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"Neste livro, o/a leitor/a encontrará reunidos


dois artigos produzidos em momentos diferenciados,
relativos à história das mulheres anarquistas, que
tiveram expressiva participação nos movimentos
sociais dos trabalhadores, no Brasil e na América do
Sul, ao longo do século 20.
Em ambos os textos, o/a leitor/a perceberá que
estão presentes algumas preocupações comuns, como
a de conhecer as experiências femininas na militância
Margareth Rago
política no passado, assim como as memórias que
essas mulheres constróem dos movimentos cm que
atuam, de sua relação com eles, da situação das
mulheres, das lutas feministas e das relações que o
feminismo mantém com o anarquismo, aproximando-
se ou distanciando-sc".
Anarquismo e feminismo no Brasil
Margareth Rago

A Audácia de Sonhar

achíamé
Margareth Rago

ANARQUISMO
E FEMINISMO
NO B R A S I L

AUDÁCIA
DE SONHAR
Memória e Subjetividadeem Luce Fabbr

2 edição xevjfifSfaã menti


a

Robson Acli iamé, editor


Caixa Postal 50083
Rio de Janeiro RJ 20050-970
Telefax (0xx21)2208-2979
letralivre@gbl.corn.br
www.achiame.net achiamé
R i o de Janeiro
ANARQUISMO E FEMINISMO NO BRASIL SUMÁRIO

AUDÁCIA DE SONHAR
Memória e subjeíivukule em Luce Fabbri Apresentação / 7
Copyright O 2007 by Margareth Rago ANARQUISMO E FEMINISMO NO BRASIL / / /
É vedada a reprodução total ou parcial desta obra A memória feminina c o imaginário masculino / 15
sem a autorização expressa da autora.
Experiências libertárias femininas /19

Integração e marginalização / 25
Capa
Marina Rago Moreira Anarquismo e feminismo/ 39

A moral sexual/ 45

Anarquizando 153

Referências bibliográficas / 59

AUDÁCIA DE SONHAR / 61

Referências bibliográficas / 89

5
APRESENTAÇÃO

Neste livro, o/a leitor/a encontrará reunidos, a


convite do editor Robson Achiamé, dois artigos
produzidos em momentos diferenciados, relativos
à história das mulheres anarquistas, que tiveram
expressiva participação nos movimentos sociais dos
trabalhadores, no Brasil e na América do Sul, ao
longo do século 20.
No primeiro, intitulado "Anarquismo e Femi-
nismo no Brasil", escrito em 1994 e já publicado por
esta mesma editora, procuro apresentar algumas
figuras do movimento anarquista brasileiro c sul-
americano, entendendo que é preciso dar visibili-
dade às experiências femininas do passado, prin-
cipalmente quando se consideram dois fatores: de
um lado. os obstáculos que se impunham às mu-
lheres, naquelas décadas, para participarem da es-
fera da vida pública, algumas vezes mesmo por parte
de seus familiares e companheiros; de outro, pelo
próprio fato de que o proletariado, desde os inícios
da industrialização, contava com um número expres-
sivo de mulheres e de crianças, sendo que muitas
destas lutaram, promoveram agitações, organizaram
greves e atuaram nos centros culturais, defendendo
as ideias libertárias em discursos, palestras ou em
7
seus escritos, desfazendo praticamente os estigmas Em ambos os textos, o/a leitor/a perceberá que
da passividade e irracionalidade lançados sobre elas. estão presentes algumas preocupações comuns,
Assim sendo, colhi informações na imprensa como a de conhecer as experiências femininas na
anarquista e entrevistei algumas figuras libertárias militância política no passado, assim como as me-
que ainda vivem em São Paulo, como Sônia Oiticica
mórias que essas mulheres constróem dos movi-
e Maria Valverde, assim como duas outras militantes
mentos cm que atuam, de sua relação com cies, da
muito especiais, que tive a oportunidade de conhe-
situação das mulheres, das lutas feministas e das
cer em São Paulo, em agosto de 1992, por ocasião
do Encontro "Outros 500. Pensamento Libertário relações que o feminismo mantém com o anarquis-
Internacional", realizado na PUC-SP: a ítalo-uru- mo, aproximando-sc ou distanciando-se.
guaia Luce Fabbri, falecida em 19 de agosto de 2000. Assim, estive também preocupada, como sc po-
e a uruguaia Débora Céspedes, também residente de observar principalmente no primeiro texto, em
em Montevideu. problematizar as complexas relações estabeleci-
Na época da realização das entrevistas com es- das entre o anarquismo e o feminismo, que. se na ori-
sas duas importantes militantes, ainda não havia gem estiveram tão proximamente articulados, co-
iniciado a biografia cie Ince Fabbri, o que se deu mo sugere a própria relação dos fundadores como
elelivãmente entre os anos de 1995 e 2000. Contu- William Godwin e Mary Wollstonecraft. no século
do, após a publicação do livro e mesmo depois de 18. posteriormente se cindiram em movimentos que.
seu falecimento, senti a necessidade de desenvol- na maior parte das vezes, caminharam paralelos e,
ver um pouco mais um dos tópicos de nossas con-
apenas em algumas circunstâncias, imbricaram-se
versas, ao qual a militante, poetisa e professora de
novamente. Não raras vezes, as "anarquistas his-
Literatura Italiana dava muita importância: o exí-
lio. Propus-mc. então, a redigir um artigo, voltando tóricas", como a própria Luce Fabbri, não se con-
a questão para ela mesma, muito embora em suas sideravam feministas, entendendo com esse termo
memórias, o tema sempre aparecesse vinculado às aquelas que lutavam pelo direito feminino ao voto.
experiências coletivas de trabalhadores, refugiados No entanto, nem por isso deixaram de se preocupar
políticos c militantes, entre outros. Assim nasceu o com as questões femininas, tendo em vista a l i -
segundo texto que compõe esta edição e para o título beração das mulheres das inúmeras sujeições e
do qual tomo emprestado um de seus próprios exclusões cotidianas, o que as torna então femi-
versos. nistas, a exemplo de Maria Lacerda de Moura.
8 9
Finalmente, considero que. em geral, mesmo
que não se definam como feministas, mesmo que
afirmem não ter qualquer identificação com as
reivindicações trazidas pelo feminismo, as mulheres
não deixam de ter um olhar e experiências de género
bastante diferenciadas das masculinas, seja pela
educação que receberam, seja pelos códigos da
moralidade que regeram ou regem a vida em nossa
sociedade, especialmente nas décadas em que
viveram. Nesse sentido, as mulheres carregam
interpretações de si e dos outros, tanto quanto
definições mais gerais da vida diferenciadas das dos
homens e essas diferenças valem ser examinadas,
ANARQUISMO
apresentadas e elaboradas, quem sabe como
contribuições para a criação de novos modos de estar
E FEMINISMO
no mundo...libertariamente. é claro. NO B R A S I L
São Paulo, 05 de janeiro de 2007

Margareth Rago

to
Maria Lacerda de Moura
A MEMÓRIA FEMININA
E O IMAGINÁRIO MASCULINO

Trabalhos pioneiros historiaram a experiência


anarquista no Brasil, centrando-se nas décadas
iniciais do século 20, quando o país se industrializa
e a imigração traz milhares de trabalhadores eu-
ropeus, com suas ideologias e tendências políticas.
Já dispomos, hoje, de uma quantidade significativa
de trabalhos, a grande maioria dos quais realizados
no Arquivo Edgard Leuenroth da U N I C A M P ,
documentando este importante momento de for-
mação do proletariado brasileiro, em que o anar-
quismo conquista inúmeras adesões.
Entretanto, também podemos dizer que estes
estudos, em sua grande maioria, privilegiaram a
atuação dos operários e militantes do sexo mas-
culino, não trabalhando com mais detalhes as d i -
ferenças que eles mesmos identificavam, como por
exemplo, a de que grande parte do proletariado era
constituída por mulheres e crianças.
Num segundo momento, percebemos que o
contingente feminino que compunha grande parte
do proletariado era responsável pela eclosão de
15
inúmeros movimentos grevistas, de manifestações De que se trata, então? De trabalhar, penso eu,
políticas pelos direitos de trabalho, pela melhoria o registro feminino desta experiência, o olhar da-
das condições de vida, assim como por reflexões quelas que se viam diferenciadamente excluídas,
impressas nos jornais operários de então. diferenciadamente oprimidas, numa profunda bus-
Parece que, de algum modo, entramos num ca de interação social e de integração cultural na
terceiro momento, isto c, num tempo cm que nosso nova terra. Parece, no século 21, que j á não importa
interesse se volta para apreender as experiências mais afirmar se os anarquistas foram mais ou me-
femininas da industrialização e da modernização, nos machistas do que os socialistas, liberais ou
atentos às militantes ou simpatizantes que apos- autoritários, se praticaram ou não o amor livre, se
taram na luta pela emancipação das mulheres como eram etc. etc. Ou então, tentar desmistificá-los, do-
forma de libertação da humanidade. Algumas des- cumentando o seu fracasso. De que fracasso, aliás,
tas ativas militantes e simpatizantes do anarquis- se fala? As ideias antiautoritárias se afirmaram, a
mo ainda estão vivas, motivo pelo qual entendemos
ideia de representação está muito desacreditada, a
a importância de iniciarmos um trabalho dc pre-
ação direta está muito valorizada nos meios ope-
servação de sua memória pessoal e eoletiva.
rários, sindicais e estudantis, a educação mista, não-
Não se trata apenas de recolher no baú dos do- memorizadora está sendo praticada, o contrato de
cumentos os momentos de intervenção das mulhe- casamento está em descrédito, todos concordam
res na eclosão das greves, nas resistências coti- que o amor deve ser livre, a maternidade j á não é
dianas miúdas, na preparação de artigos para a im- natural, mas opcional etc etc.
prensa, na tentativa incansável de provar sua igual-
Penso que acrescentamos quando mostramos
dade em relação aos homens, ou então de vitimizá-
que havia outros olhares possíveis naquele instan-
las. Tomando as ações masculinas mais valorizadas,
te crucial de industrialização e de modernização,
procuramos então mostrar que as mulheres podem
outras alternativas vislumbradas, outras questões
fazer o mesmo, enfrentar os patrões, perceber as
colocadas. N ã o para julgar quem estava politi-
formas mais sofisticadas da dominação, propor
camente correto ou para determinar quem venceu,
respostas e fazer a revolução. Incrível esforço para
mas para afirmar a pluralidade de experiências
provar que não ficamos atrás, enquanto capacidade
vividas.
combativa e projetiva das novas utopias, em relação
aos homens. Diferentemente do olhar masculino, atento às
grandes ações vivenciadas na esfera pública, como
16 17
greves, momentos de enfrentamcnto político, de
lutas marcantes, de repressão policial, o radar fe-
minino capta facilmente as experiências cotidianas
e subjetivas, os jogos microscópicos de poder ou
de sedução constituídos nas relações que se es-
EXPERIÊNCIAS
tabelecem na esfera da vida privada, no seio da fa-
mília, fotografando os olhares emocionados, os LIBERTÁRIAS FEMININAS
pequenos gestos e atitudes, a circulação de fluidos
e energias, como diríamos hoje, menos visíveis e O tema suscita a imagem de mulheres operá-
importantes aos olhos masculinos. rias, que compuseram o principal contingente das
Decididamente, a memória feminina é muito fábricas de tecido e vestuário, dos inícios do século
diferente da masculina, ao menos em se consi- 20 em São Paulo e no Rio de Janeiro, e que atuaram
derando as gerações que conheceram um mundo politicamente de maneira organizada ou espontâ-
extremamente segmentado em termos de divisão nea, desencadeando greves pelo aumento salarial,
sexual dos papéis, das atividades, do tempo e do pela redução da jornada de trabalho, pelo respeito
espaço: registros da subjetividade, das emoções, no trato em relação a elas mesmas e às crianças,
dos detalhes e das sociabilidades, dos micropo- contra o despotismo fabril, ou solidárias aos seus
deres, do molecular, tão comuns entre as mulheres . 1 pais, companheiros e irmãos. Nas circulares que
os industriais ligados ao CIFTSP (Centro dos
Industriais de Fiação e Tecelagem de São Paulo)
se enviavam nos anos 1910 e 1920, é de se notar a
quantidade de mulheres jovens citadas como " i n -
desejáveis" e ameaçadas de demissão por roubo de
peças, boicote, sabotagem e agitação política.
Embora seja reduzida a historiografia con-
1. Vejam-se para esta discussão o artigo de PERROT, Michelle. temporânea que registra suas lutas e reivindicações,
"Práticas da Memória Feminina". In " A Mulher e o Espaço Pú- já não carregamos a pesada imagem da passividade
blico". Revista Brasileira de História, vol.9, n. 18, ago./set. 89, Sao
feminina na história social do trabalho no Brasil.
Paulo: Marco Zero, 1989; e "Mémoires des Femmes", Revista
Penélope, n. 12, printemps 1985. Lutando pela melhoria de sua condição social e
18 19
nas propagandas da imprensa libertária, ou então,
sexual, as mulheres também conquistaram seu
nas correspondências e documentos de controle po-
direito à memória e, mais ainda, à História . 2

