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Anarquimo e Feminismo No Brasil - A Audácia de Sonhar de Margareth Rago
Anarquimo e Feminismo No Brasil - A Audácia de Sonhar de Margareth Rago
A Audácia de Sonhar
achíamé
Margareth Rago
ANARQUISMO
E FEMINISMO
NO B R A S I L
AUDÁCIA
DE SONHAR
Memória e Subjetividadeem Luce Fabbr
AUDÁCIA DE SONHAR
Memória e subjeíivukule em Luce Fabbri Apresentação / 7
Copyright O 2007 by Margareth Rago ANARQUISMO E FEMINISMO NO BRASIL / / /
É vedada a reprodução total ou parcial desta obra A memória feminina c o imaginário masculino / 15
sem a autorização expressa da autora.
Experiências libertárias femininas /19
Integração e marginalização / 25
Capa
Marina Rago Moreira Anarquismo e feminismo/ 39
A moral sexual/ 45
Anarquizando 153
Referências bibliográficas / 59
AUDÁCIA DE SONHAR / 61
Referências bibliográficas / 89
5
APRESENTAÇÃO
Margareth Rago
to
Maria Lacerda de Moura
A MEMÓRIA FEMININA
E O IMAGINÁRIO MASCULINO
22 23
INTEGRAÇÃO
E MARGINALIZAÇÃO
2-
Ativa militante do movimento anarquista. lutou que sobre muchos argumentos, de los que antes me parecia
contra o fascismo italiano e contra a ditadura no estar tan seguro discutia, discutia, discutia... (...) La
Uruguai; escreveu em vários periódicos anarquis- anarquia, que era la fe radiosa de mi primera juventud, desde
entonces ya no fué solamcntc fe, sino convicción profunda".
tas como o Solidariedade de Montevideu, ou La (La Protesta, Buenos Aires, I de maio de 1936).
o
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pelo sapateiro e militante espanhol Pedro Catallo,
saiavam várias peças teatrais; ou ainda, na chácara
com quem conviveu por muitos anos. Filha de um
comunitária situada no antigo Itaim, onde se rea-
sitiante espanhol, anarquista e radicalmente anti- lizavam os famosos encontros c congressos l i -
clerical, ela encontrou os "anarquistas organizados" bertários . Tendo iniciado nos círculos culturais
9
quando chegou juntamente com o pai a São Paulo, libertários, Sônia profissionalizou-se como atriz
aos 29 anos, grávida de Dora, vinda para um tra- de teatro, tornando-se uma figura bastante conhe-
tamento naturista. O anarquismo significou para ela cida ao longo de sua vida.
uma porta de integração na vida social e cultural da Dora Valverde, mais jovem, participa de uma
cidade, em especial dos trabalhadores. outra geração, para a qual a experiência anarquista
foi, num certo sentido, muito diferente da dos pais
"Na minha família, anarquista era meu pai, José Val-
e menos gratificante. Seu irmão, seis anos mais
verde Dias. N ó s c o m e ç a m o s quando viemos de Piracicaba
para S ã o Paulo. Fui a uma c o n f e r ê n c i a dos anarquistas jovem, não se tornou anarquista e ela mesma não
com meu pai, e aí anunciaram que iam formar um grupo de se casou com um simpatizante do movimento, e
teatro.(...) A moça que ia tomar parte n ã o f o i , e o diretor hoje considera o anarquismo uma utopia irrea-
me convidou. Eu tomei parte s ó para ajudar, e aí não saí lizável. Como ela diz, se hoje pode avaliar que rico
mais.(...) As peças eram apresentadas no Teatro Colombo
universo tinha ao seu redor, referindo-sc às ati-
e no Teatro Arthur Azevedo. (...)". (Entrevista realizada
em j u n h o de 1994). vidades culturais, às discussões políticas, às festas,
aos encontros com os companheiros de seus pais.
No caso dela e de Sônia, que se aproximam tam- ativos combatentes pelos direitos democráticos e
bém enquanto geração, é de se notar que o anar- igualitários, ao mesmo tempo, sofreu com a "gue-
quismo atuou como fornia de integração social, fa- tização" do movimento, nas décadas de 50 e 60.
cilitando o contato com a comunidade de trabalha- Isto é, na medida em que se tornava adolescente,
dores imigrantes, assim como com os grupos de por volta dos anos 50, o anarquismo fechava-lhe
teatro amador e profissional. Os anarquistas muitas portas de interação social com outros jovens
reuniam-se no Centro de Cultura Social, fundadc de fora da comunidade libertária e operária. A n -
em 1933, em São Paulo, posteriormente localizado
9. Ver BORGES, Paulo. Jaime Cubem e o Movimento Anarquista
à Rua Rubino de Oliveira, no Brás e hoje à Rua Ge- em São Paulo, Dissertação de Mestrado. PUC, 1996; AVELINO,
neral Jardim; em sua casa, no Tatuapé, onde en- Nildo. Anarquistas: Ética e Antologia de Existências. Rio de Ja-
neiro: Achiamé, 2004.
