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ANSIEDADE CULTURAL

Rafael López-Pedraza
Amor e psique

O autor trata de temas fundamentais para a psicologia e o autoconhecimento.


Temas que têm a ver com aspectos distantes e obscuros da natureza. Muitas vezes esses
aspectos já foram abordados, porém de forma superficial. Assim, o autor liga sempre o
sintoma à manifestação de um arquétipo, procurando aí suas raízes. Vai fundo, à matriz;
não psicologiza; fala através das imagens, rondando-as, extraindo delas o que é
importante para gerar o movimento da psique. Para isso, não dá respostas prontas, que
muitas vezes só alimentam o intelecto e sossegam a ansiedade, além de desrespeitarem
o movimento e o ritmo interno da vida. Não fecha completamente o assunto, dando a
possibilidade de o leitor ”passear” nessas imagens e chegar aos lugares até onde é
possível no momento. Enfim, guia aos lugares onde a luminosidade é escassa e o ar é
rarefeito.
RAFAEL LÓPEZ-PEDHAZA freqüentou o Instituto C. G. Jung de Zurique entre 1963
e 1974. Atualmente reside em Caracas, onde foi professor de mitologia na Escola de Letras
da Universidade Central da Venezuela de 1976 a 1989. No momento divide seu tempo entre
a prática da psicoterapia, seus escritos sobre psicologia profunda (escreveu também
Hermes e seus filhos) e conferências e seminários em diversos países da Europa e
Estados Unidos.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do


Livro, SP, Brasil)

Lopez-Pedraza, Rafael
Ansiedade cultural / Rafael Lopez-Pedraza , [tradução Roberto Cirani] — São Paulo
Paulus, 1997 — (Amor e psique)
Titulo original Ansiedad cultural
Bibliografia
ISBN 85-349-0835-4
1 Ansiedade — Aspectos sociais 2 Arquétipo (Psicologia) 3 Mito — Aspectos
psicológicos 4 Psicanálise e literatura l Titulo II Série
96-3242 CDD-809 93355
índices para catalogo sistemático
1 Psicanálise e literatura 809 93355

Coleção AMOR E PSIQUE

• Uma busca interior em psicologia e religião, J Hillman • A sombra e o mal nos


contos de fada, Mane-Louise von Franz • A individuação nos contos de fada, Mane-Louise
von Franz • A psique como sacramento — CG Jung e P Tillich, J P Dourley • Do
inconsciente a Deus, Erna van de Wmckel • Contos de fada vividos, H Dieckmann •
Caminho para a iniciação feminina, S B Perera • Os mistérios da mulher antiga e
contemporânea, M E Hardmg • Os parceiros invisíveis J A Sanford • Menopausa tempo de
renascimento A Mankowitz • A doença que somos nos, J P Dourley • Mal o lado sombrio
da realidade, J A Sanford • Medi facões sobre os 22 arcanos maiores do taro, anônimo •
Os sonhos e a cura da alma, J A Sanford • Bíblia e psique — Simbolismo da individuação
no AT, E F Edmger • A prostituta sagrada, N Q -Corbett • A interpretação dos contos de
fada, Mane Louise von Franz • As deusas e a mulher — Nova psicologia das mulheres, J
S Bolen • Psicologia profunda e nova ética, E Neumann • Meiaidade e vida, A Brennan e J
Brewi • Puer Aeternus —A luta do adulto contra o paraíso da infância, Mane-Louise von
Franz • O que conta o conto7, Jette Bonaventure • Falo, a sagrada imagem do masculino,
E Monick • Castração e fúria masculina, E Monick • Eros e pathos—Amor e sofrimento, A
Carotenuto • Sonhos de um paciente corn Aids, Robert Bosnak • A busca fálica — Pnapo
e a inflação masculina, J Wyly • A tradição secreta da jardinagem — Padrões de
relacionamentos masculinos, G Jackson • Conhecendo a si mesmo — O avesso do
relacionamento, D Sharp • Breve curso sobre sonhos, Robert Bosnak • Sonhos e gravidez,
Marion R Gallbach • A passagem do meio, J Holhs • Os mistérios da sala de estar, G
Jackson • O velho sábio — Cura através de imagens internas, P Míddelkoop ’A solidão, A
Storr-Deus sonhos e revelação, Morton T Kelsey • A velha sabia — Estudo sobre a
imaginação ativa, Rix Weaver • Sob a sombra de Saturno, J Holhs • Ansiedade cultural,
Rafael Lopez-Pedraza

Título original
Ansiedad cultural
© Rafael López-Pedraza, Venezuela, 1980

Tradução

Roberto Cirani (foi traduzido do título em inglês, mais completo e atualizado)


© Cultural anxiety, Daimon Verlag, 1990
Revisão Edson Gracindo
Coleção AMOR E PSIQUE dirigida por
Dr. Léon Bonaventure
Pé. Ivo Storniolo
Dra. Maria Elci S. Barbosa
Capa Visa

© PAU LUS-1997

Rua Francisco Cruz, 229


04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (011) 575-7403 Tel. (011) 572-2362
http://www.paulus.org.br
ISBN 85-349-0835-4

ISBN 3-85630-520-3 (ed. original)


INTRODUÇÃO À COLEÇÃO AMOR E PSIQUE

Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos
que o levam para a sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se um lugar novo
de experiência. Os viajantes destes caminhos nos revelam que somente o amor é capaz
de gerar a alma, mas também o amor precisa da alma. Assim, em lugar de buscar causas,
explicações psicopatológicas às nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos,
em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos
reconhecer que estas feridas e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por
outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para
a nossa unidade e para a realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria vida
carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira.
Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, mas o psíquico, e depois o
espiritual. É a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que
significa que a psicologia pode de novo estender a mão para a teologia.
Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço para libertar a alma da
dominação da
psicopatologia, do espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si

mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refloxões durante a prática


psicoterápica, e está começando a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. E uma
nova visão do homem na sua existência cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto
cultural, abrindo dimensões diferentes de nossa existência para podermos reencontrar a
nossa alma. Ela poderá alimentar todos aqueles que são sensíveis à necessidade de
colocar mais alrnn em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente mstituir a alma a si mesma e ”ver
aparecer uma geração de sacerdotes capaz de entender novamente a linguagem da alma”,
como C. G. Jung o desejava.

Léon Bonaventure

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Fiona Cairns, Ruth Horine, Robert Hinshaw e Valerie López
por suas genenrosas contribuições editoriais aos ensios compreendidos neste livro, e a
Michael Heron por sua tradução do Duende e de Consciência de frcassso.
O capítulo “Loucura lunar-Amor titânico” apareceu priginalmente no livro Images of
the Untouched, editado por Joanne Strond e Gail Thomas (Spring, Dallas, 1982) e
agradecemos a Spring Publications por tê-lo tornado acessível. “Ansiedade cultural” foi
publicado em separata por ocasião do Novo Congresso Internacional de Psicologia
Analítica de Jerusalém, em 19883.Posteriormente foi publicado na ata oficial do
congresso, Symbolic and Clinical Approuches in Pratice and Theory, editada por Luigi
Zoja e Robert Hinshaw (Daimon, Zurique, 1986). “Reflexões sobre Duende” e “Consciência
de fracasso” foram traduzidos do espanhol por Michael Heron.

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PREFACIO

Esta pequena coleção de ensaios é o produto de minhas reflexões sobre dois


aspectos da natureza humana, aspectos que eu considero estarem mutuamente em
oposição exclusiva. Um aspecto é o nosso acesso às imagens arquetípicas e formas vitais
consistentes, tornando possíveis a psique, as emoções e os valores de sentimento, e
marcando nossos processos interiores. O outro é uma falta de imagens, um vácuo, uma
lacuna, da qual provêm o excesso e a loucura do poder.
Esses dois aspectos da natureza humana não só têm estado envolvidos numa
constante luta no decorrer da história do homem sobre a terra, mas também estou
consciente da sua luta em minha própria vida e relacionamentos, e se tornaram centrais
na minha concepção da psicoterapia.
Advirto o leitor de que na exposição que segue procuro não qualificar esses dois
opostos. Minha posição é psíquica e terapêutica, alicerçada no modo como nossa
entidade psíquica é cônscia desses dois opostos e aprende como sofrer a sua
irreconciliabilidade.
O material contido nos ensaios é tomado em sua maior parte da literatura, poesia e
eventos históricos, mas ó reforçado por minha própria prática de psicoterapia. Espero que
o leitor aprecie o fato de que, em geral, man-

tive a linguagem dos ensaios tão simples quanto possível, às vezes até mesmo
coloquial, para evitar o jargão das escolas de psicologia e a semântica junguiana. Assim
fazendo, penso, propiciei acesso mais fácil às imagens com as quais estava tratando.

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LOUCURA LUNAR -AMOR TITANICO

Um encontro entre a patologia e a poesia

Neste escrito refiro-me a sois elementos de grande importância psicológica na


terapia atual. O primeiro é sobre a psicologia na terapia atual. O primeiro é sobre a
psicologia do virginal, refletida na estranha relação entre a figura mitológica de Endimion
e a Lua¹, mito que atraiu muitos poetas e escritores. ²
Endímion se apresenta como enamorado da Lua, enamoramento que assinala uma
psicologia complexa, cujo espectro roça ora a criatividade poética ora severa patologia;
com ele Endímion reveste-se de uma relação especial, ás vezes peculiar, com a virgindade.
Mas a Lua aparece como Selene, ou seja, a Lua em seus aspectos titânicos. E é
precisamente o titânico o segundo material a que me refiro aqui. É interessante levar isso
em conta, pois como se verá, ao longo destes ensaios faço várias referências a aspectos
muito estranhos da natureza humana, aspectos que atribuo á psicologia dos Titãs.
Comecemos por compartilhar algumas impressões sobre o titanismo e indicar sua
importância para os estu-
¹ Isto me veio dos meus estudos e seminários sobre o ”teatro de memórln”, do
Giullio Camillo, Yates, Francês. Cf. A arte da memória, Taurus Edi, Madri, 1974. A imagem
de Endímion pertence à Primeira Filha de Diana, a Lua.
² Helena H. Law, Biography of Greek Myth in English Poetry, Bulletin XXVII,
American Classical League, p. 15, Oxford, Ohio, 1955. Sob Endímion aparecem
relacionados quarenta e dois poetas.

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dos da psicologia dos arquétipos, já que representa para mim um aspecto muito
importante e ainda não plenamente explorado da natureza humana. Para tal propósito
tomarei algumas das idéias que apresentei em meus seminários sobre o titânico.
Parece que nunca houve um culto aos Titãs. Os tempos titânicos podem ser
visualizados como um período de transição entre o homem primitivo e o homem culto,
civilizado. Um período durante o qual não existiam nem o ritual, nem o culto do homem
primitivo, nem a imaginação antropomórfica bem definida do homem altamente culto e
religioso. Como todos temos complexos primitivos dentro de nós, que foram bem
estudados pela psicologia junguiana, todos também devemos ter, implicitamente, um
nível titânico na psique: os complexos titânicos, ainda que não tenham sido tão bem
estudados. Uma psicologia mais diferenciada desse nível titânico ainda aguarda o seu
estudo. Existem personalidades nas quais o titânico parece ser predominante e, acredito,
existem comportamentos estranhos e patologias que só podem ser avaliados em termos
de titanismo, algo a que me referirei com mais detalhes no que se sucede. Estou
convencido de que a psicologia do titânico é sumamente importante, em particular se
aceitarmos que esse ingrediente se encontra em todos nós.
Antes de tudo, seja-me permitido clarificar um pouco o campo mitológico em que
reside a figura que iremos enfocar. Mas, a fim de limpar o terreno para obter uma idéia
mais clara do titânico, será necessário observar o que não é titânico. Os Titãs pertencem
ao tempo mitológico de Crono, época da primeira e segunda geração de deuses. Foi o
tempo anterior à guerra de Zeus contra seus progenitores titânicos, que originou uma
nova ordem, um novo ritual, uma nova religião, uma nova cultura e u mu nova civilização.
A era de Zeus provocou uma diferencia-

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ção de imagens, o que Nilsson chama de antropomorfismo grego em mitologia e


história. Nilsson e outros estudiosos modernos concordam que a configuração deste
antropomorfismo demomu aproximadamente um milênio. Aqueles foram chamados
séculos da Era das Trevas grega século em que era tarefa dos bardos e menestréis — em
outras palavras, dos poetas —cantar uma e outra vez as mesmas canções, repetir as
heróicas sagas micênicas: a história mitologizada dos Heróis. E à medida que os poetas
cantavam, teciam uma rede na qual, pouco a pouco, iam captando as imagens de uma
mitologia divina. Dentro dessa rede de narrativas repetitivas foram recolhendo os deuses
e deusas como imagens antropomórficas viventes, criando, assim, uma imagem bem
diferenciada e consistente de cada um deles, tal comoexpressa Nilsson:
Durante a Era das Trevas, entre a queda da cultura micênica e o período homérico
— tempos em que deve terse desenvolvido especificamente o antropomorfismo grego —
, podemos presumir que o antropomorfismo interior era a força vigente... Porque temos
sido educados pelos gregos segundo um antropomorfismo consistente, e isso é algo
especificamente grego.³
Hoje em dia, podemos ser educados uma vez mais pelos gregos. Temos recebido
de sua mitologia a constante possibilidade de um Renascimento da psique. Sim, temos
sido educados pelos gregos, mas para sermos precisos, eu acrescentaria, pelos poetas
gregos. E considero essa educação como uma educação da alma, uma educação psíquica.
E essa educação da alma através da poesia — do antropomorfismo poético-mitológico —
é a fonte da
³ Martin P. Nilsson, History of Greek Religion, trad. F. J. Fielden, Nova Iorque, W. W.
Norton, 1964, pp. 143-144.