licial. Várias participavam dos comícios e agitações


Entre aquelas que aderiram à causa anarquista,
populares, como se pode depreender da carta irada
vale lembrar nomes conhecidos como o de Maria
enviada, em São Paulo, pelo inspetor de inves-
Lacerda de Moura, que Miriam Moreira Leite apre-
tigação ao diretor do Gabinete de Investigações e
sentou ao público brasileiro, na década de 1980 . 3
Captura, dr. Virgílio do Nascimento, por ocasião
Jornalista, escritora, ativista política, ficou famosa
da greve de 1917. Nesta carta, procurava mostrar
por suas ideias feministas e libertárias, expressas
que a participação feminina no movimento resultava
em i n ú m e r a s palestras, artigos publicados na
da manipulação masculina, o que contrasta eviden-
imprensa operária anarquista, e por seus vários l i -
temente com as notícias que revelam a eclosão
vros, onde dirige uma contundente crítica à moral
desta greve a partir de uma movimentação iniciada
burguesa, ao autoritarismo político e social e à
pelas operárias do Cotonifício Crespi:
opressão das mulheres: A Mulher é uma Degene-
rada?, Amai e Não Vos Multipliqueis, Han Ryner "Atualmente, esses homens empregaram um outro meio
e o Amor Plural, Religião do Amor e da Beleza. para captar as simpatias dos operários: é em fazer operárias
além de dirigir a revista Renascença, em 1925 . 4 subirem à tribuna pública c falar contra os p a t r õ e s e contra
as autoridades c o n s t i t u í d a s . Ainda ontem e em outros
Menos divulgados ou totalmente desconhecidos comícios anteriores, não tem faltado a eles com a sua palavra
são os nomes das inúmeras militantes anarquistas arrogante e atrevida a o p e r á r i a Penélipe (sic), residente à
que aparecem nos jornais, nos panfletos políticos, rua Cavalheiro Crespi, n ° . 3 " . (Processo criminal de Edgard
Leuenroth, arquivo particular do dr. Guido Fonseca.)
2. Já sao clássicos os estudos de SAFFIOTI, Helcieth. Mito e
Realidade: a Mulher na Sociedade de Classes. São Paulo: Qua- Na maioria das vezes, a preocupação em impe-
tro Artes, 1969; PENA, Maria Valéria Juno. Presença das Tra- dir a manifestação política das anarquistas vinha
balhadoras na Constituição do Sistema Fabril. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1984. direto dos policiais. Por ocasião de um comício rea-
3. LEITE, Miriam Moreira. Outra Face do Feminismo: Maria lizado na Praça Antônio Prado, em São Paulo, em
Lacerda de Moura. Rio de Janeiro: Ática, 1984. março de 1911, após o discurso do anarquista italiano
4. MOURA, Maria Lacerda de. Amai e Não Vos Multipliqueis. Oreste Ristori, noticia o jornal Correio Popular:
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1932; A Mulher c uma
Degenerada?. São Paulo: Typ. Paulista, 1924, Religião do Amor
" A l g u m a s o p e r á r i a s , pertencentes à Sociedade Feminina
e da Beleza. São Paulo: Ed. Typ. Condor, 1926; Han Ryner e o
Amor Plural São Paulo: Unitas, 1932. de E d u c a ç ã o Moderna, pretenderam t a m b é m falar à s
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20
massas, mas a polícia interveio e pô-las em debandada". " a s s i s t ê n c i a , sistemas coercitivos, trabalhos d o m é s t i c o s e
(Correio Popular, m a r ç o de 1911). trabalho industrial, s e d u ç õ e s , j o g o , infância delinquente,
investigação à paternidade, j ú r i , direitos civis e políticos da
A l g u m a s ficaram mais conhecidas como mulher, tráfico de mulheres, c o e d u c a ç ã o , casamento, (...)
Matilde Magrassi, que colaborava em A Terra Livre d i v ó r c i o , salário, os crimes da maternidade fora da lei,
e O Amigo do Povo, de São Paulo. Isabel Cerruti, eugenia, p r o t e ç ã o aos animais etc"
colaboradora de A Plebe, Josefina Stcfani, Maria
Antônia Soares, Maria Angelina Soares, Maria de eram os pontos destacados como fundamentais
Oliveira, Tibi, ativas militantes que assinam os arti- para o trabalho da Federação. Nesta direção, a eman-
gos desta imprensa e organizam reuniões nos cipação da mulher é pensada não apenas a partir da
centros de cultura social, ou entre os grupos de reivindicação de melhores condições de trabalho,
teatro que existiram no país . 5
mas a partir de uma nova relação com o próprio
A o lado delas, Maria Lacerda de Moura funda corpo, educando-se e organizando-se em grupos
uma Federação Internacional Femina, em 1921, alternativos de solidariedade.
com um grupo de São Paulo, sediado na Rua da
Liberdade, n° 198 e outro em Santos, instalado na
Avenida Ana Costa, n° 168. A Federação colocava
como meta, em seu programa:

"canalizar todas as energias femininas dispersas, no sentido


da cultura filosófica, sociológica, psicológica, ética, estética
- para o advento da sociedade melhor".

Os direitos da criança e da mulher, a importân-


cia da educação e da introdução de disciplinas co-
mo pedagogia, higiene e pediatria nos cursos su-
periores, a criação de uma cadeira de História da
Mulher, e a discussão de questões sociais como

5. BARROS, Mónica Leite. Mulheres Trabalhadoras e o


Anarquismo no Brasil, dissertaç3ode mestrado, UNICAMP, 1978.

22 23
INTEGRAÇÃO
E MARGINALIZAÇÃO

Talvez seja mais apropriado falar em experiên-


cias femininas do anarquismo, j á que nas entre-
vistas orais que realizei com mulheres anarquistas
de três gerações diferentes, pude perceber que o
anarquismo teve significados diferentes para cada
uma. As entrevistas com a italiana Luce Fabbri (90
anos) e a uruguaia Débora Céspedes (71 anos),
realizadas em agosto de 1992, e com as brasileiras
Maria Valverde (81 anos), Sônia Oiticica (76 anos)
e Dora Valverde (56 anos), gravadas entre maio/
junho de 1994 foram muito enriquecedoras: reve-
laram o perigo das generalizações no discurso do
historiador e trouxeram-me novas questões sobre
o anarquismo, particularmente o de seus signifi-
cados seja enquanto meio de integração, seja de
marginalização, na cidade moderna.
Luce Fabbri e Débora Céspedes foram entre-
vistadas num domingo ensolarado de agosto de
1992, em casa do professor Maurício Tragtenberg,
por ocasião de sua vinda ao Congresso Internacio-
nal Anarquista "Outros 500", realizado na PUC-SP.
25
Luce Participou das inúmeras sessões realizadas oficiales, y alia estaba Mine La Baronne, la prostituta
naquela semana, sempre acompanhada pela com- francesa, bonita, ( . . . ) , dos camarotes de tercera, pero
t e n í a m o s t r a t a m i e n t o de p r i m e r a , c o m í a m o s con el
panheira anarquista Débora. capitán..."
Nascida na Itália, em 1908, falecida em 2000,
com 92 anos de idade, Luce chegou ao Uruguai em
Da infância, lembra-se que o pai, um dos prin-
1929, aos 21 anos, fugindo das perseguições polí-
cipais discípulos de Malatesta, com quem conver-
ticas do fascismo. Filha de Luigi Fabbri (1877-1935),
sava em sua casa, e que este lhe ensinava muitas
conhecido líder anarquista, lembra-se da difícil
canções e brincadeiras. Em suas evocações,
situação de fuga pelos Alpes, com passaporte falsi-
ficado, do embarque no navio cargueiro que a trou- "no recuerdo tanto lo que hacia el (Malatesta) quando iba
xe para a América do Sul, auxiliada evidentemente con m i padre a la c i u d a d de lo congreso, nosotros
pelos grupos anarquistas dos vários lugares por q u e d á v a m o s en casa; pero me recuerdo quando sentava
debajo de la mesa (...), indiretamente influyo mucho".
onde passava. O anarquista Jaime Cubero, do Cen-
tro de Cultura Social de São Paulo, já falecido, per- Formada em Literatura Italiana, foi professora
guntou-lhe durante a gravação, se o navio estava universitária até 1974, quando foi afastada pela di-
muito cheio e ela se recordou da viagem feita ao tadura militar, retornando em 1986 até 1991. Publi-
longo de 27 dias, entre os meses de março e abril cou várias obras voltadas para a crítica do fascismo
de 1929: e do fenómeno do totalitarismo, que marcou sua
"En ese barco tenia um companero italiano, nada m á s ,
vida com tanta intensidade. Camisas Negras, Los
pero vénia um cargamento de prostitutas, todas mucha- Anarquistas y la Revolución Espanhola, El
chas polacas...probablemente no eram prostitutas, veniam Totalitarismo entre dos Guerras, La Libertad en-
a trabajo enganadas por una prostituta francesa, iban a tre la Historia y la Utopia são algumas de suas
Buenos Aires". obras, constituídas em grande parte por artigos
publicados na imprensa libertária e académica . 6
"Tráfico de escravas brancas?", perguntei-lhe.
6. Vejam-se Rago, Margareth. Entre a História e a Liberdade. Luce
"Si, trafico de blancas, una pena, ellas hablaban polaco, Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo. São Paulo: Editora da
adernas estaban abajo no subian casi nunca, era un barco UNESP, 2001; CAPELLETTI, Angel. Hechosy Figuras dei Anarquis-
de carga, no tenia pasageros, habia un camarote sólo que mo Hispano-Americano. Madri: Ediciones Madre Tierra, 1990, p.48;
o c u p á v a m o s nosotros, un camarote de tercera, habia FABBRI, Luce. Camisas Negras. Buenos Aires: Ediciones Ner-
primera e tercera, la primera era un camarote de los vio, 1935.

