguidade que auxiliaram na formação da cultura grega
(ciência, filosofia e arte). Os filósofos jônicos dos séculos VII e VI a. C. consagraram tanta atenção aos problemas
cosmológicos que Aristóteles, de longe a nossa maior autoridade na história das origens do pensamento grego,
refere-se a eles como «θυσιόλογοι» — teóricos da natureza.
2
Greek Philosophy – Thales to Plato, Londres, 1920, p. 27.
II

O que é a metafísica?

A metafísica é a ciência do real, da origem e do fim de todas as coisas, do


Absoluto e do relativo. Ela é uma ciência essencialmente estrita e exata, que só pode ser
entendida através do intelecto, sendo assim, diferente de qualquer matéria filosófica.3 Esta
ciência, é a única capaz de distinguir entre o Absoluto e o relativo, entre aparência e
realidade. A palavra Metafísica vem do grego «τά μετά τά φυσικά», ou seja, além da física;
quando se dá a «μετά» o sentido de “além” ou “acima”, assume, deste modo, um
significado que se presta perfeitamente para indicar o próprio conteúdo, ou seja, a pesquisa
sobre o ser suprassensível e transcendente. Um dos pioneiros que começou a empregar o
termo «metafísica» foi Aristóteles em seu livro de mesmo nome «metafísica», um tratado
filosófico extenso composto por quatorze livros.4 Neste tratado, Aristóteles desenvolveu
um longo estudo sobre ontologia, isto é, do “ser” abrangendo sua relação com
causalidade, bem como os conceitos de «forma, matéria, potência e ato».
Desse modo, metafísica surge da sede inata do homem pela verdade, que não é
senão a sede por Deus (essa metafísica é, em essência, o sanātana dharma dos hindus), a
qual hoje em dia ‘não é mencionada nas classes altas’, com bem expressou Ananda
Coomaraswamy. Metafísica é, portanto, algo que nos faz entender o que nos torna
humanos, o que equivale a dizer, “feitos à imagem e semelhança de Deus”.

Os Iluministas

Foi a partir do momento que surgiu o iluminismo que toda realidade sucumbiu à
fantasia. Contudo, antes do iluminismo ter grandes raízes na consciência humana, era
necessário que a realidade fosse bifurcada; Descartes forneceu tal bifurcação na forma do
infame dualismo: res extensae — res cogitans.
Com esta bifurcação, o cosmos físico foi reduzido a uma mera extensão. O
método cartesiano foi capaz de reduzir todos os campos das atividades humanas em
campos empíricos — o universo tornou-se um grande experimento de laboratório, uma
visão verdadeiramente anti-religião.

Para mais explicações, na ontologia cartesiana, a «forma» e a «matéria» aristotélicas


são substituídas pelas substâncias res cogitans — que é definida como a qualidade do
pensamento, mas sem extensão e res extensae que tem extensão espacial, mas não tem
3
“Uma doutrina metafísica é a encarnação na mente de uma verdade universal. Um sistema
filosófico é uma intenção racional de resolver certas questões que nós plantamos”. Ver: F. Schuon, Spiritual
Perspectives and Human Facts, p. 11.
4
O tratado Metafísica é composto por quatorze livros: Alpha (Α); 2, alpha menor (α); 3, Beta (Β); 4, Gamma (Γ); 5, Delta
(Δ); 6, Epsilon (Ε); 7, Zeta (Ζ); 8, Eta (Η); 9, Theta (Θ); 10, Iota (Ι); 11, Kappa (Κ); 12, Lambda (Λ); 13, Mu (Μ); 14, Nu
(Ν):
pensamento. As categorias desse dualismo-substância não podem ser conciliadas com o
paradigma hilemórfico, pois as definições do primeiro não permitem uma unificação tão
orgânica como se encontra no segundo. Essas duas substâncias cartesianas podem se
juntar “lado a lado” ou “uma em cima da outra” apenas como no caso de uma soma
analítica para constituir uma coleção, mas não podem formar uma união orgânica. Por
exemplo, a cor de um objeto, para Descartes, está relacionada ao “spin” das partículas (ou
fótons) que constituem a luz. Quando a luz atinge um objeto, as partículas que
constituem a luz alteram sua rotação em torno de seu eixo. A rotação é o que faz a luz ter
uma cor em vez de outra — não há outro significado ou realidade de “cor” para ele.
Desse modo, Descartes e também Galileu (1564-1642) dividiram o mundo no que veio a
ser conhecido como “qualidades primárias e secundárias”. Eles classificaram como
“primários” atributos como número, extensão, forma e movimento, que não dependem
de avaliações subjetivas, e podem ser medidos com certa precisão. E os “secundários”
como atributos como: cor, sabor, odor, som e toque – isto é, “qualidades” propriamente
ditas – que dependem da percepção subjetiva.
Contudo, Wolfgang Smith nos lembra do triunfo de James J. Gibson5:

O que é percebido, Gibson descobre, não é uma imagem, mas


simplesmente o ambiente externo; em uma palavra, a chamada teoria ecológica da
percepção é não bifurcacionista. “Essa distinção entre qualidades primárias e
secundárias é totalmente desnecessária”, escreve Gibson, e é de fato “totalmente
rejeitada” em sua abordagem. Fica-se surpreso ao ver como esse sóbrio cientista
foi capaz, por meio de uma investigação obstinada baseada diretamente em
descobertas empíricas, desconstruir o edifício cartesiano. [...]6

Desse modo, percebemos que o transbordamento do materialismo evolutivo na


cultura ocidental praticamente abafou as vozes da resistência filosófica e teológica. O que
era de mais sagrado foi derrubado para levantar o que era de mais profano. Portanto, é
importante que lembremos com São Paulo que as verdades filosóficas do cosmos estão
em exibição para todos verem, pois “desde a criação do mundo, seu poder eterno e
natureza divina, por mais invisíveis que sejam, foram compreendidos e vistos por meio
das coisas que Ele fez.”7
Uma vez que res extensae não existe em nenhum lugar do mundo real, a não ser na
mente e na matemática do físico, o caminho agora está aberto para um retorno a uma
ciência do real — a metafísica.

