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ANTOLOGIA

DA POESIA
PORTUGUESA
- Linhas Mestras -

Tomo II – Séculos XVI a XIX

Faculdade de Letras – UFRJ


Setor de Literatura Portuguesa – 2013
Índice

SÉCULO XVI 1

Sá de Miranda 2
Antônio Ferreira 3
Diogo Bernardes 4
Camões 6
Poemas na medida velha 6
Babel e Sião 14
Sonetos 18
Canção IX 32

SÉCULO XVII 34

Rodrigues Lobo 35
Tomás Pinto Brandão 37
Francisco de Vasconcelos 38
Jerônimo Bahia 38
Antônio Barbosa Bacelar 39
Sóror Violante do Céu 40
D. Francisco Manuel de Melo 41
D. Tomás de Noronha 43
Francisco de Vasconcelos Coutinho 46
André Nunes da Silva 46
Antônio Serrão de Castro 47
Frei Antônio das Chagas 47

SÉCULO XVIII 48

Correia Garção 49
Paulino A. Cabral – Abade de Jacente 51
Filinto Elísio 52
Nicolau Tolentino 53
Marquesa de Alorna 54
Bocage 56

SÉCULO XIX 62

Almeida Garrett 63
João de Deus 67
Antero de Quental 69
Gomes Leal 75
Guerra Junqueiro 77
Cesário Verde 79
Antônio Nobre 87
Eugênio de Castro 92
Camilo Pessanha 96
SÉCULO XVI

Sá de Miranda
Antônio Ferreira
Diogo Bernardes
Camões
2

SÁ DE MIRANDA
(1481-1558)

1
3

Não sei qu’em vós mais vejo; não sei quê O sol é grande, caem co’a calma as aves,
Mais ouço, e sinto, ao rir vosso, e falar: Do tempo em tal sazão, que sói ser fria:
Não sei qu’entendo mais, té no calar, Esta água que d’alto cai acordar-m’ia?
Nem quando vos não vejo a alma que vê, Do sono não, mas de cuidados graves.

Que lhe aparece em qual parte qu’estê, Ó cousas todas vãs, todas mudaves!
Olhe o céu, olhe a terra, ou olhe o mar, Qual é tal coração qu’em vós confia?
E triste aquele vosso suspirar, Passam os tempos, vai dia trás dia,
Em que tanto mais vai, que direi qu’é? Incertos muito mais que ao vento as naves.

Em verdade não sei: nem isto qu’anda Eu vira já aqui sombras, vira flores,
entre nós: ou se é ar, como parece, Vi tantas águas, vi tanta verdura,
se fogo doutra sorte, e doutra lei, As aves todas cantavam d’amores.

Em que ando, e de que vivo, nunca abranda; Tudo é seco, e mudo, e de mistura,
por ventura que à vista resplandece; Também mudando-m’eu fiz doutras cores,
ora o que eu sei tão mal, como o direi? E tudo o mais renova, isto é sem cura.

2 4

Em tormentos cruéis tal sofrimento, Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
Em tão contínua dor, que nunca aliva, E vejo o que não vi nunca, nem cri
Chamar a morte sempre, e que ela altiva Que houvesse cá, recolhe-se a alma a si,
Se ria dos meus rogos no tormento: E vou tresvariando como em sonho.

E ver no mal que todo entendimento Isto passado, quando me disponho,


Naturalmente foge, e quando aviva E me quero afirmar se foi assi,
A dor mais o vagar da alma cativa, Pasmado, e duvidoso do que vi,
A quem não fará crer qu’é tudo um vento? M’espanto às vezes, outras m’avergonho.

Bem sei uns olhos que têm toda a culpa, Que tornando ante vós, senhora, tal,
E são os meus, que a toda a parte vêm quando m’era mister tant’outr’ajuda,
Após o que vem sempre, e os desculpa. de que me valerei, se alma não val’?

Ó minhas visões altas, meu só bem, Esperando por ela que me acuda,
Quem vos a vós não vê, este me culpa, E não me acode, e está cuidando em al,
E eu sou o só que as vejo, outrem ninguém! Afronta o coração, a língua é muda.
3

ANTÔNIO FERREIRA
(1528-1569)

1 3

O’ alma pura, em quanto cá ias, Dos mais fermosos olhos, mais fermoso
Alma lá onde vives já mais pura, Rosto, qu’entre nós há, do mais divino
Por que me desprezaste? quem tão dura Lume, mais branca neve, ouro mais fino,
Te tornou ao amor, que me devias? Mais doce fala, riso mais gracioso:

Isto era o que mil vezes prometias, Dum Angélico ar, de um amoroso
Em que minh’alma estava tão segura, Meneio, de um esp'rito peregrino
Que ambos juntos ua hora desta escura S’acendeu em mim o fogo, de qu’indino
Noite nos subiria aos claros dias? Me sinto, e tanto mais assi ditoso.

Como em tão triste cárcer me deixaste? Não cabe em mim tal bem-aventurança.
Como pude eu sem mim deixar partir-te? É pouco ua alma só, pouca ua vida.
Como vive este corpo sem sua alma? Quem tivesse que dar mais a tal fogo!

Ah! que o caminho tu bem mo mostraste, Contente a alma dos olhos água lança
Porque correste à gloriosa palma! Pelo em si mais deter, mas é vencida
Triste de quem não mereceu seguir-te! Do doce ardor, que não obedece a rogo.

2 4

Aquela, cujo nome a meus escritos Os dias conto, e cada hora, e momento,
Que a meu amor dará melhor ventura, Qu’alongando-me vou dos meus amores,
Toda a virtude, toda a formosura, Nas árvores, nas pedras, ervas, flores,
Qu’após si leva os olhos, e os espritos, Parece que acho mágoa, e sentimento.

Aquela branda em tudo, só aos gritos As aves, que no ar voam, o Sol, e o vento,
Meus surda, áspera aos rogos, a Amor dura Montes, rios, e gados, e Pastores,
Podia cum sorriso, ua brandura As estradas, e os campos mostram as dores
D’olhos curar meu mal, ornar meus ditos, Da minha saüdade, e apartamento.

Mas que dará de si ua estéril veia? E quanto m’era lá doce, e suave


Um desprezado amor? ua cruel chama? Mais triste, e duro Amor cá mo apresenta,
Senão desconcertado, e triste pranto? A que entreguei da minha vida a chave.

Quem de tristezas vive, só me leia: Em lágrimas força é qu’as faces lave,


Cante a quem inspira Amor mais doce canto; Ou que não sinta a dor, que na tormenta
Busco piedade só, não glória, ou fama. Memória da bonança faz mais grave.
4

DIOGO BERNARDES
(1530?-1605)

1 3

Da branca neve, e da vermelha rosa Um firme coração posto em ventura,


O Ceo de tal maneira derramou Um desejar honesto, que s’enjeite
No vosso rosto as cores, que deixou De vossa condição, sem que respeite
A rosa da manhã mais vergonhosa. A meu tão puro amor, a fé tão pura:

Os cabelos (d’Amor prisão fermosa) Um ver-vos de piedade, e de brandura


Não d’ouro, que ouro fino desprezou, Imagem sempre, faz-me que suspeite
Mas dos raios do Sol vo-los dourou, Qu’alguma brava fera vos deu leite,
Do que Cíntia também anda envejosa. Ou que nascestes d’uma pedra dura.

Um resplendor ardente, mas suave, Ando buscando causa que desculpe


Está nos vossos olhos derramando Crueza tão estranha; porém quanto
Qu’o claro deixa escuro, o escuro aclara, Nisso trabalho mais, mais mal me trata,

A doce fala, o riso doce e grave, Donde vem que não há quem nos não culpe:
Entre rubis e perlas lampejando, A vós, porque matais quem vos quer tanto;
Não tem comparação por cousa rara. A mim, que tanto quero a quem me mata.

2 4

Se poder tanto à morte defender-se Ágoas do claro Lima, que corria


A vida, que por vós deve estimar-se, Pera mim, noutro tempo, claro, e puro,
Que veja em vossos olhos apagar-se que correr vejo agora turvo, escuro,
A luz, que faz o Sol escurecer-se, Quem afogou em vós minh’alegria?

E o ouro dos cabelos converter-se Cuidei que com vos ver descansaria
Em branca prata, o rosto descorar-se, Do mal do cativeiro, triste, e duro;
De tal maneira em fim tudo mudar-se, Mas mais sem gosto aqui, menos seguro
Que mais ousadamente deixe ver-se; Me vejo, do que vi em Berberia.

Então, firme em mudanças tão continas, Mudança vejo aqui em arvoredos:


Vereis como não amo, nem receio Cresceram muitos, muitos acabaram,
De vós o que não pode ter firmeza, Fez seu ofício em tudo a natureza:

Mas outra fermosura, outras divinas Duas cousas porém não se mudaram:
Graças, de qu’esse espírito vejo cheio, Lugar e duro ser destes penedos,
As quais não dá, nem tira a natureza. De vossos naturais teima, e dureza.
5

ALHEIO

A dor, que minha alma sente,


Não a saiba toda a gente.

VOLTAS

Ande no peito escondida


Ua dor tão desusada,
De mim só seja chorada,
Não seja d’outrem sentida;
Ou me mate, ou me dê vida,
Ou viva triste, ou contente,
Não se confie da gente.

Tenho feito juramento


(Porqu’assi o quis Amor)
De sempre como avarento
Guardar em mim minha dor.
Por me não tratar pior
Se disto o contrário sente, 6
Não a saiba toda a gente.

Horas breves de meu contentamento,


Nunca me pareceu, quando vos tinha,
Que vos visse tornadas tão asinha,
Em tão compridos dias de tormento.

Aquelas torres, que fundei no vento,


O vento as levou já que as sustinha;
Do mal, que me ficou, a culpa é minha,
Que sobre cousas vãs fiz fundamento.

Amor, com rosto ledo e vista branda,


Promete quanto dele se deseja,
Tudo possível faz, tudo segura:

Mas des’que dentro n’alma reina, e manda,


Como na minha fez, quer que se veja
Quão fugitivo é, quão pouco dura.

CAMÕES
(1524?-1580)
Poemas na medida velha
1 Que uns olhos tão belos
Não se hão d’ esconder.
MOTE ALHEIO Mas fazeis-me crer
Que já não são verdes,
Perdigão perdeu a pena, Porque me não vedes.
Não há mal que lhe não venha.
Verdes não o são
VOLTAS No que alcanço deles;
Perdigão, que o pensamento Verdes são aqueles
Subiu em alto lugar, Que esperança dão.
Perde a pena do voar, Se na condição
Ganha a pena do tormento. Está serem verdes
Não tem no ar nem no vento Por que me não vedes?
Asas, com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha. 3

Quis voar a ũa alta torre, MOTE


Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado, Pus meus olhos nũa funda,
De puro penado morre. E fiz um tiro com ela
Se a queixumes se socorre, Às grades de ũa janela,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha. VOLTAS

Ũa Dama, de malvada,
2 Tomou seus olhos na mão
E tirou-me ũa pedrada
MOTE ALHEIO Com eles ao coração.
Armei minha funda então,
Menina dos olhos verdes, E pus os meus olhos nela:
Por que me não vedes? Trape! Quebro-lh’ a janela.

VOLTAS

Eles verdes são,


E têm por usança
Na cor, esperança
E nas obras, não.
Vossa condição
Não é d’ olhos verdes,
Porque me não vedes.
4

A UMA DAMA QUE LHE CHAMOU


“CARA SEM OLHOS”

Sem olhos vi o mal claro


Isenções a molhos Que dos olhos se seguiu:
Que eles dizem terdes, Pois cara-sem-olhos viu
Não são d’ olhos verdes, Olhos que lhe custam caro.
Nem de verdes olhos. De olhos não faço menção,
Sirvo de giolhos, Pois quereis que olhos não sejam;
E vós não me credes, Vendo-vos, olhos sobejam,
Porque me não vedes. Não vos vendo, olhos não são.

Haviam de ser,
Por que possa vê-los, 5
Na memória e na firmeza
Me concede a Natureza
AO DESCONCERTO DO MUNDO O natural que não veja.

7
Os bons vi sempre passar MOTE
No mundo graves tormentos; Coifa de beirame
E para mais m’ espantar, namorou Joane.
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos. VOLTAS PRÓPRIAS
Cuidando alcançar assim Por cousa tão pouca
O bem tão mal ordenado, andas namorado?
Fui mau, mas fui castigado. Amas a toucado
Assim que só para mim e não quem o touca?
Anda o mundo concertado. Ando cega e louca
por ti, meu Joane;
6 tu, pelo beirame.

MOTE ALHEIO Amas o vestido?


És falso amador.
Vejo n’ alma pintada Tu não vês que Amor
Quando ma pede o desejo se pinta despido?
O natural que não vejo. Cego e perdido
andas por beirame,
GLOSA e eu por ti, Joane.

Se só no ver puramente (continua)


Me transformei no que vi,
De vista tão excelente
Mal poderia ser ausente
Enquanto o não for de mi.
7

Porque a alma namorada


A traz tão bem debuxada
E a memória tanto voa
Que se a não vejo em pessoa,
Vejo-a na alma pintada.

O desejo, que se estende


Ao que menos se concede,
Sobre vós pede e pretende,
Como o doente que pede
O que mais se lhe defende.
Eu, que em ausência vos vejo,
Tenho piedade e pejo
De me ver tão pobre estar,
Que então não tenho que dar
Quando me pede o desejo.

Como aquele que cegou


É cousa vista e notória
Que a natureza ordenou,
Que se lhe dobre em memória
O que em vista lhe faltou;
Assi a mim, que não rejo
Os olhos ao que desejo,
8
Se alguém te vir, 8
que dirá de ti?
— Que deixas a mi MOTE ALHEIO
por cousa tão vil! Campos bem-aventurados,
Terá bem que rir, Tornai-vos agora tristes,
pois amas beirame, Que os dias em que me vistes
e a mim não, Joane. Alegre são já passados.
Quem ama assi GLOSA
Há-de ser amada; Campos cheios de prazer,
ando maltratada Vós que estais reverdecendo,
d’amores, por ti. Já me alegrei com vos ver;
Ama-me a mi Agora tenho a temer
e deixa o beirame, Que entristeçais em me vendo.
que é razão, Joane! E, pois a vista alegrais
Dos olhos desesperados,
A todos encanta Não quero que me vejais,
tua parvoíce; Para que sempre sejais
de tua doudice Campos bem-aventurados.
Gonçalo se espanta
e, zombando, canta: Porém, se por acidente,
“Coifa de beirame Vos pesar de meu tormento,
namorou Joane!” Sabereis que Amor consente
Que tudo me descontente,
Eu não sei que viste Senão descontentamento.
neste meu toucado, Por isso vós, arvoredos,
que tão namorado Que já nos meus olhos vistes
dele te sentiste. Mais alegria que medos,
Não te veja triste: Se mos quereis fazer ledos,
ama-me, Joane, Tornai-vos agora tristes.
e deixa o beirame!
Já me vistes ledo ser;
(Joane gemia, Mas depois que o falso Amor
Maria chorava, Tão triste me fez viver,
assi lamentava Ledos folgo de vos ver,
o mal que sentia; Por que me dobreis a dor.
Os olhos feria, E se este gosto sobejo
e não o beirame De minha dor me sentistes,
que matou Joane.) Julgai quanto mais desejo
As horas que vos não vejo,
Não sei de que vem Que os dias em que me vistes.
amares vestido;
que o mesmo Cupido O tempo, que é desigual,
vestido não tem. De secos, verdes vos tem;
Sabes de que vem Porque em vosso natural
amares beirame? Se muda o mal para o bem
Vem de ser Joane. Mas o meu para mor mal
Se perguntais, verdes prados,
Pelos tempos diferentes
Que de Amor me foram dados,
Tristes, aqui são presentes;
Alegres, já são passados.
9
Tanto vim a acrescentar
Descalça vai pola neve: Cuidados que nunca amansam,
Assi faz quem Amor serve. Enquanto a vida durar,
Que canso já de cuidar
Os privilégios que os reis Como cuidados não cansam.
Não podem dar, pode Amor, Se estes cuidados que digo
Que faz qualquer amador Dessem fim a mi e a si,
Livre das humanas leis. Fariam pazes comigo;
Mortes e guerras cruéis, Que pôr a vida em perigo,
Ferro, frio, fogo e neve, O bom fora para mi.
Tudo sofre quem o serve.

Moça fermosa despreza


Todo o frio e toda a dor.
(Olhai quanto pode Amor
Mais que a própria Natureza):
Medo nem delicadeza
Lhe impede que passe a neve;
Assim faz quem Amor serve. 11

Por mais trabalhos que leve,


A tudo se ofereceria; Verdes são os campos
Passa pela neve fria, De côr de limão:
Mais alva que a própria neve; Assi são os olhos
Com todo o frio se atreve. Do meu coração.
Vede em que fogo ferve
O triste que o Amor serve. Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
10 Vosso pasto tendes,
D’ ervas vos mantendes
Muito sou meu inimigo Que traz o Verão
Pois que não tiro de mi E eu das lembranças
Cuidados com que naci, Do meu coração.
Que põem a vida em perigo.
Oxalá que fora assi! Gado, que paceis
Co contentamento,
Vosso mantimento
Viver eu, sendo mortal, Não no entendeis:
De cuidados rodeado, Isso que comeis
Parece meu natural; Não são ervas, não:
Que a peçonha não faz mal São graças dos olhos
A quem foi nela criado. Do meu coração.
Tanto sou meu inimigo,
Que, por não tirar de mi
Cuidados com que naci,
Porei a vida em perigo.
Oxalá que fora assi!

9
12

ENDECHAS A ŨA CATIVA COM QUEM ANDAVA


D’ AMORES NA ÍNDIA, CHAMADA BÁRBORA.
Aquela cativa,
que me tem cativo,
porque nela vivo,
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,


Nem no céu estrelas,
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

Ũa graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbora não.

Presença serena
que a tormenta amansa;
nela enfim descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo,
E, pois nela vivo,
é força que viva.

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11
CARTA DE LUIS DE CAMÕES A DONA FRANCISCA DE ARAGÃO,
COM AS GLOSAS ABAIXO FEITAS AO MOTE POR ELA MANDADO:

Senhora

Deixei-me enterrar no esquecimento de v. m., crendo me seria assi mais seguro:


mas agora que é servida de me tornar a ressuscitar, por mostrar seus poderes,
lembro-lhe que ũa vida trabalhosa é menos de agradecer que ũa morte
descansada. Mas se esta vida, que agora de novo me dá, for para ma tornar a
tomar, servindo-se dela, não me fica mais que desejar, que poder acertar com
este moto de v.m., ao qual dei três entendimentos, segundo as palavras dele
puderam sofrer: se forem bons, é o moto de v.m.; se maus, são as glosas minhas.

13

À DONA FRANCISCA DE ARAGÃO, MANDANDO-LHE


ESTA REGRA, QUE LHA GLOSASSE

Mas porém a que cuidados?

VOLTA OUTRA AO MESMO

Tanto maiores tormentos Que vindes em mim buscar,


foram sempre os que sofri, cuidados, que sou cativo,
daquilo que cabe em mim, e não tenho que vos dar?
que não sei que pensamentos Se vindes a me matar,
são os para que naci. já há muito que não vivo;
Quando vejo este meu peito se vindes, porque me dais
a perigos arriscados tormentos desesperados,
inclinado, bem suspeito eu, que sempre sofri mais,
que a cuidados sou sujeito, não digo que não venhais;
mas porém a que cuidados? mas porém a quê, cuidados?

OUTRA AO MESMO

Se as penas que Amor me deu


vêm por tão suaves meios,
não há que temer receios,
que val um cuidado meu
por mil descansos alheios.
Ter nuns olhos tão fermosos
os sentidos enlevados,
bem sei que em baixos estados
são cuidados perigosos;
Mas porém, ah! Que cuidados!

12
14

ESTÂNCIAS NA MEDIDA ANTIGA, QUE TÊM DUAS


CONTRARIEDADES: LOUVANDO E DESLOUVANDO
UMA DAMA

[Vós] sois ũa dama Do grã merecer


das feias do mundo; sois bem apartada;
de toda a má fama andais alongada
sois cabo profundo. do bem parecer.

A vossa figura Bem claro mostrais


não é para ver; em vós fealdade:
em vosso poder não há i maldade
não há fermosura. que não precedais.

[Vós] fostes dotada De fresco carão


de toda a maldade; Vos vejo ausente;
perfeita beldade em vós é presente
de vós é tirada a má condição.

Sois muito acabada De ter perfeição


de tacha e de glosa: mui alheia estais;
pois, quanto a fermosa, mui muito alcançais
em vós não há nada. de pouca razão.
15

13
MOTE

Foi-se gastando a esperança,


Fui entendendo os enganos;
Do mal ficaram meus danos
E do bem só a lembrança.

Fiquei, deste mal sobejo


GLOSA A quem a causa compete,
Dizer-lhe tudo o que vejo,
Que Amor aceita o desejo,
Nunca em prazeres passados Mas mente no que promete.
Tive firmeza segura, Que, se a mim se me obrigou
Antes tão arrebatados A dar-me bens soberanos,
Que inda não eram chegados Foi engano que ordenou,
Quando mos levou ventura. Que do bem tudo levou,
E, como quem desconfia Do mal ficaram meus danos.
Ter em tal sorte mudança,
No meio desta porfia,
De quanto bem pretendia
Foi-me gastando a esperança.

Não tive por desatino


A ocasião de perdê-la;
Mas foi culpa do destino, E se dor tão desigual
Que a ninguém, como mais dino, Sofro em mim com padecê-los,
Amor pudera sustê-la. Quero de novo sofrê-los;
Dei-lhe tudo o que era seu, Que, por a causa ser tal,
Não receando tais danos Não determino ofendê-los.
Deste, a quem alma lhe deu; Dobre-se o mal, falte a vida,
Quando já não era meu, Cresça a fé, falte a esperança,
Fui entendendo os enganos. Pois foi mal agradecida;
Fique a dor n’ alma imprimida,
E do bem só a lembrança.

13. e minhas cousas ausentes


BABEL E SIÃO 14. se fizeram tão presentes
15. como se nunca passaram.

16. Ali, depois de acordado,


1. Sôbolos rios que vão 17. co rosto banhado em água,
2. por Babilónia m’achei, 18. deste sonho imaginado,
3. onde sentado chorei 19. vi que todo o bem passado
4. as lembranças de Sião 20. não é gosto, mas é mágoa.
5. e quanto nela passei.
21. E vi que todos os danos
6. Ali o rio corrente 22. se causavam das mudanças,
7. de meus olhos foi manado, 23. e as mudanças dos anos;
8. e tudo bem comparado, 24. onde vi quantos enganos
9. Babilónia ao mal presente, 25. faz o tempo às esperanças.
10. Sião ao tempo passado.
26. Ali vi o maior bem
11. Ali, lembranças contentes 27. quão pouco espaço que dura,
12. n'alma se representaram, 28. o mal quão depressa vem,
29. e quão triste estado tem 74. nem poreis freio à corrente,
30. quem se fia da ventura. 75. e mais, se for dos meus olhos.

31. Vi aquilo que mais Val, 76. Não movereis a espessura,


32. que então se entende milhor 77. nem podereis já trazer
33. quanto mais perdido for; 78. atrás vós a fonte pura,
34. vi o bem suceder mal, 79. pois não pudestes mover
35. e o mal, muito pior. 80. desconcertos da ventura.

36. E vi com muito trabalho 81. Ficareis oferecida


37. comprar arrependimento; 82. à Fama, que sempre vela,
38. vi nenhum contentamento; 83. frauta de mim tão querida;
39. e vejo-me a mim, qu’ espalho 84. porque, mudando-se a vida,
40. tristes palavras ao vento. 85. se mudam os gostos dela.

41. Bem são rios estas águas, 86. Acha a tenra mocidade
42. com que banho este papel; 87. prazeres acomodados,
43. bem parece ser cruel 88. e logo a maior idade
44. variedade de mágoas 89. já sente por pouquidade
45. e confusão de Babel. 90. aqueles gostos passados.

