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Ectoplasma: borrando as fronteiras entre espírito e matéria1

Gustavo Ruiz Chiesa (PPGSA/UFRJ)

Resumo

Estamos acostumados a pensar que os espiritualistas atribuem a Deus, ao mundo


espiritual, ao céu, a origem primordial de todas as coisas materiais. Assim se estabelece,
desde o início, uma clara separação entre um plano espiritual, anterior e verdadeiro, e
um plano material, secundário e ilusório. Tal distinção servirá como base ou
fundamento de muitas outras distinções e dualidades que alimentaram o pensamento e a
cosmologia ocidental. É evidente que reações a este modo de conceber o mundo sempre
existiram e algumas delas serão abordadas neste trabalho. Nesse momento, a reação que
mais me interessa teria sua origem creditada aos próprios espíritos, pois partiria deles a
ideia de que existe uma substância, um fluido, uma coisa, semi-material ou material-
espiritual, que dá origem à vida na Terra. Mais exatamente, o mundo físico material,
conforme definido pela Física e Química clássicas, seria uma variação, transformação
ou continuação do mundo espiritual, não havendo uma rígida separação ou polarização
entre esses dois planos. Trata-se de um fluxo, um movimento, um processo que depende
dessa substância para acontecer. Tal substância é o fluido vital e sua variação ou
condensação será denominada ectoplasma. Encontrado em todos os seres, substrato de
todas as coisas, é ele quem assegura a estruturação de todos os organismos e possibilita
a conexão entre os mundos e corpos físico e espiritual, bem como a comunicação e a
atuação dos espíritos na matéria física terrena.

Palavras-chave: espiritismo; ciência/religião; saúde.

I begin with a puzzle. It is that the ever-growing literature in anthropology and


archaeology that deals explicitly with the subjects of materiality and material
culture seems to have hardly anything to say about materials. (…) Why should this
be so? Anthropology has long, and rightly, insisted that the road to understanding
lies in practical participation. You would think, then, that as anthropologists, we
would want to learn about the material composition of the inhabited world by
engaging directly with the stuff we want to understand: by sawing logs, building a
wall, knapping a stone or rowing a boat. A woodworker is someone who works with
wood, yet as Stephanie Bunn has observed, most anthropologists would be content
to look at the work in terms of the social identity of the worker, the tools he or she

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de


agosto de 2014, Natal/RN.

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uses, the layout of the workshop, the techniques employed, the objects produced and
their meanings – everything but the wood itself. The materials, it seems, have gone
missing. Coming to anthropology from her background as an artist and craftsperson,
Bunn was directed to the literature on material culture. But nowhere in this literature
could she find anything corresponding to the ‘bit she did’: the working with
materials that lay at the heart of her own practice as a maker. (Tim Ingold. Being
Alive, 2011)

O “material” dos espíritos: repensando o dualismo espírito-matéria


Eu também quero começar com um puzzle, um quebra-cabeça, uma “confusão”.
Ingold (2011, p. 31) pede, implora, suplica para que nós, antropólogos, “levemos a sério
os materiais”, pois é a partir deles que tudo é feito. Dizer isso numa tese que pretende
tratar de assuntos ligados à espiritualidade pode soar um pouco estranho e parecer até
contraditório. Afinal estamos acostumados a pensar que os espiritualistas ou os
religiosos atribuem a “Deus”, ao “mundo espiritual”, ao “céu”, ao “além”, a origem
primordial de todas as coisas materiais. Assim se estabelece, desde o início, uma clara
separação entre um plano espiritual, anterior e verdadeiro, e um plano material,
secundário e ilusório. Tal distinção servirá como base ou fundamento de muitas outras
distinções e dualidades que alimentaram o pensamento e a cosmologia “ocidental”, ao
menos desde a antiga Grécia, mas sobretudo a partir de Descartes. É evidente que
reações a este modo de conceber o mundo sempre existiram e algumas delas serão
abordadas neste trabalho. Nesse momento, contudo, a “reação” que mais me interessa
teria sua origem creditada aos próprios espíritos, pois partiria deles a ideia de que existe
uma “substância”, um “fluido”, uma “coisa”, “semi-material” ou “material-espiritual”,
que dá origem à vida na Terra. Mais exatamente, o mundo físico material, conforme
definido pela Física e Química clássicas, seria uma “variação”, “transformação” ou
“continuação” do mundo espiritual, não havendo, portanto, uma rígida separação ou
polarização entre esses dois planos. Trata-se de um fluxo, um movimento, um processo
que depende dessa “substância” para acontecer. Tal substância é o “fluido vital” e sua
“variação” ou “condensação” será denominada “ectoplasma”. Encontrado em todos os
seres, substrato de todas as coisas, é ele quem assegura a estruturação de todos os
organismos e, mais do que isso, possibilita a conexão entre os mundos e corpos físico e
espiritual, bem como a comunicação e a atuação dos espíritos na matéria física terrena2.
2 Sobre as noções espíritas de fluido vital e ectoplasma ver, entre outros, Kardec (2009 [1857]) e Richet
(2008 [1922]), respectivamente.

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Fica claro, porém, que noções como espírito e matéria, ou corpo e mente não
serão abolidas ou recusadas, mas sim repensadas em novos termos, menos rígidos,
substanciais e polarizados, mais fluidos, criativos e relacionais. As percepções dualistas
serão, no entanto, questionadas e reposicionadas de maneiras diferenciadas,
acrescentando outros elementos como, por exemplo, o “fluido vital”. Assim, de uma
concepção dual do homem e do universo, passamos para uma visão ternária e contínua
do ser humano formado por mente, fluido ou energia vital e corpo físico. Tal percepção,
todavia, ao invés de ternária, também pode ser monista, como bem notou Giumbelli
(2006), onde a matéria, incluindo os corpos físicos, será entendida como uma
transformação do espírito, da realidade espiritual que a sustenta, sendo, nesse sentido,
uma variação, ou uma forma de “condensação” do fluido universal.