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qual o homem ocidental pode extrair inesgotavelmente aquilo com que se educar e
recriar a alma. 4
Hòlderlin escreveu: ”Cheio de méritos, mas poeticamente, o homem habita a terra”.5
Com essas palavras, o poeta nos diz que nossa educação hoje em dia contém o quo o
homem faz tanto por mérito como por intervenção poética. E para refletir sobre a imagem
que irei elaborar, também necessitaremos tanto de mérito como de poesia.
Mas retornemos aos Titãs. Desafortunadamente é muito pouco o que sabemos
sobre eles. A Títanomaquia e dois terços da trilogia de Esquilo sobre Prometeu se
perderam, mas, para os fins que aqui perseguimos, os estudiosos de mitologia deram-nos
uma imagem adequada da antiga raça de deuses. Eis o que diz Kerényi sobre os Titãs:
Os relatos sobre Titãs são sobre deuses que pertencem a um passado tão remoto
que os conhecemos tão unicamente a partir de histórias de um tipo particular, e só
exercendo uma função particular. O nome Titã, desde os tempos mais remotos, foi
profundamente associado com a divindade do Sol, e parece ter sido originalmente o título
supremo de seres que, com efeito, eram deuses celestiais, mas deuses muito antigos,
ainda selvagens e não sujeitos a lei alguma.6
Kerényi nos dá um quadro geral da psicologia dos Titãs: não existem leis, nem
ordem, nem limites. Em sua
¹Educar a alma constitui a preocupação de muitos analistas junguianos da atual
geração. O fazer a alma é um dos numerosos temas dos escritos de James Hillman. Veja-
se particularmente Revisioning Psychology, Harper Colophon Hooks, Nova Iorque, 1977.
Também o excelente escrito de Robert Sardello, Educating with Soul, publicado por The
Center for Civic Leadership, Thi’ University of Dallas, Irving, Texas.
5
Tirado de Martin Heidegger, Hölderling e a essência da poesia, trad. Juan David
García Bacca, Universidade dos Andes, Merida, 1968, p. 15.
6
Carl Kerényi, The Gods of the Greeks, trad. Norman Cameron, Thames mui and
Hudson, Londres, 1976, p. 20.

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extraordinária obra sobre Prometeu, um Titã, Kerényi o definiu como ”o arquétipo


da existência humana”.7 Ainda que Kerényi tivesse a precaução de dizer que desejava
evitar a conotação filosófica de existencialismo em sua
ultilização da palvra “existência”, foi sua concepção de Prometeu como arquiteto
da existência humana, assim como nossas reflexões sobre o titanismo tal como aparece
em nossos tempos. Ker´rnyi, como o grande pioneiro que foi em estabelecer a conezão
entre o excesso dos Titãs e a existência humana, estava indubitavelment sob a dupla
influência das investigações de Jung sobre os arquétipos e das idéias e literatura
inspiradas pelo existencialismo. Essas idéias, num homem que foi um exilado de guerra,
niníl.o contribuíram para tornar possível seu Prometeu, um odtudo de textos que
apresenta a difícil psicologia dos Titãs e que proporcionou um ponto de partida para
minlum próprias reflexões.8
Didaticamente podemos dizer que assim como os gregos pensavam nos tempos
titânicos como um reino de tempos antigos o deuses celestiais quase selvagens, também
mi ontogênese do homem existem tempos titânicos. Proviivelinonte nossa adolescência
contém grande quantidade de titanismo: excessos, falta de limites, de leis, caos,
barbarismos etc.; e podemos acrescentar a esse elemento Utânico a viagem celestial do
Puer, quando exibe seu próprio excesso, sua ausência de limites e sua destrutividade. 9
7
veja-se Kerényi, Prometheus: Archetypal Image of Human Existence, trad. Itnlph
Mnnnheim, Thames and Hudson, Londres, 1963.
8
para mim, os arquétipos e a existência humana representam dois campem de
ostudo por excelência. Meu interesse consiste em ampliar um pouco o horizonte que foi
aberto por pioneiros como Kerényi.
9
Marie-Louise von Franz já havia visto algo similar em sua discussão Mohro o 1’uer
em relação ao Reich Ohne Raum de Bruno Goetz; todavia, onde ela só viu o Puer, eu sugiro
também a presença de um elemento titânico.

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Minhas reflexões sobre o titanismo surgiram de recordações de minha própria vida,


do ter vivido em sociedades titânicas das quais se poderia dizer que, psicologicamente,
estão inseridas entre o homem primitivo e o civilizado. Elas também surgiram da
observação de como o excesso aparece em todos os lugares hoje em dia, mesmo nas
sociedades mais diferenciadas, cujas tradições estão fundamentadas nas chamadas
religiões superiores; um excesso que principalmente se mostra evidente no
missionarismo que predomina em todas as facetas da vida. A civilização ocidental está se
tornando cada vez mais titânica. Mas minhas reflexões surgiram, acima de tudo, de minha
prática como psicoterapeuta na experiência com pacientes cuja psicologia só tem sentido
se se consegue detectar o elemento titânico — aquilo que Jung e outros poderiam chamar
simplesmente a sombra ou o inconsciente — e por ter podido apreciar como o elemento
titânico se detecta em discursos altamente ”cultos” e articulados que, todavia, podem ser
escutados como um jargão mimético-titânico.
Para mim, ”estar inconsciente” quer dizer estar inconsciente dos arquétipos, de
suas formas e imagens, seja na história ou no decorrer de toda uma vida. Equiparar o
titanismo com o inconsciente é um assunto bem diferente. Por exemplo, com esses
pacientes, o lema que adotei para o meu trabalho: ”a imagem, o que torna possível o
impossível”,10 simplesmente não funciona. Porque ”tornar possível” significa ”tornar
consciente” uma imagem que foi ”impossível”, inconsciente; mas esses pacientes são
incapazes de produzir uma imagem. Ou melhor, justamente quando se pensa que uma
imagem está em processo, existe algo que surge do nada e destrói sua possibilidade.
Algumas vezes se pode observar que, quando se
10
José Lezama Lima, ”As imagens possíveis”, em Esferaimagen, Tusquets Editor,
Barcelona, 1970, pp. 51ss.

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Apresenta algo que poderíamos chamar de uma imagem,


Esta não é acompanhada de emoções ou sentimentos psíquico. Então, dessa
imagem não surge criatividade alguma; o que se toma por uma imagem que poderia
mover a psique, para eles não é mais do que um estereótipo, um mimetismo. Outra
maneira de detectar o titanismo se encontra no que a psicologia junguiana tem chamado
de ”o intelectual”. Existe um tratamento intelectual da imagem, um tratamento qur pede
lentes de aumento ao se intelectualizar um sonho. Aqui cabe perguntar se o método de
amplificarão só nutre esse intelectualismo.
Mas levemos um pouco mais longe o elemento titânico. A visão que tem Kerényi
dos Titãs, a de que representam uma função particular, é talvez o que estou tentando
atingir em relação a esse elemento titânico que todos temos. Todavia, enfrentamos aqui
uma dificuldade: uma função aponta para algo específico, enquanto o titanismo nos
aparece como desordenado e selvagem.
Anteriormente mencionei os deuses e deusas bem definidos com suas imagens
consistentes; em outras palavras, os arquétipos. Citemos Nilsson novamente: ”O
antropomorfismo tem, por conseguinte, uma limitação característica”. 11 Por ser assim,
resulta difícil ver os Titãs (cuja característica principal é o excesso) como arquétipos, isto
é, com uma limitação própria e inerente; e resulta mais difícil vê-los como imagens
arquetípicas. Além disso, Nilsson diz: ”Os Titãs são abstrações ou nomes vazios cujo
significado não podemos julgar”.12 Portanto, chamar os Titãs de arquétipos, ou
representantes de uma função particular, é algo arriscado. 13 Todavia, na poesia e na
iconografia, os
11
M. Nilsson, op. cit., p. 144.
12
Ibid., p. 23.
13
Se seguíssemos a Kerényi sobre este ponto e concordássemos em que os Titãs
representam uma função particular, então os Titãs, com sua excessividade, poderiam se
chamar o ”arquétipo do excesso”.

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Titãs são personificados, representados como formas, o que, talvez, nos permita
ampliar nossa visão do antropomorfismo limítrofe (borderline). Pessoalmente prefiro
visualizá-los como figuras mitológicas que representam mimetismo e excesso, já que não
estão contidos dentro das configurações arquetípicas. Para se ter uma idéia desse
mimetismo, deste jargão e deste excesso, é preciso ter um preparo no estudo dos
arquétipos o mais completo possível. Só tendo um conhecimento das formas arquetípicas
bem definidas, como pano de fundo, poderemos ter idéia da natureza daquilo que, por
definição, carece de forma na natureza humana.
Kerényi escreveu seu Prometeu em 1946, justamente após a Segunda Guerra
Mundial, quando, segundo parece, o homem começou a se dar conta de certos aspectos
de si mesmo até então desconhecidos, como se a guerra o tivesse feito refletir sobre
partes alienadas de si mesmo. A própria literatura, desde O estrangeiro de Camus,
publicado durante a guerra (1942), até A laranja mecânica de Anthony Burgess (1962), nos
confirma essa impressão.14 Relaciono o que Camus e Burgess expressa-ram em seus
romances, em termos de mitologia e psicologia, com o aspecto titânico que estamos
procurando no homem: nem leis, nem ordem, nem limites; só excesso. Uma vez mais, a
literatura nos abriu as portas para uma exploração (que nós, em psicologia, só estamos
começando) daqueles aspectos no homem em que espreita o Titã. Mas, seguindo
novamente Kerényi, devemos aceitar que na vida humana o titânico se expressa em
excessos, em desmedidas. Neste sentido, o titânico poderia ser, se não um arquétipo, pelo
menos uma função particular da natureza humana.
14
Ao discutir as manifestações modernas do titânico, desejaria manter-me dentro
dos conteúdos de O estrangeiro e A laranja mecânica.

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Retornemos à afirmação de Nilsson sobre os Titãs a quem, como já dissemos, ele
qualifica de ”abstrações ou nomes vazios cujo significado não podemos julgar”. 15 O
pensamento cuidadoso sobre essa afirmativa oferece outro ponto de reflexão que nos
ajuda a atingir uma visão mais ampla do titanismo. Todos somos habitados por essas
abstrações, esses nomes vazios; somos inundados em nossa vida cotidiana por palavras
vazias — nosso bláblá-blá cotidiano —, para não mencionar nossa psicoterapia, na qual,
se não conseguimos nos dar conta de nosso próprio titanismo, podemos cair num jargão
vazio, ainda que utilizemos as mais belas palavras. Nossa psicoterapia sempre corre o
risco de converter-se em nomes vazios, em jargão titânico. Existem áreas em nossas
psiques, ou em nossas vidas, em que não temos reflexão porque não há imagens e, por
isso, não temos sentimentos para avaliar. Tendo em mente esses dois elementos básicos
do titanismo — sua vacuidade por um lado, seu excesso por outro —, podemos começar
a avaliar o excesso através da nossa história, da nossa vida e da nossa prática. Nosso
desafio consiste em levar a reflexão para o que não tem limites, o que não é arquetípico;
para o que, paradoxalmente, não pode ser refletido porque não há imagem, mas que pode
ser detectado através de sua própria retórica titânica.16
Bem, a afirmação de Nilsson de que os Titãs são ”abstrações” ou ”nomes vazios”
nos permite orientar nossa investigação para outra direção, a de nossas chamadas
lacunae: aquilo que não podemos conhecer ou apreender em nós mesmos, essas
abstrações vazias, esse nada, os buracos — esses buracos negros que nos fascinam hoje
15
Veja nota 12.
16
Devemos nos dar conta de que existem dois tipos de retórica: a arquetípica e a
titânica. A retórica titânica pode deter-se em referências tais como ”isso é mera retórica”.

19

em dia. Esses não são arquétipos, mas buracos. Se conseguimos conceber ambos,
a vacuidade e o excesso, nos encontraremos em melhor posição para perceber o titânico.
De fato, o excesso poderia surgir da vacuidade, das lacunae.
Esta discussão sobre os Titãs deveria, assim espero, ajudar-nos na psicologia
arquetípica a adquirir uma idéia básica do campo que eles oferecem ao estudo. Depois de
tudo, seria uma lástima que nossos estudos dos arquétipos se contentassem com a mera
descrição dos perfis característicos de Ártemis, Afrodite, Ares etc. O elemento mais
importante dos Titãs — o excesso, que, até onde vejo, surge da vacuidade — conduz, entre
outras coisas, à patologia ou a ”comportamento estranho”: excesso do qual a história e
todos nós estamos repletos.
Tenho me apoiado com bastante insistência em Kerényi e Nilsson. Pelo que sei,
Kerényi foi o primeiro a tratar do titanismo com profundidade, ainda que a contribuição de
Nilsson acrescente muito em nossas percepções. Na psicologia junguiana, na qual me
baseio, assim como no estudo dos arquétipos, existe muito poucas referências aos Titãs.
O pouco que existe vem de conexões órfico-platônicas entre os Titãs e o mal na natureza
humana. Como assinala Dodds, ”em suas Leis Platão menciona pessoas ’que ostentam a
antiga natureza titânica’ e os impulsos que não são ’nem de homem nem de Deus’ ”: 17 vale
dizer, em termos junguianos, é o mal em nossa sombra que não logramos integrar e então
precisamos rejeitar. Por certo a psicologia junguiana não tem na literatura moderna e na
imagética de nosso tempo um meio de reflexão dessa parte da natureza comumente
chamada ”existência”, que igualo ao titanismo.
17
E. R. Dodds, The Greeks and the Irrational, University of California Press,
Berkeley, 1968, p. 156.
20

Voltando a Camus e Burgess: desde as primeiras linhas de O estrangeiro


encontramos um quadro extraordinário de vacuidade (lacunae, ou vazio, se se prefere). O
estrangeiro recebe um telegrama anunciando a morte de sua mãe, mas ele não demonstra
nenhuma reação arquetípica — não existe aflição nem sentimento de perda, por exemplo
— diante de tal acontecimento. Então o excesso aparece neste personagem quando dá
cinco tiros em um árabe. A primeira bala o matou, as outras quatro foram excessivas.
Arquetipicamente falando, pode-se ficar dominado pelo pânico e disparar uma bala a partir
de uma reação instintiva primitiva, como defesa pessoal, mas quando são cinco, existe
excesso. O homicídio do árabe nos ajuda a distinguir entre uma situação arquetipicamente
demarcada e uma situação que não tem nada de arquetípico. A causa do infortúnio do
estrangeiro é atribuída por ele mesmo ao Sol — um dos deuses celestiais dos Titãs. Este
tipo de projeção de culpa do estrangeiro para algo tão absurdo como o Sol pertence
amplamente ao titanismo. De alguns de meus pacientes tive de escutar as mais estranhas
e muitas vezes ridículas projeções de culpa para tudo, exceto para eles mesmos, o que,
para mim, surge da natureza titânica.18 No final do livro, durante uma conversa entre o
estrangeiro e um sacerdote, Camus mostra com grande maestria a incapacidade para
imaginar do estrangeiro a impossibilidade de que surja uma imagem nele. O sacerdote diz
que os presos antes de morrer usualmente vêem a imagem divina na parede de
18
Quisera chamar a atenção sobre essa conexão entre a culpa e o titanismo,
considerando-a a partir da perspectiva da psicologia arquetípica. Poderia ser útil. Tanto a
projeção da culpa quanto o carregar toda a culpa são assuntos titânicos. É preciso notar
que, geralmente, a psicoterapia trata de curar a projeção levando o paciente a admitir a
culpa que este projeta táo solta o titanicamente, ou, em outro caso, incitando o paciente a
culpar seu» PIIÍH, a sociedade ou o que seja. Ambas são ”soluções” titânicas que não tem
nada a ver com uma psicoterapia que mova a alma através das imagens.

