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A LIVRE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA DE FRANÇOIS GENY

Alice Araújo
Carolina Barros
David Menezes
Luana Coimbra
Marcos Antônio
Maria Luisa Oliveira
Natasha Porto

RESUMO

Nascido em 17 de Dezembro de 1861, o jurista e professor François Geny se debruça durante


seus noventa e oito anos de vida na produção intelectual sobre a problemática da
hermenêutica do direito no cerne da França revolucionária e auge da Belle Époque. Partindo
desse pressuposto, torna-se incontrovertível a importância de seu ideário ao arcabouço teórico
do direito contemporâneo, construindo seu legado no tangente ao grande cambio na maneira
de fazer jurisprudência em outrora. Assim, para entender por completo sua obra crítica aos
"meios de fazer direito" da época, culminando no tomo "Méthode d'interprétation et sources
du droit privé positif" , faz-se necessária a análise histórica e social do período em questão e
aos múltiplos contextos posteriores resultantes nos hiatos e críticas à sua proposta.

Palavras-Chave: François Geny; Livre Investigação; Hermenêutica.

1. INTRODUÇÃO

Reconhecendo que o método do autor em questão está entre os cinco principais


métodos interpretativos do direito é possível direcionar um maior enfoque ao Método
Tradicional da Escola da Exegese precedente à livre interpretação de Geny. Constituindo seus
alicerces no iluminismo, ganhou força nos ideais da Revolução Francesa e, com o advento da
promulgação do código civil francês de 1804, foi aplicada claramente no Direito. (Reale,
2002, p.410). No entanto, mesmo estando inseridas no mesmo contexto essas correntes do
pensamento jurídico usavam de elementos divergentes na busca da melhor maneira de
exercer a atividade de interpretar o direito ao remeter a revelação do alcance que tal norma
possui, e o em qual sentido ela pode ser aplicada efetivando seu objetivo de criação.
O decurso de um momento extremamente racional, cujo primado da racionalidade
humana influenciam no nascimento de leis com mais complexidade e estruturação mais
"blocada", já que havia um aumento na "injeção de racionalidade". Esse processo gera uma
instrumentalização da razão de tal forma que essa se infiltra em diversas áreas da sociedade
até que se converte na própria estrutura da sociedade. Assim, o objetivo da Escola da Exegese
era tornar o Direito “um sistema de conceitos bem articulados e coerentes, não apresentando
senão lacunas aparentes”. (Reale, 2002, p.416). Visto como a principal expressão da corrente
contrária, François Geny cujas bases se amparam na premissa de que os fatos sociais,
reclamam uma postura diversa daquela galgada pelos exegistas.

2. CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO

Quando nasce no final do século XIX, a teoria da livre interpretação toma espaço em
um período considerado por historiadores como transição entre a idade moderna e
contemporânea, em meio às diversas mudanças trazidas pelos movimentos da Revolução
Francesa. Anteriormente, ainda no século XVIII, a região francesa vivia o modelo de
absolutismo monárquico, personificado na figura do rei o Estado, reunindo o que seria o
poder Legislativo, Executivo e Judiciário, essa conjuntura somada à organização social
excludente já formava um cenário que galgava tensões políticas entre as classes sociais.
Ademais, vale ressaltar as inúmeras guerras em que a França se envolveu, desgastando-se
economicamente fato insustentável dado o orçamento necessário para sustentar as burocracias
governamentais.
Por esses motivos, enquanto ocorria o desenvolvimento industrial na Inglaterra, a
França ainda era um país rural, pois grande parte de sua população ainda desenvolvia
atividades agrícolas. (Cáceres, 1996, p. 282). A classe burguesa era oprimida pela nobreza e
impedida de ampliar suas fortunas visto o modelo mercantilista rígido que impedia a
implementação do capitalismo, acarretando em elevados tributos para custear o estilo de vida
do primeiro e segundo estado, além de intervenções constantes em seus negócios. O
somatório dessas questões culmina no marco de 9 de julho de 1789, devido às divergências
políticas e ideológicas entre os três estados, o 3o Estado, entendido como a burguesia,
proclamou-se independente, constituindo a Assembléia Nacional Constituinte. (Cáceres,
1996, p. 284 e 285).
A partir desse evento simbólico, ocorre na França uma limitação do poder real
tornando o rei o chefe do Executivo e a burguesia encarregada do poder Legislativo, logo
dividindo os interesses entre o grupo dos Jacobinos e Girondinos se alternando no poder. As
constantes mudanças na constituição francesa e inconstância nos interesses enfraqueceram o
grupo até que cedessem às pressões do exército, que acreditava que a revolução não
suportaria os ataques dos inimigos internos e externos sem a imposição de uma ditadura
militar (Cáceres, 1996, p. 289). Até que enfim em 17 de Novembro de 1799 ocorre o golpe de
18 de Brumário, tornando Napoleão Bonaparte o cônsul principal e ascendendo a burguesia
ao poder Legislativo definitivamente.
Pode-se dizer que é após os últimos acontecimentos supramencionados que se dá
início à limitação imposta na aplicação do direito, acontecimento que provoca a corrente
exegista do pensamento jurídico. A codificação adotada pode ser sumarizada no seguinte dito
de Miguel Reale:

Era um sistema jurídico complexo, dominado pelos esquemas gerais das


Ordenações Régias, completadas pelos usos e costumes, pelos preceitos do Direito
Romano e do Canônico, pela opinião comum dos doutores e os recursos ao Direito
Natural, concebido este de maneira abstrata, como que um Código de Razão do qual
defluia uma duplicata ideal do Direito Privado. (2002, p.65).

Fica claro, portanto, que a escola de Geny é contrária aos interesses da burguesia que
não visava ser regida por regras propostas pelo Direito Canônico e, muito menos, utilizar
recursos empregados pelo Direito Natural. O autor trata de descrever a prática jurisprudencial
desde uma visão sociológica, "realista" emitindo um juízo "ético-político" sobre como
deveria ser a interpretação jurídica e destaca a necessidade de uma observação neutra nas
mudanças sociais.

3. AS BASES TEÓRICAS DE FRANÇOIS GENY

Emanando de um clima político intrincado, o cunho central da teoria de Geny advém


do entendimento da necessidade de inclusão dos "costumes" buscando um método que
concilie a tradição literal do texto com as possibilidades sociais que seus efeitos podem
viabilizar, após passados mais de 100 anos da Revolução Francesa que manifestava a
necessidade de atualização de seus dispositivos coativos. Isso marca o início de um
movimento Simone Goyard-Fabre chama de “invasão do direito pelo fato”, que em suas
palavras pode ser assim descrito: “os âmbitos da razão jurisladora ficam, dizem, mais
flexíveis com o contato com a experiência” levando a autora a afirmar que o Direito “assumiu
uma fisionomia mais dúctil e flexível”. Sua crítica à corrente de pensamento anterior foi
formulada nos seguintes termos:

"[...] hay que renunciar, aun en nuestro régimen de codificación, a encontrar en la ley
escrita una fuente completa y suficiente de soluciones jurídicas. Por outra parte, el
sistema de concepciones abstractas y construcciones puramente lógicas es impotente
para dotar a la investigación científica de outra cosa que de um instrumento de
exploración, sin valor objetivo, que puede sugerir soluciones, pero incapaz por si solo
de demonstrar el fundamento sólido, ni de adquirir el mérito intrínseco y la verdad
durable."

Para o francês, os métodos tradicionais falham de modo grave quando há a


necessidade de se buscar na lei uma vontade não explicitamente proclamada pelo legislador.
Nas principais obras literárias em que desenvolve o pensamento, Méthode d’Interpretation et
Sources en Droit Privé Positif (1899) e Science et Technique em Droit Privé Positif (1914),
concordava que o ponto de partida do direito deveria ser a lei, sendo então a fonte primordia,
porém nenhuma lei seria eficaz o suficiente para alcançar todo o campo das relações sociais
juridicamente significativas, tarefa executada pelo juíz. Nas situações em que a lei for omissa,
obscura, insuficiente, deve o intérprete recorrer às fontes suplementares do Direito,
representadas pelos costumes (antiga e sempre recorrente), a autoridade, a tradição e a livre
investigação. Esses principios podem ser observados na máxima “la investigación científica
del intérprete no interviene com plena libertad más que para suplir las fuentes formales (ley,
costumbre) defectuosas” do autor.
Primeiramente, aclarando essas fontes complementares do direito, para o autor,
costumes poderiam ser definidos como a fonte mais antiga e primária do direito adotada em
todas as sociedades, a autoridade significaria considerar opiniões abalizadas das pessoas e
entidades de competência reconhecida. Partindo para a tradição, pode ser caracterizada como
ensinamentos e experiências exitosas dos mestres juristas no passado e, por fim, a livre
investigação que leva o nome de seu pensamento seria a busca pelas fontes do direito vivo.
Em suma a crítica revolve ao redor de dois principais pontos: o primeiro, toda solução
jurídica deve estar relacionada direta ou indiretamente à literalidade da lei e em segundo, a
circunstância de que ideias interpretativos preconizados por esses métodos se regem por uma
lógica simplista, principalmente dedutivista e por conceitos abstratos.
Portanto, é evidente que o jurista se ampara no pilar adaptativo da ordem jurídica às
circunstâncias históricas de cada momento, isso faz com que as principais categorias da
investigação possam ser encaixadas no "dado" (pela legislação) e no "construído" (a
investigação sob sua insuficiência resolutiva). Na seguinte referência se entende plenamente
o objetivo do francês em suas teses:

"Geny buscava, com esta categoria, evitar as soluções subjetivistas difundidas a


pretexto de que subscritas aos reclames do legislador e à sua vontade original. Sob o
ângulo da falibilidade dos métodos tradicionais, o jurisconsulto francês propõe que
esta atitude supletiva se dê, mediante critérios controláveis e objetivamente
descritíveis, de modo a controlar uma ideia que depois seria desenvolvida por
Kantarowicz na Escola do Direito Livre." (MAGALHÃES, Vinícius. p. 19, 2016)

Contudo, não se pode reparar essa corrente com olhos anacrônicos, até porque o fator
tempo é bastante primado em seus escritos, por isso com o passar do tempo é possível
enxergar hiatos em sua teoria debatidos por diferentes autores. Assim, é de suma importância
a discussão das críticas ao sistema de investigação livre.

4. CRÍTICA À LIVRE INVESTIGAÇÃO JURÍDICA

Apesar da tentativa de abarcar diversos fatores tanto sociais e políticos quanto


metodológicos da área jurídica, o pensamento de Geny não sai isento das ações do tempo e
das transformações da sociedade e suas normas jurídicas. Segundo Dissaux, Geny oculta seu
conservadorismo social através de seu modernismo metodológico, utilizando de objeto senão
a construção de uma filosofia da ciência jurídica cuja essência dependa de uma teoria mais
geral do conhecimento (PÉREZ CÁNOVAS, Lionel Adrián. 2021).
Para além das críticas ao seu modelo metodológico, fica evidente que François Geny
barganhou o primado da vontade do legislador pelo primado da vontade do juiz, bem como já
havia apontado Lênio Luiz Streck. Com isso, nota-se que não existe uma ideia de liberdade
criativa desvinculada a lei embora tenha introduzido o paradigma do sociologismo na
hermenêutica jurídica, o fez de modo incompleto e desvinculado de uma preocupação mais
aprofundada de propor uma estrutura de controle, a fim de evitar eventuais – e prováveis –
decisionismos nas esferas de delimitação do conteúdo da lei. Tecidas essas considerações, a
colocação de Vinícius de Mattos Magalhães é extremamente pertinente na crítica supracitada:

"Embora formule uma crítica calorosa ao fetichismo legal e aos métodos que
centralizam o sentido determinado pela interpretação na positividade do Direito –
que, para François Geny, acabam por desaguar em um subjetivismo ainda maior,
especialmente, quando se está diante de uma lacuna – o jurista francês não decretou
o fim da importância da literalidade da lei. A bem da verdade, para Geny as fontes
formais do Direito (a lei e o costume, que para Geny integra o campo de fontes
formais) devem constituir o primeiro passo no esforço interpretativo, sob os limites
de cuja circunscrição opera-se a ideia de construtivismo que irá perfilhar. Apenas
quando for insuficiente o seu manejo é que o aplicador do Direito poderá fazer uso
de uma livre investigação científica construtiva, já que “nestas hipóteses, e apenas
nelas, o intérprete poderá exercer uma atividade criativa e não meramente
aplicativa”, ou, como sublinha Geny, “la investigación científica del intérprete no
interviene com plena libertad más que para suplir las fuentes formales (ley,
costumbre) defectuosas”."

Ainda vale salientar a tentativa falha de "equilíbrio ideológico" do autor, pois estaria
dando luz à uma teoria pendente ao viés liberal, individualista e anti-intervencionista do que
de fato social. O jurista francês acaba por descrever a prática jurisprudencial desde uma visão
sociológica, "realista" emitindo um juízo "ético-político" sobre como deveria ser a
interpretação jurídica e destaca a necessidade de uma observação neutra nas mudanças
sociais. Destarte, o posicionamento imparcial que adota no desenvolvimento torna-se uma
problemática intimamente ligada aos elementos que considera fonte suplementares do direito,
sendo essas todas cunhadas, mesmo que indiretamente, de algum juízo de valor. Esse
imbróglio pode ser observado hodiernamente em declarações e decisões judiciais, como visto
na seguinte passagem escrita por Flávia Santiago Lima:

"No referido trabalho, a Suprema Corte estadunidense somente lograria o objetivo


de impedir mudanças no panorama político caso cumprisse a condição de manter
consistência com os valores adotados por aqueles que representassem a maioria
legislativa, num dado momento da história e da política.
Diversos modelos formais apresentados pela literatura da Judicial Politics,
oferecem hipóteses e premissas explicativas do comportamento judicial, seja este
ativo ou omissivo, seja ativista ou autocontido. Para o modelo estratégico, as
instituições jurídicas importam e podem influenciar no comportamento dos atores
judiciais, mas não sozinhas, sendo um dos conjuntos possíveis de variáveis numa
vasta rede de incentivos.
Na lógica do referido modelo, os juízes adotam estratégias para chegar aos seus
objetivos, uma vez que considera a existência de várias restrições externas ao seu
comportamento, pois levam em consideração a reação de todos os agentes no pro-
cesso jurídico-político, seja no âmbito interno ou externo dos tribunais, bem como
as consequências futuras de suas decisões em outros campos, a exemplo do
equilíbrio democrático e da economia3. Neste sentido, as cortes têm o desafio de
acomodar os entraves externos para manter sua integridade institucional. Ao
antecipar que eventuais confrontos podem resultar em perda (ou relativização) da
independência judicial, sua tendência seria evitar o confronto com outros ramos de
poder." (LIMA, Flávia Danielle Santiago e GOMES, José Mário Wanderley. 2018)

Nessa lógica, haveria uma inviabilidade e adversidade na utilização prática de fatores


que tangenciam concepções, crenças e/ou empecilhos consuetudinários, ou já enraizados nos
"costumes" mencionados por Geny. Enfim, para também demonstrar que essa grande lacuna
na teoria do autor não se faz ausente em âmbito canarinho, constatado na seguinte máxima:
"The Court routinely alternates its strategic behavior compatible with institutional
dialogues (the arbitrator, activist, or self-contained institution differences); its stance
on constitutional hard cases depends on the economic context or the issue involved
in its trial agenda, on invoking dogma to refrain from deciding, and sometimes
surpassing it to decide in the act of flagrant creative activity.
The Constitutional Court is within politics, being even one of its decisive factors, if
by politics is meant the activity directed to the coexistence, however, the Court is
apolitical if by politics is meant the competition between the parties for the
assumption and the management of the power." (BRÍGIDA, Yasmin Salgado Santa.
2020)

Dessa forma, fica evidente na prática as bases da crítica ao posicionamento de


François Geny, caindo por terra parte de suas teses colocadas em cheque pela ação temporal e
influência imponderável da moral humana.

5. CONCLUSÃO

Logo, é inequívoca a influência do autor no confronto do pensamento extremamente


racionalista do momento histórico em que desenvolve os tomos acerca da teoria da livre
investigação. Ademais, sua produção intelectual, ao considerar diferentes fatores na
construção de um direito cada vez mais próximo à "perfeição" ou mesmo a maneira mais
polida que pode se manifestar sob uma sociedade, motiva a busca de variados atores
posteriormente por essas questões paralelas à norma. Assim, fica claro os pressupostos da
corrente despontada pelo autor, bem como as críticas formuladas ao longo das sucessões
histórico-políticas que estremecem suas bases acadêmicas.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PÉREZ CÁNOVAS, Lionel Adrián. El pensamiento de François Gény: metodología, epistemología y


ontología jurídica. Proyecto de investigación:, 2021.

LIMA, FLÁVIA DANIELLE SANTIAGO e GOMES, JOSÉ MÁRIO WANDERLEY Autocontenção


à brasileira? Uma taxonomia dos argumentos jurídicos (e estratégias políticas?) explicativo(a)s do
comportamento do STF nas relações com os poderes majoritários. Revista de Investigações
Constitucionais [online]. 2018, v. 5, n. 1 [Acessado 3 Março 2022] , pp. 221-247. Disponível em:
<https://doi.org/10.5380/rinc.v5i1.55990>.

BRÍGIDA, YASMIM SALGADO SANTA and VERBICARO, LOIANE PRADOThe battle of


narratives between the powers: party hyperfragmentation, judicialization of politics and supremocracy
in the Brazilian political-institutional system. Revista de Investigações Constitucionais [online].
2020, v. 7, n. 1 [Accessed 3 March 2022] , pp. 137-159. Available from:
<https://doi.org/10.5380/rinc.v7i1.69637>. Epub 30 Nov 2020.
MAGALHÃES, Vinícius de Mattos. O construtivismo de François Geny e a metódica estruturante de
Friedrich Muller: Há um paralelismo possível entre a escola da livre investigação científica e a teoria
estruturante do direito?. THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do
Ceará, v. 8, n. 2, p. 15-26, 2016.

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