Na fronteira entre ciência e religião


Os primeiros estudos sobre o ectoplasma foram realizados por pesquisadores –
químicos, físicos, biólogos, médicos, psiquiatras – renomados da ciência estabelecida e
praticada no final do século XIX e início do século XX, com destaque para o ganhador
do Prêmio Nobel de Medicina em 1913, Charles Richet, autor, inclusive, do próprio
termo em questão (do grego: ektos = fora; plasma = molde ou substância). Outros
pesquisadores, de diferentes nacionalidades, como Albert von Scherenck-Notzing,
Alexander Aksakof, Alfred Russel Wallace, Camille Flammarion, Cesare Lombroso,
Ernesto Bozzano, Gabriel Delanne, Gustave Geley, Paul Gibier, William J. Crawford e
William Crookes também estudaram de maneira extensa e detalhada tal “substância”,
observando, através de inúmeros experimentos, suas características e seus diferentes
usos e efeitos provocados nos seres que a “produzem”. Dentre as propriedades
relacionadas ao ectoplasma, os cientistas concluíram que essa substância apresenta em
sua composição leucócitos, células epiteliais, lipídios, muco, albumina, cloreto de sódio,
fosfato de cálcio, entre outros elementos. Sua consistência varia entre os estados gasoso,
líquido, “semissólido” e sólido, sendo, portanto, altamente plástica, elástica, instável,
fluida e volátil. Apresenta diferentes tonalidades (a mais comum, no entanto, é a branca)
e um aspecto gelatinoso, viscoso, pegajoso, que remete ao toque em uma teia de aranha.
Origina-se, nos seres humanos, em uma região próxima aos aparelhos reprodutores
(ovários e testículos), exalando um odor que lembra o ozônio, fluindo por todos os

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poros e orifícios do corpo humano, com destaque para a boca, o nariz e os ouvidos.
Diretamente influenciado por fatores emocionais e bastante sensível à luminosidade, o
ectoplasma movimenta-se de maneira sinuosa e pode assumir a forma de fios, bastões,
espirais, teias, vapores ou fumaças, apresentando fácil decomposição e
desmaterialização.
Entretanto, além das propriedades materiais físico-químicas descritas acima,
segundo os pesquisadores o ectoplasma também apresentaria uma contrapartida
imaterial, invisível, de natureza energética ou espiritual, fundamental ao corpo humano.
Desse modo, o ectoplasma teria sua origem primária naquilo que os espíritas e
teosofistas denominam como “duplo etérico” ou “corpo energético”. Também chamado
de “corpo etérico”, “corpo prânico”, pelos indianos, ou “corpo bardo”, pelos tibetanos, o
duplo etérico é o invólucro energético, sutil e provisório que acompanha, modela,
estrutura e envolve o corpo físico humano, estando relacionado à doação e captação de
energias. Tais energias ou fluidos vitais, quando materializadas ou “densificadas”,
transformam-se no ectoplasma manipulado pelos espíritos durante as sessões de
materialização. O duplo etérico é, portanto, o atributo essencial à vida, pois se trata do
reservatório e veículo natural do nosso fluido vital, absorvendo-o continuamente,
sobretudo através da respiração e da alimentação, mas também de outros modos,
distribuindo-o por todo o corpo humano, nutrindo e vitalizando todos os órgãos e
células. Assim, por exemplo, nos chamados “passes e irradiações magnéticas”, bem
como nos “tratamentos, medicamentos, cirurgias e curas espirituais”, o médium-
terapeuta atua no paciente “jorrando” sobre ele o fluido vital necessário à sua
recomposição energética, física e espiritual.
Todas as criaturas vivas, incluindo os vegetais e os animais, possuem fluido vital
e há quem diga que até os seres “não-vivos”, como as pedras e demais minerais,
armazenam, em alguma medida, essa energia vital. Dessa forma, todos os seres são, em
algum grau, capazes de produzir, absorver e externalizar ectoplasma, variando apenas
na qualidade e na quantidade do “material-espiritual” produzido, absorvido e
externalizado por cada um de nós. Tal variação é reflexo não só dos pensamentos e
sentimentos emanados pelo médium doador de ectoplasma, mas também por todo o
ambiente que o envolve, pois todos que ali se encontram contribuem para a produção
dessa substância. Pensamentos de paz, serenidade, amor e devotamento em relação ao

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próximo atuam como verdadeiros facilitadores ou propulsores energéticos do
ectoplasma que emana do “médium de efeitos físicos” responsável, por exemplo, pela
materialização de um espírito médico-cirurgião. Como veremos adiante, apoiados nas
investigações da Física Quântica, os espíritas consideram o pensamento humano como
sendo uma das forças motrizes constitutivas do mundo físico-espiritual.
A inseparabilidade entre os planos físico (ou material) e espiritual (ou imaterial)
e a conexão que certos “materiais”, como o ectoplasma, estabelecem entre essas
dimensões são, sem dúvida, elementos-chave da cosmovisão espírita. Pode-se dizer que
este curioso “objeto fronteiriço” está a meio caminho entre o espírito e a matéria e, por
consequência, entre a religião e a ciência, sendo, justamente em função disso, alvo de
inúmeras controvérsias no próprio meio espírita e também entre os cientistas. É
interessante notar a presença de uma certa analogia entre as propriedades materiais do
ectoplasma e maneira como ele pode ser analiticamente abordado. A dificuldade em
defini-lo ou delimita-lo de uma maneira precisa, sua extrema porosidade, fragilidade e
fluidez, sua transformação e movimentação constante, são características que dão ao
ectoplasma um certo “ar marginal” ou liminar e parecem combinar perfeitamente com o
lugar de fronteira e, por isso mesmo, controverso que ele ocupa entre a ciência
(sobretudo a Física e a Química, mas também, a Biomedicina) e a religião (no caso, o
Espiritismo), bem como no interior de cada uma delas.

Ciência e/ou religião: o paradoxo espírita


Bernardo Lewgoy (2006), inspirado nas análises de Gregory Bateson (1976),
sugere que pensemos a relação que os espíritas estabelecem com as ideias de ciência e
religião nos termos de um “duplo vínculo”, onde a ambiguidade e a ambivalência
estariam presentes de maneira constante em suas práticas e discursos. Essa relação é
percebida pelos espíritas ora como contraditória, ora como compatível, “gerando
oscilações e instabilidade de crença, em que alguns reconhecem-se mais no aspecto
experimental e científico e outros na componente mais evangélica e religiosa da
doutrina” (Lewgoy, 2006, p. 154). Tal ambivalência seria constitutiva do Espiritismo
desde a sua origem no século XIX e, no caso brasileiro, ficaria, segundo vários autores,
notavelmente caracterizada pela disputa entre “místicos” e “científicos” que marcaria a