2-
Ativa militante do movimento anarquista. lutou que sobre muchos argumentos, de los que antes me parecia
contra o fascismo italiano e contra a ditadura no estar tan seguro discutia, discutia, discutia... (...) La
Uruguai; escreveu em vários periódicos anarquis- anarquia, que era la fe radiosa de mi primera juventud, desde
entonces ya no fué solamcntc fe, sino convicción profunda".
tas como o Solidariedade de Montevideu, ou La (La Protesta, Buenos Aires, I de maio de 1936).
o

Protesta, de Buenos Aires, e participou de inúmeros


encontros internacionais libertários, como o reali- Os discursos pronunciados por ocasião de sua
zado em 1992, em São Paulo, ou o de 1993, em Bar- morte, em agosto dc 1935, em Montevideu e em
celona. Buenos Aires, exaltam o símbolo moral e político
Luce nasceu no meio anarquista e conviveu du- que ele representou para mais de uma geração e
rante toda a vida com a liderança anarquista italiana, fazem crer que era uma figura extremamente pres-
espanhola e posteriormente também a sul-ameri- tigiada nos meios revolucionários de então. Seria
cana, pela própria posição de destaque que seu pai valioso apresentar um trecho de um artigo que
tinha no movimento e que, aos poucos, ela mesma encontrei no jornal La Protesta, dc 1934, no Ar-
adquire. Após ter sido preso por vários anos, Luigi quivo Edgar Leuenroth, da UNICAMP, em que I ,uigi
é perseguido pelos fascistas, foge para a Bélgica e defende a "Libertad y Solidariedad", para conhe-
posteriormente para Buenos Aires, acabando por cermos um pouco do ambiente em que Luce se
se instalar em Montevideu, em 1929, com sua fa- formou. Estas concepções e ideais políticos foram-
mília. Aí funda o periódico Studi Sociali, que Luce Ihe transmitidos nada menos do que por um pai visto
dirige após sua morte, de 1935 a 1946. Dos inúme- como um homem íntegro, combativo, justo e
ros artigos políticos e teóricos escritos pelo pro- admirável n ã o apenas por ela, mas por toda a
fessor Fabbri, muitos dedicados a Malatesta, que comunidade libertária, e por Malatesta:
ele tanto amava, destaco um pequeno trecho em que
ele narra a emoção do primeiro encontro com o "Es un trabajo múltiplo e multiforme que corresponde
grande teórico do anarquismo, quando era bem j o - al anarquismo, y no bastaria para ejccutarlo una sola
corriente, una sola o r g a n i z a c i ó n , una sola forma de mo-
vem e este parecia ter aproximadamente 40 anos: vimento. Fscoja cada uno su próprio campo de a c c i ó n , cl
campo mas adaptado a su temperamento, a sus tendê-n-
" T u v o la sensación de que, en aquel largo c o l ó q u i o de cias, a sus capacidades y desarolle ali toda la energia de
m á s de 24 horas, mi c é r e b r o hubiese sido tomado y dado que es capaz. Pero no caiga en el grave defecto de
vuelta en la caja craniana. Recuerdo, como si fuese aycr. creer que s ó l o stl a c t i v i d a d especial es útil, que s ó l o
el la es anarquista o revolucionária. La anarquia, como la
28
29
rcvolución, no s e r á la resultante de una sola a c t i v i d a d , só entrou para os meios l i b d t á r i o s de São Paulo
sino dc todas; no de un solo tipo de o r g a n i z a c i ó n sino de por volta de 1945, quando se mudou com a família
los tipos más diversos: sindical c ideológica, permanente y
transitória, nacional o internacional y local, para la propa- para cá. Sônia Oiticica, de 1923, filha do conhecido
ganda y para la acción, publica y clandestina. Y cada for- militante anarquista José Oiticica, participou do mo-
ma requiere aptitudes personalcs diversas y por Io tanto vimento desde criança, atuando, assim como Ma-
estará compuesta de elementos diversos". (La Protesta,
setembro de 1934).
ria Valverde, no teatro libertário. Pode-se dizer que
pertencem à segunda geração: filhas de anarquistas
Para Luce, evidentemente, o anarquismo signi- convictos, viveram no interior deste universo, l i -
ficou muito mais do que uma ponte para o mundo e gadas aos Centros de Cultura Social, de São Paulo
uma forma de inserção social na cidade, nos meios e do Rio de Janeiro, onde atuaram em inúmeras pe-
operários e revolucionários, como será para Maria ças de cunho social.
Yalverde. É um ideal de vida, é o sentido de sua Também atriz do teatro amador libertário desde
vida. A força do movimento anarquista nos lugares menina, Dora Valverde, nascida em 1941, em São
e nos períodos em que viveu seguramente mar- Paulo, filha de Maria Valverde, integra a terceira
caram de modo indelével sua experiência, de tal geração de mulheres anarquistas. A o contrário de
modo que Luce é impensável sem o anarquismo e Luce, elas j á não participam das atividades liber-
com ela é a própria existência da doutrina que se tárias, a exemplo das que se realizavam e ainda sc
personifica. realizam no Centro de Cultura Social, ou cm outros
Débora Céspedes, nascida cm 1921, no Uruguai, núcleos anarquistas.
é poetisa e militou também a vida toda, mas são Sônia Oiticica, filha do combativo militante
mais marcantes em suas memórias as lutas contra anarquista José Oiticica, autor de inúmeras obras,
o regime ditatorial em seu país . 7
entre as quais A Doutrina Anarquista ao Alcance
Maria Valverde nasceu em Piracicaba, em 1916, de Todos e de muitos artigos publicados na i m -
filha de um anarquista espanhol José Valverde, que prensa libertária, nos traz recordações muito fe-
lizes dos seus tempos de infância, quando, num
7. Sua biografia, assim como a de seu companheiro Beto (Alberto
Gallegos), foi publicada por: Fontana, Hugo. Historias Robadas. ambiente especialmente cultural, pôde ter contato
Beto y Débora, dos anarquistas uruguayos. Montevideu: Cal y com vários personagens do anarquismo, dentre os
Canto, 2005.
30 31
quais Maria Lacerda de Moura, de quem se lembra A Ronda Heróica
vagamente . Em suas palavras, esses militantes eram
8

Pela santa Anarquia, ideal humano,


na maioria homens:
mais uma vez o cárcere transpus
" M e u pai reunia sempre, toda semana, os anarquistas e aqui, neste cubículo tirano,
em casa. Discutiam alto, forte, minha m ã e sempre pre- aos maus dou meu perdão, como Jesus.
parava depois um lanche para eles. Era muito s i m p á t i c o
aquilo tudo, era o Manuel Perez, o Ideal que a t é hoje e s t á
aí, (...) eram vários, tinha muita gente, e s p a n h ó i s , italianos,
Sei que através de muitos desenganos
e de vez em quando ficava escondido um lá em casa, me temos de ensanguentar a nossa cruz
l e m b r o do S t e f a n o v i t c h , u m v e l h o de barba branca, e transformá-la sós, anos após ano
russo..." de lenho infame em tocha que conduz.
Criada num ambiente bastante arejado e emo-
Na Espanha, heróico o lábaro anarquista
cionalmente equilibrado, assim como Luce Fabb i r
vejo em cada trincheira trovejar
e Maria Valverde, morou um tempo na Alemanha, aponta ao mundo o rumo da conquista.
para onde seu pai fora convidado a trabalhar como
professor. E interessante notar que todas as filhas De olhos nele, prosterno-me a rezar
de Oiticica se ligaram às artes, à música, à dança, e aos poucos vai surgindo à minha vista
ao teatro, enfim à vida cultural, e que tenham se a ronda dos seus mortos a cantar.
casado mais de uma vez. Segundo Sônia, seu pai
dizia que sempre podiam contar com sua reta- José Oiticica
guarda, em caso de infelicidade conjugal. Foi com (Casa de C o r r e ç ã o , 17 de novembro de 1937)
muita emoção que declamou uma poesia de seu pai,
que ela conserva pendurada num quadrinho, na Maria Valverde t a m b é m se recorda, com
sala de seu apartamento, no centro da cidade de São nostalgia, de um tempo feliz em que se sentia bas-
Paulo: tante integrada com os grupos anarquistas de São
Paulo e de outros estados, especialmente a partir
de sua experiência como atriz das peças de cunho
8. OITICICA, José. A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos. social. Destas, destaca com carinho as escritas
São Paulo: Económica Editorial, 1983. ( I . edição, 1947).
a

32 33
pelo sapateiro e militante espanhol Pedro Catallo,
saiavam várias peças teatrais; ou ainda, na chácara
com quem conviveu por muitos anos. Filha de um
comunitária situada no antigo Itaim, onde se rea-
sitiante espanhol, anarquista e radicalmente anti- lizavam os famosos encontros c congressos l i -
clerical, ela encontrou os "anarquistas organizados" bertários . Tendo iniciado nos círculos culturais
9