21

pedra de suas celas; mas o estrangeiro respondeu que tentou ver o rosto de sua
noiva, Maria, sem conseguir, e isso nos dá uma base para dizer que Maria, sua noiva, não
existe nele como imagem interior.
A laranja mecânica, ampliando o tema do titânico implícito no romance de Camus,
expressa o total excesso em todas as áreas da existência: golpes, assassínios, violações
etc. Burgess nos dá um quadro de uma sociedade que vive em excessos titânicos:
”selvagem e não submetida a leis”, como disse Kerényi dos Titãs. A religião se converteu
em simples mimese que o jovem Titã utiliza para o seu próprio interesse. 19 Na visão que
nos dá Burgess, todas as instituições da sociedade estão baseadas no mesmo excesso
titânico. E a psiquiatria, como redentora, com sua tecnologia prometéica, seu zelo
missionário, trata de resolver o enigma titânico em benefício do pobre Titã, da sociedade
e da humanidade como um todo: Prometeu, um Titã mais sofisticado, aparece de muitas
formas, porém a mais próxima de nosso tema é sua aparição como redentor na figura de
um psiquiatra tecnocrata tratando de salvar o Titã.20
A psique não aprende do excesso titânico. Nesse sentido, devemos estabelecer
uma clara distinção entre o sofrimento, a humilhação, a dor, as feridas da psique — a partir
do que se dá a aprendizagem psíquica, o conhecimento e a formação da alma ou a
iniciação da alma — e o sofrimento repetitivo dos Titãs: esse tédio cotidiano nauseante
do nível existencial de vida; mas ainda que a psique não aprenda nada com isso, deve tê-
lo em conta, deve ser o mais possível consciente de sua existência.
19
Basta pensar nos cultos religiosos, como aquele liderado por Jim Jones, ou
pensar no Titã Menécio, cujo nome significa ”aquele que espera sua pena”, para visualizar
o tipo de zelo religioso que habita o titânico.
20
Talvez devesse mencionar aqui que este excesso titânico não constitui o
interesse exclusivo da psicopatologia. O excesso titânico também tem a ver com o termo
médico stress, mas o interesse médico pelo titânico nos leva muito mais além de nossos
propósitos.

22

Certamente, a personalidade titânica é o maior desafio para a alma. Muitas das


modernas psicoterapias tratam de resolver os conflitos da alma em termos de adaptação
da vida e de ”fazê-la” — uma psicoterapia titânica. Se bem que para o paciente cujo
elemento titânico seja mais que mero ingrediente, cuja personalidade dominante titánica,
a única psicoterapia possível talvez seja ao êxito, forçá-lo a ”fazê-lo”. 21 Mas vai grande
diferença entre uma consciência que enfraqueceria a alma e fazê-la. Além dos aspectos
exteriores do (tido chamado de ”existência humana” externa, o titânismo também pode
manifestar-se internamente, quando o excesso é interior, e assim vai dar na patologia.
Encontramos essa forma de titanismo operando na história de Endímion e sua amante
lunar, a deusa lua Selene. Segundo a teoria de Hesíodo (na tradução de Kerényi):
A titânia Téia pariu, de seu marido Hipérion, a Hélio, o Sol, a Selena, a Lua, e a Eos,
a Aurora. 22
Não ficam, pois, muitas dúvidas de que a Lua, como foi uma titânida. É então, dentro
desses difíceis Ipon mitológicos e psicológicos que viemos discutindo, que chegamos
agora, à história de Selene e seu amor pelo pastor Endímion.
Dizia-se que quando Selene desaparecia por detrás das munl.nnhas de Latmos, na
Ásia Menor, ela estava visitando Endímion, seu amante, que dormia em uma caverna
região. Endímion (que em todos os seus retratos cc como jovem formoso, um pastor ou
um caçador) recebeu o dom do sono eterno (sem dúvida, na história
21
Recentemente ouvi falar de uma concepção estremamente titânica que trata de
“curar” a psicose (um arquético roto), impulsionando o paciente para a psicopatia, para o
mimetismo do mundo titânico.
22
Kerényi, The Gods the Greeks, p. 22.

23

original, da mesma deusa, a Lua) de modo que ela pudesse sempre encontrá-lo e
beijá-lo em sua caverna.23
Quero que mantenhamos esse quadro de Selene descendo na caverna para fazer
amor com Endímion cada vez que ela deseja, mas mantendo essa imagem tal como é. O
que me interessa é ler a imagem, não sintetizar ou ampliar os seus componentes — como
seria ver a Lua como mãe, a caverna como útero etc. 24
Então, segundo o que nos diz Kerényi, ”Endímion significa ’alguém que se encontra
no interior’, envolvido por sua amada como num traje comum”. 25 Podemos agora começar
a imaginar o que o nome Endímion, ”o que se encontra no interior”, pode significar. No
nível mais óbvio, é bastante comum que se diga de alguém: ”Ah, sim! Fulano é muito boa
pessoa, mas toda sua energia está em seu interior”; ou: ”Parece que fulano tem muito por
dentro, mas não consegue pôr para fora”. Todos temos ouvido esse tipo de comentário
sobre algum amigo ou sobre algum estudante, por exemplo. E estou certo de que todos
podemos recordar algum momento em nossa vida em que fosse o que fosse que
tivéssemos, era só por dentro. E como tivemos de esperar para que se convertesse em
algo mais, à medida que nossa vida ia se desenvolvendo!
Além do significado do nome que nos traduz Kerényi, existe outro nível a partir do
qual podemos refletir sobre Endímion e sua imagem vivendo na caverna com a Lua,
Selene, como amante. Por isso, o amor de Endímion pela Lua — que, apesar de ser uma
titânida, é uma virgem —
23
Ibid., p. 198.
24
Aparece claramente no relato de Kerényi que Selene se reserva o direito d* dar o
primeiro passo em direção a Endímion; o pastor é descrito como recostado passivamente
esperando seus avanços amorosos. Walter Otto acrescenta que é uma característica das
titânidas dar o primeiro passo num encontro erótico,
25
Kerónyi, The Gods of the Greeks, p. 198.

24

O mantém intocável para qualquer outro deus ou deusa, isto é, para outras
possibilidades de vida; ele permanece leal a seu amor pela Lua como Selene. Poderíamos
dizer que Endímion é um precursor de Hipólito, outra figura mitodológica que amou
somente Ártemis: Ártemis se assemelha simbológicamente à Lua, mas já como uma
imagem consiste e bem definida. Endímion está envolvido por sua amada como num traje
comum, o que equivaleria a dizer que ele se mantém virgem. De mais a mais, acredito
podermos ligar excesso interior, tal como aparece na história de Endímion e da titâbida
Selene, como aparece na história de Endímion e da titânida Selene, com um tipo peculiar
de virgindade e com uma patologia, contratando com os Titãs, cujo excesso é externo.
A imaginação do poeta Licofron foi estimulada a criar uma variante da história de
amor de Endímion. No relato deLícofron, ”o deus Hipnos, o deus alado do sono, se
enamorou de Endímion. Deu ao jovem a capacidade de dormir com os olhos abertos”.26
Esse relato enriquece enormemente as complexidades de Endímion. Todos nós, creio, em
determinados momentos e muito mais freqüentemente do que pensamos, dormimos na
vida com olhou abertos; trata-se de um estado lunar particular de excesso interior. E todos
podemos recordar aquele longo período de nossa juventude, quando dormíamos com os
olhos abertos, esse estar ”na lua” que desespera a nós mesmos tanto quanto a quem nos
rodeia. Ainda hoje em dia, quando queremos ouvir com atenção uma conferência
interessante, por exemplo, o deus do sono aparece e nos faz dormir um pouco. Eu mesmo
chego a dar uns cochilos de olhos abertos, às vezes, durante os momentos mais
interessantes de minha atividade! Às vezes sucede que a realidade que temos na nossa
frente é tão abrumadora e nos golpeia de tal maneira que, diante de tal acontecimen-

25

to, ficamos dormindo com os olhos abertos. Há uma retirada para nosso interior
que parece nos proteger da demasiada realidade que existe diante de nós: ”O ser humano
não suporta demasiada realidade”, disse Eliot.
Apolônio, outro poeta alexandrino, relata segundo Kerényi que o sono eterno de
Endímion foi ”um presente de Zeus, que lhe permitiu escolher a sua própria maneira de
morrer: assim Endímion escolheu o sono eterno em lugar da morte”. 27 Neste ponto,
podemos começar a apreciar como esses três relatos da história de Endímion citados por
Kerényi podem nos proporcionar uma percepção da natureza interior dos níveis
psicológicos aos quais estamos aludindo. Nas complexidades que rodeiam Endímion
encontramos, além da Lua, as figuras de Hipnos, Zeus e da Morte. Dos três relatos, talvez
o de Apolônio seja o mais rico e o que propicie uma visão psicológica mais profunda,
posto que Apolônio descreve em Endímion uma condição patológica grave. Na versão de
Apolônio temos um elemento muito profundo: Zeus, o pai eterno, intervém e, com a
presença da Morte, converte a história de Endímion em ”assunto sério”. É como se a
imaginação de Apolônio nos mostrasse Zeus jogando fatalmente com um mortal, como
gostam de fazer os deuses. Zeus dá a Endímion o privilégio de escolher o modo de sua
morte. Este tema da escolha da própria morte obcecou alguns poetas — em particular
alguns românticos, poetas feridos pelos excessos. Pensar em escolher a própria maneira
de morrer pode-se entender como uma inflação titânico-romântica, unida à fuga da
constante reflexão que a morte leva ao longo da vida: o valor da vida que provém da
reflexão sobre a morte. Aqui confrontamos diretamente a patologia de Endímion, posto
que podemos começar a imaginar o mitologema de Endímion
27
Ibid.

26

em termos de uma enfermidade grave. Ao fazer Endímion escolher o sono perpétuo


em ligar da morte, Apolônio está diagnosticado, por assim dizer, a condição de alguém
que transformou “a reflexão de morte” numa loucura particular, condição semelhante
àquela que observou e diagnosticou o psquiatra alemão Karl Kahlbaum no século XIX.
Em 1874 Kahlbaum cunhou a palavra catatonia para decrever
um estado no qual o paciente se senta, silencioso ou mudo por completo, imóvel,
sem que nada o faça mudar sua posição, com um aspecto de estar absorto na
comtemplação de um objeto, com os olhos fixos em um ponto distante e sem volição
aparente, sem reação aparente diante da impressões sensoriais, e algumas vezes com
uma flexibilidade cérea completa, como na catalepsia. 28
Esse estado que Kahlbaum descreveu mediante o -inpírico (por mérito) já havia sido
descrito por pni’tas clássicos, os mitógrafos da antigüidade, com a nifuma precisão
requerida pelo diagnóstico psiquiátrico, imundo a beleza da poesia compilada em
imagens, isto é, nu’diunte a educação da alma. Não consigo imaginar que pootas como
Licofron ou Apolônio não tenham experimentado em seus próprios corpos algo deste
estado lunático, concebendo-o como o amor do jovem pastor Endímion com n Lua, a
titânida Selene. Claro está que todo esse dormir na caverna com Selene, esse ”estar na
lua”, provavelmente In z parte da atividade poética. Sobre esses poetas da an-
28
Lawrence C. Kolb, Modern Clinical Psychiatry, 8a ed., W. B. Saunders Co.,
Londres, 1973, p. 309.

27

tiguidade poderíamos dizer que tiveram uma inspiração corporal lunática. Foram
capazes de encontrar a si mesmos desde dentro. E é justamente o resgate desse aspecto
corporal, o aspecto psicofísico, que constitui o objetivo deste ensaio.
Na Bibliografia dos mitos gregos na poesia inglesa, de Helen Law, aparece a
recriação poética do mito de Endímion na obra de quarenta e dois poetas, até 1955; é que
para o homem ocidental a poesia é seu corpo psíquico, equivalente ao inconsciente, um
corpo psíquico que foi rechaçado e reprimido por dois milênios de ascese espiritual cristã.
Na poesia do século XX — sem me referir a re-criações poéticas de Endímion —, Endímion
tem aparecido nas formas mais variadas: nas atitudes, nas explorações e nas visões
poéticas de alguns poetas contemporâneos. André Breton, o grande pontífice do
surrealismo, escreveu em 1928:
Agora evoco Robert Desnos na época que aqueles de nós que a conheceram
chamam de a época dos sonhos. Ele ”dorme”, mas escreve e fala. É noite, no estúdio de
minha casa em cima do cabaré do Céu. Fora, alguém grita: ”Entremos, entremos no Gato
Preto!” E Desnos segue vendo o que eu não vejo, o que só vejo à medida que ele me
mostra.29
Como se sabe, os surrealistas, que floresceram durante o período Ventre deux
guerres, estavam vivamente interessados sobre magia, e sua literatura foi impregnada
dessas noções. Mas, acima de tudo, sentiam-se atraídos pelo ”automatismo psíquico” de
Janet. No primeiro dos vários manifestos surrealistas, Breton equiparou o surrealismo
com o automatismo psíquico, e o definiu como ”puro automatismo psíquico mediante o
qual se propõe a expressão, seja verbal ou de outra maneira, do real fun-
29
André Breton, Nadja, Joaquín Mortiz Editor, México, 1963, p. 22.

28

cionamenlo do pensamento”, ou como ”o ditado do pensamento ausente de


qualquer controle exercido, acima de qualquer controle exercido, acima de toda
preocupação estética ou moral”.30 Alguns deles desenvolveram uma tecnica de ecrita
automática a partir das descobertas de Janet, pensavam que estavam escrevendo poesia
muito profunda ao captar mensagens profundas provenientes do subconsiente. Eu me
pergunto, no entanto, se esses surrealistas sabiam que, nesses momentos, não muito
longe de Paris, havia outras figuras relevantes de nosso século que trabalhavam na teoria
dos complexos, a teoria mais profunda e de maior alcance da psicologia moderna: os
complexos, esses pedaços de histórias, que funcionam dentro de nós e às vezes
“automaticamente”. Podemos dizer, no mínimo, que a descoberta de Janet foi precursora
da mais séria teoria dos complexos.
Além se seu tratamento da poesia através da escrita automática, os surrealistas
escreveram muito sobre os “encontors fortuitos”. A frase de Lautréamont, ”tão bonito
quanto o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecação entre uma maquina de costura
e um guarda-chuva”,31 converteu-se num dos pilares do movimento surrealista. Mas, no
mesmo tempo em que se fascinavam com o ”encontro fortuito”, havia outros homens do
século, também não muito longe de Paris, que se aprofundaram nas noções sobre a teoria
da sincronicidade que Richard Wilhelm trouxe da China e que passou a ser uma das
maiores contribuições ao pensamento do Ocidente.
Voltemos agora à recordação de Breton de um encontro noturno com Desnos.
Acena está registrada numa
30
André Breton, ”Primer manifiesto”, emManifiestos del surrealismo, Editorial
(Juadarrama, Madri, 1974, p. 44.
31
J.H. Matthews, An Introduction to Surrealism, The Pennsylvania State I Inivoreity
Press, Pennsylvania, 1965, p. 105.