14
91. Um gosto que hoje se alcança
92. amanhã já o não vejo;
93. assi nos traz a mudança
94. de esperança em esperança,
46. Como homem que, por exemplo 95. e de desejo em desejo.
47. dos transes em que se achou,
48. despois que a guerra deixou, 96. Mas em vida tão escassa
49. pelas paredes do templo 97. que esperança será forte?
50. suas armas pendurou: 98. Fraqueza de humana sorte
99. que, quanto da vida passa
51. Assi, despois que assentei 100. está receitando a morte!
52. que tudo o tempo gastava,
53. da tristeza que tomei 101. Mas deixar nesta espessura
54. nos salgueiros pendurei 102. o canto da mocidade,
55. os órgãos com que cantava. 103. Não cuide a gente futura
104. que será obra da idade
56. Aquele instrumento ledo 105. o que é força da ventura.
57. deixei da vida passada,
58. dizendo: "Música amada, 106. Que idade, tempo, o espanto
59. deixo-vos neste arvoredo 107. de ver quão ligeiro passe,
60. à memória consagrada. 108. nunca em mim puderam tanto
109. que, posto que deixe o canto,
61. Frauta minha que, tangendo, 110. a causa dele deixasse.
62. os montes fazíeis vir
63. para onde estáveis, correndo; 111. Mas, em tristezas e enojos
64. e as águas, que iam decendo, 112. em gosto e contentamento,
65. tornavam logo a subir: 113. por sol, por neve, por vento,
114. terné presente á los ojos
66. Jamais vos não ouvirão 115. por quien muero tan contento.
67. os tigres, que se amansavam,
68. e as ovelhas, que pastavam, 116. Órgãos e frauta deixava,
69. das ervas se fartarão 117. despojo meu tão querido,
70. que por vos ouvir deixavam. 118. no salgueiro que ali estava
119. que para trofeu ficava
71. Já não fareis docemente 120. de quem me tinha vencido.
72. em rosas tornar abrolhos
73. na ribeira florecente; 121. Mas lembranças da afeição,
122. que ali cativo me tinha, 167. o que passo, e passei já,
123. me perguntaram então: 168. nem menos o escreverei,
124. que era da música minha, 169. porque a pena cansará,
125. qu'eu cantava em Sião? 170. e eu não descansarei.

126. Que foi daquele cantar 171. Que, se vida tão pequena
127. das gentes tão celebrado? 172. se acrescenta em terra estranha,
128. Porque o deixava de usar, 173. e se amor assi o ordena,
129. pois sempre ajuda a passar 174. razão é que canse a pena
130. qualquer trabalho passado? 175. de escrever pena tamanha.

131. Canta o caminhante ledo 176. Porém se, para assentar


132. no caminho trabalhoso, 177. o que sente o coração,
133. por antre o espesso arvoredo; 178. a pena já me cansar,
134. e, de noite, o temeroso, 179. não canse para voar
135. cantando, refreia o medo. 180. a memória em Sião.

15 181. Terra bem-aventurada,


136. Canta o preso docemente 182. se, por algum movimento,
137. os duros grilhões tocando; 183. d' alma me fores mudada,
138. canta o segador contente; 184. minha pena seja dada
139. e o trabalhador, cantando, 185. a perpétuo esquecimento.
140. o trabalho menos sente.
186. A pena deste desterro,
141. Eu, qu’estas cousas senti 187. que eu mais desejo esculpida
142. n'alma, de mágoas tão cheia, 188. em pedra, ou em duro ferro,
143. Como dirá, respondi, 189. essa nunca seja ouvida,
144. quem tão alheio está de si 190. em castigo de meu erro.
145. doce canto em terra alheia?
191. E se eu cantar quiser
146. Como poderá cantar 192. em Babilónia sujeito,
147. quem em choro banh’o peito? 193. Hierusalém, sem te ver,
148. Porque se quem trabalhar 194. a voz, quando a mover,
149. canta por menos cansar, 195. se me congele no peito.
150. eu só descansos enjeito.
196. A minha língua se apegue
151. Que não parece razão 197. às fauces, pois te perdi,
152. nem seria cousa idónea, 198. se, enquanto viver assi,
153. por abrandar a paixão, 199. houver tempo em que te negue
154. que cantasse em Babilónia 200. ou que me esqueça de ti.
155. as cantigas de Sião.
201. Mas ó tu, terra de Glória,
156. Que, quando a muita graveza 202. se eu nunca vi tua essência,
157. de saüdade quebrante 203. como me lembras na ausência?
158. esta vital fortaleza, 204. Não me lembras na memória,
159. antes moura de tristeza 205. senão na reminiscência.
160. que, por abrandá-la, cante.
206. Que a alma é tábua rasa
161. Que se o fino pensamento 207. que, com a escrita doutrina
162. só na tristeza consiste, 208. celeste, tanto imagina,
163. não tenho medo ao tormento: 209. que voa da própria casa,
164. que morrer de puro triste, 210. e sobe à pátria divina.
165. que maior contentamento?
211. Não é, logo, a saüdade
166. Nem na frauta cantarei 212. das terras onde nasceu
213. a carne, mas é do Céu, 262. a mundanos acidentes,
214. daquela santa cidade, 263. duros, tiranos e urgentes,
215. donde esta alma descendeu. 264. risque-se quanto já fiz
265. do grão livro dos viventes.
216. E aquela humana figura,
217. que cá me pôde alterar; 266. E tomando já na mão
218. não é quem se há-de buscar: 267. a lira santa, e capaz
219. é raio da fermosura 268. doutra mais alta invenção,
220. que só se deve de amar. 269. cale-se esta confusão,
270. cante-se a visão da paz.
221. Que os olhos e a luz que ateia
222. o fogo que cá sujeita, 271. Ouça-me o pastor e o Rei,
223. não do sol, mas da candeia, 272. retumbe este acento santo,
224. é sombra daquela Ideia 273. mova-se no mundo espanto,
225. qu’ em Deus está mais perfeita. 274. que do que já mal cantei
275. a palinódia já canto.
226. E os que cá me cativaram
227. são poderosos afeitos 276. A vós só me quero ir,
228. que os corações têm sujeitos: 277. Senhor e grão Capitão
229. sofistas que me ensinaram 278. da alta torre de Sião,
230. maus caminhos por direitos. 279. à qual não posso subir
280. se me vós não dais a mão.
16
231. Destes, o mando tirano 281. No grão dia singular
232. me obriga, com desatino, 282. que na lira o douto som
233. a cantar ao som do dano 283. Hierusalém celebrar,
234. cantares de amor profano 284. lembrai-vos de castigar
235. por versos d’ amor divino. 285. os ruins filhos de Edom.

236. Mas eu, lustrado co santo 286. Aqueles que tintos vão
237. raio, na terra de dor, 287. no pobre sangue inocente,
238. de confusões e d’ espanto, 288. soberbos co poder vão;
239. como hei-de cantar o canto 289. arrasai-os igualmente,
240. que só se deve ao Senhor? 290. conheçam que humanos são.

241. Tanto pode o benefício 291. E aquele poder tão duro


242. da Graça que dá saúde, 292. dos efeitos com que venho,
243. que ordena que a vida mude; 293. que encendem alma e engenho,
244. e o que tomei por vício 294. que já me entraram o muro
245. me faz grau para a virtude. 295. do livre alvídrio que tenho;

246. E faz que este natural 296. estes, que tão furiosos
247. amor, que tanto se preza, 297. gritando vêm a escalar-me,
248. suba da sombra ao Real, 298. maus espíritos danosos,
249. da particular beleza 299. que querem como forçosos
250. para a Beleza geral. 300. do alicerce derrubar-me;

251. Fique logo pendurada 301. Derrubai-os, fiquem sós,


252. a frauta com que tangi, 302. de forças fracos, imbeles,
253. ó Hierusalém sagrada, 303. porque não podemos nós
254. e tome a lira dourada, 304. nem com eles ir a Vós,
255. para só cantar de ti! 305. nem sem Vós tirar-nos deles.

256. Não cativo e ferrolhado 306. Não basta minha fraqueza,


257. na Babilónia infernal; 307. para me dar defensão,
258. mas dos vícios desatado, 308. se vós, santo Capitão,
259. e cá desta a ti levado, 309. nesta minha fortaleza
260. Pátria minha natural. 310. não puserdes guarnição.

261. E se eu mais der a cerviz 311. E tu, ó carne que encantas,


312. filha de Babel tão feia, 337. nos vícios da carne má,
313. toda de misérias cheia, 338. os pensamentos declina
314. que mil vezes te levantas 339. àquela Carne divina
315. contra quem te senhoreia: 340. que na Cruz esteve já.

316. beato só pode ser 341. Quem do vil contentamento


317. quem co a ajuda celeste 342. cá deste mundo visível,
318. contra ti prevalecer, 343. quanto ao homem for possível,
319. e te vier a fazer 344. passar logo o entendimento
320. o mal que lhe tu fizeste. 345. para o mundo inteligível:

321. Quem com disciplina crua 346. ali achará alegria


322. se fere mais que üa vez, 347. em tudo perfeita e cheia,
323. cuja alma, de vícios nua, 348. de tão suave harmonia
324. faz nódoas na carne sua, 349. que nem, por pouca, recreia,
325. que já a carne n’ alma fez. 350. nem, por sobeja, enfastia.

326. E beato quem tomar 351. Ali verá tão profundo


327. seus pensamentos recentes 352. mistério na suma alteza
328. e em nacendo, os afogar, 353. que, vencida a natureza,
329. por não virem a parar 354. os mores faustos do mundo
330. em vícios graves e urgentes. 355. julgue por maior baixeza.

17 356. Ó tu, divino aposento,


357. minha pátria singular!
358. Se só com te imaginar
331. Quem com eles logo der 359. tanto sobe o entendimento,
332. na pedra do furor santo, 360. que fará se em ti se achar?
333. e, batendo, os desfizer
334. na Pedra, que veio a ser 361. Ditoso quem se partir
335. enfim cabeça do Canto. 362. para ti, terra excelente,
363. tão justo e tão penitente
336. Quem logo, quando imagina 364. que, despois de a ti subir,
365. lá descanse eternamente.
SONETOS
18

1
2

Enquanto quis Fortuna que tivesse Eu cantarei de amor tão docemente,


Esperança de algum contentamento, Por uns termos em si tão concertados,
O gosto de um suave pensamento Que dous mil acidentes namorados
Me fez que seus efeitos escrevesse. Faça sentir ao peito que não sente.

Porém, temendo Amor que aviso desse Farei que amor a todos avivente,
Minha escritura a algum juízo isento, Pintando mil segredos delicados,
Escureceu-me o engenho co tormento Brandas iras, suspiros magoados,
Para que seus enganos não dissesse. Temerosa ousadia e pena ausente.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos Também, Senhora, do desprezo honesto
A diversas vontades! Quando lerdes De vossa vista branda e rigorosa,
Num breve livro casos tão diversos, Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Verdades puras são, e não defeitos... Porém, para cantar de vosso gesto
E sabei que, segundo o amor tiverdes, A composição alta e milagrosa,
Tereis o entendimento dos meus versos! Aqui falta saber, engenho e arte.
5

O céu, a terra, o vento sossegado...


3 As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...
Pede o desejo, Dama, que vos veja, O pescador Aónio que, deitado
Não entende o que pede; está enganado. Onde co vento a água se meneia,
É este amor tão fino e tão delgado, Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que quem o tem não sabe o que deseja. Que não pode ser mais que nomeado:
Não há cousa a qual natural seja – Ondas (dezia), antes que Amor me mate,
Que não queira perpétuo o seu estado; Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
Não quer logo o desejo o desejado, Me fizeste à morte estar sujeita.
Por que não falte nunca onde sobeja.
Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Mas este puro afeito em mim se dana; Move-se brandamente o arvoredo;
Que, como a grave pedra tem por arte Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
O centro desejar da natureza,

Assi o pensamento (pola parte


Que vai tomar de mim, terrestre [e] humana) 6
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.

Com grandes esperanças já cantei,


Com que os deuses no Olimpo conquistara;
4 Depois vim a chorar, porque cantara;
E agora choro já porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,


A fermosura desta fresca serra, Custa-me esta lembrança só tão cara
E a sombra dos verdes castanheiros, Que a dor de ver as mágoas, que passara,
O manso caminhar destes ribeiros, Tenho pela mor mágoa que passei.
Donde toda a tristeza se desterra;
Pois logo, se está claro que um tormento
O rouco som do mar, a estranha terra, Dá causa que o outro n’alma se acrescente,
O esconder do Sol pelos outeiros, Já nunca posso Ter contentamento.
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra; Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Enfim, tudo o que a rara Natureza Ainda eu imagino em ser contente!
Com tanta variedade nos of’rece,
Me está (se não te vejo) magoando.

Sem ti, tudo m’enoja e m’avorrece;


Sem ti, perpètuamente estou passando
Nas mores alegrias mor tristeza.

19
7

Pois meus olhos não cansam de chorar


Alegres campos, verdes arvoredos, Tristezas, que não cansam de cansar-me;
Caras e frescas águas de cristal, Pois não abranda o fogo, em que abrasar-me
Que em vós os debuxais ao natural, Pôde quem eu jamais pude abrandar;
Discorrendo da altura dos rochedos;
Não canse o cego Amor de me guiar
Silvestres montes, ásperos penedos, A parte donde não saiba tornar-me;
Compostos em concerto desigual, Nem deixe o mundo todo de escutar-me,
Sabei que, sem licença de meu mal, Enquanto me a voz fraca não deixar.
Já não podeis fazer meus olhos ledos.
E se em montes, rios, ou em vales,
E, pois me já não vedes como vistes, Piedade mora, ou dentro mora Amor
Não me alegrem verduras deleitosas Em feras, aves, plantas, pedras, águas,
Nem águas que correndo alegres vêm.
Ouçam a longa história de meus males
Semearei em vós lembranças tristes, E curem sua dor com minha dor;
Regando-vos com lágrimas saudosas, Que grandes mágoas podem curar mágoas.
E nascerão saudades de meu bem.

8 10

Verdade, Amor, Razão, Merecimento Leda serenidade deleitosa,


Qualquer alma farão segura e forte; Que representa em terra um paraíso;
Porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte Entre rubis e perlas doce riso;
Têm do confuso mundo o regimento. Debaixo d’ ouro e neve, cor de rosa;

Efeitos mil revolve o pensamento Presença moderada e graciosa,


E não sabe a que causa se reporte; Onde ensinando estão despejo e siso
Mas sabe que o que é mais que vida e morte, Que se pode por arte e por aviso,
Que não o alcança humano entendimento. Como por natureza, ser fermosa;

Doctos varões darão razões subidas, Fala de quem a morte a vida pende,
Mas são experiências mais provadas, Rara, suave; enfim, Senhora, vossa;
E por isso é melhor ter muito visto. Repouso nela alegre e comedido;

Cousas há i que passam sem ser cridas Estas as armas são com que me rende
E cousas cridas há sem ser passadas, E me cativa Amor; mas não que possa
Mas o milhor de tudo é crer em Cristo. Despojar-me da glória de rendido.

20

11

9 Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades;


Muda-se o ser, muda-se a confiança; De um belo rosto, as rosas por quem mouro;
Todo o mundo é composto de mudança, No cabelo o valor do metal louro;
Tomando sempre novas qualidades. No peito a neve em que a alma tenho acesa.

Continuamente vemos novidades, Mas nos olhos mostrou quanto podia,


Diferentes em tudo da esperança; E fez deles um sol, onde se apura
Do mal ficam as mágoas na lembrança, A luz mais clara que a do claro dia.
E do bem (se algum houve) as saüdades.
Enfim, Senhora, em vossa compostura
O tempo cobre o chão de verde manto, Ela a apurar chegou quanto sabia
Que já coberto foi de neve fria, De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.
E, em mim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,


Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

12

Presença bela, angélica figura,


Em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;
Gesto alegre, de rosas semeado,
Entre as quais se está rindo a Fermosura;

Olhos onde tem feito tal mistura


Em cristal branco o preto marchetado,
Que vemos já no verde delicado
Não esperanças, mas enveja escura;

Brandura, aviso e graça, que aumentando


A natural beleza cum desprezo,
Com que, mais desprezada, mais se aumenta:

São as prisões de um coração que, preso,


Seu mal ao som dos ferros vai cantando,
Como faz a sereia na tormenta.

21

13

De quantas graças tinha a Natureza


Fez um belo e riquíssimo tesouro,
E com rubis e rosa, neve e ouro,
Formou sublime e angélica beleza.

Pôs na boca os rubis, e na pureza


14

Ah! Minha Dinamene! Assi deixaste


Quem não deixara nunca de querer-te?
Ah! Ninfa minha! Já não posso ver-te,
Tão asinha esta vida desprezaste!

Como já para sempre te apartaste


De quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te,
Que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te sòmente a dura morte


Me deixou, que tão cedo o negro manto
Em teus olhos deitado consentiste!

Ó mar, ó Céu, ó minha escura sorte!


Que pena sentirei, que valha tanto,
Que inda tenha por pouco viver triste?
17

15 Cá nesta Babilónia, donde mana


Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá onde o puro Amor não tem valia,
Que a mãe, que manda mais, tudo profana;
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela; Cá, onde o mal se afina e o bem se dana,
Mas não servia ao pai, servia a ela, E pode mais que a honra a tirania;
E a ela só por prémio pretendia. Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a desengana;
Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la; Cá, neste labirinto, onde a nobreza
Porém o pai, usando de cautela, Com esforço e saber pedindo vão
Em lugar de Raquel lhe dava Lia. Às portas da cobiça e da vileza;

Vendo o triste pastor que com enganos Cá neste escuro caos de confusão,
Lhe fora assim negada a sua pastora, Cumprindo o curso estou da Natureza.
Como se a não tivera merecida, Vê se me esquecerei de ti, Sião!

Começa de servir outros sete anos,


Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.

18

16 Um mover d’olhos, brando e piedoso,


Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;
Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças; Um despejo quieto e vergonhoso;
Que não pode tirar-me as esperanças, Um repouso gravíssimo e modesto;
Que mal me tirará o que não tenho. Ũa pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças! Um encolhido ousar; uma brandura;
Que não temo contrastes nem mudanças, Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Andando em bravo mar, perdido lenho. Um longo e obediente sofrimento;

Mas, conquanto não pode haver desgosto Esta foi a celeste formosura
Onde esperança falta, lá me esconde Da minha Circe, e o mágico veneno
Amor um mal, que mata e não se vê, Que pôde transformar meu pensamento.

Que dias há que na alma me tem posto


Um não sei que, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei por quê. .

22

19
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder a vista só em vê-los,
Ondados fios d’ouro reluzente, Já não paga o que deve a vosso gesto.
Que agora da mão bela recolhidos,
Agora sobre as rosas estendidos, Este me parecia preço honesto;
Fazeis que sua beleza s’ acrescente; Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e alma por querê-los,
Olhos, que vos moveis tão docemente, Donde já me não fica mais de resto,
Em mil divinos raios encendidos,
Se de cá me levais alma e sentidos, Assi que a vida e alma e esperança
Que fôra, se de vós não fôra ausente? E tudo quanto tenho, tudo é vosso,
E o proveito disso eu só o levo.
Honesto riso, que entre a mor fineza
De perlas e corais nasce e parece, Porque é tamanha bem-aventurança
Se n’alma em doces ecos não o ouvisse! O dar-vos quanto tenho e quanto posso
Que, quanto mais vos pago, mais vos devo.
S’ imaginando só tanta beleza
De si, em nova glória, a alma s’esquece,
Que fará quando a vir? Ah! quem a visse!
22

20 Lembranças que lembrais meu bem passado,


Para que sinta mais o mal presente,
Deixai-me (se quereis) viver contente,
Não me deixeis morrer em tal estado.
O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza; Mas se também de tudo está ordenado
O tempo acaba a fama e a riqueza, Viver (como se vê) tão descontente,
O tempo o mesmo tempo de si chora. Venha (se vier) o bem por acidente,
E dê a morte fim a meu cuidado.
O tempo busca e acaba e onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza; Que muito milhor é perder a vida,
Mas não pode acabar minha tristeza, Perdendo-se as lembranças da memória,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora. Pois fazem tanto dano ao pensamento.

O tempo o claro dia torna escuro, Assi que nada perde quem perdida
E o mais ledo prazer em choro triste; A esperança traz de sua glória,
O tempo a tempestade em grã bonança. Se esta vida há-de ser sempre em tormento.

Mas de abrandar o tempo estou seguro


O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.

23

21
24 (Repetida)
23

Com grandes esperanças já cantei,


Quando de minhas mágoas a comprida Com que os deuses no Olimpo conquistara;
maginação os olhos me adormece, Depois vim a chorar, porque cantara;
Em sonhos aquel’alma me aparece E agora choro já porque chorei.
Que para mim foi sonho nesta vida.
Se cuido nas passadas que já dei,
Lá nũa soïdade, onde estendida Custa-me esta lembrança só tão cara
A vista pelo campo desfalece, Que a dor de ver as mágoas, que passara,
Corro par’ ela; e ela então parece Tenho pela mor mágoa que passei.
Que mais de mim se alonga, compelida.
Pois logo, se está claro que um tormento
Brado: – Não me fujais, sombra benina! Dá causa que o outro n’alma se acrescente,
Ela (os olhos em mim cum brando pejo, Já nunca posso Ter contentamento.
Como quem diz que já não pode ser ),
Mas esta fantasia se me mente?
Torna a fugir-me; e eu, gritando: –– Dina... Oh! ocioso e cego pensamento!
Antes que diga mene, acordo, e vejo Ainda eu imagino em ser contente!
Que nem um breve engano posso ter.

25

O dia em que nasci moura e pereça,


Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça,


Mostre o mundo sinais de se acabar;
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,


As lágrimas no rosto, a côr perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,


Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!

24
25
Em continuação a esta breve antologia
das redondilhas e dos sonetos de Camões,
apresentaremos a seguir alguns poemas
que, relacionados aos que lhes são postos
em paralelo, demonstram a permanência
deste poeta renascentista na obra de
autores portugueses e brasileiros modernos.
Observemos o diálogo intertextual que entre
eles se mantém.
Mais adiante, em poetas de séculos
também posteriores, outras referências
poderão ainda ser identificadas, seja do
ponto de vista da retomada de temas, seja
quanto ao resgate dos próprios versos
camonianos.
Descubra outras relações intertextuais.

26 Vença o ideal de andar caminhos planos


Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura


Oh! Como se me alonga, de ano em ano, À medida que a têmpora embranquece.
A peregrinação cansada minha! E fique tenra a fibra que era dura.
Como se encurta, e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano! E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Vai-se gastando a idade e cresce o dano; Que vê envelhecer e não envelhece.
Perde-se-me um remédio que inda tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não alcança;


No meio do caminho me falece;
Mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e na tardança,


Se os olhos ergo a ver se ainda parece,
Da vista se me perde e da esperança.

VINICIUS DE MORAIS

Passem-se dias, horas, meses, anos


Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envelhecida


Diminuam os bens, cresçam os danos
Soneto de separação

VINICIUS DE MORAIS
27
De repente, do riso fez-se o pranto,
Silencioso e branco como a bruma,
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade, De repente, da calma fez-se o vento
Enquanto houver no mundo saüdade Que dos olhos desfez a última chama
Quero que seja sempre celebrada. E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade, De repente, não mais que de repente,
Viu apartar-se d’ ũa outra vontade, Fez-se de triste o que se fez amante
Que nunca poderá ver-se apartada. E de sozinho o que se fez contente.

Ela só viu as lágrimas em fio, Fez-se do amigo próximo o distante,


Que d’ uns e d’ outros olhos derivadas Fez-se da vida uma aventura errante,
S’ acrescentaram em grande e largo rio. De repente, não mais que de repente.

