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Rafael López-Pedraza - Ansiedade Cultural
Rafael López-Pedraza - Ansiedade Cultural
Rafael López-Pedraza
Amor e psique
Lopez-Pedraza, Rafael
Ansiedade cultural / Rafael Lopez-Pedraza , [tradução Roberto Cirani] — São Paulo
Paulus, 1997 — (Amor e psique)
Titulo original Ansiedad cultural
Bibliografia
ISBN 85-349-0835-4
1 Ansiedade — Aspectos sociais 2 Arquétipo (Psicologia) 3 Mito — Aspectos
psicológicos 4 Psicanálise e literatura l Titulo II Série
96-3242 CDD-809 93355
índices para catalogo sistemático
1 Psicanálise e literatura 809 93355
Título original
Ansiedad cultural
© Rafael López-Pedraza, Venezuela, 1980
Tradução
© PAU LUS-1997
Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos
que o levam para a sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se um lugar novo
de experiência. Os viajantes destes caminhos nos revelam que somente o amor é capaz
de gerar a alma, mas também o amor precisa da alma. Assim, em lugar de buscar causas,
explicações psicopatológicas às nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos,
em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos
reconhecer que estas feridas e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por
outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para
a nossa unidade e para a realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria vida
carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira.
Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, mas o psíquico, e depois o
espiritual. É a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que
significa que a psicologia pode de novo estender a mão para a teologia.
Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço para libertar a alma da
dominação da
psicopatologia, do espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si
Léon Bonaventure
Agradecimentos
Gostaria de agradecer a Fiona Cairns, Ruth Horine, Robert Hinshaw e Valerie López
por suas genenrosas contribuições editoriais aos ensios compreendidos neste livro, e a
Michael Heron por sua tradução do Duende e de Consciência de frcassso.
O capítulo “Loucura lunar-Amor titânico” apareceu priginalmente no livro Images of
the Untouched, editado por Joanne Strond e Gail Thomas (Spring, Dallas, 1982) e
agradecemos a Spring Publications por tê-lo tornado acessível. “Ansiedade cultural” foi
publicado em separata por ocasião do Novo Congresso Internacional de Psicologia
Analítica de Jerusalém, em 19883.Posteriormente foi publicado na ata oficial do
congresso, Symbolic and Clinical Approuches in Pratice and Theory, editada por Luigi
Zoja e Robert Hinshaw (Daimon, Zurique, 1986). “Reflexões sobre Duende” e “Consciência
de fracasso” foram traduzidos do espanhol por Michael Heron.
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PREFACIO
tive a linguagem dos ensaios tão simples quanto possível, às vezes até mesmo
coloquial, para evitar o jargão das escolas de psicologia e a semântica junguiana. Assim
fazendo, penso, propiciei acesso mais fácil às imagens com as quais estava tratando.
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dos da psicologia dos arquétipos, já que representa para mim um aspecto muito
importante e ainda não plenamente explorado da natureza humana. Para tal propósito
tomarei algumas das idéias que apresentei em meus seminários sobre o titânico.
Parece que nunca houve um culto aos Titãs. Os tempos titânicos podem ser
visualizados como um período de transição entre o homem primitivo e o homem culto,
civilizado. Um período durante o qual não existiam nem o ritual, nem o culto do homem
primitivo, nem a imaginação antropomórfica bem definida do homem altamente culto e
religioso. Como todos temos complexos primitivos dentro de nós, que foram bem
estudados pela psicologia junguiana, todos também devemos ter, implicitamente, um
nível titânico na psique: os complexos titânicos, ainda que não tenham sido tão bem
estudados. Uma psicologia mais diferenciada desse nível titânico ainda aguarda o seu
estudo. Existem personalidades nas quais o titânico parece ser predominante e, acredito,
existem comportamentos estranhos e patologias que só podem ser avaliados em termos
de titanismo, algo a que me referirei com mais detalhes no que se sucede. Estou
convencido de que a psicologia do titânico é sumamente importante, em particular se
aceitarmos que esse ingrediente se encontra em todos nós.
Antes de tudo, seja-me permitido clarificar um pouco o campo mitológico em que
reside a figura que iremos enfocar. Mas, a fim de limpar o terreno para obter uma idéia
mais clara do titânico, será necessário observar o que não é titânico. Os Titãs pertencem
ao tempo mitológico de Crono, época da primeira e segunda geração de deuses. Foi o
tempo anterior à guerra de Zeus contra seus progenitores titânicos, que originou uma
nova ordem, um novo ritual, uma nova religião, uma nova cultura e u mu nova civilização.
A era de Zeus provocou uma diferencia-
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qual o homem ocidental pode extrair inesgotavelmente aquilo com que se educar e
recriar a alma. 4
Hòlderlin escreveu: ”Cheio de méritos, mas poeticamente, o homem habita a terra”.5
Com essas palavras, o poeta nos diz que nossa educação hoje em dia contém o quo o
homem faz tanto por mérito como por intervenção poética. E para refletir sobre a imagem
que irei elaborar, também necessitaremos tanto de mérito como de poesia.
Mas retornemos aos Titãs. Desafortunadamente é muito pouco o que sabemos
sobre eles. A Títanomaquia e dois terços da trilogia de Esquilo sobre Prometeu se
perderam, mas, para os fins que aqui perseguimos, os estudiosos de mitologia deram-nos
uma imagem adequada da antiga raça de deuses. Eis o que diz Kerényi sobre os Titãs:
Os relatos sobre Titãs são sobre deuses que pertencem a um passado tão remoto
que os conhecemos tão unicamente a partir de histórias de um tipo particular, e só
exercendo uma função particular. O nome Titã, desde os tempos mais remotos, foi
profundamente associado com a divindade do Sol, e parece ter sido originalmente o título
supremo de seres que, com efeito, eram deuses celestiais, mas deuses muito antigos,
ainda selvagens e não sujeitos a lei alguma.6
Kerényi nos dá um quadro geral da psicologia dos Titãs: não existem leis, nem
ordem, nem limites. Em sua
¹Educar a alma constitui a preocupação de muitos analistas junguianos da atual
geração. O fazer a alma é um dos numerosos temas dos escritos de James Hillman. Veja-
se particularmente Revisioning Psychology, Harper Colophon Hooks, Nova Iorque, 1977.
Também o excelente escrito de Robert Sardello, Educating with Soul, publicado por The
Center for Civic Leadership, Thi’ University of Dallas, Irving, Texas.
5
Tirado de Martin Heidegger, Hölderling e a essência da poesia, trad. Juan David
García Bacca, Universidade dos Andes, Merida, 1968, p. 15.
6
Carl Kerényi, The Gods of the Greeks, trad. Norman Cameron, Thames mui and
Hudson, Londres, 1976, p. 20.
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Titãs são personificados, representados como formas, o que, talvez, nos permita
ampliar nossa visão do antropomorfismo limítrofe (borderline). Pessoalmente prefiro
visualizá-los como figuras mitológicas que representam mimetismo e excesso, já que não
estão contidos dentro das configurações arquetípicas. Para se ter uma idéia desse
mimetismo, deste jargão e deste excesso, é preciso ter um preparo no estudo dos
arquétipos o mais completo possível. Só tendo um conhecimento das formas arquetípicas
bem definidas, como pano de fundo, poderemos ter idéia da natureza daquilo que, por
definição, carece de forma na natureza humana.
Kerényi escreveu seu Prometeu em 1946, justamente após a Segunda Guerra
Mundial, quando, segundo parece, o homem começou a se dar conta de certos aspectos
de si mesmo até então desconhecidos, como se a guerra o tivesse feito refletir sobre
partes alienadas de si mesmo. A própria literatura, desde O estrangeiro de Camus,
publicado durante a guerra (1942), até A laranja mecânica de Anthony Burgess (1962), nos
confirma essa impressão.14 Relaciono o que Camus e Burgess expressa-ram em seus
romances, em termos de mitologia e psicologia, com o aspecto titânico que estamos
procurando no homem: nem leis, nem ordem, nem limites; só excesso. Uma vez mais, a
literatura nos abriu as portas para uma exploração (que nós, em psicologia, só estamos
começando) daqueles aspectos no homem em que espreita o Titã. Mas, seguindo
novamente Kerényi, devemos aceitar que na vida humana o titânico se expressa em
excessos, em desmedidas. Neste sentido, o titânico poderia ser, se não um arquétipo, pelo
menos uma função particular da natureza humana.
14
Ao discutir as manifestações modernas do titânico, desejaria manter-me dentro
dos conteúdos de O estrangeiro e A laranja mecânica.
18
Retornemos à afirmação de Nilsson sobre os Titãs a quem, como já dissemos, ele
qualifica de ”abstrações ou nomes vazios cujo significado não podemos julgar”. 15 O
pensamento cuidadoso sobre essa afirmativa oferece outro ponto de reflexão que nos
ajuda a atingir uma visão mais ampla do titanismo. Todos somos habitados por essas
abstrações, esses nomes vazios; somos inundados em nossa vida cotidiana por palavras
vazias — nosso bláblá-blá cotidiano —, para não mencionar nossa psicoterapia, na qual,
se não conseguimos nos dar conta de nosso próprio titanismo, podemos cair num jargão
vazio, ainda que utilizemos as mais belas palavras. Nossa psicoterapia sempre corre o
risco de converter-se em nomes vazios, em jargão titânico. Existem áreas em nossas
psiques, ou em nossas vidas, em que não temos reflexão porque não há imagens e, por
isso, não temos sentimentos para avaliar. Tendo em mente esses dois elementos básicos
do titanismo — sua vacuidade por um lado, seu excesso por outro —, podemos começar
a avaliar o excesso através da nossa história, da nossa vida e da nossa prática. Nosso
desafio consiste em levar a reflexão para o que não tem limites, o que não é arquetípico;
para o que, paradoxalmente, não pode ser refletido porque não há imagem, mas que pode
ser detectado através de sua própria retórica titânica.16
Bem, a afirmação de Nilsson de que os Titãs são ”abstrações” ou ”nomes vazios”
nos permite orientar nossa investigação para outra direção, a de nossas chamadas
lacunae: aquilo que não podemos conhecer ou apreender em nós mesmos, essas
abstrações vazias, esse nada, os buracos — esses buracos negros que nos fascinam hoje
15
Veja nota 12.
16
Devemos nos dar conta de que existem dois tipos de retórica: a arquetípica e a
titânica. A retórica titânica pode deter-se em referências tais como ”isso é mera retórica”.
19
em dia. Esses não são arquétipos, mas buracos. Se conseguimos conceber ambos,
a vacuidade e o excesso, nos encontraremos em melhor posição para perceber o titânico.
De fato, o excesso poderia surgir da vacuidade, das lacunae.
Esta discussão sobre os Titãs deveria, assim espero, ajudar-nos na psicologia
arquetípica a adquirir uma idéia básica do campo que eles oferecem ao estudo. Depois de
tudo, seria uma lástima que nossos estudos dos arquétipos se contentassem com a mera
descrição dos perfis característicos de Ártemis, Afrodite, Ares etc. O elemento mais
importante dos Titãs — o excesso, que, até onde vejo, surge da vacuidade — conduz, entre
outras coisas, à patologia ou a ”comportamento estranho”: excesso do qual a história e
todos nós estamos repletos.
Tenho me apoiado com bastante insistência em Kerényi e Nilsson. Pelo que sei,
Kerényi foi o primeiro a tratar do titanismo com profundidade, ainda que a contribuição de
Nilsson acrescente muito em nossas percepções. Na psicologia junguiana, na qual me
baseio, assim como no estudo dos arquétipos, existe muito poucas referências aos Titãs.
O pouco que existe vem de conexões órfico-platônicas entre os Titãs e o mal na natureza
humana. Como assinala Dodds, ”em suas Leis Platão menciona pessoas ’que ostentam a
antiga natureza titânica’ e os impulsos que não são ’nem de homem nem de Deus’ ”: 17 vale
dizer, em termos junguianos, é o mal em nossa sombra que não logramos integrar e então
precisamos rejeitar. Por certo a psicologia junguiana não tem na literatura moderna e na
imagética de nosso tempo um meio de reflexão dessa parte da natureza comumente
chamada ”existência”, que igualo ao titanismo.
17
E. R. Dodds, The Greeks and the Irrational, University of California Press,
Berkeley, 1968, p. 156.
20
21
pedra de suas celas; mas o estrangeiro respondeu que tentou ver o rosto de sua
noiva, Maria, sem conseguir, e isso nos dá uma base para dizer que Maria, sua noiva, não
existe nele como imagem interior.
A laranja mecânica, ampliando o tema do titânico implícito no romance de Camus,
expressa o total excesso em todas as áreas da existência: golpes, assassínios, violações
etc. Burgess nos dá um quadro de uma sociedade que vive em excessos titânicos:
”selvagem e não submetida a leis”, como disse Kerényi dos Titãs. A religião se converteu
em simples mimese que o jovem Titã utiliza para o seu próprio interesse. 19 Na visão que
nos dá Burgess, todas as instituições da sociedade estão baseadas no mesmo excesso
titânico. E a psiquiatria, como redentora, com sua tecnologia prometéica, seu zelo
missionário, trata de resolver o enigma titânico em benefício do pobre Titã, da sociedade
e da humanidade como um todo: Prometeu, um Titã mais sofisticado, aparece de muitas
formas, porém a mais próxima de nosso tema é sua aparição como redentor na figura de
um psiquiatra tecnocrata tratando de salvar o Titã.20
A psique não aprende do excesso titânico. Nesse sentido, devemos estabelecer
uma clara distinção entre o sofrimento, a humilhação, a dor, as feridas da psique — a partir
do que se dá a aprendizagem psíquica, o conhecimento e a formação da alma ou a
iniciação da alma — e o sofrimento repetitivo dos Titãs: esse tédio cotidiano nauseante
do nível existencial de vida; mas ainda que a psique não aprenda nada com isso, deve tê-
lo em conta, deve ser o mais possível consciente de sua existência.
19
Basta pensar nos cultos religiosos, como aquele liderado por Jim Jones, ou
pensar no Titã Menécio, cujo nome significa ”aquele que espera sua pena”, para visualizar
o tipo de zelo religioso que habita o titânico.
20
Talvez devesse mencionar aqui que este excesso titânico não constitui o
interesse exclusivo da psicopatologia. O excesso titânico também tem a ver com o termo
médico stress, mas o interesse médico pelo titânico nos leva muito mais além de nossos
propósitos.
22
23
original, da mesma deusa, a Lua) de modo que ela pudesse sempre encontrá-lo e
beijá-lo em sua caverna.23
Quero que mantenhamos esse quadro de Selene descendo na caverna para fazer
amor com Endímion cada vez que ela deseja, mas mantendo essa imagem tal como é. O
que me interessa é ler a imagem, não sintetizar ou ampliar os seus componentes — como
seria ver a Lua como mãe, a caverna como útero etc. 24
Então, segundo o que nos diz Kerényi, ”Endímion significa ’alguém que se encontra
no interior’, envolvido por sua amada como num traje comum”. 25 Podemos agora começar
a imaginar o que o nome Endímion, ”o que se encontra no interior”, pode significar. No
nível mais óbvio, é bastante comum que se diga de alguém: ”Ah, sim! Fulano é muito boa
pessoa, mas toda sua energia está em seu interior”; ou: ”Parece que fulano tem muito por
dentro, mas não consegue pôr para fora”. Todos temos ouvido esse tipo de comentário
sobre algum amigo ou sobre algum estudante, por exemplo. E estou certo de que todos
podemos recordar algum momento em nossa vida em que fosse o que fosse que
tivéssemos, era só por dentro. E como tivemos de esperar para que se convertesse em
algo mais, à medida que nossa vida ia se desenvolvendo!
Além do significado do nome que nos traduz Kerényi, existe outro nível a partir do
qual podemos refletir sobre Endímion e sua imagem vivendo na caverna com a Lua,
Selene, como amante. Por isso, o amor de Endímion pela Lua — que, apesar de ser uma
titânida, é uma virgem —
23
Ibid., p. 198.
24
Aparece claramente no relato de Kerényi que Selene se reserva o direito d* dar o
primeiro passo em direção a Endímion; o pastor é descrito como recostado passivamente
esperando seus avanços amorosos. Walter Otto acrescenta que é uma característica das
titânidas dar o primeiro passo num encontro erótico,
25
Kerónyi, The Gods of the Greeks, p. 198.