5
James J. Gibson foi um psicólogo da Cornell University que dedicou meio século ao estudos da psicologia da
percepção.
6
As referências dizem respeito à principal obra de James J. Gibson, The Ecological Theory of Visual Perception,
Lawrence Erlbaum Publishers, Hillsdale, NJ, 1986.
7
Romanos 1:20
A Ciência Natural Evolucionista

Antes de mais nada, pretendo esclarecer sobre uma teoria que continua firme —
firme não porque é uma teoria bem consolidada, mas por ser um postulado ideológico
“mantido”, “nutrido” pelo meio cientificista — até hoje: o evolucionismo.
A cosmologia moderna é algo totalmente inédito se pararmos para observar a
história das ciências naturais de seus predecessores gregos, que se baseava na analogia
entre a natureza como um macrocosmo e o homem como um microcosmo, à medida que
o homem se descobria através da autoconsciência; enquanto a cosmologia moderna era
baseada na analogia da natureza como obra de Deus e as máquinas como obra dos
homens.8
Tal acontecimento gerou um desenvolvimento massivo de fabrico das máquinas
que, consequentemente, consolidou a cosmologia moderna. A partir daí se colocava a
concepção de “progresso”, “evolução”, “mudança” no centro de todo o debate
acadêmico da época, no pensamento histórico. Este gênero de história surgiu pela
primeira vez em The Idea of Progress, do autor J. B. Burry; em termos de ciência natural, a
ideia de “progresso” tornou-se o que chamamos hoje em dia de «evolução».9 Desse
modo, é importante notarmos que a evolução corresponde à doutrina — especialmente
ligada ao nome de Charles Darwin — que as espécies vivas não são uma cadeia fixa de
tipos permanentes; elas evoluem, modificam-se e transformam-se. Tal teoria não se
resumiu a apenas uma pequena área de conhecimento, mas se expandiu para várias
direções, e, principalmente a um campo extremamente vasto: o velho dualismo entre
elementos mutáveis e elementos imutáveis, onde a tendência era solucionar tal
“problema”. Contudo, as questões de elementos imutáveis foram colocadas à parte pelo
que veio a se chamar de «evolucionismo radical», que atingiu a sua maturidade no século
XX, tendo sido exposto por Bergson.10
Para os que estudaram exaustivamente as obras de Charles Darwin, notaram que
esta teoria se tornou rapidamente dominante no campo da biologia; deste modo
marcando uma profunda crise na história do pensamento humano. Mas as tentativas de
expor tal conceito ao mundo sempre se mostraram falhas, não passando de um criticismo
ou até mesmo de um reductio ad absurdum. A hipótese transformista de Charles Darwin de
que uma espécie pode transformar-se em outra — por que causas ou mecanismos
biológicos —, mostra-se um problema; a questão principal é se as espécies superiores
evoluíram de ancestrais primitivos e, afinal, se já chegou a acontecer alguma vez a genuína
transformação de uma espécie. Deste modo, pretendo considerar alguns fatos da
paleontologia: analisar os fósseis será a melhor maneira de verificar a hipótese
evolucionista/darwinista. É notável que o que evolucionista gostaria de achar no registro

8
Isto se tornaria tema da obra de prima de Joseph Butler.
9
Erasmo Darwin, Zoonomia, 1974-8; e Lamarck, Philosofy Zoologique, 1809.
10
A evolução criadora é uma obra filosófica escrita por Henri Bergson em 1907, onde ele desenvolve a ideia de uma
“criação permanente de novidade” pela natureza.
paleontológico são conjuntos de fósseis em ordem cronológica portando todas as marcas
típicas de uma sequência evolutiva — cadeias graduadas a exibirem variações
morfológicas filogenéticas conforme avançam dos primeiros espécimes para os últimos.
No entanto, mesmo que encontre tais cadeias em abundância, ele ainda precisa
estabelecer-lhes a origem evolucionária; e é óbvio que a própria paleontologia não pode
oferecer nenhuma justificação para esse passo. Como observou o biólogo francês Louis
Bounoure, “ver prova de descendência na concordância entre a disposição de tipos
morfológicos e sua posição cronológica significa apender a esta concordância, que é o
único fato líquido e certo, a hipótese da filiação, cuja verificação é impossível e
probabilidade sempre discutível”.11 Ou seja, o evolucionismo não é diretamente
verificável em termos de descobertas paleontológicas.
É, portanto, interessante notar que o próprio Darwin tinha noção da questão
quando ele mesmo dizia n’A origem das espécies, “talvez a mais óbvia e séria que se pode
levantar contra a teoria”. Reiteradamente toca ele na questão crucial: “Por que, então, não
está cada formação geológica e cada estrato repleto desses elos intermediários?”. Sua
resposta é a seguinte: “A explicação, acredito, jaz na extrema imperfeição do registro
geológico”.12 Mas não ficamos só nisso, o próprio Darwin escreve, “Quem rejeitar a
explicação da imperfeição do registro geológico, vai rejeitar, com razão, a teoria inteira”.13
Estranhamente há uma dificuldade geral ou completa ausência de fósseis
orgânicos no estrato pré-cambriano. Eis o nó, nas próprias palavras de Darwin:

Há um problema análogo, só que bem mais grave. Refiro-me à


repentinidade com que espécies pertencentes a várias das principais divisões do
reino animal aparecem nas rochas fossilíferas mais baixas que conhecemos. A
maioria dos argumentos que me convenceram de que todas as espécies
subsistentes do mesmo grupo descendem de um ancestral comum aplicam-se por
igual às espécies mais antigas conhecidas por nós. A título de exemplo, não pode
haver dúvida de que os trilobitas cambrianos e silurianos descendem todos de um
único crustáceo, que deve ter vivido muito antes da era cambriana e
provavelmente diferia imenso de qualquer outro animal conhecido. [...] Por
conseguinte, caso a teoria esteja certa, é indiscutível que antes de se formarem os
estratos cambrianos inferiores transcorreu tempo longuíssimo, plausivelmente
bem maior do que o intervalo entre a época cambriana e a atual; e que durante
esses vastos períodos o mundo pululava de criaturas vivas. [...] Por que então não
encontramos fartos depósitos fossilíferos datados desses admitidos períodos
primitivos anteriores ao sistema cambriano? A essa pergunta eu não posso dar
nenhuma resposta satisfatória. [...] A questão há de permanecer inconclusiva; e de
fato pode ser aduzida como argumento válido contra as teses aqui sustentadas.14
11
Déterminisme et finalité. Paris: Flammarion, 1951, p. 66.
12
The Origin of Species.Chicago: Britannica, 1952, p. 152.
13
Ibid., p. 179.
14
Ibid., pp. 163-4.
Se analisarmos com cuidado a questão dos sistemas cambrianos, notamos que o
estrato pré-cambriano monta a aproximadamente quatro quintos da crosta terrestre e
corresponde a um período de uns 900 milhões de anos de história geológica, com início
estimado em 1.500 milhões de anos atrás. Portanto, isso só torna o problema ainda maior
— mesmo com Darwin acertando quanto à enorme duração da era pré-cambriana —
porque veio a provar-se praticamente nulo o registro fóssil desses gigantescos estratos
pré-cambrianos.
Há, portanto, um ancestral comum que não pode ser encontrado em termos do
mecanismo darwinista e nem em termos de causalidade natural; para achar uma solução,
os evolucionistas tiveram que apelar para o deus ex machina, a «evolução teísta», um
conceito que traz Deus de volta ao cenário. Os escritos sobre a evolução teísta
tornaram-se populares graças ao escritor Teilhard Chardin com o seu livro Christianity and
Evolution, onde ele propôs inicialmente a tal “automática supressão das origens”.15 Uma
doutrina capaz de percorrer da comunidade científica até o próprio Vaticano!
O problema verdadeiro do princípio da ancestralidade comum é que toda a
metafísica é simplesmente excluída da equação. Afinal, a ancestralidade comum é algo que
acontece no espaço. Para as doutrinas tradicionais, a primeira origem não pode acontecer
no espaço e no tempo. Há uma doutrina que trata sobre as origens biológicas — a ratione
seminales — escrita por Santo Agostinho em seu livro Genesis ad Litteram, que se prova ser
totalmente metafísica. Ela alude uma ancestralidade vertical, ou seja, uma progressão
desde o centro metacósmico até a periferia cósmica que constitui uma verdadeira
“evolução”: um desdobrar-se, que como escreve wolfgang Smith:

Perdeu-se a noção de que a evolução autêntica é um desdobrar-se, como


aprendemos do latim evolvere(ex + volvere, “voltar-se para fora”): assim, um
movimento para fora. Quando existe um “fora”, também deve existir um
“dentro”, um interior; e apresso-me em dizer que não devemos entender esse
“interior” como algo psicológico: a bona fide interior de um organismo não é
matéria da “consciência”, mas constitui a base da qual se deriva cada componente
do organismo, inclusive a própria consciência. O organismo integral — assim
como o cosmos integral — pode, portanto, ser concebido em termos de um
círculo simbólico, cujo centro representa seu ponto “mais interno”, a verdadeira
ratio seminale,¹s⁷ da qual a criatura visível, situada no espaço e no tempo, é apenas a
manifestação externa, em termos de um “desdobrar-se”.16

15
A doutrina (“cuja embasbacante engenhosidade não se pode deixar de admirar”, como observa Bounoure) resolve
o problema com espantosa incisividade ao postular “a automática supressão das origens”. Segundo De Chardin, o
nascimento de um filo efetua-se em curto espaço de tempo mediante pequena quantidade de indivíduos, todos de
estatura modesta e compleição frágil, que desaparecem sem deixar rastro, circunstância que explicaria o surgimento
aparentemente súbito do novo filo. “Sem dúvida,” comenta Bounoure, “é preciso estar tocado da graça evolucionista
para achar convincente tal raciocínio”.
16
A sabedoria da antiga cosmologia, p. 210.
Uma ciência natural evolucionista proclama que uma espécie de substância só
pode existir num espaço e determinado tempo correspondente. Contudo, isso se prova
falho, como o próprio Wolfgang Smith observou:

É interessante notar que o equivalente grego do termo ratio seminale é logos


spermatikos, a “palavra semente”, cujo reflexo distorcido, como sugeri mais cedo,
pode ser discernido no código genético. A “origem da informação”, portanto, que
os neodarwinianos buscam em um algoritmo evolutivo, é encontrada no logos
spermatikos que veio ao ser no único instante da criação, “Quando Deus criou os
céus e a terra”. Desse ponto de origem começou uma “ancestralidade vertical”, uma
evolução no verdadeiro sentido do termo, na qual a essência do organismo, sua
ratio seminale, permanece a mesma. Aqui, então, está o cerne do assunto: para
compreender essa verdade metafísica — mesmo que “por espelho, confusamente” — é
perceber de pronto a falácia, não apenas do darwinismo, mas também do
evolucionismo teístico.
Mas, como indiquei, a última é a pior das duas doutrinas: pois, por mais
que o darwinismo como tal erre por uma extrapolação sem base, mas permanece
fiel ao ponto de vista científico, o evolucionismo teístico trai o próprio panorama
teológico, e, assim, engendra uma completa corrupção da sagrada doutrina.
Onde não existe ancestralidade vertical, e, portanto, uma descendência
vertical, não pode existir uma ascendência vertical, e isso precisa ficar claro. Algo
que teve sua primeira origem no espaço e no tempo terá também seu fim no
espaço e no tempo; uma tal entidade está fadada a perecer, condenada a
desaparecer como uma nuvem que se esfumaça. Mas tal não é o caso das coisas
dotadas de ser, e que, portanto, possuem essência e um ato de ser. Apenas uma
cosmologia que preserve a dimensão da verticalidade pode dar suporte a um
panorama religioso e permitir uma doutrina de imortalidade humana. Dentro dos
confins impostos pela cosmologia horizontal, as promessas da religião se tornam
apenas um engodo, ou, no máximo, uma consoladora obra de ficção.17

A ciência natural evolucionista não passa de um postulado ideológico disfarçado


em trajes científicos. Incapaz de compreender a realidade tal como ela é. Desde o
Iluminismo, o homem ocidental tem se encontrado intelectualmente num cosmos
planificado, um universo truncado de meras partículas, de uma matéria vista como
primordial e estável, quando ela não passa de “um ‘resíduo’ de uma existência esvaziada
de tudo que dantes constituía sua essência”18. Como bem observou Frithjof Schuon:

O erro dos materialistas quaisquer que sejam as sutilezas por meio das
quais eles pretendem dissolver a noção convencional e já “ultrapassada” de

17
Ibid., p. 211.
18
O Reino da Quantidade, René Guénon, p. 13.
matéria — é partir da matéria como um dado primordial e estável, quando ela não
passa de um movimento, uma espécie de contração transitória de uma substância
em si inacessível aos nossos sentidos.
Nossa matéria empírica, com tudo o que ela implica, deriva de uma
protomatéria suprassensível e eminentemente plástica. É nela que se refletiu e
“encarnou” o ser terrestre primordial, o que no hinduísmo enuncia o mito do
sacrifício de Purusha. Sob o efeito da qualidade segmentada desta protomatéria, a
imagem divina foi partida e diversificada, mas as criaturas ainda eram, não
indivíduos distintos e separados entre si, mas estados contemplativos derivados de
modelos angélicos e, através deles, de Nomes Divinos, e neste sentido era possível
dizer que “no Paraíso os cordeiros viviam ao lado dos leões”. Neste caso,
tratava-se apenas de protótipos “hermafroditas” — com forma esférica
suprassensorial — de possibilidades divinas, provenientes das Qualidades de
“Misericórdia” e “Rigor”, de “Beleza” e “Majestade/Poder”, de “Sabedoria” e
“Alegria”. É nessa hyle protomaterial que se deu a criação das espécies das coisas e
do homem, criação que é semelhante à “cristalização repentina de uma solução
química supersaturada”. Após a “criação de Eva” — isto é, a bipolarização do
“andrógino” primordial — ocorreu a “Queda”, a “exteriorização” do casal
humano, que deu sequência — já que na protomatéria sutil e luminosa tudo era
unido e solidário — à exteriorização ou “materialização” de todas as outras
criaturas terrestres e, consequentemente, a sua “cristalização” em matéria sensível,
pesada, opaca e mortal.