Ela viu as palavras magoadas


Que puderam tornar o fogo frio
E dar descanso às almas condenadas. À Carolina

MACHADO DE ASSIS

28
Querida, ao pé do leito derradeiro,
Em que descansas desta longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente, Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Repousa lá no Céu eternamente, Que, a despeito de toda a humana lida,
E viva eu cá na terra sempre triste. Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente, Trago-te flores, restos arrancados
Não te esqueça daquele amor ardente Da terra que nos viu passar unidos
Que já nos olhos meus tão puro viste. E ora mortos nos deixa e separados.

E se vires que pode merecer-te Que eu, se tenho nos olhos mal feridos
Alguma cousa a dor que me ficou Pensamentos de vida formulados,
Da mágoa, sem remédio, de perder-te, São pensamentos idos e vividos.

Roga a Deus, que teus anos encurtou,


Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

26
Soneto de fidelidade

VINICIUS DE MORAIS

29 De tudo, ao meu amor serei atento


Antes, e com tal zelo e sempre e tanto
Que, mesmo em face do maior encanto,
Dele se encante mais meu pensamento.
Tanto do meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio; Quero vivê-lo em cada vão momento
Sem causa, juntamente choro e rio, E em seu louvor hei de espalhar meu canto
O mundo todo abarco e nada aperto. E rir meu riso e espalhar meu pranto
Ao seu pesar e ao seu contentamento.
É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio; E assim, quando mais tarde me procure
Agora espero, agora desconfio, Quem sabe a morte, angústia de quem vive,
Agora desvario, agora acerto. Quem sabe a solidão, fim de quem ama,

Estando em terra, chego ao Céu voando, Eu possa me dizer do amor (que tive):
Nũ’ hora acho mil anos, e é de jeito Que não seja imortal, posto que é chama,
Que em mil anos não posso achar ũ’ hora. Mas que seja infinito enquanto dure.

Se me pergunta alguém por que assi ando,


Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.
Glosas de amor e morte

JOSÉ AUGUSTO SEABRA

30 Tão doce mente amor de só cantar-se


que eu cantarei de amor tão docemente
se cantar só de amor os acidentes
dos desconcertos teus tão concertados
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados, na música do canto magoados
Que dous mil acidentes namorados amor fizer que a todos avivente
Faça sentir ao peito que não sente. ou mate. Enquanto a cada canto as lentas
armas engenho quais se a tanto a arte
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados, te não faleça ou desfaleça enquanto
Brandas iras, suspiros magoados, desmemória da vida se consente
Temerosa ousadia e pena ausente. e desejo for só contentamento

Também, Senhora, do desprezo honesto do muito imaginar descontentado.


De vossa vista branda e rigorosa, Verdades puras são se mas desmente
Contentar-me-ei dizendo a menor parte. Docemente o amor se doce mente.

Porém, para cantar de vosso gesto


A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.

27
“Transforma-se o amador
na coisa amada”
HERBERTO HELDER

“Transforma-se o amador na coisa amada” com seu


feroz sorriso, os dentes
31 as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
Transforma-se o amador na cousa amada, Silêncio da sua última vida.
Por virtude do muito imaginar: O amador transforma-se de instante para instante,
Não tenho, logo, mais que desejar, E sente-se o espírito imortal do amor
Pois em mim tenho a parte desejada. Criando a carne em extremas atmosferas, acima
De todas as coisas mortas.
Se nela está minh’alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar? Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
Em si sòmente pode descansar, E a coisa amada é uma baía estanque.
Pois consigo tal alma está liada. É o espaço de um castiçal,
A coluna vertebral e o espírito
Mas esta linda e pura semideia, Das mulheres sentadas.
Que, como um acidente em seu sujeito,
Assi co a alma minha se conforma, Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
Está no pensamento como ideia: É uma cortina
[E] o vivo e puro amor de que sou feito, Onde o vento do amador bate no alto da janela
Como a matéria simples busca a forma. Aberta. O amador entra
Por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.

A paixão segundo Camões


CARLOS FELIPE MOISÉS
Transforma-se o amador em coisa alguma,
sem dolo, sem virtude e sem razão.
Por muito amar, dispersa o coração
e rói daquilo que é a alma nenhuma.

As esperanças perde, uma a uma,


de decifrar o rosto da paixão.
Sem rumo, ilhado entre o sim e o não,
se no amor de um mar sem espuma.

Transforma-se o amador em coisa errante,


atira ao vento um grito enrouquecido,
buscando se encontrar na coisa amada.

A pele rota, o gesto vacilante,


transforma-se, de amar como um perdido,
em sombra de si mesmo, ausência, nada.

28
32
É um nada amor que pode tudo,
É um não se entender o avisado
É um querer ser livre e estar atado,
Amor é fogo que arde sem se ver, É um julgar o parvo por sisudo;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente; É um parar os golpes sem escudo,
É dor que desatina sem doer; É um cuidar que é e estar trocado,
É um viver alegre e enfadado,
É um não querer mais que bem querer; É não poder falar e não ser mudo;
É andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente; É um engano claro e mui escuro,
É cuidar que se ganha em se perder; É um não enxergar e estar vendo,
É um julgar por brando ao mais duro;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor. É um não qu’rer dizer e estar dizendo,
É ter com quem nos mata lealdade. É um no mor perigo estar seguro,
É, por fim, um não sei quê, que não entendo.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Soneto à maneira de Camões

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Esperança e desespero de alimento


Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é meu tormento.

Mas como usar amor de entendimento?


Daquilo que te peço desespero
Ainda que m’o dês – pois o que eu quero
Ninguém o dá se não por um momento.

Mas como és belo, amor, de não durares,


De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.

Amor perfeito dado a um ser humano.


Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas do oceano.

29
Definição do amor

( ANÔNIMO do Século XVII )


30

33

Erros meus, má fortuna, amor ardente


Em minha perdição se conjuraram; Camões e a tença
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor sòmente. SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Tudo passei; mas tenho tão presente Irás ao Paço. Irás pedir que a tença
A grande dor das cousas que passaram, Seja paga na data combinada
Que as magoadas iras me ensinaram Este país te mata lentamente
A não querer já nunca ser contente. País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce
Errei todo o discurso dos meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse Em tua perdição se conjuraram
As minhas mal fundadas esperanças. Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
De amor não vi senão breves enganos. A quem ousou seu ser inteiramente
Oh! Quem tanto pudesse que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças! E aqueles que invocaste não te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
34 Tinha apagado os olhos no seu rosto

Em prisões baixas fui um tempo atado, Irás ao Paço irás pacientemente


Vergonhoso castigo de meus erros; Pois não te pedem canto mas paciência
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado. Este país te mata lentamente

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,


Que Amor não quer cordeiros, nem bezerros;
Vi mágoas, vi misérias, vi desterros.
Parece-me qu’estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo


Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha estrela, que eu já ’gora entendo,


A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizeram de gostos haver medo.
31

Poema da auto-estrada
ANTÔNIO GEDEÃO
Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta 1.
VOLTAS AO MOTE Vai na brasa 2, de lambreta.

Leva calções de pirata,


Descalça vai para a fonte vermelho de alizarina 3,
Leanor pela verdura; modelando a coxa fina,
Vai fermosa e não segura. de impaciente nervura.
Como guache 4 lustroso,
Leva na cabeça o pote, amarelo de indantreno 5,
O testo nas mãos de prata, blusinha de terileno 6
Cinta de fina escarlata, desfraldada 7 na cintura.
Saínho de chamelote; Fuge 8, fuge, Leonoreta.
Traz a vasquinha de cote, Vai na brasa, de lambreta.
Mais branca que a neve pura; Agarrada ao companheiro
Vai fermosa, e não segura. na volúpia da escapada
pincha 9 no banco traseiro
Descobre a touca a garganta, em cada volta da estrada.
Cabelos d’ ouro o trançado, Grita de medo fingido,
Fita de cor d’ encarnado, que o receio não é com ela,
Tão linda que o mundo espanta; mas por amor e cautela
Chove nela graça tanta, abraça-o pela cintura.
Que dá graça à fermosura. Vai ditosa, e bem segura.
Vai fermosa, e não segura. Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas 10 da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demônio com asas.

Na confusão dos sentidos


já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdido
se os rugidos do motor.
Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
1.asfaltada. 2. Ardente, entusiasmada. 3. Corante. 4. Tinta guache. 5.
Corante. 6. Tecido. 7. Solta, ao vento. 8. Fuja, afaste-se. 9. Pula, sacode. 10.
Acostamento.
CANÇÃO IX
que eu já no mundo vi, quando vivi,
por me dobrar dos males a aspereza,
Junto de um seco, fero e estéril monte, por me mostrar que havia
inútil e despido, calvo, informe, no mundo muitas horas de alegria.
da natureza em tudo aborrecido;
onde nem ave voa, ou fera dorme, Aqui estiv’eu co estes pensamentos
nem rio claro corre, ou ferve fonte, gastando o tempo, e a vida; os quais tão alto,
nem verde ramo faz doce ruído; me subiam nas asas que caía
cujo nome, do vulgo introduzido, ( e vede se seria leve o salto! )
é félix, por antífrase infelice; de sonhados e vãos contentamentos
o qual a Natureza em desesperação de ver um dia.
situou junto à parte Aqui o imaginar se convertia
onde um braço de mar alto reparte num súbito chorar e nuns suspiros,
Abássia, da arábica aspereza, que rompiam os ares.
onde fundada já foi Berenice, Aqui, a alma cativa,
ficando à parte donde chagada toda, estava em carne viva,
o Sol que nele ferve se lhe esconde; de dores rodeada e de pesares,
desamparada e descoberta aos tiros
nele aparece o Cabo com que a costa da soberba Fortuna;
Africana, que vem do Austro correndo, soberba, inexorável e importuna.
limite faz, Arómata chamado
Arómata outro tempo; que, volvendo Não tinha parte donde se deitasse,
os céus, a ruda língua mal composta, nem esperança algũa onde a cabeça
dos próprios outro nome lhe tem dado; um pouco reclinasse, por descanso.
Aqui, no mar, que quer apressurado Tudo dor lhe era e causa que padeça,
entrar pela garganta deste braço, mas que pereça não, por que passasse
me trouxe um tempo e teve o que quis o Destino nunca manso.
minha fera ventura. Oh! que este irado mar, gritando, amanso!
Aqui, nesta remota, áspera e dura Estes ventos da voz importunados,
parte do mundo, quis que a vida breve parece que se enfreiam!
também de si deixasse um breve espaço, Sòmente o Céu severo,
por que ficasse a vida as Estrelas e o Fado sempre fero
pelo mundo em pedaços repartida. com meu perpétuo dano se recreiam,
mostrando-se potentes e indignados
Aqui me achei gastando uns tristes dias, contra um corpo terreno,
tristes, forçados, maus e solitários bicho da terra vil e tão pequeno.
trabalhosos, de dor e d’ ira cheios,
não tendo tão sòmente por contrários Se de tantos trabalhos só tirasse
a vida, o sol ardente e águas frias, saber inda por certo que algũ’ hora
os ares grossos, férvidos e feios, lembrava a uns claros olhos que já vi;
mas os meus pensamentos, que são meios e se esta triste voz, rompendo fora,
para enganar a própria Natureza, as orelhas angélicas tocasse
também vi contra mi, daquela em cujo riso já vivi;
trazendo-me a memória a qual, tornada um pouco sobre si,
algũa já passada e breve glória,

32
revolvendo na mente pressurosa
os tempos já passados
de meus doces errores,
de meus suaves males e furores,
por ela padecidos e buscados, e logo se me ajuntam esperanças
tornada (inda que tarde) piadosa, com que a fronte, tornada mais serena,
um pouco lhe pesasse torna os tormentos graves
e consigo por dura se julgasse; em saüdades brandas e suaves.

isto só que soubesse, me seria Aqui co elas fico, perguntando


descanso para a vida que me fica; aos ventos amorosos, que respiram
co isto afagaria o sofrimento. da parte donde estais, por vós, Senhora;
Ah! Senhora, Senhora, que tão rica às aves que ali voam, se vos viram,
Estais, que cá tão longe, de alegria que fazíeis, que estáveis praticando,
me sustentais cum doce fingimento! onde, como, com quem, que dia e que hora.
Em vos afigurando o pensamento, Ali a vida cansada, que melhora,
foge todo o trabalho e toda a pena. toma novos espritos, com que vença
Só com vossas lembranças a Fortuna e trabalho,
me acho seguro e forte só por tornar a ver-vos,
contra o rosto feroz da fera Morte, só por ir a servir-vos e querer-vos.
Diz-me o Tempo que a tudo dará talho;
mas o Desejo ardente, que detença
nunca sofreu, sem tento
m’ abre as chagas de novo ao sofrimento.
33
Assi vivo; e se alguém te perguntasse,
Canção, como não mouro,
podes-lhe responder que porque mouro.
SÉCULO XVII

Rodrigues Lobo
Tomás Pinto Brandão
Francisco de Vasconcelos
Jerônimo Bahia
Antônio Barbosa Bacelar
Sóror Violante do Céu
D. Francisco Manuel de Melo
D. Tomás de Noronha
Francisco de Vasconcelos Coutinho
André Nunes da Silva
Antônio Serrão de Castro
Frei Antônio das Chagas
35

RODRIGUES LOBO
(1579?-1621)
(Pergunta e respostas)
RESPOSTA DE UM PASTOR Quando n’alma uma beleza
À PERGUNTA: Mostra seu raio invencível
Quem ama sem esperança, E amor seu preço e grandeza,
Se ama mais perfeitamente? Não faz diferente empresa
Entre fácil e impossível.
RESPOSTA DE UM PASTOR À PERGUNTA
E é já cousa averiguada
Ninguém ama sem querer, Que somente este rigor
Ninguém quer sem esperar; Merece ante a cousa amada,
O que ama espera e quer; E o que quiser mais de amor,
Poderá nunca alcançar, Nem quer, nem merece nada.
Mas sempre há de pretender.
CANTIGA
Se à hera lhe falta a planta
Em cujo tronco se arrime, Ando perdido entre a gente,
Nem cresce nem se alevanta, Nem morro, nem tenho vida.
Que enfim não tem força tanta
Que se levante e sublime. Depois que ando transformado
Num cuidado que me obriga
E se a amor lhe faltara A viver sempre enleado,
Esperança que o sustente, Não posso achar quem me diga
Na raiz própria secara, Se sou perdido, ou ganhado;
E inda não sei se brotara Nem por fé se me consente
Ou se afogara a semente. Que saiba parte de mi,
Quem me tem nega, e não mente,
De sorte que em qualquer peito, Que, depois que me perdi,
Sem esperança, ou favor Ando perdido entre a gente.
De seu desejado objeto,
Não só falta amor perfeito, A alma que buscou lugar
Mas falta, de todo, Amor. Que Amor por seu fim lhe ordena,
Bem se queria empregar,
RESPOSTA DE UMA PASTORA À MESMA PERGUNTA
Mas ficou presa no ar,
Amor, que a próprio respeito Aonde anda e aonde pena;
Todo o desejo oferece Nem ganhada, nem perdida
Só por seu gosto, ou proveito, Posso dela saber nada,
Não se chame amor perfeito, Nem de mim, se alguém duvida,
Antes perfeito interesse: Quem me dá vida emprestada,
Nem morro, nem tenho vida.
Amor é somente amar,
Este é seu meio e seu fim,
E o que pretende alcançar
Nem se há de lembrar de sim,
Nem do que pode esperar.

O que é verdadeiro amante


Não se funda na esperança,
Só seu querer põe diante,
E se por ventura alcança
Sem ventura é mais constante.
36

CANTIGA SONETOS

Descalça vai para a fonte Fermoso Tejo meu, quão diferente


Leanor pela verdura; Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Vai fermosa, e não segura. Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.
A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição, A ti foi-te trocando a grossa enchente
Saia de cor de limão, A quem teu largo campo não resiste;
Beatilha soqueixada; A mim trocou-me a vista em que consiste
Cantando de madrugada O meu viver contente ou descontente.
Pisa flores na verdura:
Vai fermosa, e não segura. Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera
Leva na mão a rodilha Que fôramos em tudo semelhantes!
Feita de sua toalha,
Com uma sustenta a talha, Mas lá virá a fresca Primavera:
Ergue com outra a fraldilha; Tu tornarás a ser quem eras de antes,
Mostra os pés por maravilha, Eu não sei se serei quem de antes era.
Que a neve deixam escura:
Vai fermosa, e não segura.

As flores por onde passa, Que amor sigo? Que busco? Que desejo?
Se o pé lhe acerta de por, Que enleio é este vão da fantasia?
Ficam de inveja sem cor Que tive? Que perdi? Quem me queria?
E de vergonha com graça; Quem me faz guerra? Contra quem pelejo?
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura: Foi por encantamento o meu desejo
Vai fermosa, e não segura. E por sombra passou minha alegria;
Mostrou-me Amor, dormindo, o que não via,
Não na ver o Sol lhe val E eu ceguei do que vi, pois já não vejo.
Por não Ter novo inimigo,
Mas ela corre perigo Fez à sua medida o pensamento
Se na fonte se vê tal; Aquela estranha e nova fermosura
Descuidada deste mal E aquele parecer quase divino;
Se vai ver na fonte pura:
Vai fermosa, e não segura. Ou imaginação, sombra ou figura,
É certo e verdadeiro o meu tormento:
Eu morro do que vi, do que imagino.

37
TOMÁS PINTO BRANDÃO

AO NOVO INVENTO DE ANDAR PELOS ARES

Esta maroma escondida,


Que abala toda a cidade;
Esta mentida verdade,
Ou esta dúvida crida;
Esta exaltação nascida
No Português Firmamento;

Este nunca visto invento


Do Padre Bartolomeu;
Assim fora santo eu,
Como ele é coisa de vento;
Esta fera Passarola,
Que leva, porque mais brame,

Trezentos mil réis de arame,


Somente para a gaiola;
Esta urdida paviola,
Ou este tecido enredo;
Esta das mulheres medo,
E enfim dos homens espanto;
Assim fora eu cedo santo,
Como se há de acabar cedo.
AVISO PARA SOLTEIROS
QUE QUISEREM VIVER

Todo o solteiro que este mundo logra


E por casado assezoado berra
Considere que peste, fome e guerra
O diabo lhe dá em dar-lhe sogra.

A doce liberdade se malogra,


De todo o paraíso se desterra,
E de viver enfim os termos erra,
Porque em vida se enterra se se ensogra.

Terá sogra ad initio et ante bruxa,


Terá sogra ad perpetuam rei tarascia,
Sogra per omnia secula proluxa:

Que é peste no contágio que lhe encasca,


É fome na miséria que lhe embucha,
É guerra no dragão que se lhe enfrasca.
38

FRANCISCO DE VASCONCELOS
(1665-1723)
À FRAGILIDADE DA VIDA HUMANA À MORTE DE F.

Esse baixel nas praias derrotado Esse jasmim que arminhos desacata,
Foi nas ondas Narciso presumido; Essa aurora que nácares aviva,
Esse farol nos céus escurecido Essa fonte que aljôfares deriva,
Foi do monte libré, gala do prado. Essa rosa que púrpuras desata;

Esse nácar em cinzas desatado Troca em cinza voraz lustrosa prata,


Foi vistoso pavão de Abril florido; Brota em pranto cruel púrpura viva,
Esse estio em vesúvios encendido Profana em turvo pez prata nativa,
Foi Zéfiro suave, em doce agrado. Muda em luto infeliz tersa escarlata.

Se a nau, o Sol, a rosa, a Primavera Jasmim na alvura foi, na luz aurora,


Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel Fonte na graça, rosa no atributo,
Sentem nos auges de um alento vago, Essa heróica deidade que em luz repousa.

Olha, cego mortal, e considera Porém, fora melhor que assim não fora,
Que és rosa, Primavera, Sol, baixel, Pois a ser cinza, pranto, barro e luto,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago. Nasceu jasmim, aurora, fonte, rosa.

JERÔNIMO BAHIA
A F. FAVORECENDO COM A BOCA Mais rigoroso, mais cruel, mais duro,
E DESPREZANDO COM OS OLHOS Que o Céu vê, cerca o mar, a terra goza.

Quando o Sol nasce e a sombra principia, Sois mais rica, mais bela, mais lustrosa
A doce abelha, a borboleta airosa Que a perla, rosa, Sol ou jasmim puro,
Procura luz ardente e fresca rosa, Pois por vós fica feio, pobre e escuro,
Que faz a terra céu e a noite dia. Sol em Céu, perla em mar, em jardim rosa.

Mas quando à flor se entrega, à luz se fia, Não viu tão doce, plácida e amena,
Uma fica infeliz, outra ditosa, (Brame o mar, trema a terra, o Céu se agrave),
Pois vive a abelha e morre a mariposa Luz o Céu, ave a terra, o mar sirena.
Na favorável rosa e chama impia.
Vós triunfais de sirena, luz e ave,
Fílis, abelha sou, sou borboleta, Claro Sol, perla fina, rosa amena,
Que com afeto igual, com igual sorte, Mor cometa, árduo muro, rocha grave.
Busco em vós melhor luz, flor mais seleta.

Mas quando a flor é branda, a chama é forte,


Néctar acho na flor, na luz cometa;
A boca me dá vida, os olhos morte.

AO RIGOR DE LÍSI

Mais dura, mais cruel, mais rigorosa


Sois, Lísi, que cometa, rocha ou muro
39

ANTÔNIO BARBOSA BACELAR


Este nasce, outro morre, acolá soa
Um ribeiro que corre, aqui suave
A UMAS SAUDADES Um Rouxinol se queixa brando, e grave,
Um Leão co’ rugido o monte atroa:

Saudades de meu bem, que noite e dia Aqui corre uma fera, acolá voa
A alma atormentais, se é vosso intento Co’ grãozinho na boca ao ninho uma ave;
Acabares-me a vida com tormento, Um derruba o edifício, outro ergue a trave,
Mais lisonja será, que tirania: Uma caça, outro pesca, outro enferroa.

Mas quando me matar vossa porfia, Um nas armas se alista, outro as pendura,
De morrer tenho tal contentamento, Ao soberbo Ministro aquele adora,
Que em me matando vosso sentimento, Outro segue do Paço a sombra amada.
Me há de ressuscitar minha alegria:
Este muda de amor, aquele atura:
Porém matai-me embora, que pretendo Do bem de que um se alegra, o outro chora.
Satisfazer com mortes repetidas Oh mundo, oh sombra, oh zombaria, oh nada!
O que à beleza sua estou devendo;

Vidas me daí para tirar-me vidas,


Que ao grande gosto, com que as for /perdendo SETE ANOS DE PASTOR
Serão todas as mortes bem devidas.

Pretendendo a Raquel, serrana bela,


Sete anos de pastor Jacó servia;
A UMA AUSÊNCIA Porém, como a Raquel só pretendia,
Não servia a Labão, servia a ela.

Sinto-me, sem sentir, todo abrasado Consolava a esperança só com vê-la,


No rigoroso fogo que me alenta; Indo passando um dia e outro dia;
O mal que me consome me sustenta; Dava-lhe alento o muito que queria,
O bem que me entretém me dá cuidado. E pagava-se só com merecê-la.

Ando sem me mover; falo calado; Porém, quando por meios tão tiranos
O que mais perto vejo se me ausenta; De Raquel se lhe nega a formosura,
E o que estou sem ver mais me atormenta; Agradece a Labão estes enganos,
Alegro-me de ver-me atormentado.
Cifrando em mais servir maior ventura,
Choro no mesmo ponto em que me rio; Dizendo: “Servirei, porque os meus anos
No mor risco me anima a confiança; Com servi-la hão de ser de eterna dura”.
Do que menos se espera estou mais certo.

Mas, se de confiado desconfio,


É porque entre os receios da mudança,
Ando perdido em mim como em deserto.

