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DA POESIA
PORTUGUESA
- Linhas Mestras -
SÉCULO XVI 1
Sá de Miranda 2
Antônio Ferreira 3
Diogo Bernardes 4
Camões 6
Poemas na medida velha 6
Babel e Sião 14
Sonetos 18
Canção IX 32
SÉCULO XVII 34
Rodrigues Lobo 35
Tomás Pinto Brandão 37
Francisco de Vasconcelos 38
Jerônimo Bahia 38
Antônio Barbosa Bacelar 39
Sóror Violante do Céu 40
D. Francisco Manuel de Melo 41
D. Tomás de Noronha 43
Francisco de Vasconcelos Coutinho 46
André Nunes da Silva 46
Antônio Serrão de Castro 47
Frei Antônio das Chagas 47
SÉCULO XVIII 48
Correia Garção 49
Paulino A. Cabral – Abade de Jacente 51
Filinto Elísio 52
Nicolau Tolentino 53
Marquesa de Alorna 54
Bocage 56
SÉCULO XIX 62
Almeida Garrett 63
João de Deus 67
Antero de Quental 69
Gomes Leal 75
Guerra Junqueiro 77
Cesário Verde 79
Antônio Nobre 87
Eugênio de Castro 92
Camilo Pessanha 96
SÉCULO XVI
Sá de Miranda
Antônio Ferreira
Diogo Bernardes
Camões
2
SÁ DE MIRANDA
(1481-1558)
1
3
Não sei qu’em vós mais vejo; não sei quê O sol é grande, caem co’a calma as aves,
Mais ouço, e sinto, ao rir vosso, e falar: Do tempo em tal sazão, que sói ser fria:
Não sei qu’entendo mais, té no calar, Esta água que d’alto cai acordar-m’ia?
Nem quando vos não vejo a alma que vê, Do sono não, mas de cuidados graves.
Que lhe aparece em qual parte qu’estê, Ó cousas todas vãs, todas mudaves!
Olhe o céu, olhe a terra, ou olhe o mar, Qual é tal coração qu’em vós confia?
E triste aquele vosso suspirar, Passam os tempos, vai dia trás dia,
Em que tanto mais vai, que direi qu’é? Incertos muito mais que ao vento as naves.
Em verdade não sei: nem isto qu’anda Eu vira já aqui sombras, vira flores,
entre nós: ou se é ar, como parece, Vi tantas águas, vi tanta verdura,
se fogo doutra sorte, e doutra lei, As aves todas cantavam d’amores.
Em que ando, e de que vivo, nunca abranda; Tudo é seco, e mudo, e de mistura,
por ventura que à vista resplandece; Também mudando-m’eu fiz doutras cores,
ora o que eu sei tão mal, como o direi? E tudo o mais renova, isto é sem cura.
2 4
Em tormentos cruéis tal sofrimento, Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
Em tão contínua dor, que nunca aliva, E vejo o que não vi nunca, nem cri
Chamar a morte sempre, e que ela altiva Que houvesse cá, recolhe-se a alma a si,
Se ria dos meus rogos no tormento: E vou tresvariando como em sonho.
Bem sei uns olhos que têm toda a culpa, Que tornando ante vós, senhora, tal,
E são os meus, que a toda a parte vêm quando m’era mister tant’outr’ajuda,
Após o que vem sempre, e os desculpa. de que me valerei, se alma não val’?
Ó minhas visões altas, meu só bem, Esperando por ela que me acuda,
Quem vos a vós não vê, este me culpa, E não me acode, e está cuidando em al,
E eu sou o só que as vejo, outrem ninguém! Afronta o coração, a língua é muda.
3
ANTÔNIO FERREIRA
(1528-1569)
1 3
O’ alma pura, em quanto cá ias, Dos mais fermosos olhos, mais fermoso
Alma lá onde vives já mais pura, Rosto, qu’entre nós há, do mais divino
Por que me desprezaste? quem tão dura Lume, mais branca neve, ouro mais fino,
Te tornou ao amor, que me devias? Mais doce fala, riso mais gracioso:
Isto era o que mil vezes prometias, Dum Angélico ar, de um amoroso
Em que minh’alma estava tão segura, Meneio, de um esp'rito peregrino
Que ambos juntos ua hora desta escura S’acendeu em mim o fogo, de qu’indino
Noite nos subiria aos claros dias? Me sinto, e tanto mais assi ditoso.
Como em tão triste cárcer me deixaste? Não cabe em mim tal bem-aventurança.
Como pude eu sem mim deixar partir-te? É pouco ua alma só, pouca ua vida.
Como vive este corpo sem sua alma? Quem tivesse que dar mais a tal fogo!
Ah! que o caminho tu bem mo mostraste, Contente a alma dos olhos água lança
Porque correste à gloriosa palma! Pelo em si mais deter, mas é vencida
Triste de quem não mereceu seguir-te! Do doce ardor, que não obedece a rogo.
2 4
Aquela, cujo nome a meus escritos Os dias conto, e cada hora, e momento,
Que a meu amor dará melhor ventura, Qu’alongando-me vou dos meus amores,
Toda a virtude, toda a formosura, Nas árvores, nas pedras, ervas, flores,
Qu’após si leva os olhos, e os espritos, Parece que acho mágoa, e sentimento.
Aquela branda em tudo, só aos gritos As aves, que no ar voam, o Sol, e o vento,
Meus surda, áspera aos rogos, a Amor dura Montes, rios, e gados, e Pastores,
Podia cum sorriso, ua brandura As estradas, e os campos mostram as dores
D’olhos curar meu mal, ornar meus ditos, Da minha saüdade, e apartamento.
DIOGO BERNARDES
(1530?-1605)
1 3
A doce fala, o riso doce e grave, Donde vem que não há quem nos não culpe:
Entre rubis e perlas lampejando, A vós, porque matais quem vos quer tanto;
Não tem comparação por cousa rara. A mim, que tanto quero a quem me mata.
2 4
E o ouro dos cabelos converter-se Cuidei que com vos ver descansaria
Em branca prata, o rosto descorar-se, Do mal do cativeiro, triste, e duro;
De tal maneira em fim tudo mudar-se, Mas mais sem gosto aqui, menos seguro
Que mais ousadamente deixe ver-se; Me vejo, do que vi em Berberia.
Mas outra fermosura, outras divinas Duas cousas porém não se mudaram:
Graças, de qu’esse espírito vejo cheio, Lugar e duro ser destes penedos,
As quais não dá, nem tira a natureza. De vossos naturais teima, e dureza.
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ALHEIO
VOLTAS
CAMÕES
(1524?-1580)
Poemas na medida velha
1 Que uns olhos tão belos
Não se hão d’ esconder.
MOTE ALHEIO Mas fazeis-me crer
Que já não são verdes,
Perdigão perdeu a pena, Porque me não vedes.
Não há mal que lhe não venha.
Verdes não o são
VOLTAS No que alcanço deles;
Perdigão, que o pensamento Verdes são aqueles
Subiu em alto lugar, Que esperança dão.
Perde a pena do voar, Se na condição
Ganha a pena do tormento. Está serem verdes
Não tem no ar nem no vento Por que me não vedes?
Asas, com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha. 3
Ũa Dama, de malvada,
2 Tomou seus olhos na mão
E tirou-me ũa pedrada
MOTE ALHEIO Com eles ao coração.
Armei minha funda então,
Menina dos olhos verdes, E pus os meus olhos nela:
Por que me não vedes? Trape! Quebro-lh’ a janela.
VOLTAS
Haviam de ser,
Por que possa vê-los, 5
Na memória e na firmeza
Me concede a Natureza
AO DESCONCERTO DO MUNDO O natural que não veja.