29

fotografia de Desnos deitado em um sofá num quarto de Montparnasse, dizendo a


Breton o que está vendo e criando poeticamente. Não posso resistir à tentação de vincular
Desnos com a imagem de Endímion, deitado comodamente sob os raios da Lua. Quase
podemos ver Desnos deslizar-se psicofisicamente no mitologema de Endímion
enamorado da Lua — e obviamente enamorado da poesia. Desnos, a quem Breton
considerou ”aquele entre nós que está mais perto da verdade surrealista”,32 faz poesia
mediante a livre associação a partir das porções mais autônomas de seus complexos,
mantendo-se virgem — encerrado com sua amada como se em um traje comum — e
intocado por quaisquer outros complexos que não o virginal. Nesse preciso momento,
alguém lá embaixo na rua gritava: ”Entremos no Gato Preto!”, e Breton integra esse grito
à sua reunião com Desnos como ”um encontro fortuito” ou, se se preferir, como um
encontro que aponta para a sincronicidade no tempo.
Antônio Machado, grande poeta espanhol, morreu na França apenas um mês e meio
depois de terminar a Guerra Civil Espanhola, e apenas dois dias depois da morte de sua
mãe. Uma das últimas imagens que temos dele em vida mostra-o sentado em um carro
levando sua mãe apoiada sobre seus joelhos, enquanto cruzam a fronteira da França.
Segundo um amigo meu que foi um de seus discípulos, Machado costumava caminhar de
maneira peculiar que chamava a atenção. Dava a impressão de que tinha algum problema
com os movimentos de seu corpo, já que caminhava de maneira que se poderia descrever
(seguindo a Kahlbaum) como catatônica. Sua experiência vivida da catatonia era evidente
em seus passos arrastados.
32
André Breton, Manifiestos..., p. 48.

30

Em seu livro Juan de Mairena, introduziu ”elpaletó perfecto”: um desses


camponeses de Castela, com a face enrugada e marcada pelo tempo, que vestem uma
boina negra simples camisa, colete, calça de veludo e alpargats, e que até agora se pode
ver nas antigas aldeia passando horas inteiras sentados em um banco, com os olhos fixou
o m nada. com extraordinária graça e humor, Machado nos dá sua imagem deles:
El paleto perfecto es el que nunca se asombra: ni aun de su propia estupidez. [O
rústico perfeito é o que nunca se assombra: nem da sua própria estupidez.]33

Com a justaposição das palavras perfecto e paletó,podemos ouvir, como um leve


eco de ascese místicacastelhança, a via da perfeição. Estará Machado insinuan-do o
caminho desta ascese, o caminho da perfeição,dá-se através do corpo, que a meta é o
nosso religare comas partes de nós mesmos que têm a ver com o corpo iner-te? Por
acaso, estará Machado apontando para outra sorte de via regia? Sendo assim, Machado
se encontra na trilha de Jung quando este nos diz, em sua interpretação da Kundalini
Yoga, que a ascese como movimento psicológico no homem ocidental ”não é ascendente,
como mostra as noções da Kundalini Yoga e a tradição cristã mas que é para baixo,
através do corpo”.34
33 Antonio Machado, ”Juan de Mairena”, em Obras completas, Editorial planeta,
madri, p. 153.

34 Jung em seu seminário sobre a interpretação da Kundalini Yoga, disse


claramente que a Kundalini Yoga pode ser útil para os ocidentais se o movimento se faz
para baixo, ao contrário do movimento para cima concebido para as mentes orientais. O
homem ocidental começa em cima, em Vishuda — a região da garganta, o logos — , e por
conseguinte necessita descer para aquelas regiões do corpo que lhe são alheias. A
percepção de Jung tem a ver com a repressão do corpo na cultura cristã ocidental. Minha
concepção psicoterapêutica leva muito em consideração
a visão de Jung desse movimento para baixo, para dentrodo corpo, a importância
de ativar o corpo historicamente reprimido, assim como ativar seus arquétipos e tratar de
ver como se imagina o próprio corpo. A interpretação para o ocidental efetuada por Jung
proporciona uma base útil para diagnosticar a abordagem superficial, mimética, literal do
homem ocidental em relação à Kundalini Yoga. Machado, com sua imagem poética, chama
nossa atenção para o corpo, que para o homem ocidental é tão difícil animar. Veja Spring,
1975, ”Psychological Commentary on Kundalini You»”, Lectures One and Two, 1932, p. 1;
e em Spring, Lectures Three and Four, 19.T2, p. 1, Spring Publications, Zurique.
35
Ésquilo, Prometeu acorrentado.
36
A. Machado, ”En el entierro de un amigo”, Obras completas, p. 862.

31

Se uma das tarefas da poesia é a de refletir a partir da morte (reflexão e morte se


assimilam arquetipicamente), podemos então imaginar que para Machado era importante
explorar imagens que, como pudemos ver com Endímion, têm uma conexão particular
com a morte. A imagem de Machado sobre ei paletó perfecto, nunca assombrado,
simplesmente sentado ali, contemplando algo com o olhar fixo, e sem sequer se dar conta
de que é um paletó, é uma espécie de garantia de que se pode conseguir poeticamente
uma percepção interior daquela parte de nós que nega a reflexão da morte; a parte titânica
que prefere escolher o sono perpétuo com os olhos abertos.
Temos de recordar que o Titã Prometeu não quis refletir a partir da morte; quis
liberar os homens do pensar sobre a morte: ”Eu fiz com que os homens já não previssem
sua morte”, proclama na tragédia de Esquilo. ”Eu plantei firmemente em seus corações
uma cega esperança.”35 Se juntamos ao paletó perfecto de Machado a figura mitológica
de Endímion é porque estamos em terra firme, já que Machado foi o poeta em cuja poesia
a morte sempre esteve presente. Pertenceu à tradição de poetas que ensinaram esse tema
tão difícil que é a morte. E escreve ele sobre o tema da morte enquanto ”assunto sério”:
Um golpe de ataúde em terra é algo perfeitamente sério.36

32

Por último, uma linha de outro poeta. Escutemos como o complexo de Endímion se
torna presente em um momento fortuito na caverna de uma cidade moderna, no homem
de hoje em dia:
Ou como, quando um trem subterrâneo, no túnel, se detém demasiado entre duas
estações. E a conversa se anima e cai lentamente no silêncio E por detrás de cada rosto
vês que o vazio mental se aprofunda Deixando só o crescente terror de não ter nada em
que pensar.37
37
T. S. Eliot, ”East Coker”, in, Four Quartets, em The Complete Poems and Plays,
Faber and Faber, Londres, 1969, p. 180.

33

ANSIEDADE CULTURAL

Durante uma discussão sobre os problemas do homem ocidental, Borges observou


que o chamado homem ocidental não é simplesmente um ocidental, já que, em sua cultura,
devemos levar em conta um livro — a Bíblia — que provém do Oriente. A Bíblia é um
produto oriental, mas na cultura ocidental nada pode evitar a influência deste livro e as
conseqüências que ele forjou.
A Bíblia começa com um mito de criação.1 Os mitos de criação se encontram na
literatura da maioria das culturas, mas devemos aceitar que esse mito de criação bíblico,
que em outras culturas não ocuparia lugar tão predominante, dá um toque especial à
nossa cultura, porque está na base do que chamamos nossa crença religiosa.
Religiosamente falando, o homem ocidental é um crente: a sua é uma religião de fé. Deus
criou o homem ”à sua própria imagem”. Essa crença foi central na vida religiosa do
homem ocidental e, portanto, central também para conter sua psique e sua loucura.
Como homem ocidental, que vive nas tradições históricas de sua geografia e de sua
raça, eu sinto esse produto oriental dentro de mim e aceito o fato de ele cobrir
1
Para a psicologia dos mitos de criação ver: Marie-Louise von Franz, Modelos de
criatividade tal e qual se refletem nos mitos de criação, Spring Publications, Zurique, 1972.

34
uma fraude parte de minha vida. A essência da Bíblia é o monoteismo: o culto a um
só Deus e o ciúmes e a ira desse Deus perante outro deus ou outro culto. Esta crença
impregnou extensamente o mundo em que vivemos: nossas crenças religiosas, nosso
modo de vida, as idéias de nossa cultura, nossa política, as ciências e, por último, algo
igualmente importante, os estudos de psicologia. O monoteísmo está profundamente
arraigado na psicologia de todo ocidental seja qual for sua geografia, sua condição social
ou sua educação.
Assim, a Bíblia, o livro do monoteísmo, ainda que geograficamente alheia ao homem
ocidental, ocupa lugar tão predominante em sua psicologia, que aqueles que poderiam
HIT considerados como os livros mais genuinamente ocidentais se retiraram para dentro
do que chamamos o incociente, ou são importantes para minorias dispersas. De fato, a
Bíblia está em oposição aos livros ocidentais, oposição que se torna evidente nos livros
de mitologia: os livros do politeísmo pagão, os livros de tantos deuses e suas imagens, a
riqueza de tantas formas de vida. A mitologia grega nos oferece a mais completa lista de
imagens jamais se produziu; e ela tem formado o material do tragédia, as fontes da poesia
e da literatura, tem nutrido a vida poeticamente, povoando a terra com imagens, e tem
dado fundamento à filosofia. Dentro disso devemos incluir também as outras numerosas
mitologias do mundo ocidental: as mitologias nórdicas, as tradições e lendas ocultas dos
celtas, as mitologias, lendas e concepções poéticas dos povos americanos autóctones
etc. Estes são os livros que têm a ver com o que, em psicologia junguiana, chamamos o
inconsciente coletivo. Depois os livros que nos falam das origens da vida do homem sobre
a terra e da evolução do homem; esses livros, com suas estimulantes discussões sobre
as raças humanas e o comportamento do homem, são os que tra-

35

tam da história mais antiga e primitiva do homem e os que, com mais humildade,
não dizem que a humanidade é a obra culminante da criação de Deus, mas simplesmente
outra espécie animal em outro nível de evolução; aqui vemos a grande contradição com
relação à criação da Bíblia.
O homem ocidental escreveu muitos livros ao longo de sua história e todos fazem
parte dos atuais estudos da psicologia: livros que atualizam os velhos mitos, que narram
a trama de sua história vivida, em que está também o grande ganho de sua literatura, em
que se revelam aspectos essenciais de sua psique. Todavia, essa riqueza que está no nível
do inconsciente coletivo não se iguala à Bíblia — o livro que nos chegou do Oriente —
porque esta produz um efeito especial: provoca uma identificação com o texto, uma
identificação coletiva; algo que os outros livros não suscitam, e, se alguma identificação
aparece, permanece, em geral, em níveis individuais ou de pequenos grupos.
Na tradição espanhola medieval parece ter existido certa consciência da
identificação provocada pela Bíblia. A Bíblia foi o livro das massas. Na igreja foi mais um
livro de consulta para os eruditos e uma fonte de amplificação para santos e místicos.
Cervantes, no mais importante livro da literatura espanhola, alerta sobre a loucura em que
a leitura demasiado intensa dos livros de cavalaria precipitou Dom Quixote. Eu intuo nessa
consciência uma antiga e complexa tradição que trata de impedir qualquer literalização da
palavra escrita.
Os ocidentais, sobretudo a partir da Reforma, têm feito uma leitura destes contos
bíblicos orientais e reagido de diferentes formas, que vai desde uma tola identificação até
um rechaço hábil ou brusco que provoca um distanciamento do livro. O fato é que a Bíblia,
com seu ingrediente oriental, desconcerta a psicologia ocidental

36

justamente porque desencadeia uma resposta coletiva. Parece que a concepção de


um Deus todo-poderoso, carente de imagens, na qual o crente tem fé, provoca esse tipo
de identificação psicológica.2 E, pelo fato de a Bíblia mover para a identificação, torna-se
difícil falar ou escrever sobre ela psicologicamente. É um livro religioso movido pela fé e
milhões de pessoas hoje em dia se identificam com ele. Mas é também o livro religioso
dos judeus, o centro de suas vidas e de sua tradição, e, por causa de sua religiosidade, é
pouco ou nada o que se pode tirar dele como psicologia. Eu me pergunto se a psicologia,
e por isso o estudo de uma psique individual, pode ter algo a ver com esse livro. Sempre
me assombrou o fato de que, apesar da grande quantidade de judeus estudantes de
psicologia, estes não tenham realizado estudos maiores sobre a psicologia do judaísmo.
Se existiu alguma contribuição,3 esta foi muito pequena, levando-se em conta a imensa
importância desse livro para nossa cultura. Mas talvez um estudo psicológico do judaísmo
seja possível; até agora o que foi feito não é mais do que uma espécie de exegese
psicológica da Bíblia, ou sua inclusão de maneira bastante indiscriminada nos estudos de
religiões comparadas, até chegar ao método de amplificação da psicologia junguiana.
Durante os últimos quinze anos, os estudos junguianos prestaram maior atenção aos
temas do mono-
2
Sempre pensei que a concepção freudiana de transferência possuísse os mesmos
componentes da antiga dependência hebraica em um só Deus carente de imagens.
3
Importante contribuição para a matéria deste trabalho nos é oferecida por Rivkah
Schárf Kluger em Psique and Bible, Spring Publications, Zurique,
1974, que afirma (parte I, p. 3): ”... devemos também considerar seriamente a idéia
de povo escolhido, pois pertence ao atributo principal das experiências religiosas
fundamentais do Antigo Testamento. O perigo desta idéia, sua ’sombra’ por assim dizer,
é a hybris, o perigo de que o ego coletivo seja conduzido por indivíduos que se identificam
com ele, pode ficar possuído de um modo inflacionário desse conteúdo que se origina no
Si-mesmo e a personalidade seja oprimida”.