À VARIEDADE DO MUNDO
40

RETRATO DE UM BÊBADO A UM PEITO CRUEL

Perdi-me vendo a pipa, o torno aberto; O Bem passado que é? É mal presente,
Minha alma está metida em vinho tinto; O mal presente que é? É dor esquiva,
Tão bêbado estou que já não sinto A dor esquiva que é morte viva,
Ser bêbado coberto ou encoberto. A morte viva que é? Inferno ardente,
Tenho a cama longe, o sono perto, Com mal quem poderá viver contente,
No chão estou e erguer-me não consinto, Com dor quem haverá que alegre viva,
A barriga de inchada aperta o cinto, Com morte quem não tem pena excessiva,
Falando estou dormindo qual desperto. Com inferno quem vive alegremente?
Venha mais vinho e dêem-mo vezes cento, Por bem passado mal vou padecendo,
Que alegra o coração, sustenta a vida, Por alegria dor, por vida morte,
E pouco vai que engrosse o entendimento. Com glória o mesmo inferno estou sofrendo:
Vingar-me quero, que é grande a bebida; Mas ah, peito cruel, que ainda é mais forte
Tudo o que não é beber é lixo e vento, A dura condição, que em ti estou vendo,
Que para tão grande gosto é curta a vida. Que bem, e mal, e dor inferno e morte.

SÓROR VIOLANTE DO CÉU

A UMA SUSPEITA

Amor, se uma mudança imaginada


É com tanto rigor minha homicida Se era brando o rigor, firme a mudança,
Que fará, se passar de ser temida, Humilde a presunção, vária a firmeza,
A ser, como temida, averiguada? Fraco o valor, cobarde a fortaleza,
Triste o prazer, discreta a confiança;
Se só por ser de mim tão receada,
Com dura execução me tira a vida, Terá a ingratidão firme lembrança,
Que fará, se chegar a ser sabida? Será rude o saber, sábia a rudeza,
Que fará, se passar de suspeitada? Lhana a ficção, sofística a lhaneza,
Áspero o amor, benigna a esquivança;
Porém, já que me mata, sendo incerta,
Somente o imaginá-la e presumi-la, Será merecimento a indignidade,
Claro está, pois da vida o fio corta, Defeito a perfeição, culpa a defensa,
Intrépido o temor, dura a piedade;
Que me fará depois, quando for certa?
Ou tornar a viver para senti-la, Delito a obrigação, favor a ofensa,
Ou senti-la também depois de morta? Verdadeira a traição, falsa a verdade,
— Antes que vosso amor meu peito vença.

41
DOM FRANCISCO DE MELO

(1608 – 1666)
Eu vi hoje certa Lia,
DOMINE, TU MIHI LAVAS PEDES? Que só vê-la era alegria,
Porque, se os sóis foram dois,
Ousado pescador, que é da tormenta Os seus olhos foram sóis
Nas mansas águas desse breve vaso? E ela toda fora um dia.
Duvidais vós de entrar, tímido acaso,
Quando que nele entreis o Mestre intenta? É tal, que, se eu Jacó fora
Em minha vida alguma hora
Como, se antes ousada, hoje avarenta E o pai por paga ma desse,
Se mostra a planta, que por longo prazo Mal houvera eu, se eu quisesse
O bravo mar pisou, qual campo raso, Mais Raquel para senhora!
Em virtude do braço que a sustenta?
Foi ser Lia, sem ser feia,
Então lhe obedeceis os pensamentos, Que me enlia e que me enleia
Porque se mostrou Deus, e hoje vestido A liberdade e o juízo;
De escravo, duvidais seus mandamentos? E folgo ver preso o siso,
Por ser preso em tal cadeia.
Pois diz o amor que para obedecido
Mais é, que quando aos pés rende elementos, Contra todos corações
Quando ele o põe a vossos pés rendido. Em seus olhos valentões
Investem, rompem, forcejam;
Mas quem se espanta que sejam,
MUNDO É COMÉDIA Se ela é Lia, eles liões?

Se ela é toda destes panos


Dez figas para vós, que com furtado E há ‘i sogros sem enganos,
Consular nome vos chamais Prudência, Dê-ma o pai, sem mais cautela,
Se, fazendo c’o Mundo conferência, Que eu o servirei por ela,
Discursais, resolveis, e eis tudo errado! Mas que sejam cem mil anos!

Quem vos vir, Apetite disfarçado,


Digno vos julgará de reverência,
E a vós, Ódio, por homem de consciência,
Vendo-vos tão sesudo e tão pesado.

Dous a dous, três a três, quatro a quatro,


Entram, de flamas tácitas ardendo,
Astutos Paladiões em simples Tróias.

Quem enganas, ó Mundo, em teu teatro?


A mim não, pelo menos, que estou vendo
Dentro do vestuário estas tramóias.

CADA UM É FADO DE SI MESMO

Mas adonde irei eu, que este não seja,


Se a causa deste ser levo comigo?
E se eu próprio me perco, e me persigo,
Quem será que me poupe ou que me reja?

EM GRAÇA DUMA LIANOR Por que me hei de queixar do Tempo e Inveja,


Se eu a quis mais fiel ou mais amigo?
Por vida dos Manuéis, Fui deixado em si mesmo por castigo:
Que eu nunca vi as Raquéis, Triste serei em quanto em mim me veja.
Mas, se as Lias são assi
Como a Lia que hoje vi, Esta empresa que em mim tanto em vão tomo,
Não são feias nem cruéis. Esta sorte que em mim seu dano ensaia,
Esta dor que minha Alma em mim cativa. Fora mais que uma gota, a ser medida
Com o largo Mar de tua Graça imensa?
Vós só podeis mudar. Mas isto como?
Como? — Fazendo que a minha alma saia
De mim, senhora, e dentro de vós viva.
MEMÓRIAS E QUEIXAS

EM DIA DE CINZAS SOBRE AS


PALAVRAS: QUIA PULUIS ES Esses Mares que vejo, essas areias
Rompi, pisei, beijei hoje há sete anos:
Sete servi, sete perdi, tiranos
Melhor há de mil anos que me grita Sempre os Fados nas vozes das Sereias.
Uma voz que me diz: És pó da terra.
Melhor há de mil anos que a desterra Tantos há que, arrastando cruéis cadeias,
Um sono, que esta voz desacredita. Não guardo ovelhas, mas aguardo danos;
Das fermosas Raquéis vendo os enganos,
Diz-me o pó que sou pó e a crer me incita Sem a promessa ouvir das Lias feias.
Que é vento quanto neste pó se encerra;
Diz-me outro vento que esse pó vil erra. Sofra Jacó fiel, Labão mentindo
Qual destes a verdade solicita? Que, se dobra o servir, da alta consorte
Já não pode negar-lhe a mão devida.
Pois se mente este pó, que foi do Mundo?
Que é do gosto? Que é do ócio? Que é da idade? Ai do que espera, quando mais servindo!
Que é do vigor constante e amor jucundo? Para um tão triste fim, tão leda a Morte!
Para um tão largo amor, tão curta a vida!
Que é da velhice? Que é da mocidade?
Tragou-me a vida inteira o Mar profundo!
Ora quem diz sou pó falou verdade.

42
ANTES DA CONFISSÃO

Eu que faço? Que sei? Que vou buscando?


Conto, lugar, ou tempo, a esta fraqueza?
Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza,
Toda a vida sem mais como nem quando?

Se cuidando, Senhor, falando, obrando,


Te ofenda minha ingrata natureza,
Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza,
Donde vou? Donde venho? Donde ando?

Tudo é culpa, ó bom Deus! Não uma e uma


Descubro ante os teus olhos. Toda a vida
Se conte por delito e por ofensa.

Mas que fora de nós, se esta, se alguma,


43

D. TOMÁS DE NORONHA
A UNS NOIVOS, QUE SE FORAM RECEBER, Que importa ao crédito vosso
LEVANDO ELE OS VESTIDOS EMPRESTADOS,
Fechardes, todos os dias,
E INDO ELA MUITO DOENTE E CHAGADA
A porta às Ave-Marias,
Saiu a noiva muito bem trajada, Se abris ao Padre-nosso?
Saiu o noivo muito bem trajado,
O noivo em tudo muito conchegado,
A noiva em tudo muito conchagada.

Ela uma anágua muito bem bordada,


Ele um capote muito bem bordado,
Do mais do noivo tudo de emprestado,
Do mais da noiva tudo de emprastada.
AO CONDE DE LINHARES QUE, MATANDO
Folgamos todos os amigos seus
EM ÁFRICA UM LEÃO, SE LHE FIZERAM
De ver o noivo assim com tanto brio, MUITAS POESIAS EM LOUVOR, QUE
De ver a noiva assim com tantos brios. VENDO-AS O AUTOR FEZ ESTE

Disse-lhe o cura, então: Confio em Deus,


E respondeu o noivo: E eu confio,
E respondeu a noiva: E eu com fios. SONETO

PRAGAS SE CHORAR MAIS


Matou o Senhor Conde de Linhares
POR UMA DAMA CRUEL
Um leão; por que tudo se publique,
Mui grande sonetada o testifique,
Não sossegue eu mais que um bonifrate, Vozeando-lhe vozes populares.
De urina sobre mim me vaze um pote,
As galas que eu vestir sejam picote, Vós sedes que grã presa de aduares,
Com sede me dêem água em açafate, Que vitória celebra este repique,
Que assalto em Flandres e que rota em Dique,
Se jogar um xadrez, me dêem um mate, Que expulsão de piratas desses mares!
E, jogando as trezentas, um capote,
Faltem-me consoantes para um mote, Que lanças tremulantes, vitorioso,
E sem o ser me tenham por orate, ( Qual outro já pregou ) vemos fixadas
nessas portas de Fez ou de Marrocos!
Os licores que beba sejam mornos,
Os manjares que coma sejam frios, Se fama alcançar que de valeroso,
Não passeie mais rua que a dos fornos, Rompa esquadrões de mouros às lançadas
Não faça c’um bichinho tantos cocos.
E para minhas chagas faltem fios,
Na cabeça por plumas traga cornos,
Se meus olhos por ti mais forem rios.

A UMA MULHER ACAUTELADA EM


FECHAR A POPRTA, MAS DIZIAM
ANDAVA COM O CURA.
A UMA FREIRA QUE LHE MANDOU PEDIR
MEIAS E SAPATOS PARA ENTRAR EM UMA
COMÉDIA, E VESTIDO.

Vestido, meias, sapatos Que dar vestido um poeta


Me pedis, senhora Inês, Coisa é que se nunca fez,
Para entrar numa comédia Pois só cortes de vestir
E sair num entremez. Sabe um poeta fazer.
A capa sem ser vestido,
À fé de poeta honrado, Se quiserdes vos darei,
Que ficareis desta vez, Só por deixar-vos nas mãos
Despida de todo o ponto, A capa como José.
De cabeça, perna e pés. Porém meias nem sapatos,
Por Deus que vos não darei,
Porque pedir tal vestido Que é fazer gato-sapato
A quem vestido não tem, De quem sapatos não tem.
Será deixar-vos em branco Pobre, senhora, de mim,
Vestindo-vos de papel. Pois se os sapatos vos der,
Não terei em toda a vida
Pois desta sorte vestida, Outros que meta nos pés.
De ponto em branco entrareis, E será coisa forçada
Que entrando de encamisada, Se calçado não tiver,
Em camisa entrareis mui bem. Nos Carmelitas Descalços
Professar, em que me pês.
Despida por despedida Nestes pontos dos sapatos
Praza a Deus que não fiqueis, Nem das meias me faleis,
E vos tome sem camisa Que perco o ponto em cuidar
Quem vos tomar por mulher. Nas pontas de vosso pé.
De meias podeis andar
Buscai, senhora, outro amante, Com quem as meias vos der,
Que tal vestido vos dê, Que eu não dou por não dar meias
Porque vos não quer vestida, Nem meias natas a el-rei.
Quem só despida vos quer. Lá vos havei com o trino,
Pedi-lhe, senhora Inês,
Vestido nunca peçais Que vos vista e que vos calce
A quem amor vos tiver, Como marido e mulher.
Que Amor como anda despido Com botas ou borzeguins
Não dá vestido a ninguém. Entrai no vosso entremez,
Que, calçando desta sorte,
Assim que estais enganada Calçareis ao português.
Se cuidais, senhora Inês, E se não nessa comédia
De alguns destes meus vestidos Entrar em pernas podeis,
Fazer roupa de francês. Representando descalça
A figura de Moisés.
Vestido não quero dar-vos, E não torneis a pedir-me
Nem vestido meu tereis, Coisa que valha um vintém,
Que para vestir um santo Que o pedir é despedir-me
Despir outro não convém. Para todo sempre, amém.

44
APÓLOGO DA MORTE
TRISTE REMÉDIO O MAL DE MUITOS

Vi eu um dia a Morte andar folgando


Eu vi rir esta fonte; e deste rio Por um campo de vivos que a não viam.
A verdura regada, ser inveja Os velhos, sem saber o que faziam,
Da que mais verde entre esmeraldas seja; A cada passo nela iam topando.
Hórrido o bosque, o prado vi sombrio.
Na mocidade os moços confiando,
Vejo chorar a fonte, e que de frio Ignorantes da Morte, a não temiam.
O rio pára, o prado se despeja: Todos cegos, nenhuns se lhe desviam:
Seca a verdura; a neve é só sobeja, Ela a todos com o dedo os vai contando.
O triste inverno assombra o claro estio.
Então quis disparar, e os olhos cerra:
Ora se servirá de ser vingado Tirou e errou. Eu, vendo seus empregos,
Ver quão mal da mudança se assegura Tão sem ordem, bradei: Tem-te homicida!
A fonte, o rio, o bosque, o estio, o prado.
Voltou-se e respondeu: Tal vai de guerra;
Ai de mim, que me chega a sorte dura Se vós todos andais comigo cegos,
A querer que alivie o meu cuidado Que esperais que convosco ande advertida?
Por exemplos de alheia desventura!

DESGRAÇA, INVEJA DE TUDO

NEGAÇÃO DO AMOR
Junto do manso Tejo, que corria ( Anônimo do Séc. XVII )
Para o Mar, que nos braços o esperava,
Jaz um Pastor, que no semblante dava Quem cuida haver amor vive enganado,
Mostras da dor que o coração cobria. Engana-se quem tem tal pensamento,
São cuidados de amor torres de vento,
Falava o gesto quanto n’alma havia, Que enfim o vento leva este cuidado.
Que, quiçá por ser muito, ela o calava:
Mas, vencido do mal, que o atormentava, Fundei-me no amor, fiquei frustrado,
Sem licença do mal, assim dizia: Que em tudo falso é seu fundamento;
Não há no mundo amor, que tenha assento,
Corre alegre e soberbo, ó doce Tejo. E todo o bem da terra é bem sonhado.
Pois vives sem fortuna, de que esperes
Que encaminhe teu passo a teu desejo. É cego para o bem, como bem o cega,
E para o mal sutil, e cauteloso,
Vás, e tornas. E irás como vieres. Traidor ao coração, que se lhe entrega.
Ditoso tu, que vês o que eu não vejo!
Ditoso tu, que vás adonde queres. Fugi, homens, fugi deste aleivosa,
Que trata com rigor que se lhe chega,
Fugi, que quem mais foge é venturoso.
45
46

FRANCISCO DE VASCONCELOS COUTINHO


COMPARANDO O SEU AMOR AO FÊNIX

Tu, Fênix, tu do amor doce traslado,


Companheiro em meus males peregrino,
Pois, se em fogo se acaba o teu destino,
Em chamas me atormenta o meu cuidado.

Tu te podes queixar de um triste fado,


Eu me queixarei de um Deus Menino,
Pois tu, por desgraçado, e eu por fino,
Acabas incendido, eu abrasado.

Mas oh! que as tuas ânsias são pequenas


À vista do martírio em que discorro,
Porque renasces em morrendo apenas;

E, servindo-te as penas de socorro,


Tu renasces do fogo em tendo penas,
Eu porque muito peno, em chamas morro.

ANDRÉ NUNES DA SILVA


NA VITÓRIA QUE D. SANCHO MANUEL, CONDE DE VILA FLOR,
ALCANÇOU DE D. JOÃO DE ÁUTRIA, FILHO DE FILIPE IV DE CASTELA

(soneto de versos de Camões)

Faz contra Lusitânia vir Castela


O filho de Filipe nesta parte,
Fervendo-lhe no peito o duro Marte
Das soberbas e várias gentes dela.

Quando dá a grande e súbita procela


Um português mandado logo parte,
Treme a bandeira, voa o estandarte,
Com manha, esforço, e com benigna estrela.

Eis se ajunta o soberbo castelhano


Por que levasse avante o seu desejo,
Tomando aquele prêmio e doce glória;

Mas nas mãos vai cair do lusitano


Sancho, de esforço e de ânimo sobejo,
Que causa inda será de larga história.
47

ANTÔNIO SERRÃO DE CASTRO


(1610-1686?)

A UMA MOÇA VENDENDO CAMOEZAS


A UMA DAMA CHAMADA GRÁCIA
Para a feira vai Luiza
MUITO INTERESSEIRA Com seu balaio à cabeça,
Todo enramado de louro
Grácia, tão interesseira E cheio de camoezas.
Sois como os vossos amores, Leva saia de cilício,
Que alcançar vossos favores Também jubão branco leva,
Sente-o a bolsa e a algibeira. Que serve o jubão de branco
Não sejais dessa maneira, Sobre os dedos pendurados
Que é pior que ser ingrata; Levava os punhos da renda;
E pois vossa graça mata Tão valentona caminha
E sois de graças tesouro, Que teme o bairro de vê-la.
Não vos dei, Grácia, por ouro; Lá no meio do Rossio
Dai-vos, Grácia, gratis data. Levanta a voz mui serena
Como se aprendera solfa:
— Eu já tenho camoezas!
A voz tão divina e grave,
FREI ANTÔNIO DAS CHAGAS A voz tão divina e bela,
Os galantes se alvoroçam
E ferve a bulha na feira.
A SANTA MARIA MADALENA Deixam todos as boninas
Só por ver esta açucena;
De noite a Madalena vai segura, Em um momento cercada
Passa por homens de armas sem temor, Se viu esta fortaleza.
Tanto elevada vai no seu amor Os requebros que lhe dizem
Que não atende a quanto se aventura. São balas de grandes peças,
Mas no muro de seu peito
Indo buscar a vida à sepultura, Acham grande resistência.
Quando não achou nela a seu Senhor, Uns apreçavam a fruta,
Com suspiros, com lágrimas, com dor Outros tiram da algibeira
Movia a piedade a pedra dura. Às mãos cheias os tostões,
A alqueires as moedas.
— Suave Esposo meu, todo o meu bem — Mas Luiza mui de espaço
Os olhos no sepulcro, começou Alevantando a voz bela,
— Quem vos levou, Senhor, donde vos De quando em quando repete:
tinha? — Eu já tenho camoezas!
Onde amor atira as flechas.
Quem vos levou, Senhor, onde vos tem?
Torne-me [meu] Senhor quem mo levou
Ou leve com seu corpo esta alma minha.
SÉCULO XVIII

Correia Garção
Abade de Jazente
Filinto Elísio
Nicolau Tolentino
Marquesa de
Alorna
Bocage
49
CORREIA GARÇÃO
( 1724-1772 )

Quem de meus versos a lição procura,


Os farpões nunca viu de Amor insano,
Nem sabe quanto custa um vil engano
Traçado pela mão da formosura.

Se o peito não tiver de rocha dura,


Fuja de ouvir cantar tamanho dano,
Que a desabrida voz do desengano 3
O mais firme semblante desfigura.

Olhe que há de chorar, vendo patente, Infeliz, onde estou? São estas brenhas,
Em tão funesta e lacrimosa cena, Estes montes adonde Circe mora?
O cadafalso infame e sanguinoso. Ó Fortuna cruel, enganadora,
Que veloz para o dano me despenha!
Verá levado à morte um inocente:
E condenado a vergonhosa pena Como hei de caminhar por estas penhas
O mais fiel amor, mais generoso. Se é tudo horror o que descubro agora?
Cego fui: quem me vira daqui fora
Antes que tu, tirana Circe, venhas!

2 Mas já a horrenda porta está patente,


Treme a serra ao revolver dos guícios,
Não se paga de versos a saudade, E o sangue congelou-se de repente.
Nem de relva se farta o manso gado;
O campo, que do gelo foi crestado, De que sai a matar vem dando indícios:
Não torna a rebentar co’ a tempestade. Todos beijam a terra humildemente,
Porém ela despreza os sacrifícios.
Se queres que te creiam, se é verdade
Que este Círio te deve algum cuidado,
Não estejas em casa encoquinhado:
Foge, foge da mísera Cidade.

Estes campos te esperam com mil flores;


A Fonte Santa seus cristais desata;
Sem ti o nosso pranto se não seca.

Desprezas o agasalho de pastores?


Pois de se aparecer aqui não trata,
Fazemo-lhe seqüestro na rebeca.

Ode VI

(Ao senhor Manuel


Pereira de Faria, sócio da Arcádia)

Vê, Sílvio, como sacudindo o inverno


As negras asas, solta a grossa chuva!
Cobre os outeiros das erguidas serras
Úmida névoa!

Na longa costa brada o mar irado Eis que zunindo furacões horríveis,
Sobre os cachopos; borbotões de espuma A porta arranca dos moídos gonzos:
Erguem as ondas; as cruéis cabeças Corre assustado dum fuzil que o cega
N’água negrejam. À luz vermelha!

O frio Noto, rígio soprando, Viu espalhadas víboras de fogo;


Dobra os ulmeiros, os currais derruba; Ouviu, bramando, retumbar no vale
E o gado junto, pávido balando, Os longos ecos do trovão, que abala
Une os focinhos. Os altos montes!

Com duro frio Coridon tremendo, Vê-se partida do voraz corisco


A roxa face no surrão esconde; A rica proa de um baixel britano,
Co’ os altos socos quebra a presa neve, Não lhe valendo cem canhões soberbos,
Corre à cabana. Que Nantes teme.

Ali ajunta de podadas vides Rotas tremulam as reais bandeiras;


Os secos molhos; assoprando acende Rompem as ondas o infeliz costado;
Pobre fogueira, aonde as mãos aquenta Inútil pranto, tristes ais levanta
Co’ os rotos filhos. A lassa gente.

Pulam nos olhos lágrimas, que enxuga Agora, dize, quem seguro vive,
Na grossa manga, reprimindo forte Amado Sílvio, da cruel Fortuna,
Acerbas dores, reflexões pesadas, Se as altas torres, se as humildes choças
Tristes memórias! A morte pisa?

50
Os áureos tetos, dóricas colunas,
Quadros antigos, marchetados leitos,
Servem de Espectros, Górgonas, Cerastes,
Na fatal hora.
51

PAULINO ANTÔNIO CABRAL - Abade de Jazente


(1719-1789)
1 3

PRURIDOS DA NOBREZA MEGALOMANIA PORTUGUESA

Eu não creio que a nossa Fidalguia Quem te viu, quem te vê, ó Portugal!
Procedesse de Adão, que era um coitado, Tão bárbaro, grosseiro, tosco e vil!
Um paisano, que nunca andou calçado, Hoje estás mais polido, e mais civil,
Um pobre, que de peles se vestia. À custa do teu próprio cabedal.

Não teve armas, brasões; nem possuía Algum dia poupavas teu real,
Por prova de ser nobre algum Morgado; E fizeste já caso de um ceitil;
O foro nunca viu; nem foi tratado, Hoje gastas cruzados mil a mil,
Como agora se faz, com Senhoria. Inda que a renda seja tal ou qual.

Eva inda foi pior, pois na Escritura Lançou a astuta França o seu anzol;
Se não trata de Dom, nem de Excelência, E, armando-se com isca de ouropel,
Nem se diz se nas danças fez figura. Te vai pondo na espinha, e tudo ao sol.

E assim venho a tirar por conseqüência, Mas, enquanto não chega o São Miguel,
Que, estando hoje a nobreza em tanta altura, Se não houver dinheiro, irá ao rol;
Não traz dele, nem dela a descendência. Vai tu sempre fazendo o teu papel.