7
Os bons vi sempre passar MOTE
No mundo graves tormentos; Coifa de beirame
E para mais m’ espantar, namorou Joane.
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos. VOLTAS PRÓPRIAS
Cuidando alcançar assim Por cousa tão pouca
O bem tão mal ordenado, andas namorado?
Fui mau, mas fui castigado. Amas a toucado
Assim que só para mim e não quem o touca?
Anda o mundo concertado. Ando cega e louca
por ti, meu Joane;
6 tu, pelo beirame.
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Ũa graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbora não.
Presença serena
que a tormenta amansa;
nela enfim descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo,
E, pois nela vivo,
é força que viva.
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11
CARTA DE LUIS DE CAMÕES A DONA FRANCISCA DE ARAGÃO,
COM AS GLOSAS ABAIXO FEITAS AO MOTE POR ELA MANDADO:
Senhora
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OUTRA AO MESMO
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14
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MOTE
41. Bem são rios estas águas, 86. Acha a tenra mocidade
42. com que banho este papel; 87. prazeres acomodados,
43. bem parece ser cruel 88. e logo a maior idade
44. variedade de mágoas 89. já sente por pouquidade
45. e confusão de Babel. 90. aqueles gostos passados.
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91. Um gosto que hoje se alcança
92. amanhã já o não vejo;
93. assi nos traz a mudança
94. de esperança em esperança,
46. Como homem que, por exemplo 95. e de desejo em desejo.
47. dos transes em que se achou,
48. despois que a guerra deixou, 96. Mas em vida tão escassa
49. pelas paredes do templo 97. que esperança será forte?
50. suas armas pendurou: 98. Fraqueza de humana sorte
99. que, quanto da vida passa
51. Assi, despois que assentei 100. está receitando a morte!
52. que tudo o tempo gastava,
53. da tristeza que tomei 101. Mas deixar nesta espessura
54. nos salgueiros pendurei 102. o canto da mocidade,
55. os órgãos com que cantava. 103. Não cuide a gente futura
104. que será obra da idade
56. Aquele instrumento ledo 105. o que é força da ventura.
57. deixei da vida passada,
58. dizendo: "Música amada, 106. Que idade, tempo, o espanto
59. deixo-vos neste arvoredo 107. de ver quão ligeiro passe,
60. à memória consagrada. 108. nunca em mim puderam tanto
109. que, posto que deixe o canto,
61. Frauta minha que, tangendo, 110. a causa dele deixasse.
62. os montes fazíeis vir
63. para onde estáveis, correndo; 111. Mas, em tristezas e enojos
64. e as águas, que iam decendo, 112. em gosto e contentamento,
65. tornavam logo a subir: 113. por sol, por neve, por vento,
114. terné presente á los ojos
66. Jamais vos não ouvirão 115. por quien muero tan contento.
67. os tigres, que se amansavam,
68. e as ovelhas, que pastavam, 116. Órgãos e frauta deixava,
69. das ervas se fartarão 117. despojo meu tão querido,
70. que por vos ouvir deixavam. 118. no salgueiro que ali estava
119. que para trofeu ficava
71. Já não fareis docemente 120. de quem me tinha vencido.
72. em rosas tornar abrolhos
73. na ribeira florecente; 121. Mas lembranças da afeição,
122. que ali cativo me tinha, 167. o que passo, e passei já,
123. me perguntaram então: 168. nem menos o escreverei,
124. que era da música minha, 169. porque a pena cansará,
125. qu'eu cantava em Sião? 170. e eu não descansarei.
126. Que foi daquele cantar 171. Que, se vida tão pequena
127. das gentes tão celebrado? 172. se acrescenta em terra estranha,
128. Porque o deixava de usar, 173. e se amor assi o ordena,
129. pois sempre ajuda a passar 174. razão é que canse a pena
130. qualquer trabalho passado? 175. de escrever pena tamanha.
236. Mas eu, lustrado co santo 286. Aqueles que tintos vão
237. raio, na terra de dor, 287. no pobre sangue inocente,
238. de confusões e d’ espanto, 288. soberbos co poder vão;
239. como hei-de cantar o canto 289. arrasai-os igualmente,
240. que só se deve ao Senhor? 290. conheçam que humanos são.
246. E faz que este natural 296. estes, que tão furiosos
247. amor, que tanto se preza, 297. gritando vêm a escalar-me,
248. suba da sombra ao Real, 298. maus espíritos danosos,
249. da particular beleza 299. que querem como forçosos
250. para a Beleza geral. 300. do alicerce derrubar-me;
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Porém, temendo Amor que aviso desse Farei que amor a todos avivente,
Minha escritura a algum juízo isento, Pintando mil segredos delicados,
Escureceu-me o engenho co tormento Brandas iras, suspiros magoados,
Para que seus enganos não dissesse. Temerosa ousadia e pena ausente.
Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos Também, Senhora, do desprezo honesto
A diversas vontades! Quando lerdes De vossa vista branda e rigorosa,
Num breve livro casos tão diversos, Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Verdades puras são, e não defeitos... Porém, para cantar de vosso gesto
E sabei que, segundo o amor tiverdes, A composição alta e milagrosa,
Tereis o entendimento dos meus versos! Aqui falta saber, engenho e arte.
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Doctos varões darão razões subidas, Fala de quem a morte a vida pende,
Mas são experiências mais provadas, Rara, suave; enfim, Senhora, vossa;
E por isso é melhor ter muito visto. Repouso nela alegre e comedido;
Cousas há i que passam sem ser cridas Estas as armas são com que me rende
E cousas cridas há sem ser passadas, E me cativa Amor; mas não que possa
Mas o milhor de tudo é crer em Cristo. Despojar-me da glória de rendido.
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Vendo o triste pastor que com enganos Cá neste escuro caos de confusão,
Lhe fora assim negada a sua pastora, Cumprindo o curso estou da Natureza.
Como se a não tivera merecida, Vê se me esquecerei de ti, Sião!
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Mas, conquanto não pode haver desgosto Esta foi a celeste formosura
Onde esperança falta, lá me esconde Da minha Circe, e o mágico veneno
Amor um mal, que mata e não se vê, Que pôde transformar meu pensamento.
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Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder a vista só em vê-los,
Ondados fios d’ouro reluzente, Já não paga o que deve a vosso gesto.
Que agora da mão bela recolhidos,
Agora sobre as rosas estendidos, Este me parecia preço honesto;
Fazeis que sua beleza s’ acrescente; Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e alma por querê-los,
Olhos, que vos moveis tão docemente, Donde já me não fica mais de resto,
Em mil divinos raios encendidos,
Se de cá me levais alma e sentidos, Assi que a vida e alma e esperança
Que fôra, se de vós não fôra ausente? E tudo quanto tenho, tudo é vosso,
E o proveito disso eu só o levo.
Honesto riso, que entre a mor fineza
De perlas e corais nasce e parece, Porque é tamanha bem-aventurança
Se n’alma em doces ecos não o ouvisse! O dar-vos quanto tenho e quanto posso
Que, quanto mais vos pago, mais vos devo.
S’ imaginando só tanta beleza
De si, em nova glória, a alma s’esquece,
Que fará quando a vir? Ah! quem a visse!
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O tempo o claro dia torna escuro, Assi que nada perde quem perdida
E o mais ledo prazer em choro triste; A esperança traz de sua glória,
O tempo a tempestade em grã bonança. Se esta vida há-de ser sempre em tormento.
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24 (Repetida)
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Em continuação a esta breve antologia
das redondilhas e dos sonetos de Camões,
apresentaremos a seguir alguns poemas
que, relacionados aos que lhes são postos
em paralelo, demonstram a permanência
deste poeta renascentista na obra de
autores portugueses e brasileiros modernos.