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fundação da Federação Espírita Brasileira, onde os primeiros se sagrariam vitoriosos 3.
Lewgoy (2006, p. 155) chama a atenção para a diversidade das situações de “duplo
vínculo” vivenciada pelos espíritas que “deslizam no eixo ciência-religião”, por
exemplo, através dos livros publicados, das declarações e posicionamentos públicos,
“de forma nem sempre percebida como coerente pelos atores”.
No limite, todas as acepções possíveis podem estar representadas em atos de sentido
de um mesmo informante espírita num curto espaço de tempo. Este pode afirmar a
cientificidade da doutrina espírita para um amigo cético, ao mesmo tempo em que
reprova o seu materialismo. Logo após, nosso dedicado espírita admoesta um
companheiro de movimento mais intelectualista, pouco afeito à prática da caridade,
insistindo no primado da religiosidade em Kardec. O mesmo espírita, ao participar
de seu grupo de estudos, insistirá para que os médiuns mais carolas estudem mais
criticamente a doutrina espírita, sejam mais leitores, mais racionais e menos
crédulos na consideração dos fatos do dia-a-dia (Lewgoy, 2006, p. 155-6).
Entretanto, apesar da interessante reflexão que Lewgoy apresenta a partir do
conceito batesoniano, é importante ressaltar que a ideia de “duplo vínculo”, tal como
pensada em sua origem, não permite que os sujeitos envolvidos na “trama” tenham as
condições de escolher ou optar por um sentimento ou uma ação específica em
detrimento da outra. Sentimentos paradoxais e contraditórios são experimentados de
maneira simultânea, sem a possibilidade de escolha. Assim, no caso da relação que os
espíritas estabelecem com o par ciência/religião, talvez faça mais sentido pensá-la
apenas nos termos de um paradoxo e não exatamente de um “duplo vínculo” tendo em
vista que os indivíduos em questão conseguem “deslizar” ou acessar de diferentes
maneiras tal polaridade, variando a ênfase em um de seus lados (ora mais científico, ora
mais religioso) conforme o cenário e os atores envolvidos naquela cena.
Dentro deste paradoxo, uma questão crucial se colocou para o Espiritismo desde
o seu início, mas sobretudo a partir de O Evangelho segundo o Espiritismo (1864),
terceira obra da chamada “codificação kardequiana”. Trata-se da conciliação de um
“cânone” com uma “epistemologia” (cf. Lewgoy, 2006; Giumbelli, 1997), ou seja, da
adequação de “uma prática teológica de exegese ortodoxa, onde o acento é dado à
sujeição ao plano espiritual superior”, a um conjunto de práticas e “experimentações
parapsíquicas, evocações, fotografias e materializações”, essenciais à comprovação da
realidade do fenômeno espírita (cf. Lewgoy, 2006, p. 158).

3 Sobre essa “disputa” e o seu desenrolar, bem como os “problemas analíticos” em torno dela, ver
Giumbelli (1997).

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Contrário ao dogmatismo, clericalismo e aparato litúrgico e ritualístico do
Catolicismo, o Espiritismo surge, em meados do século XIX, animado pelas
“descobertas” e “avanços” da ciência iluminista, contando com a participação pioneira
de muitos cientistas em suas experimentações, conforme já destacamos, afirmando-se
um doutrina de “tríplice aspecto”: científico, religioso e filosófico. Nesse sentido,
sugere Lewgoy (2006, p. 159), “a evocação de espíritos era tida como prova
experimental do Espiritismo e tinha o seu ponto alto nas chamadas materializações,
onde manifestações de ectoplasmas luminosos ultrapassavam a divisão entre espírito e
matéria”. Assim, diferenciando-se da Igreja Católica que procurava estabelecer uma
nítida separação institucional entre religião e ciência, clero e academia, “o Espiritismo
investiu historicamente na abolição dessas fronteiras e domínios através de uma
proposta de fusão religiosa entre ciência e religião” (ibidem).
Lewgoy (2006) e Giumbelli (1997; 2003; 2006) no entanto demonstraram que a
série de perseguições que o Espiritismo sofreu durante o século XX, não só por parte da
Igreja, mas também pela ciência, sobretudo a Psiquiatria, da época, resultou num certo
“enrijecimento” da relação espírito-matéria, culminando na completa separação e
compartimentação entre essas dimensões e, mais do que isso, no progressivo
desaparecimento de práticas como as “receitas mediúnicas” e as “cirurgias espirituais”
conhecidas justamente por borrarem ou tencionarem essa fronteira 4. Assim, nessa
mudança de ênfase, procurando apostar na polarização, o Espiritismo passará a
privilegiar atividades, por um lado, “mais espirituais” do que as receitas e cirurgias,
como por exemplo a “desobsessão” e, por outro, “mais materiais”, como as chamadas
“obras assistenciais” (cf. Giumbelli, 2006). Altera-se, dessa forma, o próprio modo dos
espíritas conceituarem a relação entre os planos físico e espiritual: a matéria deixa de ser
um dos estados do espírito; ambos passam a ser tratados como domínios próprios e
distintos.
Por borrarem as fronteiras entre espírito e matéria, entre religião e ciência, tanto
as receitas mediúnicas como as cirurgias espirituais são percebidas como um grave
problema para os médicos “convencionais” e também para reconhecidos espíritas
brasileiros como Divaldo Franco, Raul Teixeira e o próprio Chico Xavier. Afinal, como

4 Em tais práticas o médium incorpora o espírito de um médico “desencarnado” que diagnostica doenças,
prescreve medicamentos (normalmente) homeopáticos e realiza operações (com ou sem o auxílio de
instrumentos cirúrgicos utilizados pela medicina convencional).