quando chegou juntamente com o pai a São Paulo, libertários, Sônia profissionalizou-se como atriz
aos 29 anos, grávida de Dora, vinda para um tra- de teatro, tornando-se uma figura bastante conhe-
tamento naturista. O anarquismo significou para ela cida ao longo de sua vida.
uma porta de integração na vida social e cultural da Dora Valverde, mais jovem, participa de uma
cidade, em especial dos trabalhadores. outra geração, para a qual a experiência anarquista
foi, num certo sentido, muito diferente da dos pais
"Na minha família, anarquista era meu pai, José Val-
e menos gratificante. Seu irmão, seis anos mais
verde Dias. N ó s c o m e ç a m o s quando viemos de Piracicaba
para S ã o Paulo. Fui a uma c o n f e r ê n c i a dos anarquistas jovem, não se tornou anarquista e ela mesma não
com meu pai, e aí anunciaram que iam formar um grupo de se casou com um simpatizante do movimento, e
teatro.(...) A moça que ia tomar parte n ã o f o i , e o diretor hoje considera o anarquismo uma utopia irrea-
me convidou. Eu tomei parte s ó para ajudar, e aí não saí lizável. Como ela diz, se hoje pode avaliar que rico
mais.(...) As peças eram apresentadas no Teatro Colombo
universo tinha ao seu redor, referindo-sc às ati-
e no Teatro Arthur Azevedo. (...)". (Entrevista realizada
em j u n h o de 1994). vidades culturais, às discussões políticas, às festas,
aos encontros com os companheiros de seus pais.
No caso dela e de Sônia, que se aproximam tam- ativos combatentes pelos direitos democráticos e
bém enquanto geração, é de se notar que o anar- igualitários, ao mesmo tempo, sofreu com a "gue-
quismo atuou como fornia de integração social, fa- tização" do movimento, nas décadas de 50 e 60.
cilitando o contato com a comunidade de trabalha- Isto é, na medida em que se tornava adolescente,
dores imigrantes, assim como com os grupos de por volta dos anos 50, o anarquismo fechava-lhe
teatro amador e profissional. Os anarquistas muitas portas de interação social com outros jovens
reuniam-se no Centro de Cultura Social, fundadc de fora da comunidade libertária e operária. A n -
em 1933, em São Paulo, posteriormente localizado
9. Ver BORGES, Paulo. Jaime Cubem e o Movimento Anarquista
à Rua Rubino de Oliveira, no Brás e hoje à Rua Ge- em São Paulo, Dissertação de Mestrado. PUC, 1996; AVELINO,
neral Jardim; em sua casa, no Tatuapé, onde en- Nildo. Anarquistas: Ética e Antologia de Existências. Rio de Ja-
neiro: Achiamé, 2004.
34
35
ticlcricais, os anarquistas condenavam a partici- Catallo, que conviveu por muitos anos com sua
pação nas atividades religiosas, como casamentos, família, e que. de certa forma, assume o mesmo
batizados, primeira comunhão etc, que seus amigos lugar em sua memória que Luigi Fabbri para L u -
frequentavam; militantes ativos, exigiam que ela fe, ou José Oiticica para Sônia, não lhe poupa crí-
participasse das greves que organizavam ou a que ticas, como a de ser um homem muito "radical", que
aderiam, e da qual ela se sentia exterior. não negociava nas questões familiares e nas rela-
Há que se considerar ainda que à medida que, ções afetivas. Ainda assim, está muito longe de ser
politicamente, o movimento perdia força, o grupo lembrado com ressentimento. Emocionadas, Dora
dos anarquistas diminuía e se fechava, os contatos e Maria me apresentaram, além de um livro de poe-
entre seus membros tornavam-se mais esporádicos sias, algumas das peças teatrais que ele escreveu e
e aumentava a necessidade de abrir-se para o mun- que elas representaram: O Coração é um Labirinto.
do exterior. Além do mais, uma vez que vários "conflito amoroso em três atos" e Uma Mulher
membros experimentavam um movimento de
Diferente, "drama de crítica social em três atos".
ascensão social, tornando-se "classe média", as ne-
Em suma, por mais que faça, hoje, uma avalia-
cessidades cotidianas e de sociabilidade mudavam.
ção bastante crítica dos anarquistas, Dora é uma
Nesse sentido, Dora e seus irmãos sentiam-se
mulher extremamente aberta, principalmente com
marginalizados em relação aos jovens de sua idade,
na grande maioria, sem qualquer contato nem com os filhos, e admira profundamente os ideais anar-
os anarquistas, nem com os comunistas. quistas. Como todos os anarquistas, valoriza ex-
cepcionalmente a liberdade, a não-hierarquização
A o contrário de Maria, Dora tem hoje uma visão
e as atitudes libertárias. Conclui que não seria a
mais dura dos anarquistas, apontando em suas
memórias para o autoritarismo interno do grupo e mesma pessoa caso tivesse nascido num ambiente
dos familiares, para o machismo dos homens, para mais autoritário. Inserida na modernização pau-
um certo fracasso na realização prática dos ideais listana, vizinha de um shopping center, vivendo num
libertários no cotidiano. Um certo fracasso, bem período de acentuado refluxo do movimento anar-
entendido, porque realmente ela está muito longe quista, procura colocá-lo no lugar que ocupou em
de compará-los aos grupos de direita ou sem ideo- sua vida, nem mais nem menos.
logia que conhecemos. Embora se lembre com Estas cinco mulheres trazem recordações extre-
ternura do sapateiro e escritor anarquista Pedro mamente positivas dos tempos libertários, dos gru-
36 37
pos dc militantes e simpatizantes com os quais
conviveram, das atividades culturais a que tiveram
acesso tão cedo. N ã o há como não manifestarem
um forte sentimento de perda, progressivamente
à idade. Pois, muitas vezes, nas palestras realiza- ANARQUISMO E FEMINISMO
das no Centro de Cultura Social, discutiam-se as-
suntos que hoje parecem extremamente avançados, Essas experiências trazem algumas informa-
como os referentes à moral sexual e à sexualidade,
ções sobre as relações entre as mulheres e o anar-
em meio à construção de uma cultura libertária que,
quismo e entre o anarquismo e o feminismo, no
no mundo contemporâneo, onde os processos de
Brasil. Afinal, muitas trabalhadoras encontraram
individualização e de ascensão do narcisismo se
nesta doutrina e neste movimento político espaço
fazem tão fortes, não podemos deixar de valorizar
profundamente. para a elaboração de suas reivindicações e para a
p r o b l e m a t i z a ç ã o de q u e s t õ e s especificamente
referentes à condição feminina, não subordinadas
estritamente às questões de classe social.
Entretanto, vale lembrar que outras correntes do
feminismo emergiram, neste período, para além
dos meios anarquistas, entre as mulheres dc classe
média e alta, preocupadas com o acesso à esfera
pública moderna, à educação, à vida profissional e
com o direito de voto. Revistas como A Mensa-
geira (1897-1900) e a Revista Feminina (1914-
1936), publicadas por mulheres da elite, em São
Paulo, circulavam por todo o país defendendo os
ideais feministas numa perspectiva liberal, enquanto
no Rio de Janeiro, Bertha Lutz, bióloga paulista
graduada pela Sorbonne, enfrentava a concorrência
masculina para dirigir o Museu Nacional c fundar,
38 39
em 1918, a Liga para a Emancipação Intelectual da encontrarmos afirmações, naquelas publicações
Mulher Brasileira, ao lado de Maria Lacerda de feministas, de que as mulheres pobres precisariam
Moura . 10 ser conduzidas pelas mais ricas, pois estas seriam
Burguesas, ricas, consumistas ou n ã o , sem racionais e capazes de direção política, enquanto
dúvida, enfrentaram uma resistência bastante difícil aquelas estariam absolutamente presas à dimensão
diante de um mundo masculino, que afirmava cien- biológica, cuidando da casa e dos inúmeros filhos,
tificamente a incapacidade intelectual, física e sem oportunidades para desenvolverem-se no plano
moral das mulheres, dotadas de uma caixa craniana cultural e pessoal. Assim, diziam:
mais leve do que a masculina, ou de um formato de
"à mulher superior, a quem os deveres maternais são mais
quadril especial para a maternidade, que dificultava
leves, compete manter e i n c r e m e n t a r a v i d a m o r a l ,
o andar agilizado pelas ruas da cidade, como diziam intelectual e social do povo a que pertence". (Revista Fe-
os doutores franceses e ingleses desde o século minina, abril de 1920).
anterior.
No entanto, parece que o contato entre as anar- Por outro lado, quando fazem referências às
quistas e as feministas liberais praticamente não feministas liberais, as anarquistas criticam sua luta
existiu, ou foi bastante tenso, j á que estas não só como pouco transformadora, j á que limitada ao
condenaram aquelas como radicais, procurando acesso à esfera pública burguesa, masculina e pre-
manter uma profunda distancia do que ironicamen- servadora das relações hierarquizadas na esfera
te definiam como "feminismo revolucionário", privada. A anarquista Isabel Cerruti, em artigo
destruidor dos lares e "anárquico" como. muitas publicado na imprensa libertária, naquele mesmo
vezes, até desconheceram a cultura operária que se ano, respondia:
produzia e cultivava nas imediações. H comum
" A Revista Feminina em seu programa p r o p õ e - s e a
propugnar pela e m a n c i p a ç ã o da mulher conseguindo para
10. ALVES, Branca Moreira. Ideologia e Feminismo. A Lula da
Mulher pelo Voto no Brasil. Rio dc Janeiro: Vozes, 1980, p. 104; ela o d i r e i t o de empenhar-se em lutas eleitorais. (...)
sobre as difíceis relações entre Maria Lacerda de Moura e Bertha C o m o se a e m a n c i p a ç ã o da mulher se resumisse em t ã o
Lutz, veja-se LEITE, Miriam Moreira, op. c/7., p. 37 e seg.; pouco...
HAHNER, June. Emancipating lhe Female Sex. The Strugglefor O programa anarquista é mais vasto neste terreno; é
Womens Rights in Brazil. Durham and London: Duke University vastíssimo: quer fazer compreender à mulher na sua inteira
Press, 1990, p.l40eseg. c o n c e p ç ã o , o papel grandioso que ela deve desempenhar.
40 41
como factora histórica, para a sua inteira integralização na as direcionadas pelo partido político, ou voltadas
vida social (...)". ( A Plebe, 20/11/1920)". para a política institucional e partidária . Nos 12

poucos estudos de história do feminismo existentes


E importante trazer para o debate alguns dos no Brasil, silencia-se a experiência anarquista, ou
problemas que o anarquismo teve de enfrentar em então, esta vem muito condensada e questionada
sua relação com o feminismo, entendido aqui num enquanto prática contraditória com a teoria liber-
sentido lato. Pois tanto o feminismo, enquanto con- tária de emancipação dos sexos . 13

junto de ideias, práticas e movimentos de luta pela


e m a n c i p a ç ã o da mulher, como o anarquismo
nascem no século 19, a partir de uma preocupação
com o indivíduo e com sua autonomia, apesar das
diferenças e dos vários pontos de tensão, nesta
relação.
Procuro, então, pensar quais as possibilidades de
um anarco-feminismo ou dc um feminismo libertá-
rio e o lugar que o feminismo encontra nesta dou-
trina e prática política, a partir da experiência his-
tórica brasileira. Vale lembrar que a própria cons-
trução histórica que as feministas atuais fazem de
sua tradição combativa tem deixado de lado a ex-
periência feminina/ista do anarquismo, em suas
lutas extremamente atuais, para privilegiar as
feministas liberais, exceção feita ao estudo pio- 12. RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar. A Utopia da Cidade
Disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, I985,cap.2.
neiro de Miriam Moreira Leite, j á citado.
13. Há brevíssimas referências às anarquistas em TELLES, Maria
De certo modo, repõe-se uma tradição historio- Amélia. História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
gráfica que silenciou a experiência anarquista no 1992; HAHNER, June lhes confere um rápido espaço cm s^u recente
Brasil e minimizou outras formas de luta que não livro Emancipating lhe Female Sex. The Struggle for Womens
Rights in Brazil, op. cit., cap. 3 e 4, ao contrário do que ocorrera
11. Veja-se LIMA, Sandra Lúcia Lopes. Espelho da Mulher: Re- com seu livro A Mulher Brasileira esuas Lutas Sociais e Politicas.
viste Feminina (1916-1925), tese de doutoramento em História, publicado pela Editora Brasiliense, em 1981, que absolutamente
São Paulo: USP, 1991, p.77 e seg. não as menciona.
A MORALSEXUAL

É conhecida a preocupação que tem o anar-


quismo com os direitos do indivíduo e, nesse caso,
com a libertação das mulheres. Mais do que qual-
quer doutrina política, o anarquismo tem uma preo-
cupação especial com a emancipação feminina, o
amor livre, o fim do casamento monogâmico e con-
tratual, o divórcio, o direito à maternidade. Na me-
dida em que não tem o Estado como alvo central
de sua luta política, e em que a estratégia da ação
direta coloca em cena uma outra concepção de
revolução, na qual a transformação não se dá apenas
no dia seguinte à tomada de poder político, mas
ocorre gradualmente no cotidiano, outras dimen-
sões da vida social, como o campo da moral, aca-
bam sendo privilegiadas. A transformação das re-
lações sociais passa pela destruição das relações
hierárquicas em todos os campos da vida social,
da fábrica à escola e ao lar, e pelo reconhecimento
da liberdade e dos direitos do indivíduo. Este se
coloca em primeiro plano em relação à coleti-
vidade, e por isso mesmo é possível a problemati-
zação das questões referentes à condição feminina
45
cultural foi reforçada no amplo debate que os
de uma maneira especifica, distinguindo-se das
questões masculinas. anarquistas travaram, ao criticar as instituições
Valeria lembrar que os anarquistas propuseram burguesas e patriarcais. A luta pela independência
a constituição de novas formas da relação afetiva, feminina era, nesse registro, primeiramente uma
sexual, familiar, defendendo o fim do casamento questão moral: trata-se de libertar-se da imposição
contratual e monogâmico, o amor livre, o direito do modelo burguês de feminilidade e de construir
ao prazer, a ausência de regras rígidas codificando uma nova figura de mulher.
os sentimentos e as emoções. Maria Lacerda, por Pode-se imaginar o medo que causavam estas
exemplo, afirmava, num debate com Alexandra colocações, nesta época de supervalorização da
Kollontai, da Oposição Operária Bolchevique, que "mulher fatal", da uvampn e das "Salomés", no ima-
o amor não poderia ser organizado pelo partido ou ginário masculino. Capazes de destruir a civilização,
por qualquer ideologia, sem que fossem sufocadas enquanto personificações de forças instintivas
a liberdade e as experiências do passado. " A vida incontroláveis e maléficas, seriam responsáveis
não cabe dentro de um partido é uma dc suas frases
,,
pela destruição dos casamentos e dos lares, assim
mais incisivas. como pela generalização da "anarquia sexual" . 14

Além do mais, engrossava as vozes dos que Médicos e juristas esforçavam-se, portanto, para
defendiam a educação sexual dos jovens, acre- mostrar às mulheres que haviam nascido para a
ditando que a inexperiência, tanto quanto a desin- maternidade, enquanto procuravam fornecer aos
formação levavam à opressão da mulher no próprio homens informações sobre a fisiologia feminina
casamento. Para ela, pelo fato de ser pluralista, o como meio para satisfazerem sexualmente as
homem conseguia circular na esfera pública com
esposas e preservarem o casamento.
mais desenvoltura, não depositando numa única
Para uns, apesar das avançadas ideias libertárias,
pessoa toda a fonte de sua vida. Mais seguro, mais
a prática social dos anarquistas parece ter cor-
calmo, contando mais consigo mesmo, o homem
conseguiria participar do jogo das relações sociais respondido menos às suas propostas. São conhe-
que se constitui na esfera pública dc uma manei-
ra que as mulheres ainda teriam de aprender. 14. Vcjam-se o interessante trabalho de SNOWALTER. Elaine.
Anarquia Sexual. Rio de Janeiro: Rocco, 1994; e RAGO, Margareth.
Nesse sentido, a questão da emancipação das "O Prazer no Casamento: homem e mulher no leito conjugal".
Revista Ideias. n°2, IFCH - UNICAMP, 1994.
mulheres através de sua libertação económica e
47
46
cidas as críticas e n d e r e ç a d a s aos anarquistas, leitura totalmente masculina, abstraindo a atividade
destacando a incoerência entre teoria e ação no das mulheres que aí participaram . 16