37

teísmo e do politeísmo, considerados em termos de polaridades extremamente


pertinentes para a psique do homem ocidental e para o dinamismo da psicoterapia. Trata-
se de uma abordagem que difere muito do método de amplificação junguiana, o qual nos
dispensa do enfoque que deveria ser nossa preocupação mais urgente como ocidentais:
diferenciar o monoteísmo do politeísmo em nossa psique ocidental. E mais, trata-se de
uma diferenciação que tem de ser empreendida com uma aguda consciência do conflito
histórico-cultural existente entre essas duas influências dentro da psique ocidental.
O que se fez não passa de uma tímida tentativa de diferenciar o monoteísmo e o
politeísmo. Mas minha intenção neste artigo é discutir este ponto nos termos de um
conflito, e de um conflito psicológico fundamental. Além disso, considero que aceitar a
discussão desse conflito é algo essencial, porque localiza os estudos de psicologia no
lugar que lhes corresponde (estejamos ou não conscientes disso), que é onde a nossa
psique está mais aflita; uma aflição que disfarçamos na forma de história, de religião ou
de política. E como se um tabu estivesse operando dentro dos estudos de psicologia. E
como as tentativas para chegar a esse ponto fundamental começaram só recentemente, a
repercussão de suas implicações foi escassa.
Sabemos que durante o século XVII, no começo dos estudos de ciências naturais,
estas estavam baseadas psicologicamente na premissa de que a ciência não tinha nada a
ver com a religião. De fato, o que movia os homens daqueles tempos a se reunirem para
falar sobre ciência era justamente que, historicamente, se tornara impossível expressar
diferenças religiosas. A ciência moderna é filha das guerras de religiões cheias de
ansiedade, sangue e crueldade. O diálogo científico permitia uma maneira possível de se
relacionar que estava fora da loucura das principais

38

religiões.Também sabemos que o berço da psicologia moderna foram as ciências


naturais. E ainda, se presumimos que a pscologia se distanciou de seu berço, parece que
a distancia, porém, não é muito grande.4 De modo que é compreensível que, como antes,
seja praticamente um tabu falar em psicologia de religiões vivas.
Estou seguro de que não é necessário recordar que foi Jung quem deu impulso aos
estudos de psicologia pelo caminho do religioso. Afastando esses complexos históricom,
sente-se que provavelmente existem em nós resistênrias mais profundas diante da
consideração de nossa psique em termos das polaridades monoteísmo e politeísmo. É
como se, mais do que os complexos históricos quo herdamos, existisse um íntimo tabu
interior, como se o conflito afligisse nossa natureza básica.
O monoteísmo e o politeísmo constituem os campos fundamentais da psique
ocidental e é indispensável que estejamos profundamente conscientes de ambos. É
preciso que sejamos mais astutos ao reconhecer o que surge do lado monoteíta da vida
— consciência coletiva, crenças, fé (a influência do livro oriental) — e do que surge do
lado mais reprimido, pagão, politeísta: as imagens arquetípicas. Porém, ainda mais
importante: devemos nos dar conta do conflito, com a resultante ansiedade que estes dois
pilares da alma ocidental provocam desde o princípio.
E. R. Dodds, em seu livro Pagãos e cristãos em uma era de ansiedade,5 examina as
experiências e conflitos
4
Insistimos no inconveniente de falar e discutir sobre psicologia adotando a atitude
das ciências naturais, usando sua mesma retórica, uma retórica que não se adapta às
complexidades da psique. Vimos essa mesma maneira de pensar aplicada às
humanidades: ensaios sobre poesia, por exemplo, que tratam da poesia como se esta
também fizesse parte dos estudos de ciências naturais. Isso produz uma tremenda
confusão, e a maioria das vezes o que resulta dessa confusão, pelo menos nos estudos
de psicologia, é um fastidioso jargão que invade grande parte das discussões
psicológicas.
5
E. R. Dodds, Pagan and Christian in an age of anxiety, Cambridge Press,
Cambridge, 1965.

39
religiosos durante os primeiros séculos do cristianismo, chamando àqueles tempos
de ”era de ansiedade”, inspirado em uma frase poética cunhada por W. H. Auden. Era uma
época em que o conflito entre o paganismo tradicional e o novo monoteísmo cristão
irrompeu abertamente; uma época que, de certo modo, pode ser comparada à nossa, que
é também uma ”época de ansiedade”. Os ensaios de Dodds sobre o que para ele foi
historicamente uma época de ansiedade incitaram-me a ter uma visão mais ampla da
ansiedade e a considerar o seu trabalho dentro de um contexto mais psíquico. Eu diria
que a psique ocidental sempre viveu a ansiedade provocada pelo conflito constante entre
as mitologias pagas — os numerosos deuses com suas imagens diferenciadas — e o Deus
único e carente de imagem do monoteísmo. É uma ansiedade que surge de um conflito de
culturas. Portanto, sempre existiu o que eu me atreveria a chamar uma ansiedade cultural.
Os conflitos mais profundos do homem são culturais, algo que não pode ser descartado
pela psicologia.
O livro de Dodds nos dá uma perspectiva histórica, acentuada pelo título do poema
de Auden, que implica que o sentimento de ansiedade cultural se faz mais evidente, mais
agudo, em períodos de tensões históricas. Mas é a partir das tensões que começa a dar-
se a reflexão sobre o que sempre esteve ali e foi tomado como certo. Aqui quero fomentar
certa reflexão sobre esse tema do politeísmo e monoteísmo, fazendo notar o óbvio desses
dois aspectos da psique ocidental, e logo fazer uma pergunta: Por que a psicologia tardou
tanto para começar a pensar no monoteísmo e no politeísmo dentro de nós mesmos e em
se dar conta de que essas duas realidades históricas estão na base mesma de nossos
conflitos? Estou consciente de que se trata de uma tentativa para refletir desde o ponto
de vista da psicologia junguiana, mas a partir de outro ângulo.

40

O ustudo da psicologia foi concebido dentro da perspectiva do ego consciente e do


inconsciente, sendo ambos que aparecem como coberturas carentes das do verdadeiro
conflito subjacente. Todavia, esta dualidade é nossa herança em psicologia: uma maneira
e no uma maneira de ver a psique.
O que de fato herdamos é uma predisposição monoteísta. É como se um operador
de camera estivesse filmando com uma lente que somente enfoca a perspectiva vortical
da consciência do ego consciente e do inconsciente. Mas, uma vez que o filme foi
revelado, constata-se que o que aparece na película são conceitos e símbolos, não
imagens. Eu diria que a dicotomia ego/inconsciente (conceitualiza e simboliza o que surge
do inconsciente. Seja qual for a concepção que tenhamos do ego, é-me impossívol
imaginar o ego como receptor de imagens. Tradicionalmente, a mente e a alma são as que
recebem as imagens, e isso é válido para os processos psíquicos e para a psicoterupia.
Bem, queria propor que, sem queimar as velhas películas, mudemos a lente da camera.
Então, ao filmar, poderemos captar com um enfoque mais definido o que surge do lado
monoteísta da psique e o que vem do lado pagão politeísta. Disso resulta a possibilidade
de começar a diforenciar e obter um quadro mais claro da psique individual que se
encontra entre estas duas polaridades e que sofre pela ansiedade gerada no conflito. Mas
para isso devemos estar particularmente conscientes do que nos diz o monoteísmo dentro
de nós mesmos, enquanto estamos ocupados enfocando as imagens politeístas, já que a
lenin que nosso ego monoteísta nos deu é automática.
A mudança do ponto de vista do ego para uma consciência que abarque tanto o
monoteísmo quanto o politeismo é, para mim, de importância primordial. E essa mudança
de ponto de vista só se alcança mediante uma Imunda de consciência. Em seu Re-
Visioning Psychology,

41

James Hillman diz que os últimos trabalhos sobre o monoteísmo judaico foram
feitos por Freud em Moisés e o monoteísmo 6 e por Jung em Resposta a Jó.7 Ao examinar
isso, Hillman transmite de certo modo uma sensação de tédio, implicando que a fonte
judaica está esgotada e que agora a exploração se deslocou para o politeísmo pagão.
Bem, com satisfação acompanhamos esta mudança de rumo, pois indubitavelmente
é ali que se encontrava armazenado todo um tesouro de imagens e para onde se
deslocaram os estudos eruditos da psicologia. Mas não devemos confundir o trabalho de
erudição — sem afastar sua importância e utilidade — com o objetivo do estudo da psique,
o qual, segundo meu modo de ver, consistiria em concebê-lo como conflito psíquico
internalizado.
Podemos realizar numerosos estudos sobre os mitos pagãos e, apesar disso, não
considerarmos a ansiedade gerada na psique por estas duas forças poderosas do
6
O esqueleto dos estudos de psiquiatria e psicologia se apoiou sobretudo nos
conceitos surgidos de observações clínicas empíricas de enfermidades mentais. Desde o
começo do século o símbolo parecia dominar os estudos do inconsciente. O uso que
Freud fez do símbolo, entendido por Jung como signo e sintoma (semiótica),
evidentemente teve origem em seus estudos sobre convenções histéricas no final do
século. Por outro lado, Jung começou seu trabalho psiquiátrico com pacientes psicóticos,
e isso lhe permitiu levar a cabo sua grande descoberta dos símbolos religiosos no
inconsciente desses pacientes. Aqui a palavra símbolo está corretamente usada, porque
o symbolon original significa a união de algo que previamente se dividiu. E o símbolo está
na base de muitas das idéias de Jung sobre os opostos e a reconciliação dos opostos.
Em seu livro Tipos psicológicos, sinto que Jung usava indiferentemente o símbolo e a
imagem, dando-lhes o mesmo valor. Logo foi mais específico e mais definido ao tratar as
imagens primordiais. As imagens se fizeram mais diferenciadas, proporcionando-nos hoje
um campo de exploração mais amplo, no qual considero que se desenvolve o trabalho
psicológico mais apropriado e no qual o símbolo é considerado atributo da imagem. com
a psicoterapia da imagem se abriu uma nova perspectiva para a histeria; na psicose
sentimos que as respostas imaginárias ao simbolismo inconsciente do paciente
propiciam uma melhor terapia. E uma nova descoberta da imagem nos padecimentos
psicossomáticos prove uma aproximação completamente nova para esses males.
7
James Hillman, Re-Visioning Psychology, Harper Colophon Books, Nova Iorque,
1977, p. 226.

42

monoteísmo e do politeísmo. Podemos realizar numerosas investigações


comodamente isolados dentro de nossa predisposição monoteísta e repetir o que um
herdeiro dos estudos das ciências naturais, Freud, fez quando, partindo do Heu próprio
monoteísmo, tomou um mito politeísta o mito de Édipo — e o converteu na causa original
da neurose, sem considerar que o mito politeísta contém em si mesmo uma imaginação
politeísta ilimitada para tratar com esse mito; imaginação bem distante de seu ponto de
vista monoteísta e científico.
Pessoalmente, acho difícil ter uma visão da psique a partir da oposição
ego/inconsciente. Isto me parece algo não psicológico e pertencente à herança da tradição
monoteísta da identificação do ego com o monoteísmo e, por isso, marco da repressão
daquilo que não é monoteismo. Enquanto a outra perspectiva que proponho — considerar
ambos, o monoteísmo e o politeísmo — parece adaptar-se melhor ao estudo, à discussão
dos processos psiquicos e à psicoterapia. Pelo menos para mim é mais facil colocar-me
dentro desse ponto de vista. Às vezes me pt-rgunto se a palavra ”psicologia” foi
adequadamente aplicada aos estudos que levam esse nome. Devemos nos dar conta de
que estudar a psique a partir do ponto de vista do ego é mais absurdo do que se pensa.
De modo que permitam-me explicar um pouco mais mini ponto de vista sobre isso:
quando, em lugar de nos situarmos no ego, nos mantivermos dentro do ponto de vista da
psique, poderemos perceber melhor o nosso monoteísmo e ter maior capacidade para
detectar quando este está atuando. Obviamente não podemos perceber isso quando nos
encontramos no ego, visto que o ego inevitavelmente está de acordo com o ponto de vista
monoteísta. É indispensável reconhecer a retórica monoteísta para poder ler o discurso
monoteísta. Temos dumnsiada tendência a dar por pressuposto o aspecto

43

monoteísta e, como disse antes, isso é o que contribui em grande medida para essa
ansiedade cultural que vivemos. Não podemos continuar especulando sobre a psique,
trabalhando para ”fazer alma”, sem ter uma apreciação das complexidades e ramificações
do monoteísmo em nossa psique e em nossa vida.
Para o analista que pode estar interessado em considerar a ambos, o monoteísmo
e o politeísmo, o desafio consistiria em aprender a conhecer melhor a diferença entre a
retórica monoteísta e a retórica politeísta: forjarse uma memória tão abundante quanto
possível de seus diferentes estilos. Aquilo que para um homem do Renascimento era o
resultado de uma ”memória unificada”,8 para o analista moderno seria uma diferenciação,
através de sua retórica, do material que surge do lado forte e monoteísta da cultura e do
que emana do lado pagão, mais reprimido. Do ponto de vista da psicologia de hoje, os
ganhos do homem renascentista seriam caóticos para o homem moderno, porque não
existe nenhuma diferenciação básica dentro de sua ansiedade cultural. A arte da
psicoterapia consistiria em refletir sobre o paciente a partir desse tipo de memória, que
pode tanto memorizar quanto diferenciar o monoteísmo e o politeísmo, abrindo-se
caminho dentro da ansiedade cultural do paciente, conscientizando o conflito.
Se nos deslocarmos da identificação com o ponto de vista do ego e irmos para uma
diferenciação do monoteísmo e do politeísmo na psique, poderemos começar a ter uma
idéia de como a culpa, que em nossa cultura se manifesta nos termos de uma forte
identificação, a partir de uma nova distância psicológica, pode agora ser perce-
8
Refere-se à noção de unificação da memória de Giullio Camillo, uma memória que
abarcava a tradição judaico-cristá e o redescobrimento da imaginação paga e declarava
também o desejo do homem renascentista de haver-se com sua ansiedade cultural. Ver
Francis Yates, A arte da memória, F. C. E.

44

como uma retórica. A culpa, com suas infinitas variações de sentimentos de culpa
e suas confusões culpabilizadoras, pode ser tratada como uma das retóricas
fundamentais do monoteísmo; de fato, a mais evidente. Quase se poderia afirmar que o
monoteísmo se iguala à culpa. O peso da culpa acarretada pelo cristianismo provém de
uma dominante hebraica, e surge da identificação religiosa com a tradição judaica (a
ansiedade de manter-se dentro das leis da religião): ”no princípio era a culpa”. Agora, por
exemplo, sabemos que no paganismo grego a culpa não era tão importante. Baseio-me
em Nilsson, que fez notar que a culpa era basicamente alheia ao espírito grego.9 A culpa
se reduzia a assuntos das seitas, as seitas virginais e puritanas pitagóricas e órficas. A
culpa era um assunto sectário — a ansiedade de manter as regras da Moita. Mas nunca foi
aceita pelos gregos em geral, que rechaçavam as idéias de culpa.
com todas as suas variações, a cultura ocidental é uma cultura inconscientemente
culpabilizante e, conseqüentemente, nossa psicologia tem um aspecto fortemente
culpabilizador. Em nossas vidas, podemos detectar as complexidades da culpa quando
atua de maneira autônoma. Todos conhecemos pessoas de muito êxito, refinadas e cultas,
cuja conversação, qualquer seja o tema, sempre cai sob o domínio da culpa. Existem
pessoas que se ajustam para ver os acontecimentos de suas vidas unicamente através do
espectro da culpa; pessoas que posHuem particular destreza para manter a culpa em
primeiro plano, seja nelas mesmas ou nos outros. Para esHns pessoas a concepção de
uma vida que não esteja profundamente impregnada de culpa é algo que ultrapassa todas
as suas possibilidades. Pode-se ver toda uma vida
9
Martin P. Nilsson, A History of Greeks Religion, Clarendon Press, Oxford,
11149, p. 217.