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notou Greenfield (1999), pela mistura “impura” do material com o espiritual, as
cirurgias espirituais “atrapalhavam a busca da credibilidade e complementaridade da
medicina espírita em relação à oficial” (Lewgoy, 2006, p. 162). Restava à terapêutica
espírita, portanto, uma aproximação cada vez maior com a dimensão religiosa, moral e
assistencialista, relegando ao caráter científico e experimental de seus fenômenos um
papel secundário e, por vezes, esquecido. De maneira interessante, Giumbelli (2006, p.
295) sugere que “se o contrário tivesse ocorrido, e projetando essa possibilidade para o
presente, o Espiritismo estaria participando do campo das medicinas alternativas e se
envolvendo em uma discussão frontal com a medicina acadêmica”. Tal caminho
sugerido pelo autor parece, todavia, ser precisamente o atual desejo de alguns médicos
espíritas que procuram não só dialogar com a medicina acadêmica e “oficial”, mas
também com a Física e a Química contemporânea, a partir de seus próprios termos e
formulações. Até o “ânimo cartográfico, aventureiro e literário” que Lewgoy (2006, p.
158) reconhece nos cientistas e investigadores dos fenômenos espíritas do século XIX –
ânimo este que, segundo o autor, nunca mais seria recuperado – parece também estar
presente nestes médicos e pesquisadores contemporâneos.
Lewgoy (2006, p. 162), em verdade, apesar de não explorar essa questão, já
demonstrava estar atento a uma possível atitude ou lugar diferenciado que os médicos e
demais cientistas espíritas ocupavam em relação ao restante do movimento espírita. O
autor cita rapidamente os casos do médico Waldo Vieira e do físico Silvio Chibeni como
claros exemplos de diferenciação em relação à vertente religiosa do Espiritismo e
aproximação com o mundo acadêmico e científico. Também lembra o papel que as
Associações Médico-Espíritas vêm desempenhando nas universidades procurando
referendar o emprego de técnicas espíritas no diagnóstico e tratamento médico e, com
isso, reivindicar a institucionalização da medicina espírita ao menos como uma
“especialidade médica” situada no campo das medicinas alternativas. Segundo Lewgoy
(2006, p. 163-4),
a ideia de uma espiritualidade, como dimensão autônoma a não ser confundida com
a “religião”, marca a proposta de inserção das associações médicas espíritas nas
universidades, como mostra o departamento acadêmico do site da AME-Brasil. Há
disciplinas optativas em cursos de medicina que discutem a interface entre
“espiritualidade” e “religião”, “bioética”, “aborto”, “eutanásia”, “o valor da fé e da
prece”, “células tronco”, entre outros tópicos.

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Para além de uma especialidade médica, Emerson Giumbelli sugere que o
Espiritismo seria capaz de produzir uma medicina própria, “um saber terapêutico que
corresponde à visão que possui sobre a vida humana e suas perturbações” (Giumbelli,
2006, p. 286). Derivado do fluido universal, o corpo físico e, consequentemente, as
enfermidades humanas teriam sua origem na realidade espiritual. O autor chama a
atenção, neste ponto, para a perspectiva monista que subjaz a explicação espírita, onde
“o ‘material’, ainda que assuma aspecto próprio, não deixa de ser uma modalidade do
‘espiritual’”. Logo, diante de tais enfermidades, “um ‘espírito’, ‘encarnado’ ou
‘desencarnado’, pode atuar de modo terapêutico, mediante a emanação de ‘fluidos’
sadios sobre o enfermo” (Giumbelli, 2006).
Contudo, lembra o autor, a configuração de um modelo médico próprio, distante
de uma concepção mecanicista e materialista da vida, não excluiu a possibilidade de
diálogo ou mesmo de complementaridade entre o Espiritismo e a Medicina
“convencional”. Interessado exatamente em compreender esse diálogo e as oscilações
práticas e doutrinárias desta religião, Giumbelli, procurando com isso construir uma
“interpretação não substancialista” do Espiritismo, propõe que pensemos a relação que
os espíritas estabelecem com a “medicina oficial” através da dicotomia “introjeção e
subversão”, argumento que em alguma medida se aproxima da discussão de Lewgoy.
Centrando sua análise na “mediunidade receitista”, Giumbelli (2006, p. 291) observa,
por um lado,
a introjeção pelas práticas espíritas de elementos consagrados na medicina: há a
doença e há o tratamento, o doente é atendido por um médico e é curado por um
medicamento. Por outro lado, ocorre também uma subversão, sugerida pela aliança
com a homeopatia, mas, sobretudo, provocada pela autoridade depositada nos
“espíritos”. Ao atribuir a um médico espiritual a autoridade (no duplo sentido, de
agência e de poder) pelo diagnóstico e pelo tratamento, a prática curto-circuita a
lógica que deveria conduzir o doente a um terapeuta treinado pela medicina
acadêmica e legitimado pelas leis nacionais.
Esse “curto-circuito”, no entanto, acabou se tornando cada vez mais
problemático e alvo de inúmeras perseguições judiciais orquestradas por médicos,
psiquiatras e líderes católicos (cf. Giumbelli, 1997; 2003; 2006), resultando na redução
ou extinção dessas práticas nos centros espíritas. Como vimos, tal processo afetou não
só as atividades realizadas nos centros (com a ênfase nas práticas “mais espirituais” –
passes e desobsessão – ou “mais materiais” – trabalhos caritativos e assistenciais), mas
também, e principalmente, alterou a relação entre os domínios ou dimensões material e

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espiritual. Passou-se de uma percepção monista para uma visão dualista da realidade
pautada na nítida separação entre os domínios, na dicotomia entre corpo e espírito.
Destoando dessas formas puramente materiais ou puramente espirituais, nas “receitas
mediúnicas” e, também, nas “cirurgias espirituais” tem-se, ao contrário, uma
“espiritualização da matéria” e uma “materialização do espírito”: “trata-se a doença do
corpo com a receita do espírito e crê-se que uma substância material age sobre os
fluídos espirituais” (Giumbelli, 2006, p. 299).
A percepção desta substância material/fluídica agindo e atravessando dimensões
é, todavia, algo que vêm sendo retomado sobretudo pelos médicos espíritas e que tende
a aproximar o Espiritismo, desde Allan Kardec (1804-1869), a outros sistemas de ideias
e práticas terapêuticas como, por exemplo, o Magnetismo e a Homeopatia. Giumbelli
lembra que as teorias sobre o magnetismo animal ou fluido magnético desenvolvidas
por Mesmer no final do século XVIII serviram como “fundamento científico” para a
elaboração doutrinária de Kardec. Algumas noções “mesmeristas” como a de “fluido” e
“curas magnéticas” foram absorvidas e ressignificadas pelo Espiritismo, servindo de
explicação para determinadas práticas típicas nos centros espíritas como o “passe” e a
“água fluidificada”. A Homeopatia, por sua vez, encontrava sua aplicação no receituário
mediúnico visto que a maior parte dos medicamentos recomendados pelos espíritos
médicos era homeopática. Combinando as ideias de Mesmer com as formulações de
Hahnemann (fundador da Homeopatia), os espíritas afirmam que a eficácia ou a força
terapêutica dos medicamentos receitados pelos espíritos não reside propriamente
nas substâncias materiais, mas sim em uma “substância fluídica” produzida através
das diluições e dinamizações por que passavam preparados básicos. Assim, era
enquanto um “fluido”, e não enquanto um “conjunto de átomos”, que os
medicamentos se tornavam eficazes, supondo-se que também houvesse, na fisiologia
humana, uma relação análoga entre dimensões imateriais e materiais. A primeira
delas era designada pelo termo “perispírito”, substância de natureza “fluídica”,
espécie de princípio vital que garante a sustentação da dimensão material, o “corpo
físico”, ligando-a ao “espírito”. Temos aí uma ilustração do que mais atrás chamei
de monismo da doutrina espírita (Giumbelli, 2006, p. 290).
A ideia “mesmerista” de um fluido magnético, encontrado no corpo humano e
derivado de um fluido universal, é certamente muito semelhante às reflexões espíritas
sobre fluido vital e a sua “condensação”, no organismo vivo, na forma de ectoplasma.
Assim, pode-se dizer que o magnetismo seria uma variação do vitalismo, uma espécie
de aplicação terapêutica intuitiva das teorias e percepções sobre essa essência vital que
habita e dá forma aos corpos humanos. E, deste modo, fazendo essa aproximação,