2 4

DESPREZO PELO MUNDO PASTORES ENAMORADOS

Não desejo chegar a tal grandeza, Já corre viração, o sol declina;


Que aduladores mis cerquem meus lados, E da mosca importuna livre o gado
Nem palácios magníficos doirados, Deixa o curral, e vai pastar no prado
Ricas alfaias, nem polida mesa. Ao som da frauta, que Silvandro afina.

Não me lembram heranças nem riqueza, Acolá vem Damênia, ela imagina
Que me obrigue a pôr nela meus cuidados; Que ninguém lhe percebe o seu cuidado;
Não ocupar honrosos magistrados, Olhem a pobre, vejam o coitado
Nem outras coisas vãs que o mundo preza. Como mostram a dor que os amofina!

Quisera só fugir de tanta estima, Eu também, como os outros amadores


Livrar-me deste pélago profundo, Em tempo dos grilhões fiz louco alarde,
Mudar da natureza que me anima: Por isso tenho dó dos meus pastores.

Subir da lua ao globo alto e rotundo, Mas já, graças a Deus, menos cobarde
E depois de apanhar-me lá de cima, Zombo do Amor, e em vez dos seus favores,
Desatar os calções, cagar no mundo. Guardo os meus bois, enquanto dura a tarde.
52

FILINTO ELÍSIO
( 1734-1819 )

Já vem a Primavera desfraldando


Pelos ares as roupas perfumadas,
E os rios vão, nas águas jaspeadas,
Os frondíferos troncos retratando.

Vão-se as neves dos montes debruçando 3


Em tortuosas serpes argentadas;
Pelas veigas, o gado, alcatifadas, Uns lindos olhos, vivos, bem rasgados,
A esmeraldina felpa vai tosando. Um garbo senhoril, nevada alvura;
Metal de voz que enleva de doçura,
Riem-se os céus, revestem-se as campinas; Dentes de aljôfar, em rubi cravados;
E a Natureza as melindrosas cores
Esmera na pintura das boninas. Fios de ouro, que enredam meus cuidados,
Alvo peito, que cega de candura;
Ah! Se assim como brotam novas flores, Mil prendas; e (o que é mais que formosura)
Se remoça todo o orbe... das ruínas Uma graça, que rouba mil agrados;
Dos zelos renascessem meus amores!
Mil extremos de preço mais subido
Encerra a linda Márcia, a quem of’reço
2 Um culto que nem dela inda é sabido:

Estende o manto, estende, ó noite escura, Tão pouco de mim julgo que a mereço,
Enluta de horror feio o alegre prado; Que enjoá-la não quero, de atrevido,
Molda-o bem co’ pesar de um desgraçado, Co’as penas, que por ela em vão padeço.
A quem nem feições lembram da ventura.

Nubla as estrelas, Céu, que esta amargura,


Em que se agora ceva o meu cuidado,
Gostará de ver tudo assim trajado
Da negra cor da minha desventura.

Ronquem roucos trovões, rasguem-se os ares,


Rebente o mar em vão roucos rochedos,
Solte-se o Céu em grossas lanças de água.

Consolar-me só podem já pesares;


Quero nutrir-me de arriscados medos,
Quero saciar da mágoa a minha mágoa.
53

NICOLAU TOLENTINO
( 1740-1811 )
1 3

A SUA ALTEZA A UMA VELHA PRESUMIDA

Nesta cansada triste poesia Debalde sobre a face encarquilhada


Vedes, senhor, um novo pretendente, Pendendo louros bugres emprestados,
Onde aborrece o que estima toda a gente, Dás inda ao louco amor teus vãos cuidados,
Que é ter no mundo cargos e valia. Em carmins enganosos confiada.

Sobre alto trono há anos que regia Postiça formosura em vão comprada,
De dócil povo turba obediente; Não torna atrás os anos apressados:
Mas quer antes sentar-se humildemente Nem alvos dentes de marfim talhados,
Num banco da real secretaria; Tornam em nova a trêmula queixada.

Qual modesto capucho reverendo, De ti no mesmo tempo que do Gama


Que em fim de guardania trienal Cantou mil bens a deusa trombeteira,
Passa a porteiro as chaves recebendo. A que os baixos poetas chamam Fama:

Em mim conheço vocação igual: Porém sempre ficaste em boa esteira;


E co’ a mesma humildade hoje pretendo Porque, se já não prestas para dama,
Passar de mestre a ser oficial. Inda serves mui bem como terceira.

2 4

À PRINCESA REAL ESTANDO EM BANHO CEGUEIRA DE AMOR

Ninfas do Tejo já por mim cantadas, Fiei-me nas promessas que afetavas
Nossa augusta princesa está presente; Nas lágrimas fingidas que vertias,
Pedi-lhe, que honre a plácida corrente, Nas ternas expressões que me fazias,
E as águas ficarão mais prateadas. Nessas mãos que as minhas apertavas.

Diante de seus pés ajoelhadas, Talvez, cruel, que, quando as amimavas,


Em justo acatamento reverente, Que eram doutrem na idéia fingirias,
Serenem vossas mãos a clara enchente, E que os olhos banhados mostrarias
E as frias águas corram temperadas. De pranto, que por outrem derramavas.

Sobre as ondas as frentes levantando, Mas eu sou tal, ingrata, que, inda vendo
Ao tempo em que as douradas tranças belas Os meus tristes amores mal seguros,
Brandamente lhe fordes enxugando, De amar-te nunca, nunca me arrependo.

Dizei-lhe que sustento irmãs donzelas, Ainda adoro os olhos teus perjuros,
Outras viúvas; e ide-lhe lembrando, Ainda amo a quem me mata, ainda acendo
Que o bem que me fizer é feito a elas. Em aras falsas, holocaustos puros.

54
MARQUESA DE ALORNA
( 1750-1839 )
Por meu mal tantos anos conservadas
É tempo de perder-vos, já que ousadas
Abusastes de um longo sofrimento.

Fugi; cá ficará meu pensamento


1 Meditando nas horas malogradas,
E das tristes, presentes e passadas,
Retratar a tristeza em vão procura Farei para as futuras argumento.
Quem na vida um só pesar não sente,
Porque sempre vestígios de corrente Já não me iludirá um doce engano,
Hão de apr’cer por baixo da pintura. Que trocarei ligeiras fantasias
Em pesadas razões do desengano.
Porém eu, infeliz, que a desventura
O mínimo prazer me não consente, E tu, sacra Virtude, que anuncias,
Em dizendo o que sinto, a mim somente A quem te logra, o gosto soberano,
Parece que compete esta figura. Vem dominar o resto dos meus dias.

Sinto o bárbaro efeito das mudanças,


Dos pesares o mais cruel pesar, 4
Sinto do que perdi tristes lembranças;
Eu cantarei um dia da tristeza
Condenam-me a chorar e a não chorar; Por uns termos tão ternos e saudosos,
Sinto a perda total das esperanças Que deixem aos alegres invejosos
E sinto-me a morrer sem acabar. De chorarem o mal que lhes não pesa.

Abrandarei das penhas a dureza,


2 Exalando suspiros tão queixosos,
Que jamais os rochedos cavernosos
Bem como se perturba a clara fonte Os repitam da mesma natureza.
Na agitação contínua da corrente,
A minha alma sossego não consente, Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
Por mais que nos meus ais ânsias desconte. Ave, fonte, montanha, flor, corrente,
Comigo hão de chorar de amor enredos.
De cuidado em cuidado, monte em monte,
Me leva este pesar que o peito sente; Mas ah! que adoro uma alma que não sente!
Sempre diviso aflita, descontente, Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
Os princípios da luz pelo horizonte. Que eu derramo os meus ais inutilmente.

De que vem este mal? Um mal tão claro


Vem de um vago sentir que na alma pesa... 5
Amor! Serás comigo sempre avaro?
A UM MOCHO
Amor em mim é filho da tristeza! ( cantiga )
Eu sinto o coração ao desamparo!...
Pune, oh Deus, pelas leis da Natureza! Triste pássaro, que tens?...
Esse tom dos teus gemidos
Não é tom que desconheçam
Os corações afligidos.

Tu calas-te quando Febo


3 Dispensa com fausto o dia,
E só confias das sombras
DIZENDO-ME UMA PESSOA QUE EU NUNCA
A tua melancolia.
HAVIA DE SER FELIZ

Esperanças de um vão contentamento, Também eu, como tu, gemo,


E fujo da claridade,
Que importa pouco aos humanos Naquela torrente
A minha cruel saudade? Que vai despedida
Encontro, assustada,
Mas quando a severa Hecate A imagem da vida.
As sombras negras evoca, Do peito, em que as dores
Todo o silêncio do dia Já iam cessar,
Em suspiros se me toca. Revoa a tristeza,
E torna a penar.
Solto então o freio ao pranto,
Ao desafogo abandono 8
Essas horas que os ditosos
Entregam a doce sono. O PINTASSILGO E O SAPO
(apólogo)
Nem eu nem tu procuramos
A piedade dos humanos. Lustroso um astro volante
Uma compaixão estéril Rompeu das úmidas relvas:
Entra na lista dos danos. Com seu vôo rutilante
Alegrava à noite as selvas.
6
Mas de vizinho terreno
Como está sereno o Céu! Saiu de uma cova um sapo,
Como sobe mansamente E despediu-lhe um sopapo
A Lua resplandecente, Que o ensopou em veneno.
E esclarece este jardim!
Ao morrer exclama o triste:
Os ventos adormeceram; -- Que tens tu de que me acuses?
Das frescas águas do rio Que crime em meu seio existe?
Interrompe o murmúrio Respondeu-lhe: -- Porque luzes?
De longe o som de um clarim.

Acordam minhas idéias,


Que abrangem a Natureza,
E esta noturna beleza
Vem meu estro incendiar.

Mas se à lira lanço a mão,


Apagadas esperanças
Me apontam cruéis lembranças,
-- E choro em vez de cantar.
55

A SOZINHA NO BOSQUE

Sozinha no bosque
Com meus pensamentos,
Calei as saudades,
Fiz trégua a tormentos.
Olhei para a lua,
Que as sombras rasgava,
Nas trêmulas águas
Seus raios soltava.
BOCAGE
(1765-1805)

Olha, Marília, as flautas dos pastores


1 Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão n’altura, Vê como ali, beijando-se os Amores
Triste de facha, o mesmo de figura, Incitam nossos ósculos ardentes;
Nariz alto no meio e não pequeno; Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura, Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Bebendo em níveas mãos por taça escura Ora nas folhas a abelhinha pára,
De zelos infernais letal veneno; Ora nos ares, sussurrando, gira.

Devoto incensador de mil deidades Que alegre campo! Que manhã tão clara!
(Digo de moças mil) num só momento, Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira
E somente no altar amando os frades; Mais tristeza que a noite me causara.

Eis Bocage, em quem luz algum talento:


Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento. 4

Glosando o mote: “Nada se pode comparar contigo”

2 O ledo passarinho, que gorjeia,


D’alma exprimindo a cândida ternura,
O rio transparente, que murmura,
Ó tranças de que Amor prisões me tece, E por entre pedrinhas serpenteia;
Ó mãos de neve, que regeis meu Fado!
Ó tesouro! Ó mistério! Ó par sagrado, O Sol, que o céu diáfano passeia,
Onde o menino alígero adormece! A Lua, que lhe deve a formosura,
O sorriso da Aurora alegre e pura,
Ó ledos olhos, cuja luz parece A rosa, que entre os Zéfiros ondeia;
Tênue raio do Sol! Ó gesto amado,
De rosas e açucenas semeado, A serena, amorosa Primavera,
Por quem morrera esta alma, se pudesse! O doce autor das glórias que consigo,
A Deusa das paixões e de Citera:
Ó lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores Quanto digo, meu bem, quanto não digo,
Talvez o próprio Júpiter suspira! Tudo em tua presença degenera,
Nada se pode comparar contigo.
Ó perfeições! Ó dons encantadores!
De quem sois? Sois de Vênus? É mentira:
Sois de Marília, sois dos meus Amores.

56 5

3
Chorosos versos meus desentoados
Sem arte, sem beleza e sem brandura, Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
Urdidos pela mão da Desventura, O Tejo adormeceu na lisa areia;
Pela baça Tristeza envenenados, Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas costumado.
Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura: Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte
Se os ditosos vos lerem sem ternura, Que o fio, com que está minha alma presa
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados. À vil matéria lânguida, me corte.

Não vos inspire, ó versos, cobardia, Consola-me este horror, esta tristeza,
Da sátira mordaz o furor louco, Porque a meus olhos se afigura a Morte
De maldizente voz a tirania. No silêncio total da Natureza.

Desculpa tendes, se valeis tão pouco,


Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco. 8

Marília, nos teus olhos buliçosos


6 Os Amores gentis seu facho acendem,
A teus lábios voando, os ares fendem
Terníssimos desejos sequiosos.
Fiei-me nos sorrisos da Ventura,
Em mimos feminis, como fui louco! Teus cabelos subtis e luminosos
Vi raiar o prazer, porém tão pouco Mil vistas cegam, mil vontades prendem,
Momentâneo relâmpago não dura. E em arte aos de Minerva se não rendem
Teus alvos, curtos dedos melindrosos.
No meio agora desta selva escura,
Dentro deste penedo húmido e oco, Reside em teus costumes a candura,
Pareço, até no tom lúgubre e rouco, Mora a firmeza no teu peito amante,
Triste sombra a carpir na sepultura. A razão com teus risos se mistura;

Que estância para mim tão própria é esta! És dos Céus o composto mais brilhante:
Causais-me um doce e fúnebre transporte, Deram-se as mãos Virtude e Formosura
Áridos matos, lôbrega floresta! Para criar tua alma e teu semblante.

Ah! não me roubou tudo a negra Sorte:


Inda tenho este abrigo, inda me resta
O pranto, a queixa, a Solidão, a Morte.

57 Já se afastou de nós o Inverno agreste


Envolto nos seus húmidos vapores.
7 A fértil Primavera, a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste.

Varrendo os ares, o sutil Nordeste


Já sobre o coche de ébano estrelado Os torna azuis: as aves de mil cores
Deu meio giro a Noite escura e feia: Adejam entre Zéfiros e Amores,
Que profundo silêncio me rodeia E toma o fresco Tejo a cor celeste.
Neste deserto bosque, à luz vedado!
Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza, Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Destas copadas árvores o abrigo. Da penúria cruel no horror me vejo,
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Deixa louvar da corte a vã grandeza: Também carpindo estou, saudoso amante;
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza! Ludíbrio, como tu, da Sorte dura,
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas ... oh tristeza!


10 Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

Ó vós, que lamentais de Elmano a Sorte,


Crendo na escura terra o corpo frio,
E os Manes já sulcando o mudo rio
Na barca imensa de geral transporte, 12

Sabei que o doce, inevitável corte


Lhe foge da existência ao ténue fio, Meu ser evaporei na lida insana
E que seria em vós dever mais pio Do tropel de paixões, que me arrastava,
Chorar-lhe a vida que chorar-lhe a morte. Ah! Cego eu cria, ah! Mísero eu sonhava
Em mim, quase imortal, a essência humana.
Existindo agoniza um desgraçado;
Quem lágrima nas cinzas lhe derrama, De que inúmeros sóis a mente ufana
Parece que o queria atormentado; Existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava,
Vive, mas pela Morte Elmano chama, Ao mal que a vida em sua origem dana.
Com suspiros Elmano implora ao Fado
Que seja a voz de agoiro a voz da fama. Prazeres, sócios meus, e meus tiranos,
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus... Oh Deus! Quando a morte a luz me roube,


Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

58

11

Camões, grande Camões, quão semelhante


Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar c’o sacrílego Gigante;

Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a hora


A esta parte do mundo, que desmaia.
13 Oh! Venha... Oh! Venha, e trêmulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Liberdade, onde estás? Quem te demora? Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo
Quem faz que o teu influxo em nós não caia? Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
Por que (triste de mim!) por que não raia E em fingir, por temor, empenha estudo.
Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso nume tu és, e glória, e tudo, 16
Mãe do génio e prazer, ó Liberdade!

Incultas produções da mocidade


Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
14 Que elas buscam piedade e não louvores.

Ponderai da Fortuna a variedade


Sobre estas dura, cavernosas fragas, Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Que o marinho furor vai carcomendo, Notai dos males seus a imensidade,
Me estão negras paixões n’alma fervendo A curta duração de seus favores;
Como fervem no pego as crespas vagas.
E se entre versos mil de sentimento
Razão feroz, o coração me indagas, Encontrardes alguns, cuja aparência
De meus erros a sombra esclarecendo, Indique festival contentamento,
E vás nele (ai de mim!) palpando e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas. Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cego a meus males, surdo a teu reclamo, Cantados pela voz da Dependência.
Mil objectos de horror co’a ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?


Mandas-me não amar: eu ardo, eu amo,
Dizes-me que sossegue: eu peno, eu morro.

17

59 Ó retrato da Morte! Ó Noite amiga,


Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
15 De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga,


Dá-lhes pio agasalho no teu manto,
Olhos suaves, que em suaves dias Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Vi nos meus tantas vezes empregados, Dorme a cruel, que a delirar me obriga.
Vista, que sobre esta alma despedias
Deleitosos farpões, no Céu forjados; E vós, ó cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Santuários de Amor, luzes sombrias; Inimigos, como eu, da claridade!
Olhos, olhos da cor de meus cuidados,
Que podeis inflamar as pedras frias, Em bandos acudi aos meus clamores:
Animar os cadáveres mirrados; Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.
Troquei-vos pelos ventos, pelos mares,
Cuja verde arrogância as nuvens toca,
Cuja horríssona voz perturba os ares; 60
Troquei-vos pelo Mal, que me sufoca; 18
Troquei-vos pelos ais, pelos pesares:
Oh câmbio triste! Oh deplorável troca!
Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu Estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento Eu me arrependo; a língua quase fria
Leve me torne sempre a terra dura. Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento; Outro Aretino fui... A santidade
Musa!... Tivera algum merecimento Manchei!... Oh! Se me creste, gente impia,
Se um raio da razão seguisse pura! Rasga meus versos, crê na Eternidade!

19
20

Importuna Razão, não me persigas;


Cesse a ríspida voz que em vão murmura; O CÃO E A CADELA
Se a lei de Amor, se a força da ternura Em verso alexandrino
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas;
Tinha de uma cadela um cão fome canina,
Se acusas os mortais, e os não obrigas, Ele bom perdigueiro, ela de casta fina.
Se conhecendo o mal não dás a cura, Mil foscas lhe fazia o terno maganão,
Deixa-me apreciar minha loucura, Mas gastava o seu tempo, o seu carinho em vão.
Importuna Razão, não me persigas. Dando no chichisbéu dentada e mais dentada,
A fêmea parecia uma cadela honrada
É teu fim, teu projecto encher de pejo E incapaz de ceder às pretensões de amor;
Esta alma, frágil vítima daquela Mas o amante infeliz enfim foi sabedor
De que a mesma em que via acções tão desabridas
Que, injusta e vária, noutros laços vejo.
Era c’um torpe cão fagueira às escondidas.
Se és sagaz, meu leitor, talvez que tenhas visto
Queres que fuja de Marília bela,
Cadelas de dois pés que também fazem isto.
Que a maldiga, a desdenhe, e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela.

21

O PAPAGAIO E A GALINHA
Loquaz papagaio “Eu em alma
Secava a goela, Sou ave exc
Soltando mil gritos Não pasmas
A uma janela. Falar como
61
Olhou para a rua
Por onde vagava “Não pasmo
Galinha de poupa Dos galos a
Que depenicava. vilão, carioc
mordaz de u

Na língua das aves


C’um ar superior
Lhe deu estes chascos “Da língua q
O vão palrador: Bazófia con
Que importa
Se não a pe
“Deveras, vizinha,
Que podes campar,
Co’a prenda galante
De cacarejar! “Com isso te
No meu par
Os tolos só
“Deixando ironias, O que ouvem
Sempre és cousa pouca,
Não tens outro chiste
Senão esta touca.

“Depois de defunta
Só causas prazer,
Para te comerem
Te dão de comer.
SÉCULO XIX

Almeida Garrett
João de Deus
Antero de Quental
Gomes Leal
Guerra Junqueiro
Cesário Verde
Antônio Nobre
Eugênio de Castro
Camilo Pessanha
63
ALMEIDA GARRETT
( 1799-1854 )

IGNOTO DEO BARCA BELA

D. D. D. Pescador da barca bela,


Onde vás pescar com ela,
Que é tão bela,
Creio em ti, Deus: a fé viva Oh pescador?
De minha alma a ti se eleva.
És: – o que és não sei. Deriva Não vês que a última estrela
Meu ser do teu: luz... e treva, No céu nublado se vela?
Em que – indistintas! – se envolve Colhe a vela,
Este espírito agitado, Oh pescador!
De ti vem, a ti devolve.
O nada a que foi roubado Deita o lanço com cautela,
Pelo sopro criador Que a sereia canta bela...
Tudo o mais, o há de tragar. Mas cautela,
Só vive do eterno ardor Oh pescador!
O que está sempre a aspirar
Ao infinito donde veio. Não se enrede a rede nela,
Beleza és tu, luz és tu, Que perdido é remo e vela
Verdade és tu só. Não creio Só de vê-la,
Senão em ti; o olho nu Oh pescador!
Do homem não vê na terra
Mais que a dúvida, a incerteza, Pescador da barca bela,
A forma que engana e erra. Inda é tempo, foge dela,
Essência! a real beleza, Foge dela
O puro amor, o prazer Oh pescador!
Que não fatiga e não gasta...
Só por ti os pode ver
O que inspirado se afasta, GOZO E DOR
Ignoto Deus, das ronceiras,
Vulgares turbas: despidos Se estou contente, querida,
Das coisas vãs e grosseira Com esta imensa ternura
Sua alma, razão, sentidos, De que me enche o teu amor?
A ti se dão, em ti vida, – Não. Ai! não; falta-me a vida,
E por ti vida têm. Eu, consagrado Sucumbe-me a alma à ventura;
A teu altar, me prostro O excesso do gozo é dor.
E a combatida
Existência aqui ponho, aqui votado Dói-me a alma sim; e a tristeza
Fica este livro – confissão sincera Vaga, inerte e sem motivo,
Da alma que a ti voou e em ti só ‘spera. No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo
Porque a vida me parou.

É que não há ser bastante


Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida – ou a razão.
Que se perdera dos céus
E terra a terra voava.
AS MINHAS ASAS A seta que lhe acertava
Partira de arco traidor,
Eu tinha umas asas brancas, Porque as penas que levava
Asas que um anjo me deu, Não eram penas de amor.
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu. O anjo caiu ferido,
E se viu aos pés rendido
Do tirano caçador.
– Eram brancas, brancas, brancas,
De asa morta e sem ‘splendor
Como as do anjo que mas deu: O triste peregrinando
Eu inocente como elas, Por estes vales de dor,
Por isso voava ao céu. Andou gemendo e chorando.
Veio a cobiça da terra.
Vinha para me tentar; Vi-o eu, o anjo dos céus,
Por seus montes de tesouros O abandonado de Deus,
Minhas asas não quis dar. Vi-o, nessa tropelia
– Veio a ambição, co'as grandezas, Que o mundo chama alegria,
Vinham para mas cortar Vi-o a taça do prazer
Davam-me poder e glória Pôr ao lábio que tremia...
Por nenhum preço as quis dar. E só lágrimas beber.