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ticlcricais, os anarquistas condenavam a partici- Catallo, que conviveu por muitos anos com sua
pação nas atividades religiosas, como casamentos, família, e que. de certa forma, assume o mesmo
batizados, primeira comunhão etc, que seus amigos lugar em sua memória que Luigi Fabbri para L u -
frequentavam; militantes ativos, exigiam que ela fe, ou José Oiticica para Sônia, não lhe poupa crí-
participasse das greves que organizavam ou a que ticas, como a de ser um homem muito "radical", que
aderiam, e da qual ela se sentia exterior. não negociava nas questões familiares e nas rela-
Há que se considerar ainda que à medida que, ções afetivas. Ainda assim, está muito longe de ser
politicamente, o movimento perdia força, o grupo lembrado com ressentimento. Emocionadas, Dora
dos anarquistas diminuía e se fechava, os contatos e Maria me apresentaram, além de um livro de poe-
entre seus membros tornavam-se mais esporádicos sias, algumas das peças teatrais que ele escreveu e
e aumentava a necessidade de abrir-se para o mun- que elas representaram: O Coração é um Labirinto.
do exterior. Além do mais, uma vez que vários "conflito amoroso em três atos" e Uma Mulher
membros experimentavam um movimento de
Diferente, "drama de crítica social em três atos".
ascensão social, tornando-se "classe média", as ne-
Em suma, por mais que faça, hoje, uma avalia-
cessidades cotidianas e de sociabilidade mudavam.
ção bastante crítica dos anarquistas, Dora é uma
Nesse sentido, Dora e seus irmãos sentiam-se
mulher extremamente aberta, principalmente com
marginalizados em relação aos jovens de sua idade,
na grande maioria, sem qualquer contato nem com os filhos, e admira profundamente os ideais anar-
os anarquistas, nem com os comunistas. quistas. Como todos os anarquistas, valoriza ex-
cepcionalmente a liberdade, a não-hierarquização
A o contrário de Maria, Dora tem hoje uma visão
e as atitudes libertárias. Conclui que não seria a
mais dura dos anarquistas, apontando em suas
memórias para o autoritarismo interno do grupo e mesma pessoa caso tivesse nascido num ambiente
dos familiares, para o machismo dos homens, para mais autoritário. Inserida na modernização pau-
um certo fracasso na realização prática dos ideais listana, vizinha de um shopping center, vivendo num
libertários no cotidiano. Um certo fracasso, bem período de acentuado refluxo do movimento anar-
entendido, porque realmente ela está muito longe quista, procura colocá-lo no lugar que ocupou em
de compará-los aos grupos de direita ou sem ideo- sua vida, nem mais nem menos.
logia que conhecemos. Embora se lembre com Estas cinco mulheres trazem recordações extre-
ternura do sapateiro e escritor anarquista Pedro mamente positivas dos tempos libertários, dos gru-
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pos dc militantes e simpatizantes com os quais
conviveram, das atividades culturais a que tiveram
acesso tão cedo. N ã o há como não manifestarem
um forte sentimento de perda, progressivamente
à idade. Pois, muitas vezes, nas palestras realiza- ANARQUISMO E FEMINISMO
das no Centro de Cultura Social, discutiam-se as-
suntos que hoje parecem extremamente avançados, Essas experiências trazem algumas informa-
como os referentes à moral sexual e à sexualidade,
ções sobre as relações entre as mulheres e o anar-
em meio à construção de uma cultura libertária que,
quismo e entre o anarquismo e o feminismo, no
no mundo contemporâneo, onde os processos de
Brasil. Afinal, muitas trabalhadoras encontraram
individualização e de ascensão do narcisismo se
nesta doutrina e neste movimento político espaço
fazem tão fortes, não podemos deixar de valorizar
profundamente. para a elaboração de suas reivindicações e para a
p r o b l e m a t i z a ç ã o de q u e s t õ e s especificamente
referentes à condição feminina, não subordinadas
estritamente às questões de classe social.
Entretanto, vale lembrar que outras correntes do
feminismo emergiram, neste período, para além
dos meios anarquistas, entre as mulheres dc classe
média e alta, preocupadas com o acesso à esfera
pública moderna, à educação, à vida profissional e
com o direito de voto. Revistas como A Mensa-
geira (1897-1900) e a Revista Feminina (1914-
1936), publicadas por mulheres da elite, em São
Paulo, circulavam por todo o país defendendo os
ideais feministas numa perspectiva liberal, enquanto
no Rio de Janeiro, Bertha Lutz, bióloga paulista
graduada pela Sorbonne, enfrentava a concorrência
masculina para dirigir o Museu Nacional c fundar,
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em 1918, a Liga para a Emancipação Intelectual da encontrarmos afirmações, naquelas publicações
Mulher Brasileira, ao lado de Maria Lacerda de feministas, de que as mulheres pobres precisariam
Moura . 10 ser conduzidas pelas mais ricas, pois estas seriam
Burguesas, ricas, consumistas ou n ã o , sem racionais e capazes de direção política, enquanto
dúvida, enfrentaram uma resistência bastante difícil aquelas estariam absolutamente presas à dimensão
diante de um mundo masculino, que afirmava cien- biológica, cuidando da casa e dos inúmeros filhos,
tificamente a incapacidade intelectual, física e sem oportunidades para desenvolverem-se no plano
moral das mulheres, dotadas de uma caixa craniana cultural e pessoal. Assim, diziam:
mais leve do que a masculina, ou de um formato de
"à mulher superior, a quem os deveres maternais são mais
quadril especial para a maternidade, que dificultava
leves, compete manter e i n c r e m e n t a r a v i d a m o r a l ,
o andar agilizado pelas ruas da cidade, como diziam intelectual e social do povo a que pertence". (Revista Fe-
os doutores franceses e ingleses desde o século minina, abril de 1920).
anterior.