Observemos o diálogo intertextual que entre
eles se mantém.
Mais adiante, em poetas de séculos
também posteriores, outras referências
poderão ainda ser identificadas, seja do
ponto de vista da retomada de temas, seja
quanto ao resgate dos próprios versos
camonianos.
Descubra outras relações intertextuais.
VINICIUS DE MORAIS
VINICIUS DE MORAIS
27
De repente, do riso fez-se o pranto,
Silencioso e branco como a bruma,
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade, De repente, da calma fez-se o vento
Enquanto houver no mundo saüdade Que dos olhos desfez a última chama
Quero que seja sempre celebrada. E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade, De repente, não mais que de repente,
Viu apartar-se d’ ũa outra vontade, Fez-se de triste o que se fez amante
Que nunca poderá ver-se apartada. E de sozinho o que se fez contente.
MACHADO DE ASSIS
28
Querida, ao pé do leito derradeiro,
Em que descansas desta longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente, Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Repousa lá no Céu eternamente, Que, a despeito de toda a humana lida,
E viva eu cá na terra sempre triste. Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente, Trago-te flores, restos arrancados
Não te esqueça daquele amor ardente Da terra que nos viu passar unidos
Que já nos olhos meus tão puro viste. E ora mortos nos deixa e separados.
E se vires que pode merecer-te Que eu, se tenho nos olhos mal feridos
Alguma cousa a dor que me ficou Pensamentos de vida formulados,
Da mágoa, sem remédio, de perder-te, São pensamentos idos e vividos.
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Soneto de fidelidade
VINICIUS DE MORAIS
Estando em terra, chego ao Céu voando, Eu possa me dizer do amor (que tive):
Nũ’ hora acho mil anos, e é de jeito Que não seja imortal, posto que é chama,
Que em mil anos não posso achar ũ’ hora. Mas que seja infinito enquanto dure.
27
“Transforma-se o amador
na coisa amada”
HERBERTO HELDER
28
32
É um nada amor que pode tudo,
É um não se entender o avisado
É um querer ser livre e estar atado,
Amor é fogo que arde sem se ver, É um julgar o parvo por sisudo;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente; É um parar os golpes sem escudo,
É dor que desatina sem doer; É um cuidar que é e estar trocado,
É um viver alegre e enfadado,
É um não querer mais que bem querer; É não poder falar e não ser mudo;
É andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente; É um engano claro e mui escuro,
É cuidar que se ganha em se perder; É um não enxergar e estar vendo,
É um julgar por brando ao mais duro;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor. É um não qu’rer dizer e estar dizendo,
É ter com quem nos mata lealdade. É um no mor perigo estar seguro,
É, por fim, um não sei quê, que não entendo.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
29
Definição do amor
33
Tudo passei; mas tenho tão presente Irás ao Paço. Irás pedir que a tença
A grande dor das cousas que passaram, Seja paga na data combinada
Que as magoadas iras me ensinaram Este país te mata lentamente
A não querer já nunca ser contente. País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce
Errei todo o discurso dos meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse Em tua perdição se conjuraram
As minhas mal fundadas esperanças. Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
De amor não vi senão breves enganos. A quem ousou seu ser inteiramente
Oh! Quem tanto pudesse que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças! E aqueles que invocaste não te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
34 Tinha apagado os olhos no seu rosto
Poema da auto-estrada
ANTÔNIO GEDEÃO
Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta 1.
VOLTAS AO MOTE Vai na brasa 2, de lambreta.
32
revolvendo na mente pressurosa
os tempos já passados
de meus doces errores,
de meus suaves males e furores,
por ela padecidos e buscados, e logo se me ajuntam esperanças
tornada (inda que tarde) piadosa, com que a fronte, tornada mais serena,
um pouco lhe pesasse torna os tormentos graves
e consigo por dura se julgasse; em saüdades brandas e suaves.
Rodrigues Lobo
Tomás Pinto Brandão
Francisco de Vasconcelos
Jerônimo Bahia
Antônio Barbosa Bacelar
Sóror Violante do Céu
D. Francisco Manuel de Melo
D. Tomás de Noronha
Francisco de Vasconcelos Coutinho
André Nunes da Silva
Antônio Serrão de Castro
Frei Antônio das Chagas
35
RODRIGUES LOBO
(1579?-1621)
(Pergunta e respostas)
RESPOSTA DE UM PASTOR Quando n’alma uma beleza
À PERGUNTA: Mostra seu raio invencível
Quem ama sem esperança, E amor seu preço e grandeza,
Se ama mais perfeitamente? Não faz diferente empresa
Entre fácil e impossível.
RESPOSTA DE UM PASTOR À PERGUNTA
E é já cousa averiguada
Ninguém ama sem querer, Que somente este rigor
Ninguém quer sem esperar; Merece ante a cousa amada,
O que ama espera e quer; E o que quiser mais de amor,
Poderá nunca alcançar, Nem quer, nem merece nada.
Mas sempre há de pretender.
CANTIGA
Se à hera lhe falta a planta
Em cujo tronco se arrime, Ando perdido entre a gente,
Nem cresce nem se alevanta, Nem morro, nem tenho vida.
Que enfim não tem força tanta
Que se levante e sublime. Depois que ando transformado
Num cuidado que me obriga
E se a amor lhe faltara A viver sempre enleado,
Esperança que o sustente, Não posso achar quem me diga
Na raiz própria secara, Se sou perdido, ou ganhado;
E inda não sei se brotara Nem por fé se me consente
Ou se afogara a semente. Que saiba parte de mi,
Quem me tem nega, e não mente,
De sorte que em qualquer peito, Que, depois que me perdi,
Sem esperança, ou favor Ando perdido entre a gente.
De seu desejado objeto,
Não só falta amor perfeito, A alma que buscou lugar
Mas falta, de todo, Amor. Que Amor por seu fim lhe ordena,
Bem se queria empregar,
RESPOSTA DE UMA PASTORA À MESMA PERGUNTA
Mas ficou presa no ar,
Amor, que a próprio respeito Aonde anda e aonde pena;
Todo o desejo oferece Nem ganhada, nem perdida
Só por seu gosto, ou proveito, Posso dela saber nada,
Não se chame amor perfeito, Nem de mim, se alguém duvida,
Antes perfeito interesse: Quem me dá vida emprestada,
Nem morro, nem tenho vida.
Amor é somente amar,
Este é seu meio e seu fim,
E o que pretende alcançar
Nem se há de lembrar de sim,
Nem do que pode esperar.
CANTIGA SONETOS
As flores por onde passa, Que amor sigo? Que busco? Que desejo?
Se o pé lhe acerta de por, Que enleio é este vão da fantasia?
Ficam de inveja sem cor Que tive? Que perdi? Quem me queria?
E de vergonha com graça; Quem me faz guerra? Contra quem pelejo?
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura: Foi por encantamento o meu desejo
Vai fermosa, e não segura. E por sombra passou minha alegria;
Mostrou-me Amor, dormindo, o que não via,
Não na ver o Sol lhe val E eu ceguei do que vi, pois já não vejo.
Por não Ter novo inimigo,
Mas ela corre perigo Fez à sua medida o pensamento
Se na fonte se vê tal; Aquela estranha e nova fermosura
Descuidada deste mal E aquele parecer quase divino;
Se vai ver na fonte pura:
Vai fermosa, e não segura. Ou imaginação, sombra ou figura,
É certo e verdadeiro o meu tormento:
Eu morro do que vi, do que imagino.
37
TOMÁS PINTO BRANDÃO
FRANCISCO DE VASCONCELOS
(1665-1723)
À FRAGILIDADE DA VIDA HUMANA À MORTE DE F.