Porque as minhas asas brancas, Ninguém mais na terra o via,


Asas que um anjo me deu, Era eu só que o conhecia...
Em me eu cansando da terra Eu que já não posso amar!
Batia-as, voava ao céu. Quem no havia de salvar?
Eu, que numa sepultura
Me fora vivo enterrar?
Mas uma noite sem lua
Loucura! ai, cega loucura!
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra, Mas entre os anjos dos céus
Ia voar para elas, Faltava um anjo ao seu Deus;
– Deixei descair os olhos E remi-lo e resgatá-lo,
Do céu alto e das estrelas... Daquela infâmia salvá-lo
Vi entre a névoa da terra, Só força de amor podia.
Outra luz mais bela que elas. Quem desse amor há de amá-lo,
Se ninguém o conhecia?
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu, Eu só. – E eu morto, eu descrido,
Para a terra me pesavam, Eu tive o arrojo atrevido
Já não se erguiam ao céu. De amar um anjo sem luz.
Cravei-a eu nessa cruz
Cegou-me essa luz funesta Minha alma que renascia,
De enfeitiçados amores... Que toda em sua alma pus,
Fatal amor, negra hora E o meu ser se dividia,
Foi aquela hora de dores!
Porque ele outra alma não tinha,
Outra alma senão a minha...
– Tudo perdi nessa hora
Tarde, ai! tarde o conheci,
Que provei nos seus amores
Porque eu o meu ser perdi,
O doce fel do deleite, E ele à vida não volveu...
O acre prazer das dores. Mas da morte que eu morri
Também o infeliz morreu.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu
Pena a pena me caíram... OS CINCO SENTIDOS
Nunca mais voei ao céu.
São belas – bem o sei, essas estrelas,
64 Mil cores – divinais têm essas flores;
O ANJO CAÍDO Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:
Em toda a natureza
Era um anjo de Deus Não vejo outra beleza
Senão a ti – a ti! Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida – e que a vida destrói –
Divina – ai! sim, será a voz que afina Como é que se veio a atear,
Saudosa – na ramagem densa, umbrosa, Quando – ai quando se há de ela apagar?
Será; mas eu do rouxinol que trina
Não oiço a melodia, Eu não sei, não me lembra: o passado,
Nem sinto outra harmonia A outra vida que dantes vivi
Senão a ti – a ti! Era um sonho talvez... – foi um sonho –
Em que paz tão serena a dormi!
Respira – n’aura que entre as flores gira, Oh! que doce era aquele sonhar...
Celeste – incenso de perfume agreste. Quem me veio, ai de mim! despertar?
Sei ... não sinto : minha alma não aspira,
Não percebe, não toma Só me lembra que um dia formoso
Senão o doce aroma Eu passei... dava o Sol tanta luz!
Que vem de ti – de ti! E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Formosos são os pomos saborosos, Que fez ela? eu que fiz? – Não no sei;
É um mimo – de néctar o racimo: Mas nessa hora a viver comecei...
E eu tenho fome e sede... sequiosos,
Famintos meus desejos NÃO TE AMO
Estão... mas é de beijos,
É só de ti – de ti! Não te amo, quero-te: o amor vem d’alma.
E eu n’alma – tenho a calma,
Macia – deve a relva luzidia A calma – do jazigo.
Do leito – ser por certo em que me deito. Ai! não te amo, não.
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir outras carícias, Não te amo, quero-te: o amor é vida.
Tocar noutras delícias E a vida – nem sentida
Senão em ti – em ti! A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não.
A ti! ai, a ti só os meus sentidos
Todos num confundidos, Ai! não te amo, não; e só te quero
Sentem, ouvem, respiram, De um querer bruto e fero
Em ti, por ti deliram. Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.
Em ti a minha sorte,
A minha vida em ti; Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
E quando venha a morte, Quem ama a aziaga estrela
Será morrer por ti. Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

Em ti a minha sorte, E quero-te, e não te amo, que é forçado,


De mau feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto


65 Que de mim tenho espanto,
ESTE INFERNO DE AMAR De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.
Este inferno de amar – como eu amo! –
Quem mo pôs aqui n’alma... quem foi?

CASCAIS
E os ventos despregados
Acabava ali a terra Sopravam rijos na rama,
Nos derradeiros rochedos, E os céus turvos, anuviados,
A deserta, árida serra O mar que incessante brama...
Por entre os negros penedos Tudo ali era braveza
Só deixa viver mesquinho De selvagem natureza.
Triste pinheiro maninho.
Aí na quebra do monte,
Entre uns juncos mal medrados, Se o visse... não quero vê-lo
Seco o rio, seca a fonte, Aquele sítio encantado;
Ervas e matos queimados, Certo estou não conhecê-lo,
Aí nessa bruta serra, Tão outro estará mudado,
Aí foi um céu na terra. Mudado como eu, como ela,
Que a vejo sem conhecê-la!
Ali sós no mundo, sós,
Santo Deus! como vivemos! Inda ali acaba a terra,
Como éramos tudo nós Mas já o céu não começa;
E de nada mais soubemos! Que aquela visão da serra
Como nos folgava a vida Sumiu-se na treva espessa,
De tudo o mais esquecida! E deixou nua a bruteza
Desta agreste natureza.
Que longos beijos sem fim,
Que falar dos olhos mudo! VOZ E AROMA
Como ela vivia em mim,
Como eu tinha nela tudo, A brisa vaga no prado,
Minha alma em sua razão, Perfume nem voz não tem;
Meu sangue em seu coração! Quem canta é o manto agitado,
O aroma é da flor que vem.
Os anjos aqueles dias
Contaram na eternidade: A mim tornem-me essas flores
Que essas horas fugidias, Que uma a uma eu vi murchar,
Séculos na intensidade, Restituam-me os verdores
Por milênios marca Deus Aos ramos que eu vi secar...
Quando dá aos que são seus.
E em torrentes de harmonia
Ai! sim foi a tragos largos, Minha alma se exalará,
Longos, fundos que a bebi Esta alma que muda e fria
Do prazer a taça: – amargos Nem sabe se existe já.
Depois... depois os senti
Os travos que ela deixou... OLHOS NEGROS
Mas como eu ninguém gozou.
Por teus olhos negros, negros,
Ninguém: que é preciso amar Trago eu negro o coração,
Como eu amei – ser amado De tanto pedir-lhe amores...
Como eu fui; dar, e tomar E eles a dizer que não.
Do outro ser a quem se há dado,
Toda a razão, toda a vida E mais não quero outros olhos,
Que em nós se anula perdida. Negros, negros como são;
Que os azuis dão muita esp’rança,
66 Mas fiar-me eu neles, não.
Ai, ai! que pesados anos
Tardios vieram! Só negros, negros os quero;
Oh! que fatais desenganos Que, em lhes chegando a paixão,
Ramo a ramo, a desfizeram Se um dias disserem sim...
A minha choça na serra, Nunca mais dizem que não.
Lá onde se acaba a terra!
67
JOÃO DE DEUS
(1830-1896)

Amores, amores,
Deixai-los dizer;
AMORES, AMORES Se Deus me deu flores,
Foi para as colher:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Não sou eu tão tola, Tenho um mais pequeno,
Que caia em casar; Tenho outro maior.
Mulher não é rola,
Que tenha um só par:
Eu tenho um moreno, DESALENTO
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior. Ao Dr. F. Ferraz de Macedo
Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou, Trago uma cisma comigo:
Desfaz-se-me o pejo, Não torna o meu terno amigo!
E o gosto ficou? Triste de mim, que farei!
Um deles por graça Cabelo, já te não ligo ...
Deu-me um, e depois, Nunca mais te ligarei!
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois. Lá se ficou em Castela ...
Vede que graça aquela!
Abraços, abraços, Ou lá mo detém el-rei!
Que mal nos farão? Toucas da Serra da Estrela,
Se Deus me deu braços, Já nunca mais vos porei!
Foi essa a razão:
Um dia que o alto Se um ar alegre assemelho,
Me vinha abraçar, Ai amigas, sem conselho,
Fiquei-lhe de um salto Nem juízo, que farei!
Suspensa no ar. Já me não assomo ao espelho ...
Nem jamais me assomarei!
Vivendo e gozando,
Que a morte é fatal, Ricas prendas! Todas elas
E a rosa em murchando Me deu ele: sim, donzelas,
Não vale um real: Que não vo-lo negarei!
Eu sou muito amada, Ah meu cinto de fivelas,
E há muito que sei Nunca mais te cingirei!
Que Deus não fez nada
Sem ser para quê.
ADEUS

A ti que em astros desenhei nos céus,


A ti que em nuvens desenhei nos ares,
A ti que em ondas desenhei nos mares,
A ti, bom anjo, o derradeiro adeus!

Parto! Se um dia (que é possível, flor!) LAMENTO


Vires ao longe negrejar um vulto,
Sou eu que aos olhos desta gente oculto
O nosso imenso desgraçado amor.

Talvez as feras ao ouvir meus ais, Senhor, Senhor, que um ai nunca me ouviste
As brutas selvas, as montanhas brutas,
Côncavas rochas, solitárias grutas, Na minha dor!
Mais se condoam, se comovam mais! Ai vida, vida minha, como és triste!

E lá daquelas solidões se aqui Senhor, Senhor!


Chegar gemido que uma pedra estale,
Que um cedro vibre, que um carvalho abale, Quando eu nasci o sol cobriu o rosto,
Sou eu que o solto por amor de ti ...
Mal que eu o vi;
De ti, que em folha que varrer o ar, Tingiu-se o céu de sangue, e era sol-posto
Em rama, em sombra que bandeie a aragem,
De fito sempre nessa cara imagem Quando eu nasci!
Verei sorrindo, sentirei passar!
Pela manhã a rosa era mais alva
De ti que em astros desenhei nos céus,
De ti que em nuvens desenhei nos ares, Que a alva lã!
De ti que em ondas desenhei nos mares, E o cravo desmaiou à estrela de alva
E a quem envio o derradeiro adeus!
Pela manhã!

Ao longe o mar se ouviu, leão piedoso,

Um ai soltar;
Pelas praias se ouviu gemer ansioso,

Ao longe o mar!

Ninguém as viu cair, ondas de espuma

Que o chão sumiu;


E as lágrimas caíam-me uma a uma,

Ninguém as viu!

Oh rouxinol, a ti nasce-te o dia

Ao por do sol!
Mostre-me a campa a luz que te alumia,

Oh! rouxinol!
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ANTERO DE QUENTAL
( 1842-1891 )
Aquela que eu adoro não é feita
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas,
PEQUENINA Da antiga Vénus de cintura estreita...

Eu bem sei que te chamam pequenina Não é a Circe, cuja mão suspeita
E ténue como o véu solto na dança, Compõe filtros mortais entre ruínas,
Que és no juízo apenas a criança, Nem a Amazona, que se agarra às crinas
Pouco mais, nos vestidos, que a menina ... Dum corcel e combate satisfeita...

Que és o regato de água mansa e fina, A mim mesmo pergunto, e não atino
A folhinha do til que se balança, Com o nome que dê a essa visão,
O peito que em correndo logo cansa, Que ora amostra ora esconde o meu destino...
A fronte que ao sofrer logo se inclina...
É como uma miragem que entrevejo,
Mas, filha, lá nos montes onde andei, Ideal, que nasceu na solidão,
Tanto me enchi de angústia e de receio Nuvem, sonho impalpável do Desejo...
Ouvindo do infinito os fundos ecos,

Que não quero imperar nem já ser rei


Senão tendo meus reinos em teu seio ABNEGAÇÃO
E súbditos, criança, em teus bonecos!

Chovam lírios e rosas no teu colo!


A M. C. Chovam hinos de glória na tua alma!
Hinos de glória e adoração e calma,
Meu amor, minha pomba e meu consolo!

No céu, se existe um céu para quem chora, Dê-te estrelas o céu, flores o solo,
Céu para as mágoas de quem sofre tanto... Cantos e aroma o ar e sombra a palma,
Se é lá do amor o foco, puro e santo, E quando surge a lua e o mar se acalma,
Chama que brilha, mas que não devora... Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!

No céu, se uma alma nesse espaço mora, E nem sequer te lembres de que choro...
Que a prece escuta e enxuga o nosso pranto... Esquece até, esquece, que te adoro...
Se há Pai, que estenda sobre nós o manto E ao passares por mim, sem que me olhes,
Do amor piedoso... que eu não sinto agora...
Possam das minhas lágrimas cruéis
No céu, ó virgem! findarão meus males: Nascer sob os teus pés flores fiéis,
Hei-de lá renascer, eu que pareço Que pises distraída ou rindo esfolhes!
Aqui ter só nascido para dores.

Ali, ó lírio dos celestes vales!


Tendo seu fim, terão o seu começo,
Para não mais findar, nossos amores.

A UM CRUCIFIXO

I
IDEAL
Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente, Por ti é que a poeira movediça
O horizonte futuro e viste, em tua mente, De astros e sóis e mundos permanece;
Um alvor ideal banhar estes espaços! E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.
Por que morreu sem eco o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente? Por ti, na arena trágica, as nações
Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que Buscam a liberdade, entre clarões;
descrente E os que olham o futuro e cismam, mudos,
Arrojaras de novo à campa os membros lassos...
Por ti, podem sofrer e não se abatem,
Agora, como então, na mesma terra erma, Mãe de filhos robustos, que combatem
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma, Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário...

E agora, como então, viras o mundo exangue,


E ouviras perguntar – de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário?
DESPONDENCY

II
Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Não se perdeu teu sangue generoso, Que a leve o ar sem fim da soledade
Nem padeceste em vão, quem quer que foste, Onde as asas partidas a levaram...
Plebeu antigo, que amarrado ao poste
Morreste como vil e faccioso. Deixá-la ir, a vela que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Desse sangue maldito e ignominioso Quando a noite surgiu da imensidade,
Surgiu armada uma invencível hoste... Quando os ventos do Sul se levantaram...
Paz aos homens e guerra aos deuses! – pôs-te
Em vão sobre um altar o vulgo ocioso... Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
Do pobre que protesta foste a imagem: Á morte queda, à morte silenciosa...
Um povo em ti começa, um homem novo:
De ti data essa trágica linhagem. Deixá-la ir, a nota despendida
Dum canto extremo... e a última esperança...
Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto, E a vida... e o amor... deixá-la ir, a vida!
Lembraremos, herdeiros desse povo,
Que entre nossos avós se conta Cristo.

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HINO À RAZÃO

Razão, irmão do Amor e da Justiça,


Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre, só a ti submissa.
NOX

A Fernando Leal

O PALÁCIO DA VENTURA Noite, vão para ti meus pensamentos,


Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia
E inúteis tantos ásperos tormento...
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura, Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Paladino do amor, busco anelante Que se exalam da trágica enxovia...
O palácio encantado da Ventura! O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns tormentos...
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura... Oh! antes tu também adormecesses
E eis que súbito o avisto, fulgurante Por uma vez, e eterna, inalterável,
Na sua pompa e aérea formosura! Caindo sobre o Mundo, te esquecesses.

Com grandes golpes bato à porta e brado: E ele, o mundo, sem mais lutar nem ver,
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado Dormisse no teu seio inviolável,
Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais! Noite sem termo, noite do Não-ser!

Abrem-se as portas d’ouro, com fragor...


Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!
LACRIMAE RERUM

A Tommazzo Cannizzarro
MAIS LUZ!
Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
A Guilherme de Azevedo Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Amem a noite os magros crapulosos, Confidente e intérprete da Sorte!
E os que sonham com virgens impossíveis,
E os que se inclinam, mudos e impassíveis, Aonde vão teus sóis, como coorte
À borda dos abismos silenciosos... De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
Tu, lua, com teus raios vaporosos, E em vão busca a certeza que o conforte?
Cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis,
Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis, Mas, na pompa do imenso funeral,
Como aos longos cuidados dolorosos! Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas...
Eu amarei a santa madrugada,
E o meio-dia, em vida refervendo, É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E a tarde rumorosa e repousada. E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas...
Viva e trabalhe em plena luz: depois,
Seja-me dado ainda ver, morrendo,
O claro Sol, amigo dos heróis!

71
TESE E ANTÍTESE

I
IGNOTO DEO
Já não sei o que vale a nova ideia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, à luz da barricada,
Que beleza mortal se te assemelha, Como bacante após lúbrica ceia!
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que reflectes em mim teu brilho ingente, Sanguinolento o olhar se lhe incendeia...
Lá como sobre o mar o sol se espelha? Aspira fumo e fogo embriagada...
A deusa de alma vasta e sossegada
O Mundo é grande – e esta ânsia me aconselha Ei-la presa das fúrias de Medeia!
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente, Um século irritado e truculento
Mas a ara só lhe encontro... nua e velha... Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obus...
Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade, Mas a ideia é num mundo inalterável,
Gota de mel em taça de venenos... Num cristalino céu, que vive estável...
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
Pura essência das lágrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, no céu ao menos!

II
MORS-AMOR

A Luís de Magalhães Num céu intemerato e cristalino


Pode habitar talvez um Deus distante,
Esse negro corcel cujas passadas Vendo passar, em sonho cambiante
Escuto em sonhos, quando a sombra desce, O Ser, como espetáculo divino:
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas, Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante...
Donde vem ele? Que regiões sagradas Enche o ar da terra o seu pulmão possante...
E terríveis cruzou, que assim parece Cá da terra blasfema ou ergue um hino...
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas? A ideia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Um cavaleiro de expressão potente, Paixões ardentes como vivos sóis!
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente, Combatei pois na terra árida e bruta,
‘Té que a revolta o remoinhar da luta,
Cavalga a fera estranha sem temor: ‘Té que a fecunde o sangue dos heróis!
E o corcel negro diz: “Eu sou a Morte!”
Responde o cavaleiro: “Eu sou o Amor!”

72
SOLEMNIA VERBA
NA MÃO DE DEUS

Disse ao meu coração: Olha por quantos À Exma. Sra. D. Vitória de O. M.


Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura fria e austera, Na mão de Deus, na sua mão direita,
Os ermos que regaram nossos prantos... Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Pó e cinzas, onde houve flor e encantos! Desci a passo e passo a escada estreita.
E noite, onde foi luz e primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera, Como as flores mortais, com que se enfeita
Semeador de sombras e quebrantos! A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
Porém o coração, feito valente A forma transitória e imperfeita.
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente, Como criança em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
Respondeu: Desta altura vejo o Amor! E atravessa, sorrindo vagamente,
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor. Selva, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

OCEANO NOX

MORS LIBERATRIX
A A . de Azevedo castelo Branco

A Bulhão Pato
Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento Na tua mão, sombrio cavaleiro,
Que busca e hesita, inquieto e intermitente, Cavaleiro vestido de armas pretas,
Brilha uma espada feita de cometas,
Junto do mar sentei-me tristemente, Que rasga a escuridão, como um luzeiro.
Olhando o Céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento Caminhas no teu curso aventureiro,
Que saía das coisas, vagamente... Todo envolto na noite que projectas ...
Só o gládio de luz com fulvas betas
Que inquieto desejo vos tortura, Emerge do sinistro nevoeiro.
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais? – “Se esta espada que empunho é coruscante
(Responde o negro cavaleiro andante),
Mas na imensa extensão, onde se esconde É porque esta é a espada da Verdade.
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais... Firo mas salvo... Prostro e desbarato,
Mas consolo... Subverto, mas resgato...
E, sendo a Morte, sou a liberdade.”

73
OS CATIVOS Tu que procuras? que visão sagrada
Te acena da solidão onde se esconde?
– Porém o vento passa e só responde:
Encostados às grades da prisão, A noite, a escuridão, o abismo, o nada! –
Olham o Céu os pálidos cativos
Já com raios oblíquos, fugitivos,
Despede o sol um último clarão. E os cativos suspiram novamente.
Como antigos pesares mal extintos,
Como vagos desejos indistintos,
Entre sombras, ao longe, vagamente, Surgem do escuro os astros, lentamente...
Morrem as vozes na extensão saudosa.
Cai do espaço, pesada, silenciosa,
A tristezas das coisas, lentamente. E fitam-se, em silêncio indecifrável,
Contemplam-se de longe, misteriosos,
Como quem tem segredos dolorosos,
E os cativos suspiram. Bandos de aves Como quem ama e vive inconsolável...
Passam velozes, passam apressados,
Como absortos em íntimos cuidados,
Como absortos em pensamentos graves. E dizem, os cativos: Que problemas
Eternos, primitivos, vos atraem?
Que luz fitais no centro donde saem
E dizem os cativos: Na amplidão A flux, em jorro, as intuições supremas?
Jamais se extingue a eterna claridade...
A ave tem o voo e a liberdade...
Por que esperais? nessa amplidão sagrada
O homem tem os muros da prisão!
Que soluções esplêndidas se escondem?
– Porém, os astros tristes só respondem:
A noite, a escuridão, o abismo, o nada!
Aonde ides? qual é vossa jornada?
À luz? à aurora? à imensidade? aonde?
– Porém o bando passa e mal responde:
Assim a noite passa. Rumorosos
À noite, à escuridão, ao abismo, ao nada! –
Sussurram os pinhais meditativos.
Encostados às grades, os cativos
Olham o céu e choram silenciosos.
E os cativos suspiram. Surge o vento,
Surge e perpassa esquivo e inquieto,
Como quem traz algum pesar secreto,
Como quem sofre e cala algum tormento...

E dizem os cativos: Que tristezas,


Que segredos antigos, que desditas,
Caminheiro de estradas infinitas,
Te levam a gemer pelas devassas?

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GOMES LEAL
(1848-1921)
Sozinho no meu quarto retirado,
Certas horas do dia calorosas,
A SELVAGEM Quando as flechas do Sol queimam as rosas,
Eu cismo no seu corpo esbelto e amado!

Às vezes, como os grandes fantasistas, As curvas do seu colo acetinado,


Sinto o desejo intenso das viagens ... Mais fino que o das rolas amorosas,
E ir sozinho habitar entre os selvagens, Dar-me-iam as noites voluptuosas
Como, num ermo, os ásperos trapistas. De que falam os doutos do Pecado.

As grandes, vastas, límpidas paisagens, Mas, no entanto, lá fora o Sol adusto


Que sabem ver os imortais artistas ... Queima as campinas e o aldeão robusto;
Teriam novos tons, novas imagens, Voam abelhas a colher o mel,
Longe do mundo avaro e as suas vistas!
E eu cheio de tristeza e de ansiedade,
Com uma virgem – flor dessas montanhas – Continuo a cismar – como um abade
Entre os mil sons das árvores estranhas, Na Virgindade olímpica e cruel.
Dos coqueiros, bambus ... fora feliz!...

Dormiria em seus braços nus, lustrosos, À JANELA


E ouviria, entre uns beijos voluptuosos,
— Tintinar-lhe as argolas do nariz.
Altas horas da noite, quando a rua
É deserta da onda crapulosa,
AS CATEDRAIS No seu caminho em meio, vagarosa,
—Abro a minha janela, a ver a Lua.

Como vos amo ver, ó catedrais sozinhas, Como uma branca divindade nua,
A recortar o azul das noites consteladas... Ela avança celeste, e, à luz ditosa,
Erguidos coruchéus, místicas andorinhas Qual copo de cristal que enche uma rosa,
— Ó grandes catedrais do sol ensangüentado! O goivo do Pecado em luz flutua.
Como vos amo ver, pombas alvoroçadas,
Flutua, e é nestas horas recolhidas,
Ogivas ideais, anjos de puras linhas,
Que eu me ergo então às cúpulas subidas,
Catacumbas sem luz, aonde embalsamadas
Dormem, de mãos em cruz, as santas e as rainhas!
Donde se avista o místico Ideal...

Em vão olhais o Céu, sagradas epopéias! E rio, e admiro o vulgo obcecado,


Flores de renda e luz, de incenso e aroma cheias, Que cuida ver, nas beiras dum telhado,
Aves celestiais, banhadas da manhã! — Abrir-se, num craveiro, a Flor do Mal ...

Em vão santos e reis, ó monges dos desertos,


Em vão, em vão rezais, sobre os livros abertos,
— O Céu, por que chorais, é uma ficção cristã!