No entanto, parece que o contato entre as anar- Por outro lado, quando fazem referências às
quistas e as feministas liberais praticamente não feministas liberais, as anarquistas criticam sua luta
existiu, ou foi bastante tenso, j á que estas não só como pouco transformadora, j á que limitada ao
condenaram aquelas como radicais, procurando acesso à esfera pública burguesa, masculina e pre-
manter uma profunda distancia do que ironicamen- servadora das relações hierarquizadas na esfera
te definiam como "feminismo revolucionário", privada. A anarquista Isabel Cerruti, em artigo
destruidor dos lares e "anárquico" como. muitas publicado na imprensa libertária, naquele mesmo
vezes, até desconheceram a cultura operária que se ano, respondia:
produzia e cultivava nas imediações. H comum
" A Revista Feminina em seu programa p r o p õ e - s e a
propugnar pela e m a n c i p a ç ã o da mulher conseguindo para
10. ALVES, Branca Moreira. Ideologia e Feminismo. A Lula da
Mulher pelo Voto no Brasil. Rio dc Janeiro: Vozes, 1980, p. 104; ela o d i r e i t o de empenhar-se em lutas eleitorais. (...)
sobre as difíceis relações entre Maria Lacerda de Moura e Bertha C o m o se a e m a n c i p a ç ã o da mulher se resumisse em t ã o
Lutz, veja-se LEITE, Miriam Moreira, op. c/7., p. 37 e seg.; pouco...
HAHNER, June. Emancipating lhe Female Sex. The Strugglefor O programa anarquista é mais vasto neste terreno; é
Womens Rights in Brazil. Durham and London: Duke University vastíssimo: quer fazer compreender à mulher na sua inteira
Press, 1990, p.l40eseg. c o n c e p ç ã o , o papel grandioso que ela deve desempenhar.
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como factora histórica, para a sua inteira integralização na as direcionadas pelo partido político, ou voltadas
vida social (...)". ( A Plebe, 20/11/1920)". para a política institucional e partidária . Nos 12
Além do mais, engrossava as vozes dos que Médicos e juristas esforçavam-se, portanto, para
defendiam a educação sexual dos jovens, acre- mostrar às mulheres que haviam nascido para a
ditando que a inexperiência, tanto quanto a desin- maternidade, enquanto procuravam fornecer aos
formação levavam à opressão da mulher no próprio homens informações sobre a fisiologia feminina
casamento. Para ela, pelo fato de ser pluralista, o como meio para satisfazerem sexualmente as
homem conseguia circular na esfera pública com
esposas e preservarem o casamento.
mais desenvoltura, não depositando numa única
Para uns, apesar das avançadas ideias libertárias,
pessoa toda a fonte de sua vida. Mais seguro, mais
a prática social dos anarquistas parece ter cor-
calmo, contando mais consigo mesmo, o homem
conseguiria participar do jogo das relações sociais respondido menos às suas propostas. São conhe-
que se constitui na esfera pública dc uma manei-
ra que as mulheres ainda teriam de aprender. 14. Vcjam-se o interessante trabalho de SNOWALTER. Elaine.
Anarquia Sexual. Rio de Janeiro: Rocco, 1994; e RAGO, Margareth.
Nesse sentido, a questão da emancipação das "O Prazer no Casamento: homem e mulher no leito conjugal".
Revista Ideias. n°2, IFCH - UNICAMP, 1994.
mulheres através de sua libertação económica e
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cidas as críticas e n d e r e ç a d a s aos anarquistas, leitura totalmente masculina, abstraindo a atividade
destacando a incoerência entre teoria e ação no das mulheres que aí participaram . 16
campo da moral. Estudos dos anos 1980 preocu- As próprias anarquistas, aliás, criticavam seus
param-se em mostrar que os anarquistas dos iní- companheiros pelas posições machistas que as
cios do século 20 eram moralistas, n ã o pratica- colocavam em lugares de subordinação, seja na
prática política, nos sindicatos, seja na represen-
vam o amor livre, proibiam p r á t i c a s como o
tação da mulher como figura frágil e delicada, nos
carnaval ou as festas populares, assim como outros
romances e peças teatrais, seja ainda na própria
hábitos tidos como "vícios burgueses": bebida
construção da memória histórica. N o entanto, foi
alcoólica, fumo, bordéis. E, ao contrário do que
Maria Valverde quem levou o marido para o anar-
registramos em experiências como a parisiense ou quismo, e n ã o o considera a u t o r i t á r i o . A l i á s ,
a portenha, os bairros operários anarquistas não segundo o depoimento de sua filha, ela era
coincidiam com a "geografia dos prazeres": La
Boca, em Buenos Aires e Montmartre, em Paris, "o homem da família. Ela era uma pessoa mais ativa (...).
não encontram correspondência no Brás ou no Ela conseguia vagas nas escolas particulares para os filhos
Bom Retiro. (...). Tudo se decidia com ela, na casa."
Pesquisando a experiência feminina na Colónia
À pergunta de como via sua experiência no
Cecília, Hadassa Grossmann, que não acredita no
anarquismo enquanto mulher, Luce Fabbri, por sua
anarquismo, afirma que as mulheres aí também
vez, respondeu:
exerciam funções secundárias, ou que aparecem
nos relatos de seus companheiros idealizadas pelas " N o r m a l , nada de especial, si fuera hombre teria sido
metáforas românticas da passividade, compreensão completamente lo mismo. Yo no encontre ningún obstáculo
e carinho . Já Maria Lacerda de Moura, criticando
15
pelo hecho de ser mujer, ni entre los companeros, ni en el
concurso para la Universidad".
a leitura que Afonso Schmidt fez da experiência da
Colónia Cecília, censura-o por apresentar uma
O anarquismo direcionou-se às camadas sociais
15. GROSSMANN, Hadassa. La Femme du Secteur Ouvrier au mais desfavorecidas, sobre as quais pesam de ma-
Brésil, tese de doutoramento. Paris, 1991. Numa perspectiva
libertária. Helena Isabel Mueller. Flores aos Rebeldes que Falha- 16. CORREIA, Francisco. "Mulheres Libertárias: um roteiro", in
ram: Giovanni Rossi e a Utopia Anarquista: a Colónia Cecília. PRADO, Antonio Amoni. Libertários no Brasil. Memória, Luta.
