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Economia mundial: O risco de uma tempestade perfeita https://www.resistir.info/crise/tempestade_perfeita_03nov...

Economia mundial: O risco de uma


tempestade perfeita
Juan Torres Lopez [*]

Quando as economias afundaram


após o Covid-19, líderes políticos e
economistas de grandes organismos
internacionais diziam que não se
sabia quando chegaria a
recuperação mas que, uma vez começada, as
economias iriam registá-la de modo muito potente e
duradouro. Outros, pelo contrário, dissemos que isso
não iria ocorrer porque a economia internacional não
estava afectada só pelos efeitos do confinamento mas
também por uma crise muito profunda que começara a
manifestar-se já antes da pandemia.

Os dados macroeconómicos que se vão conhecendo


nas últimas semanas deram-nos razão. Os preços
estão a registar as maiores subidas das últimas três
décadas e o crescimento do PIB é bastante mais baixo
do que o estimado há apenas uns poucos meses.

Em Espanha surpreendeu-nos a subida dos preços


homólogos em fins de Setembro (5,5%) por ter sido a
mais elevada dos últimos 29 anos, mas é exactamente
o mesmo recorde que o da Alemanha (4,5%) e um ano
menos que o dos Estados Unidos (4,4%), o mais alto
desde 1992, segundo dados do Banco Mundial.

Os dados da evolução do Produto Interno Bruto


também mostraram que as economias já perderam o
fôlego, o qual disparara com enorme força ao acabar o

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confinamento.

Em Espanha, o crescimento tem estado muito abaixo


do previsto. O Instituto Nacional de Estatística registou
um crescimento homólogo de 17,5% de Maio a Junho
deste ano. Contudo, o percentual estimado para o
período de Junho a Setembro foi de 2,7%, o que dá
ideia da travagem. Sobretudo, se se considerar que o
consumo das famílias caiu no trimestre do Verão
(-0,5%), ainda que não o investimento (2%) nem as
exportações (6,4%).

Na Alemanha verificou-se mais ou menos o mesmo. O


PIB cresceu 1,8% no terceiro trimestre deste ano,
quase a metade do previsto em Abril e duas décimas
menos que a Espanha. E uma investigação recente de
David Blanchflower, professor de Dartmouth e ex-
membro do Comité de Política Monetária do Banco da
Inglaterra, e Alex Bryson, professor do University
College de Londres, sugere que os Estados Unidos
entrarão em recessão no fim do ano.

Aqueles que antes diziam que a recuperação seria


poderosa e sem reservas, agora assinalam que nos
encontramos diante de problemas “transitórios”. Dizem
que não deve haver demasiadas preocupações com a
subida de preços porque é devida a circunstâncias
passageiras como a alta nos custos da energia ou os
desajustes provocados pela pressão de procura
retirada durante o confinamento. O enfraquecimento
da actividade parece tê-los surpreendido tanto que não
acabam de explicá-la.

A meu ver, é um erro acreditar que nos encontramos


perante um simples incidente como consequência da
pandemia e, portanto, passageiro e resolúvel à medida

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que tudo se vá normalizando.

Para entender o que nos está a acontecer é preciso


colocar os dados que agora se começam a registar por
todo o mundo junto àqueles que tínhamos antes da
pandemia.

A fazê-lo, poder-se-á descobrir que não estamos a


sofrer só o impacto de um simples transtorno, por
muito grave que tenha sido aquele provocado pelo
Covid-19 e pelo confinamento que paralisou grande
parte da actividade económica.

Sofremos o que os médicos chamam “morbilidade


associada”. Ou seja, a confluência, não
necessariamente ao mesmo tempo, de outros males
com a enfermidade primária.

O erro é acreditar que as economias sofreram ou


continuam a sofrer o efeito da pandemia como
enfermidade única, quando a realidade é que foi uma
patologia económica associada a outra – a primária –
de que já se estava a sofrer anteriormente.

É verdade que o confinamento produziu um bloqueio


nos canais de abastecimento por diferentes razões:
muitas empresas produtoras tiveram que fechar e não
tiveram capacidade material de recuperar o ritmo de
produção anterior, outras compradoras aumentaram os
seus pedidos excessivamente por precaução mal
gerida, produzindo açambarcamento; e as de logística
e transporte viram-se afectadas por mudanças tão
imprevistas e rápidas na oferta e na procura quando,
além disso, há problemas de rotação nos mercados
laborais. E também é verdade que a procura, em
quase todas as economias, inicialmente saltou com

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força após o confinamento, provocando uma inevitável


pressão sobre os preços.

Mas a prova evidente de que não se trata apenas de


problemas de ajuste conjuntural é que afectam de
modo muito desigual diferentes sectores. E a
complexidade do desajuste é demonstrada pelo facto
de que não se está a resolver como a economia
convencional diz que se deveria resolver – mediante o
mecanismo dos preços. Estamos a comprovar,
efectivamente, que a subida de preços não só não
reduz o excesso de procura como inclusive que esta
aumenta à medida que se vão elevando.

Para entender o presente é preciso analisar o que já


estava a acontecer bem antes da pandemia.