24
O mantém intocável para qualquer outro deus ou deusa, isto é, para outras
possibilidades de vida; ele permanece leal a seu amor pela Lua como Selene. Poderíamos
dizer que Endímion é um precursor de Hipólito, outra figura mitodológica que amou
somente Ártemis: Ártemis se assemelha simbológicamente à Lua, mas já como uma
imagem consiste e bem definida. Endímion está envolvido por sua amada como num traje
comum, o que equivaleria a dizer que ele se mantém virgem. De mais a mais, acredito
podermos ligar excesso interior, tal como aparece na história de Endímion e da titâbida
Selene, como aparece na história de Endímion e da titânida Selene, com um tipo peculiar
de virgindade e com uma patologia, contratando com os Titãs, cujo excesso é externo.
A imaginação do poeta Licofron foi estimulada a criar uma variante da história de
amor de Endímion. No relato deLícofron, ”o deus Hipnos, o deus alado do sono, se
enamorou de Endímion. Deu ao jovem a capacidade de dormir com os olhos abertos”.26
Esse relato enriquece enormemente as complexidades de Endímion. Todos nós, creio, em
determinados momentos e muito mais freqüentemente do que pensamos, dormimos na
vida com olhou abertos; trata-se de um estado lunar particular de excesso interior. E todos
podemos recordar aquele longo período de nossa juventude, quando dormíamos com os
olhos abertos, esse estar ”na lua” que desespera a nós mesmos tanto quanto a quem nos
rodeia. Ainda hoje em dia, quando queremos ouvir com atenção uma conferência
interessante, por exemplo, o deus do sono aparece e nos faz dormir um pouco. Eu mesmo
chego a dar uns cochilos de olhos abertos, às vezes, durante os momentos mais
interessantes de minha atividade! Às vezes sucede que a realidade que temos na nossa
frente é tão abrumadora e nos golpeia de tal maneira que, diante de tal acontecimen-
25
to, ficamos dormindo com os olhos abertos. Há uma retirada para nosso interior
que parece nos proteger da demasiada realidade que existe diante de nós: ”O ser humano
não suporta demasiada realidade”, disse Eliot.
Apolônio, outro poeta alexandrino, relata segundo Kerényi que o sono eterno de
Endímion foi ”um presente de Zeus, que lhe permitiu escolher a sua própria maneira de
morrer: assim Endímion escolheu o sono eterno em lugar da morte”. 27 Neste ponto,
podemos começar a apreciar como esses três relatos da história de Endímion citados por
Kerényi podem nos proporcionar uma percepção da natureza interior dos níveis
psicológicos aos quais estamos aludindo. Nas complexidades que rodeiam Endímion
encontramos, além da Lua, as figuras de Hipnos, Zeus e da Morte. Dos três relatos, talvez
o de Apolônio seja o mais rico e o que propicie uma visão psicológica mais profunda,
posto que Apolônio descreve em Endímion uma condição patológica grave. Na versão de
Apolônio temos um elemento muito profundo: Zeus, o pai eterno, intervém e, com a
presença da Morte, converte a história de Endímion em ”assunto sério”. É como se a
imaginação de Apolônio nos mostrasse Zeus jogando fatalmente com um mortal, como
gostam de fazer os deuses. Zeus dá a Endímion o privilégio de escolher o modo de sua
morte. Este tema da escolha da própria morte obcecou alguns poetas — em particular
alguns românticos, poetas feridos pelos excessos. Pensar em escolher a própria maneira
de morrer pode-se entender como uma inflação titânico-romântica, unida à fuga da
constante reflexão que a morte leva ao longo da vida: o valor da vida que provém da
reflexão sobre a morte. Aqui confrontamos diretamente a patologia de Endímion, posto
que podemos começar a imaginar o mitologema de Endímion
27
Ibid.
26
27
tiguidade poderíamos dizer que tiveram uma inspiração corporal lunática. Foram
capazes de encontrar a si mesmos desde dentro. E é justamente o resgate desse aspecto
corporal, o aspecto psicofísico, que constitui o objetivo deste ensaio.
Na Bibliografia dos mitos gregos na poesia inglesa, de Helen Law, aparece a
recriação poética do mito de Endímion na obra de quarenta e dois poetas, até 1955; é que
para o homem ocidental a poesia é seu corpo psíquico, equivalente ao inconsciente, um
corpo psíquico que foi rechaçado e reprimido por dois milênios de ascese espiritual cristã.
Na poesia do século XX — sem me referir a re-criações poéticas de Endímion —, Endímion
tem aparecido nas formas mais variadas: nas atitudes, nas explorações e nas visões
poéticas de alguns poetas contemporâneos. André Breton, o grande pontífice do
surrealismo, escreveu em 1928:
Agora evoco Robert Desnos na época que aqueles de nós que a conheceram
chamam de a época dos sonhos. Ele ”dorme”, mas escreve e fala. É noite, no estúdio de
minha casa em cima do cabaré do Céu. Fora, alguém grita: ”Entremos, entremos no Gato
Preto!” E Desnos segue vendo o que eu não vejo, o que só vejo à medida que ele me
mostra.29
Como se sabe, os surrealistas, que floresceram durante o período Ventre deux
guerres, estavam vivamente interessados sobre magia, e sua literatura foi impregnada
dessas noções. Mas, acima de tudo, sentiam-se atraídos pelo ”automatismo psíquico” de
Janet. No primeiro dos vários manifestos surrealistas, Breton equiparou o surrealismo
com o automatismo psíquico, e o definiu como ”puro automatismo psíquico mediante o
qual se propõe a expressão, seja verbal ou de outra maneira, do real fun-
29
André Breton, Nadja, Joaquín Mortiz Editor, México, 1963, p. 22.
28
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Por último, uma linha de outro poeta. Escutemos como o complexo de Endímion se
torna presente em um momento fortuito na caverna de uma cidade moderna, no homem
de hoje em dia:
Ou como, quando um trem subterrâneo, no túnel, se detém demasiado entre duas
estações. E a conversa se anima e cai lentamente no silêncio E por detrás de cada rosto
vês que o vazio mental se aprofunda Deixando só o crescente terror de não ter nada em
que pensar.37
37
T. S. Eliot, ”East Coker”, in, Four Quartets, em The Complete Poems and Plays,
Faber and Faber, Londres, 1969, p. 180.
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ANSIEDADE CULTURAL
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uma fraude parte de minha vida. A essência da Bíblia é o monoteismo: o culto a um
só Deus e o ciúmes e a ira desse Deus perante outro deus ou outro culto. Esta crença
impregnou extensamente o mundo em que vivemos: nossas crenças religiosas, nosso
modo de vida, as idéias de nossa cultura, nossa política, as ciências e, por último, algo
igualmente importante, os estudos de psicologia. O monoteísmo está profundamente
arraigado na psicologia de todo ocidental seja qual for sua geografia, sua condição social
ou sua educação.
Assim, a Bíblia, o livro do monoteísmo, ainda que geograficamente alheia ao homem
ocidental, ocupa lugar tão predominante em sua psicologia, que aqueles que poderiam
HIT considerados como os livros mais genuinamente ocidentais se retiraram para dentro
do que chamamos o incociente, ou são importantes para minorias dispersas. De fato, a
Bíblia está em oposição aos livros ocidentais, oposição que se torna evidente nos livros
de mitologia: os livros do politeísmo pagão, os livros de tantos deuses e suas imagens, a
riqueza de tantas formas de vida. A mitologia grega nos oferece a mais completa lista de
imagens jamais se produziu; e ela tem formado o material do tragédia, as fontes da poesia
e da literatura, tem nutrido a vida poeticamente, povoando a terra com imagens, e tem
dado fundamento à filosofia. Dentro disso devemos incluir também as outras numerosas
mitologias do mundo ocidental: as mitologias nórdicas, as tradições e lendas ocultas dos
celtas, as mitologias, lendas e concepções poéticas dos povos americanos autóctones
etc. Estes são os livros que têm a ver com o que, em psicologia junguiana, chamamos o
inconsciente coletivo. Depois os livros que nos falam das origens da vida do homem sobre
a terra e da evolução do homem; esses livros, com suas estimulantes discussões sobre
as raças humanas e o comportamento do homem, são os que tra-
35
tam da história mais antiga e primitiva do homem e os que, com mais humildade,
não dizem que a humanidade é a obra culminante da criação de Deus, mas simplesmente
outra espécie animal em outro nível de evolução; aqui vemos a grande contradição com
relação à criação da Bíblia.
O homem ocidental escreveu muitos livros ao longo de sua história e todos fazem
parte dos atuais estudos da psicologia: livros que atualizam os velhos mitos, que narram
a trama de sua história vivida, em que está também o grande ganho de sua literatura, em
que se revelam aspectos essenciais de sua psique. Todavia, essa riqueza que está no nível
do inconsciente coletivo não se iguala à Bíblia — o livro que nos chegou do Oriente —
porque esta produz um efeito especial: provoca uma identificação com o texto, uma
identificação coletiva; algo que os outros livros não suscitam, e, se alguma identificação
aparece, permanece, em geral, em níveis individuais ou de pequenos grupos.
Na tradição espanhola medieval parece ter existido certa consciência da
identificação provocada pela Bíblia. A Bíblia foi o livro das massas. Na igreja foi mais um
livro de consulta para os eruditos e uma fonte de amplificação para santos e místicos.
Cervantes, no mais importante livro da literatura espanhola, alerta sobre a loucura em que
a leitura demasiado intensa dos livros de cavalaria precipitou Dom Quixote. Eu intuo nessa
consciência uma antiga e complexa tradição que trata de impedir qualquer literalização da
palavra escrita.
Os ocidentais, sobretudo a partir da Reforma, têm feito uma leitura destes contos
bíblicos orientais e reagido de diferentes formas, que vai desde uma tola identificação até
um rechaço hábil ou brusco que provoca um distanciamento do livro. O fato é que a Bíblia,
com seu ingrediente oriental, desconcerta a psicologia ocidental
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religiosos durante os primeiros séculos do cristianismo, chamando àqueles tempos
de ”era de ansiedade”, inspirado em uma frase poética cunhada por W. H. Auden. Era uma
época em que o conflito entre o paganismo tradicional e o novo monoteísmo cristão
irrompeu abertamente; uma época que, de certo modo, pode ser comparada à nossa, que
é também uma ”época de ansiedade”. Os ensaios de Dodds sobre o que para ele foi
historicamente uma época de ansiedade incitaram-me a ter uma visão mais ampla da
ansiedade e a considerar o seu trabalho dentro de um contexto mais psíquico. Eu diria
que a psique ocidental sempre viveu a ansiedade provocada pelo conflito constante entre
as mitologias pagas — os numerosos deuses com suas imagens diferenciadas — e o Deus
único e carente de imagem do monoteísmo. É uma ansiedade que surge de um conflito de
culturas. Portanto, sempre existiu o que eu me atreveria a chamar uma ansiedade cultural.
Os conflitos mais profundos do homem são culturais, algo que não pode ser descartado
pela psicologia.
O livro de Dodds nos dá uma perspectiva histórica, acentuada pelo título do poema
de Auden, que implica que o sentimento de ansiedade cultural se faz mais evidente, mais
agudo, em períodos de tensões históricas. Mas é a partir das tensões que começa a dar-
se a reflexão sobre o que sempre esteve ali e foi tomado como certo. Aqui quero fomentar
certa reflexão sobre esse tema do politeísmo e monoteísmo, fazendo notar o óbvio desses
dois aspectos da psique ocidental, e logo fazer uma pergunta: Por que a psicologia tardou
tanto para começar a pensar no monoteísmo e no politeísmo dentro de nós mesmos e em
se dar conta de que essas duas realidades históricas estão na base mesma de nossos
conflitos? Estou consciente de que se trata de uma tentativa para refletir desde o ponto
de vista da psicologia junguiana, mas a partir de outro ângulo.
40
41
James Hillman diz que os últimos trabalhos sobre o monoteísmo judaico foram
feitos por Freud em Moisés e o monoteísmo 6 e por Jung em Resposta a Jó.7 Ao examinar
isso, Hillman transmite de certo modo uma sensação de tédio, implicando que a fonte
judaica está esgotada e que agora a exploração se deslocou para o politeísmo pagão.
Bem, com satisfação acompanhamos esta mudança de rumo, pois indubitavelmente
é ali que se encontrava armazenado todo um tesouro de imagens e para onde se
deslocaram os estudos eruditos da psicologia. Mas não devemos confundir o trabalho de
erudição — sem afastar sua importância e utilidade — com o objetivo do estudo da psique,
o qual, segundo meu modo de ver, consistiria em concebê-lo como conflito psíquico
internalizado.
Podemos realizar numerosos estudos sobre os mitos pagãos e, apesar disso, não
considerarmos a ansiedade gerada na psique por estas duas forças poderosas do
6
O esqueleto dos estudos de psiquiatria e psicologia se apoiou sobretudo nos
conceitos surgidos de observações clínicas empíricas de enfermidades mentais. Desde o
começo do século o símbolo parecia dominar os estudos do inconsciente. O uso que
Freud fez do símbolo, entendido por Jung como signo e sintoma (semiótica),
evidentemente teve origem em seus estudos sobre convenções histéricas no final do
século. Por outro lado, Jung começou seu trabalho psiquiátrico com pacientes psicóticos,
e isso lhe permitiu levar a cabo sua grande descoberta dos símbolos religiosos no
inconsciente desses pacientes. Aqui a palavra símbolo está corretamente usada, porque
o symbolon original significa a união de algo que previamente se dividiu. E o símbolo está
na base de muitas das idéias de Jung sobre os opostos e a reconciliação dos opostos.
Em seu livro Tipos psicológicos, sinto que Jung usava indiferentemente o símbolo e a
imagem, dando-lhes o mesmo valor. Logo foi mais específico e mais definido ao tratar as
imagens primordiais. As imagens se fizeram mais diferenciadas, proporcionando-nos hoje
um campo de exploração mais amplo, no qual considero que se desenvolve o trabalho
psicológico mais apropriado e no qual o símbolo é considerado atributo da imagem. com
a psicoterapia da imagem se abriu uma nova perspectiva para a histeria; na psicose
sentimos que as respostas imaginárias ao simbolismo inconsciente do paciente
propiciam uma melhor terapia. E uma nova descoberta da imagem nos padecimentos
psicossomáticos prove uma aproximação completamente nova para esses males.
7
James Hillman, Re-Visioning Psychology, Harper Colophon Books, Nova Iorque,
1977, p. 226.
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43
monoteísta e, como disse antes, isso é o que contribui em grande medida para essa
ansiedade cultural que vivemos. Não podemos continuar especulando sobre a psique,
trabalhando para ”fazer alma”, sem ter uma apreciação das complexidades e ramificações
do monoteísmo em nossa psique e em nossa vida.
Para o analista que pode estar interessado em considerar a ambos, o monoteísmo
e o politeísmo, o desafio consistiria em aprender a conhecer melhor a diferença entre a
retórica monoteísta e a retórica politeísta: forjarse uma memória tão abundante quanto
possível de seus diferentes estilos. Aquilo que para um homem do Renascimento era o
resultado de uma ”memória unificada”,8 para o analista moderno seria uma diferenciação,
através de sua retórica, do material que surge do lado forte e monoteísta da cultura e do
que emana do lado pagão, mais reprimido. Do ponto de vista da psicologia de hoje, os
ganhos do homem renascentista seriam caóticos para o homem moderno, porque não
existe nenhuma diferenciação básica dentro de sua ansiedade cultural. A arte da
psicoterapia consistiria em refletir sobre o paciente a partir desse tipo de memória, que
pode tanto memorizar quanto diferenciar o monoteísmo e o politeísmo, abrindo-se
caminho dentro da ansiedade cultural do paciente, conscientizando o conflito.
Se nos deslocarmos da identificação com o ponto de vista do ego e irmos para uma
diferenciação do monoteísmo e do politeísmo na psique, poderemos começar a ter uma
idéia de como a culpa, que em nossa cultura se manifesta nos termos de uma forte
identificação, a partir de uma nova distância psicológica, pode agora ser perce-
8
Refere-se à noção de unificação da memória de Giullio Camillo, uma memória que
abarcava a tradição judaico-cristá e o redescobrimento da imaginação paga e declarava
também o desejo do homem renascentista de haver-se com sua ansiedade cultural. Ver
Francis Yates, A arte da memória, F. C. E.