Esse baixel nas praias derrotado Esse jasmim que arminhos desacata,
Foi nas ondas Narciso presumido; Essa aurora que nácares aviva,
Esse farol nos céus escurecido Essa fonte que aljôfares deriva,
Foi do monte libré, gala do prado. Essa rosa que púrpuras desata;
Olha, cego mortal, e considera Porém, fora melhor que assim não fora,
Que és rosa, Primavera, Sol, baixel, Pois a ser cinza, pranto, barro e luto,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago. Nasceu jasmim, aurora, fonte, rosa.
JERÔNIMO BAHIA
A F. FAVORECENDO COM A BOCA Mais rigoroso, mais cruel, mais duro,
E DESPREZANDO COM OS OLHOS Que o Céu vê, cerca o mar, a terra goza.
Quando o Sol nasce e a sombra principia, Sois mais rica, mais bela, mais lustrosa
A doce abelha, a borboleta airosa Que a perla, rosa, Sol ou jasmim puro,
Procura luz ardente e fresca rosa, Pois por vós fica feio, pobre e escuro,
Que faz a terra céu e a noite dia. Sol em Céu, perla em mar, em jardim rosa.
Mas quando à flor se entrega, à luz se fia, Não viu tão doce, plácida e amena,
Uma fica infeliz, outra ditosa, (Brame o mar, trema a terra, o Céu se agrave),
Pois vive a abelha e morre a mariposa Luz o Céu, ave a terra, o mar sirena.
Na favorável rosa e chama impia.
Vós triunfais de sirena, luz e ave,
Fílis, abelha sou, sou borboleta, Claro Sol, perla fina, rosa amena,
Que com afeto igual, com igual sorte, Mor cometa, árduo muro, rocha grave.
Busco em vós melhor luz, flor mais seleta.
AO RIGOR DE LÍSI
Saudades de meu bem, que noite e dia Aqui corre uma fera, acolá voa
A alma atormentais, se é vosso intento Co’ grãozinho na boca ao ninho uma ave;
Acabares-me a vida com tormento, Um derruba o edifício, outro ergue a trave,
Mais lisonja será, que tirania: Uma caça, outro pesca, outro enferroa.
Mas quando me matar vossa porfia, Um nas armas se alista, outro as pendura,
De morrer tenho tal contentamento, Ao soberbo Ministro aquele adora,
Que em me matando vosso sentimento, Outro segue do Paço a sombra amada.
Me há de ressuscitar minha alegria:
Este muda de amor, aquele atura:
Porém matai-me embora, que pretendo Do bem de que um se alegra, o outro chora.
Satisfazer com mortes repetidas Oh mundo, oh sombra, oh zombaria, oh nada!
O que à beleza sua estou devendo;
Ando sem me mover; falo calado; Porém, quando por meios tão tiranos
O que mais perto vejo se me ausenta; De Raquel se lhe nega a formosura,
E o que estou sem ver mais me atormenta; Agradece a Labão estes enganos,
Alegro-me de ver-me atormentado.
Cifrando em mais servir maior ventura,
Choro no mesmo ponto em que me rio; Dizendo: “Servirei, porque os meus anos
No mor risco me anima a confiança; Com servi-la hão de ser de eterna dura”.
Do que menos se espera estou mais certo.
À VARIEDADE DO MUNDO
40
Perdi-me vendo a pipa, o torno aberto; O Bem passado que é? É mal presente,
Minha alma está metida em vinho tinto; O mal presente que é? É dor esquiva,
Tão bêbado estou que já não sinto A dor esquiva que é morte viva,
Ser bêbado coberto ou encoberto. A morte viva que é? Inferno ardente,
Tenho a cama longe, o sono perto, Com mal quem poderá viver contente,
No chão estou e erguer-me não consinto, Com dor quem haverá que alegre viva,
A barriga de inchada aperta o cinto, Com morte quem não tem pena excessiva,
Falando estou dormindo qual desperto. Com inferno quem vive alegremente?
Venha mais vinho e dêem-mo vezes cento, Por bem passado mal vou padecendo,
Que alegra o coração, sustenta a vida, Por alegria dor, por vida morte,
E pouco vai que engrosse o entendimento. Com glória o mesmo inferno estou sofrendo:
Vingar-me quero, que é grande a bebida; Mas ah, peito cruel, que ainda é mais forte
Tudo o que não é beber é lixo e vento, A dura condição, que em ti estou vendo,
Que para tão grande gosto é curta a vida. Que bem, e mal, e dor inferno e morte.
A UMA SUSPEITA
41
DOM FRANCISCO DE MELO
(1608 – 1666)
Eu vi hoje certa Lia,
DOMINE, TU MIHI LAVAS PEDES? Que só vê-la era alegria,
Porque, se os sóis foram dois,
Ousado pescador, que é da tormenta Os seus olhos foram sóis
Nas mansas águas desse breve vaso? E ela toda fora um dia.
Duvidais vós de entrar, tímido acaso,
Quando que nele entreis o Mestre intenta? É tal, que, se eu Jacó fora
Em minha vida alguma hora
Como, se antes ousada, hoje avarenta E o pai por paga ma desse,
Se mostra a planta, que por longo prazo Mal houvera eu, se eu quisesse
O bravo mar pisou, qual campo raso, Mais Raquel para senhora!
Em virtude do braço que a sustenta?
Foi ser Lia, sem ser feia,
Então lhe obedeceis os pensamentos, Que me enlia e que me enleia
Porque se mostrou Deus, e hoje vestido A liberdade e o juízo;
De escravo, duvidais seus mandamentos? E folgo ver preso o siso,
Por ser preso em tal cadeia.
Pois diz o amor que para obedecido
Mais é, que quando aos pés rende elementos, Contra todos corações
Quando ele o põe a vossos pés rendido. Em seus olhos valentões
Investem, rompem, forcejam;
Mas quem se espanta que sejam,
MUNDO É COMÉDIA Se ela é Lia, eles liões?
42
ANTES DA CONFISSÃO
D. TOMÁS DE NORONHA
A UNS NOIVOS, QUE SE FORAM RECEBER, Que importa ao crédito vosso
LEVANDO ELE OS VESTIDOS EMPRESTADOS,
Fechardes, todos os dias,
E INDO ELA MUITO DOENTE E CHAGADA
A porta às Ave-Marias,
Saiu a noiva muito bem trajada, Se abris ao Padre-nosso?
Saiu o noivo muito bem trajado,
O noivo em tudo muito conchegado,
A noiva em tudo muito conchagada.
44
APÓLOGO DA MORTE
TRISTE REMÉDIO O MAL DE MUITOS
NEGAÇÃO DO AMOR
Junto do manso Tejo, que corria ( Anônimo do Séc. XVII )
Para o Mar, que nos braços o esperava,
Jaz um Pastor, que no semblante dava Quem cuida haver amor vive enganado,
Mostras da dor que o coração cobria. Engana-se quem tem tal pensamento,
São cuidados de amor torres de vento,
Falava o gesto quanto n’alma havia, Que enfim o vento leva este cuidado.
Que, quiçá por ser muito, ela o calava:
Mas, vencido do mal, que o atormentava, Fundei-me no amor, fiquei frustrado,
Sem licença do mal, assim dizia: Que em tudo falso é seu fundamento;
Não há no mundo amor, que tenha assento,
Corre alegre e soberbo, ó doce Tejo. E todo o bem da terra é bem sonhado.
Pois vives sem fortuna, de que esperes
Que encaminhe teu passo a teu desejo. É cego para o bem, como bem o cega,
E para o mal sutil, e cauteloso,
Vás, e tornas. E irás como vieres. Traidor ao coração, que se lhe entrega.