Portanto, percebemos que quando o cosmos foi criado, Deus colocou-se por
inteiro em apenas um ato — “Quando Deus criou os céus e a terra” —, a verdadeira ratio
seminale, donde tudo que há, nasceu, cresceu, multiplicou-se! Porque o Verbo Divino
contém dentro de si todas as criaturas atuais e possíveis, tudo o que era ou que há de vir,
isto é, nas palavras de São Paulo: “porquanto, n’Ele, habita, corporalmente, toda a
plenitude da Divindade”.19

19
Colossenses 2:9.
Os Corpos Celestes

“E fez Deus os dois grandes luminares: o luminar maior para governar o dia, e o
luminar menor para governar a noite; e fez as estrelas. E pô-las no firmamento do céu
para luzir sobre a terra” (Gênesis 1:16:17). Como percebido, a terra foi criada antes dos
corpos celestes — o sol, a lua e as estrelas —, expresso em Gênesis 1:1. O primeiro a
sustentar tal ideia foi M. Faye, isto é, ele sustenta que a terra foi criada antes do sol; ao
contrário do que os «astrofísicos» tanto afirmam. Desse modo, a terra foi criada “na
plenitude dos tempos”, antes do Sol, da Lua e das Estrelas, antes dos corpos celestes e
antes da criação da luz do firmamento que as fez “para separar o dia da noite”, e “para
sinalizar as estações”. A terra antes do seu estado físico, jazia no “contínuo
espaço-tempo”. O “aqui e agora”, princípio este conhecido como “princípio da
continuidade espaço-temporal”. Portanto, a centralidade da terra citada aqui, é antes de
tudo, icônica: não estamos ainda no domínio das quantidades mensuráveis e das relações
estritamente geométricas, que os «astrofísicos» estão enclausurados desde o advento da
ciência moderna.
I

As Estrelas

Dizem os modernos, que o universo surgiu graças a uma explosão de gás


comprimido — o Big Bang! Ou seja, o que a teoria do Big Bang afirma é que o universo
tem uma idade finita: para os astrofísicos, o universo está em uma grande entropia, isto é,
uma grande desordem que está sempre aumentando. O que significa que, em algum
momento em um futuro distante, o nosso Universo chegará a um estado de desordem
total, de entropia máxima; os cientistas chamam isso de “morte térmica” — o fim do
universo! Mas… Será que isso se aplica a criação ex nihilo? Eu diria que não. Partindo para
a questão principal, é notável que o Big Bang se parece — um “ícone” — muito com o
momento da criação do cristianismo: Fiat lux, um universo criado a partir de um ato
criativo. Como o Papa Pio XII declarou em 1951, em um discurso à Pontifícia Academia
de Ciências:

Com efeito, parece que a ciência atual, ao dar um passo de milhões de


séculos para trás, foi bem-sucedida em conseguir testemunhar aquele Fiat Lux
primordial proferido no momento em que, junto com a matéria, brotou do nada
um mar de luz e radiação... A criação, portanto, ocorreu no tempo; logo, há um
criador; logo, Deus existe!20

20
Papa João Paulo II, em outro discurso à Academia Pontifícia de Ciências, proferido em 1988, tenha advertido
contra “fazer uso acrítico e desonesto, para fins apologéticos, de teorias recentes como a do Big Bang”.
De fato, essa teoria impactou o mundo cristão depois da sua criação, contudo, é
preciso lembrar: existem ícones que podem ser extremamente perigosos. Pois como dizia
o velho provérbio Chinês: «Um homem aponta o céu. O tolo olha o dedo, O sábio vê a
lua». O que quer dizer que o ícone pode ser confundido em si com a verdade. Ora, a teoria
do Big Bang é totalmente anti-tradicional, totalmente oposta à cosmologia cristã, que é
baseada no Gênesis. Por exemplo, se pegarmos o fato bíblico de que a Terra e sua flora
foram criadas antes do Sol, da Lua e das estrelas: certamente chegaremos à conclusão que
isso exclui todas as teorias contemporâneas da evolução estelar, mesmo que tais teorias
não façam quaisquer reivindicações darwinistas.
“Desmitologizar” os primeiros três capítulos do Gênesis — como muitos
“teólogos” fazem — traz um grande prejuízo grave à fé cristã. Parece que certa fusão
entre ciência e religião está agora em curso em escala mundial, o que ameaça transformar
o cristianismo em algum tipo de “evolucionismo teísta”, mais ou menos ao modo da
quase-teologia de Teilhard de Chardin.21 Enfim, a cosmologia do Big Bang é de natureza
totalmente diferente da cosmologia bíblica.

Na cosmologia bíblica, o universo foi criado como uma união entre componentes
terrestres e espirituais — inseparáveis. Portanto, tudo nele tem uma dimensão material e
espiritual; essas dimensões são geralmente simbolizadas por uma série de camadas em
um espaço vital, com uma hierarquia bem definida em cada grau de sua corporeidade.
Camadas mais altas são leves e maleáveis e as mais baixas pesadas e sólidas.

As camadas do espaço vital (Gênesis 1:2):

Terra: A terra, porém, estava vazia e nua.


Água: As trevas cobriam a face do abismo.
Ar: O espírito de Deus pairava sobre as águas.
Luz: Disse Deus: faça-se a luz. E fez-se a luz.22

Como bem explicado pelo Matthieu Pageau: “juntos, essas duas dimensões
fornecem uma imagem completa do espaço vital na cosmologia antiga. Coisas muito
corpóreas são mais escuras e coisas muito espirituais são mais claras.”

21
Para um resumo dessa doutrina Patrística, remeto o leitor às pp. 20-25 do livro Theistic Evolution: The Teilhardian
Heresy. Tacoma, WA: Angélico Press/Sophia Perennis, 2012.
Uma documentação extensa encontra-se no tratado monumental de Fr. Seraphim Rose, Genesis, Creation and Early
Man. Platina, CA: St. Herman of Alaska Brotherhood, 1999.
22
A “luz” pode ser substituída pelo fogo, pois era, até recentemente, a única forma de luz conhecida. Desse modo,
ficaria assim: Terra, Água, Ar e Fogo. Do qual, o filósofo Aristóteles havia formulado uma teoria onde a matéria é
constituída por quatro elementos: Terra, Água, Ar e Fogo.
Exemplo:
Claro e leve

Luz:

Ar:

Água:

Terra:

Escuro e pesado

Não pretendo repetir a documentação neste texto, portanto, para mais


entendimento, ler a obra: A linguagem da criação - o simbolismo cósmico no Gênesis, de Matthieu
Pageau.23