44
como uma retórica. A culpa, com suas infinitas variações de sentimentos de culpa
e suas confusões culpabilizadoras, pode ser tratada como uma das retóricas
fundamentais do monoteísmo; de fato, a mais evidente. Quase se poderia afirmar que o
monoteísmo se iguala à culpa. O peso da culpa acarretada pelo cristianismo provém de
uma dominante hebraica, e surge da identificação religiosa com a tradição judaica (a
ansiedade de manter-se dentro das leis da religião): ”no princípio era a culpa”. Agora, por
exemplo, sabemos que no paganismo grego a culpa não era tão importante. Baseio-me
em Nilsson, que fez notar que a culpa era basicamente alheia ao espírito grego.9 A culpa
se reduzia a assuntos das seitas, as seitas virginais e puritanas pitagóricas e órficas. A
culpa era um assunto sectário — a ansiedade de manter as regras da Moita. Mas nunca foi
aceita pelos gregos em geral, que rechaçavam as idéias de culpa.
com todas as suas variações, a cultura ocidental é uma cultura inconscientemente
culpabilizante e, conseqüentemente, nossa psicologia tem um aspecto fortemente
culpabilizador. Em nossas vidas, podemos detectar as complexidades da culpa quando
atua de maneira autônoma. Todos conhecemos pessoas de muito êxito, refinadas e cultas,
cuja conversação, qualquer seja o tema, sempre cai sob o domínio da culpa. Existem
pessoas que se ajustam para ver os acontecimentos de suas vidas unicamente através do
espectro da culpa; pessoas que posHuem particular destreza para manter a culpa em
primeiro plano, seja nelas mesmas ou nos outros. Para esHns pessoas a concepção de
uma vida que não esteja profundamente impregnada de culpa é algo que ultrapassa todas
as suas possibilidades. Pode-se ver toda uma vida
9
Martin P. Nilsson, A History of Greeks Religion, Clarendon Press, Oxford,
11149, p. 217.
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47
alquímico por uma alma capaz de suportar essa confusão; uma alma em níveis mais
profundos, assentada sobre um paganismo suíço, céltico, romano, germânico.
A implicação da ansiedade cultural de Jung se faz sentir quando cita Paracelso, ao
dizer: ”... escrevo como pagão ainda que seja cristão”,11 uma observação que descreve a
ansiedade de muitos homens ao longo da história ocidental. Segundo Jung, a posição
psíquica de ser mais pagão do que cristão contém um sentimento de inferioridade. É a
posição daquele que vive de e para a alma, uma alma que não faz concessões como a de
Joyce ou a de Jung, que não entra em explicações nem conceitualizações. Suponho que
mesmo Jung tinha esse sentimento de inferioridade ao qual fazia alusão. Ele o transmite
em seu desejo de não ter seguidores (”Eu não sou junguiano, eu sou Jung”), em seu
constante eludir a crítica, em seu respeito diante dos complexos dos outros, em sua
conexão com o outro tal como era. Jung nunca viveu na inflação de querer ser o líder. A
resistência que manifestou diante da fundação do Instituto que leva seu nome é bem
conhecida. Sente-se a ansiedade de Jung em seu conflito com o mundo científico tão
alheio à sua alma paga. A noção de Paracelso, de que cada pessoa tem sua estrela,
encontra eco na principal preocupação de Jung: a individuação.
Joyce e Jung se conheciam muito, sofreram e realizaram suas obras sob a pressão
extrema do que gosto de chamar de ansiedade cultural. Ambos tiveram também essa
estranha energia vigorosa que provém do misterioso ingrediente do antigo celta europeu,
e ambos revelam ao
11
CW 13, parágrafo 148. Recomendo a obra de Jung Paracelso como fenômeno
espiritual, para se ter uma compreensão da dupla ansiedade cultural vivida durante o
século XVI: por um lado, o cisma do próprio cristianismo e, por outro, o conflito judaico-
cristão, expresso por Paracelso através do termo ”pagoyum”, um de seus neologismos
favoritos, composto de ”pagão” e da palavra hebraica ”goyim” (parágrafo 148).
48
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53
54
Jung diz que uma das reações à psicopatia é a ira. Ele não culpabilizou os alemães
de maneira manipulardora, tuas com toda a ira honesta e toda a raiva como uma resposta
natural diante do comportamento psicopático. ”Lutando com a sombra”, o terceiro ensaio,
porta um titulo cativante. Se ”Wotan” trata da irrupção de uma figura arcaica do norte da
Europa e ”Depois da catástrofe” (rata do horror do psicopata, então só podemos nos ’
conectar psiquicamente com o que trata o terceiro ensaio:
a luta com a sombra. Sombra é aquilo que não conhecemos de nós mesmos. É
também um título preciso, em
particular para aqueles de nós que aprendemos a psicologia do estudo da sombra
que, até onde alcança minha vista, é a única maneira de desenvolver o psíquico e aproI u
ndar os estudos da psicologia. A luta com a sombra nos permite sair da visão restrita de
Wotan unicamente como psicose e da catástrofe só como psicopatia. Entre esses dois
extremos — a psicose e a psicopatia — reside a possibilidade psíquica humana de lutar
com a sombra ou, peIo menos, de se dar conta um pouco do que chamamos sombra, o
que não conhecemos da natureza humana.17
Toda essa psicose e toda essa psicopatia tornaram possível a Segunda Guerra
Mundial com seus oitenta milhões de baixas, entre elas seis milhões de judeus. Mas foi o
extermínio desses seis milhões de judeus — o que chamam o holocausto — o que faz da
Segunda Guerra Mundial algo bastante diferente. E o holocausto é central para o lema da
ansiedade cultural, porque sem o extermínio de
17
Comove-nos profundamente a ansiedade cultural de Jung. Ponderando a
maravilha que foi o Renascimento, dizia que se não fosse pelo padre alemão, esse
movimento produziria o mais extraordinário renascimento da cultura antiga. Porém logo
em ”Wotan” argumenta que o protestantismo pode ser a correta resposta cristã. Toda sua
ansiedade cultural reside nesta contradição: sua confusão entre protestantismo e
catolicismo, além de seu desfalecimento Hauptbanhof ao viajar para a Itália. Desfalecemos
presa de ansiedades extremas (Kolb).
55
56
cura da pureza virginal. Essa fantasia virginal de duas raças da puras dá à Segunda
Guerra Mundial sua peculiandíide psicológica e converte a crueldade do holocausto em
um episódio único da história ocidental.
Mas, permitam-me uma pequena digressão: um dos termos mais maltratados da
psicologia do século é ”agresão”; o abuso que dele se faz é suficientemente convincente.
Até nos dias recentes, as idéias referentes à agressão, provenientes dos estudos da
conduta animal, da antropologia etc., nos dizem que o homem tem uma agressividade
instintiva como a dos animais. De acordo com essas idéias, o que falha no homem é que
os chamados complexos primitivos aparecem no ”homem civilizado” e se apoderam dele,
colocando-o fora de controle. Isto, em torn de reprovação e com certa hipocrisia, é
projetado sobre o homem primitivo que todos levamos dentro em alguma parte. Todo tipo
de teorias têm sido elaboradas a esse respeito, até a do velho cérebro e a do novo cérebro.
Sem dúvida, hoje em dia, os novos livros sobre evolução19 nos oferecem idéias mais
psicológicas e sofisticadas, mais adequadas ao espírito de nossos tempos. Se o homem
só possui uma agressividade instintiva, então esta poderia estar contida na ecologia de
seus instintos. Porém a coisa é mais complexa. A agressividade no chamado homem
primitivo, que sabe mais ou menos como manejá-la, não nos serve para explicar e muito
menos aceitar o que nos oferece o mundo atual.
Através dos testemunhos da história, o que chamamos de agressividade no homem
parece que surgiu de seus conflitos culturais, uma expressão de sua ansiedade cultural.
E se os livros recentes sobre evolução apresentam a agressividade primitiva como algo
mais do que instinto, um produto da cultura, então não resta nada a com-
19
Por exemplo: Richard E. Leaky, The Making o f Mankind, Dutton, Nova
Iorque, 1981.
57
parar com o chamado ”homem civilizado”, o qual, aplicada a ele, a palavra agressivo
já não tem validade, está fora de contexto; poder-se-ia dizer que simplesmente não é
suficientemente forte. Então, já que a agressividade se vive no nível mais primitivo, para
o homem civilizado, com seu excesso de conflito cultural, prefiro utilizar a palavra
crueldade.
Ao aceitar o termo junguiano de sombra como campo de exploração, a psicologia
profunda deve incluir a crueldade, um subproduto da cultura e da civilização, como
elemento essencial da sombra. Considero a crueldade como algo suficientemente
acessível para ser mantida dentro de nossa consciência diária: a crueldade é cultural, e
nela jaz a possibilidade de tornar-se psíquica. É como se a história mudasse
constantemente nossa visão deste ponto. E impossível ter hoje em dia a mesma visão
desta característica humana que se tinha há cinqüenta anos: a crueldade está crescendo.
Historicamente falando, Jung e seus seguidores e colaboradores trabalharam sobre esta
parte da natureza humana em termos de maldade. Eles a consideraram principalmente
dentro da tradição religiosa das polaridades do bem e do mal, ou do mal como parte de
nossa natureza com a qual não podemos lidar e, por isso, temos de rechaçar.
Para resumir: com estas três facetas da natureza humana estamos tratando de
diferenciar o que pertence à parte mais obscura de nossa sombra. A agressividade é uma
atitude instintiva que aparece nos conflitos do homem primitivo e, assim mesmo, no nível
primitivo da psique e de nossos complexos. (Poderíamos talvez empregar a palavra
agressão para algumas atitudes e comportamentos das crianças e enfermos mentais.) A
crueldade é um produto do homem civilizado e surge de sua ansiedade cultural.
Certamente, a agressividade e a crueldade podem coincidir. E, por último, nos estudos de
religião
58
59
até um anseio inconsciente. Existe uma estranha psicologia nessa aceitação de ser
vítima, de ser movido por um destino que precipita inconscientemente a busca do
perseguidor. É um destino que se move com extraordinária força e habilidade ao encontro
de sua realização. Se a meta do destino é converter-se em vítima, toda energia se dirigirá
para isso. Se o propósito final é ser uma vítima, podese então imaginar que isso é o que
realmente realiza esse destino. Tal sentido do destino faz com que uma vida se converta
no veículo dessa força. Assim é como eu desejo ver a história da diaspora judaica na
Alemanha: o povo judeu, impulsionado pela força de seu destino — a pureza racial —
através dos séculos, propiciando e movendo-se até as conseqüências finais do
holocausto.
Haver sido eleito e ser a vítima é o mesmo; e haver sido eleito é um paradigma de
pureza. Deixemos que um escritor do século XX, George Orwell, em seu 1984, escrito em
outro momento de grande ansiedade cultural, descreva-nos a atitude monoteísta que torna
possível a loucura da pureza racial. Orwell nos transmite um quadro imaginativo de suas
origens, ainda que seus interesses se centrassem na maneira como a pureza aparece na
concepção monoteísta mais recente: o atual monoteísmo do Estado:
O que se requeria de um membro do partido era um aspecto semelhante ao do
antigo hebreu que sabia, sem saber muito mais, que todas as nações com exceção da sua
veneravam ”falsos deuses”.
Ele não necessitava saber que esses deuses se chamavam Baal, Osiris, Moloc,
Astarot: provavelmente quanto menos sabia sobre eles, melhor para sua ortodoxia. Ele
conhecia Javé e os mandamentos de Javé: sabia, portanto, que todos os deuses que
tinham outros nomes eram deuses falsos.21
21
George Orwell, 1984.
60
A sombra arrojada por esta loucura de pureza raiai, osta exclusividade, constelou
por sua vez a loucura loinã de pureza racial: a pureza racial, tornando possível o
aparecimento de outra pureza racial. O que a história revelou na Alemanha foi o assassínio
de judeus ”puros” cometido por alemães ”puros”: os puros arianos contra o povo eleito
por Deus. Duas concepções de vida dominadas pela virgindade cuja conseqüência foi a
demência. O impacto de duas psicologias virginais teve por efeito uma destruição em
massa, um massacre. Vítimas e perseguidores, perseguidores e vítimas, dançando juntos
uma dança de morte infernal. E mais, nessa aparição demente da virgindade jazia o
elemento mais destrutivo, ali se centrava aparentemente toda destruição, quase como se
toda essa guerra terrível tivesse sido simples pretexto para tornar possível o encontro da
sombra de suas purezas raciais.22
Estamos acostumados a não ver loucura na concepção judaica de sua pureza
religiosa e racial. Mas a partir dos estudos de psicologia junguiana, necessariamente
temos de considerá-la como uma loucura. Temos aprendido a ver segundo os termos da
equação junguiana: religião igual a loucura. A partir de nossa religiosidade, sentimos
como a religião é uma rede que pega e retém nossa loucura. Mas Jung também nos
ensinou a ver a religião como o campo do inconsciente em que a sombra está mais à
espreita, em que a ansiedade cultural se torna mais evidente; em outras palavras, o campo
a estudar.
Neste ensaio sugeri uma psicologia do holocausto que, no meu parecer, enriquece
o seu estudo. E uma psicologia bem arraigada no legado de Jung do inconsciente co-
22
Se lemos os documentos da guerra, chegamos à conclusão de que o Alto
Comando nazista estava mais obcecado pelos judeus do que pelo que sucedia IIIIH frentes
de guerra.
61
letivo, dos complexos históricos e da sombra. Prefiro considerar o holocausto em
termos de ansiedade cultural e da constelação de duas sombras ambas com sua própria
crueldade, em vez de aceita-lo tal como foi visto em seus níveis de culpa ou em termos de
vítimas e perseguidores.
E. R. Doods, em Os gregos e o irracional, disse de maneira muito conveniente que,
quando o paganismo declinava antes do cristianismo se impor como religião única do
Ocidente, a atitude dominante na alma ocidental era um ”medo da liberdade”.23 E assim o
medo dos muitos deuses foi mitigado pela proteÇã° de um só Deus. Mas, se em nossos
dias encontramos um paralelismo com os ”tempos de ansiedade” de Dodds (tempos que
anunciam grandes mudanças no mundo), não podemos dizer que a alma de hoje encontre
um grande refúgio no monoteísmo: porque é esse mesmo monoteismo que está
provocando o medo; ele que não respeita o direito de ser diferente; o que tem a fantasia
de fazer um mundo só monoteísta. Não faz muito tempo, o mundo em que vivemos esteve
preso pelo temor do choque entre dois sistemas monoteístas predominantes: um o
monoteísmo norte-americano concebido a partir dessa mescla de racismo e religião, os
brancos anglo-saxões e protestantes (White AngloSaxon Protestants, os WASPS), leitores
da Bíblia (o livro oriental); o outro, a concepção monoteísta do ex-Estado soviético. Apesar
de qualquer consciência que pudessem ter de suas recíprocas sobras, estes dois
sistemas monolíticos pareciam estar propensos a destruírem-se um ao outro.
Ambos tinham esse perígoso ingrediente virginal da pureza — em um bíblica, no
outro ideológica — e seu conflito produzia o medo de nossos dias. Uma situação histó-
23
E. R. Dodds, Os gregos e o irracional, Alianza Editorial, Madri 1980 cap. VIII: ”O
medo à liberdade”.
62
64
Nas primeiras linhas de seu escrito sobre o Duende,1 Garcia Lorca nos transmite, o
que à primeira vista poderia ser uma denúncia, algo que pensado mais tranqüilamente se
torna uma reflexão do ensino, da cultura, da história da cultura; algo que em primeira ou
última instância concerne à alma e à vida do homem moderno. Garcia Lorca começa seu
bate-papo recordando como em seus dez anos de estudante ouviu, no refinado salão em
que agora ele se encontra, ”cerca de mil conferências”, e acrescenta: ”com desejos de ar
e sol, aborreci-me tanto, que ao sair me senti envolvido por uma leve bruma quase ao
ponto de converter-se em uma grande irritação.2
Sua denúncia é dirigida ao ensino: são essas mil conferências que como roda de
íxion podem se transformar numa repetição infinita e sem sentido. Mil conferências sobre
as quais Garcia Lorca nos faz entrever seu sentimento de irritação, algo que nos chega
como uma maldição — infernal — titânica. Mil conferências que no melhor dos casos
proporciona uma série de informações que jamais serão assimiladas ou vividas e que,
pelo contrá rio, estão ali para aprofundar abismos entre o conhecimento e aquilo que
conhece em nós: a alma.
1
Federico Garcia Lorca, Obras completas, Editorial Aguilar, XIII ed., Madri, 1967.
2
Federico Garcia Lorca, op. cit., p 109.
65
66
que já estava no ambiente, e que era para o homem deste século como uma
necessidade de respirar mais profundamente; mas um respirar que era como tomar ar,
estímuIIIN, imagens, de muito mais além de onde normalmente Hioga o ar aos pulmões.
Pois o que mais nutre nossas necessidades precisa abrir caminho a partir de âmbitos
escasos e marginalizados pela história. O mais precioso vem dali: do corpo.