Ditoso tu, que vês o que eu não vejo!
Ditoso tu, que vás adonde queres. Fugi, homens, fugi deste aleivosa,
Que trata com rigor que se lhe chega,
Fugi, que quem mais foge é venturoso.
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46
Correia Garção
Abade de Jazente
Filinto Elísio
Nicolau Tolentino
Marquesa de
Alorna
Bocage
49
CORREIA GARÇÃO
( 1724-1772 )
Olhe que há de chorar, vendo patente, Infeliz, onde estou? São estas brenhas,
Em tão funesta e lacrimosa cena, Estes montes adonde Circe mora?
O cadafalso infame e sanguinoso. Ó Fortuna cruel, enganadora,
Que veloz para o dano me despenha!
Verá levado à morte um inocente:
E condenado a vergonhosa pena Como hei de caminhar por estas penhas
O mais fiel amor, mais generoso. Se é tudo horror o que descubro agora?
Cego fui: quem me vira daqui fora
Antes que tu, tirana Circe, venhas!
Ode VI
Na longa costa brada o mar irado Eis que zunindo furacões horríveis,
Sobre os cachopos; borbotões de espuma A porta arranca dos moídos gonzos:
Erguem as ondas; as cruéis cabeças Corre assustado dum fuzil que o cega
N’água negrejam. À luz vermelha!
Pulam nos olhos lágrimas, que enxuga Agora, dize, quem seguro vive,
Na grossa manga, reprimindo forte Amado Sílvio, da cruel Fortuna,
Acerbas dores, reflexões pesadas, Se as altas torres, se as humildes choças
Tristes memórias! A morte pisa?
50
Os áureos tetos, dóricas colunas,
Quadros antigos, marchetados leitos,
Servem de Espectros, Górgonas, Cerastes,
Na fatal hora.
51
Eu não creio que a nossa Fidalguia Quem te viu, quem te vê, ó Portugal!
Procedesse de Adão, que era um coitado, Tão bárbaro, grosseiro, tosco e vil!
Um paisano, que nunca andou calçado, Hoje estás mais polido, e mais civil,
Um pobre, que de peles se vestia. À custa do teu próprio cabedal.
Não teve armas, brasões; nem possuía Algum dia poupavas teu real,
Por prova de ser nobre algum Morgado; E fizeste já caso de um ceitil;
O foro nunca viu; nem foi tratado, Hoje gastas cruzados mil a mil,
Como agora se faz, com Senhoria. Inda que a renda seja tal ou qual.
Eva inda foi pior, pois na Escritura Lançou a astuta França o seu anzol;
Se não trata de Dom, nem de Excelência, E, armando-se com isca de ouropel,
Nem se diz se nas danças fez figura. Te vai pondo na espinha, e tudo ao sol.
E assim venho a tirar por conseqüência, Mas, enquanto não chega o São Miguel,
Que, estando hoje a nobreza em tanta altura, Se não houver dinheiro, irá ao rol;
Não traz dele, nem dela a descendência. Vai tu sempre fazendo o teu papel.
2 4
Não me lembram heranças nem riqueza, Acolá vem Damênia, ela imagina
Que me obrigue a pôr nela meus cuidados; Que ninguém lhe percebe o seu cuidado;
Não ocupar honrosos magistrados, Olhem a pobre, vejam o coitado
Nem outras coisas vãs que o mundo preza. Como mostram a dor que os amofina!
Subir da lua ao globo alto e rotundo, Mas já, graças a Deus, menos cobarde
E depois de apanhar-me lá de cima, Zombo do Amor, e em vez dos seus favores,
Desatar os calções, cagar no mundo. Guardo os meus bois, enquanto dura a tarde.
52
FILINTO ELÍSIO
( 1734-1819 )
Estende o manto, estende, ó noite escura, Tão pouco de mim julgo que a mereço,
Enluta de horror feio o alegre prado; Que enjoá-la não quero, de atrevido,
Molda-o bem co’ pesar de um desgraçado, Co’as penas, que por ela em vão padeço.
A quem nem feições lembram da ventura.
NICOLAU TOLENTINO
( 1740-1811 )
1 3
Sobre alto trono há anos que regia Postiça formosura em vão comprada,
De dócil povo turba obediente; Não torna atrás os anos apressados:
Mas quer antes sentar-se humildemente Nem alvos dentes de marfim talhados,
Num banco da real secretaria; Tornam em nova a trêmula queixada.
2 4
Ninfas do Tejo já por mim cantadas, Fiei-me nas promessas que afetavas
Nossa augusta princesa está presente; Nas lágrimas fingidas que vertias,
Pedi-lhe, que honre a plácida corrente, Nas ternas expressões que me fazias,
E as águas ficarão mais prateadas. Nessas mãos que as minhas apertavas.
Sobre as ondas as frentes levantando, Mas eu sou tal, ingrata, que, inda vendo
Ao tempo em que as douradas tranças belas Os meus tristes amores mal seguros,
Brandamente lhe fordes enxugando, De amar-te nunca, nunca me arrependo.
Dizei-lhe que sustento irmãs donzelas, Ainda adoro os olhos teus perjuros,
Outras viúvas; e ide-lhe lembrando, Ainda amo a quem me mata, ainda acendo
Que o bem que me fizer é feito a elas. Em aras falsas, holocaustos puros.
54
MARQUESA DE ALORNA
( 1750-1839 )
Por meu mal tantos anos conservadas
É tempo de perder-vos, já que ousadas
Abusastes de um longo sofrimento.
A SOZINHA NO BOSQUE
Sozinha no bosque
Com meus pensamentos,
Calei as saudades,
Fiz trégua a tormentos.
Olhei para a lua,
Que as sombras rasgava,
Nas trêmulas águas
Seus raios soltava.
BOCAGE
(1765-1805)
Devoto incensador de mil deidades Que alegre campo! Que manhã tão clara!
(Digo de moças mil) num só momento, Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira
E somente no altar amando os frades; Mais tristeza que a noite me causara.
56 5
3
Chorosos versos meus desentoados
Sem arte, sem beleza e sem brandura, Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
Urdidos pela mão da Desventura, O Tejo adormeceu na lisa areia;
Pela baça Tristeza envenenados, Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas costumado.
Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura: Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte
Se os ditosos vos lerem sem ternura, Que o fio, com que está minha alma presa
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados. À vil matéria lânguida, me corte.
Não vos inspire, ó versos, cobardia, Consola-me este horror, esta tristeza,
Da sátira mordaz o furor louco, Porque a meus olhos se afigura a Morte
De maldizente voz a tirania. No silêncio total da Natureza.
Que estância para mim tão própria é esta! És dos Céus o composto mais brilhante:
Causais-me um doce e fúnebre transporte, Deram-se as mãos Virtude e Formosura
Áridos matos, lôbrega floresta! Para criar tua alma e teu semblante.
58
11
Liberdade, onde estás? Quem te demora? Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo
Quem faz que o teu influxo em nós não caia? Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
Por que (triste de mim!) por que não raia E em fingir, por temor, empenha estudo.
Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso nume tu és, e glória, e tudo, 16
Mãe do génio e prazer, ó Liberdade!
17
19
20
21
O PAPAGAIO E A GALINHA
Loquaz papagaio “Eu em alma
Secava a goela, Sou ave exc
Soltando mil gritos Não pasmas
A uma janela. Falar como
61
Olhou para a rua
Por onde vagava “Não pasmo
Galinha de poupa Dos galos a
Que depenicava. vilão, carioc
mordaz de u
“Depois de defunta
Só causas prazer,
Para te comerem
Te dão de comer.