Voltando à compreensão do universo estelar, gostaria de salientar que a ontologia


da astrofísica é obviamente física, mas diferente do que todos pensam, ela é
essencialmente falaciosa. Afirma que os objetos estelares são concebidos como feitos de
«partículas» fundamentais, onde consiste simplesmente de partículas que se movimentam
sem sentido por aí, é completamente insano, se tal caso fosse verdadeiro então todas as
aspirações humanas devem, por fim, ser vãs.
A questão que entra aqui é que, os físicos não compreendem que não são
«partículas», mas sim uma espécie de “entidade”, que como bem observou Werner
Heisenberg, “uma espécie estranha de entidade física situada no meio entre a
possibilidade e a realidade”. Desse modo, compreendemos que não existem «partículas»
(seja lá o que isso signifique), mas potentiae — no sentido aristotélico —, que representam
por distribuições de probabilidades e atualizadas pelo ato de medição. Como bem
observado por Heisenberg: “Formam um mundo de potencialidades e possibilidades em
vez de um mundo de coisas e fatos”.24
Com bem observou Wolfgang smith:

23
A Linguagem da Criação é um comentário sobre as histórias primitivas do livro de Gênesis. Muitas vezes é difícil
reconhecer a sabedoria espiritual contida nessas narrativas porque a cosmovisão científica atual está profundamente
enraizada no materialismo. Portanto, em vez de olhar para essas histórias através das lentes das disciplinas
acadêmicas modernas, como sociologia, psicologia ou ciências físicas, este comentário tenta interpretar a Bíblia a
partir de sua própria perspectiva cosmológica. Ao contemplar o antigo modelo bíblico do universo, A Linguagem da
Criação demonstra por que essas histórias são fundamentais para a ciência e a civilização ocidentais. Ele redescobre
os padrões cósmicos arcaicos do céu, terra, tempo e espaço, e os vê repetidos em diferentes níveis da realidade.
Essas estruturas fractais são encontradas pela primeira vez na narrativa da criação e, em seguida, nas histórias do
Jardim do Éden, Caim e Abel, e do dilúvio. Os mesmos padrões também são revelados nas visões de Ezequiel, no
livro de Daniel e nos milagres de Moisés. O resultado final dessa contemplação é uma visão do cosmos centrada no
papel da consciência humana na criação.
24
Physics and philosophy, Harper & Row, 1958, p. 186..
[...] “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento revela a Sua obra”: somente
assim seríamos capazes de suportar as imensidões do mundo estelar. Cabe-nos
entender que os céus que percebemos, seja diretamente ou com auxílio de
telescópios, manifestam os Céus que não percebemos, e que a vastidão
quantitativa do universo estelar reflete a verdadeira imensidade qualitativa do
mundo espiritual. Não se está a tratar aqui do simbolismo no sentido anêmico do
“meramente simbólico”, mas antes no sentido platônico de “participação” real. O
universo estelar, a saber, “participa” do mundo autenticamente espiritual, e é este
fato ontológico que confere dignidade superior às estrelas — realidades quase que
sagradas, por assim dizer, às quais o homem é obrigado a respeitar. [...]25
[...] A redução astrofísica é uma profanação, uma espécie de sacrilégio; mas
que impacto teria sobre uma civilização já profana e secularizada? O simbolismo
cósmico continuaria a ter algum tipo de eficácia mesmo não sendo mais
reconhecido e compreendido como tal? Aqui, damos por suposto que a eficácia de
um autêntico símbolo sobrevive à sua compreensão: símbolos autênticos não
morrem. O universo estelar, reiteramos, mantém um significado icônico supremo
até mesmo em nossa época de iconoclastia: ocorre apenas que seu significado se
tornou invertido — e eis que uma vez mais vem à tona a conexão diabólica que
mencionamos anteriormente! Quanto pensemos das estrelas, quanto imaginemos
do mundo estelar, tudo isso ainda exerce seu efeito sobre nós; percebendo ou não,
tudo isso influencia e afeta profundamente nossos pontos de vista sobre Deus, o
homem e o destino humano. Os céus proclamarão “a glória de Deus” ou a
suprema futilidade da existência: aqui não pode haver um meio termo,
precisamente porque o mundo estelar, em sua função icônica, significa a esfera
cósmica mais elevada. [...]26

Não é necessário, nem preciso dizer que, há uma distinção ontológica imensa
entre o entidade terrestre e entidades estelares. Porque desde muito cedo — em sua
história — o homem sempre percebeu que os fenômenos celestes resumem de maneira
ordenada toda a hierarquia do universo criado e constituem um «modelo sintético» de
toda a multiplicidade dos fenômenos que decorrem sobre a terra e dentro de cada um de
nós. Não é à toa que até mesmo Santo Tomás de Aquino fala da substância estelar como
“incorruptível”, hierarquizando os objetos estelares acima da categoria das entidades
corpóreas pertencentes ao domínio terrestre. Até mesmo São Paulo compreende tal
concepção:

Há também corpos celestes e corpos terrestres; mas a glória do celestial é


uma, e a glória do terrestre é outra. Há uma glória do Sol, e outra glória da Lua, e
outra glória das estrelas, pois uma estrela difere da outra em glória.27

Portanto, as estrelas são muito mais que bolas de gás queimando em um vácuo
tenebroso, elas são muito mais que «partículas» se movendo aleatoriamente pela
imensidão cósmica. O universo estelar é icônico supremo! Não é exagero afirmar que —

25
A sabedoria da antiga cosmologia, p. 155.
26
Ibid. p. 155.
27
I Coríntios 15.
por analogia simbólica — os grandes santos são, de fato, o ícone acabado de Deus e o
universo é a casa desse ícone.

II

Os Planetas

Para iniciarmos o tópico, quero salientar que as setes esferas celestes não são
apenas pedaços de rochas flutuantes em um vazio escuro, pois como observa Hinze: “Os
planetas, nos tempos antigos, não eram pedaços independentes de matéria localizados em
alguma parte de um espaço vazio, e sim partes orgânicas do céu arcaico, as quais retêm
suas qualidades e importância em virtude de suas posições respectivas dentro do todo”.28
Ademais, é interessante notar que antigos — como Dante Alighieri29 — utilizavam os
planetas para simbolizar graus do outro mundo, isto é, o mundo celestial. Alguns
chegaram a acreditar que cada estrela era um anjo ou um santo, porque para eles, o céu
físico era a imagem do mundo dos anjos tal como era visto da terra.