Tese de doutoramento, USP, 1989. Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.39.
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neira diferenciada os códigos morais. Em outras
de praticar os ideais de uma nova moral. Pagu,
palavras, o amor livre praticado por uma mulher da
Tarsila do Amaral, Anita Malfatti podiam circular
elite teria um significado e uma reação muito dife-
pela cidade, desafiando a moral burguesa, a exemplo
rentes daquele praticado por uma mulher pobre. Do
dos personagens de Oswald de Andrade e Mcnotti
mesmo modo, as campanhas contra o alcoolismo e
dei Picchia, sem contudo, desencadearem uma
o jogo nunca visaram os homens ricos, mas os
guerra por parte de vários setores sociais, como
pobres, considerados mais inclinados à perda do
controle racional. Numa sociedade altamente teria ocorrido com a " P e n é l o p e " libertária.
conservadora, a despeito do processo de moder- O autoritarismo dos anarquistas também deve
nização em curso, a prática do amor livre pelas ser relativizado, pois certamente as filhas destes
camadas pobres da população seria considerada militantes convictos tiveram experiências de vida
prostituição pura e simplesmente. E compreen- mais descontraídas e mais livres em relação às dc
sível, portanto, que os anarquistas se preocupas- outros meios sociais. Não por acaso, várias se tor-
sem com a preservação de sua imagem moral con- naram artistas ou professoras universitárias: o uni-
tra a projeção dos preconceitos burgueses. Con- verso cultural mais arejado em que se formaram
denar o alcoolismo, orgias, "deboches" entre os tra- não pode ser menosprezado. Qual é a avaliação de
balhadores significava preservar uma imagem de Dora Valverde, por exemplo?
ordem, em oposição à tentativa constante de ni-
velamento da liberdade com a licenciosidade, nas " A s relações familiares foram mais spltas.(...) Mas, o
sentido de virgindade era importante para eles, embora eu
práticas e pensamento das elites e da sociedade em
tenha recebido muitas informações que outras c r i a n ç a s ,
geral. Lembre-se que, neste período, muitos médi- outras adolescentes n ã o recebiam. Mas sempre através de
cos ainda reforçavam o argumento de que as mu- conferencistas, me faltava aquela experiência (dc e d u c a ç ã o
lheres não tinham "apetite sexual", a não ser para sexual) em casa".
fins procriativos, enquanto outros condenavam a
austeridade dos maridos que não aceitavam dar Lembra-se de que nas reuniões do Centro de
prazer sexual às esposas, que só conseguiam ver na Cultura Social, que se realizavam aos sábados à
condição de "mães de seus filhos". Daí, também, a tarde, os palestrantes abordavam assuntos os mais
possibilidade que as vanguardas artísticas c lite- variados, inclusive os que se referiam à questão
rárias encontraram, ao contrário dos anarquistas. sexual, como a masturbação.
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"Todos os s á b a d o s tínhamos conferencistas, falava-se
de tudo. Já naquela época o Gaiarsa dava conferências, o
K l e i n , que foi recentemente assassinado".
" A c o n v i v ê n c i a do grupo era maravilhosa. (...) Uma Não dá para negar a diferença dos parâmetros
coisa que me gravou: a família do Jaime Cubero, porque eu
que as pessoas se c o n s t r ó e m a partir de suas
nunca v i coisa igual, os irmãos como se amam, como eles
se protegem, como eles se respeitam, como eles s ã o experiências de vida: quem nasceu num meio
s o l i d á r i o s ! (...) A S ô n i a O i t i c i c a t a m b é m teve um pai anarquista, com certeza adquiriu padrões de re-
maravilhoso!" ferência do que seja solidariedade, companhei-
rismo, amor, liberdade, vida sexual e afetiva muito
Já Luce Fabbri fala de suas dificuldades pes- diferentes dos que estiveram de fora. Os resultados
soais para aceitar o homossexualismo outrora, e parecem hoje muito mais perceptíveis. As mulheres
de como foi surpreendente descobrir que vários de dentro do meio anarquista, a despeito das ge-
amigos eram homossexuais. A o mesmo tempo, é rações parecem ter tido experiências muito mais
interessante observar que estas mulheres tiveram abertas e intensas das relações afetivas, tanto
casamentos estáveis, monogâmicos e duradouros, quanto da ideia de autonomia, em relação à maio-
à exceção de Sônia, que se casou mais de uma vez, ria da população: essas cinco mulheres, incluindo
e constituíram famílias bastante integradas. Débora, participaram de famílias muito coesas,
conheceram valores muito fortes dc integridade
moral, de ideais democráticos, de justiça social, e
tiveram direta ou indiretamente experiências de
solidariedade frente às prisões e p e r s e g u i ç õ e s
políticas sofridas pelo grupo pouco comuns. É de
se notar o profundo respeito e a grande admiração
com que se referem aos membros do grupo.
Além do mais, é interessante observar como as
diferenças de geração e de países marcaram suas
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experiências de vida e as concepções que forma- avaliação não a leva a desacreditar do ideal, consi-
ram. Luce Fabbri, a mais velha, participou de uma derando que como toda luta política, o movimento
geração mais gloriosa e combativa num certo sen- anarquista também tem seus momentos dc ascen-
tido, recebendo os ideais libertários a partir do cen- so e descenso, especialmente num mundo tão do-
tro do anarquismo: diretamente dc Malatesta ou de minado pelas ditaduras e outras formas de tota-
seu pai. Ela mesma teve de enfrentar perseguições litarismo. Revelando uma visão extremamente po-
políticas muito mais violentas e acirradas do que as litizada e bem informada das questões contempo-
outras, e enfrentou uma diversidade dc situações e râneas, ela afirma:
de vivência em meios anarquistas muito maior, já
que circulou por outros países e acabou vinculando- " E l anarquismo es una atitude ética perante la vida.