SÉCULO XIX
Almeida Garrett
João de Deus
Antero de Quental
Gomes Leal
Guerra Junqueiro
Cesário Verde
Antônio Nobre
Eugênio de Castro
Camilo Pessanha
63
ALMEIDA GARRETT
( 1799-1854 )
CASCAIS
E os ventos despregados
Acabava ali a terra Sopravam rijos na rama,
Nos derradeiros rochedos, E os céus turvos, anuviados,
A deserta, árida serra O mar que incessante brama...
Por entre os negros penedos Tudo ali era braveza
Só deixa viver mesquinho De selvagem natureza.
Triste pinheiro maninho.
Aí na quebra do monte,
Entre uns juncos mal medrados, Se o visse... não quero vê-lo
Seco o rio, seca a fonte, Aquele sítio encantado;
Ervas e matos queimados, Certo estou não conhecê-lo,
Aí nessa bruta serra, Tão outro estará mudado,
Aí foi um céu na terra. Mudado como eu, como ela,
Que a vejo sem conhecê-la!
Ali sós no mundo, sós,
Santo Deus! como vivemos! Inda ali acaba a terra,
Como éramos tudo nós Mas já o céu não começa;
E de nada mais soubemos! Que aquela visão da serra
Como nos folgava a vida Sumiu-se na treva espessa,
De tudo o mais esquecida! E deixou nua a bruteza
Desta agreste natureza.
Que longos beijos sem fim,
Que falar dos olhos mudo! VOZ E AROMA
Como ela vivia em mim,
Como eu tinha nela tudo, A brisa vaga no prado,
Minha alma em sua razão, Perfume nem voz não tem;
Meu sangue em seu coração! Quem canta é o manto agitado,
O aroma é da flor que vem.
Os anjos aqueles dias
Contaram na eternidade: A mim tornem-me essas flores
Que essas horas fugidias, Que uma a uma eu vi murchar,
Séculos na intensidade, Restituam-me os verdores
Por milênios marca Deus Aos ramos que eu vi secar...
Quando dá aos que são seus.
E em torrentes de harmonia
Ai! sim foi a tragos largos, Minha alma se exalará,
Longos, fundos que a bebi Esta alma que muda e fria
Do prazer a taça: – amargos Nem sabe se existe já.
Depois... depois os senti
Os travos que ela deixou... OLHOS NEGROS
Mas como eu ninguém gozou.
Por teus olhos negros, negros,
Ninguém: que é preciso amar Trago eu negro o coração,
Como eu amei – ser amado De tanto pedir-lhe amores...
Como eu fui; dar, e tomar E eles a dizer que não.
Do outro ser a quem se há dado,
Toda a razão, toda a vida E mais não quero outros olhos,
Que em nós se anula perdida. Negros, negros como são;
Que os azuis dão muita esp’rança,
66 Mas fiar-me eu neles, não.
Ai, ai! que pesados anos
Tardios vieram! Só negros, negros os quero;
Oh! que fatais desenganos Que, em lhes chegando a paixão,
Ramo a ramo, a desfizeram Se um dias disserem sim...
A minha choça na serra, Nunca mais dizem que não.
Lá onde se acaba a terra!
67
JOÃO DE DEUS
(1830-1896)
Amores, amores,
Deixai-los dizer;
AMORES, AMORES Se Deus me deu flores,
Foi para as colher:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Não sou eu tão tola, Tenho um mais pequeno,
Que caia em casar; Tenho outro maior.
Mulher não é rola,
Que tenha um só par:
Eu tenho um moreno, DESALENTO
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior. Ao Dr. F. Ferraz de Macedo
Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou, Trago uma cisma comigo:
Desfaz-se-me o pejo, Não torna o meu terno amigo!
E o gosto ficou? Triste de mim, que farei!
Um deles por graça Cabelo, já te não ligo ...
Deu-me um, e depois, Nunca mais te ligarei!
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois. Lá se ficou em Castela ...
Vede que graça aquela!
Abraços, abraços, Ou lá mo detém el-rei!
Que mal nos farão? Toucas da Serra da Estrela,
Se Deus me deu braços, Já nunca mais vos porei!
Foi essa a razão:
Um dia que o alto Se um ar alegre assemelho,
Me vinha abraçar, Ai amigas, sem conselho,
Fiquei-lhe de um salto Nem juízo, que farei!
Suspensa no ar. Já me não assomo ao espelho ...
Nem jamais me assomarei!
Vivendo e gozando,
Que a morte é fatal, Ricas prendas! Todas elas
E a rosa em murchando Me deu ele: sim, donzelas,
Não vale um real: Que não vo-lo negarei!
Eu sou muito amada, Ah meu cinto de fivelas,
E há muito que sei Nunca mais te cingirei!
Que Deus não fez nada
Sem ser para quê.
ADEUS
Talvez as feras ao ouvir meus ais, Senhor, Senhor, que um ai nunca me ouviste
As brutas selvas, as montanhas brutas,
Côncavas rochas, solitárias grutas, Na minha dor!
Mais se condoam, se comovam mais! Ai vida, vida minha, como és triste!
Um ai soltar;
Pelas praias se ouviu gemer ansioso,
Ao longe o mar!
Ninguém as viu!
Ao por do sol!
Mostre-me a campa a luz que te alumia,
Oh! rouxinol!
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69
ANTERO DE QUENTAL
( 1842-1891 )
Aquela que eu adoro não é feita
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas,
PEQUENINA Da antiga Vénus de cintura estreita...
Eu bem sei que te chamam pequenina Não é a Circe, cuja mão suspeita
E ténue como o véu solto na dança, Compõe filtros mortais entre ruínas,
Que és no juízo apenas a criança, Nem a Amazona, que se agarra às crinas
Pouco mais, nos vestidos, que a menina ... Dum corcel e combate satisfeita...
Que és o regato de água mansa e fina, A mim mesmo pergunto, e não atino
A folhinha do til que se balança, Com o nome que dê a essa visão,
O peito que em correndo logo cansa, Que ora amostra ora esconde o meu destino...
A fronte que ao sofrer logo se inclina...
É como uma miragem que entrevejo,
Mas, filha, lá nos montes onde andei, Ideal, que nasceu na solidão,
Tanto me enchi de angústia e de receio Nuvem, sonho impalpável do Desejo...
Ouvindo do infinito os fundos ecos,
No céu, se existe um céu para quem chora, Dê-te estrelas o céu, flores o solo,
Céu para as mágoas de quem sofre tanto... Cantos e aroma o ar e sombra a palma,
Se é lá do amor o foco, puro e santo, E quando surge a lua e o mar se acalma,
Chama que brilha, mas que não devora... Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!
No céu, se uma alma nesse espaço mora, E nem sequer te lembres de que choro...
Que a prece escuta e enxuga o nosso pranto... Esquece até, esquece, que te adoro...
Se há Pai, que estenda sobre nós o manto E ao passares por mim, sem que me olhes,
Do amor piedoso... que eu não sinto agora...
Possam das minhas lágrimas cruéis
No céu, ó virgem! findarão meus males: Nascer sob os teus pés flores fiéis,
Hei-de lá renascer, eu que pareço Que pises distraída ou rindo esfolhes!
Aqui ter só nascido para dores.
A UM CRUCIFIXO
I
IDEAL
Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente, Por ti é que a poeira movediça
O horizonte futuro e viste, em tua mente, De astros e sóis e mundos permanece;
Um alvor ideal banhar estes espaços! E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.
Por que morreu sem eco o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente? Por ti, na arena trágica, as nações
Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que Buscam a liberdade, entre clarões;
descrente E os que olham o futuro e cismam, mudos,
Arrojaras de novo à campa os membros lassos...
Por ti, podem sofrer e não se abatem,
Agora, como então, na mesma terra erma, Mãe de filhos robustos, que combatem
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma, Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário...