AS SETES FACULDADES DA ALMA: Para São Tomás de Aquino, há sete


faculdades da alma30, que podem ser facilmente análogas aos sete planetas tradicionais
(embora os astrônomos e astrólogos da antiguidade afirmem que eram cinco planetas e
dois luminares; utilizarei «planetas» para simplificar). Vale salientar que esta descrição da
alma é simplesmente “operativa”, isto é, ela visa a explicar como a alma realiza suas
operações, como sentir desejos, emoções ou até mesmo compreender certos
conhecimentos. Ou seja, a alma é um princípio imaterial que ordena o seu corpo material.
É ela que faz você ir ao supermercado comprar algo gostoso que traga prazer e satisfação
— é da alma que partem muitas ordens para o seu corpo.
Há, portanto, sete faculdades na alma:

1. Sentido comum / Lua


os cinco sentidos: tato, visão, audição, paladar e olfato. As
informações que recebemos deles, porém, são unificadas por uma
faculdade da alma que se chama sentido comum. Toda vez que usamos
um desses sentidos, estamos utilizando o sentido comum; o órgão
do sentido comum não é o cérebro — isso significa que o órgão do
sentido comum é espiritual.
Todos os animais são dotados de sentido comum, é ele que
permite a comparação entre os objetos de um sentido e os objetos

28
Tantra Vidyā: Archaic Astronomy and Tantra Yoga, p. 8.
29
Dante utilizava o simbolismo astrológico para organizar os círculos do inferno, os graus do purgatório e as esferas
do paraíso. Isso não quer dizer que ele entendia da arte astrológica, pois como é visto em sua obra, os astrólogos
estavam no círculo do inferno.
30
Suma Teológica, primeira parte da segunda parte, questões 75-88 (Tratado sobre o homem).
de outro sentidos. Assim, além de unificar as informações que vêm
dos cinco sentidos, o sentido comum também guarda estas
informações, que servirão de base para as operações de todas as
outras faculdades. Por isso, ele é comparável à faculdade aristotélica
da fantasia31. Todos conhecemos a aparência da Lua no céu. De que
modo ela se assemelha a isto? Em primeiro lugar, pelo fato de ela
refletir a luz, assim como o sentido comum reflete as informações
recebidas. Além do Sol, somente a Lua aparece no céu como um
disco (e não como um ponto, como os planetas), o que sugere a
ideia de um todo, o que também é semelhante ao sentido comum,
pois nossas percepções são, em um certo sentido, o todo em que
vivemos.
2. Estimativa / Mercúrio
A estimativa é uma potência capaz de “prever” os
acontecimentos. A rigor, a estimativa não capta a essência dos
objetos, nem a contempla; ela apenas nos diz o que podemos fazer
com os objetos. Por exemplo: quando você vê um cachorro, você
pode antecipar que o cachorro quer lhe morder ou quer lhe lamber.
Os animais também possuem essa faculdade, assim como
possuem o sentido comum. Basta ver que um gato que quer subir
em um armário normalmente pula sobre uma mesa antes. Mas
como podemos fazer analogia com Mercúrio? É simples, Mercúrio
é o planeta mais difícil de observar, por nunca se afastar muito do
Sol. Portanto (assim como Vênus), só é visível ao amanhecer ou ao
anoitecer. Isto parece refletir a operação da estimativa da seguinte
maneira: assim como Mercúrio só aparece ou no horizonte leste ou
no oeste, a estimativa classifica as coisas em úteis ou inúteis
(segundo um certo propósito). Mercúrio também tem aparência
faiscante, o que sugere uma representação das relações entre os
objetos e o meio.
3. Apetite concupiscível / Vênus
O apetite concupiscível é a faculdade pela qual sentimos
atração ou repulsa pelas coisas: “A gente tem desejo e para ter
desejo, é preciso percepção”. E esse é o mesmo efeito da percepção
sensível, do sentido comum e da estimativa. Isto é, quando eu capto
um objeto pelo sentido comum, eu classifico alguns como
agradáveis e outros como desagradáveis. Eu sinto uma inclinação a
me aproximar de um e uma inclinação a me afastar de outro.
Vênus é o mais brilhante dos planetas. Seu brilho prateado é
muito atraente; as pessoas que a ficam observando não conseguem
31
O De Anima, de Aristóteles.
parar. O planeta Vênus só aparece ou logo antes do nascer do Sol
ou logo depois do pôr do Sol, também representando o par
agradável x desagradável.
4. Vontade / Sol
O apetite intelectivo (ou como chamamos aqui de “vontade”32)
é capaz de inclinar-se para a ideia do bem, seja do Bem supremo ou
de um determinado bem que pode ser encontrado em vários
objetos diferentes. Quer dizer, embora, em princípio, na ordem
estrutural geral, a vontade esteja acima do desejo, na prática nem
sempre vai acontecer assim. Então é preciso que a informação
intelectual acerca do objeto seja suficiente para que a sua vontade
possa segurar aquele desejo.
Há três atos da vontade:

i. O primeiro ato da vontade é: uma vez que uma relação


universal é entendida como boa, a vontade se sente
empenhada a ter aquela intenção universal. A partir do
momento em que você percebe que comer é um bom, a
vontade é inclinada. Isto é um ato chamado de volição. A
volição pode causar uma outra operação que é a intenção.
ii. O segundo ato da vontade é: a intenção consiste em pôr as
outras faculdades a serviço da volição. Por exemplo: agora eu
quero um café. Então, o que eu faço? Agora eu tenho a
volição do café. A intenção é mover os meus músculos e o
meu aparelho corpóreo para pegar o café.33 A intenção já lhe
põe a caminho.
iii. O terceiro ato da vontade é: a escolha. A escolha consiste
no quê? Eu posso ir até a cozinha e pedir para a minha
namorada esperar um pouquinho enquanto eu pego um café.
Luiz G. de C. N. diz que a vontade é “quando filósofos e poetas de
inclinação mística (ou simplesmente religiosos) afirmam que ‘há no homem
um desejo pelo infinito’, ou seja, eles querem dizer que a vontade humana em
última instância volta-se para um objeto infinito, Deus. Afinal, todos
sabemos que mesmo os objetos que mais nos proporcionam satisfação —
como a pessoa amada, ou os estudos, ou alguma obra de arte, ou a
contemplação da perfeição de qualquer coisa — não a proporcionam
completamente. A satisfação passa, e precisamos buscá-la novamente.