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poderemos perceber que as formulações de Franz Mesmer se relacionam não só com a
Doutrina Espírita sistematizada por Allan Kardec, mas também, em alguma medida,
com os princípios homeopáticos estabelecidos por Samuel Hahnemann (1775-1843),
considerado, entre os espíritas, o “pai da medicina espiritual”.

A vida como um “sistema”: Espiritismo, Homeopatia e Holismo


Hahnemann tinha em mente uma concepção ternária do homem, formado por
um corpo ou “organismo material”, um “espírito dotado de razão” e uma “força vital”
que lhe assegura a existência e o equilíbrio, servindo de instrumento e ligação entre os
primeiros. Somadas, essas três dimensões compõem um só ser. Nota-se, nesse sentido,
uma forte semelhança com a visão espírita sobre o corpo humano, dividido, neste caso,
em corpo físico (material), perispírito (formado justamente pelo fluido universal) e
espírito (princípio inteligente e imaterial).
A noção de força vital é, portanto, central no pensamento de Hahnemann visto
que a ela estão atreladas suas concepções de saúde, cura e doença. Estar saudável
significa dizer que a força vital está equilibrada e que o organismo como um todo
encontra-se em harmonia. Pelo contrário, estar doente ou apresentar alguma
enfermidade significa que a força vital que rege o organismo está desequilibrada,
desequilíbrio este que se manifesta através dos sintomas. Para Hahnemann, as doenças
são as imagens exteriores ou as manifestações visíveis e materiais de um desequilíbrio
essencialmente imaterial ou espiritual. E a cura virá justamente através da vontade ou do
esforço do próprio organismo (contando, se for possível e necessário, com o auxílio do
médico) para reestabelecer o estado de equilíbrio natural de sua força vital.
No momento em que a medicina – sobretudo a partir da anatomia patológica –
deixa de se preocupar com o todo (e, também, com a dimensão prática de seu saber) e
passa a focalizar, de maneira exclusiva e fragmentária, a doença e suas causas, ela
perde, segundo Hahnemann, o seu caráter científico. Ela deixa de observar e elaborar
uma concepção sobre a vida e passa a tratar da morte. Estão em jogo, nesse sentido,
mais uma vez, dois modelos epistemológicos divergentes. Um apoiado na afirmação
positiva da vida, nas ideias de equilíbrio dinâmico natural e de totalidade indissociável e
singular, e outro baseado nas doenças e suas causas, na patologia, na fragmentação, na
morte e na “luta contra a natureza” (cf. Luz, 1988). À singularidade do indivíduo

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doente, do primeiro modelo terapêutico, opõe-se a generalidade da doença, do segundo.
Ao reducionismo materialista deste último, que vê no organismo físico a totalidade dos
sistemas, órgãos e funções, opõe-se uma concepção vitalista e espiritualista que advoga
a existência de um princípio imaterial responsável por animar esse mesmo organismo
físico, garantindo-lhe seu equilíbrio e harmonia.
Insistindo na comparação entre essas duas “racionalidades médicas”, Madel Luz
chama a atenção para o fato da Homeopatia conceber a doença como um processo de
aprofundamento, que parte da “superfície” para o interior do organismo, chegando à
fase mais interiorizada quando algum órgão ou sistema encontra-se lesionado.
Desta forma, o ponto final do adoecer para Hahnemann, é o ponto inicial (porque
observável em termos de anatomoclínica) para a medicina alopática. Enfim, para
Hahnemann e seus discípulos há uma fase invisível da doença, pré-orgânica (no
sentido alopático de organismo). Por outro lado, para que haja adoecimento, isto é,
desequilíbrio vital, é preciso que haja uma “predisposição” interna, uma
vulnerabilidade que os homeopatas denominam de “suscetibilidade” do sujeito, ou
seu “terreno mórbido” (Luz, 1988, p. 135).
Concebendo a doença e o corpo humano desta maneira, através de múltiplos
planos ou dimensões (estrutural, funcional, sensorial e espiritual) que se aprofundam, a
Homeopatia pode atuar onde ainda não está presente uma alteração orgânica (cf. Diniz,
2006, p. 132), o que tenderia a aumentar a possibilidade de cura ou de
reestabelecimento do equilíbrio vital. É importante dizer que a cura, para Hahnemann,
não está ligada necessariamente à completa cessação dos sintomas físicos como crê a
“medicina convencional”. Ao contrário, os procedimentos alopáticos que tendem a
cessar os sintomas (por exemplo, uso de medicamentos para controlar uma febre 5)
podem agravar ainda mais a enfermidade. Agir assim implica em não levar em conta o
ser doente como um todo, focando-se exclusivamente em um fragmento, em uma
doença, com um propósito específico. Agir assim, diria Gregory Bateson, é não
perceber que, de fato, nós somos um sistema.
No “paradigma sistêmico” (também chamado de “ecológico”, “complexo” ou
mesmo “holístico”) os organismos vivos são concebidos como totalidades integradas e
coerentes inseridos em um processo, um fluxo contínuo de desenvolvimento, evolução e

5 Sobre esse ponto, os médicos Gilson Freire e Mauro Salgado lembram que alguns estudos já
demonstraram que a febre é, na realidade, um sinal de saúde: “ela acelera, como é próprio da ação do
calor, a atividade leucocitária, e as interações antígeno-anticorpo, ao mesmo tempo em que induz o doente
ao necessário repouso. Contudo, nos dias atuais, a este é vedado ter febre. O resultado imediato de tal
hábito é o uso abusivo de antibióticos, pois o organismo, impedido de adequada reatividade, já não é mais
capaz de se defender convenientemente” (Freire & Salgado, 2008, p. 99).