Os iniciadores destes estudos nos fizeram considerar um problema geográfico
central: eram humanistas que viviam ao norte dos Alpes; alemães imbuídos de uma
tradição que até esse momento, segunda metade do século XIX, não havia dado
importância a Dioniso. E mais, quando por exigência histórica tiveram de estudá-lo,
fixeram-no com os mesmos instrumentos com os quais se formaram na história dos
estudos humanísticos. Entendendo-se por isso considerações históricas, raciais,
geográficas, o que hoje chamamos psicologia transalpina (que eles não tinham presente
em suas consciências como pano de fundo de seus próprios estudos). Filhos e netos de
um protestantismo com fantasias de império, isso os distanciava de posições mais
propícias para vivenciar dentro de si mesmos o que estudavam. Eufóricos, imbuídos de
um poderoso otimismo, começaram a explorar o irracional a partir da mesmíssima
incubadora da vergonha nay.inta; a partir de outra loucura (wotânica) que não tem nada a
ver com a que eles estudavam. De qualquer maneira, das agonias românticas de suas
almas, deixaram
estudos aguçados, uma tradição erudita e, vários deles, algo especialmente valioso:
suas limitações. Walter Otto, por exemplo, nos disse: ”Assim, tentativas interiores para
explicar as orgias da loucura dionisíaca em termos de necessidades humanas, sejam
espirituais, sejam materiais, terminaram em completo fracasso. As conclusões não
apenas inacreditáveis, mas também intoleravel-
67
68
não assentada na cultura, um psicoterapeuta que não tenha uma visão culta da vida
e não saiba que a enfermidade está enraizada nos complexos culturais. Se aceitamos que
enfermidade é essencialmente repressão, repressão de deuses e deusas, a psicoterapia
teria muito a ver com a observação e valorização do aparecimento desses deuses e
deusas, propiciando a reflexão de elementos psíquicos com mundo e vida próprios. Os
deuses pagãos e as formas de vida que personificam são os mais reprimidos por nossa
cultura; por esse motivo, são precisamente eles que propiciam os movimentos psíquicos
mais interiores e profundos.
Se quero falar aqui em repressão, é com um olhar mais profundo, culto, não como
o jargão do século, que entrou em uma linguagem ininteligível do repressivo, e que,
reduzindo-se exclusivamente ao pessoal, coloca-se fora das complexidades histórico-
religiosas da vida culta. Uma psicoterapia centrada em aparatos pessoais não se aproxima
e muito menos penetra nas complexidades da cultura; de qualquer maneira, a clínica de
doentes mentais, o consultório psicoterapêutico, o estudo dos processos
psicossomáticos podem ser observatórios do mundo atual. Assim os consideramos e aí,
às vezes, podemos presenciar a aparição do irracional, saltando as barreiras da repressão
e tratando desesperadamente tornar-se vida.
Garcia Lorca, a partir de seu profundo aborrecimento dessas mil conferências,
propõe outro conhecimento mais revitalizante, por assim dizer, mais de acordo com o que
propõe a psicoterapia e com os estudos da academia (scholarship) moderna. Falo aqui
única e exclusivamente de psicoterapia relacionada aos estudos de psicologia
arquetípica, em que a aprendizagem do psíquico acontece e é possível e em que o estudo
do irracional quer ser visto dentro das normas e dos limites arquetípicos aos quais
pertence.
69
O estudo do irracional nesse momento se torna muito mais acessível. As copiosas
contribuições a esse respeito testemunham isso; parece como se o estudo estivesse mais
perto do irracional (tanto é assim, que as últimas contribuições sobre a tragédia grega já
chegam a considerar as emoções como a primeira coisa a ser tratada); como se o ângulo
em que está sendo vivido e estudado se aproximasse mais do âmbito no qual Lorca nos
transmitiu seu Duende. Parece também que, por necessidades históricas, os estudos
houvessem entrado mais na conjunção que propõe Lorca: teoria e movimento, mas um
teorizar com todas as implicações que esse teorizar tem, incluindo as associações
eruditas, essas conexões intelectuais que nos oferece Lorca à maneira de seu tempo,
arrematadas com sua graça surrealista. O Duende tem suas formas.
Mas deixemos isso dentro do marco teórico dado pelos estudiosos e vejamos que
o conjunto desses movimentos suscita a participar em relações mais graciosas e
profundas com essas teorias: e é assim que começamos a considerar um livro sobre
estudos clássicos gregos, que abriu a grande porta ao estudo do irracional; seu título: Os
gregos e o irracional.5 Sabemos que seu autor, um estudioso irlandês, conta-nos em sua
autobiografia6 sua vivência com o irracional: a loucura de um mundo envolvido em
conflitos políticos e sociais, a vivência da psicologia do derrotado por complexidades
históricas, por aquilo que não se resolve e não se resolverá nunca; a amizade com grandes
poetas (e isso é sempre muito importante), aqueles que no seu trabalho devem o irracional
à intervenção divina, à cannabis, às sociedades de parapsicologia, aos sonhos.
5
E. R. Dodds, Losgriegos e Io irracional, Alianza Editorial, Madri, 1980.
6
E. R. Dodds, Missing Persons, An Autobiography, Clarendon Press, Oxford, 1978.
70
Quando E. R. Dodds nos entrega seu precioso tratado sobre o irracional, temos a
impressão de que os campos da psicologia e da cultura se aproximam, de que a geografia
se torna mais acessível e de que o scholar se aproxima mais intuitivamente do estudo do
irracional, respaldando-nos e indiretamente aproximando-nos mais ainda desse canto do
mundo, Andaluzia, lugar de onde Lorca nos transmite o magistral legado de seu ensaio
sobre a Teoria e jogo do Duende.
71
com uma visão mais acertada e mais profunda, com urgências históricas e
interesses que transcendem o âmbito das universidades. E se o ensaio de Lorca é uma
obra fundamental, ele o será mais ainda se considerarmos certo que grande parte das
aborrecidíssimas mil conferências que ele denuncia nas primeiras linhas de seu escrito
versa sobre o tema da criatividade, que se presta às especulações e divagações de uma
subjetividade que não pertencem nem aos deuses nem ao daimon; puerilidades que
tratam de profetizar gênios criadores: histerias aceitas como revelações divinas. É uma
criatividade concebida através do suor titânico, dando voltas no mesmo lugar como as mil
conferências já citadas, e que na maioria terminam em cansaço não reconhecido, um
breakdown irresgatável; mas se o que se estabelece hoje é ensinar, educar com alma, a
criatividade se iguala a gerar a alma. Já vimos o ensaio de Lorca como uma obra
fundamental, como uma fonte de referência que nos inicia em novos estudos, insinuando
que devemos estudar os mesmos tratados, mas aproximando-nos deles com outra visão,
visão que está em nós mas que foi encoberta por milênios. Chegar até esse canto de
Andaluzia, o ambiente de Lorca, e ter a sorte de sentir o Duende, é como ir a um reservoir
das velhas iniciações mediterrâneas, onde o iniciático do Duende se conjura a passos de
ritual que não pode ser aprendido.
72
73
nha direito. Hoje em dia essa arte não está em voga; com isso não quero dizer que
no dia de amanhã ela não recupere o que lhe pertence, porque perfilar-se, inclinar-se sobre
o touro na distância exata, com o olhar em seu cangote, e fazendo a cruz cravar a espada
em grande estilo e sair com dignidade, lentamente, pela lateral do touro, com o chifre a
milímetros do corpo, é algo que desafia qualquer concepção de tempo e espaço que
sejamos capazes de imaginar. Uma arte viva e um reativar-se a imagem primordial da
morte do touro: a missa primordial. Há a possibilidade de que reapareça o ritual em sua
essência, que, como disse dom Luis, vejamos com nossos próprios olhos como a espada
vai entrando no lugar exato, no cangote do touro, com uma lentidão admirável e que então
o Duende apareça. Mas todos sentimos que a morte do touro na arena vai muito além do
virtuosismo de um bom matador num momento dado. Existem touros que morrem na
arena e, enquanto estão morrendo, nesse momento de agonia entre a estocada final e a
morte, há um tempo justo e um temple, e um espaço que move nosso sentir, pois — por
que não dizer? — existem touros que morrem de maneira magnífica, como se estivessem
dando uma lição do morrer para a arena inteira.
Como já dissemos, hoje em dia é difícil ou quase impossível que apareça o Duende
na estocada; todavia, para dar uma idéia ao leitor, podemos trazer como referência os
comentários que o grande tratadista da arte de tourear, dom José Maria de Cossío, nos
deixou em sua famosa enciclopédia Los toros.10 Sobre Diego Mazquiarán ”Fortuna”, um
grande artista do volapié nos tempos de Lorca, ele nos conta: ”Indubitavelmente, Diego
Mazquiarán ’Fortuna’ é um dos bons matadores que marca e há de marcar a história da
arte de tourear. É talvez o melhor de
10
José Maria de Cossío, Los toros, 6a ed. Ed. Espasa-Calpe, Madri, 1969.
74
sua época ou o mais importante dela; época que coincide quase totalmente com a
época gloriosa de dois colossos, Joselito e Belmonte. ’Fortuna’ foi um estilista, um
virtuoso da estocada a volapié. Dominava e executava os movimentos dessa arte com a
maior perfeição. Marcava todos os tempos dela como talvez ninguém o tenha feito.
Colocava-se a matar na distância que pediam as qualidades do touro, mostra indubitável
de seu perfeito conhecimento dessa arte, já que muitos matadores, que gozam de bom
cartaz como matadores que são, tiveram o defeito de se colocarem sempre na mesma
distância — longe ou perto — no momento supremo. Tudo isso, e seu tipo, tornava esse
momento uma beleza e uma altivez insuperável, motivando as delirantes ovações que
tanto lhe ofereciam”.11 Consideremos o momento em que o toureiro entra para matar como
marco de referência propiciatório para o aparecimento do Duende. Como já disse, isso
quase desapareceu nos momentos atuais; mas o que pode nos acontecer hoje é outro
aparecimento do Duende nos touros tal como se refere Lorca. Em 9 de setembro de 1979,
na Plaza de Ias Ventas de Madri, José Luis Vazquez, filho do matador de mesmo nome,
fazia uma primeira aparição como matador de novilhos. Lançou-se com sua capa em seu
primeiro touro e lhe deu seis verônicas e meia. De pronto me senti suspenso no ar, com o
rosto inundado de lágrimas; mole, parei sentindo um não sei o quê. Não recordo se gritei,
mas o que sei é que quando voltei a praça inteira parecia que compartilhava do mesmo
delírio; velhos aficcionados ao meu redor se entregavam ao mesmo frenesi com seus
rostos também inundados de lágrimas. O Duende havia feito sua aparição nessa série de
verônicas que não se pode definir de nenhuma maneira. No dia seguinte o cronista se
reportava ao que lhe contou um ve-
11
José Maria de Cossío, op. cit., vol. Ill, p. 575.
75
lho aficcionado: ”essas verônicas me tiraram vinte anos de cima”. E aqui o Duende,
como se estivesse nos chamando a atenção para o renascer, toca-nos por trás e por baixo,
não sabemos de onde, e nesse ativar de essências que estão adormecidas sente-se um
renascimento que é como uma reafirmação da vida.12
Porém vamos dizer algumas palavras a mais sobre o tourear; tratemos de nos
aproximar do mistério que torna possível o aparecimento do Duende na tourada,
apoiando-nos no já mencionado dom Luís Bollain e em seu tratado El toreo, e reduzamos
todo um tratado de essência e estética taurinas à concepção do temple. ”Entendo que
templar é harmonizar, tornar condizente, colocar no mesmo ritmo o movimento do artifício
(capa ou espada que o toureiro leva na mão) e a investida do touro, de tal maneira que o
touro tenha sempre a seu alcance o tecido da capa, mas não consiga alcançá-la nunca.”13
Arte difícil, infinitamente mais complexa do que podemos imaginar pelas linhas que aqui
cito, e essência dinâmica propiciatória do Duende.
Gostaríamos de ampliar as concepções e vivências que do temple têm os
entendidos no assunto. Temple é lentidão. Mas isso não quer dizer que seja única e
exclusivamente lento; eu diria que é uma lentidão tremendamente animada, um estar lento
estando a psique disposta. Temple é um movimento em lentidão que pode aparecer em
alguns momentos da tourada, no cantar ou dançar do flamenco e — por que não? — na
vida. Para mim, temple é algo que se refere ao dionisíaco, pertence à sua
12
Não creia o leitor que minha leitura dos scholars seja literal ou direta. A isso me
referi na primeira página do meu livro Hermes e seus filhos, ao qual remeto o leitor. Até
outro dia se relacionavam Morte e Ressurreição, relacionadas à tragédia, com o ritual, e
em que o ciclo anual e os ritos vegetais estavam em suas origens. O psíquico da
experiência do morrer e renascer eu o relaciono totalmente ao emocional.
13
Luis Bollain, El toreo, Ed. Católica Espanhola, Sevilha, 1968, p. 173.
76
essência. É também algo que podemos sentir quando, às vezes, ouvimos outra
música que nos apetece por ser dionisíaca em sua essência, quando o cantor de blues ou
de jazz ou os coros dos spirituals cantam com os sons negros a que se refere Lorca, e
com um temple ajustado à lentidão que lhes correspondem, transmitindo-nos assim sua
emoção e seu Duende. Temple é nervo central e seu aparecimento em psicoterapia nos
assinala constelações dionisíacas, fala-nos claro do psíquico em movimento interior e da
constelação do corpo dionisíaco, ainda mais se sabemos e aceitamos que a tradição
assimilou Dioniso e seu par Ariadne com o par Eros-Psique. Assim, quando em
psicoterapia há uns segundos de temple entre paciente e psicoterapeuta, estes nutrem
mais, são mais importantes e falam mais à psique do que todo o resto da hora de
interpretações redutivas, amplificações inflacionárias e infinitas associações. Porém os
taurinos já sabem disso e sobretudo essa minoria que vai às arenas para ver se acontece
o milagre desses segundos inefáveis. E mais: para referir-se a isso, usam como metáfora
o atributo simbólico mais próximo à Psique (o frasco de perfume). Esse tipo de
aficcionado aos touros pode se contentar com muito pouco, e o seu usual comentário
depois desses instantes de embriaguez psíquica que justificam todos os seus zelos
taurinos é: ”o frasco se destampou”. É que as essências do psíquico penetram pelos
sentidos. José Bergamin, poeta e taurino que escreveu um importante livro sobre touros,
sentia a música quieta da tourada.14
Também havia temple naquelas seis verônicas e meia que deu José Luis Vazquez.
Seis verônicas e meia com temple que tornaram possível o aparecer do Duende e que
tocaram o Duende dos espectadores e do velho, que se sentiu reviver.
14
José Bergamín, La música callada dei toreo, 3° ed., Ed. Turner, Madri, 1985.
77
O aparecimento do Duende como nos traz Lorca, ou como eu pretendi explicar com
a imagem anterior e com as que se seguem, é o aparecer explosivo, expansivo, aberto, e
que se dá em casos extremos. Mas creio que náo devemos passar por cima de outros
aparecimentos que quero atribuir ao Duende, pois se dão no mesmo contexto e
correspondem às emoções mais íntimas, privacidades dos que as sentem. E é quando,
tanto nas imagens taurinas como na imagem feita música de flamenco, chegam
sentimentos que nos tocam anteriormente, como se movessem algo em nós, umedecendo
nossos olhos, mas conseguimos manter a compostura. Como dizem os andaluzes, o que
acontece é ”por los bajines”, e acompanhando isso, sentimos que nossa psique se move
e nossa alma vai se forjando. O flamenco nos oferece possibilidades mais íntimas do que
as dajuerga;15 pode-se ver dois amigos sentados em uma mesa com uma garrafa de vinho,
cantando um para o outro em sussurros... ”por los bajines”. E isso nos mostra uma
imagem muito antiga, muito mediterrânea, da beleza de um Eros: o diálogo de duas almas
tendo por veículo o flamenco, um Eros contido em seu próprio refúgio. Há imagens na
poesia flamenca que podemos associar facilmente com o sonho. A imagem sucede como
no sonho, como se viesse dessa zona desconhecida de onde vêm os sonhos e chegasse
ali onde sonho e imagem poética se tornam um. Há outro aparecimento do Duende que
tampouco podemos deixar de lado; é quando nos desconcerta: é o que o andaluz chama
”pasmo”. Em tudo isso já sentimos como se Dioniso fosse dando a mão a Hermes: é uma
rajada, um instante irrepresável, algo como um fantasma que fez sua aparição súbita e se
desvanece tal como apareceu. Da mesma maneira apare-
15
Encontro festivo de várias pessoas, acompanhado de canto, dança e bebidas. (N.
do T.)