campo da moral. Estudos dos anos 1980 preocu- As próprias anarquistas, aliás, criticavam seus
param-se em mostrar que os anarquistas dos iní- companheiros pelas posições machistas que as
cios do século 20 eram moralistas, n ã o pratica- colocavam em lugares de subordinação, seja na
prática política, nos sindicatos, seja na represen-
vam o amor livre, proibiam p r á t i c a s como o
tação da mulher como figura frágil e delicada, nos
carnaval ou as festas populares, assim como outros
romances e peças teatrais, seja ainda na própria
hábitos tidos como "vícios burgueses": bebida
construção da memória histórica. N o entanto, foi
alcoólica, fumo, bordéis. E, ao contrário do que
Maria Valverde quem levou o marido para o anar-
registramos em experiências como a parisiense ou quismo, e n ã o o considera a u t o r i t á r i o . A l i á s ,
a portenha, os bairros operários anarquistas não segundo o depoimento de sua filha, ela era
coincidiam com a "geografia dos prazeres": La
Boca, em Buenos Aires e Montmartre, em Paris, "o homem da família. Ela era uma pessoa mais ativa (...).
não encontram correspondência no Brás ou no Ela conseguia vagas nas escolas particulares para os filhos
Bom Retiro. (...). Tudo se decidia com ela, na casa."
Pesquisando a experiência feminina na Colónia
À pergunta de como via sua experiência no
Cecília, Hadassa Grossmann, que não acredita no
anarquismo enquanto mulher, Luce Fabbri, por sua
anarquismo, afirma que as mulheres aí também
vez, respondeu:
exerciam funções secundárias, ou que aparecem
nos relatos de seus companheiros idealizadas pelas " N o r m a l , nada de especial, si fuera hombre teria sido
metáforas românticas da passividade, compreensão completamente lo mismo. Yo no encontre ningún obstáculo
e carinho . Já Maria Lacerda de Moura, criticando
15
pelo hecho de ser mujer, ni entre los companeros, ni en el
concurso para la Universidad".
a leitura que Afonso Schmidt fez da experiência da
Colónia Cecília, censura-o por apresentar uma
O anarquismo direcionou-se às camadas sociais
15. GROSSMANN, Hadassa. La Femme du Secteur Ouvrier au mais desfavorecidas, sobre as quais pesam de ma-
Brésil, tese de doutoramento. Paris, 1991. Numa perspectiva
libertária. Helena Isabel Mueller. Flores aos Rebeldes que Falha- 16. CORREIA, Francisco. "Mulheres Libertárias: um roteiro", in
ram: Giovanni Rossi e a Utopia Anarquista: a Colónia Cecília. PRADO, Antonio Amoni. Libertários no Brasil. Memória, Luta.
Tese de doutoramento, USP, 1989. Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.39.
48 49
neira diferenciada os códigos morais. Em outras
de praticar os ideais de uma nova moral. Pagu,
palavras, o amor livre praticado por uma mulher da
Tarsila do Amaral, Anita Malfatti podiam circular
elite teria um significado e uma reação muito dife-
pela cidade, desafiando a moral burguesa, a exemplo
rentes daquele praticado por uma mulher pobre. Do
dos personagens de Oswald de Andrade e Mcnotti
mesmo modo, as campanhas contra o alcoolismo e
dei Picchia, sem contudo, desencadearem uma
o jogo nunca visaram os homens ricos, mas os
guerra por parte de vários setores sociais, como
pobres, considerados mais inclinados à perda do
controle racional. Numa sociedade altamente teria ocorrido com a " P e n é l o p e " libertária.
conservadora, a despeito do processo de moder- O autoritarismo dos anarquistas também deve
nização em curso, a prática do amor livre pelas ser relativizado, pois certamente as filhas destes
camadas pobres da população seria considerada militantes convictos tiveram experiências de vida
prostituição pura e simplesmente. E compreen- mais descontraídas e mais livres em relação às dc
sível, portanto, que os anarquistas se preocupas- outros meios sociais. Não por acaso, várias se tor-
sem com a preservação de sua imagem moral con- naram artistas ou professoras universitárias: o uni-
tra a projeção dos preconceitos burgueses. Con- verso cultural mais arejado em que se formaram
denar o alcoolismo, orgias, "deboches" entre os tra- não pode ser menosprezado. Qual é a avaliação de
balhadores significava preservar uma imagem de Dora Valverde, por exemplo?
ordem, em oposição à tentativa constante de ni-
velamento da liberdade com a licenciosidade, nas " A s relações familiares foram mais spltas.(...) Mas, o
sentido de virgindade era importante para eles, embora eu
práticas e pensamento das elites e da sociedade em
tenha recebido muitas informações que outras c r i a n ç a s ,
geral. Lembre-se que, neste período, muitos médi- outras adolescentes n ã o recebiam. Mas sempre através de
cos ainda reforçavam o argumento de que as mu- conferencistas, me faltava aquela experiência (dc e d u c a ç ã o
lheres não tinham "apetite sexual", a não ser para sexual) em casa".
fins procriativos, enquanto outros condenavam a
austeridade dos maridos que não aceitavam dar Lembra-se de que nas reuniões do Centro de
prazer sexual às esposas, que só conseguiam ver na Cultura Social, que se realizavam aos sábados à
condição de "mães de seus filhos". Daí, também, a tarde, os palestrantes abordavam assuntos os mais
possibilidade que as vanguardas artísticas c lite- variados, inclusive os que se referiam à questão
rárias encontraram, ao contrário dos anarquistas. sexual, como a masturbação.

50
51
"Todos os s á b a d o s tínhamos conferencistas, falava-se
de tudo. Já naquela época o Gaiarsa dava conferências, o
K l e i n , que foi recentemente assassinado".

Em relação às relações familiares e de grupo,


ela afirma: ANARQUIZANDO

" A c o n v i v ê n c i a do grupo era maravilhosa. (...) Uma Não dá para negar a diferença dos parâmetros
coisa que me gravou: a família do Jaime Cubero, porque eu
que as pessoas se c o n s t r ó e m a partir de suas
nunca v i coisa igual, os irmãos como se amam, como eles
se protegem, como eles se respeitam, como eles s ã o experiências de vida: quem nasceu num meio
s o l i d á r i o s ! (...) A S ô n i a O i t i c i c a t a m b é m teve um pai anarquista, com certeza adquiriu padrões de re-
maravilhoso!" ferência do que seja solidariedade, companhei-
rismo, amor, liberdade, vida sexual e afetiva muito
Já Luce Fabbri fala de suas dificuldades pes- diferentes dos que estiveram de fora. Os resultados
soais para aceitar o homossexualismo outrora, e parecem hoje muito mais perceptíveis. As mulheres
de como foi surpreendente descobrir que vários de dentro do meio anarquista, a despeito das ge-
amigos eram homossexuais. A o mesmo tempo, é rações parecem ter tido experiências muito mais
interessante observar que estas mulheres tiveram abertas e intensas das relações afetivas, tanto
casamentos estáveis, monogâmicos e duradouros, quanto da ideia de autonomia, em relação à maio-
à exceção de Sônia, que se casou mais de uma vez, ria da população: essas cinco mulheres, incluindo
e constituíram famílias bastante integradas. Débora, participaram de famílias muito coesas,
conheceram valores muito fortes dc integridade
moral, de ideais democráticos, de justiça social, e
tiveram direta ou indiretamente experiências de
solidariedade frente às prisões e p e r s e g u i ç õ e s
políticas sofridas pelo grupo pouco comuns. É de
se notar o profundo respeito e a grande admiração
com que se referem aos membros do grupo.
Além do mais, é interessante observar como as
diferenças de geração e de países marcaram suas
52
53
experiências de vida e as concepções que forma- avaliação não a leva a desacreditar do ideal, consi-
ram. Luce Fabbri, a mais velha, participou de uma derando que como toda luta política, o movimento
geração mais gloriosa e combativa num certo sen- anarquista também tem seus momentos dc ascen-
tido, recebendo os ideais libertários a partir do cen- so e descenso, especialmente num mundo tão do-
tro do anarquismo: diretamente dc Malatesta ou de minado pelas ditaduras e outras formas de tota-
seu pai. Ela mesma teve de enfrentar perseguições litarismo. Revelando uma visão extremamente po-
políticas muito mais violentas e acirradas do que as litizada e bem informada das questões contempo-
outras, e enfrentou uma diversidade dc situações e râneas, ela afirma:
de vivência em meios anarquistas muito maior, já
que circulou por outros países e acabou vinculando- " E l anarquismo es una atitude ética perante la vida.
(...) Pensaria que la ditadura en los diferentes países ha
se aos anarquistas de países bastante politizados, provocado un vacio. May un espacio por ondeei anarquismo
como a Argentina e o Uruguai. Não é à toa que tenha no pudo difundirse, y una s e g r e g a c i ó n q u i p e r d i ó la
escrito vários livros políticos para denunciar o fas- posibilidad de accionar y dc estudiarlo. Entonces ahora hay
cismo e o totalitarismo no mundo, e que esteja ainda retomado, porque la liberdad esta en toda la gente, pero no
han tenido acceso a esta continuidad."
hoje organicamente ligada ao anarquismo, a cujo
ideal se dedicou integralmente, ao longo de sua exis- Maria Valverde t a m b é m experimentou um
tência. Sua utopia seguramente não morreu. Ao lado momento ainda vivo das lutas e da cultura anarquista
de Débora, cuja amizade firmou há mais de 40 anos,
no Brasil, antes do fechamento político pela dita-
lutou pela condução c organização do movimento
dura militar a partir de 1964. Pôde. portanto, esta-
anarquista naquelas regiões, trabalhando inten-
belecer uma rede de relações bastante densas no
samente desde as tarefas mais simples, adminis-
meio operário e anarquista, que perdura ainda hoje.
trativas, até as mais complicadas como escrever para
Se n ã o participa das m o v i m e n t a ç õ e s culturais
os jornais.
atualmente, isto se deve cm parte â dificuldade de
Para Débora, cujas retlexões se aproximam das
s a ú d e e n ã o exatamente à falta de c o n v i c ç ã o
de Jaime Cubero, o anarquismo continua também
política. O anarquismo ainda representa uma es-
extremamente vivo e atual, embora avalie cri-
perança e uma possibilidade para ela. Perguntei-
ticamente o refluxo do movimento em todo o mun-
do e considere que este deva se adequar aos novos Ihe como ela via a experiência anarquista hoje, e a
tempos da revolução tecnológica. Contudo, sua resposta veio taxativa:

54 55
"Eu vejo como um ideal e como uma ideologia muito O desconhecimento do anarquismo e do fe-
perfeitos, porque v ê m sempre em favor do o p e r á r i o , dos minismo no grupo me pareceu muito grande, po-
pobres, das c r i a n ç a s . Todos os teatros que n ó s d á v a m o s ,
d á v a m o s em favor das c r i a n ç a s , da Espanha, da França e
rém menor do que o meu sobre aquelas jovens.
daqui". Perguntei-me de onde haviam saído, como haviam
conhecido o anarquismo e, mais ainda, como ha-
Sem dúvida, Luce Fabbri concordaria inte- viam estabelecido a ponte entre o anarquismo e o
gralmente com ela. feminismo? O sentimento de que uma tradição
Sônia e Dora, por sua vez, tiveram experiências política se perdia foi, é claro, violento. O interesse
de vida muito mais diversificadas, enraizando suas
que elas demonstraram pelo tema t a m b é m foi
relações pessoais muito mais no mundo exterior à
surpreendente. De certa maneira, estamos nos
comunidade anarquista do que dentro dela. Ambas
reconhecendo na paralela, j á sabendo, graças às
têm uma referência mais distante desta doutrina e
novas descobertas da geometria euclidiana, que as
uma relação mais cctica com o futuro, apesar da
paralelas se encontram no infinito.
diferença de gerações. Para elas, o anarquismo
representa uma utopia irrealizável, na complexa
vida social do mundo contemporâneo, e a maior
parte de sua rede de relações se situa fora deste
universo. No caso dc Sônia, no inundo artístico
profissional, por exemplo.
Para minha grande surpresa, fui convidada
neste ano de 1994 para dar uma palestra sobre as
relações entre o anarquismo e o feminismo, em
comemoração ao Dia Internacional da Mulher, pelo
recém-formado Coletivo Anarco-Feminista de São
Paulo. Mais surpresa ainda fiquei quando me de-
parei com as inúmeras militantes do Coletivo e
organizadoras do evento: jovens de aproxima-
damente 20 anos, habitantes de bairros periféricos
da Grande São Paulo, de aparência rap-punk.
56 5-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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de Existências. Rio de Janeiro: Achiamé, 2004.
BARROS, Mônica Leite. Mulheres Trabalhadoras
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mestrado, Unicamp, 1978.
CAPELLETTI, Angel. Hechosy Figuras dei Anar-
quismo Hispano-Americano. Madri: Ediciones
Madre Tierra, 1990.
CORREIA, Francisco. Mulheres Libertárias: um ro-
teiro. In Libertários no Brasil. Org. Antonio
Arnoni Prado. São Paulo: Brasiliense, 1986.
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bora, dos anarquistas uruguayos. Montevideu:
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ris, 1991.
LEITE, Miriam Moreira. Outra Face do Feminis-
mo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática,
1984.
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Falharam: Giovanni Rossi e a Utopia Anar-
quista: Colónia Cecília. USP, 1989.
RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar. A Utopia da
Cidade Disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Ter-
ra, 1985.
59
AUDÁCIA DE SONHAR
Memória e Subjeíividade em Luce Fabbri
" O anarquismo é mais um caminho do que um f i m , a
finalidade é sempre i n a l c a n ç á v e l , qualquer finalidade,
n ó s a concebemos como inteira, perfeita e como tal n ã o
se a l c a n ç a . Sacrificar a essa finalidade o que a pessoa
sente e pensa é suicida, porque, na realidade, n ã o se con-
segue nada, tampouco no momento presente e o que
interessa é o presente que estamos v i v e n d o , que é o
que existe. O anarquismo é uma forma de sentir o pre-
sente em vista de algo, em vista de uma finalidade, quer
dizer senti-lo libertariamente, em vista de uma liberdade,
pois o perfeito n ã o existe, p o r é m , pode-se ir a ele... n ã o
é uma atitude i n d i v i d u a l , mas social, que interessa à so-
ciedade em seu conjunto, portanto implica o r g a n i z a ç ã o ,
ordem, r a z ã o . . . "