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“autorrealização”. Tal argumento contraria e tenciona a explicação mecanicista,
reducionista ou atomística que procura enfatizar as partes em detrimento do todo,
concebendo o mundo, os seres e as coisas como “blocos acabados”, uma coleção de
objetos ou entidades fundamentais isoladas de um ambiente (ou seja, de um ponto de
vista biológico, trata-se de um olhar para as células e não para o organismo). O
pensamento sistêmico, ao contrário, observa e enfatiza as conexões entre as coisas, e
não os objetos em si, pois concebe a realidade como uma “rede de relações”, uma “teia
dinâmica de eventos inter-relacionados”. Trata-se, nesse sentido, de um pensamento
processual, relacional, contextual, ambiental visto que perceber as coisas de uma
maneira sistêmica significa colocá-las dentro de um contexto, um ambiente, enfatizando
suas relações. Entre os pensadores sistêmicos a ideia de rede ou teia torna-se a principal
metáfora para a explicação dos “sistemas vivos e abertos”, em todos os seus diferentes
níveis de complexidade (i.e. rede de células, sistema de órgãos, organismos individuais,
ecossistemas etc.). A “teia da vida”, diz Capra (1996), consiste em redes dentro de
redes, sistemas vivos interagindo com outros sistemas ou redes.
Na mudança do pensamento mecanicista para o pensamento sistêmico, a relação
entre as partes e o todo foi invertida. A ciência cartesiana acreditava que em
qualquer sistema complexo o comportamento do todo podia ser analisado em termos
das propriedades de suas partes. A ciência sistêmica mostra que os sistemas vivos
não podem ser compreendidos por meio da análise. As propriedades das partes não
são propriedades intrínsecas, mas só podem ser entendidas dentro do contexto do
todo maior (Capra, 1996, p. 36).
Analisar implica em dissecar, fragmentar, decompor o todo em inúmeras partes
isoladas, destruindo suas propriedades sistêmicas. Para os pensadores sistêmicos, a falta
de um olhar sobre o todo é, sem dúvida, algo bastante prejudicial pois pode levar o
sistema ao colapso, o organismo à extinção. Transformar o “mundo vivo” em uma
“coleção de objetos” isolados e acabados, além de ser algo extremamente arbitrário,
significa, na visão de Bateson, Capra, Ingold, e muitos outros pensadores, interromper
os processos, fluxos, movimentos e relações que dão vida a esse mundo, significa, numa
palavra, matar esse mundo.
Tal perspectiva sistêmica sobre o mundo e a vida parece combinar perfeitamente
com a percepção que Hahnemann desenvolveu sobre o ser humano e seu processo de
cura. Herdeiro do pensamento de Hipócrates, Hahnemann acreditava que o papel
fundamental do médico é servir de auxiliar da natureza, ajudando o paciente no
reestabelecimento de seu equilíbrio natural. Disso adivinha a sua contrariedade em

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relação à medicina alopática, pois essa, através do uso abusivo de medicamentos e pela
ausência de um olhar atento sobre o todo, interrompe o fluxo natural ligado ao processo
de adoecer, resultando, como já dissemos, no agravamento da enfermidade ou na
produção de efeitos imprevisíveis e colaterais. A ênfase numa perspectiva sistêmica e na
capacidade dos seres vivos para o autoequilíbrio ou autorregulação é algo que
certamente aproxima a Homeopatia com as teorias da complexidade e dos sistemas. Os
princípios explicativos e o “inimigo” a ser batido (o modelo mecanicista-reducionista
difundido pela ciência convencional) são os mesmos. Citando uma dessas pesquisas
contemporâneas que buscam reinterpretar a Homeopatia à luz dos referenciais
estabelecidos pelas teorias da complexidade, Diniz (2006, p. 146) afirma que, no campo
da imunologia, os usos de altas diluições homeopáticas sobre células imunológicas
demonstraram ser “biologicamente significantes”.
A explicação se deveria ao fato de as diluições homeopáticas atuarem segundo o
princípio da auto-regulação dos organismos vivos que são “órgãos de relação”,
sistemas abertos funcionando como uma totalidade. Esta característica produz novas
funções denominadas de “propriedades emergentes”, onde ocorrem adaptações e
processo de aprendizagem, não sendo o modelo mecânico elementar o mais indicado
para estudá-las. A base dessas propriedades é a comunicação, entendida como um
“modo de ser” essencial do indivíduo ou de uma célula, que promove a informação,
envolve criatividade e possui finalidade dentro das relações estabelecidas: o ser vivo
se determina e se conserva em comunicação com seu meio (Diniz, 2006, p. 146;
grifos nossos).
As conexões entre a Homeopatia e o Espiritismo também são evidentes, a
começar pelo fato de ambos partilharem de uma percepção sistêmica (mais atenta ao
todo do que às partes), vitalista e espiritualista do universo e dos seres humanos. O
conceito de força ou princípio vital, fundamental na Homeopatia, é algo básico na
cosmovisão espírita. Os seres orgânicos, afirma Kardec (2009 [1857], p. 88),
são os que têm em si uma fonte de atividade íntima que lhes dá a vida. Nascem,
crescem, reproduzem-se por si mesmos e morrem. São providos de órgãos especiais
para a execução dos diferentes atos da vida, órgãos esses apropriados às
necessidades que a conservação lhes impõe. Nessa classe estão compreendidos os
homens, os animais e as plantas. Seres inorgânicos são todos que carecem de
vitalidade, de movimentos próprios e que se formam apenas pela agregação da
matéria. Tais são os minerais, a água, o ar, etc.
Essa “fonte de atividade íntima” que dá origem à vida na matéria é justamente o
princípio vital, definido, pelos espíritos, como a força motriz dos corpos orgânicos,
responsável por animar todos os seres que o absorvem e assimilam. “É ele que lhes dá
movimento e atividade e os distingue da matéria inerte” (ibidem, p. 89). Trata-se de uma
variação, um estado modificado, da matéria primordial, o “fluido cósmico universal”, de

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onde provém todas as coisas. Atributo exclusivo dos seres vivos “encarnados”, o
princípio ou fluido vital é, ainda, o material ou elemento fundamental que permite
estabelecer a conexão entre os planos físico e espiritual, servindo de instrumento para os
espíritos em suas “manifestações”. Assim, por exemplo, nas cirurgias espirituais ou nos
fenômenos de materialização, os espíritos utilizam-se do fluido vital fornecido pelos
médiuns presentes naquele ambiente para exercerem suas atividades terapêuticas. Fica
claro, nesse sentido, que “princípio vital”, “fluido magnético” e “ectoplasma” podem
ser, em alguma medida, tratados como sinônimos, variando tão somente o grau de
densidade ou de condensação desse mesmo princípio ou energia que tem sua origem no
chamado “fluido cósmico universal”.