HORA DO MEIO-DIA
O VISIONÁRIO OU COR E SOM

A Eça de Queirós III

I O vermelho deve ser como o som


Eu tenho ouvido as sinfonias das plantas De uma trombeta ...
UM CEGO
Eu sou um visionário, um sábio apedrejado, Alucina-me a Cor! – A Rosa é como a Lira,
Passo a vida a fazer e a desfazer quimeras, A Lira pelo tempo há muito agrinaldada,
Enquanto o mar produz o monstro azulejado E é já velha a união, a núpcia sagrada,
E Deus, em cima faz as verdes Primaveras. Entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

Se a terra, às vezes, brota a flor que não inspira,


Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado,
E erro estrangeiro ou homem de outras eras, A teatral camélia, a branca enfastiada,
Talvez por um contrato irônico lavrado Muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada
Como a perdida cor de alguma flor que expira ...
Que fiz e já não sei noutras sutis esferas.
Há plantas ideais de um cântico divino,
A espada da Teoria, o austero Pensamento,
Irmãs do oboé, gêmeas do violino,
Não mataram em mim o antigo sentimento,
Há gemidos no azul, gritos no carmesim ...
Embriagam-me o Sol e os cânticos do dia...
A magnólia é uma harpa etérea e perfumada.
E obedecendo ainda a meus velhos amores,
E o cacto, a larga flor, vermelha, ensangüentada,
Procuro em toda a parte a música das cores,
— Tem notas marciais, soa como um clarim.
— E nas tintas da flor achei a Melodia.
IV
II
J’ai vu les Espèces et les Formes,
J’ai vu l’Esprit des Choses
. BALZAC, Seraphita
Mas aquela que adoro, a hierática duquesa,
Bem sei que a planta engana e a Natureza mente,
Nobre como as reais senhoras de Brabante,
E que a flecha do Sol nos pode assassinar, Como a hei de pintar igual e semelhante,
Que a Peste torna o azul sereno e resplendente, Se não há Som nem Cor em toda a Natureza!
E que a pérola sai das infecções do Mar.
Seu colo tem do lírio a rígida firmeza,
Tudo é Matéria, Força, a Lei onipotente! Seu amor é um céu católico e distante
E enquanto o lírio incensa e azula-se o luar, Eleva como a Cor, soa como a Beleza!
Impassível talvez, em baixo, surdamente,
A terra cria a flor que me há de envenenar. Nunca lhe ousei falar, nem sei se amor lhe inspiro.
Mas quando enfim morrer, então, como um suspiro
Bem sei! – mas, na floresta imensa das Teorias, Meu seio florirá, em vez do meu amor ...
Eu amo divagar, ouvindo as melodias
Que as plantas musicais dão aos astros e aos Céus. Numa flor que porá talvez sobre a janela,
Uma flor rubra e negra, em forma de uma estrela,
— Ah! eu vejo Jesus no coração das rosas! — Como uma sinfonia obscura de terror.
— Só eu vejo as leais flores melodiosas!
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— E o lírio é para mim a hóstia onde está Deus.
77

GUERRA JUNQUEIRO
( 1950-1923)
FINIS PATRIAE Bendita a enxada, mais o braço
(extratos) Que ao cavador abriu a cova!

I Olhai, olhai, vão em manadas


Os emigrantes ...
FALAM CHOUPANAS DE CAMPONESES: Uivos de dó pelas estradas,
Junto dos cais, nas amuradas
Pulula a infância na pobreza!... Das naus distantes ...
Campos maninhos!...
E os berços cheios ... Que tristeza! Velhinhos, noivas e crianças,
Como é que Deus seca a devesa, Senhor, Senhor!
Fazendo os ninhos?! Ao voar das últimas esp’ranças
Crispam as mãos, mordendo as tranças,
Vento, por que é que nos arrasas Loucas de dor!
Num turbilhão?!
Na enxerga fria tremem asas, Lá vão levados, vão levados,
No lar extinto faltam brasas, Pelo alto mar ...
Nas arcas negras não há pão! Adeus, ó noites nos eirados ...
Adeus, ó beijos perfumados,
O gado é morto, a seara é morta, Beijos d’Agosto à luz do luar!...
Morta a alegria.
O sol requeima, a geada corta ... Adeus, divinos horizontes,
Anda um fantasma à nossa porta Inda a cantar nos olhos seus!
De noite e dia ... Adeus, manhãs doirando os montes!
Erva do campo, água das fontes,
Cadela tísica, sem dentes, P’ra sempre ... adeus!
Vesgo animal,
A fome d’olhos reluzentes Lá vão levados, mar sem fundo,
Uiva, chorando como os doentes Longe das noivas e dos pais!...
Num hospital ... Terras, Jesus! nos fins do mundo ...
Voltarão? Quando, mar profundo?
Dobram os sinos, dobram os sinos ... Jamais! Jamais!
Luto agoireiro!...
Enterram velhos e meninos ... Morreu a vinha, não dá uvas ...
Dobram os sinos, dobram os sinos ... É morto o velho camponês ...
Canta o coveiro! Pedras levadas pelas chuvas ...
Teto a cair ... órfãs e viúvas
Canta o coveiro e canta o cura ... Luto e nudez!
Canto funéreo!
Pobres! Dormi na sepultura,
Que a vossa cama é menos dura
No cemitério!

Dormi, dormi!... sono d’arminho,


Reparador!
O catre é bom: tábuas de pinho ...
Não precisais lençóis de linho,
Nem cobertor!...

Dormi, ó mortos de cansaço,


Dormi, dormi na cama nova!
Os astros choram pelo espaço
FALAM CASEBRES DE PESCADORES:
II
Mar pavoroso, mar tenebroso,
Profundo mar!
FALAM POCILGAS DE OPERÁRIOS: Fúrias eternas, fúrias eternas ...
Nas ondas negras há cavernas
Com monstros verdes a ulular ...
Crianças rotas, sem abrigo ...
A enxerga é pobre e a roupa é leve ... Mar soluçante, mar trovejante,
Quarto sem luz, mesa sem trigo ... Noturno mar!
Quem é que bate ao meu postigo? Ventos e frios, ventos e frios ...
— A Neve!
Nas ondas torvas há navios
A usura rouba a luz e o ar Com marinheiros a cantar ...
E o negro pão que a gente come ... Mar de tormenta, mar que rebenta,
Inverno vil ... Parou o tear ... Convulso mar!
Quem vem sentar-se no meu lar? Noites inteiras, noites inteiras
— A Fome! Nas praias tristes há lareiras
Com mães e noivas a rezar ...
Lume apagado e o berço em pranto
Na terra úmida, Senhor! Mar vagabundo, mar furibundo,
A mãe sem leite ... e o pai a um canto ... Soturno mar!
Quem vem além, torva de espanto? Ais e tumultos, ais e tumultos ...
— A Dor! Nas ondas roucas andam vultos
De marinheiros a boiar ...
Álcool! Veneno que conforta,
Monstro satânico e sublime! ... Mar infinito, mar infinito,
Beber! beber ... e a mágoa é morta!... Maldito mar!
Quem é que espreita à nossa porta? Noite e procelas, noite e procelas ...
— O Crime! Entre lençóis, restos de velas,
Há orfãozinhos a chorar! ...
Doze anos já, e seminua!
A mãe, que é dela?... O pai no ofício ...
Corpo em botão d’aurora e lua!...
Quem canta além naquela rua?
— O Vício!

A fome e o frio, a dor e a usura,


O vício e o crime .. ignóbil sorte!
Ó vida negra! Ó vida dura!...
Deus! quem consola a desventura?
— A Morte!

78

III
79

Cesário Verde
(1855-1886)

DESLUMBRAMENTOS Que hão-de acabar os bárbaros reais;


E os povos humilhados, pela noite,
S. Para a vingança aguçam os punhais.

Milady, é perigoso contemplá-la E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,


Quando passa aromática e normal, Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala, Eu hei-de ver errar, alucinadas,
Com seus gestos de neve e de metal. E arrastando farrapos – as rainhas!

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,


Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade, CRISTALIZAÇÕES
Ir impondo toilettes complicadas! …
A Bettencourt Rodrigues, meu amigo
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril, Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
A sua voz que tem um timbre de oiro Vibra uma imensa claridade crua.
E o seu nevado e lúcido perfil! De cócaras, em linha os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Ah! Como me estonteia e me fascina … Calçam de lado a lado a longa rua.
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina, Como as elevações secaram do relento,
E tão alta e serena como a Morte! … E o descoberto sol abafa e cria!
A frialdade exige o movimento;
Eu ontem encontrei-a, quando vinha, E as poças de água, como um chão vidrento,
Britânica, e fazendo-me assombrar; Reflectem a molhada casaria.
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar! Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
O seu olhar possui, num jogo ardente, Luzem, aquecem na manhã bonita,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo; Uns barracões de gente pobrezita,
Como um florete, fere agudamente, E uns quintalórios velhos, com parreiras.
E afaga como o pêlo dum regalo!
Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo, Tomam por outra parte os viandantes;
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos, E o ferro e a pedra – que união sonora! –
O modo diplomático e orgulhoso Retinem alto pelo espaço fora,
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos. Com choques rijos, ásperos, cantantes.

E enfim prossiga altiva como a Fama, (continua)


Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,


Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos. Voam-lhe estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.

Mas cuidado, milady, não se afoite, A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que espessos forros! Numa das regueiras
Acamam-se as japonas, os coletes; Donde ela vem! A actriz que eu tanto cumprimento;
E eles descalçam com os picaretes, E a quem, à noite, na plateia, atraio
Que ferem lume sobre pederneiras. Os olhos lisos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento,
E neste rude mês, que não consente as flores, Caminha agora para o seu ensaio.
Fundeiam, como esquadra em fria paz,
As árvores despidas. Sóbrias cores! E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores Como lajões. Os bons trabalhadores!
Atiram terra com as largas pás. Os filhos das lezírias, dos montados:
Os das planícies, altos, aprumados;
Eu julgo-me no Norte, ao frio – o grande agente! – Os das montanhas, baixos, trepadores!
Carros de mão, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente; Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Vê-se a cidade, mercantil, contente: Furtiva a tiritar em suas peles,
Madeiras, águas, multidões, telhados! Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste dezembro enérgico, sucinto,
Negrejam os quintais; enxuga a alvenaria; E nestes sítios suburbanos, reles!
Em arco, sem as nuvens flutuantes,
O céu renova a tinta corredia; Como animais comuns, que uma picada esquente,
E os charcos brilham tanto que eu diria Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Ter ante mim lagoas de brilhantes! Encaram-na sanguínea, brutamente;
E ela vacila, hesita, impaciente
E engelhem muito embora, os fracos, os tolhidos, Sobre as botinas de tacões agudos.
Eu tudo encontro alegremente exacto.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos, Porém, desempenhando o seu papel na peça,
E tangem-me, excitados, sacudidos, Sem que inda o público a passagem abra,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto! O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem Com seus pezinhos rápidos, de cabra!
De tão lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem; Lisboa, Inverno de 1878.
Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;


Dois assobiam, altas as marretas
Possantes, grossas, temperadas de aço;
E um gordo, o mestre, com ar ralasso
E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!


Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores descansam as enxadas, CONTRARIEDADES
E cospem nas calosas mãos gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo. A Coelho de Carvalho

80 Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;


Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Povo! No pano cru rasgado das camisas Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Uma bandeira penso que transluz! Consecutivamente.
Com ela sofres, bebes, agonizas:
Listrões de vinho lançam-lhe divisas, Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz! Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca, E os ângulos agudos.
Surge um perfil direito que se aguça;
E ar matinal de quem saiu da toca, Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma figura fina desemboca, Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Toda abafada num casaco à russa. Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora. Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica. Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Lidando sempre! E deve a conta à botica! Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Mal ganha para sopas... Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias, Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias, Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
Um folhetim de versos. E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo? E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
Mais duma redacção, das que elogiam tudo, A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Me tem fechado a porta. Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras excepções merece-me o epigrama.


Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,


Mas sim, por deferência a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,


Se forem publicar tais cousas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.
NUM BAIRRO MODERNO

A Manuel Ribeiro
81
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa, A larga rua macadamizada.
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie Rez-de-chaussé repousam sossegados,
Do que escrever em prosa. Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
A adulação repugna aos sentimento finos; Ou entre a rama dos papéis pintados,
Eu raramente falo aos nossos literatos, Reluzem, num almoço, as porcelanas.
E apuro-me em lançar originais e exactos,
Os meus alexandrinos... Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso! Sem muita pressa, para o meu emprego,
Ignora que a asfixia a combustão das brasas, Aonde agora quase sempre chego
Não foge do estendal que lhe humedece as casas, Com as tonturas duma apoplexia.
E fina-se ao desprezo!
E rota, pequenina, azafamada,
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova. Notei de costas uma rapariga,
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Que no xadrez marmóreo duma escada, Como vendera a sua fresca alface
Como um retalho de horta aglomerada, E dera o ramo de hortelã que cheira,
Pousara, ajoelhando, a sua giga. Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
“Não passa mais ninguém! ... Se me ajudasse?! ...”
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos; Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia, E, pelas duas asas a quebrar,
Se ela se curva, esgadelhada, feia, Nós levantámos todo aquele peso
E pendurando os seus bracinhos brancos. Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
Do patamar responde-lhe um criado:
“Se te convém, despacha; não converses. “Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”
Eu não dou mais.” E muito descansado, E recebi, naquela despedida,
Atira um cobre ignóbil, oxidado, As forças, a alegria, a plenitude,
Que vem bater nas faces duns alperces. Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.
Subitamente, – que visão de artista! –
Se eu transformasse os simples vegetais, E enquanto sigo para o lado oposto,
À luz do sol, o intenso colorista, E ao longe rodam umas carruagens,
Num ser humano que se mova e exista A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Cheio de belas proporções carnais?! Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando, (continua)
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
82 Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,


Oiço um canário – que infantil chilrada! –
Lidam ménages entre as gelosias,
E eu recompunha, por anatomia,
E o sol estende, pelas frontarias,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Seus raios de laranja destilada.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E pitoresca e audaz, na sua chita,
E nuns repolhos seios injectados.
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
As suas couves repolhudas, largas.
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos – ossos nus, da cor do leite,
E, como as grossas pernas dum gigante,
E os cachos de uvas – os rosários de olhos.
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Sobre a verdura rústica, abundante,
Nas posições de certos frutos. E entre
Duas frugais abóboras carneiras.
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como de alguém que tudo aquilo jante,
Lisboa, Verão de 1877.
Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,


Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O sol dourava o céu. E a regateira,


Todas as noites tinha uma mania
Aquela concepção vertiginosa.

Agora, há quase um mês, modernamente,


Ela tinha um furor dos mais soturnos,
Furor original, impertinente ...

Todas as noites ela, oh! sordidez!


Descalçava-me as botas, os coturnos,
E fazia-me cócegas nos pés ...

Lisboa.

83

PROH PUDOR!

Todas as noites ela me cingia


Nos braços, com brandura gasalhosa;
Todas as noites eu adormecia,
Sentindo-a desleixada e languorosa.

Todas as noites uma fantasia


Lhe emanava da fronte imaginosa;
O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL

A Guerra Junqueiro
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
I AVE-MARIAS Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Nas nossas ruas, ao anoitecer, Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
O céu parece baixo e de neblina, Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba Descalças! Nas descargas de carvão,
Toldam-se duma cor monótona e londrina. Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
Batem os carros de aluguer, ao fundo, E o peixe podre gera os focos de infecção!
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros, II - NOITE FECHADA


As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros. Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
Voltam os calafates, aos magotes, O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos; Bem raramente encerra uma mulher de «dom»!
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes. E eu desconfio, até, de um aneurisma,
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
E evoco, então, as crónicas navais: À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado! Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais! A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! E a lua lembra o circo e os jogos malabares.
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres Duas igrejas, num saudoso largo,
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda. Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Num trem de praça arengam dois dentistas; Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Um trôpego arlequim braceja numas andas; Na parte que abateu no terremoto,
Os querubins do lar flutuam nas varandas; Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas! Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
84
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar! E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre, Casas de confecções e modas resplandecem;
Nesta acumulação de corpos enfezados; Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre. Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
Partem patrulhas de cavalaria A esguia difusão dos vossos reverberos,
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos; E a vossa palidez romântica e lunar!
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria. Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Triste cidade! Eu temo que me avives Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes, Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives. E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
E mais: as costureiras, as floristas Nas barras verticais, as duas tintas. Perto,
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos; Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas. Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
E eu, de luneta de uma lente só, Flocos de pós de arroz pairam sufocadores,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados: E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
Entro na brasserie, às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó. Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
III - AO GÁS Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos “Dó da miséria! ... Compaixão de mim! ...”
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras. E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Um sopro que arripia os ombros quase nus. Meu velho professor nas aulas de latim!

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso


Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso. IV - HORAS MORTAS
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O tecto fundo de oxigénio, de ar,
As burguesinhas do Catolicismo
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Num cutileiro, de avental, ao torno, Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um forjador maneja um malho, rubramente; Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
E de uma padaria exala-se, inda quente, Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E eu sigo, como as linhas de uma pauta E os gritos de socorro ouvir estrangulados.
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, E nestes nebulosos corredores
As notas pastoris de uma longínqua flauta. Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Se eu não morresse, nunca! E eternamente Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas, Eu não receio, todavia, os roubos;
Que aninhem em mansões de vidro transparente! Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis, Amareladamente, os cães parecem lobos.
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas, E os guardas, que revistam as escadas,
Numas habitações translúcidas e frágeis. Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Ah! Como a raça ruiva do porvir, Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes E, enorme, nesta massa irregular
E pelas vastidões aquáticas seguir! De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
86
.

Mas se vivemos, os emparedados,


Sem árvores, no vale escuro das muralhas! ...

87

Antônio Nobre
( 1867-1900 )
MEMÓRIA
À minha Mãe,
ao meu Pai Aquele que partiu no brigue Boa Nova
E na barca Oliveira, anos depois voltou; Um dia, os castelos caíram do Ar!
Aquele santo (que é velhinho e já corcova)
Uma vez, uma vez, linda menina amou: As oliveiras secaram,
Morreram as vacas, perdi as ovelhas,
Tempos depois, por uma certa lua-nova, Saíram-me os Ladrões, só me deixaram
Nasci eu ... O velhinho ainda cá ficou, As velas do moinho ... mas rotas e velhas!
Mas ela disse: – “Vou ali adiante, à Cova,
Antônio, e volto já ...”E ainda não voltou! Que triste fado!
Antes fosse aleijadinho,
Antônio é vosso. Tomai lá a vossa obra! Antes doido, antes cego ...
“Só” é o poeta-nato, a lua, o santo, a cobra!
Trouxe-o dum ventre: não fiz mais do que o escrever... Ai do Lusíada, coitado!

Lede-o e vereis surgir do Poente as idas mágoas, Veio a terra, mailo seu moinho:
Como quem vê o Sol sumir-se, pelas águas, Lá, faziam-no andar as águas do Mondego,
E sobe aos alcantis para o tornar a ver! Hoje fazem-no andar as águas do Sena ...
É negra a sua farinha!
Só! Orai por ele! Tende pena!
Pobre moleiro da Saudade ...

LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO Ó minha


Terra encantada, cheia de sol,
1 Ó campanário, ó Luas-Cheias,
. Lavadeira que lavas o lençol,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Só! Ermidas, sinos das aldeias,
Ó ceifeira que segas cantando,
Ó moleiro das estradas,
Ai do Lusíada, coitado, Carros de bois, chiando ...
Que vem de tão longe, coberto de pó. Flores do campo, beiços de fadas,
Que não ama, nem é amado, Poentes de Julho, poentes minerais,
Lúgubre Outono, no mês de Abril! Ó choupos, ó luar, ó regas de Verão!
Que triste foi o seu fado!
Antes fosse ora soldado, (continua)
Antes fosse pro Brasil ...

Menino e moço, tive uma Torre de leite,


Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite, Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?
Searas que davam linho de fiar,
Moinhos de velas, como latinas, Ó padeirinhas de amassar o pão,
Que São Lourenço fazia andar ... Velhinhas na roça a fiar,
Formosas cabras, ainda pequeninas, Cabelo todo em caracóis!
E loiras vacas de maternas ancas Pescadores a pescar
Que me davam o leite de manhã, Com a linha cheia de anzóis!
Lindo rebanho de ovelhas brancas; Zumbidos de vespas, ferrões das abelhas,
Meus bibes eram de sua lã. Ó bandeiras! ó sol! foguetes! ó toirada!
Ó boi negro entre as capas vermelhas!
Antônio era o pastor desse rebanho: Ó pregões de água fresca e limonada!
Com elas ia para os Montes, a pastar, o romaria do Senhor do Viandante!
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho, Procissões com música e anjinhos!
E o pasto delas era o meu jantar ... Srs. Abades de Amarante,
E a serra a toalha, o covilhete e a sala. Com três ninhadas de sobrinhos!
Passava a noite, passava o dia
Naquela doce companhia. Onde estais? onde estais?
Eram minhas Irmãs e todas puras
E só lhes minguava a fala Ó minha capa de estudante, às ventanias!
ra serem perfeitas criaturas ... Cidade triste agasalhada entre choupais!
E quando na Igreja das Alvas Saudades Ó dobres dos poentes às Ave-Marias!
( Que era da minha Torre a freguesia ) Ó Cabo do Mundo! Moreira da Maia!
batiam as Trindades, Estrada de Santiago! Sete Estrelo!
com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me, Casas dos pobres que o luar, à noite caía ...
eu persignava-me, rezava “Ave-Maria...” Fortalezas de Lipp! Ó fosso do Castelo,
e as doces ovelhinhas imitavam-me. Amortalhado em perrexil e trepadeiras,
Onde se enroscam como esposas as lagartas!
Menino e moço, tive uma Torre de leite, Sr. Governador a podar as roseiras!
Torre sem par! Ó Bruxa do Padre, que botas as cartas!
Oliveiras que davam azeite ... Joaquim da Teresa! Francisco da Hora!
Que é feito de vós? Capelas onde o sol faz mortes, nas vidraças!
Faláveis aos barcos que andavam lá fora,
Pelo porta-voz ... Onde estais?
Arrabalde! martírio da França,
Conta-me a história da Fermosa Magalona, 2
E do Senhor de Calais,
Mais o naufrágio do vapor Perseverança,
Cujos cadáveres ainda vejo à tona ...
Georges, anda ver meu país de Marinheiros,
Ó farolim da Barra, indo de bandeiras,
O meu país de Naus, de esquadras e de frotas!
Para os vapores a fazer sinais,
Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras,
Oh as lanchas dos poveiros
Dicionário magnífico de Cores!
A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!
Alvas espumas, espumando a frágua,
Que estranho é!
Ou rebentando à noite, como flores!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
Ondas do Mar! Serras da Estrela de água,
À espera da maré,
Cheias de brigues como pinhais ...
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
Morenos mareantes, trigueiros pastores!
E quando a onda vem, fincando-o a toda a força,
Clamam todos à uma: “Agôra! agôra! agôra! “
Onde estais? Onde estais?
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar ...)
Convento de águas do Mar, ó verde Convento,
que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
Cuja abadessa secular é a Lua
Içam a vela, quando já têm mar:
E cujo Padre-capelão é o Vento!
Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,
Água salgada desses verdes poços,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Que nenhum balde, por maior, escua!
Rosário de velas, que o vento desfia,
Ó Mar jazigo de paquetes, de ossos,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:
Que o sul às vezes arrola à praia:
Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos!
Corpo de Virgem, que ainda veste a saia,
Braços de Mães, ainda a apertar braços de filhos!
Senhora Nagonia!
88
Olha acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia ...
Noiva cadáver ainda com véu ... Quem me dera ir lá!
Ossadas ainda com os mesmos fatos!
Cabeça roxa ainda de chapéu!
Pés de defunto que ainda traz sapatos!
Boquinha linda que já não canta ...
Bocas abertas que ainda soltam ais ... Senhora Daguarda!
Noivos em núpcias, ainda, aos beijos abraçados!
Corpo intacto, a boiar (talvez alguma santa ...) (Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Ó defuntos do Mar! ó roxos arrolados! Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!
Onde estais? Onde estais?
Senhora d’ajuda!
Ó Boa Nova, ermida à beira-mar, Ora pro nobis!
Única flor nessa vivalma de areais! Caluda!
Na cal, meu nome ainda lá deve estar, Sêmos pobres!
À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios!
Ó altar da Senhora, coberto de luzes! Senhora dos ramos
Ó poentes da Barra, que fazem desmaios ... Istrela do mar!
Ó Santana, ao luar, cheia de cruzes! Cá bamos!
Ó lugar do Roldão! vila de Perafita!
Aldeia de Gonçalves! Mesticosa! Parece Nossa Senhora, a andar.
Engenheiros, medindo a estrada com a fita ...
Água fresquinha da Amorosa! Senhora da Luz!
Rebolos de areia! Ó praia da Memória!
Onde o Sr. Dom Pedro, Rei-Soldado, Parece o Farol ...
Atacou, diz a História,
No dia ... não estou lembrado; Maim de Jesus!
Ó capelinha do Senhor da Areia,
Onde o Senhor apareceu a uma velhinha ... E tal qual ela, se lhe dá o Sol!
Algas! farrapos do vestido da Sereia!
Lanchas de Póvoa, que ides à sardinha, Senhor dos Passos!
Poveiros, que ides para as vinte braças, Sinhora da Ora!
Sol-por, entre pinhais ...
Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços Lá vem o Pálio e pegam ao cordão
Parecem ermidas caiadas por fora ... Honestos e morenos cavalheiros.
Altos, tão altos e enfeitados, os andores,
Senhora dos Navegantes! Parecem Torres de David, ma amplidão!
Senhor de Matuzinhos! Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!
Olha o Mordomo, à frente, o Sr. Conde,
Os mestres ainda são os mesmos dantes: Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar, Olhos leias fitos no vago ... não sei onde!
A mai-los quatro filhinhos, Os anjinhos!
Vascos da Gama que andam a ensaiar ... Vêm a suar:
Infantes de três anos, coitadinhos!
Senhora dos aflitos! Mãos invisíveis levam-nos de rastros
Martyr São Sebastião! Que eles mal sabem andar.
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão! Esta que passa é a Noite cheia de astros!
Bamos em paz! (Assim estava, em certo dia, na Judéia)
aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!)
Ó lanchas, Deus vos leve pela mão! e aquela outra é a Lua Cheia!
Ide em paz! (continua)

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,


O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados, Seus doces olhos fazem luar ...
Essa, acolá, leva na mão os Dados,
89 Mas perde tudo se vai jogar.
E esta que passa, toda de arminhos,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes
(Vê dentro o povo em êxtase, olha-a a Mãe)
“As armas e os varões assinalados ...
leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos,
criança em flor que ainda os não tem.
Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira ...
E que bonita vai a Esponja de Fel!
Como ela corre! com que força o vento a impele:
Mal ela sabe, a inocentinha,
Nas suas mãos, a Esponja deita mel:
Bamos com Deus!
Abelhas de oiro tomam-lhe a dianteira,
Lá vem a Lança! A bainha

Traz ainda o sangue da Sexta-Feira ...