Foi esta a definição de anarquismo que me deu a


militante italiana Luce Fabbri, logo que iniciamos
nossas conversas, em 1995, e considero-a uma porta
de entrada bastante esclarecedora para iniciar este
texto, que explora os caminhos políticos e subjetivos
construídos por esta militante libertária, a partir de
suas memórias.
Nosso primeiro encontro havia ocorrido, em
1992, j á em seus 84 anos de idade e, nessa oca-
sião, fui tomada pelo sentimento dc que deveria
agir rapidamente no sentido de colher seus depoi-
mentos, gravar suas m e m ó r i a s , escrever sua
biografia, talvez, preservar, enfim, todo um
passado ameaçado pelo esquecimento. Romântica
ou não, queria ouvir as muitas estórias daquela mi-
litante - mulher e anarquista - , que havia so-
65
brcvivido ao século, tendo nascido cm 1908, em ignorava completamente sua extensa e multifaceta-
Roma. Queria saber como uma socialista liber- da produção intelectual e política . 1

tária havia lutado contra os macro e os micropo- Minha admiração por ela cresceu com as muitas
deres, contra o fascismo italiano e a ditadura m i - descobertas que se sucederam ao longo dos mo-
litar no Uruguai dos anos 70, como havia cons- mentos em pude desfrutar dc seu convívio e entre-
truído seus espaços de autonomia nos meios po- vistá-la em Montevideu, ao mesmo tempo em que
líticos, académicos e familiares, tanto em se tra- percorria seus inúmeros textos políticos, literários
tando das relações de género, quanto das de classe, e históricos, cuidadosamente guardados nas pra-
ao longo de sua vida. Como, enfim, havia conse- teleiras de sua ampla e diversificada biblioteca . 2

guido driblar as dificuldades do mundo e preser- Pus-me a gravar as estórias que ela passou a
var-sc de tal maneira que eu a encontrava, nos contar, inicialmente em seu escritório, diante das
últimos anos de sua vida, tão j o v i a l e mentalmen- fotos do pai, o anarquista Luigi Fabbri e de seu men-
te ágil, crítica incansável da atualidade e anarquista tor Errico Malatesta e, nos últimos anos, com maior
convicta. Decidi, então, apresentá-la ao mundo e dificuldade de locomoção, no sofá dc seu amplo
contribuir para subverter toda uma t r a d i ç ã o quarto, onde as mulheres da família, entre as quais a
misógina que exclui as mulheres da memória co- avó Emília e a mãe Bianca, nos espreitavam das
Ictiva e que justifica essa exclusão afirmando que fotografias amareladas penduradas na parede. Seus
elas nada produziram. comentários sobre essas imagens, feitas cm 1914.
Naquela época, ainda não sabia que Luce se na Itália, foram respostas às perguntas que me
formara em Letras pela Universidade de Bolonha, preparava para fazer:
na Itália, em 1928, onde fora aluna do filósofo so-
cialista Rodolfo Mondolfo, que eu conhecera na 1. Em se considerando o volume de sua produção política, filosó-
adolescência através dc seu famoso livro intitulado fica, literária, histórica e pedagógica, citarei, na bibliografia, ape-
O Pensamento Antigo; também desconhecia que nas os trabalhos que aparecem neste texto. Para maiores informa-
ções, veja-se RAGO, Margareth. Entre a História e a Liberdade.
trabalhara até a década de 1990 como crítica literária Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo. S3o Paulo: Ed. da
e como professora de Literatura Italiana na Uni- UNESP,2001.
versidade da República do Uruguai, país onde se 2. O resultado deste trabalho foi publicado como Entre a História
e a Liberdade: Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo. São
refugiara, desde 1929, ao fugir da violência fascista; Paulo: Editora da UNESP, 2001.

66 6~
"Foram feitas por tio Bruno, i r m ã o de minha m ã e , conhecer mais detidamente e de uma maneira muito
apaixonado por fotografia. A arte da fotografia estava em seus rica a tradição italiana da qual eu também faço parte,
inícios... passamos dois meses lindos...em Porto Ricanati, no mas que por algum motivo mantive à margem em
Adriático, na parte norte, em uma casa de praia, durante as
minha formação intelectual. Não eram apenas as
férias, antes da guerra...era um porto de pescadores, todas
as noites chegavam em seus barcos de pesca..." portas da cidade de Montevideu e da vida cotidiana
dos anarquistas, num plano internacional, que se
Ora falando em espanhol, ora em italiano, suas abriam para mim. Com seus relatos, as ruínas e os
lembranças focalizaram momentos singulares de sua sons das ruas de Roma, as casas avermelhadas e as
vida pessoal e acontecimentos que marcaram o arcadas nas calçadas de Bolonha, a universidade mais
século 20 e a sua própria experiência como militante antiga da Europa, os poetas, como Lcopardi, Car-
anarquista. Aos poucos, seus depoimentos, as ducci e Montale, artistas e filósofos italianos de
recordações evocadas, o desfile dc personagens vários séculos, inúmeras figuras do anarquismo e de
entre companheiros/as, amigos/as, familiares e ini- outras tendências políticas, entre mulheres e ho-
migos políticos foram compondo oralmente uma mens, enfim, muitos acontecimentos e personagens
autobiografia, indo desde as recordações da infân- passaram a fazer parte do meu próprio arquivo.
cia passada entre Roma e Bolonha, ao exílio for- O contato com essa senhora erudita e reflexiva,
çado em Paris e posteriormente no Uruguai, onde profundamente aberta à vida me fez inevitavelmente
desembarcou depois de uma longa viagem clan- pensar na utilidade da História, na importância da
destina e onde viveu por mais de 70 anos. preservação da memória, sobretudo daquela silen-
ciada pelos jogos do poder e, mais ainda, levou-me
Todo um século desfilou aos meus olhos nesse
a valorizar os aportes da história oral, área em que
trabalho minucioso e labiríntico de investigação da
havia incursionado timidamente em outra ocasião.
memória de Luce, ou nessa viagem cm que ela me
A reapresentação oral do passado, "fazendo emergir
conduziu através dos tempos vividos de sua infân-
do tempo/experiência os fatos considerados mais
cia e adolescência até a morte, em 19 de agosto de
significativos do ponto de vista do narrador" traz 3
2000.
Descobri progressivamente que nossas afinidades
3. GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. "Artes da Memória,
iam muito além da ideologia política, pois suas Fontes Orais e Relato Histórico". Revista História & Perspecti-
recordações do passado me abriam as portas para vas, Uberlândia, (23): 99-114, jul./dez. 2000.
69
68
coloridos, cheiros e emoções que dificilmente se t a m b é m como "cronista de uma genealogia
encontrariam no texto histórico, na maior parte das anarcofeminista" . 4

vezes, muito asséptico, em sua pretensão de objeti- Depois de percebermos a pluralidade do pas-
vidade. sado, as múltiplas temporalidades constitutivas dos
Em relação à utilidade da História, aposto na processos sociais e culturais, os silêncios, os esque-
ideia de que é necessário ampliar o repertório das cimentos e as implicações políticas da exclusão
experiências positivas de que dispomos, sobretudo operada pela memória histórica, entendida como
daquelas que foram construídas no sentido de discurso dos dominantes, foi inevitável o sentimen-
impulsionara liberdade, potencializaras iniciativas to benjaminiano de que a tarefa premente do histo-
libertárias, construir redes de solidariedade, abrir riador é a de salvar a memória, livrando-a do es-
espaços de resistência à dominação social e política. quecimento. Este mesmo sentimento, talvez ro-
Inquicta-me profundamente perceber que a memória mântico e ingénuo, tem sido em grande parte res-
da guerra, ou seja, das experiências de destruição c ponsável pela importância e popularidade que a
morte e dos homens que as promoveram sc revela história oral ganhou nas últimas décadas, j á que to-
sempre muito mais poderosa do que a da paz, e nesse dos ou quase todos os grupos sociais buscam ins-
sentido quero dizer que muitos conhecem Darwin c crever-se no mapa, desejosos de terem suas expe-
a teoria da evolução das espécies, mas desconhecem riências cartografadas, honradas ou vingadas na
seu crítico e contemporâneo, o anarquista Piotr História. De certo modo, se dc um lado o passado
Kropotkin, autor de A Ajuda Mútua; do mesmo perde importância no mundo pós-modemo, como
modo, muitos sabem quem foi Benito Mussolini, argumenta o historiador norte-americano David
mas desconhecem Malatesta, tido como o "Lenin Harlan , a ponto de muitos críticos e teóricos da
5

da Itália", nos anos 20. atualidade escreverem livros e livros sem a neces-
Poderia acrescentar, na mesma direção, que a sidade dc um profundo conhecimento histórico, dc
história no feminino apenas começa a evidenciar
a dimensão masculina ou falocêntriea da grande 4. GREENE, Patrícia. "Federica Montscny: Chronicler ofan Anarcho-
FeministGenealogy", LetrasPenninsulares, Fali 1997, Revistado
narrativa da História, como apontam as feministas.
Department of Spanish, Davidson College, EUA.
Daí, a própria ideia de realizar esse trabalho de 5. HARLAN, David. The Degradation of American History. Chi-
preservação das memórias de Luce, considerada cago: The Chicago University Press, 1997.
outro, amplia-se o leque dos grupos sociais, étnicos, da oral, em nossa tradição de pensamento, este
sexuais, das famílias e dos indivíduos que reivin- aponta para a tensão aí existente entre um apelo que
dicam seu "direito à História", como observa Pierrc pesa em favor da primeira e um outro que beneficia
Nora. a segunda. Trata-se, de um lado, de uma postura que
Nessa direção, talvez seja melhor ouvir a própria privilegia a "história da memória", fazendo supor
Luce, com todo o seu olhar muito perspicaz de que esta se constituiu em "novo objeto" da história,
mulher estrangeira e que viveu literalmente entre assim como o corpo, a sexualidade, a alimentação:
fronteiras, entre "o exílio e a imigração", como ela de outro, de uma posição inversa, que postula a
mesma diz, refletindo sobre o tema. Num depoi- "historicização da memória", em que a história tem
mento gravado em julho de 1997, afirma:
como tarefa ajudar a corrigir e a ampliar a memória,
"Nossos v í n c u l o s com o passado s ã o muito fortes e fazendo com que esta entre em contato com d i -
sobretudo são fortes em nível coletivo e uma ruptura drástica mensões mais profundas de si mesma e se conheça
com o passado, só se pode fazer à custa da liberdade, só melhor. Neste caso. a história estaria a serviço da
oprimindo e forçando as vontades. Há algo na tradição que
memória, ao contrário do caso anterior em que a
oprime, porém há uma continuidade que não se pode romper
violentamente, s ó se pode deixar cair, provocar a queda do m e m ó r i a se subordinaria à História como seu
que está sobrando, das folhas secas, do que j á não tem vida... objeto .6