(...) Pensaria que la ditadura en los diferentes países ha
se aos anarquistas de países bastante politizados, provocado un vacio. May un espacio por ondeei anarquismo
como a Argentina e o Uruguai. Não é à toa que tenha no pudo difundirse, y una s e g r e g a c i ó n q u i p e r d i ó la
escrito vários livros políticos para denunciar o fas- posibilidad de accionar y dc estudiarlo. Entonces ahora hay
cismo e o totalitarismo no mundo, e que esteja ainda retomado, porque la liberdad esta en toda la gente, pero no
han tenido acceso a esta continuidad."
hoje organicamente ligada ao anarquismo, a cujo
ideal se dedicou integralmente, ao longo de sua exis- Maria Valverde t a m b é m experimentou um
tência. Sua utopia seguramente não morreu. Ao lado momento ainda vivo das lutas e da cultura anarquista
de Débora, cuja amizade firmou há mais de 40 anos,
no Brasil, antes do fechamento político pela dita-
lutou pela condução c organização do movimento
dura militar a partir de 1964. Pôde. portanto, esta-
anarquista naquelas regiões, trabalhando inten-
belecer uma rede de relações bastante densas no
samente desde as tarefas mais simples, adminis-
meio operário e anarquista, que perdura ainda hoje.
trativas, até as mais complicadas como escrever para
Se n ã o participa das m o v i m e n t a ç õ e s culturais
os jornais.
atualmente, isto se deve cm parte â dificuldade de
Para Débora, cujas retlexões se aproximam das
s a ú d e e n ã o exatamente à falta de c o n v i c ç ã o
de Jaime Cubero, o anarquismo continua também
política. O anarquismo ainda representa uma es-
extremamente vivo e atual, embora avalie cri-
perança e uma possibilidade para ela. Perguntei-
ticamente o refluxo do movimento em todo o mun-
do e considere que este deva se adequar aos novos Ihe como ela via a experiência anarquista hoje, e a
tempos da revolução tecnológica. Contudo, sua resposta veio taxativa:
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"Eu vejo como um ideal e como uma ideologia muito O desconhecimento do anarquismo e do fe-
perfeitos, porque v ê m sempre em favor do o p e r á r i o , dos minismo no grupo me pareceu muito grande, po-
pobres, das c r i a n ç a s . Todos os teatros que n ó s d á v a m o s ,
d á v a m o s em favor das c r i a n ç a s , da Espanha, da França e
rém menor do que o meu sobre aquelas jovens.
daqui". Perguntei-me de onde haviam saído, como haviam
conhecido o anarquismo e, mais ainda, como ha-
Sem dúvida, Luce Fabbri concordaria inte- viam estabelecido a ponte entre o anarquismo e o
gralmente com ela. feminismo? O sentimento de que uma tradição
Sônia e Dora, por sua vez, tiveram experiências política se perdia foi, é claro, violento. O interesse
de vida muito mais diversificadas, enraizando suas
que elas demonstraram pelo tema t a m b é m foi
relações pessoais muito mais no mundo exterior à
surpreendente. De certa maneira, estamos nos
comunidade anarquista do que dentro dela. Ambas
reconhecendo na paralela, j á sabendo, graças às
têm uma referência mais distante desta doutrina e
novas descobertas da geometria euclidiana, que as
uma relação mais cctica com o futuro, apesar da
paralelas se encontram no infinito.
diferença de gerações. Para elas, o anarquismo
representa uma utopia irrealizável, na complexa
vida social do mundo contemporâneo, e a maior
parte de sua rede de relações se situa fora deste
universo. No caso dc Sônia, no inundo artístico
profissional, por exemplo.
Para minha grande surpresa, fui convidada
neste ano de 1994 para dar uma palestra sobre as
relações entre o anarquismo e o feminismo, em
comemoração ao Dia Internacional da Mulher, pelo
recém-formado Coletivo Anarco-Feminista de São
Paulo. Mais surpresa ainda fiquei quando me de-
parei com as inúmeras militantes do Coletivo e
organizadoras do evento: jovens de aproxima-
damente 20 anos, habitantes de bairros periféricos
da Grande São Paulo, de aparência rap-punk.
56 5-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
tária havia lutado contra os macro e os micropo- Minha admiração por ela cresceu com as muitas
deres, contra o fascismo italiano e a ditadura m i - descobertas que se sucederam ao longo dos mo-
litar no Uruguai dos anos 70, como havia cons- mentos em pude desfrutar dc seu convívio e entre-
truído seus espaços de autonomia nos meios po- vistá-la em Montevideu, ao mesmo tempo em que
líticos, académicos e familiares, tanto em se tra- percorria seus inúmeros textos políticos, literários
tando das relações de género, quanto das de classe, e históricos, cuidadosamente guardados nas pra-
ao longo de sua vida. Como, enfim, havia conse- teleiras de sua ampla e diversificada biblioteca . 2
guido driblar as dificuldades do mundo e preser- Pus-me a gravar as estórias que ela passou a
var-sc de tal maneira que eu a encontrava, nos contar, inicialmente em seu escritório, diante das
últimos anos de sua vida, tão j o v i a l e mentalmen- fotos do pai, o anarquista Luigi Fabbri e de seu men-
te ágil, crítica incansável da atualidade e anarquista tor Errico Malatesta e, nos últimos anos, com maior
convicta. Decidi, então, apresentá-la ao mundo e dificuldade de locomoção, no sofá dc seu amplo
contribuir para subverter toda uma t r a d i ç ã o quarto, onde as mulheres da família, entre as quais a
misógina que exclui as mulheres da memória co- avó Emília e a mãe Bianca, nos espreitavam das
Ictiva e que justifica essa exclusão afirmando que fotografias amareladas penduradas na parede. Seus
elas nada produziram. comentários sobre essas imagens, feitas cm 1914.