“Nova ciência” e espiritualidade: “o retorno do rechaçado”

A inspiração para parte do título dessa sessão final vem da tese de Octavio Bonet
(2003) sobre Os médicos da pessoa. O “rechaçado” em questão é justamente a ideia de
totalidade e o objetivo do autor, sobretudo em seus primeiros capítulos, foi examinar em
que momento histórico a perspectiva fragmentária (mecanicista, materialista e
especializada) sobre o ser humano passou a dominar os saberes e as práticas médicas e,
também, de que maneira uma “visão holística da pessoa” começou a entrar novamente
em cena6, contrapondo-se ao modelo hegemônico, especialmente a partir da década de
1960, “pela mão do conceito da atenção primária à saúde e das políticas para o setor da
saúde” (Bonet, 2003, p. 16), e cristalizando-se nos chamados “médicos de família”.
Não por acaso, a primeira metade do século XX, caracterizada pelas “invenções”
e “descobertas” no campo das ciências física, química e biológica, e, simultaneamente,
pelas reflexões, discussões e proposições elaboradas pela cibernética e pelas teorias dos
sistemas e da complexidade, certamente colaboraram para essa retomada da ideia de
totalidade (e, por consequência, de espiritualidade) em relação à saúde e à enfermidade,
sendo esta última entendida como a “alteração do todo substancial espírito-corpo”

6 Tal momento corresponde ao que Campbell (1997) define como o processo de “orientalização” do
Ocidente, onde as ideias de totalidade, unidade, síntese, integração, holismo, subjetividade, intuição, entre
muitas outras, ganham destaque na composição de uma “nova teodiceia” alternativa ao antigo modelo
mecanicista, racionalista, materialista e dualista que imperou (e, em grande medida, ainda impera) no
pensamento ocidental. Contudo, o próprio autor (ibidem, p. 13) reconhece que essa visão de mundo
alternativa sempre se fez presente no mundo ocidental de diferentes maneiras – o romantismo, por
exemplo, seria uma dessas formas “contra-hegemônicas” – variando, talvez, apenas a intensidade dessa
presença (ou contra-presença) ao longo dos séculos.

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(Freire & Salgado, 2008, p. 102). O universo torna-se uma “grande mente”, uma
“realidade não-física”, interligada por “conexões não-locais”, compondo uma “teia de
eventos” inteligentes e imponderáveis. “Os fenômenos físicos são agora entidades
subjacentes oriundas desse novo realismo, evidenciado nos experimentos quânticos”.
(Freire & Salgado, 2008, p. 85). Tudo, inclusive a vida humana, tem origem em “um
oceano de forças invisíveis e abstratas” do qual conhecemos apenas uma ínfima parcela
(cerca de seis por cento, dizem os cientistas; a maior parte, ainda desconhecida, é
chamada de energia/matéria escura).
Volta-se assim, nos bastidores da ciência, a se conceber como viável a crença
vitalista que considerava a vida produto de um potencial irredutível ao domínio
físico. Nesse neovitalismo quântico, rasgam-se os véus do materialismo,
desfraldando-se uma nova visão de mundo, a qual ressuscitará o antigo
espiritualismo como inquestionável expressão da realidade fenomênica (Freire &
Salgado, 2008, p. 86).
Seguindo o raciocínio, os médicos espiritualistas Gilson Freire e Mauro Salgado
sugerem que apliquemos à medicina, e também às demais áreas do conhecimento
humano, as constatações que a Física Quântica vem nos apresentando cotidianamente.
Depois que a nova física destituiu o primado da matéria como fundamento do
universo (...) faz-se imperioso à medicina compreender os fenômenos biológicos
igualmente inseridos nessa mesma realidade. Ela não pode prosseguir vendo o
homem como um amontoado celular, organizado pela casualidade de átomos que a
si mesmos se criaram e gerenciam as próprias necessidades, justificando assim o seu
intervencionismo (Freire & Salgado, 2008, p. 101).
A vida como o primado do espírito (ou de uma força espiritual); a
inseparabilidade entre espírito e matéria, mente e corpo, sendo o último (o corpo, a
matéria) uma consequência ou derivação do primeiro (o espírito, a mente). Duas ideias-
chave das filosofias espiritualistas, em especial, da Doutrina Espírita. Conforme dito
acima, o Espiritismo não concebe uma separação nítida entre espírito e matéria,
considerando-os como aspectos ou planos distintos, decerto, mas que constituem uma
única realidade essencialmente espiritual. Se não há separação definitiva, existe, pelo
contrário, a interconexão, a contínua comunicação e mútua afetação entre essas
dimensões e todos os seres que nelas habitam. E o que assegura a comunicação é
presença de certos “materiais”, “forças” ou “energias” encontradas e produzidas
sobretudo pelos seres humanos. O ectoplasma, derivado do fluido vital e fundamental na
interação entre seres encarnados e desencarnados, é a primeira dessas forças. A segunda,
talvez até mais importante porque é ela quem dá forma e movimento à primeira, é a
“força do pensamento”, entendida por alguns pesquisadores como uma das forças