78
79
que dom Antonio Chacon, quando a um dos juerguistas ocorreu chamar Manuel
Torre a Andaluzia. Nós imaginamos que Torre chegaria a Madri pelo menos no dia
seguinte. Chegou Manuel Torre àjuerga e sentou-se em um canto para ouvir os outros
juerguistas cantar, até que um deles cantou uma estrofe, e aqui Manuel Torre se levantou
e cantou uma única linha da estrofe e junto com essa linha a loucura do Duende se
apoderou dos presentes. Essa imagem de Torre é semelhante à que nos passa Lorca do
prêmio dado num concurso de dança em Jerez de la Frontera a uma velha de oitenta anos:
”só pelo fato de levantar os braços, erguer a cabeça e dar um golpe com o pé sobre o
tablado”. Essa imagem nos move a outras direções, pois evidencia a psique do corpo
dionisíaco presente na velhice, e nos ajuda a penetrar melhor no sentido do baile dos
anciãos, Tiresias e Cadmos, em As bacantes de Eurípedes. com essa imagem, evidencia-
se claramente que a psique-corpo dionisíaca chega à velhice; e mais — e isso
confirmaremos adiante —, as mais profundas complexidades dionisíacas só se desvelam
na velhice. Sempre me chamou a atenção o fato de Eurípedes escrever As bacantes — o
testemunho mais expressivo do dionisíaco — exilado de sua querida Atenas na Macedonia
e quase aos oitenta anos.
Por tudo isso, a única coisa a que poderia me referir aqui é ao rito, ao rito
propiciatório do Duende no flamenco. É através dajuerga que se propicia
espontaneamente o suceder da festa. A alma necessita do Duende como algo nutritivo,
mas a alma se nutre do acontecer, do suceder espontâneo. É assim que ajuerga começa:
se bebe e se come e se põe a cantar, move-se de um lugar para outro, encolhe-se e se
impõe aos concorrentes; tudo isso como um rito dionisíaco propiciatório à espera de que
o conjuro, o vinho, a intenção do canto façam aparecer esse minuto de Duende que revive,
que dá sentido ao suceder: ”A
80
chegada do duende pressupõe sempre uma mudança radical nas formas dos velhos
planos, dá sensações de desembaraço totalmente inéditas, com uma qualidade de rosa
recém-criada, de milagre, e chega a produzir um entusiasmo quase religioso”.17 Tanto no
flamenco quanto na tourada esse reviver e a morte não são coisas distantes. Quando na
concepção do Duende se fala de um renascer, de um reviver, a experiência vivida está
conectada com imagens que pertencem especialmente à imagética da morte. Assim, o
renascer, sem esta imagética que nos associa à morte, é inconcebível.
Viver o perigo na tourada ou um canto profundo que nos vem do ”obscuro e
estremecido” faz-nos sentir que a imagem que nos chega procede do âmbito arquetípico,
dali de onde a vida recebe o sentido e revive com a morte. A dança flamenca em suas
acepções mais profundas alude à morte; a imagem, que nos apresenta o dançarino e a
dançarina quando o Duende aparece, fala de um rasgar, de um desmembramento
dionisíaco, da essência da loucura dionisíaca. E aqui já estamos no âmbito de uma loucura
da imagética da morte, que nos ensina a morrer. É dessa forma que sentimos essas
lamúrias, esses prantos, esse rasgar a roupa a que se refere Lorca.
Estão por se explorarem as relações entre loucura dionisíaca e morte; mas
deixemos isso só na referência e, ajustando-nos ao texto de Lorca, sintamos a influência
da imagem, de uma imagem em oposição a essas mil conferências. Isso nunca foi mais
bem dito do que pelo escritor taurino venezuelano Carlos Villalba. Em julho de 1976, o
jornal El Nacional de Caracas publicou magníficos artigos a respeito da morte de
Heidegger, que se ajustam tremendamente ao que trato aqui. Villalba nos diz que dois
chifres de touros falam mais sobre a morte do que
17
Idem, p. 113.
81
toda a obra do filósofo sobre o ser para a morte. Diz com suas palavras que os
filósofos não sabem o que tratam ao falar da morte; que os mestres do ensino, da
aprendizagem e da iniciação da morte são os toureiros: os imaginantes da morte. Pois
uma só imagem nos dirá mais sobre a morte que todos os tratados de filosofia. Também
para Villalba a tourada é um agregado de ”ensino da morte”, e parece que o Duende
rondou suas palavras.
Já no nível de Duende e morte, permito-me apresentar ao leitor uma personagem
que é figura relevante na obra de Lorca. O pranto pela morte de Ignacio Sanchez Mejías18
é um clássico de nosso século. O público leitor conhece Ignacio Sanchez Mejías através
do grande poema de Lorca, o poema mais importante que se escreveu sobre algo que foi
fonte de inspiração para os poetas, como são os touros e os toureiros. Aproximar-se de
alguns traços da personalidade de Sanchez Mejías, que com sua morte inspirou tal poema,
creio que é de interesse para aproximarmo-nos do lugar em que o Duende e a morte se
roçam. Um pranto feito poema, um poema com Duende e nesse caso com dois
protagonistas: o toureiro que morre e o poeta. Néstor Luján em Historia dei toreo nos diz:
”Ao chegar à biografia de Ignacio Sanchez Mejías, forçosamente se tem de empregar um
torn distinto do de qualquer outro toureiro que tenha existido. Porque Ignacio Sanchez
Mejías foi sem igual como toureiro e como homem”.19 Delinear uma personalidade tão
complexa ”como toureiro e como homem”, como é a de Ignacio Sanchez Mejías, e com a
intenção de aproximar o leitor das entranhas de Lorca e das vivências do Duende não é
nada fácil.
18
Idem, p. 537. Brian Vickers, em sua obra Towards Greek Tragedy, p. 88, nos diz:
”It is remarkable how much of Greek Tragedy — and how much of the greatest poetry —
is in essence a lament for the dead”.
19
Néstor Luján, Historia del toreo, Ed. Destino, Barcelona, p. 294.
82
Ignacio Sanchez Mejías nasceu de família rica e foi filho de médico, coisa rara entre
toureiros, pois, salvo raras exceções, eles surgem das classes baixas, ”dos derrotados
sociais”. Lorca chamou Ignacio de ”o bem nascido”. Apesar de ter começado a tourear
desde menino na arena da granja de sua casa, com Joselito, nada mais nada menos que
o maior toureiro de todos os tempos e, com o passar dos anos, seu amigo e cunhado
(Ignacio casou-se com Lola, a irmã menor de Joselito), pode-se dizer que não nasceu
toureiro, no sentido que usualmente se dá a tal palavra. Ele teve de se fazer, teve de
aprender o que aprendeu, e a cada aparecimento na arena foi uma luta contra ele mesmo
e contra um público que o empurrava ao inverossímil. ”Um toureiro mais bruto, de gesto
dionisíaco e de uma temeridade desmandada. Foi um toureiro com autoridade na praça e
de uma vida aventureira e inquieta. Espírito forte e vital, dedicou-se aos touros porque, no
momento sevilhano em que nasceu, a única saída gloriosa e romântica para um herói era
a tourada. Em outro momento talvez tivesse sido um conquistador, contrabandista ou
guerrilheiro...Viveu uma vida de fábula entre os dançarinos, toureiros e poetas e, além
disso, Ignacio foi um dos entusiastas mais fervorosos e eficazes da magnífica geração de
poetas anteriores à Guerra Civil”.20 Isso já nos faz entrever uma personalidade que se faz
sentir com sua presença, que estimula e é capaz de mover a alma dos poetas. Grande
mecenas do flamenco, protegeu as velhas dançarinas e conseguiu que readquirissem uma
relativa confiança: La Malena, La Macarrona (imortalizada por Picasso), a velha e
estropiada Fernanda voltaram ao tablado. Sua fazenda era um refúgio do mais puro
flamenco, onde se ouvia o último grande cantor, graças a quem o flamenco se torna mi-
20
Néstor Luján, op. cit.
83
tologia: Manuel Torre. Conta-se que ele fez uma chamada telefônica a Lorca, de
madrugada, para que ouvisse o sapateado da Argentinita. Como escritor, estreou em
Madri em 1928 seu drama Sem razão; e nos diz Cossío: ”O toureiro não aborda um
pequeno tema burguês, tangente mais ou menos ao ambiente taurino, senão que,
voluntariamente, enfrenta um problema de loucura ou razão e se desenvolve
elegantemente entre seus obstáculos”,21 com o qual o tratadista nos está dizendo que
Ignacio andava cômodo com o irracional. Escreveu também uma comédia, Zayas, que
estreou no mesmo ano em Santander. Como toureiro conviveu com ”os melhores de seu
tempo, isto é, ao lado dos melhores de todos os tempos”. Como bandarilheiro 22 foi
excepcional, genial. Aqui sua personalidade e seu valor apareciam ao máximo: desafiava
as possibilidades, provocava a dificuldade e isso nele era risco e emoção. Ali aparecia seu
Duende aproximando-nos do imaginário da morte. Ignacio Sanchez Mejías, dizem os que
o conheceram e o viram nas touradas, ”não reconheceu o perigo”, como se a equação
perigo-morte não existisse para ele. Hemingway, que o conheceu, disse-nos que um ano
antes de ele morrer os ciganos flamencos de ”Villarosa” de Madri intuíam a morte que ele
levava dentro de si. Quando seu filho quis ser toureiro, ele se enfureceu e disse: ”O único
que entra nesta casa morto por chifres de touro sou eu”. Isso é para mim suficiente para
traçar as linhas de uma personalidade, mas também para refletir o dionisíaco a partir de
seus extremos mais exaltados e vitais.
Garcia Lorca também era dionisíaco. O mundo em que se ajustava era o dos poetas,
toureiros e flamencos. Lorca era poeta, músico, homem de teatro. Seu talento se
21
José Maria de Cossío, op. cit., p. 875.
22
Bandarilheiro: toureiro que clava dardos no touro. (N. do T.)
84
85
Isso foi dito por Ortega y Gasset que, quando ia aos touros, dizia: ”you ver como
anda a Espanha”. Eu prefiro a loucura que expresso com isso às outras loucuras com que
tem sido vista a Guerra Civil Espanhola, pois não necessitamos pular fora da interioridade
de nossa psique nem nos dividir em frações para referir-nos aos acontecimentos do
mundo nem necessitamos tomar partido para nos expressar. A maldição de tomar partido
está em optar e concordar com uma loucura de fácil acesso (loucura maldita, titânica), a
difícil é a outra...
Recordemos agora as primeiras linhas do ensaio sobre o Duende, para mim
incandescentes, pois me fazem sentir a batalha de Lorca para arrancar de sua alma a
esterilidade titânica daquelas ”mil conferências” e desprender-se de tudo o que caia sobre
o que chamamos ideologia, e reconheçamos que isso também é dionisíaco.27
Circunscrever a morte de Garcia Lorca aos limites dos bandos em conflito na Guerra
Civil Espanhola me parece muito simplista. A consciência do homem de hoje está
suficientemente distante do romantismo político dos anos 30; há quase meio século de
distância que torna possível a reflexão. Deixar o conflito no âmbito dos bandos me
pareceria, no melhor dos casos, como indicar ou localizar a loucura de um modo cheio de
repetições titânicas, loucura que, como já dissemos, é arena e cenário propício para matar
outras loucuras. Arquetipicamente, Dioniso será sempre o perseguido e o desmembrado,
o mais reprimido de todos os deuses (conta Euripides, que foi reprimido em Tebas, onde
mitologicamente havia nascido sua mãe), não importa o regime político em que se vivia;
isso pertence à sua essência.
27
Para mim é impossível conceber Dioniso apregoando ideologias. Sua epifania,
quando se dá no coletivo, sucede entre um grupo de mênades, em umajuerga, antes da
batalha de Salamina, ou na Festa Nacional de Espanha, em uma praça de touros, ou na
alma feita corpo do homem de sempre.
86
É precisamente aqui que este tema de nossos dias me soa como uma reatualização
histórica de um mitologema de sempre: a perseguição e morte de Dioniso pelos titãs mais
o fuzilamento de um grande poeta.28 Assim me chega a morte de Garcia Lorca como
fundamento de consciência. Os elementos históricos se tornam um marco de referência,
campo em que o drama mitológico de novo se atualiza. A imagem mitológica de
perseguição e desmembramento de Dioniso pelos titãs me salta como imagem primordial.
Se deixássemos tal fato só nos terrenos da luta de frações políticas, cairíamos numa
grande ingenuidade, pois seria como, por exemplo, deixar dentro dos conflitos raciais ou
sociais algo que na realidade constela sombras, conflitos psicológicos, batalhas
mitológicas muito antigas e de sempre. Aqueles são conflitos que tornam possíveis, como
estamos tratando nessas páginas, a perseguição e a morte por desmembramento de
Dioniso pelos titãs. É dentro das complexidades desse mitologema, e querendo conter
dentro de mim as imagens que aqui discuto, que trato de me aproximar vivencialmente do
acontecer da morte de um ser humano hoje em dia, neste mundo em que vivemos; um
mundo cuja história tem sufocado as imagens que nos serviriam de acesso e nos nutririam
e sustentariam no ”momento da verdade”, nesse ”momento supremo” que é a morte. As
imagens propiciatórias para o acontecer de uma vida que se acaba estão em retirada, em
menosvalia, em franca derrota (mas o dionisíaco sempre esteve em fuga, em menosvalias
vergonhosas, em derrota, como seus atributos essenciais). Mas se temos alguma conexão
com elas seria em um canto de nossa alma que se assemelharia, na geografia de nossa
natureza (alma em corpo e nature-
28
Bunuel, em sua autobiografia Mi último suspiro, disse ao referir-se a Lorca: ”Ele
foi o melhor de todos nós”.
87
88
atual, pois são vivências da alma de sumo interesse para ele e, certamente, para a
psicoterapia que, em vez de deter-se em especulações ingênuas e incultas sobre a
infância e o trauma inicial — no fim nascemos como nascemos, nos criamos como foi
possível dentro das complexidades históricas que tocaram a cada um, e funcionamos na
vida com mais de um pé no mistério da natureza que somos —, dá mais valor à morte e
sua imagética que às puerilidades de nascimento e infância, visão esta que nos faz sentir
o esforço dos pioneiros como algo distante. Temos a morte diante de nós, e sentimos, e
pelo sentir sabemos que as relações interiores que temos com a morte nos contam muito
mais sobre nossos conflitos psíquicos, e muito mais ainda sobre a obscuridade
psicossomática que somos, do que todos os rastreamentos redutivos que possamos fazer
sobre nossa infância.
Se ajustarmos mais essas reflexões, que são da psicoterapia atual, à equação
morte-Duende que viemos tratando, abriremos nossa alma para a avaliação pelo sentir: o
spectrum da catarse. É uma grande pobreza que na psicoterapia catarse só tenha sentido
se ligada a confissão. Emoções catárticas aparecem no Duende, assim como na tragédia
grega,30 ante a perfeição de certas formas. Eu limito aqui formas ao dionisíaco. Ivan
Linforth, em seu excelente Desmembramento de Dioniso,31 estabelece que Dioniso
sempre é o corpo. Em qualquer coisa que chamemos psicoterapia, as emoções-catarses
se dão no corporal e são de valor essencial, porque já sabemos que o que chamamos de
corpo psíquico é habitado pelos deuses mais reprimidos pela história: por isso, o que nos
30
Não há dúvidas de que a tourada e a tragédia grega se associam no essencial de
suas formas. Para os dois, medo e pena são emoções básicas (Aristóteles).
31
Ivan Linforth, The Arts of Orpheus, Arno Press, Nova Iorque, Times Co.,
1973.
89
vem dali é de importância capital; coisa que pela psicologia dos opostos
compensaria a repressão histórica do corpo psíquico, procurando equilíbrios
psicossomáticos, tornando possível o equilíbrio saúde-enfermidade.
Em qualquer coisa que se trate hoje em dia e que tenha a ver com as vivências da
alma do homem atual, o importante é se em seu morrer há um toque, umas poucas gotas
de essências dionisíacas, que façam aparecer alegria em seu morrer. E isso, mitológica e
arquetipicamente falando, está em oposição irreconciliável com a máquina infernal
prometéico-titânica e seu surgimento nos tempos atuais: o cientificismo tecnológico.