porém, uma mudança libertária deve passar pela vontade Refletindo sobre a minha experiência particular
coletiva. a vontade coletiva sempre tem em conta a I listória...
de historiadora no contato com o trabalho da me-
mesmo que inconscientemente... conhecer a História tem
um valor vital, um valor de r e c o n s i d e r a ç ã o dos valores mória de Luce Fabbri, sobretudo em depoimentos
tradicionais e é uma fornia, um veículo de transformação orais, entendo que não busquei trazer a "realidade"
enquanto se criticam os valores à medida que se conhece..." de seu passado, como se tivesse um olhar neutro
capaz dc organizar "de fora" e "do alto" as experiên-
Em se tratando das grandes contribuições e
cias que me foram paulatinamente apresentadas,
possibilidades abertas pela história oral, gostaria de
nem tomei seus relatos como reflexos da realidade.
lembrar algumas questões discutidas por autores
Antes, tive em vista trabalhar a construção de sua
conhecidos, como Paul Ricoeur. A o reíletir sobre
narrativa do passado, considerando seus depoi-
as relações entre a história e a memória, na esteira
dos questionamentos de Jacques Derrida sobre o 6. RICOEUR, Paul. La Mémoire, L Histoire, L Oubli. Paris: Seuil,
privilégio conferido à palavra escrita, ao contrário 2000.
72
mentos orais como práticas discursivas, na con- pelas ideias libertárias até o fim, suas memórias
cepção de Michel Foucault , e procurei perceber a
7
giram em torno dc experiências políticas e sociais
produção de sua subjetividadc ao narrar a própria cruciais - como a ascensão do fascismo e a des-
vida. truição violenta das cooperativas de produção e con-
Portanto, estive atenta à Fina estruturação tem- sumo em Bolonha, ou ainda as conquistas e derrotas
poral e temática com que Luce organizou suas recor- da Revolução Espanhola, os anos da ditadura m i -
dações, selecionando as que lhe pareciam mais va- litar no Uruguai - , ao narrar episódios que reme-
liosas, compondo quadros bastante vivos c valo- tem à esfera pública ou privada. É assim que inicia o
rativos do universo cultural e político do anarquis- relato de sua vida, pelo nascimento no interior de
mo e, ao mesmo tempo, tomando uma referência uma família já praticante das ideias libertárias:
identitária de anarquista, como norte para sua
construção do passado. Vale lembrar, ainda, que eu " T i v e uma e d u c a ç ã o l i b e r t á r i a desde o p r i m e i r o
momento... em um período em que se enfaixavam as crianças
mesma a procurei por ser uma militante libertária
como se fossem múmias egípcias. N ã o conheci as faixas...
e que foi a partir desse eixo que me interessei por
as outras mulheres diziam para a minha m ã e que eu iria me
sua maneira de ser, por suas ideias e vivências. Per- quebrar, que era p e r i g o s í s s i m o (ficar sem faixa)...nesse
guntava-me como havia sido a experiência de ser sentido, j á crescemos num meio bastante moderno, sem que
libertária e mulher para Luce Fabbri. Como ela ha- fosse particularmente moderna a intenção...*'
via entendido e praticado esta utopia desde o co-
lidiano? Num outro momento. Luce traz a impactante
Sem dúvida, a identidade de anarquista organiza presença do líder anarquista Malatesta, marcando
e estrutura sua elaboração do passado pessoal e da muito cedo sua vida, entrecruzada com as lutas
experiência coletiva. Filha do militante anarquista políticas do período. Reeorda-se que, em 1913, aos
Luigi Fabbri, discípulo e biógrafo de Malatesta e cinco anos de idade, viu chegar, na casa dos avós,
tendo convivido desde cedo com as lutas sociais da
Itália dos anos 10 e 20, tendo participado da resis- "aquele homem de olhar penetrante",
tência antifascista no exílio e dedicado-sc a lutar
amigo de seu pai, que viera visitá-la. Como a enérgi-
7. FOUCAULT. Michel. A Arqueologia do Saber Rio de Janeiro: ca avó se pusesse a repreendê-la pelas brincadeiras
Forense Universitária. 1986. esfuziantes que fazia no jardim, o militante resolveu
74 75
interferir, defendendo a liberdade infantil, dizendo- Aliás, seu primeiro artigo, "Ciência, Filosofia c
lhe Anarquia", escrito aos 17 anos de idade e publicado
na revista libertária Pensiero e Voluntà, polemiza
"que lhe parecia que eu tinha que ser livre, movimentar as
com Malatesta em relação à maneira como ele e
pernas e os braços como quisesse, tinha cinco anos! Minha
a v ó retrucou que tinha que educar-me e que portanto... Essa Kropotkin definem esta doutrina . Em nossas8

d i s c u s s ã o entre minha a v ó e Malatesta ficou gravada cm conversas, em janeiro de 1996, Luce ri ao lembrar-
mim e me causou uma impressão enorme, porque n i n g u é m se do pseudónimo que utiliza para assinar o artigo
ousava discutir com minha a v ó e esse homenzinho que sc
atrevia e que dizia coisas tão interessantes, ficou gravada polémico de 1925:
em mim... Essa é a primeira visão que tenho de Malatesta.
Depois ele sc foi para Londres, o e x í l i o . . . " "O pseudónimo que usei é Epicari, nome de uma escrava
romana que participa da conspiração contra Nero, no primeiro
A dimensão mitológica da figura de Malatesta é I m p é r i o romano. Deixou-se torturar sem denunciar e a
mataram. Bem, foi idealizada como merece, por outro lado!"
atribuída, em suas lembranças, à imaginação fan-
tasiosa da criança, no entanto, suas memórias tam-
Vale atentar, o que ela mesmo faz nos depoi-
bém fazem emergir um homem simples e delicado,
sempre muito querido, habilidoso, capaz de articular mentos em que relê o passado, para a dimensão po-
politicamente os adultos, tanto quanto de brincar lítica e rebelde da personagem sob a qual se coloca,
despreocupadamente com as crianças. O a feto em ou se protege, j á em seu primeiro texto. Do mesmo
relação a ele é profundamente marcado cm seus modo, é possível dizer que a principal estratégia de
relatos: produção de seu discurso é a de colocar-se no es-
paço da político para falar do passado, tanto quanto
"E recordo que se falava muito de Malatesta em casa,
para pensar as questões da atual idade.
Errico Malatesta! Ele estava em Londres, n ó s é r a m o s
crianças e o u v í a m o s falar deste personagem remoto...Lm
Nesse sentido, a emergência do fascismo é um
seguida, depois da guerra, meu pai estava esperando que tema privilegiado em suas memórias, sobre o qual,
Malatesta voltasse, o governo italiano não queria recebê-lo aliás, escreve Camisas Negras, livro publicado em
e pressionava para que o governo inglês não o deixasse sair. 1933, pois vivendo num meio anarquista pôde
Para n ó s essa história de Errico que tinha que chegar, porém
que dois governos se opunham a que viesse... era uma
8. FABBRI, Luce. "Ciência, Filosofia e Anarquia". Pensiero e
história romântica..."
Voluntà, 1925.
76
acompanhar de dentro a violência na luta que os a jurar, então cruzou a fronteira para a França, eu fiquei só e
fascistas empreenderam contra o movimento social. terminei minha carreira..."

Como conta em depoimento gravado em fevereiro


de 1995, já no final da década de 10, quando passa a Os temas do âmbito do privado são, em certa
ter um contato mais dircto com colegas da classe medida, secundarizados em suas preocupações,
média, ao cursar o secundário numa escola mais pois aparecem mesclados com as recordações dos
central de Bolonha: acontecimentos políticos e sociais. As relações
amorosas, o casamento, a maternidade são aspectos
"...toda a classe média italiana, nesse momento, era bastante de sua vida que entram com menor destaque, nesse
reacionária, eu me encontrei num mundo totalmente distinto, trabalho da memória, que privilegia os momentos
minhas companheiras tinham costumes totalmente diferentes da resistência política ao fascismo, das lutas sociais
(...) foi uma m u d a n ç a muito grande para mim (...) ademais na Espanha e na América do Sul, dc trabalho com
desde cedo, nesse ambiente de classe m é d i a , assisti à
os "companheiros", ou de enfrentamento com a re-
incubação do fascismo. Bolonha era o berço do fascismo,
foi fundado em Milão, porém se incubou em Bolonha, nos
pressão.
ambientes a g r á r i o s , entre os p r o p r i e t á r i o s de terra, o E o caso dos momentos revolucionários da
campesinato n ã o - p r o p r i e t á r i o era quase todo socialista, c Ciuerra Civil Espanhola, que aparecem, cm suas re-
os a g r á r i o s financiavam as bandas fascistas contra as cordações, justapostos ao seu casamento com o
cooperativas, na primeira fase do fascismo.
anarquista italiano Ermácora Cressatti, nesse ano
Bem, n ã o sei o que pode interessar, há muitas coisas.
Foram anos em que parecia muito perto uma revolução na de 1936. Definido como "os dias mais lindos de
Itália, o movimento anarquista conheceu um fortalecimento minha vida ", dificilmente se pode saber o que Luce
e um dinamismo muito especial, teve um jornal - o Unumilá privilegia em seu coração:
Nova - por uns anos (...) meu pai mandava um manuscrito,
todos os dias o acompanhava ao correio, íamos ao centro "...e e n t ã o as duas coisas vieram juntas: o casamento, a
(...) foi um período de atividade muito intensa da parte dele, Revolução Espanhola, a casa nova... em seguida, vieram as
de grandes e s p e r a n ç a s , depois ele foi dos primeiros a férias de verão e durante todo o verão, n ã o fizemos nada
c o m e ç a r a vislumbrar o desastre (...) meu pai fora atacado mais que trabalhar pela Espanha".
nas ruas, me chamaram em casa, a vida se fez bastante
difícil e houve um momento depois quando o fascismo O que ela enfatiza, mesmo ao relatar esse mo-
c o m e ç o u a se consolidar, se estabeleceu o juramento de mento de união conjugal tão marcante em sua vida
fidelidade ao regime para os professores, meu pai se negou pessoal é o forte envolvimento com os aconteci-
78 79
mentos revolucionários efervescentes na Espanha, " A t r a v é s da R e v o l u ç ã o Espanhola, vivemos essas
diluindo assim os sentimentos e emoções trazidos jornadas, lemos os relatos linha por linha, o ano de 1936
foi de grande e s p e r a n ç a e de grande e m o ç ã o (...) De
pelo casamento. A militante, portanto, se sobrepõe
repente, essa resistência de todo um povo, t ã o esperada,
à figura da esposa e da amante em sua narrativa: t ã o total, esse dar-se a si sem pensar (...) t í n h a m o s a
s e n s a ç ã o de que o fascismo n ã o era t ã o poderoso como
"Foram três anos cm que vivemos mais na Espanha do parecia e (...) de que podia ser vencido (...) Foi uma
que aqui, com o coração...", e m o ç ã o t ã o grande e, depois, chegavam os boletins da
C N T - F A I , com as n o t í c i a s m i ú d a s , esse povo que havia
lembra Luce com a expressão esfuziante, coletivizado toda a economia (...) nos reunimos, mandamos
delegados para Barcelona (...) de outro povoado, che-
"na realidade, tudo o mais havia desaparecido. Quando fui a gavam delegados com n o t í c i a s semelhantes (...) era algo
maravilhoso, claro, a l é m disso, há todo o aspecto é t i c o da
Barcelona em 1981, parecia que estava em casa... conhecia
resistência contra o fascismo, das m i l í c i a s que se reuniam
Pedralbes... todos esses nomes, ademais ali estava a memória
e partiam para a frente de A r a g ã o , que lutavam com
de Francisco Ferrer... me levaran a Montjuic... para ver a
tanques improvisados, tinham uma força arrasadora (...)
fortaleza, a prisão, havia uma cela onde Ferrer havia sido
essa criatividade capilar (...) porque n ã o era um sistema
encarcerado..."
que se estabelecia n ã o , era todo um povo que estava
criando algo novo (...) Foi um verdadeiro milagre, tivemos
Convidada pela anarquista espanhola Federica a s e n s a ç ã o de milagre..."
Montseny - que se tornara Ministra da Saúde no go-
verno de I .argo Caballero - . para trabalhar nas escolas Portanto, Luce opta deliberadamente por não dar
dos sindicatos ligados â CNT - Confederação Na- visibilidade a momentos que considera íntimos dc
cional do Trabalho, naquela cidade, Luce decide f i - sua vida pessoal, pois acredita que importa para a
car em Montevideu. Mesmo assim, acompanha construção da biografia de uma anarquista muito mais
cotidianamente os acontecimentos surpreendentes o lado público da militante, da escritora e da inte-
que agitavam aquele país, compilando as notícias, lectual. Na prática, isto significa que muitas vezes
juntando informações, selecionando textos que lhe não entendia o porquê de minha insistência em ler
eram enviados pelos companheiros que ali lutavam. suas cartas, ou em ver as velhas fotos guardadas nas
Esse trabalho resulta no livro 19 de Julio, coletãnea gavetas, além de discordar de muitas das minhas
de documentos, publicados imediatamente sob o interpretações, especialmente as relativas às ques-
pseudónimo de Luz D. Alba: tões de género.
80 si
Nessa direção, é interessante observar a posi- cada um dá o que pode e consome o que necessita, isto é a
economia doméstica.
ção paradoxal que Luce adota em relação ao fe-
Nos últimos tempos, tenho pensado que vale a pena ocu-
minismo e a relativa dificuldade que tem para dis- par-se com o problema da mulher, sobretudo nesse sentido.
cutir e assumir as desigualdades nas diferenciações Houve uma revolução, uma integração maciça na vida de
de género. Porque embora seu olhar esteja bastante relações à vida pública. Se se conseguisse que a mulher
atento para tirar do esquecimento e incorporar cm trouxesse essa experiência secular e essa mentalidade..., pois
ela teve a sorte de n ã o haver sido soldado, ministro ou
seu relato do passado inúmeras figuras femininas,
presidente, com algumas exceções..."
entre anarquistas, como Débora C é s p e d e s , Es-
perança, Inês Guida, militantes de sua geração, ou Para ela, portanto, as mulheres podem revolucio-
ainda intelectuais, amigas c parentes, ela mesma nar o mundo masculino, se não imitam aos homens,
não percebe esta prática como feminista. Aliás, nem já que são portadoras de uma cultura própria, de
mesmo sei se Luce presta a t e n ç ã o na grande outras formas de percepção, de organização e de ela-
quantidade de mulheres inteligentes e ativas, que boração prática, estética e mental. Além disso, es-
entram em suas memórias. Além do mais, insis- tiveram na base dos movimentos de resistência às
tentemente criticou minha insistente defesa da ditaduras latino-americanas, lembra ela:
importância de escrever a biografia de um mulher
libertária e não de um homem, questionando que o " A participação das mulheres estava dada muito nas
olhar feminino pudesse captar dimensões do co- bases, elas decidiam quem ia administrar o movimento, tinham
tidiano ou do domínio das emoções e dos senti- participação nas decisões".