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fundamentais da natureza. Atrelada à ideia de uma “consciência cósmica” que atravessa
e forma todos os seres e coisas, é a força do pensamento do observador que faz com que
ora o objeto observado se comporte como onda, ora se revele enquanto partícula. Nesse
sentido, ela é capaz não só de interagir de maneira ativa com o que aparentemente lhe é
exterior, mas também de criar e sustentar essa realidade exterior. Dito isso, o passo
seguinte é associar ao pensamento ou à consciência a noção de espírito. Retomamos
assim, sob uma nova roupagem (quântica), à ideia de uma concepção tríade da
realidade, formada por matéria, energia e espírito, ou mesmo à percepção monista que
confere ao espírito (pensamento, mente ou consciência) o verdadeiro substrato do
universo e de toda a realidade física. Tal “roupagem” será perfeitamente adotada pelos
médicos espíritas na defesa de uma nova visão (espiritualista) da medicina e na
validação de certas práticas terapêuticas, como a homeopatia, a acupuntura e as curas
espirituais, não reconhecidas ou não valorizadas pela medicina convencional. Surge,
então, uma “nova medicina”, apoiada nos postulados espiritualistas, que vê “nas
expressões imponderáveis da consciência” a origem de todas as enfermidades humanas.
Compreendendo o absurdo de julgar que a matéria orgânica seja regida por si
própria, a medicina espiritualista levará em conta a existência de um ser imaterial no
comando da rede biomolecular, o qual se deve priorizar na manutenção da própria
estabilidade. E concluirá que as partes enfermas podem e devem receber
intervenções localizadas, porém apenas como suporte, jamais como intento de cura.
Sem dispensar, evidentemente, os conhecimentos adquiridos pela medicina
materialista no domínio da fisiologia e da patologia, a doença não será mais
entendida como um mero desalinho de órgãos e funções, células e moléculas, mas
um distúrbio da totalidade do ser. E o doente, não mais interpretado como uma
quimérica coleção de órgãos independentes, será tratado como uma unidade
consciente e sensível, dotado de natureza e origem imaterial e predestinado à
eternidade dos valores divinos que carrega consigo. (...) O pensamento será
compreendido como um campo de forças imponderáveis, emanado da consciência,
com decisivo poder sobre a organização física e que deve ser devidamente orientado
no estabelecimento do seu próprio equilíbrio. E o espírito, senhor absoluto da vida,
será aceito como a fonte única e soberana da consciência. Seus propósitos superiores
serão respeitados, compreendendo-se que este edifica e dirige a unidade orgânica e
estabelece a doença como premente recurso evolutivo, e não mero fracasso
biológico (Freire & Salgado, 2008, p. 107-108).
A busca por um “diagnóstico holístico”, atento à totalidade do ser doente, é o
que caracterizaria, segundo os médicos espíritas ou espiritualistas, essa “nova
medicina”. “Nova” entre aspas, porque de acordo com os próprios médicos o que se
busca na verdade é um retorno a uma “antiga medicina”, uma “velha arte”, seguidora
dos valores e procedimentos terapêuticos estabelecidos por Hipócrates, que entendia a
doença como o desequilíbrio de um todo orgânico e coerente e a saúde ou, mais

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exatamente, a cura como o processo ou movimento natural de restauração desse
equilíbrio interior. Assim, “convencendo-se de que a cura não é produto somente da
técnica, mas sobretudo de arte, a nova terapêutica deixará de concorrer com as vias
naturais da cura e abandonará o emprego exclusivo de compostos químicos artificiais e
supressivos, para se fazer o estímulo à autocura” (Freire & Salgado, 2008, p. 109). A
propensão natural do organismo para a autocura, autocorreção ou autorregulação, é uma
das ideias cruciais dessa proposta terapêutica que define o médico como um
coadjuvante, um auxiliar da natureza, esta sim, a primeira e indispensável “médica” de
qualquer ser doente.
É interessante observar que o retorno da ideia de totalidade pelos médicos
espiritualistas implica num discurso de aproximação não só com a religião ou
espiritualidade, mas também com a arte, de modo que a medicina será entendida como a
arte de curar o espírito, sendo a cura entendida aqui, conforme já dissemos, como o
restabelecimento do equilíbrio natural do organismo vivo. Isso faz sentido porque tanto
a arte como a religião, ou tanto a estética como o sagrado, diria Bateson (2006, p. 378),
percebem o mundo de uma maneira unificada ou holística, e não dualista, referem-se ao
todo, e não às partes. Ambas estão mais atentas às relações entre as coisas do que às
coisas em si e seus atributos. Estética e sagrado são, para Bateson, dimensões
integradoras da experiência humana. São modos de ser e perceber o mundo que
estabelecem conexões e não divisões. Assim, o sentido de totalidade ou de unicidade
presente numa percepção sagrada (e estética) do ser humano será resgatado pela
medicina espiritual no intuito de valorizar as relações entre os seres (e no interior dos
próprios seres) e compreender o ser humano como um todo, em suas múltiplas
dimensões. Sem dúvida, atingir essa percepção e compreensão do mundo e do ser
humano pela medicina não é algo fácil. Como sugere Bonet (2003, p. 355), “são poucas
as consultas nas quais se reúnem todas essas condições práticas, contextuais e de
habilidades pessoais que permitem o encontro de dois seres no mundo”. Mas também
não é impossível e os médicos de família são um belo exemplo desse movimento em
direção à totalidade, à compreensão holística do mundo.
Se entendermos esse holismo, essa totalidade à qual se poderia ter acesso, como o
sagrado, pensando-o “como o contexto integrado do processo mental que envolve
todas as nossas vidas” (Bateson e Bateson 1989: 198), a medicina poderia ser
colocada, junto com a religião e a arte, como uma via de acesso ao sagrado. Mas
para alcançar essa posição, a medicina de família deveria valorizar a dimensão de

18
arte que tem toda biomedicina, e que se teria menosprezado em defesa da medicina
como ciência; e precisaria estar atenta à armadilha que lhe será imposta pela
consciência, selecionar determinados circuitos que integram essa totalidade e definir,
em consequência, um propósito. E, com isso, define-se a última das tensões
constitutivas da medicina de família: a necessidade de estar atenta à totalidade e à
parte. De procurar a totalidade da pessoa do paciente e de resolver os sintomas que,
em algumas circunstâncias, afetam circuitos parciais (Bonet, 2003, p. 355).
Estar atento ao todo e às partes, não descartar “os conhecimentos adquiridos pela
medicina materialista”, mas perceber a doença como algo mais que “um mero desalinho
de órgãos e funções, células e moléculas”. Este parece ser o desafio colocado àqueles
que queiram praticar a “medicina espiritual”.
Além de conhecimentos de fisiologia e da patologia humana, a educação médica
concitará o novo médico a uma formação eminentemente humanitária, embasada em
segura orientação filosófica, exigindo-lhe moral elevada como quesito indispensável
ao exercício da arte da cura. O culto à beleza e à vida, o respeito ao determinismo
divino que norteia a ordem orgânica, e a valorização da subjetividade e dos
sentimentos humanos na abordagem da dor e do sofrimento serão quesitos
incorporados com naturalidade à formação do novo profissional. E assim, medicina
e espiritualidade estarão unidas para a cura do homem em sua totalidade (Freire &
Salgado, 2008, p. 109-110).

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