Naquela época, ainda não sabia que Luce se na Itália, foram respostas às perguntas que me
formara em Letras pela Universidade de Bolonha, preparava para fazer:
na Itália, em 1928, onde fora aluna do filósofo so-
cialista Rodolfo Mondolfo, que eu conhecera na 1. Em se considerando o volume de sua produção política, filosó-
adolescência através dc seu famoso livro intitulado fica, literária, histórica e pedagógica, citarei, na bibliografia, ape-
O Pensamento Antigo; também desconhecia que nas os trabalhos que aparecem neste texto. Para maiores informa-
ções, veja-se RAGO, Margareth. Entre a História e a Liberdade.
trabalhara até a década de 1990 como crítica literária Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo. S3o Paulo: Ed. da
e como professora de Literatura Italiana na Uni- UNESP,2001.
versidade da República do Uruguai, país onde se 2. O resultado deste trabalho foi publicado como Entre a História
e a Liberdade: Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo. São
refugiara, desde 1929, ao fugir da violência fascista; Paulo: Editora da UNESP, 2001.
66 6~
"Foram feitas por tio Bruno, i r m ã o de minha m ã e , conhecer mais detidamente e de uma maneira muito
apaixonado por fotografia. A arte da fotografia estava em seus rica a tradição italiana da qual eu também faço parte,
inícios... passamos dois meses lindos...em Porto Ricanati, no mas que por algum motivo mantive à margem em
Adriático, na parte norte, em uma casa de praia, durante as
minha formação intelectual. Não eram apenas as
férias, antes da guerra...era um porto de pescadores, todas
as noites chegavam em seus barcos de pesca..." portas da cidade de Montevideu e da vida cotidiana
dos anarquistas, num plano internacional, que se
Ora falando em espanhol, ora em italiano, suas abriam para mim. Com seus relatos, as ruínas e os
lembranças focalizaram momentos singulares de sua sons das ruas de Roma, as casas avermelhadas e as
vida pessoal e acontecimentos que marcaram o arcadas nas calçadas de Bolonha, a universidade mais
século 20 e a sua própria experiência como militante antiga da Europa, os poetas, como Lcopardi, Car-
anarquista. Aos poucos, seus depoimentos, as ducci e Montale, artistas e filósofos italianos de
recordações evocadas, o desfile dc personagens vários séculos, inúmeras figuras do anarquismo e de
entre companheiros/as, amigos/as, familiares e ini- outras tendências políticas, entre mulheres e ho-
migos políticos foram compondo oralmente uma mens, enfim, muitos acontecimentos e personagens
autobiografia, indo desde as recordações da infân- passaram a fazer parte do meu próprio arquivo.
cia passada entre Roma e Bolonha, ao exílio for- O contato com essa senhora erudita e reflexiva,
çado em Paris e posteriormente no Uruguai, onde profundamente aberta à vida me fez inevitavelmente
desembarcou depois de uma longa viagem clan- pensar na utilidade da História, na importância da
destina e onde viveu por mais de 70 anos. preservação da memória, sobretudo daquela silen-
ciada pelos jogos do poder e, mais ainda, levou-me
Todo um século desfilou aos meus olhos nesse
a valorizar os aportes da história oral, área em que
trabalho minucioso e labiríntico de investigação da
havia incursionado timidamente em outra ocasião.
memória de Luce, ou nessa viagem cm que ela me
A reapresentação oral do passado, "fazendo emergir
conduziu através dos tempos vividos de sua infân-
do tempo/experiência os fatos considerados mais
cia e adolescência até a morte, em 19 de agosto de
significativos do ponto de vista do narrador" traz 3
2000.
Descobri progressivamente que nossas afinidades
3. GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. "Artes da Memória,
iam muito além da ideologia política, pois suas Fontes Orais e Relato Histórico". Revista História & Perspecti-
recordações do passado me abriam as portas para vas, Uberlândia, (23): 99-114, jul./dez. 2000.
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coloridos, cheiros e emoções que dificilmente se t a m b é m como "cronista de uma genealogia
encontrariam no texto histórico, na maior parte das anarcofeminista" . 4
vezes, muito asséptico, em sua pretensão de objeti- Depois de percebermos a pluralidade do pas-
vidade. sado, as múltiplas temporalidades constitutivas dos
Em relação à utilidade da História, aposto na processos sociais e culturais, os silêncios, os esque-
ideia de que é necessário ampliar o repertório das cimentos e as implicações políticas da exclusão
experiências positivas de que dispomos, sobretudo operada pela memória histórica, entendida como
daquelas que foram construídas no sentido de discurso dos dominantes, foi inevitável o sentimen-
impulsionara liberdade, potencializaras iniciativas to benjaminiano de que a tarefa premente do histo-
libertárias, construir redes de solidariedade, abrir riador é a de salvar a memória, livrando-a do es-
espaços de resistência à dominação social e política. quecimento. Este mesmo sentimento, talvez ro-
Inquicta-me profundamente perceber que a memória mântico e ingénuo, tem sido em grande parte res-
da guerra, ou seja, das experiências de destruição c ponsável pela importância e popularidade que a
morte e dos homens que as promoveram sc revela história oral ganhou nas últimas décadas, j á que to-
sempre muito mais poderosa do que a da paz, e nesse dos ou quase todos os grupos sociais buscam ins-
sentido quero dizer que muitos conhecem Darwin c crever-se no mapa, desejosos de terem suas expe-
a teoria da evolução das espécies, mas desconhecem riências cartografadas, honradas ou vingadas na
seu crítico e contemporâneo, o anarquista Piotr História. De certo modo, se dc um lado o passado
Kropotkin, autor de A Ajuda Mútua; do mesmo perde importância no mundo pós-modemo, como
modo, muitos sabem quem foi Benito Mussolini, argumenta o historiador norte-americano David
mas desconhecem Malatesta, tido como o "Lenin Harlan , a ponto de muitos críticos e teóricos da
5
da Itália", nos anos 20. atualidade escreverem livros e livros sem a neces-
Poderia acrescentar, na mesma direção, que a sidade dc um profundo conhecimento histórico, dc
história no feminino apenas começa a evidenciar
a dimensão masculina ou falocêntriea da grande 4. GREENE, Patrícia. "Federica Montscny: Chronicler ofan Anarcho-
FeministGenealogy", LetrasPenninsulares, Fali 1997, Revistado
narrativa da História, como apontam as feministas.