II
Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Não se perdeu teu sangue generoso, Que a leve o ar sem fim da soledade
Nem padeceste em vão, quem quer que foste, Onde as asas partidas a levaram...
Plebeu antigo, que amarrado ao poste
Morreste como vil e faccioso. Deixá-la ir, a vela que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Desse sangue maldito e ignominioso Quando a noite surgiu da imensidade,
Surgiu armada uma invencível hoste... Quando os ventos do Sul se levantaram...
Paz aos homens e guerra aos deuses! – pôs-te
Em vão sobre um altar o vulgo ocioso... Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
Do pobre que protesta foste a imagem: Á morte queda, à morte silenciosa...
Um povo em ti começa, um homem novo:
De ti data essa trágica linhagem. Deixá-la ir, a nota despendida
Dum canto extremo... e a última esperança...
Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto, E a vida... e o amor... deixá-la ir, a vida!
Lembraremos, herdeiros desse povo,
Que entre nossos avós se conta Cristo.
70
HINO À RAZÃO
A Fernando Leal
Com grandes golpes bato à porta e brado: E ele, o mundo, sem mais lutar nem ver,
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado Dormisse no teu seio inviolável,
Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais! Noite sem termo, noite do Não-ser!
A Tommazzo Cannizzarro
MAIS LUZ!
Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
A Guilherme de Azevedo Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Amem a noite os magros crapulosos, Confidente e intérprete da Sorte!
E os que sonham com virgens impossíveis,
E os que se inclinam, mudos e impassíveis, Aonde vão teus sóis, como coorte
À borda dos abismos silenciosos... De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
Tu, lua, com teus raios vaporosos, E em vão busca a certeza que o conforte?
Cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis,
Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis, Mas, na pompa do imenso funeral,
Como aos longos cuidados dolorosos! Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas...
Eu amarei a santa madrugada,
E o meio-dia, em vida refervendo, É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E a tarde rumorosa e repousada. E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas...
Viva e trabalhe em plena luz: depois,
Seja-me dado ainda ver, morrendo,
O claro Sol, amigo dos heróis!
71
TESE E ANTÍTESE
I
IGNOTO DEO
Já não sei o que vale a nova ideia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, à luz da barricada,
Que beleza mortal se te assemelha, Como bacante após lúbrica ceia!
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que reflectes em mim teu brilho ingente, Sanguinolento o olhar se lhe incendeia...
Lá como sobre o mar o sol se espelha? Aspira fumo e fogo embriagada...
A deusa de alma vasta e sossegada
O Mundo é grande – e esta ânsia me aconselha Ei-la presa das fúrias de Medeia!
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente, Um século irritado e truculento
Mas a ara só lhe encontro... nua e velha... Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obus...
Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade, Mas a ideia é num mundo inalterável,
Gota de mel em taça de venenos... Num cristalino céu, que vive estável...
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
Pura essência das lágrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, no céu ao menos!
II
MORS-AMOR
72
SOLEMNIA VERBA
NA MÃO DE DEUS
OCEANO NOX
MORS LIBERATRIX
A A . de Azevedo castelo Branco
A Bulhão Pato
Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento Na tua mão, sombrio cavaleiro,
Que busca e hesita, inquieto e intermitente, Cavaleiro vestido de armas pretas,
Brilha uma espada feita de cometas,
Junto do mar sentei-me tristemente, Que rasga a escuridão, como um luzeiro.
Olhando o Céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento Caminhas no teu curso aventureiro,
Que saía das coisas, vagamente... Todo envolto na noite que projectas ...
Só o gládio de luz com fulvas betas
Que inquieto desejo vos tortura, Emerge do sinistro nevoeiro.
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais? – “Se esta espada que empunho é coruscante
(Responde o negro cavaleiro andante),
Mas na imensa extensão, onde se esconde É porque esta é a espada da Verdade.
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais... Firo mas salvo... Prostro e desbarato,
Mas consolo... Subverto, mas resgato...
E, sendo a Morte, sou a liberdade.”
73
OS CATIVOS Tu que procuras? que visão sagrada
Te acena da solidão onde se esconde?
– Porém o vento passa e só responde:
Encostados às grades da prisão, A noite, a escuridão, o abismo, o nada! –
Olham o Céu os pálidos cativos
Já com raios oblíquos, fugitivos,
Despede o sol um último clarão. E os cativos suspiram novamente.
Como antigos pesares mal extintos,
Como vagos desejos indistintos,
Entre sombras, ao longe, vagamente, Surgem do escuro os astros, lentamente...
Morrem as vozes na extensão saudosa.
Cai do espaço, pesada, silenciosa,
A tristezas das coisas, lentamente. E fitam-se, em silêncio indecifrável,
Contemplam-se de longe, misteriosos,
Como quem tem segredos dolorosos,
E os cativos suspiram. Bandos de aves Como quem ama e vive inconsolável...
Passam velozes, passam apressados,
Como absortos em íntimos cuidados,
Como absortos em pensamentos graves. E dizem, os cativos: Que problemas
Eternos, primitivos, vos atraem?
Que luz fitais no centro donde saem
E dizem os cativos: Na amplidão A flux, em jorro, as intuições supremas?
Jamais se extingue a eterna claridade...
A ave tem o voo e a liberdade...
Por que esperais? nessa amplidão sagrada
O homem tem os muros da prisão!
Que soluções esplêndidas se escondem?
– Porém, os astros tristes só respondem:
A noite, a escuridão, o abismo, o nada!
Aonde ides? qual é vossa jornada?
À luz? à aurora? à imensidade? aonde?
– Porém o bando passa e mal responde:
Assim a noite passa. Rumorosos
À noite, à escuridão, ao abismo, ao nada! –
Sussurram os pinhais meditativos.
Encostados às grades, os cativos
Olham o céu e choram silenciosos.
E os cativos suspiram. Surge o vento,
Surge e perpassa esquivo e inquieto,
Como quem traz algum pesar secreto,
Como quem sofre e cala algum tormento...
74
75
GOMES LEAL
(1848-1921)
Sozinho no meu quarto retirado,
Certas horas do dia calorosas,
A SELVAGEM Quando as flechas do Sol queimam as rosas,
Eu cismo no seu corpo esbelto e amado!
Como vos amo ver, ó catedrais sozinhas, Como uma branca divindade nua,
A recortar o azul das noites consteladas... Ela avança celeste, e, à luz ditosa,
Erguidos coruchéus, místicas andorinhas Qual copo de cristal que enche uma rosa,
— Ó grandes catedrais do sol ensangüentado! O goivo do Pecado em luz flutua.
Como vos amo ver, pombas alvoroçadas,
Flutua, e é nestas horas recolhidas,
Ogivas ideais, anjos de puras linhas,
Que eu me ergo então às cúpulas subidas,
Catacumbas sem luz, aonde embalsamadas
Dormem, de mãos em cruz, as santas e as rainhas!
Donde se avista o místico Ideal...
HORA DO MEIO-DIA
O VISIONÁRIO OU COR E SOM
GUERRA JUNQUEIRO
( 1950-1923)
FINIS PATRIAE Bendita a enxada, mais o braço
(extratos) Que ao cavador abriu a cova!
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III
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Cesário Verde
(1855-1886)
Mas cuidado, milady, não se afoite, A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que espessos forros! Numa das regueiras
Acamam-se as japonas, os coletes; Donde ela vem! A actriz que eu tanto cumprimento;
E eles descalçam com os picaretes, E a quem, à noite, na plateia, atraio
Que ferem lume sobre pederneiras. Os olhos lisos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento,
E neste rude mês, que não consente as flores, Caminha agora para o seu ensaio.