45

paralisada por causa de projeções de culpa sobre acontecimentos aparentemente


banais dessa vida: é a paralisação de uma vida que gira sistematicamente ao redor da
culpa.
Como psicoterapeutas, estamos acostumados a escutar o que freqüentemente são
peculiares projeções de culpa. Escutar com certa distância estes estados autônomos de
culpabilidade sem se deixar pegar por ela, estando distanciado o suficiente para evitar a
formação de um juízo, o que se escuta é uma retórica do absurdo. De modo que tratar da
culpa nos termos de uma retórica é de imenso valor, porque unicamente vendo a retórica
da culpa como absurdo e inflação é que pode surgir certa consciência. Eu vejo a culpa
como uma colossal inflação; portanto conscientizá-la é por si uma deflação da culpa.
Também me dou conta de que esta proposição de tratar a culpa como uma retórica não é
nada fácil de aceitar, nem sequer para mim que estou fazendo a proposição.
Pessoalmente, a culpa me aborrece tremendamente e me faz sentir sua inutilidade
psicológica. Se é a imagem o que realmente move a psique, isto é, se é a leitura da imagem
psíquica que move, resulta que não consigo conceber possibilidade nenhuma de ler essa
imagem enquanto alguém se encontre em estado de culpa. Porque invariavelmente a
imagem se distorce por causa de um sentimento que não lhe pertence.
Evidentemente a ansiedade cultural chega à psicoterapia exacerbada por milênios
de uma culpa autônoma que satura o viver do homem ocidental. O discurso monoteísta
está invariavelmente orientado pela culpa e é, certamente, culpabilizante e está em
oposição psíquica à indubitável riqueza das imagens arquetípicas consistentes. A culpa
monoteísta carece de imagens, como é o caso do Deus único, origem da culpa em nossa
cultura ocidental. Para um analista que aceita a ansiedade cultural (o

46

conflito entre o monoteísmo e o politeísmo na psique) a tarefa é uma dolorosa


aprendizagem para diferenciar as retóricas (a retórica conceitual carente de imagens do
noteísmo e a retórica imaginativa do politeísmo) e um
conter o conflito entre ambas para assim poder refletir sobre a diferença entre esses
dois tipos de retórica e valorizá-la.
James Joyce foi um grande exemplo de uma vida marcada pelo conflito de um viver
em ansiedade cultural, cujo atrito gerou uma energia que se transformou fia arte. O
Ulisses, esse ”tour de force” da literatura ocidental, expressa o que estive procurando
transmitir sobreu ansiedade cultural. O herói, o Ulisses moderno, é, paradoxalmente, um
judeu casado com uma católica irlandesa. O catolicismo jesuíta dominado pela culpa e os
pnganismos — mediterrâneo e céltico irlandês do mesmo autor — são as fontes das
complexidades do livro. É uma grande obra que revela a fragmentação e a loucura da
ansiedade cultural na alma de um gênio que foi capaz de transformá-la em sincretismo
religioso. Referindo-se a Bloom, W. B. Stanford escreveu: ”Originalmente um judou, logo
vagamente protestante e católico em alguns momentos, Bloom é agora um humanista
agnóstico”.10
Ulisses só pode ser comparado a outro ”tour de force” do sincretismo religioso (no
melhor dos casos, a ansiedade cultural se transforma em sincretismo religioso): a obra a
(química de Jung, na qual sua ansiedade cultural foi l rabalhada e vivenciada através do
material alquímico medieval. Para mim, a alquimia medieval é uma expressão de
ansiedade cultural, um sincretismo religioso contido na retorta alquímica. A ansiedade
cultural de Jung, a confusão das duas fontes principais — a judaica e a pagã mediterrânea
— foi trabalhada no alambique
10
W. B. Stanford, The Ulysses theme, Blackwell, Oxford, 1968, p. 213.

47

alquímico por uma alma capaz de suportar essa confusão; uma alma em níveis mais
profundos, assentada sobre um paganismo suíço, céltico, romano, germânico.
A implicação da ansiedade cultural de Jung se faz sentir quando cita Paracelso, ao
dizer: ”... escrevo como pagão ainda que seja cristão”,11 uma observação que descreve a
ansiedade de muitos homens ao longo da história ocidental. Segundo Jung, a posição
psíquica de ser mais pagão do que cristão contém um sentimento de inferioridade. É a
posição daquele que vive de e para a alma, uma alma que não faz concessões como a de
Joyce ou a de Jung, que não entra em explicações nem conceitualizações. Suponho que
mesmo Jung tinha esse sentimento de inferioridade ao qual fazia alusão. Ele o transmite
em seu desejo de não ter seguidores (”Eu não sou junguiano, eu sou Jung”), em seu
constante eludir a crítica, em seu respeito diante dos complexos dos outros, em sua
conexão com o outro tal como era. Jung nunca viveu na inflação de querer ser o líder. A
resistência que manifestou diante da fundação do Instituto que leva seu nome é bem
conhecida. Sente-se a ansiedade de Jung em seu conflito com o mundo científico tão
alheio à sua alma paga. A noção de Paracelso, de que cada pessoa tem sua estrela,
encontra eco na principal preocupação de Jung: a individuação.
Joyce e Jung se conheciam muito, sofreram e realizaram suas obras sob a pressão
extrema do que gosto de chamar de ansiedade cultural. Ambos tiveram também essa
estranha energia vigorosa que provém do misterioso ingrediente do antigo celta europeu,
e ambos revelam ao
11
CW 13, parágrafo 148. Recomendo a obra de Jung Paracelso como fenômeno
espiritual, para se ter uma compreensão da dupla ansiedade cultural vivida durante o
século XVI: por um lado, o cisma do próprio cristianismo e, por outro, o conflito judaico-
cristão, expresso por Paracelso através do termo ”pagoyum”, um de seus neologismos
favoritos, composto de ”pagão” e da palavra hebraica ”goyim” (parágrafo 148).
48

homem moderno as principais complexidades da ansiedade cultural que está


vivendo.
Enquanto Joyce e Jung são exemplos de homens que viveram mais do lado pagão
do espectro da ansiedade cultural, Sigmund Freud, por outro lado, é um exemplo de
homem que viveu no extremo monoteísta desse espectro. Foi um filho do Antigo
Testamento, do Povo Eleito, literalizações que conduzem às fantasias de pureza racial.
Também foi um filho das ciências naturais e, por isso, viveu sob o feitiço da busca da
verdade científica. Deixou-nos a imagem de um fundador e líder de uma escola, com seus
seguidores que tiveram de aceitar as descobertas científicas do líder como uma verdade
dogmática. Em lugar de cada pessoa com sua própria estrela,12 impôs a seus seguidores
a noção monoteísta de uma estrela para todos. Isso, por si só, nos dá uma visão de uma
psicologia monoteísta, de uma psicologia que rechaça aquilo que não se adapta à sua
concepção monoteísta.
Todavia, apesar de ter ocupado esse extremo monoteísta do espectro, é impactante
o fato de que os elementos escolhidos por Freud para expressar e ilustrar seus estudos
psicológicos provinham do lado politeísta pagão da psique: o complexo de Édipo, o
menino polimorfo perverso sexual, Eros e Tânatos etc. Ao escolher um mito politeísta
pagão como base para suas teorias, Freud revelou sua própria ansiedade cultural, dando-
nos uma impressão do conflito entre o monoteísmo e o politeísmo em uma mente
predominantemente monoteísta. Sua obra é igualmente um produto da ansiedade cultural
e põe em evidência o abismo histórico e cultural existente entre sua posição monoteísta
e as fontes politeístas que estudava. Podemos avaliar o esforço e o drama na situação de
12
CW 10, parte III.

49

um homem que se encontra em uma posição de superioridade monoteísta,


envolvido no estudo de inferioridades pagas e mostrando todo o incômodo de tal posição.
Só se pode ficar comovido diante do esforço requerido para semelhante tarefa.
Contudo, não há dúvida de que Freud não estava nem remotamente consciente da
tormenta que se desencadeava na psique do homem germânico no tempo em que viveu.
Dá impressão de que esteve cego diante das forças que se concentravam no inconsciente
das pessoas entre as quais vivia. Talvez não fosse imune à forte fantasia de assimilação
que viviam os judeus nos países germânicos. Uma fantasia muito peculiar, porquanto não
levava em consideração o dilema de estar assimilado e, ainda, continuar sendo o Povo
Eleito. Para mim, tornase impossível igualar assimilação social e sincretismo religioso. O
sincretismo religioso se move internamente, é um produto da ansiedade cultural e um
motor histórico e psíquico. A assimilação em níveis raciais e sociais sempre permanece
como um problema político coletivo.
Ao apresentar esses três homens muito representativos deste século, realizando
sua obra através do conflito da ansiedade cultural, tratei de demonstrar seu aspecto
criativo. Agora observemos o outro lado da moeda da ansiedade cultural, quando,
proveniente de profundas raízes inconscientes, irrompe em devastadora loucura coletiva
com sua conseqüente destruição. Consideremos a história do povo judeu na Alemanha
nos dias do nacional-socialismo e da Segunda Guerra Mundial. Felizmente, nessa matéria
somos herdeiros das Considerações sobre a história atual13 de Jung, ensaios que abrem
a porta para o estudo da mais extrema loucura política
13 C. G. Jung, Considerações sobre a história atual, Ed. Guadarrama, Madri, 1968.
50

coletiva da história do homem. Tratar de um assunto tão delicado como este se


encontra perfeitamente dentro da trndivao junguiana. E mais, Jung não deixou um dogma
H ronpeito desses acontecimentos, disse que refletiria sobro ulos partindo de ângulos
muito diversos. Portanto, creio que nunca estará fora de lugar discutir sobre o holocausto,
Boja no contexto do ensaio de Jung ou com um interesse mais secreto motivado pelos
temores que aumentaram em todos nós desde que Jung deixou de existir.
Devemos sempre aprender do passado inesgotável, do suas complexidades que
jamais poderão ser reduzidas. Porque, se podemos aprender do passado, existirá ontâo a
oportunidade de enriquecer nossa consciência ndual e talvez até nosso futuro. E quando
digo nós, refiromo a nós os estudiosos da psicologia junguiana hoje em dia, mas de
nenhuma maneira pensando que o que nós nprrndemos possa impregnar o mundo. A
diferença entro n geração de Jung e a nossa é que eles acreditavam ijtio u psicologia
poderia influenciar os acontecimentos oolotivos, e nós podemos detectar certa inflação
nessa protonsão. Em todo caso, temos aprendido das Considerações sobre a história
atual de Jung, e podemos aprendor ainda mais delas. Portanto, permitam-me oferecer
minha leitura pessoal desses três ensaios dentro do enfoque da ansiedade cultural.
O primeiro ensaio, ”Wotan”, é uma obra-prima sobre psicose coletiva que nos
demonstra como uma figura arcaica mitológica do norte da Europa apoderou-se da
consciência alemã. Na psicologia junguiana, denomina-se esse fenômeno de possessão
ou psicose. Mas quando estudamos uma psicose, algo que estamos acostumados a fazer,
estamos estudando os conflitos que provocam a psicose. Wotan é uma figura que aparece
só quando o momento é propício o logo se desvanece. Jung se apoia na monografia de
Martin Ninck sobre Wotan e nos diz: ”... o descreve...

51

como o berserker, lutador frenético, o deus da tormenta, o errante, o guerreiro... o


deus dos mortos... o senhor do saber secreto, o mago... (Ninck) supõe uma afinidade
interna entre Wotan e Crono e a derrota deste último poderia ser um indício de que o
arquétipo de Wotan foi alguma vez vencido, dividido e segmentado nos tempos
préhistóricos (como Crono)... Em todo caso, o deus germânico representa uma totalidade
em um nível muito primitivo, uma condição psicológica na qual a vontade do homem era
quase idêntica à vontade do deus e estava totalmente à sua mercê”.14
Esta conexão entre Wotan e Crono nos brinda com uma apreciação das forças
arcaicas desatadas por Wotan no povo alemão. Crono era o pai dos Titãs, quem coloca
essas forças arcaicas no reino mitológico dos Titãs, aprofundando assim nosso
entendimento de Wotan, quem desaparece durante milênios e reaparece quando o
momento é propício, como fenômeno cronológico. O ser de Wotan está no tempo de
Crono, de modo que podemos dizer que essa psicose coletiva específica é titânica. Jung
disse que essas forças arcaicas irromperam porque o cristianismo foi incapaz de conter
o conflito. Não havia nenhum sincretismo religioso para conter e reter em suas redes as
forças da irrupção.
Em sua discussão sobre Nietzsche, Jung comunica uma imagem de ansiedade
cultural, sugerindo que a ostensiva confusão de Nietzsche entre Cristo e Dioniso era, na
realidade, Wotan, esse ”atributo fundamental” arcaico e germânico atuando na psique.
Nietzsche não era muito conhecedor da literatura alemã, o que implica que não podia
adentrar-se na exploração das forças psicológicas que estavam ali mesmo em seu próprio
quintal, por assim dizer, com a resultante de que seus próprios com-
14
Veja meu artigo Loucura lunar - Amor titâmco nesta mesma obra.