Em primeiro lugar, um processo que vinha desde há


muito de queda da taxa de lucro na indústria em
consequência da travagem no investimento produtivo e
da constante retenção da procura de consumo por
causa da queda da massa salarial.

Em segundo lugar, o enfraquecimento da globalização


dominante nas últimas década em consequência das
assimetrias e brechas cada vez maiores que veio
produzindo, não só entre grupos sociais e nações
como inclusive entre as diferentes franjas do capital,
das empresas.

Em terceiro lugar, um encurtamento do ciclo


económico como consequência da continuada
aplicação de políticas económicas inadequadas que
travam a extensão das fases expansivas ou de
recuperação e assim impedem que se possa criar
suficiente produção e emprego.

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Em quarto lugar, o continuado privilégio da actividade


financeira que criou uma economia droga-dívida-
dependente com milhões de empresas zumbis que
têm de dedicar todos os seus lucros, se é que os têm,
para pagar a dívida e que paralisam o aumento da
produtividade e da inovação. Um estudo da Bloomberg
calculou que assim se encontram 527 das 3000
maiores firmas dos Estados Unidos e algumas
estimativas assinalam que a nível global poderiam
estar nessa situação mais de 20% das empresas.

Nesse contexto e por essas causas, já antes da


pandemia vinha-se verificando um processo de
relocalização empresarial, de busca de novos nichos
de aprovisionamento e vendas e, sobretudo, o início
de uma autêntica revolução no sistema global de
logística.

Este último é, na realidade, o que explica (e não a


pandemia) a maior parte dos estrangulamentos que
vêm provocando a escassez de abastecimentos que
acarreta tantas perdas (110 mil milhões de dólares,
calcula-se, para a indústria mundial do automóvel) e
que está a obrigar muitas empresas a realizar
movimentos estratégicos de grande porte para não
desaparecer se as perturbações prosseguirem.

Durante o confinamento observaram-se os primeiros


sintomas da perturbação (dissociações, bloqueios de
estradas, atraso de contentores, aumento de tarifas,
escassez de transportadores) e muitas empresas
tiveram que diversificar rapidamente suas cadeias de
abastecimento para evitar riscos. Isso exacerbou os
desajustamentos, certamente, mas se tudo isso está a
resultar tão problemático é porque se estava a verificar
uma mudança crucial anterior. E a prova é que as

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coisas, em vez de melhorar à medida que se vão


recuperando os intercâmbios, estão a piorar.

O sistema global de logística estava a responder à


crise industrial e da globalização que mencionei
gerando uma autêntica revolução tecnológica
orientada para automatizar as redes globais mediante
a digitalização e a inteligência artificial, um processo
desenvolvido através de estratégias diferentes e com
diferentes velocidades e resultados, sobretudo, entre a
China e os Estados Unidos. E aqui está a chave.

A pandemia acelerou o processo (tal como ocorreu em


outros momentos da história em que se verificaram
choques inesperados) mas o que ocorreu com a
pandemia não é o próprio processo.

O que está em cima da mesa e gera os problemas que


estão a sofrer as empresas e a economias no seu
conjunto não é a normalização do sistema de
abastecimento anterior à crise do Covid. Este não vai
voltar a ser o que era. Agora trata-se de algo mais
importante. A globalização já não vai continuar
guiando-se pela mesma lógica de competição anterior.
O custo e o preço vão deixar de ser determinantes do
lucro e passarão a sê-lo na imediaticidade e na
segurança e as empresas hão de modificar suas
estratégias de produção, abastecimento e localização.
Esta é a desordem na qual começamos a mover-nos e
a que provoca a escassez e subidas de preços. Por
isso é ingénuo acreditar que se vai resolver numa
questão de meses.

O que está em jogo é o redesenho e o controle do


novo sistema logístico global digitalizado e
automatizado graças à inteligência artificial que está

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em processo de desenvolvimento e à readaptação


produtiva e espacial das empresas para adaptarem-se
à mudança. A nova guerra fria terá aí um dos seus
cenários principais. Quem a dominar, dominará o
mundo na nova fase da história cujo nascimento foi
acelerado pelo Covid-19.

Muito em breve vamos ver como este tema passa a


primeiro plano nas agendas internacionais, ainda que
de maneira a cada dia mais conflitiva entre as duas
grandes potências e sem solução a curto prazo para
os bloqueios no abastecimento e na subida de preços.
Estes vão subir mais porque nem os governos nem os
bancos centrais estão em condições de por ordem
para aliviá-los sem romper a lógica que guia um
capitalismo neoliberal ferido pelo seu fracasso em
tornar-se sustentável (ao concentrar o rendimento e a
riqueza triunfou plenamente). De facto, agudizaram o
problema ao não ter tido presente a mudança que se
estava a verificar na hora de injectar os recursos tão
vultuosos que proporcionaram às economias. Se
continuarem a equivocar e desencadearem uma crise
de dívida teremos a combinação que provocará uma
tempestade perfeita.
03/Novembro/2021

[*] Catedrático da Universidade de Sevilha,


Departamento de Análise Económica e Economia
Política.

O original encontra-se em
juantorreslopez.com/economia-mundial-el-riesgo-
de-una-tormenta-perfecta/

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