mentos que, em geral, escapam aos homens, como


Em outro momento, Luce insiste na denúncia da
eu a 11 miava.
discriminação contra as mulheres pelo fascismo
Essas posições, contudo, não a impediram de italiano:
fazer afirmações contrárias, por exemplo ao avaliar
que " O fascismo estabeleceu por lei que nos últimos anos do
ensino secundário não poderiam ser mulheres as professoras
de História e Filosofia, porque as mulheres não podiam formar
" A s mulheres têm algo de seu para dar, algo de género, personalidades fortes. Assim, todas as professoras de História
uma experiência única de uma economia não competitiva: a e Filosofia não sabiam onde ir porque não havia Filosofia no
economia doméstica, em que as crianças têm precedência, primeiro ciclo, enquanto as de História foram ensinar Italiano,
em que os velhos estão assistidos porque são velhos, em que Latim, Grego, História e Geografia, nos primeiros anos. As

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de Filosofia, mudaram de matéria simplesmente. Esta foi "porque era um livro de versos muito militantes, foi publicado
uma discriminação que v i a posteriori, porque antes não em 1932, com a produção anterior, a produção dos 20 anos -
era assim". / Canti deli Attesa - "Os Cantos da Espera" - era a espera
de voltar para a Itália, era o exílio, são poemas do exílio, mas
Contudo, os limites de seu questionamento femi- muito pouco maduros literariamente, muito tradicionalistas
nista são dados ao adentrar no universo anarquista. na forma. Para m i m , conservam validade, porém nunca os
Vinda desta tradição política, os conflitos entre as cito, aí está, mas evidentemente (a poesia) não era o meu
classes e a luta político-ideológica contra a ditadu- caminho, este aspecto é só para minha satisfação pessoal..."

ra assumem primazia em relação às questões do fe-


minismo. E se em seus diversos artigos e entrevistas Os poemas contrastam fortemente com a narrati-
recentes, passa a valorizar de forma mais efetiva a va de si construída nos depoimentos, ao mostrarem
cultura feminina, em nenhum momento de suas suas fragilidades, ao darem vazão às suas angústias,
memórias se refere a conflitos nas relações de gé- tristezas, sentimentos de perda, dor e desamparo,
nero entre os anarquistas, que certamente deve ter como aparece em "Mamma, dammi la mano"
presenciado. A o contrário, afirma que suas cons- ("Mamãe, me dê a mão"):
tatações sobre o machismo foram pautadas mais
Mamãe, estou muito cansada,
pelo que assistiu fora dos meios libertários do que
(Mamma, son tanto stanca,)
dentro, o que sem dúvida comporta uma idealização
Estou muito cansada e quero descansar;
muito grande, ou uma grande preocupação em não
(son tanto stanca e voglio riposarc:)
macular o anarquismo.
Os olhos que viram muito
Com uma posição tão definida na leitura do pas-
(gli occhi che molto han visto)
sado e na construção dc sua identidade pública, cs-
Estão muito cansados de olhar.
pantei-me ao descobrir o lado mais subjetivo, fe-
(Son tanto nauseati di guardare.)
minino e emocional de Luce, no livro de poesias
Que me importa o mundo? Estou cansada.
que publicara, em 1932, intitulado /Conti deli 'Attesa.
(Che m i m p o r t a dei mondo? Sono stanca.)
Evidentemente, encontrei suas poesias j á bem
Meu cérebro não quer mais pensar.(...)
adentrada na pesquisa, meio que por acaso, entre suas
(II mio cervello non vuol piú pensare.(...))
coisas, e, logo, ela se esquivou, relutante em falar
Não encontro mais esperança em meu coração,
sobre este "trabalho de juventude":
(Non trovo piú nel cuore la speranza,)
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não encontro mais a audácia de sonhar. Em L 'Esilio, ela reafirma esse sentimento:
(Non trovo piú Paudácia di sognare.)
Que me importa o mundo, o ideal, E depois voltei à cidade do sonho
(Che m'importa il lavoro, Pideale,) (E poi tornai nella cittá dei sogno)
Que me importa o amor? aquela que mais amo dentre todas as cidades.(...)
(Che m"importa 1'amore?) (quella ch'amo fra tutte le città. (...))
Mamãe, estou cansada, tenho sono, me machuca
Guardo no coração, Bolonha, o teu sorriso
(Mamma, so stanca, ho sonno, mi fa male)
( H o nel cuore, Bologna, i l tuo sorriso)
Tudo o que vive e que se move. (...) do momento em que o sol descansa
(tutto quello che vive e che si muove.(...))
(di quando il sol riposa)
sobre os muros vermelhos das casas antigas,
Ou, então, nas comparações entre a terra natal e
o país do exílio. Se Montevideu é vista como a cidade (sui muri rossi delle case antiche,)

"oásis" que a recebe "dc braços abertos", dimensão (...) Agora me separam da minha Bolonha (...)

exaltada em todos os depoimentos, na poesia, não (Or mi separan dalla mia Bologna,)

pode substituir a " t e r r a - m ã e " , nem mesmo no O mar que vem aqui bater na praia.
inverno, como aparece em "Neve di primavera", (il mar che vien qui a frangersi sul lito.)

poema de 1929: E mais a terra e ainda outro mar.(...).


(E ancora terra e ancor d c l l a l t r o mare.(...))

Montevideu, são helas as luas rosas


Toda essa vasta produção intelectual e poética
(Montevideo, son belle le tue rose)
permite, pois, conhecer de modos muitos diferen-
Que caindo me convidam a sonhar
ciados a Luce que traz, nos relatos orais, sua própria
(Che cadendo nfinvitano a sognare)
vida. Apesar da construção racionalizada de seu pas-
com imagens imprecisas e vaporosas,
(immagini imprecise e vaporose,)
sado, da preocupação em ordenar temporalmente
formas vãs de um vão imaginar.
suas experiências vividas, dando-lhes o sentido que
(forme vane d'um van fantasticare.)
lhe parece o mais importante, a riqueza dos depoi-
Mas, meu coração sob a neve gelada ficou mentos possibilita perceber a figura terna e delica-
(Ma il mio cuore resto sotto la neve) da, sensível e amorosa que se esconde atrás da f i -
sob a neve, que faz as sementes germinarem. gura pública da militante anarquista, forte, convicta
(gélida, che fa i semi germogliare.) e profundamente engajada nas lutas sociais do
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passado e do presente. Pois, afinal, todo esse tra- R E F E R E N C I A S BIBLIOGRÁFICAS
balho da memória só faz sentido, para ela, por sua
dimensão pública e política, já que se trata de pro- A L B A , Luz D. (pseudónimo de Luce Fabbri). 19 ue
duzir uma nova história do anarquismo e das lutas Julio. Antologia de la Revolución Espahola.
sociais ao longo do século 20. Uma nova história, Montevideu: Col. Esfuerzo, 1937.
pois, contada no feminino e por alguém que viveu FABBRI, Luce. "Ciência, Filosofia e Anarquia".
muito de dentro os acontecimentos do século 20 c Pensiero e Voluntà. 1925.
que soube, graças a uma sólida formação inte- . / Canti deli'Attesa. Montevideu: M .
lectual, refletir sobre eles. O. Bertani Editore, 1932.
Toda sua preocupação está direcionada para . Camisas Negras. Buenos Aires:
desfazer os mitos de incompreensão política, dc falta Ediciones Ncrvio, 1935.
de reflexão filosófica, dc ingenuidade romântica FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio
atribuída aos anarquistas na luta política com os de Janeiro: Forense Universitária, 1986.
comunistas e liberais, ou seja. para "salvar" o anar- GREENE, Patrícia. "Federica Montseny: Chroni-
quismo, trazendo a riqueza de suas histórias c a cler o f an Anareho-Feminist Genealogy",
grandeza de seus princípios. Além do mais, indi- Letras Penninsulares, Fali 1997, Revista do
retamente, sua contribuição vai muito além, pois Department o f Spanish. Davidson College,
volta-se para a defesa das próprias mulheres, ao
EUA.
contrapor-se às ideias elaboradas sobretudo pelo
G U I M A R Ã E S NETO, Regina Beatriz. "Artes da
pensamento social do século 19, defmindo-as como
Memória, Fontes Orais e Relato Histórico",
incapazes e inadequadas para o mundo público. Sua
Revista História & Perspectivas, Uberlândia.
experiência de vida, assim como sua produção in-
(23): 99-114,jul./dez. 2000.
telectual, por si só, atestam a grande contribuição das
mulheres às transformações positivas em nosso H A R L A N , David. The Degradation of American
mundo. Hisiory. Chicago: The Chicago University Press,
1997.
LE GOFF, Jacques. "Memória". In: Enciclopédia
Einaudi. Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1984.
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NORA, Pierre. "Entre Mémoire et Histoire. La
problématique des tieux". In : P. Nora LesLieux
de la Mémoire. Paris: Gallimard, 1984.
RAGO, Margareth. Entre a História e a Liberdade.
Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo.
São Paulo: Editora da UNESP, 2001.
RICOEUR, Paul. La Mémoire, L ' Histoire, L 'Oubli.
Paris: Seuil, 2000.

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