32
A palavra vontade é um pouco problemática em português, porque falamos muito em “ter vontade” querendo dizer
“ter desejo”. Assim, você pode “ter vontade” de tomar um guaraná ou de ir à praia. Quando pensamos no termo
inglês will as coisas ficam mais claras; se quisermos ficar no português, precisamos trazer a ideia de “força de
vontade” para entender melhor esta faculdade.
33
Quer dizer, o movimento em si não é essa vontade, mas é o resultado dessa intenção.
Somente um objeto infinito seria capaz de atender à inclinação desta
faculdade. Pedindo muitas licenças para traduzir o primeiro verso do Tao
Te Ching nos termos desta descrição da alma, podemos dizer que ‘o Tao que
pode ser nomeado não é o verdadeiro Tao’ é o equivalente — não o idêntico —
de ‘o bem que é um bem particular não pode ser um bem universal’, e portanto a
vontade deve se inclinar para este bem universal — Tao — para
repousar.”34
Desse modo, notamos porque o Sol é análogo à vontade. O Sol
ilumina todo o céu durante o dia e ilumina a Lua durante a noite (os
antigos acreditavam que o Sol iluminava também as estrelas fixas). Do
mesmo modo, a vontade “ilumina” a alma, porque o objeto desejado pela
vontade não apenas é o mais presente na alma como ainda faz com que as
outras faculdades se organizem em torno dele. Se você deseja emagrecer,
sua concupiscência de chocolates vai se submeter a esta aspiração.
5. Apetite irascível / Marte
Vamos dizer, hipoteticamente, que você está na savana africana com
muita fome e encontra um pé de alguma fruta nativa da região, mas você
acaba se encontrando com um leão faminto! O seu apetite concupiscível
está-lhe levando na direção da árvore, mas tem um outro apetite que
está-lhe levando na direção contrária, porque tem um leão ali; você sente
desejo pela fruta da árvore e aversão pelo leão que vai lhe agredir antes de
você chegar na árvore. Mas você pode desistir da fruta, então você vai ter
que fazer uma avaliação estimativa, porque só ela é capaz de resolver os
apetites em conflito. Porque sem a estimativa você vai ficar travado,
precisa-se de um supra-apetite que decida a decisão correta — a estimativa.
Aí você vai olhar e pensar: “não, esse leão está meio mirradinho e eu tenho
aqui uma calibre 12”.
E quando você não tem uma calibre 12? Qual sentimento irá
aparecer? O desespero! O desespero vai gerar o temor, que é o contrário da
audácia, que é uma inclinação para fugir do obstáculo: “ah, não!! Vou ter
que procurar comida em outro canto, vou ter que aguentar.” O que
acontece se a reação do temor é frustrada? Na hora em que você sai
correndo, o leão lhe avista e corre na sua direção, ou seja, você agora não
tem mais escapatória. Então o que você faz? Lutar até o fim! Daí surge a
ira; o apetite que gera a esperança e a desesperança, a audácia e o temor, a
calma e a ira, recebe o nome de seu ato mais característico; apetite irascível.
O planeta Marte é vermelho-alaranjado. Seu brilho é bem diferente,
parece que ele rasgou o céu. Marte é um dos “maléficos”, quente e seco.
Assim como a vontade move as outras faculdades, o apetite irascível move
o sujeito mesmo à ação (calor), e para esta ou aquela ação (secura). Marte é
34
Ver em Introdução ao Simbolismo Astrológico - Luiz G. de Carvalho Neto.
um planeta masculino, e o tipo marcial é naturalmente o guerreiro, o sujeito
atlético, vigoroso. Mas não muito alto; mas robusto e “atarracado”.
6. O intelecto paciente / Júpiter
Luiz G. de C. N. diz que o intelecto paciente apreende, de maneira
simples e direta. Esta é sua atividade, bastante relaxada. Se “a luz está
acesa”, ele apreende; se não, não apreende. Quando apreendemos algo
assim, o objeto se torna translúcido e evidente. Assim é também o brilho
do planeta Júpiter: branco-prateado, parece translúcido e puro, como se
nem fosse um corpo. Júpiter é também um planeta masculino, associado
aos tipos generosos, doadores; o intelecto paciente, quando apreende um
objeto, enche a alma com a verdade. Júpiter é quente e úmido: o intelecto
paciente é quente na medida em que também move a alma, e úmido na
medida em que pode englobar vários objetos.35
7. O intelecto agente / Saturno
O intelecto agente (ou ativo) é a primeira potência que intui a
estrutura do objeto e separa as notas. Ele é ativo, ele precisa de um esforço
ativo para fazer esse processo. O intelecto agente seria então, como diz São
Tomás, a luz que ilumina o objeto para que o intelecto paciente possa
apreendê-lo. A associação do intelecto agente com Saturno é simples.
Saturno é o planeta mais distante, associado aos limites e dificuldades.
Basta ver o quanto a operação do intelecto agente é extenuante e difícil.
Saturno também pode ser associado ao esforço perdido; pensemos em
quantas vezes fracassamos na tentativa de entender. Para a operação do
intelecto agente ser recompensada36, é preciso método e disciplina. Por isso
Saturno é também associado a estas coisas.37

OS PLANETAS E O CHACRA: Oscar Marcel Hinze em seu livro Tantra Vidya:


Archaic Astronomy and Tantra Yoga desenvolve um longo estudo sobre a astronomia arcaica,
a ioga tântrico e os ensinamentos de Parmênides. Como explica Hinze: “O universo é
compreendido como o corpo da divina mãe do mundo, Mahā-Devi; ele se desenvolveu, a
partir de um estado pré-mundano — sahasrāra —, em seis etapas, a primeira das quais
corresponde a ājñā-chacra”.38 Essas “seis etapas” é curiosamente muito parecida com os
seis dias da criação na cosmologia cristã.
Enfim, partindo para o objetivo principal, Hinze teve que se aventurar em busca
de evidências adicionais que pudesse sustentar a ideia do seu livro: ele se volta ao
mitraísmo; como observa Franz Cumon em The Mysteries of Mithra: “Os sete passos da
Iniciação pela qual o místico tem de passar a fim de alcançar sabedoria e pureza perfeitas

35
Ibid. p. 71.
36
Isto é, para que se chegue à definição de algo. Que ninguém veja aqui algum significado “espiritual”, pois isso
depende também da graça, e sobretudo desta.
37
Ibid. p. 72.
38
Tantra Vidyā: Archaic Astronomy and Tantra Yoga, p. 39.
correspondem, nesse culto, às esferas dos sete planetas”. Mas como Hinze conseguiu
descobrir isso? Hinze descobriu em uma obra de Johan Georg Gichtel, um discípulo de
Jakob Boehme! Estabelecida essa correspondência entre chacras e planetas, Hinze explica:

O primeiro centro (Muladhara-Cakra) encontra-se na região entre os órgãos


genitais e o ânus; o segundo centro (Svadhişṭhāna-Cakra) está um pouco acima dos
órgãos genitais; o terceiro (Manipura-Cakra) está na região do umbigo; o quarto
(Anahata-Cakra) está na região do coração; o quinto (Viśuddha-Cakra) está na
região da laringe; o sexto (Ajña-Cakra) está situado entre as sobrancelhas; e o
sétimo centro (Sahasrara-Cakra) envolve a parte superior da cabeça. Cada centro é
simbolicamente representado como um lótus com um número fixo de pétalas (ou
de “raios” quando o centro é chamado de cakra).39 A série sequencial dos centros e
o número de suas “pétalas” e a analogia correspondente às esferas dos sete
planetas são as seguintes:

1. Mülädhära: 4 Pétalas / Lua


2. Svadhisthāna: 6 Pétalas / Mercúrio
3. Manipũra: 10 Pétalas / Vênus
4. Anahata: 12 Pétalas / Júpiter
5. Viśuddha: 16 Pétalas / Marte
6. Äjñā: 2 Pétalas / Sol
7. Sahasrara: 1000 Pétalas / Saturno

Com essa representação, pode-se dizer que “com efeito, todas as flores de
lótus exibem uma correspondência de segunda ordem com os planetas que lhes
pertencem”. Hinze também faz uma conexão com os cincos elementos clássicos. Eles são
os seguintes:

Lotus Elementos Yantra

16 Pétalas “Éter” (ākāśa) Círculo


12 Pétalas “Ar” (vāyu) Hexagrama
10 Pétalas “Fogo” (tejas) Triângulo (com formas-
Svastika)
6 Pétalas “Água” (apah) Lua crescente emergente
4 Pétalas “Terra” (prthivi) Quadrangular

É seguro dizer que, ninguém, além do próprio Hinze conseguiu realizar esse feito
ou considerou essa possibilidade. É de fato uma descoberta científica cujas implicações
são notáveis!
39
Tantra Vidyā: Archaic Astronomy and Tantra Yoga, p. 31.
A Ignorância à Luz da Plenitude da Divindade

Como lemos no Mundaka Upanishad: Dve vidye veditavye: paraca, apara ca. (“Dois
tipos de conhecimento devem ser conhecidos: o supremo e o não-supremo.) Sendo que o
conhecimento supremo – o paravidya, पर विद्या – é de fato – o brahmavidya, ब्रह्मविद्या –
“o conhecimento de Deus”.40 Deste modo, o Brahmavidya consiste, de certa forma, em
um autoconhecimento, e de fato, o único e verdadeiro autoconhecimento; pois já dizia o
oráculo délfico: “Conhece-te a ti mesmo”! Mas por que conhecer “a ti mesmo”? Porque
buscar o verdadeiro autoconhecimento – o Brahmavidya – é a única forma de se livrar de
todos os preconceitos contra a realidade que possuímos. É importante lembrar que, uma
pessoa cheia de certezas, torna-se uma pessoa iludida; quando Cristo disse: “se vocês
tiverem fé do tamanho de um grão de mostarda, poderão dizer a este monte: ‘Vá daqui
para lá’, e ele irá.”41 Esse monte se refere ao conjunto de preconceitos –
falsos-conhecimentos – criados pelas nossas impressões mentais. O monte (que aqui
pode ser encarado como uma parte da sua psique) é o que te impede de ver as coisas
como elas realmente são. E o que te impede de ver as coisas como elas são? Os conjuntos
de filtros que você colocou em interposição entre você e o real.
Acontece que, o ser humano é como que viciado em criar hipóteses — isto é, a
potência estimativa42 criando “falsos conhecimentos” —, porque a inteligência é incapaz
de opinar, a inteligência conhece ou não conhece; o objeto da inteligência é o ser e a
verdade, não é o não-ser e o erro. Por isso é tão comum o ser humano cair no erro, pois
foi o sujeito total que errou e não a inteligência, porque ela foi incapaz de formar juízo.
Em um certo sentido, pode-se comparar a inteligência, tal como ela é no ser
humano — e não como ela é enquanto tal, em Deus — e a estimativa com dois irmãos
da mitologia grega: Epimeteu e Prometeu. Prometeu significa “o que pensa antes” e
Epimeteu é “o que pensa depois”; Prometeu representa a sua capacidade de estimativa,
isto é, a sua capacidade de representar a realidade antes que ela se apresente
completamente. E Epimeteu representa a sua inteligência, que afirma algo sobre a
realidade depois que esta se apresentou, sendo, assim, completamente infalível.43
Ademais, a inteligência é também, de certa forma, análoga à própria Virgem44, porque
“Santa Maria” significa justamente “princesa pura”. A inteligência é assim, ela é, por si, a
coisa mais elevada que há na alma. E ela é tão elevada que é, por si mesma, sempre pura.
Ela é o Papa da alma, é infalível, mas nem sempre se pronuncia. E o ser humano não
aguenta isso, a alma dele fica completamente louca quando está em um estado de

40
Paravidya: conhecimento por Deus. Brahmavidya: conhecimento de Deus.
41
Mateus 17:20
42
A estimativa não percebe simplesmente combinações, mas possibilidades.
43
É por isso que Epimeteu é representado na mitologia como sendo tolo e Prometeu como sendo astuto.
44
Isso é expresso quando se conta, em uma tradição oral do cristianismo e do islamismo, que: “Desde criança, Maria
recebia seu alimento dos anjos. Ela não recebia seu alimento de mãos humanas”. Isso quer dizer que a alma dela não
aceitava hipóteses, mas aceitava apenas conhecimentos. Ela decidiu não formular hipóteses sobre a realidade. E nós
não aguentamos isso, nós temos que formular essas hipóteses quase que diariamente.
ignorância, quando não consegue formular hipóteses. É por isso que é excepcional a
virtude de Sócrates que convivia com a dúvida, reconhecendo a própria ignorância: “Só
sei que nada sei”.45
É preciso lembrar: apenas uma xícara vazia é capaz de conter todo o chá. E o que
eu quero dizer com isso? Quero dizer que, o ser humano só conseguirá compreender as
esferas mais elevadas — alcançar o paravidya — quando ele abandonar o aparavidya (como
Shankara46 afirma em seu livro em Mundaka I.i.4: aparavidya constituí ignorância —
“avidya” — e deve ser erradicada [...]) e, desse modo, “alcançar a visão divina não em
espelhos, mas na visão transcendentemente clara e absolutamente pura e insaciável [...]”47
— como bem expresso por São Clemente —, para que assim, como expressou São Paulo,
deixemos de ver “por espelho confusamente” e voltemos aos braços do Pai, pois
“ninguém viu o Pai, só aquele que é de Deus, este viu o Pai”48. É exatamente por isso que
se diz na escritura que “Bem-aventurados os puros de coração, pois verão Deus”49,
porque apenas um coração limpo de todos os preconceitos contra a realidade poderá ver
Deus!

Ser ou não ser um metafísico?


Eis a questão!

San

45
Nos diálogos platônicos, conta-se que Sócrates chegava a passar horas parado no mesmo local refletindo consigo
mesmo, suportando a dúvida e esperando alguma percepção da inteligência.
46
Shankara foi um metafísico, teólogo, monge errante e mestre espiritual indiano. Foi o principal formulador
doutrinal do Advaita Vedânta, ou Vedânta não-dualista.
47
VII.3. Magnum opus de São Clemente de Alexandria, intitulado de Stromata.
48
João 6:46.
49
Mateus 5:8

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