Mitológica e poeticamente falando, Dioniso e os Titãs são dois aspectos da natureza
humana em oposição irreconciliável, e a imagética é a de um Dioniso em constante fuga,
tratando de fugir, esconder-se e defender-se da agressão e do excesso titânico. A
intromissão do titanismo no morrer, o morrer tecnológico com pretensões médicas de
”prolongar a vida”, nega, ou em todo caso distorce, um morrer que poderia dar sentido a
toda uma vida.
No Prometeu de Esquilo, o titã Prometeu diz claramente: ”Eu fiz com que os homens
se esquecessem da morte”. E isso nos fala da depreciação titânica pelo morrer. Bem, isso
já sabemos e também sabe qualquer pessoa, já que é notícia da atualidade, coisas dos
jornais e da conversa mais coloquial. E se podemos entender a intromissão ou a agressão
do Titã em algo que não lhe pertence, o mais difícil de entender, e o que aparece como
camuflagem e dissimulação do horror, é quando começamos a ouvir falar de morte (falar
e dar conferência sobre a morte em alguns círculos está em moda) com o mesmo
aborrecimento daquelas mil conferências a que se refere Lorca em seu escrito. Assim,
ouvimos coisas como as prescrições de ”morrer aceitando a morte com naturalidade”, ou
HO pretende ensinar e aprender a ”manejar” a morte, como
90
91
CONSCIÊNCIA DE FRACASSO
92
93
são de clareza e aceitando a obscuridade que tem. Pode ser que nisso sejam os
psicoterapeutas os mais aptos para entender o que quero dizer, já que me parece muito
insensato o psicoterapeuta que se identifique com os seus ”sucessos” e tem uma atitude
triunfalista, pois, se age assim, não terá outro remédio senão o de identificar-se também
com os fracassos, a não ser que divida essa mecânica de sucesso e fracasso como quem
divide uma maçã e conceba ingenuamente que os sucessos são seus, e os fracassos, do
paciente. O modelo que proponho apareceu em meu livro Hermes e seus filhos: é o do
psicoterapeuta que está a serviço de um processo regido por arquétipos consteíados na
psicoterapia; arquétipos através dos quais a natureza humana se expressa
psiquicamente, e num processo em que nem sempre há uma concordância do tempo
interno e externo na relação terapeuta-paciente. Duas alquimias distintas e de
complexidades insondáveis e que ainda assim tornam possível o suceder
psicoterapêutico.
A resposta ao porquê de o fracasso negar-se tanto a ser reconhecido deve ser
procurada nas complexidades da natureza humana, dentro das quais colocamos o que
podemos conhecer como estudos de psicologia, com toda sua infinita e infernal
terminologia, pois tudo isso que cai dentro da terminologia psicoterapêutica como
Consciência, Espírito, Persona, Psique, Alma, Inconsciente etc. são concepções que em
todos os casos pertencem à natureza humana, dona ainda de maiores complexidades e
mistérios. Se há uma luta por uma consciência, esta consciência seria produto de uma
batalha dentro das complexidades dessa natureza, consciência de nossa natureza, e não
algo mais abstrato. Eis o ponto crucial, do qual nós, psicólogos, não podemos olvidar.
Não percamos de vista o fato de que, tratando com o chamado material psicológico,
estamos tratando da natureza humana.
94
95
cípios do século aos estudos de psiquiatria por Jung, que notou que nos pacientes
psicóticos e esquizofrênicos havia uma falha, que Janet denominou function du reel. No
que convém a este ensaio, desejo manter a mesma acepção e uso que lhe deu Jung em
seus trabalhos sobre psicose e esquizofrenia, para que nos sirva de pano de fundo em
que possamos ver o elemento de loucura que tem o que aqui chamo carência de realidade
terrena. Uma loucura não encontrada na maioria das vezes em hospitais psiquiátricos,
mas uma loucura que se faz patente na visão que nos oferece a autonomia triunfalista no
mundo em que vivemos. De qualquer forma, não é difícil de aceitar que essa falta de
realidade é parte da chamada personalidade normal, mas que somente é diagnosticada
como tal ao irromper em grande escala, alterando então a personalidade. É assim que a
conseguimos observar e registrá-la. Dado que essa realidade psíquica existe como
”normalidade”, dependerá dos critérios de quem observa estabelecer o que a afeta física
e psicossomaticamente e se ela toma parte no equilíbrio da saúde e da existência dessa
”normalidade”.
No que chamamos consciência coletiva e suas demandas não entra a possibilidade
de fracasso. Quando acontece um revés que poderíamos sentir como um fracasso do qual
aprender e refletir, fugimos desse revés rapidamente com o pretexto de outra fantasia fútil,
indo irremediavelmente ao encontro de outro fracasso; pois o que possivelmente nos
preveniria de novos fracassos seria tomar consciência deles: o fracasso provendo
reflexão. Mas não, a demanda de sucesso é tão avassaladora que não nos prove do tempo
nem do ritmo interior necessário para que a reflexão seja possível. A demanda de sucesso
como um complexo autônomo nos impele à repetição. Entre as grandes contribuições da
psicologia deste século está a teoria dos complexos, que nos diz que complexo (pedaço
96
de história) sobre o qual não se reflete e do qual não se l.oma consciência, repete-
se e aparece em nós potencializado e de maneira hipertrofiada.
Nas etapas da infância e adolescência, a dinâmica psíquica é de concorrência
competitiva e triunfalista: sucesso nos estudos, nos esportes, entre o grupo de amigos,
na vida. A competição, a rivalidade, a inveja, a concorrência têm na adolescência sua idade
biológica legítima e é campo no qual o sucesso e as fantasias triunfalistas imperam. Essas
fantasias do adolescente abrigam certo futurismo que é próprio dessa etapa: terminar a
faculdade, casar-se, fazer pós-graduação, constituir família e ter sucesso na vida. Estas
são fantasias e projetos constitutivos da psicologia dessa idade e são válidos, ainda que
muitos tenham de refazê-los antes de chegar aos trinta anos: o casamento fracassou, o
sucesso na profissão não é tão fácil como se supunha, e se evidenciam sinais inequívocos
de depressão e inclusive de destruição, com uma imagem totalmente oposta à triunfalista.
Assim, as fantasias e projetos que são importante combinação na média dos
adolescentes (saiba o leitor que deixo de lado muito de destrutivo que tem a adolescência)
algumas vezes passam para a via adulta. Elas se perpetuam no ser humano e vemos
homens na idade adulta, no final dos trinta ou já na casa dos quarenta, ou até depois dos
cinqüenta anos, vivendo a mesma fantasia que talvez fosse válida na adolescência. Querer
ter os mesmos impulsos e igual velocidade de antes deixa-nos claro que houve falhas,
paralisia no processo de iniciação psíquica para a vida adulta.
Estes processos a que me refiro aqui foram vistos a partir da perspectiva
evolucionista por William Sheldon, que escreveu sobre isso nos anos anteriores à
Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo que discutia em Zurique com C. G. Jung estas
noções. Referindo-se a William
97
James, Sheldon nos diz: ”Ele descobriu que um crescimento mental é algo muito
raro nas últimas décadas da vida; que um intelecto maduro aparece como uma
curiosidade”. Trinta anos depois Sheldon dirá:
Hoje em dia a situação é aparentemente pior. Os dias de juventude às vezes pululam
com sonhos prematuros, planos enobrecedores; mas a mente humana aos quarenta anos
está comumente atrofiada, morta, com suas melhores horas mal aproveitadas,
freqüentemente envenenada com álcool ou drogas. Mas ainda existem alguns que
progridem para um completo crescimento mental. Aos vinte anos não sobressaem
particularmente em nada, exceto em que eles com freqüência se mostram socialmente
imaturos para sua idade. Mas ao trinta e cinco anos ou quarenta anos nos damos conta,
por meia dúzia de sentenças, de que aqui existem mentes ainda vivas. A filosofia é por
tentativas e sensitiva, os interesses estão em expansão e há desejos de novos
conhecimentos.
As pessoas que mostram essas qualidades na meia-idade se inclinam a continuar
seu desenvolvimento mental pelo resto do caminho, às vezes mostrando avanços e
competências ainda nas décadas finais. Para elas, um ano nos setenta e oitenta pode ser
valioso, com realizações tanto afetivas como cognitivas, muito mais que um ano de
juventude. Estes poucos vivem mais para a segunda metade da vida do que para a
primeira. Eles se mostram mais felizes e intrinsecamente mais fortes na velhice do que na
juventude. Suas vidas sugerem uma nada fácil intuição que nos diz que onde a juventude
é um desproporcional período feliz, a vida pode ser um grande fracasso.
Assim, pois, o que aqui estamos tratando pertence ao espírito da idade, na qual
existe mais do que uma consciência que sabe apreciar o fracasso como fonte de nova
consciência. Assim, a educação, a academia, a universidade são espaços regidos por
Apoio, o deus que personifica a unilateralidade do brilhantismo e da visão do sucesso que
domina a vida. Não obstante, conheço um senhor,
98
100
xão. Dois deles são arquetípicos: o Puer Aeternus e a histeria, e por isto
entendemos que pertencem a configurações arquetípicas de nossa natureza; enquanto o
terceiro, o componente psicopático da personalidade, mesmo não sendo arquetípico, não
tendo formas que o contenham, também pertence à natureza humana. Esses três
componentes podem ser estudados e vivenciados de várias maneiras. Em muitos casos,
os três se confundem e ocorre de observarmos pacientes em psicoterapia ou
personalidades do mundo em que vivemos que apresentam uma verdadeira confusão
destes três componentes. Em outros, um dos componentes destaca-se do resto. Outros
casos, quando temos observado com tempo suficiente, começaram em sua juventude
com a dominante do Puer reforçada em excesso por hístrionismos histéricos e depois, na
maturidade, caíram no repetitivo psicopático.
O Puer Aeternus, o eterno adolescente, rege arquetipicamente a vida da criança e
do adolescente. O Puer, com seu brilho e velocidade, aparece em estudos arquetípicos de
distintas maneiras: para os fins que aqui interessam, em oposição ao Senex, isto é, à idade
senil, com suas limitações pela idade, sua lentidão, sua doença cronológica, sua
existência no umbral da morte. No que concerne a esse trabalho, devemos deixar de lado
a sua relação com a mãe. Mas temos sempre de levar em conta que por mais evidente e
complexa, conflitiva e caótica que seja, a relação do Puer com a mãe é arquetípica e, por
isso, incomensurável. Vista assim, é uma relação que contém as infinitas possibilidades
que lhe confere essa ordem, e isso também deixa claro o absurdo de qualquer redução.
Sabemos que mãe e filho são figuras centrais na religião e tema de estudos de religiões
comparadas. Essa criança que contemplamos no altar nos braços da virgem mãe é o Puer
Aeternus como nos oferece o cristianismo. Às vezes, a
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criança sustenta em sua mão, como atributo simbólico, uma bola coroada com uma
cruz. Essa criança em seu relacionamento essencial com sua mãe, fato central no mundo
religioso e também em nossa psique e corpo emocional, é a versão cristã transformada
daqueles Pueri das mitologias da antigüidade, amantes da grande mãe: Tamuz, Ormu,
Marduc na Mesopotamia, Adonis na Fenícia, Átis na Ásia Menor e Osiris no Egito. No
legado clássico grego, Kerényi e Jung trabalharam o Puer levando em conta que todos os
deuses eram Pueri, crianças divinas. A criança divina é central na cultura do Ocidente e,
se é central tanto religiosa como psiquicamente, é central, certamente, na patologia do
homem ocidental. E assim vivenciado sentimos nele uma longa e profunda história, pano
de fundo dos complexos que todos carregamos.
Para o que nos interessa, temos de abranger outros opostos, Puer-Senex:
juventude-idade senil. Visto assim, o Puer e o Senex formam um arquétipo de duas
cabeças, em uma polaridade essencial, que os torna um e o mesmo, dois lados da mesma
medalha, pois não existe um sem o outro; não existe Puer sem Senex nem Senex sem
Puer. Dessa maneira, são considerados em estudos junguianos sobre os arquétipos em
sua polaridade essencial. Para nossos propósitos, eles correspondem a pressas e
velocidades juvenis e a lentidões e limitações da velhice; marcam o calendário da vida,
isto é, fazem-nos sentir, com maior ou menor exatidão, nossa idade cronológica e nossa
idade psicológica. Estão ajustando constantemente a velocidade tanto psíquica como
física de nossa vida. Outra manifestação ocorre quando dominam a personalidade, que
então cai na limitação estreita de ver quaisquer outras possibilidades de vida somente a
partir da consciência Puer/Senex. O domínio do arquétipo Puer /Senex bloqueia
completamente qualquer acesso
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A psicologia do Puer se desenvolve numa velocidade tal que não pode conectar-se
com o aspecto gravitacional da terra, com as lentas velocidades terrenas. Para que as
altas velocidades do Puer toquem a terra, é necessário um processo de descida, planar
pouco a pouco até que haja uma reconciliação com a realidade terrena. Isso é o que
deveria ocorrer ”em um caso normal”, porém muitas vezes a descida se dá bruscamente;
algo ocorre na vida do Puer que o força para as lentas velocidades terrenas e a confrontar-
se de um dia para outro com a realidade terrena que sua natureza tratou
desesperadamente de evitar. Esse reajuste brusco estará isento de traumas muito fortes
e profundos ou de dolorosas mudanças na personalidade. Mas nem sempre acaba nisso,
pois, às vezes, a psicologia do adolescente se perpetua além dos limites fixados pelos
ciclos da natureza. com o respaldo de sociedades nas quais predominam perigosamente
os ideais juvenis, toda a fantasia e imagética se projetam a partir do âmbito do
adolescente; assim temos hoje em dia sociedades nas quais desde o comer, o vestir, a
estética pessoal etc., todo o viver é regido pela fantasia e imagética do adolescente. Mas
sociedades em que predomina o adolescente como ideal coletivo e individual não
consideram o seu pólo terreno oposto, e quando o fazem, geralmente de maneira
destrutiva.
Não obstante, o eterno adolescente está em todos nós e cumpre uma função em
nossa vida psíquica; e, além disso, sua esfera de criatividade tem sido estudada, e tem se
manifestado em certos gênios: recordemos Heisenberg, aos dezenove anos, tomando sol
no telhado de sua casa em Berlim, nos tempos da República de Weimar, quando lhe veio
sem mais nem menos, acompanhada por disparos antitumulto, a teoria da indeterminação.
Recordemos também a Rimbaud, que na idade de dezenove ou vinte anos já havia escrito
sua obra poética. E tanto na ciência
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com tudo o que cai dentro dos limites de nossas representações mentais, e a
segunda ao que está reprimido, seja no campo pessoal ou coletivo, ou ainda naquilo que
está esperando para ser vivido). Mas ao longo da vida, até chegar a uma maturidade e uma
velhice que se considerem produtivas, observa-se um movimento rotativo e lento desses
opostos. E onde antes havia velocidade na consciência, esta começa a tornar-se mais e
mais lenta, até obter uma lentidão adaptada ao ritmo do evento psíquico que vem de dentro
e ao evento com o qual depara no mundo externo. A consciência diminui sua velocidade
porque o Senex a está ocupando gradualmente e, enquanto isso ocorre, as velocidades
da consciência do Puer vão se movendo para ocupar um papel importante no
inconsciente. Assim, podemos imaginar como ao longo da vida as imagens do Puer e do
Senex, no ritmo de um relógio de areia, invertem-se e nos oferecem outra realidade vital
na maturidade e velhice: a de uma consciência lenta, lentíssima, mas um inconsciente
rápido e ativo que é capaz de conectar-se com a memória nele armazenada, na velocidade
necessária para isso. O processo de iniciação na segunda metade da vida, o que Jung
chamou metanóia, é de importância capital para nossos estudos, pois nunca devemos
esquecer que as mudanças na metade da vida é que dão perspectiva, dimensão e
profundidade à concepção junguiana de vida e, é claro, à psicoterapia. É isso que preserva
a visão analítica de fixações causais.
Se creio ter dado ao leitor os elementos do eterno adolescente funcionando no
momento em que lhe pertence, enriquecendo a vida ou querendo se perpetuar além de
seu tempo arquetípico, emperrando uma personalidade por excesso de identificação com
esses elementos, quero agora referir-me a outro elemento psíquico arquetípico que
distorce a personalidade e indica aceleração psíquica. Este componente se caracteriza
por não encorajar descobertas
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fácil terapia, pois devemos aceitar que não é. A única coisa capaz de mover a
histeria psiquicamente e salvá-la das repetições fatigantes é precisamente o que provém
das mesmas complexidades arquetípicas, misteriosas e profundas às quais a histeria
pertence. Devemos nos limitar a visualizar a imagem arquetípica da mãe e da filha:
Deméter protegendo a sua filha Perséfone de um provável raptor e, nesse proteger,
identificamos a sufocação como causa arquetípica da histeria. O que remete ao
mitologema da mãe e da filha, dando origem à expressão de Kerényi: ”o milagre grego”.