Department of Spanish, Davidson College, EUA.
Daí, a própria ideia de realizar esse trabalho de 5. HARLAN, David. The Degradation of American History. Chi-
preservação das memórias de Luce, considerada cago: The Chicago University Press, 1997.
outro, amplia-se o leque dos grupos sociais, étnicos, da oral, em nossa tradição de pensamento, este
sexuais, das famílias e dos indivíduos que reivin- aponta para a tensão aí existente entre um apelo que
dicam seu "direito à História", como observa Pierrc pesa em favor da primeira e um outro que beneficia
Nora. a segunda. Trata-se, de um lado, de uma postura que
Nessa direção, talvez seja melhor ouvir a própria privilegia a "história da memória", fazendo supor
Luce, com todo o seu olhar muito perspicaz de que esta se constituiu em "novo objeto" da história,
mulher estrangeira e que viveu literalmente entre assim como o corpo, a sexualidade, a alimentação:
fronteiras, entre "o exílio e a imigração", como ela de outro, de uma posição inversa, que postula a
mesma diz, refletindo sobre o tema. Num depoi- "historicização da memória", em que a história tem
mento gravado em julho de 1997, afirma:
como tarefa ajudar a corrigir e a ampliar a memória,
"Nossos v í n c u l o s com o passado s ã o muito fortes e fazendo com que esta entre em contato com d i -
sobretudo são fortes em nível coletivo e uma ruptura drástica mensões mais profundas de si mesma e se conheça
com o passado, só se pode fazer à custa da liberdade, só melhor. Neste caso. a história estaria a serviço da
oprimindo e forçando as vontades. Há algo na tradição que
memória, ao contrário do caso anterior em que a
oprime, porém há uma continuidade que não se pode romper
violentamente, s ó se pode deixar cair, provocar a queda do m e m ó r i a se subordinaria à História como seu
que está sobrando, das folhas secas, do que j á não tem vida... objeto .6
porém, uma mudança libertária deve passar pela vontade Refletindo sobre a minha experiência particular
coletiva. a vontade coletiva sempre tem em conta a I listória...
de historiadora no contato com o trabalho da me-
mesmo que inconscientemente... conhecer a História tem
um valor vital, um valor de r e c o n s i d e r a ç ã o dos valores mória de Luce Fabbri, sobretudo em depoimentos
tradicionais e é uma fornia, um veículo de transformação orais, entendo que não busquei trazer a "realidade"
enquanto se criticam os valores à medida que se conhece..." de seu passado, como se tivesse um olhar neutro
capaz dc organizar "de fora" e "do alto" as experiên-
Em se tratando das grandes contribuições e
cias que me foram paulatinamente apresentadas,
possibilidades abertas pela história oral, gostaria de
nem tomei seus relatos como reflexos da realidade.
lembrar algumas questões discutidas por autores
Antes, tive em vista trabalhar a construção de sua
conhecidos, como Paul Ricoeur. A o reíletir sobre
narrativa do passado, considerando seus depoi-
as relações entre a história e a memória, na esteira
dos questionamentos de Jacques Derrida sobre o 6. RICOEUR, Paul. La Mémoire, L Histoire, L Oubli. Paris: Seuil,
privilégio conferido à palavra escrita, ao contrário 2000.
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mentos orais como práticas discursivas, na con- pelas ideias libertárias até o fim, suas memórias
cepção de Michel Foucault , e procurei perceber a
7
giram em torno dc experiências políticas e sociais
produção de sua subjetividadc ao narrar a própria cruciais - como a ascensão do fascismo e a des-
vida. truição violenta das cooperativas de produção e con-
Portanto, estive atenta à Fina estruturação tem- sumo em Bolonha, ou ainda as conquistas e derrotas
poral e temática com que Luce organizou suas recor- da Revolução Espanhola, os anos da ditadura m i -
dações, selecionando as que lhe pareciam mais va- litar no Uruguai - , ao narrar episódios que reme-
liosas, compondo quadros bastante vivos c valo- tem à esfera pública ou privada. É assim que inicia o
rativos do universo cultural e político do anarquis- relato de sua vida, pelo nascimento no interior de
mo e, ao mesmo tempo, tomando uma referência uma família já praticante das ideias libertárias:
identitária de anarquista, como norte para sua
construção do passado. Vale lembrar, ainda, que eu " T i v e uma e d u c a ç ã o l i b e r t á r i a desde o p r i m e i r o
momento... em um período em que se enfaixavam as crianças
mesma a procurei por ser uma militante libertária
como se fossem múmias egípcias. N ã o conheci as faixas...