Passa o último, o Sudário!
Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com ele
O Corpo de Jesus, Nosso Senhor ...
Por esse mar de Cristo ...
Oh que vermelho extraordinário!
Parece o sol-por ...
Adeus! adeus! adeus!
Que pena faz vê-lo passar em Portugal!
Ai que feridas! e não cheiram mal ...
3 E a processão passa> Preia-mar de povo!
Maré-cheia do Oceano Atlântico!
O bom povinho de fato novo,
Georges! Anda ver o meu país de romarias Nas violas de arame soluça, romântico,
E procissões! Fadinhos chorosos da su’alma beata.
Olha essas moças, olha estas Marias!
Caramba! dá-lhes beliscões! Trazem imagens da Função nos seus chapéus.
Os corpos delas, vê! são ourivesarias,
Gula e luxúria dos Manéis! Poeira opaca. Abafa-se. E , no céu, ferro e oiro,
Têm nas orelhas grossas arrecadas, O Sol em glória brilha olímpico, e de prata,
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis, Como a velha cabeça aureolada de Deus!
Ao pescoço serpentes em cordões,
E sobre os seios entre cruzes, como espadas, Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro.
Além dos seus, mais trinta corações! Passam as chocas, boas mães! Passam capinhas.
Vá! Georges, faze-te Manel! Viola ao peito,
Toca a balar! Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito, Pão-de-ló de Margaride!
Que hão de gostar! Aguinha fresca da Moirama!
Tira o chapéu, silêncio! Vinho verde a escorrer da vide!
Passa a procissão. À porta dum casal, um tísico na cama,
Olha tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo,
Estralejam foguetes e morteiros. E uma netinha com um ramo de loireiro
Enxota as moscas do moribundo.

Dança de roda mailas moças o coveiro.

Clama um ceguinho:
“Não há maior desgraça nesta vida,
que ser ceguinho!”
outro moreno mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho ...

Este sem braços, diz “que os deixou na pedreira ...


Ë esse, acolá, todo o corpinho numa chaga,
Labareda de cancros em fogueira,
Que o sol atiça, e que a gangrena apaga,
Ó Georges, vê! que excepcional cravina ...
90

Que lindos cravos para pôr na botoeira!

Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!


Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias! De pus! Olhos-fechados!
Reumáticos! Anões ! deliriuns-tremens! Quistos!

Monstros, fenômenos, aflitos, aleijados,


Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam “uma esmolinha plas alminhas
Das suas obrigações!”
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! fedem tanto: é de arrasar ...

Qu’ é dos Pintores do meu país estranho,


Onde estão eles que não vêm pintar?
O DESEJADO

Virá um dia, carregado de oiros,


Marfins e pratas que do céu herdou,
O Rei menino que se foi aos moiros,
Que foi aos moiros e ainda não voltou.
Tem olhos verdes e cabelos loiros,
Ah não se enganem, ( ainda não chegou )
Virá El Rei-Menino do Estrangeiro,
Numa certa manhã de nevoeiro ... ENTERRO DE OFÉLIA

Tem loiros os cabelos e é criança,


Tem olhos verdes de luar noturno:
Olhos verdes são olhos de esperança! Morreu. Vai a dormir, vai a sonhar ... Deixá-la!
Olhos verdes são Luas de Saturno! ( Falai baixinho: agora mesmo se ficou... )
Veio da África, mas a sua lança Como Padres orando, os choupos formam ala,
Vai pelo mundo, rezando taciturno. Nas margens do ribeiro onde ela se afogou.
Tão pobrezinho, olhai! estende a mão:
“Quem dá esmola a D. Sebastião?” Toda de branco vai, nesse hábito de opala,
Para um convento: não o que Hamlet lhe indicou,
Esperai, esperai, ó Portugueses, Mas para um outro, olhai! que tem por nome Vala,
Que ele há de vir, um dia! Esperai. Donde jamais saiu quem, lá, uma vez entrou!
Para os mortos os séculos são meses,
Ou menos que isso, nem um dia, um ai. O doce pôr do Sol, que era doido por ela,
Tende paciência! finarão revezes; Que a perseguia sempre, em palácio e na rua,
E até lá, Portugueses! trabalhai. Vede-o, coitado! mal pode suster a vela ...
Que El Rei-Menino não tarda a surgir,
Que ele há de vir, há de vir, há de vir. Como damas de honor, Ninfas seguem-lhe os /rastos,
E, assomando no céu. Sua Madrinha, a Lua,
Por ela vai desfiando as suas contas, Astros!

MENINO E MOÇO

Tombou da haste a flor da minha infância alada.


Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
Voou aos altos Céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.

Julguei que fosse eterna a luz dessa /alvorada,


E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada,
Num castelo com torres de marfim!

Mas, hoje as pombas de oiro, aves da minha infância,


Que me enchiam de lua o coração, outrora,
Partiram e no Céu evolam-se, a distância!

Debalde clamo e choro, erguendo aos Céus meus ais:


Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora,
Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais ...

91
92
EUGÊNIO DE CASTRO
(1869-1944)

CANTO SÉTIMO Às vezes, os sorrisos


Da emagrecida, loura Inês parece-lhe
Que lhe pedem perdão ajoelhados,
Constança vai morrer ... E nos olhos de Pedro vê reflexos
Há longo tempo Do grande incêndio que lhe lavra a alma ...
Que a sua pobre vida anda suspensa Ai do futuro deles! Que martírio!
Por um fio da Virgem ... Bem sabe ela Que purgatório!
Que a sua alma irá, nas mãos dum anjo,
Direita para o céu; já ouve os coros, (...)
Que em hosanas de amor hão de inflamar-se,
Entre os fumos da mirra e o movimento A noite é fria e escura:
Das verdes palmas do triunfo, quando, Constança vai morrer ...
Aos pés de Deus ajoelhar, confusa; Ninguém vela:
Tudo isso escuta e vê ... e no entretanto Fingindo-se melhor, pediu a todos
Tem triste o coração, como o dum órfão, Que a deixassem a sós, que se deitassem,
Vendo límpido o espelho, que chegara E apenas consentiu que um pagem moço,
Da mãe inerte à descorada boca ... Que de há muito a servia lealmente
Ficasse à porta da gelada câmara ...
Constança vai morrer ...
No vasto leito, sob a cobertura
Inês e Pedro Da rija tela onde se fanam lírios,
Podem amar-se enfim, amar-se às claras, Que ela bordou em dias venturosos,
Como as aves sem culpa à luz do dia. Mal se advinha o vulto do seu corpo ...

Ah! mas se acaso os pobres suspeitassem Mas eis que se ergue!


Que são eles que a matam, que é por eles Branca, seminua,
Que há tanto tempo vive agonizando, Cambaleando, hesitando e tiritando,
Ah! então, em lugar do paraíso Para o lajedo salta, enverga a túnica,
De arrebatado amor por que suspiram, Calça os leves chapins. Abre, transida,
Em rude matagal se embrenhariam, A espessa porta dum solene armário,
E morreriam ambos lacerados Mergulha as mãos num cofre, e enche a escarcela
Pelas negras panteras do remorso! Com torneses de prata e alfonsins de ouro.

Que vai ela fazer?


É essa idéia amarga que atribula Fugir com o pagem!
Os derradeiros dias de Constança ...
Ligeira brisa que, ao passar, nem mesmo Com ele fugirá! Irão p’ra longe,
Fizera balouçar leves junquilhos, Por sombrias, recônditas veredas,
A deitaria ao chão! de tal maneira Caminharão de noite, e, ao vir da aurora,
A sua grande e terna caridade Nos pinheirais se ocultarão ... Chegados
Enfraquecido tem seu corpo exangue. Que sejam à fronteira, então Constança
Mal pode respirar, mal dá um passo, Despedirá o pagem, dar-lhe-á todo,
Suas mãos e seu rosto são de fumo, Todo o dinheiro, exigirá que faça
A sua voz um ciciar de reza, P’la hóstia consagrada o juramento
E apesar disso, ao ver Inês e Pedro, De nunca mais voltar à lusa pátria,
Passando à sua beira, ainda tem força E, vendo-o enfim partir, irá meter-se
Para tentar, risonha, persuadi-los
De que nada suspeita; para ambos
Redobra de doçura e de meiguice; (continua)
Não há mimo gentil que lhes não faça,
Fala-lhes sem cessar, a si os chama, Em qualquer mata, em qualquer cova, à espera
E passa-lhes, sorrindo, os dedos fluidos Que o alto Deus a chame.
No entretanto,
Ela virtuosa esposa, será tida
Como a mais ardilosa das adúlteras;
Seu nome causará vergonha e asco
Pelos cabelos, amorosamente ... De lama cobrirão sua memória;
Mas, com funda tristeza, ela bem sabe E Inês e Pedro, finalmente quites
Que os não engana ... Do remorso cruel, que enche de espinhos
Seus pobres corações martirizados,
Poderão finalmente ser felizes!

Doridamente, vagarosamente,
Já para a negra porta se encaminha CANTIGA
Com difícil andar, já nos ferrolhos
Toca das suas mãos o luar dolente:
Mas, de repente, vibra e ecoa ao longe Embora, Senhora, andeis
Um vagido infantil, – a voz do filho! De finas telas vestida,
Por meus olhos sois despida.
Saltam-lhe logo as lágrimas dos olhos!
Oh! não, não partirá! De clara holanda vestis
Mimoso infante, Vosso corpo, linda Infanta,
Escusas de chorar! A mãe suavíssima, Belo rocal de rubis
Em cujo ventre andaste, ouviu-te a doce Vela-me a vossa garganta;
Inocente vozinha, que a deteve ... Trazeis manto de veludo,
Oh! não, não partirá! Lindo menino, Garbosa saia comprida,
Escusas de chorar, dorme em sossego, Mas, apesar disso tudo,
Não terás nunca pejo do teu nome! Por meus olhos sois despida.

(...) Através das ricas vestes,


Que nos vestem, linda Infanta,
Adivinho os dons celeste
Rompe agreste a chuvosa madrugada. Do vosso corpo de santa;
Vossas vestes de cetim,
Constança vai morrer ... Vestes com que andais vestida,
De vidro são para mim:
Cercam-lhe o leito Por meus olhos sois despidas.
Inês e Pedro. Dulce está rezando,
Com a cabeça entre as mãos, junto dum tríptico ...

Constança vai morrer...


— “Adeus, meu Pedro!”
Com uma sombra de voz exclama ...

E Pedro,
Doído de comoção, branco de neve,
Marejados de pranto os negros olhos,
Enlaça-a febrilmente, e com soluços

Dá-lhe um violento prolongado beijo.

Ao fogo desse beijo, a moribunda


Parece reviver!
Coram-lhe as faces,
Nos seus olhos fuzilam meteoros,
Já não lhe falta o ar, sorri, contente,
— É que esse beijo, o último continha
Todo amor, toda a febre do primeiro!

93

Oh! Que morte ditosa lhe deu Pedro!


Mas eis que vê Inês ...
Oh! não, não deve
Para a cova levar aquele beijo!
— “Anda cá, minha Inês ...” diz com um sorriso
De infinita doçura; nos seus braços
Acolhe a linda Inês, abraça-a muito,
Dá-lhe o beijo de Pedro, e logo exala,
Serenamente, o último suspiro ...
XI
Um sonho.

OARISTO Na messe, que enlouquece, estremece a quermesse ...


( Excertos ) O sol, celestial girassol, esmorece ...
V E as cantilenas de serenos sons amenos
UM CACTO NO PÓLO Fogem fluídas, fluindo à fina flor dos fenos ...

Julguei que se tinha levado um obelisco místico As estrelas em seus halos


no meio da praça; e que o obelisco dava uma Brilham com brilhos sinistros ...
/ sombra Cornamusas e crotalos,
azul; e que tinham acendido um fogão no quarto Cítolas, cítaras, sistros,
/ úmido; Soam suaves, sonolentos,
e que tinham dado alta ao doente. Sonolentos e suaves,
Em suaves,
Julguei que nascia o sol à meia noite; e que uma Suaves, lentos lamentos
/ boca De acentos
muda me falava; e que esfolhavam lírios sobre o Graves,
/ meu Suaves ...
peito; e que havia uma novena ao pé do Jardim de
/ Aclimação. Flor! Enquanto na messe estremece a quermesse
E o sol, celestial girassol esmorece,
Uma boca muda me falou; mas o obelisco, de tênue Deixemos estes sons tão serenos e amenos,
que era, não deu sombra; e o fogão não aqueceu o Fujamos, Flor! à flor destes floridos fenos ...
/ quarto
úmido; e o doente teve uma recaída. Soam vesperais as vêsperas ...
Uns com brilhos de alabastros,
E o clown entrou, folião, na Igreja; e fez jogos Outros louros como nêsperas,
/ malabares No céu pardo ardem os astros ...
cibórios e os turíbulos; e tornou a nevar;
e, após os brandos etésios, soprou o mistral forte. Como aqui se está bem! Além freme a quermesse ...
— Não sentes um gemer dolente que esmorece?
E na alcova branca entrou a Dama expulsa, cujo São os amantes delirantes que em amenos
/ corpo Beijos se beijam, Flor! à flor dos frescos fenos ...
é de âmbar e cera e todo rescendente de um
/ matrimônio As estrelas em seus halos
aromal de mirra e valeriana, a Dama dos flexuosos Brilham com brilhos sinistros ...
e vertiginosos dedos rosados. Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
E seus cabelos de Czarina eram como a estopa Soam suaves, sonolentos,
e finos como as teias de aranha; e seu ventre alvo, Sonolentos e suaves,
de estéril, era todo azul de tatuagens. Em suaves,
Suaves, lentos lamentos
E a Educanda fugiu do Recolhimento; e com a Dama De acentos
expulsa passei a noite em branco; e a noite foi toda Graves,
/ escarlate. Suaves ...
E no dia seguinte, em vez dos sacros livros, que de Esmaece na messe o rumor da quermesse ...
ordinário me deleitam, li Schopenhauer, e achei — Não ouves este ai que esmaece e esmorece?
/ Artur É um noivo a quem fugiu a Flor de olhos amenos,
Schopenhauer setecentas vezes superior a todos os E chora a sua morta, absorto, à flor dos fenos ...
/ Doutores da igreja.
(continua)

94
Soam vesperais as vêsperas ...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas, 95
No céu pardo ardem os astros ...

Penumbra de veludo. Esmorece a quermesse ...


Sob o meu braço lasso o meu Lírio esmorece ...
Beijo-lhe os boreais belos lábios amenos,
Beijo que freme e foge à flor dos flóreos fenos ...

As estrelas em seus halos


Brilham com brilhos sinistros ...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves ...

Teus lábios de cinábrio, entreabre-os! Da quermesse

Soam vesperais as vêsperas ...


Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros ...

O rumor amolece, esmaece, esmorece ...


Dá-me que eu beije os teus morenos e amenos
Peitos! Rolemos, Flor! À flor dos flóreos fenos ...

Ah! não resistais mais a meus ais! Da quermesse


O atroador clangor, o rumor esmorece ...
Rolemos, ó morena! em contatos amenos
— Vibram três tiros à florida flor dos fenos ...

As estrelas em seus halos


Brilham com brilhos sinistros ...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves ...

Três da manhã. Desespero incerto ... E a quermesse?


E a flor que sonho? e o sonho? Ah! tudo isso esmorece!
No meu quarto uma luz luz com lumes amenos,
Chora o vento lá fora, à flor dos flóreos fenos ...

96

CAMILO PESSANHA
( 1867-1926 )

INSCRIÇÃO E sem relevo, os caracteres gastos,

De resignar-se torpemente dúctil ...


Eu vi a luz em um país perdido. Desespero, nudez de seios castos,
A minha alma é lânguida e inerme. Quem também fosse, ó cabelos de rastos,
Ó! Quem pudesse deslizar sem ruído! Ensangüentado, enxovalhado, inútil,
No chão sumir-se, como faz um verme ...
Dentro do peito, abominável cômico!
Morrer tranqüilo – o fastio da cama ...
Ó redenção do mármore anatômico,
ESTÁTUA
Amargura, nudez de seios castos!...
Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama
Cansei-me de tentar o teu segredo: Ó Madalena, ó cabelos de rastos!
No teu olhar sem cor – frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo. SONETOS
1
Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Fui teu lábio oscular, num pesadelo, Onde esperei morrer – meus tão castos lençóis?
Por noites de pavor, cheio de medo. Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?
E o meu ósculo ardente, alucinado, Quem quebrou ( que furor cruel e simiesco ! )
Esfriou sobre o mármore correto A mesa de eu cear – tábua tosca de pinho?
Desse entreaberto lábio gelado ... E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
— Da minha vinha o vinho acidulado e fresco ...
Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado, Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Sereno como um pélago quieto. Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova ...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.


Alma da minha mãe ... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.

MADALENA

“ ... e lhe regou de lágrimas os pés, e os


enxugou com os cabelos da sua cabeça.”
Evangelho de S. Lucas

Ó Madalena, ó cabelos de rastos,


Lírio poluído, branca flor inútil ...
Meu coração, velha moeda fútil,
2 Esvelta surge! Vem das águas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexíveis e o seio fremente ...
Morre-me a boca por beijar a tua.
Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a úmida areia. Sem vil pudor! Do que há que Ter vergonha?
A fugitiva hora, reevoquei-a, Eis-me formoso, moço e cesto, forte.
– Tão rediviva! nos meus olhos baços ... Tão branco o peito! — para o expor à Morte ...
Mas que ora –- a infame! — não se te anteponha.
Olhos turvos de lágrimas contidas. A hidra torpe! ... Que a estrangulo ... Esmago-a
– Mesquinhos passos, por que doidejastes De encontro à rocha onde a cabeça te há de,
Assim transviados, e depois tornastes Com os cabelos escorrendo água,
Ao ponto das primeiras despedidas?
Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Onde fostes sem tino, ao vento vário, Sob o fervor da minha virgindade
Em redor, como as aves num aviário, E o meu pulso de jovem gladiador.
Até que a asita fofa lhes faleça ...

Toda essa extensa pista – para quê?


Se há de vir apagar-vos a maré,
Como as do novo rasto que começa ... AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

3 Só , incessante, um som de flauta chora,


Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora.
Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, por que não vos fixais? Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
Que passais como a água cristalina E os lábios, branca, do carmim desflora ...
Por uma fonte para nunca mais!... Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranqüila.
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais, E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
E o vago medo angustioso domina, Cauta, detém. Só modulada trila
– Por que ides sem mim, não me levais? A flauta flébil ... Quem há de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
– O espelho inútil, meus olhos pagãos! Só, incessante, um som de flauta chora ...
Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos,


Flexão casual de meus dedos incertos,
– Estranha sombra em movimentos vãos.

97

4
CAMINHO III

I Fez-nos bem, muito bem, esta demora:


Enrijou a coragem fatigada ...
Tenho sonhos cruéis; n’alma doente Eis os nossos bordões da caminhada,
Sinto um vago receio prematuro. Vai já rompendo o sol: vamos embora.
Sou a medo ma aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente ... Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada ...
Saudades desta dor que em vão procuro Enchamos as cabaças: pela estrada,
Do peito afugentar bem rudemente, Daqui inda este néctar avigora!...
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!... Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Porque a dor, esta falta de harmonia, Eu posso resistir à grande calma!...
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu de agora, Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
Sem ela o coração é quase nada: E ter fé e sonhar – encher a alma.
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.

II

Encontraste-me um dia no caminho


Em procura de quê, nem eu o sei.
— Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.

É longe, é muito longe, há muito espinho!


Paraste a repousar, eu descansei ...
Na venda em que pousaste, onde pousei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.

É no monte escabroso, solitário.


Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia! ... Foi no entanto

Que choramos a dor de cada um ...


E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.

98
2

VIOLONCELO Singra o navio. Sob a água clara


Vê-se o fundo do mar, de areia fina ...
Chorai arcadas Impecável figura peregrina,
Do violoncelo! A distância sem fim que nos separa!
Convulsionadas,
Pontes aladas Seixinhos da mais alva porcelana,
De pesadelo ... Conchinhas tenuemente cor de rosa,
De que esvoaçam, Na fria transparência luminosa
Brancos, os arcos ... Repousam, fundos, sob a água plana.
Por baixo passam,
Se despedaçam, E a vista sonda, reconstrui, compara.
No rio, os barcos. Tantos naufrágios, perdições, destroços!
Fundas, soluçam — Ó fúlgida visão, linda mentira!
Caudais de choro ...
Que ruínas ( ouçam )! Róseas unhinhas que a maré partira ...
Se se debruçam, Dentinhos que o vaivém desengastara ...
Que sorvedouro!... Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos ...
Trêmulos astros ...
Soidões lacustres ...
Lemes e mastros ...
E os alabastros
Dos balaústres!
Umas quebradas! POEMA FINAL
Blocos de gelo ...
– Chorai arcadas
Despedaçadas, Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
Do violoncelo. – Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesânias –,
VÊNUS No limbo onde esperais a luz que vos batize,

1 As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.

À flor da vaga, o seu cabelo verde, Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Que o torvelinho enreda e desenreda ... Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
O cheiro a carne que nos embebeda! E escutando o correr da água na clepsidra,
Em que desvios a razão se perde! Vagamente sorris, resignados e ateus,

Pútrido o ventre azul e aglutinoso, Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.


Que a onda, crassa, num balanço alarga
E reflui ( um olfato que se embriaga ) Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Como em um sorvo, múrmura de gozo. Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
O seu esboço, na marinha turva ... E no vento expirais em um queixume brando,
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando ... Adormecei. Não suspireis. Não respireis.

E as ondas lutam, como feras mugem,


A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia co’a salsugem.

99

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