52

plexos germânicos se mesclaram com seus estudos filologia clássica, sua


implicação com Dioniso e a espinha irritada monoteísta em nome do Cristo Redentor.
O terceiro quadro de ansiedade cultural aparece em
uma nota sobre Wilhelm Hauer.15 Jung o conheceu e percebe que tinha sentimentos
muito ambivalentes a respeito dele: por uma parte, Hauer era um estudioso da kundalini
Yoga e, por outra, um nazista. Como fundador
e líder do Movimento de Fé Alemã, ficou obcecado com a ideia demente de criar
uma nova religião alemã sem o ingrediente cristão. Era uma nova recusa, e ainda mais
louca, das possibilidades de um sincretismo religioso: a recusa do livro monoteísta
proveniente do Oriente, como se
esse livro, aquele que o próprio Lutero havia levado a seu povo, houvesse se
convertido em uma imagem intolerável. Estava propondo uma religião alemã pura e
virginal, não contaminada pela influência judaico-cristã.
O ensaio de Jung sobre Wotan é um diagnóstico, inpecavelmente elaborado, de uma
psicose coletiva, a « ondição psicótica dos alemães na época do nacional-socialismo.
No segundo ensaio, ”Depois da catástrofe”, uma obra-prima para o estudo da
personalidade psicopática e da pnicopatia coletiva, já não existe a mais remota
possibilidade de uma imagem, só ansiedade e culpa expressas no nível da psicopatia. Já
não existe o dinamismo inconciente de uma figura arcaica apoderando-se de uma
situação. Depois de ter lido várias vezes “Depois da catástrofe,” chega-se chega-se à
conclusão de que a culpa e a psicopatia estão intimamente ligadas, que não se pode falar
de nina sem a outra. Eu chegaria a dizer que psicopatia e culpa se igualam. Se aceitamos
essa igualdade, estabelece-se então que, cada vez que aparece a culpa, existe pelo
15
CW 10, parágrafo 384.

53

menos um componente psicopático. Do que Jung escreve nesse ensaio, tem-se a


impressão de que a única maneira de lidar com a psicopatia é através da culpa. Tanto
parece ser assim que, ao confrontar-nos com um psicopata, a culpa inevitavelmente está
presente. Nós projetamos a culpa no psicopata, e o psicopata projeta a culpa em alguém
ou em outra coisa. A psicopatia está infestada de culpa. Em primeiro lugar, Jung
culpabiliza da catástrofe os alemães — os psicopatas — mas logo vai mais longe,
culpando a Europa inteira. Introduz-nos a uma visão mais ampla da psicopatia: é um
componente da natureza humana; todos temos uma parte de psicopatia em graus
variáveis; está em cada pessoa e pode manifestar-se coletivamente.
Neste ensaio consegue-se sentir a ansiedade cultural de Jung como em nenhum
outro de seus escritos.16 Percebe-se isso sobretudo quando culpabiliza os alemães,
como se a culpa fosse a linguagem inevitável quando o psicopata aparece em primeiro
plano. No meu escrito sobre titanismo, tentei considerar a culpa como pertencente à parte
carente de imagens da psique, a culpa que surge da lacuna na qual não existe imagem
possível. Nesta oportunidade estamos considerando a culpa como algo que é próprio do
Deus monoteísta e como algo, certamente, carente de imagem. Pessoalmente considero
”Depois da catástrofe” de Jung como uma grande exploração da parte carente de imagens
da natureza humana, o que eu associo ao componente psicopático. Mas, sente-se que, ao
escrever isso, Jung se encontrava no ponto extremo de sua própria ansiedade cultural,
quando já não podia ser contida e trabalhada imaginativamente, mas derramada em ira e
culpa. Era um desespero que só podia ser expresso em termos de culpa. A culpa estava
constelada.
16 Ibid., parágrafo 387, 16n.

54

Jung diz que uma das reações à psicopatia é a ira. Ele não culpabilizou os alemães
de maneira manipulardora, tuas com toda a ira honesta e toda a raiva como uma resposta
natural diante do comportamento psicopático. ”Lutando com a sombra”, o terceiro ensaio,
porta um titulo cativante. Se ”Wotan” trata da irrupção de uma figura arcaica do norte da
Europa e ”Depois da catástrofe” (rata do horror do psicopata, então só podemos nos ’
conectar psiquicamente com o que trata o terceiro ensaio:
a luta com a sombra. Sombra é aquilo que não conhecemos de nós mesmos. É
também um título preciso, em
particular para aqueles de nós que aprendemos a psicologia do estudo da sombra
que, até onde alcança minha vista, é a única maneira de desenvolver o psíquico e aproI u
ndar os estudos da psicologia. A luta com a sombra nos permite sair da visão restrita de
Wotan unicamente como psicose e da catástrofe só como psicopatia. Entre esses dois
extremos — a psicose e a psicopatia — reside a possibilidade psíquica humana de lutar
com a sombra ou, peIo menos, de se dar conta um pouco do que chamamos sombra, o
que não conhecemos da natureza humana.17
Toda essa psicose e toda essa psicopatia tornaram possível a Segunda Guerra
Mundial com seus oitenta milhões de baixas, entre elas seis milhões de judeus. Mas foi o
extermínio desses seis milhões de judeus — o que chamam o holocausto — o que faz da
Segunda Guerra Mundial algo bastante diferente. E o holocausto é central para o lema da
ansiedade cultural, porque sem o extermínio de
17
Comove-nos profundamente a ansiedade cultural de Jung. Ponderando a
maravilha que foi o Renascimento, dizia que se não fosse pelo padre alemão, esse
movimento produziria o mais extraordinário renascimento da cultura antiga. Porém logo
em ”Wotan” argumenta que o protestantismo pode ser a correta resposta cristã. Toda sua
ansiedade cultural reside nesta contradição: sua confusão entre protestantismo e
catolicismo, além de seu desfalecimento Hauptbanhof ao viajar para a Itália. Desfalecemos
presa de ansiedades extremas (Kolb).

55

seis milhões de judeus as outras mortes seriam contabilizadas como em qualquer


outra guerra, as guerras de sempre, de generais combatendo contra generais. Além disso,
visto da perspectiva da ansiedade cultural, é a partir do holocausto que podemos aprender
sobre a sombra. Sim, o holocausto é muito pertinente para o tema que escrevo — a
ansiedade cultural — porque foi resultado de um conflito religioso e racial; e é pertinente
também na luta com a sombra, porque existiu a louca fantasia de destruir totalmente uma
sombra, diante da impossibilidade de assimilá-la. O holocausto foi um conflito com a
sombra. De modo que, se houve algo arquetípico em toda essa psicose — psicopatia e
horror do holocausto —, foi o arquétipo da pureza: o virginal.18 O virginal é um arquétipo
cuja sombra se constela de maneira mais intolerante. E é possível estabelecer uma
afinidade entre o monoteísmo e a virgindade porque ambos são exclusivos: não toleram
nenhuma outra forma de vida que não seja a sua. Não há dúvida de que existe uma
afinidade particular entre o monoteísmo e a virgindade (basta pensar na história do
cristianismo e do missionarismo cristão). Euripides, o poeta do irracional, nos dá uma
visão da crueldade em Tauris, da busca de vítimas para sacrificálas ritualmente a Artemis,
presenteando-nos com uma imagem que poderia ser vista como o protótipo do massacre:
no sentido do oferecimento de sacrifícios humanos à deusa virgem da pureza. De modo
que, sem entrar na história da diaspora judaica na Alemanha, um tema acima das minhas
intenções, creio que, no que se segue, poderei apresentar uma visão do holocausto em
termos de virgindade de maneira não difícil de aceitar: o holocausto como horripilante
resultado dos povos levados pela lou-
18
Este trabalho Ansiedade cultural foi tomado de uma obra em preparação sobre
Ártemis, o arquétipo da virgindade e da pureza.

56

cura da pureza virginal. Essa fantasia virginal de duas raças da puras dá à Segunda
Guerra Mundial sua peculiandíide psicológica e converte a crueldade do holocausto em
um episódio único da história ocidental.
Mas, permitam-me uma pequena digressão: um dos termos mais maltratados da
psicologia do século é ”agresão”; o abuso que dele se faz é suficientemente convincente.
Até nos dias recentes, as idéias referentes à agressão, provenientes dos estudos da
conduta animal, da antropologia etc., nos dizem que o homem tem uma agressividade
instintiva como a dos animais. De acordo com essas idéias, o que falha no homem é que
os chamados complexos primitivos aparecem no ”homem civilizado” e se apoderam dele,
colocando-o fora de controle. Isto, em torn de reprovação e com certa hipocrisia, é
projetado sobre o homem primitivo que todos levamos dentro em alguma parte. Todo tipo
de teorias têm sido elaboradas a esse respeito, até a do velho cérebro e a do novo cérebro.
Sem dúvida, hoje em dia, os novos livros sobre evolução19 nos oferecem idéias mais
psicológicas e sofisticadas, mais adequadas ao espírito de nossos tempos. Se o homem
só possui uma agressividade instintiva, então esta poderia estar contida na ecologia de
seus instintos. Porém a coisa é mais complexa. A agressividade no chamado homem
primitivo, que sabe mais ou menos como manejá-la, não nos serve para explicar e muito
menos aceitar o que nos oferece o mundo atual.
Através dos testemunhos da história, o que chamamos de agressividade no homem
parece que surgiu de seus conflitos culturais, uma expressão de sua ansiedade cultural.
E se os livros recentes sobre evolução apresentam a agressividade primitiva como algo
mais do que instinto, um produto da cultura, então não resta nada a com-
19
Por exemplo: Richard E. Leaky, The Making o f Mankind, Dutton, Nova
Iorque, 1981.

57

parar com o chamado ”homem civilizado”, o qual, aplicada a ele, a palavra agressivo
já não tem validade, está fora de contexto; poder-se-ia dizer que simplesmente não é
suficientemente forte. Então, já que a agressividade se vive no nível mais primitivo, para
o homem civilizado, com seu excesso de conflito cultural, prefiro utilizar a palavra
crueldade.
Ao aceitar o termo junguiano de sombra como campo de exploração, a psicologia
profunda deve incluir a crueldade, um subproduto da cultura e da civilização, como
elemento essencial da sombra. Considero a crueldade como algo suficientemente
acessível para ser mantida dentro de nossa consciência diária: a crueldade é cultural, e
nela jaz a possibilidade de tornar-se psíquica. É como se a história mudasse
constantemente nossa visão deste ponto. E impossível ter hoje em dia a mesma visão
desta característica humana que se tinha há cinqüenta anos: a crueldade está crescendo.
Historicamente falando, Jung e seus seguidores e colaboradores trabalharam sobre esta
parte da natureza humana em termos de maldade. Eles a consideraram principalmente
dentro da tradição religiosa das polaridades do bem e do mal, ou do mal como parte de
nossa natureza com a qual não podemos lidar e, por isso, temos de rechaçar.
Para resumir: com estas três facetas da natureza humana estamos tratando de
diferenciar o que pertence à parte mais obscura de nossa sombra. A agressividade é uma
atitude instintiva que aparece nos conflitos do homem primitivo e, assim mesmo, no nível
primitivo da psique e de nossos complexos. (Poderíamos talvez empregar a palavra
agressão para algumas atitudes e comportamentos das crianças e enfermos mentais.) A
crueldade é um produto do homem civilizado e surge de sua ansiedade cultural.
Certamente, a agressividade e a crueldade podem coincidir. E, por último, nos estudos de
religião

58

e filosofía ocidental, a maldade permanece dentro das polairidades do bem e do


mal, e este último, em psicologia , é a parte de nossa natureza que não podemos e temos
de rechaçar.
Porém, para nossa sobrevivência pessoal, para a proItecão de nossas almas, a
crueldade é o nível sobre o qual dovomos nos concentrar. É nossa preocupação mais
imediata, um aspecto demasiadamente evidente de nossa vida cotidiana, do mundo e de
nossa prática psicoterapêutica, onde estamos acostumados a ver a crueldade dissimulada
nos diagnósticos e tratamentos psiquiátricos. A crueldade é um elemento de nossa
constante ansiedade cultural. Todos somos cruéis em alguma parte. As torturas e
a.snassínios políticos estão mais perto de nós do que desejaríamos admitir. Estamos bem
longe dos tempos Hocráticos, quando, apesar da crueldade, o interesse era Eros. Borges
foi muito explícito ao dizer que se pode conhecer tudo, até se pode ser um grande poeta,
mas se não se conhece a crueldade não se sabe de nada.
Essa tentativa de diferenciação não suportaria muita crítica, mas o seu propósito é
o de chegar a uma parte da psique em que talvez poderíamos lidar com esse obscuro
aspecto da sombra na natureza humana: concentrar-se na crueldade. Ainda assim, depois
dessa digressão, creio que agora podemos ter melhor perspectiva para considerar o
holocausto como um conflito de sombra, que tem pouco a ver com a maneira como foi
considerado — basicamente um termos de vítimas e perseguidores —, mas vendo-o
melhor como manifestação da crueldade como subproduto da ansiedade cultural. ”Ser
vítima parece ser o destino dos judeus”,20 disse uma judia moderna, Golda Meir, a um
judeu moderno, Henry Kissinger; como se esse fosse o preço da fantasia de ser o Povo
Eleito. Sua afirmação contém
20
Time, fevereiro de 1982.

59

até um anseio inconsciente. Existe uma estranha psicologia nessa aceitação de ser
vítima, de ser movido por um destino que precipita inconscientemente a busca do
perseguidor. É um destino que se move com extraordinária força e habilidade ao encontro
de sua realização. Se a meta do destino é converter-se em vítima, toda energia se dirigirá
para isso. Se o propósito final é ser uma vítima, podese então imaginar que isso é o que
realmente realiza esse destino. Tal sentido do destino faz com que uma vida se converta
no veículo dessa força. Assim é como eu desejo ver a história da diaspora judaica na
Alemanha: o povo judeu, impulsionado pela força de seu destino — a pureza racial —
através dos séculos, propiciando e movendo-se até as conseqüências finais do
holocausto.
Haver sido eleito e ser a vítima é o mesmo; e haver sido eleito é um paradigma de
pureza. Deixemos que um escritor do século XX, George Orwell, em seu 1984, escrito em
outro momento de grande ansiedade cultural, descreva-nos a atitude monoteísta que torna
possível a loucura da pureza racial. Orwell nos transmite um quadro imaginativo de suas
origens, ainda que seus interesses se centrassem na maneira como a pureza aparece na
concepção monoteísta mais recente: o atual monoteísmo do Estado:
O que se requeria de um membro do partido era um aspecto semelhante ao do
antigo hebreu que sabia, sem saber muito mais, que todas as nações com exceção da sua
veneravam ”falsos deuses”.
Ele não necessitava saber que esses deuses se chamavam Baal, Osiris, Moloc,
Astarot: provavelmente quanto menos sabia sobre eles, melhor para sua ortodoxia. Ele
conhecia Javé e os mandamentos de Javé: sabia, portanto, que todos os deuses que
tinham outros nomes eram deuses falsos.21
21
George Orwell, 1984.