e que foi a partir desse eixo que me interessei por
as outras mulheres diziam para a minha m ã e que eu iria me
sua maneira de ser, por suas ideias e vivências. Per- quebrar, que era p e r i g o s í s s i m o (ficar sem faixa)...nesse
guntava-me como havia sido a experiência de ser sentido, j á crescemos num meio bastante moderno, sem que
libertária e mulher para Luce Fabbri. Como ela ha- fosse particularmente moderna a intenção...*'
via entendido e praticado esta utopia desde o co-
lidiano? Num outro momento. Luce traz a impactante
Sem dúvida, a identidade de anarquista organiza presença do líder anarquista Malatesta, marcando
e estrutura sua elaboração do passado pessoal e da muito cedo sua vida, entrecruzada com as lutas
experiência coletiva. Filha do militante anarquista políticas do período. Reeorda-se que, em 1913, aos
Luigi Fabbri, discípulo e biógrafo de Malatesta e cinco anos de idade, viu chegar, na casa dos avós,
tendo convivido desde cedo com as lutas sociais da
Itália dos anos 10 e 20, tendo participado da resis- "aquele homem de olhar penetrante",
tência antifascista no exílio e dedicado-sc a lutar
amigo de seu pai, que viera visitá-la. Como a enérgi-
7. FOUCAULT. Michel. A Arqueologia do Saber Rio de Janeiro: ca avó se pusesse a repreendê-la pelas brincadeiras
Forense Universitária. 1986. esfuziantes que fazia no jardim, o militante resolveu
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interferir, defendendo a liberdade infantil, dizendo- Aliás, seu primeiro artigo, "Ciência, Filosofia c
lhe Anarquia", escrito aos 17 anos de idade e publicado
na revista libertária Pensiero e Voluntà, polemiza
"que lhe parecia que eu tinha que ser livre, movimentar as
com Malatesta em relação à maneira como ele e
pernas e os braços como quisesse, tinha cinco anos! Minha
a v ó retrucou que tinha que educar-me e que portanto... Essa Kropotkin definem esta doutrina . Em nossas8
d i s c u s s ã o entre minha a v ó e Malatesta ficou gravada cm conversas, em janeiro de 1996, Luce ri ao lembrar-
mim e me causou uma impressão enorme, porque n i n g u é m se do pseudónimo que utiliza para assinar o artigo
ousava discutir com minha a v ó e esse homenzinho que sc
atrevia e que dizia coisas tão interessantes, ficou gravada polémico de 1925:
em mim... Essa é a primeira visão que tenho de Malatesta.
Depois ele sc foi para Londres, o e x í l i o . . . " "O pseudónimo que usei é Epicari, nome de uma escrava
romana que participa da conspiração contra Nero, no primeiro
A dimensão mitológica da figura de Malatesta é I m p é r i o romano. Deixou-se torturar sem denunciar e a
mataram. Bem, foi idealizada como merece, por outro lado!"
atribuída, em suas lembranças, à imaginação fan-
tasiosa da criança, no entanto, suas memórias tam-
Vale atentar, o que ela mesmo faz nos depoi-
bém fazem emergir um homem simples e delicado,
sempre muito querido, habilidoso, capaz de articular mentos em que relê o passado, para a dimensão po-
politicamente os adultos, tanto quanto de brincar lítica e rebelde da personagem sob a qual se coloca,
despreocupadamente com as crianças. O a feto em ou se protege, j á em seu primeiro texto. Do mesmo
relação a ele é profundamente marcado cm seus modo, é possível dizer que a principal estratégia de
relatos: produção de seu discurso é a de colocar-se no es-
paço da político para falar do passado, tanto quanto
"E recordo que se falava muito de Malatesta em casa,
para pensar as questões da atual idade.
Errico Malatesta! Ele estava em Londres, n ó s é r a m o s
crianças e o u v í a m o s falar deste personagem remoto...Lm
Nesse sentido, a emergência do fascismo é um
seguida, depois da guerra, meu pai estava esperando que tema privilegiado em suas memórias, sobre o qual,
Malatesta voltasse, o governo italiano não queria recebê-lo aliás, escreve Camisas Negras, livro publicado em
e pressionava para que o governo inglês não o deixasse sair. 1933, pois vivendo num meio anarquista pôde
Para n ó s essa história de Errico que tinha que chegar, porém
que dois governos se opunham a que viesse... era uma
8. FABBRI, Luce. "Ciência, Filosofia e Anarquia". Pensiero e
história romântica..."
Voluntà, 1925.
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acompanhar de dentro a violência na luta que os a jurar, então cruzou a fronteira para a França, eu fiquei só e
fascistas empreenderam contra o movimento social. terminei minha carreira..."
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de Filosofia, mudaram de matéria simplesmente. Esta foi "porque era um livro de versos muito militantes, foi publicado
uma discriminação que v i a posteriori, porque antes não em 1932, com a produção anterior, a produção dos 20 anos -
era assim". / Canti deli Attesa - "Os Cantos da Espera" - era a espera
de voltar para a Itália, era o exílio, são poemas do exílio, mas
Contudo, os limites de seu questionamento femi- muito pouco maduros literariamente, muito tradicionalistas
nista são dados ao adentrar no universo anarquista. na forma. Para m i m , conservam validade, porém nunca os
Vinda desta tradição política, os conflitos entre as cito, aí está, mas evidentemente (a poesia) não era o meu
classes e a luta político-ideológica contra a ditadu- caminho, este aspecto é só para minha satisfação pessoal..."
"oásis" que a recebe "dc braços abertos", dimensão (...) Agora me separam da minha Bolonha (...)
exaltada em todos os depoimentos, na poesia, não (Or mi separan dalla mia Bologna,)
pode substituir a " t e r r a - m ã e " , nem mesmo no O mar que vem aqui bater na praia.
inverno, como aparece em "Neve di primavera", (il mar che vien qui a frangersi sul lito.)
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