O milagre de haver concebido ritual e iniciaticamente o arquétipo da mãe e da filha: os
mistérios de Elêusis.
Assim, apesar de sua irreflexão, e precisamente por causa disso, a terapia da
histeria deve conter o que mencionamos anteriormente como reflexão, porém sabendo
que o que chamamos reflexão instintiva não tem nada a ver com os clichês com pretensão
de reflexão. Refletir sobre a histeria deve centrar-se em captar a imagem da sufocação,
para que o paciente se familiarize com ela até que se torne mais ou menos psíquica. Isso
só como base psicoterapêutica, porque na realidade a dificuldade da psicoterapia da
histeria como dominante é que ela não permite a possibilidade de que se criem os
opostos, que é onde a psicoterapia começa a tornar-se profunda, a tocar profundamente
nos complexos e na natureza do paciente.
No mitologema da mãe e da filha, aparece como oposto à sufocação da filha pela
mãe o rapto da filha pela divindade subterrânea Plutão-Hades. Na longa lista de raptos do
legado grego, esse é um rapto específico, já que é a própria morte imaginada. É Plutão,
personificação da morte, quem rapta Perséfone. Podemos aqui igualar rapto com morte,
e rapto que aparece na psique como oposto compensatório da superficial polarização
histérica. E isso
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sim, podemos dizer, é que transporta a vida dos perigos da superficialidade
repetitiva e destrutiva para profundidades em que a vida psíquica pode começar a
participar do corporal, abrindo a possibilidade de uma consciência que já pode tomar
distância da mãe, do que antes era uma identificação histérica sufocante. O rapto é central
na psique e nas origens da cultura.
A lista de raptos nas origens culturais do Ocidente é imensa: o rapto de Europa por
Zeus foi experienciado em seus inícios e em seu reaparecimento no Renascimento italiano
como a essência da religião, não da religião tornada, lei, com suas formas e ritos que a
sustentam, mas como atributo central da vida religiosa. E desse ponto, até o rapto das
Sabinas, em que o mito abre espaço para a imagem externalizada, é o principal
componente da fundação da cidade e da cultura. Sim, quando imaginamos o rapto, não
podemos omitir-lhe os antecedentes primordiais e primitivos, com o fato real do homem
que parte em disparada de sua tribo e rapta uma mulher de outra tribo. Que se tome todo
esse primitivismo como a base mítica do rapto na origem da cultura. O rapto subjaz no
fundo do legado grego; diríamos dele como a fonte do conhecimento psíquico grego, dada
a profusão de suas ocorrências; é fundamental na Ilíada e na Odisséia de Homero, cuja
inspiração original fora o rapto de Helena, rapto cuja intervenção extremamente
complicada da divindade resultou na sedução de Helena por Paris, ela que é a
personificação terrestre de Afrodite.
Agora, o que chamamos rapto psíquico é um acontecimento de profunda
importância na natureza psíquica, que ocorre quando o mito do rapto, neste caso o rapto
de Perséfone por Plutão, acontece na psique; e isso é algo que por sua natureza
arquetípica não é possível fomentar ou induzir e, muito menos, mimetizar. É um
acontecimento na natureza psíquica onde a psicoterapia só pode
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trar também o pano de fundo de algo que vemos na vida diária e que em psicoterapia
se observa com lente de aumento, quando a sufocação se torna altamente possessiva.
Qualquer psiquiatra ou psicoterapeuta experiente pôde ler mais de uma vez, em situações
semelhantes, a origem de muitas psicoses e esquizofrenias e também o que se encaixa
dentro do termo psicossomático. you me referir ao caso de uma paciente esquizofrênica
de diagnóstico precoce. Quando falei com a mãe, ela me confessou que sua atitude com
a filha foi sempre a de protegê-la e guardá-la ”como se estivesse em uma caixinha de
cristal”. Podemos mencionar essa imagem verbal como exemplo daquilo a que estou me
referindo: a sufocação levada a níveis de possessão primitiva. Mas sem cair nesses
extremos, quem não presenciou alguém em sua função política, de magistério ou outra,
em que a sufocação histérica atingiu níveis possessivos primitivos, deixando
transparecer em seu exercício o toque dimensional que vem dos complexos mais antigos?
Assim, no político que nos dirige, no sacerdote que consola nossa alma, no médico que
cura nossas doenças físicas, no mestre que nos ensina, no banqueiro que negocia com
nosso dinheiro e no psicoterapeuta para quem relatamos os nossos conflitos psíquicos,
em todos se manifesta a histeria com suas múltiplas e às vezes sutis manifestações. Em
tudo que se relaciona ao casal, como instituição básica da vida, bem sabemos que a
histeria está sempre presente, manifestando-se sob alguns pretextos corriqueiros em um
rompante aqui e ali. É escusado dizer que muitas separações se dão quando um dos
cônjuges já não consegue suportar uma vida regida pela histeria. Ao observar por alguns
anos a histeria que ocupa o centro da vida dos casais, uma vida denominada ”normal”
pela consciência coletiva, certo respeito se impõe e obriga-nos a repensar acerca do que
se poderia chamar de mistérios de um relacionamento regido por mútua sufocação. Mas
é na
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Io da histeria. É sem dúvida válido qualquer quadro que possamos formar a partir
da diagnose junguiana da histeria hebefrênica, seja ela pessoal ou cultural.
Os aspectos culturais aqui mencionados provêm de imagens em minha prática
clínica, de uma visão antecipatória da sociedade ocidental e, por fim, da obstinação de
teorias psicológicas infantis que dominam a mente de muitos psicólogos. Tais psicólogos,
parece, retêm essas teorias a vida inteira, como se estivessem numa casamata poderosa,
não atentando para o fato de que a pessoa que estão tratando está numa idade com uma
realidade psíquica muito distante da da infância. Para uma personalidade dominada pela
histeria, a vida é para ser vivida segundo sua concepção histérica, e qualquer coisa que
não tenha a ver com essa ilusão carece de validade. O estudo da conexão entre certos
tipos de personalidades histéricas e aquilo que a psicologia junguiana chama de
psicologia de contos de fada está ainda por ser feito. Conhecemos personalidades
históricas para as quais a fantasia do castelo encantado chega ao máximo, não admitindo
discussão nem reflexão; o castelo encantado está em suas mentes como única forma de
se viver, e isso já os diferencia substancialmente dos casos em que a psicologia de contos
de fada admite reflexão e movimento psíquico para níveis mais consistentes da psique.
Quero também mencionar outra importante concepção que nos levaria a ver mais
ajustadamente a diferença e a relação entre histeria e animus. O animus foi descoberto,
por assim dizer, por Jung e seus seguidores da primeira geração. Ele aparece como um
pseudologos, algo que permite que a mulher aprenda o que foi concebido e criado pelo
logos masculino. Aqui essa concepção de animus é vista como um instrumento da mulher,
é algo de tremenda importância no mundo de hoje — um mundo em que a mulher muitas
vezes trabalha no mesmo
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ritmo e condição dos homens — e é o utensílio que faz com que a mulher, na história
atual, da noite para o dia, conheça o homem em quase todas as suas atividades, inclusive
naquelas que, historicamente, eram reservadas só a ele. É visto como um instrumento da
mulher. Mas o animus, dentro das maiores complexidades que contém, tem uma que
concerne igualmente à mulher e ao homem e que aparece hipertrofiada no mundo atual,
como um clichê, quase sempre grotesco: o lado ”opinante” do animus.
Vivemos num mundo de opiniões que influenciam nossa vida diária, opiniões que
cobrem todos os aspectos da vida: opiniões que têm grande peso para o homem atual e
afetam tanto a sua alimentação como sua vida erótica, sem contar com a política e sua
relação com a sociedade em que vive, e que chegam a influenciar seus costumes e hábitos
até o ponto de alterar e destruir suas tradições familiares e religiosas mais íntimas. Por
mais conscientes que possamos ser, essas opiniões superficiais, concebidas a partir
desse pseudologos que é o animus, são tragadas e passadas para nosso sistema de vida.
O fato é que também esse aspecto ”opinante” do animus aparece muitas vezes como
elemento possessivo. Assim vemos personalidades que estão possuídas não por forças
inconscientes ou irracionais de procedência arquetípica, mas por opiniões que defendem
até o fim. Não creio que seja difícil observar como estas opiniões combinam perfeitamente
com a sufocação histérica, e a sufocação não é somente algo que está dentro dos limites
arquetípicos aos quais nos referimos, mas também aparece de forma alarmante através
de opiniões.
Sentimos que vivemos numa época de grande histeria o que existe um exagero em
nossa vida; exagero que «•m poucos anos — nos últimos quarenta anos — tomou
proporções maiores do que em todo tempo anterior da
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plataforma que imaginou Jung, e não as deixa passar para os complexos históricos
e os arquétipos e, certamente, os instintos, que são os que deveriam reagir. Lemos um
jornal e, no mesmo nível de superficialidade histérica, encontramos a notícia de uma
celebridade, os esportes, um desastre nacional ou algo sobre a quantidade de mísseis que
tem esta ou aquela potência; não há uma maior diferenciação entre os valores. Parece que
tudo fica reduzido à informação histérica para alimentar nossa histeria.
Esta superficialidade mágica de contos de fada da histeria é cotidiana na
psicoterapia, na qual nos é permitido apreciar com lente de aumento a impossibilidade na
psicoterapia de uma aceitação real de situações, problemas, conteúdos psíquicos
evidentes que possam tocar emocionalmente a psique e que ela se sinta em movimento
por isso. Assim vemos — e nossa sensibilidade se escandaliza às vezes com isso — que
penas, dores, tragédias são banidas instantaneamente pela histeria. Aqui cabe a frase de
Eliot quando nos diz que ”o ser humano não pode suportar demasiada realidade”, mas
para o que interessa em nosso trabalho, caberia dizer que a personalidade histérica — o
componente histérico de cada um e as histerias coletivas — dá um jeito de escapar, com
superficialidade pasmosa, da realidade básica à qual já nos referimos, o que nos permitiria
aceitar a consciência de fracasso e o aprendizado psíquico que a acompanha.
Espero que o leitor tenha presentes as limitações desta pequena exposição sobre
histeria, se bem que ela traga consigo uma visão arquetípica da histeria, e isso é novidade.
Essa mesma concepção arquetípica da histeria nos propicia ver com outro olho a metáfora
mais comum com que tem sido vista: ”tem mais formas que Proteu e mais cores que o
camaleão”. A intangibilidade, assim como o espectro misterioso que já assinalamos,
fazem parte da histeria, e dentro do misterioso desse mistério devemos
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aceitar que apenas se sabe de sua função e do porquê da om nossa natureza (se
não nos agarrarmos hisIni Iminente a reduções superficiais). Colocando-a como parte
integrante de nossa natureza nos parece um passo limito válido, pois ali está o mistério.
O mistério arquetípico dos mistérios eleusianos.
Porém há algo mais que é importante nisso: é que a histeria é capaz de utilizar-se
de qualquer instrumento pura ser o seu veículo de manifestação. Parece que um dos
instrumentos mais à mão da histeria é a culpa, algo que vem à mão da histeria como o
anel ao dedo. Assim, mais vezes podemos observar o espetáculo da histeria fazendo uso
da culpa com refinamento e insinuações e outras vezes em que nos aflige com seu
descaramento. E isso nos aproxima do porquê a histeria é tão importante para o tema que
estou tratando: se ela maneja a culpa com habilidade característica, estou dizendo que ela
tem à sua disposição um espectro infinito de possibilidades para culpabilizar qualquer um
ou qualquer coisa, não aceitando assim a consciência de fracasso. A histeria, ao
culpabilizar, destrói a imagem do acontecer psíquico.
O terceiro elemento, que não reconhece o fracasso e que aparece como o mais
perigoso, é o que cai dentro do conceito de transtornos da personalidade, que aqui
consideramos como componentes psicopáticos da personalidade, dando-lhe um
significado mais geral. São componentes que também todo ser humano abriga, mesmo
quo não sejam arquetípicos, o que já os caracteriza de maneira mais específica e aponta
para sua poriculonidade. Não sendo arquetípicos, carecem, por ÍHHO, do imagem e forma;
irrompem na personalidade como manifestação do excesso e falta de limites do ser
luunnno lOles estão em oposição radical às formas iininHipir.-iH da vida, porque, como já
dissemos, são elemontoH que; carecem de forma. Mas permitam-me es-
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tender um pouco mais esse particular. Se conhecemos algo com formas, as formas
já impõem um limite; agora, se fizermos um esforço para conceber algo que não tem
formas — esforço que na verdade temos de fazer para chegar a tal conceito, no
componente psicopático que todos carregamos, e que não tem forma —, o que aparece
em vez de forma com limites é uma falta desses limites, um excesso. E no estudo da
personalidade em que esse componente é dominante que aprendemos a ter alguma
vivência dessa parte de nós mesmos; porque aceitar que esse psicopata desmedido que
aparece na história e nas notícias dos jornais todos os dias, nas revistas e como heróis
de filmes etc., está em nós, é algo muito difícil; tão difícil quanto dizer e conceber na
própria vivência que a maldade se aloja ou está presente em cada um, dentro de nós.
Aceitemos isso como extremo e, segundo a definição de psicopata nos textos de
psicopatologia, mas também aceitemos como algo que tem a ver com a natureza humana,
a qual temos nos referido neste estudo. Mas aqui quero olhá-lo de maneira mais mundana,
se é que isso seja possível, e traze-lo como elemento de importância, o que mais bloqueia
o acesso à consciência de fracasso. Já que o psicopata não tem forma, ele não pode
reconhecer nenhum e, assim, não concebe o fracasso e muito menos a consciência dele.
Desejaria dar ao leitor um retrato do que é o psicopata, ou do componente
psicopático de todos nós, e por isso permita-me tomar emprestadas as contribuições da
literatura atual. Tomemos duas obras que nos ajudam nesse propósito. A laranja mecânica
e O estrangeiro. A laranja mecânica, obra exemplar de Anthony Burgess, nos mostra um
mundo em que o psicopata reina livremente. Ávida é um excesso, não existem limites nem
formas; o que poderia contribuir com formas, como a religião, o estado etc., está tomado
pelo excesso, como se o
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tende fazer psicoterapia com base em teorias que ele mostra interesse em aplicar,
mas sem remotamente conceber que o suceder psicoterapêutico é um produto da própria
psique, da inter-relação psíquica entre terapeuta e paciente; e que as teorias, qualquer
uma, são irrelevantes e, na maioria dos casos, obstruem a manifestação natural da psique.
E por isso que prefiro apoiar-me nas contribuições da literatura e na reflexão que
nos prove a mitologia, para usá-las como instrumento mais plástico e imaginativo. Assim,
podemos ver outra obra-prima, O estrangeiro, de Albert Camus, que nos fala desse
estrangeiro que todos temos dentro de nós. O título da obra já nos diz do que se trata: é
algo estranho a nós. Também o livro de Camus nos oferece com dramatismo direto, única
e profundamente sentido, o vazio interior do psicopata: essa carência de formas interiores
concebida por Camus em Mersault, a personificação do estrangeiro. Sempre nos
surpreenderá a primeira página dessa novela — obra mestra da literatura moderna — cada
vez que lemos que Mersault recebe um telegrama anunciando a morte de sua mãe, porém
nele não existe uma resposta que tenha relação com o imaginário que corresponda a essa
notícia.
Perdoe-me o leitor por repetir esses dois exemplos da literatura atual, mas melhor
do que simples repetições seria considerá-los como variações sobre o mesmo tema.
Embora eu pudesse trazer outros exemplos, nenhum teria a convincente expressão
dessas duas obras. Minha intenção é enfatizar algo que sinto ser de interesse e
necessidade essencial, pois o tema é tão importante que o mais aconselhável seria
agarrar-nos às figuras que melhor sirvam de acesso ao que queremos apreender; e o que
queremos apreender é de difícil acesso, pois não tem ínnuas. Tendo isso presente, remeto
o leitor a Luchino Visconti, para quem este tema é central e com muitas variações
riquíssimas na totalidade de sua obra cinematográfica.