Fundeiam, como esquadra em fria paz,
As árvores despidas. Sóbrias cores! E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores Como lajões. Os bons trabalhadores!
Atiram terra com as largas pás. Os filhos das lezírias, dos montados:
Os das planícies, altos, aprumados;
Eu julgo-me no Norte, ao frio – o grande agente! – Os das montanhas, baixos, trepadores!
Carros de mão, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente; Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Vê-se a cidade, mercantil, contente: Furtiva a tiritar em suas peles,
Madeiras, águas, multidões, telhados! Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste dezembro enérgico, sucinto,
Negrejam os quintais; enxuga a alvenaria; E nestes sítios suburbanos, reles!
Em arco, sem as nuvens flutuantes,
O céu renova a tinta corredia; Como animais comuns, que uma picada esquente,
E os charcos brilham tanto que eu diria Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Ter ante mim lagoas de brilhantes! Encaram-na sanguínea, brutamente;
E ela vacila, hesita, impaciente
E engelhem muito embora, os fracos, os tolhidos, Sobre as botinas de tacões agudos.
Eu tudo encontro alegremente exacto.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos, Porém, desempenhando o seu papel na peça,
E tangem-me, excitados, sacudidos, Sem que inda o público a passagem abra,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto! O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem Com seus pezinhos rápidos, de cabra!
De tão lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem; Lisboa, Inverno de 1878.
Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.
A Manuel Ribeiro
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Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa, A larga rua macadamizada.
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie Rez-de-chaussé repousam sossegados,
Do que escrever em prosa. Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
A adulação repugna aos sentimento finos; Ou entre a rama dos papéis pintados,
Eu raramente falo aos nossos literatos, Reluzem, num almoço, as porcelanas.
E apuro-me em lançar originais e exactos,
Os meus alexandrinos... Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso! Sem muita pressa, para o meu emprego,
Ignora que a asfixia a combustão das brasas, Aonde agora quase sempre chego
Não foge do estendal que lhe humedece as casas, Com as tonturas duma apoplexia.
E fina-se ao desprezo!
E rota, pequenina, azafamada,
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova. Notei de costas uma rapariga,
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Que no xadrez marmóreo duma escada, Como vendera a sua fresca alface
Como um retalho de horta aglomerada, E dera o ramo de hortelã que cheira,
Pousara, ajoelhando, a sua giga. Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
“Não passa mais ninguém! ... Se me ajudasse?! ...”
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos; Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia, E, pelas duas asas a quebrar,
Se ela se curva, esgadelhada, feia, Nós levantámos todo aquele peso
E pendurando os seus bracinhos brancos. Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
Do patamar responde-lhe um criado:
“Se te convém, despacha; não converses. “Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”
Eu não dou mais.” E muito descansado, E recebi, naquela despedida,
Atira um cobre ignóbil, oxidado, As forças, a alegria, a plenitude,
Que vem bater nas faces duns alperces. Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.
Subitamente, – que visão de artista! –
Se eu transformasse os simples vegetais, E enquanto sigo para o lado oposto,
À luz do sol, o intenso colorista, E ao longe rodam umas carruagens,
Num ser humano que se mova e exista A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Cheio de belas proporções carnais?! Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando, (continua)
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
82 Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
Lisboa.
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PROH PUDOR!
A Guerra Junqueiro
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
I AVE-MARIAS Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Nas nossas ruas, ao anoitecer, Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
O céu parece baixo e de neblina, Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba Descalças! Nas descargas de carvão,
Toldam-se duma cor monótona e londrina. Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
Batem os carros de aluguer, ao fundo, E o peixe podre gera os focos de infecção!
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos “Dó da miséria! ... Compaixão de mim! ...”
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras. E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Um sopro que arripia os ombros quase nus. Meu velho professor nas aulas de latim!
Num cutileiro, de avental, ao torno, Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um forjador maneja um malho, rubramente; Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
E de uma padaria exala-se, inda quente, Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E eu sigo, como as linhas de uma pauta E os gritos de socorro ouvir estrangulados.
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, E nestes nebulosos corredores
As notas pastoris de uma longínqua flauta. Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Se eu não morresse, nunca! E eternamente Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas, Eu não receio, todavia, os roubos;
Que aninhem em mansões de vidro transparente! Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis, Amareladamente, os cães parecem lobos.
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas, E os guardas, que revistam as escadas,
Numas habitações translúcidas e frágeis. Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Ah! Como a raça ruiva do porvir, Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes E, enorme, nesta massa irregular
E pelas vastidões aquáticas seguir! De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
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Antônio Nobre
( 1867-1900 )
MEMÓRIA
À minha Mãe,
ao meu Pai Aquele que partiu no brigue Boa Nova
E na barca Oliveira, anos depois voltou; Um dia, os castelos caíram do Ar!
Aquele santo (que é velhinho e já corcova)
Uma vez, uma vez, linda menina amou: As oliveiras secaram,
Morreram as vacas, perdi as ovelhas,
Tempos depois, por uma certa lua-nova, Saíram-me os Ladrões, só me deixaram
Nasci eu ... O velhinho ainda cá ficou, As velas do moinho ... mas rotas e velhas!
Mas ela disse: – “Vou ali adiante, à Cova,
Antônio, e volto já ...”E ainda não voltou! Que triste fado!
Antes fosse aleijadinho,
Antônio é vosso. Tomai lá a vossa obra! Antes doido, antes cego ...
“Só” é o poeta-nato, a lua, o santo, a cobra!
Trouxe-o dum ventre: não fiz mais do que o escrever... Ai do Lusíada, coitado!
Lede-o e vereis surgir do Poente as idas mágoas, Veio a terra, mailo seu moinho:
Como quem vê o Sol sumir-se, pelas águas, Lá, faziam-no andar as águas do Mondego,
E sobe aos alcantis para o tornar a ver! Hoje fazem-no andar as águas do Sena ...
É negra a sua farinha!
Só! Orai por ele! Tende pena!
Pobre moleiro da Saudade ...
Clama um ceguinho:
“Não há maior desgraça nesta vida,
que ser ceguinho!”
outro moreno mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho ...
MENINO E MOÇO
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EUGÊNIO DE CASTRO
(1869-1944)
Doridamente, vagarosamente,
Já para a negra porta se encaminha CANTIGA
Com difícil andar, já nos ferrolhos
Toca das suas mãos o luar dolente:
Mas, de repente, vibra e ecoa ao longe Embora, Senhora, andeis
Um vagido infantil, – a voz do filho! De finas telas vestida,
Por meus olhos sois despida.
Saltam-lhe logo as lágrimas dos olhos!
Oh! não, não partirá! De clara holanda vestis
Mimoso infante, Vosso corpo, linda Infanta,
Escusas de chorar! A mãe suavíssima, Belo rocal de rubis
Em cujo ventre andaste, ouviu-te a doce Vela-me a vossa garganta;
Inocente vozinha, que a deteve ... Trazeis manto de veludo,
Oh! não, não partirá! Lindo menino, Garbosa saia comprida,
Escusas de chorar, dorme em sossego, Mas, apesar disso tudo,
Não terás nunca pejo do teu nome! Por meus olhos sois despida.
E Pedro,
Doído de comoção, branco de neve,
Marejados de pranto os negros olhos,
Enlaça-a febrilmente, e com soluços
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Soam vesperais as vêsperas ...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas, 95
No céu pardo ardem os astros ...
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CAMILO PESSANHA
( 1867-1926 )
MADALENA
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CAMINHO III
II
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2
À flor da vaga, o seu cabelo verde, Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Que o torvelinho enreda e desenreda ... Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
O cheiro a carne que nos embebeda! E escutando o correr da água na clepsidra,
Em que desvios a razão se perde! Vagamente sorris, resignados e ateus,
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