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Espero que com esse breve relato o leitor perceba que o componente psicopático
que funciona em excesso, que não se ajusta a limites e formas, nos evidencia a existência
de falhas na natureza humana. O excesso de um psicopata ou o componente psicopático
não pertence a nenhum arquétipo nem se sujeita a nenhuma forma. Como vimos em O
estrangeiro, a falha que aparece na primeira página nos diz que o arquétipo da mãe — que
nesse caso seria visto como um arquétipo de duas cabeças (a mãe e o filho, o filho e a
mãe) — parece que não existe. Ao remeter o leitor às obras citadas, passo-lhe uma visão
viva, prática, da personalidade psicopática nas vertentes externas e internas, uma visão
de fácil acesso a realidades tão cruéis do ser humano. Também, com isso, permitome sair
de tamanhas complexidades e me limitar ao que tenho de dizer sobre o mimetismo, para
mim essencial ao estudo da psicopatia, tanto quando domina a personalidade, como
quando o concebemos como um componente.
O psicopata é a viva expressão disso que podemos dizer de algumas pessoas: que
”não têm nada por dentro”. Tudo está fora, emprestado e captado por processos de fácil
acesso. Nesse mimetismo do mundo exterior, a personalidade psicopática ou o
componente psicopático se adapta ao evento que se lhe apresente. Todos necessitamos
de certo grau de mimetismo e parece que é por isso que a natureza nos dotou dele;
necessitamos dele para adaptar-nos a uma situação extrema, desconhecida para nós. Mas
não há dúvida de que na história de nossos dias, nas sociedades atuais, há um aumento
dessas necessidades prementes de adaptações externas e pode ser que por isso tais
componentes se hipertrofiaram de maneira tão notável em um mundo como o de hoje, no
qual estamos constantemente encontrando coisas que não podemos
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aprender, pois embora nos excitem e devamos nos adaptar a elas por causa de sua
ocorrência diária, são ainda muito estranhas para o nosso processo de aprendizagem.
Isso faz com que o histrionismo mais imediato da histeria e o fácil mimetismo psicopático
sejam dois instrumentos que a história, por necessidade, nos tenha feito desenvolver.
Parece que o homem ocidental tem certa consciência desse aspecto a partir do seu legado
clássico, pois Platão em Timeu nos fala do que aqui nos interessa. Se existe uma alma
com seus arquétipos, imagens, formas e inteligência, também existe a necessidade
(ananke) que precisamos para responder a algo que não tem forma conhecida para nós.
As respostas são infinitas e podem variar desde mimetismos que aparecem diante de
situações desconhecidas até os extremos da maldade. Há um velho refrão que diz que se
fores a Roma aja como um romano, ou como me disse um amigo: se me atiram de um
páraquedas na China, para sobreviver eu tenho de fazer algo, e a primeira coisa que me
ocorreria seria sorrir como os chineses. O exemplo é claro e nos faz ver com humor isso
que Timeu, em seu discurso em Atenas no século V a.C., chamou de Necessidade, mas
também nos deixa claro o absurdo superficial dessa necessidade. Para o chinês, o sorriso
é algo que vem de dentro, um sorriso que, como dizem os entendidos, é uma linguagem
em si de uma tradição milenar, e chega até a expressar sabedoria. Assim, por mais que o
amigo exercite esse sorriso, não conseguirá fazê-lo como um chinês; seu sorriso será
uma manobra que no melhor dos casos pode tornar possível sua sobrevivência entre os
chineses.
Perdoem-me ter usado uma anedota chinesa para pnssar-lhes uma imagem de
acesso, diríamos coloquial, daquilo que foi reflexão tão profunda nas origens do Ocidente,
como é o Timeu. Mas também sentimos profundaiiinil o que o que aqui estou falando são
urgentes necessi-
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dades de nossa época. Isso é o que nos transmite o cômico norte-americano Woody
Allen, quando em seu filme Zelig nos dá, numa imaginária cheia de historicidade, a
reflexão do mimetismo levado a extremos de autonomia total. Zelig mimetiza quando vê,
mas dentro do cômico e da história que se produz, nos chama a atenção ver que Zelig
chega ao extremo de também mimetizar Adolf Hitler, e aí vemos as intenções audaciosas
do comediante chegar ao que aqui estamos tratando: dois extremos do que em
terminologia psiquiátrica moderna se chama psicopata e que vai do mimetismo
adaptativo, por sobrevivência, até a maldade.
A história desenvolveu esses elementos por necessidade, mas às custas de nosso
mundo arquetípico de formas e, por que não dizer, da perda da alma; e alma quer dizer
aqui registrar interna e emocionalmente o acontecer da vida. Vivemos num mundo onde a
Necessidade chega ao homem através dos meios de comunicação; mas esses meios,
como a palavra diz, faz dele um medíocre, transmitindo-lhe apenas as demandas do que
Timeu chamou de Necessidade. Necessidade que vai aumentando e destruindo
sistematicamente os restos de valores próprios do homem ocidental e, por isso, seu
sentir, suas próprias emoções, sua privacidade.
Como resultado, acreditamos que os países dominantes do cenário do mundo são
os mais miméticos. Estamos contemplando como um país de habilidade mimética, como
o Japão, domina da noite para o dia a tecnologia, essa filha da Necessidade e da qual
Esquilo já era consciente, ou seja, que a tecnologia, algo nativo do Ocidente, hoje em dia
nos mostra o absurdo de uma nação totalmente alheia à cultura ocidental que a mimetiza
e domina esse campo. Mas vemos algo ainda mais absurdo: a ganância excessiva do
Ocidente, que quer mimetizar a tecnologia japonesa — mimetizar o mimetizado —, colocar
o mimetismo tecnológico como carta de triunfo.
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Desde já podemos nos dar conta de que para ”triunfar” em qualquer coisa naquilo
que chamamos sociedade moderna, tanto o histrionismo histérico como o mimetismo
psicopático são moedas de uso corrente, legal e efetivas de imediato. E começamos a
sentir como esses componentes que se caracterizam um por sua superficialidade, outro
por seu excesso — este, seguido de um vazio, de um nada —, passam a ser de importância
superior. Também esses componentes estão nos dizendo que sua única meta é o sucesso,
que os valores desse sucesso não são nem remotamente relevantes e que qualquer coisa
que pensemos deles nos leva de imediato a sentir que são um bloqueio constante ao
acesso da consciência de fracasso.
Temos de saber, pois sentimos assim, que o que chamamos de consciência de
fracasso é algo interior e muito obscuro. Quando nos referimos à consciência de fracasso,
nunca estamos nos referindo a algo a que podemos chegar mediante esquemas de fácil
acesso. A consciência de fracasso pertence, e creio que isso estamos compreendendo
agora, a áreas obscuras nas quais se move nossa interioridade. Quando nos referimos à
consciência de fracasso estamos nos referindo a estados médios e lentos da alma: Anima
Media Natura. Pois nesse estado da alma não existem triunfalismos, simplesmente porque
há uma alma ou psique que é consciente, que não concebe as acelerações necessárias
para as concepções do Puer, nem do histrionismo histérico, nem do mimetismo
psicopático. Esta é uma alma que não sofre os tormentos da busca do sucesso, mas
também é uma alma que não anula o pólo oposto: o fracasso feito realidade; esse fracasso
que aparece de vez em quando e se infiltra na enfadonha cantilena liiHtórica do ”eu me
sinto fracassado”, com esse toque de histeria e repetição depressiva psicopática, além de
ser
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um fracasso projetado para fora. Um ”sinto-me fracassado” que quer dizer ”sinto-
me fracassado por não poder cumprir as metas do triunfalismo vigente”. Consciência de
fracasso é outra coisa, é algo mais precioso e muito psíquico, é evasiva, vem e vai, e com
isso nos indica suas características mercuriais. É uma consciência, como já dissemos,
média e obscura, cujo sítio é o umbral e sua luz crepuscular. Mas é nesse lugar que nos
reconciliamos com nossas mortais limitações e, fazendo isso, encaixamo-nos nos limites
definidos do nosso ser e dentro da realidade que somos. É isso que torna possível a
imagem com suas possibilidades de uma vida culta.
Já desde aqui e graças a nossa reconciliação com a consciência de fracasso,
entramos inadvertidamente no âmbito da imagem, e a imagem, como diz o poeta, é
possibilidade. Um pensamento de Lezama Lima diz: ”A hipótese da imagem é a
possibilidade”. E as possibilidades são do imaginário, o que torna possível o exercício
daquele que trabalha a imagem, e essa capacidade de imaginar é já uma atividade terrena
e limitada, por estar dentro dos limites arquetípicos consistentes que lhe pertencem. Por
limitada quero dizer super abundante, como também estabelece Lezama. Quando falamos
da imagem já começamos a falar de superabundância, porém sem aceitarmos que uma só
imagem é mais que suficiente para preencher toda essa vivência. Quando a imagem a que
pertencemos começa a emergir, já existe movimento psíquico, rico e muito distante, pois
nada tem a ver com o movimento repetitivo psicopático-titânico. Sim, e isso tem de ser
repetido: ”A hipótese da imagem é a possibilidade”; a imagem que nos faz possível, e na
possibilidade da imagem estamos um tanto distantes, ainda que nunca imunes, do horror
intolerável dos opostos sucesso-fracasso. É na imagem e a partir da imagem que
encontramos o repouso dos opostos sucesso-fracasso.
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Na psicologia junguiana dos opostos se entende a arte como uma tentativa de
compensar a consciência coletiva, pois uma arte que se interesse em concordar com a
consciência coletiva é algo que evidencia sua superficialidade, e se a aceitamos é sabendo
o nível que ocupa. Nós deveríamos saber que também é assim que deve ser experienciada
a psicoterapia, e aqui vemos uma afinidade entre poeta e psicoterapeuta. Psicoterapia
entendida como artesanato e arte. Isso também nos serve como meio de constraste para
poder valorizar nosso sentimento quando nos atinge algo da arte que nos toca fundo e
nesse toque nos compensa do tédio, do aborrecido, do horror da consciência coletiva,
que no mundo atual se torna mais esmagador por tudo o que aqui estamos dizendo.
Mas a arte necessita de independência e privacidade, requer também certa
consciência que propicie o roçar limítrofe com o poético; o acontecer da arte é algo que
nos comove por sua economia. O poeta só necessita de um lápis e de papel. Um pintor
necessita de um pouquinho mais: cores, pincéis, tela. E tanto o poeta como o pintor
podem se soltar com esses instrumentos e sentir e ouvir o que quer se expressar através
deles. E se assinalo essas economias é porque sinto — e a partir do meu sentimento
conheço e valorizo — que o mundo psíquico, a experiência da alma, nos presenteia com
economias parecidas. Se somos capazes de valorizar psiquicamente as experiências da
alma, já nos aproximamos um pouco disso que se chama crise da alma, e então tratamos
de viver um pouco mais ajustados à rica gama das depressões e aí é que começamos a
viver, sentir e valorizar as profundezas, porque os movimentos lentos da depressão — e
podemos di/.or hoje sem a menor dúvida — são via regia, a única via rvtfin para qualquer
coisa que chamemos criatividade psíquica. Criatividade que cria alma e se expressa nisso
que chamamos arte, arte que tem a ver com a alma.
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A este ponto podemos começar a ler um poema de Rafael Cadenas, cujo título é
Fracasso, e que apareceu em minha vida dando uma bela forma poética a pensamentos,
idéias que estavam comigo, como disse no início, por muitos anos, e que eu vivenciava
como consciência de fracasso, mas que agora, graças a isso que chamamos de arte,
podem estar contidos em um recipiente adequado, esse que contém vivência interna
expressa e dada com generosidade exemplar.
Tudo o que tomei como vitória é só fumaça. Fracasso, linguagem do fundo, pista de
outro espaço mais exigente, é difícil ler a tua letra nas entrelinhas. Quando punhas tuas
marcas na minha fronte, jamais pensei na mensagem que trazias, mais preciosa que todos
os sucessos.
Teu flamejante rosto me perseguiu e eu não soube que era para me salvar.
Para meu próprio bem relegaste-me aos cantos, negasteme fáceis êxitos, fechaste-
me as saídas. Era a mim que querias defender, não me outorgando brilho. De puro amor
por mim dirigiste o vazio que tantas noites me fez falar febril a uma ausente.
Para me proteger cedeste o passo a outros, tens feito com que uma mulher prefira
alguém mais determinado, afastaste-me de tarefas suicidas. Tu sempre vieste para me
salvar.
Sim, teu corpo chagado, cuspido, odioso, recebeu-me em minha mais pura forma
para me entregar à nitidez do deserto.
Por loucura eu te maldisse, te maltratei, blasfemei contra ti.
Tu não existes.
Foste inventado pela delirante soberba. Quanto te devo!
Promoveste-me a uma nova classe, limpando-me com uma esponja áspera,
lançando-me a meu verdadeiro campo de batalha, cedendo-me as armas que o sucesso
abandona. Conduziste-me pela mão para a única água que me reflete. Por ti eu não
conheço a angústia de representar um pa-
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é perseguido pelo deus que queima e salva. Somos perseguidos por aquilo que é
tão alheio à nossa natureza consciente, que para ela é difícil aceitar ou tolerar. A
consciência é ignorante e temerosa, e um rosto flamejante só pode causar temor. É assim
que os deuses se disfarçam; aqui a imagem é inequívoca: com o horror vem a salvação.
”Teu flamejante rosto me perseguiu e não soube que era para me salvar”. Aceitando o
horror vem a salvação, e o fracasso começa a impor seus limites que se ajustam à
configuração de uma personalidade em estado de consciência de fracasso; limites muito
precisos: ”Para meu próá prio bem relegaste-me aos cantos, negaste-me fáceis êxitos,
fechaste-me as saídas”.
Existe uma outra linha que se encaixa perfeitamente ao anteriormente escrito, e é
quando nos diz: ”Tens feito com que uma mulher prefira a alguém mais determinado”.
Isso é fácil de conectar com aquela Anima Me-
dia Natura. Essa mulher que trazemos dentro e que, ao mesmo tempo, é
companheira da alma. É uma mulher que não se deixou levar por alguém mais
determinado, que não se entrega à vitória e ao êxito, mas que desfruta de sua natureza
média. Uma anima que não nos empurra para o êxito, mas que também nos livra de
”tarefas suicidas”, das depressões suicidas às quais já nos referimos.
Quando Cadenas diz da consciência de fracasso ”tu sempre vieste para me salvar”
(tu siempre hás venido ai quite), está nos passando um sentimento de confiança, como se
a única coisa em que se pudesse confiar fosse na consciência de fracasso. A linha é muito
taurina, relativa à arte de lidar com touros, e está cheia do colorido da festa. O ”quite” se
dá quando há momentos de perigo na corrida de touros, quando estamos em perigo, e é
a consciência de fracasso que o faz aparecer. Na tradição taurina o ”quite” é visto como
uma intervenção da Divina Provi-
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dência. Existem ”quites” que são como se a capa do toureiro fosse levada pela mão
da providência, que o salva de um perigo iminente. Para o poeta é assim que aparece o
fracasso: para salvá-lo do perigo. Sentimos aqui como se a consciência de fracasso fosse
um movimento interior que termina em profundas realidades, em verdades nuas e na
apoteose da alegria.
Perdoe-me o leitor por me atrever a passar-lhe minhas vivências sobre algumas
linhas do poema de Rafael Cadenas, mas nisso creio estar manifestando o grande
contentamento que produziu em mim o encontro com o poema Fracasso. Contentamento
que se afirma, que se vive em estado de consciência superior, que aparece da profunda
consciência de fracasso. Pois é difícil encontrar uma linha que nos fale tão ajustadamente
da realidade que somos quando Cadenas diz: ”Eu não te canto pelo que és, mas por aquilo
que não me deixaste ser. Por não me dar outra vida. Por haver-me limitado”.
Isso é realidade de individuação, adaptação a si mesmo e limitação aos próprios
contornos. Aqui já estamos nus ante nós mesmos. ”Deste-me apenas nudez”, realidade
limitada e verdade nua. Realidade e verdade indispensáveis para sentir a alegria. Alegria
que em Cadenas é apoteose interior e que alegra esse mundo interior e torna possível a
consciência de fracasso. Alegria que se pode sentir como uma consciência maior que
contém a alegria e o fracasso num abraço paradoxal.
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BIBLIOGRAFIA
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Fundarte, Caracas, 1979. GUGGENBUHL-CRAIG, Adolf, Eros on Crutches, Spring
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Works, vol. I, Routledge
and Kegan Paul, Ltda., Londres, 1957. KERÉNYI, Carl, Eleusis. Archetypal Image of
Mother and Daughter,
Bollingen Series LXV 4, Bollingen Foundation, Nova Iorque, 1967. LEZAMA LIMA,
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Medicine, Spring Publications Inc.,
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