60

A sombra arrojada por esta loucura de pureza raiai, osta exclusividade, constelou
por sua vez a loucura loinã de pureza racial: a pureza racial, tornando possível o
aparecimento de outra pureza racial. O que a história revelou na Alemanha foi o assassínio
de judeus ”puros” cometido por alemães ”puros”: os puros arianos contra o povo eleito
por Deus. Duas concepções de vida dominadas pela virgindade cuja conseqüência foi a
demência. O impacto de duas psicologias virginais teve por efeito uma destruição em
massa, um massacre. Vítimas e perseguidores, perseguidores e vítimas, dançando juntos
uma dança de morte infernal. E mais, nessa aparição demente da virgindade jazia o
elemento mais destrutivo, ali se centrava aparentemente toda destruição, quase como se
toda essa guerra terrível tivesse sido simples pretexto para tornar possível o encontro da
sombra de suas purezas raciais.22
Estamos acostumados a não ver loucura na concepção judaica de sua pureza
religiosa e racial. Mas a partir dos estudos de psicologia junguiana, necessariamente
temos de considerá-la como uma loucura. Temos aprendido a ver segundo os termos da
equação junguiana: religião igual a loucura. A partir de nossa religiosidade, sentimos
como a religião é uma rede que pega e retém nossa loucura. Mas Jung também nos
ensinou a ver a religião como o campo do inconsciente em que a sombra está mais à
espreita, em que a ansiedade cultural se torna mais evidente; em outras palavras, o campo
a estudar.
Neste ensaio sugeri uma psicologia do holocausto que, no meu parecer, enriquece
o seu estudo. E uma psicologia bem arraigada no legado de Jung do inconsciente co-
22
Se lemos os documentos da guerra, chegamos à conclusão de que o Alto
Comando nazista estava mais obcecado pelos judeus do que pelo que sucedia IIIIH frentes
de guerra.

61
letivo, dos complexos históricos e da sombra. Prefiro considerar o holocausto em
termos de ansiedade cultural e da constelação de duas sombras ambas com sua própria
crueldade, em vez de aceita-lo tal como foi visto em seus níveis de culpa ou em termos de
vítimas e perseguidores.
E. R. Doods, em Os gregos e o irracional, disse de maneira muito conveniente que,
quando o paganismo declinava antes do cristianismo se impor como religião única do
Ocidente, a atitude dominante na alma ocidental era um ”medo da liberdade”.23 E assim o
medo dos muitos deuses foi mitigado pela proteÇã° de um só Deus. Mas, se em nossos
dias encontramos um paralelismo com os ”tempos de ansiedade” de Dodds (tempos que
anunciam grandes mudanças no mundo), não podemos dizer que a alma de hoje encontre
um grande refúgio no monoteísmo: porque é esse mesmo monoteismo que está
provocando o medo; ele que não respeita o direito de ser diferente; o que tem a fantasia
de fazer um mundo só monoteísta. Não faz muito tempo, o mundo em que vivemos esteve
preso pelo temor do choque entre dois sistemas monoteístas predominantes: um o
monoteísmo norte-americano concebido a partir dessa mescla de racismo e religião, os
brancos anglo-saxões e protestantes (White AngloSaxon Protestants, os WASPS), leitores
da Bíblia (o livro oriental); o outro, a concepção monoteísta do ex-Estado soviético. Apesar
de qualquer consciência que pudessem ter de suas recíprocas sobras, estes dois
sistemas monolíticos pareciam estar propensos a destruírem-se um ao outro.
Ambos tinham esse perígoso ingrediente virginal da pureza — em um bíblica, no
outro ideológica — e seu conflito produzia o medo de nossos dias. Uma situação histó-
23
E. R. Dodds, Os gregos e o irracional, Alianza Editorial, Madri 1980 cap. VIII: ”O
medo à liberdade”.

62

rica que tocou a todos, sem considerações de histórias ou geografias próprias.


Ao escrever isso, quis insistir sobre o quanto tenho levado em consideração meus
próprios complexos históricos imediatos.24 Sou um homem do Caribe, um produto
histórico do setor caribenho do que se pode chamar o barroco latino-americano. É uma
mistura de cristianismo em sua versão espanhola, e isso já é certo equilíbrio entre o
monoteísmo trinitário e as antigas imagens arraigadas no Mediterrâneo, com um forte
componente celta complementando-o, o qual, já em si, é um sincretismo religioso que
produz sua própria ansiedade e seu próprio dinamismo. Mas este sincretismo religioso
tornou possível um sincretismo ainda mais amplo: a fusão com as numerosas religiões
americanas autóctones, sem esquecer as religiões que os africanos traziam em suas
almas. Neste breve resumo do sincretismo religioso chamado o barroco latino-americano,
não quero omitir a crueldade da nossa história — a pirataria, as constantes tiranias.
Somos um povo que precisa investir grande energia para equilibrar sua ansiedade
cultural: os extremos dentro dos quais se move entre poetas e tiranos, as torturas e a
sombra: a crueldade. A nossa é uma ansiedade cultural que ocupa espaço mais amplo no
espectro que se estende entre monoteísmo e politeísmo. E mais, evidentemente esta se
inclina mais para o extremo politeísta e exibe essa inferioridade ao ser vista em relação
ao extremo monoteísta. A partir destas complexidades escrevi isso, e a partir destas
complexidades é que eu sinto medo do monoteísmo e o vejo mais como um excesso
ameaçador do que como algo que incitaria as imagens da alma, as imagens que nutrem o
sentido da própria vida.
24
Na maioria dos trabalhos de psicologia os analistas junguianos são propensos a
não dar reconhecimento aos complexos históricos que estão por trás de seus trabalhos.
63

A ansiedade cultural é minha maneira de refletir sobre o conflito histórico entre o


monoteísmo e os numerosos paganismos do mundo ocidental, herdados pela psique
ocidental. A ansiedade cultural pode ser vista de muitas outras maneiras, e suponho que
cada indivíduo tem sua própria maneira de aceitar e refletir essa ansiedade. Não é difícil
pensar que o conceito de Si-mesmo de Jung foi sua maneira de conter o Uno e os muitos.
Mas, como alguém que aprendeu dos ensinamentos de Jung, eu diria quanto a isso que
seguir as pegadas da própria individuação é o que realmente vale. Pessoalmente sinto
que, no mundo em que vivemos, a tolerância, como entendimento e convivência, é básica.
Todavia, também estou consciente de que dentro de mim existem elementos com
tendência à tolerância e elementos que pertencem à intolerância, e tenho de sofrer a
ansiedade gerada por esses dois opostos e experimentar o desafio de tratar de tolelar em
mim o que, de per si, é intolerante.

64

REFLEXÕES SOBRE O DUENDE

(A propósito de Teoria e Jogo do Duende, de Federico Garcia Lorca)

Para Maria Fernanda Palácios

Nas primeiras linhas de seu escrito sobre o Duende,1 Garcia Lorca nos transmite, o
que à primeira vista poderia ser uma denúncia, algo que pensado mais tranqüilamente se
torna uma reflexão do ensino, da cultura, da história da cultura; algo que em primeira ou
última instância concerne à alma e à vida do homem moderno. Garcia Lorca começa seu
bate-papo recordando como em seus dez anos de estudante ouviu, no refinado salão em
que agora ele se encontra, ”cerca de mil conferências”, e acrescenta: ”com desejos de ar
e sol, aborreci-me tanto, que ao sair me senti envolvido por uma leve bruma quase ao
ponto de converter-se em uma grande irritação.2
Sua denúncia é dirigida ao ensino: são essas mil conferências que como roda de
íxion podem se transformar numa repetição infinita e sem sentido. Mil conferências sobre
as quais Garcia Lorca nos faz entrever seu sentimento de irritação, algo que nos chega
como uma maldição — infernal — titânica. Mil conferências que no melhor dos casos
proporciona uma série de informações que jamais serão assimiladas ou vividas e que,
pelo contrá rio, estão ali para aprofundar abismos entre o conhecimento e aquilo que
conhece em nós: a alma.
1
Federico Garcia Lorca, Obras completas, Editorial Aguilar, XIII ed., Madri, 1967.
2
Federico Garcia Lorca, op. cit., p 109.

65

Na filosofia e na história dos estudos (history of scholarship), e nesse caso parece


que ambas se uniram, é Nietzsche quem dá o impulso para abrir a porta do problema.
Rondando a loucura nos disse que o conflito do homem atual é muito velho; ele mostra
isso em intuições adolescentes sobre o clássico grego, isto é, em dicotomias
irreconciliáveis: as de Apolo-Dioniso. Mas não há dúvida de que deu o primeiro
esclarecimento e assimilou o esquecido, o que foi tremendamente marginalizado pela
história. Todavia, o que foi deixado para trás há milênios, sabemos que continua aqui, em
algum lugar de nosso ser; e sabemos disso por causa de suas irrupções ”desordenadas”,
pela patologia e pelo sofrimento, pelos malentendidos, por aquilo que é difícil de entender
porque não tem marco de referência dentro do modo de vida que nos forçou a história e
porque, às vezes, o sentimos como possibilidades internas de acesso quando nossas
emoções são tocadas, quando um copo de vinho, uma boa companhia, as linhas de um
poema ou a melodia rítmica que ouvimos, ou um sonho, movem algo dentro de nós.
A filosofia foi incapaz de aceitar o desafio e abrir-se para uma resposta. Tomou
outros rumos, o das mil conferências, com a exploração das dificuldades lingüísticas, com
as afirmações da ciência, aumentando assim a avidez desmedida do titânico; com a
deificação da economia, e, finalmente, ao explorar o homem, descobre o vazio existencial,
o nada, onde jamais poderá aparecer o Duende. Os scholars,3 sim, aceitaram o desafio de
Nietzsche e do
3
Perdoe-me o leitor que use o termo inglês scholar, que tomo do sentido dado por
Gilbert Murray em seu livro Greek Studies, no qual define scholar como alguém cujo
interesse é o amor pelos estudos, alguém que assimila OH estudos ao viver, e que está
em oposição ao erudito especialista em uma mnt riria, mas que na maioria dos casos fica
só nisso, cheio de arrogância e m-in poder reviver o material que estuda.

66

que já estava no ambiente, e que era para o homem deste século como uma
necessidade de respirar mais profundamente; mas um respirar que era como tomar ar,
estímuIIIN, imagens, de muito mais além de onde normalmente Hioga o ar aos pulmões.
Pois o que mais nutre nossas necessidades precisa abrir caminho a partir de âmbitos
escasos e marginalizados pela história. O mais precioso vem dali: do corpo.
Os iniciadores destes estudos nos fizeram considerar um problema geográfico
central: eram humanistas que viviam ao norte dos Alpes; alemães imbuídos de uma
tradição que até esse momento, segunda metade do século XIX, não havia dado
importância a Dioniso. E mais, quando por exigência histórica tiveram de estudá-lo,
fixeram-no com os mesmos instrumentos com os quais se formaram na história dos
estudos humanísticos. Entendendo-se por isso considerações históricas, raciais,
geográficas, o que hoje chamamos psicologia transalpina (que eles não tinham presente
em suas consciências como pano de fundo de seus próprios estudos). Filhos e netos de
um protestantismo com fantasias de império, isso os distanciava de posições mais
propícias para vivenciar dentro de si mesmos o que estudavam. Eufóricos, imbuídos de
um poderoso otimismo, começaram a explorar o irracional a partir da mesmíssima
incubadora da vergonha nay.inta; a partir de outra loucura (wotânica) que não tem nada a
ver com a que eles estudavam. De qualquer maneira, das agonias românticas de suas
almas, deixaram
estudos aguçados, uma tradição erudita e, vários deles, algo especialmente valioso:
suas limitações. Walter Otto, por exemplo, nos disse: ”Assim, tentativas interiores para
explicar as orgias da loucura dionisíaca em termos de necessidades humanas, sejam
espirituais, sejam materiais, terminaram em completo fracasso. As conclusões não
apenas inacreditáveis, mas também intoleravel-

67

mente contraditórias, e isso tomando as fontes mais importantes e mais


explícitas”.4 Essas linhas deixam claro o quanto estavam longe das complexidades
irracionais dionisíacas, em que o inacreditável e o rechaçado se fazem presentes no
mesmo corpo, já que as contradições são essenciais e inerentes a Dioniso. Essas linhas
também assinalam as fronteiras limítrofes entre os estudos de humanidades acadêmicas
e algo que escapa a isso: o âmbito dos deuses subterrâneos, em que o estudo, qualquer
coisa que entendamos por essa palavra, chega a seus limites e ali começa a experiência
vivida. Dioniso não pode ser pensado como uma crença, é experiência viva: emoções,
sentimentos, dor, pranto, expressões corporais etc. Manifestações através das quais
começam a se expressar vidas que foram reprimidas pelo consenso e que na constante
batalha pela sobrevivência foram encurraladas para a marginalidade social e geográfica:
os derrotados pela história. Como é o caso do Duende de Garcia Lorca, que vive em
Andaluzia, região imersa em suas complexidades romanas, judaicas, mouras, ciganas.
Desde fins do século, outros estudos abriram caminho: a psicoterapia, a reflexão
do processo psíquico aceito como vida. Devo assinalar que este é meu ponto de vista, no
qual meus estudos estão centrados. A psicoterapia não pode prescindir do estudo da
cultura (scholarship) como fonte nutridora. A cura pela palavra propicia o viver do que
para os scholars foi amor pelo estudo e é o complemento que nos deu o século para o
estudo da cultura. Isso é assim para nós que concebemos que em psicoterapia podem se
dar processos, curas, sempre que aceitamos que o homem doente é o produto de uma
história e de uma cultura; é inconcebível uma psicoterapia
4
Walter Otto, Dionysus, Myth and Cult, Indiana University Press, 1965, p. 133.

68

não assentada na cultura, um psicoterapeuta que não tenha uma visão culta da vida
e não saiba que a enfermidade está enraizada nos complexos culturais. Se aceitamos que
enfermidade é essencialmente repressão, repressão de deuses e deusas, a psicoterapia
teria muito a ver com a observação e valorização do aparecimento desses deuses e
deusas, propiciando a reflexão de elementos psíquicos com mundo e vida próprios. Os
deuses pagãos e as formas de vida que personificam são os mais reprimidos por nossa
cultura; por esse motivo, são precisamente eles que propiciam os movimentos psíquicos
mais interiores e profundos.
Se quero falar aqui em repressão, é com um olhar mais profundo, culto, não como
o jargão do século, que entrou em uma linguagem ininteligível do repressivo, e que,
reduzindo-se exclusivamente ao pessoal, coloca-se fora das complexidades histórico-
religiosas da vida culta. Uma psicoterapia centrada em aparatos pessoais não se aproxima
e muito menos penetra nas complexidades da cultura; de qualquer maneira, a clínica de
doentes mentais, o consultório psicoterapêutico, o estudo dos processos
psicossomáticos podem ser observatórios do mundo atual. Assim os consideramos e aí,
às vezes, podemos presenciar a aparição do irracional, saltando as barreiras da repressão
e tratando desesperadamente tornar-se vida.
Garcia Lorca, a partir de seu profundo aborrecimento dessas mil conferências,
propõe outro conhecimento mais revitalizante, por assim dizer, mais de acordo com o que
propõe a psicoterapia e com os estudos da academia (scholarship) moderna. Falo aqui
única e exclusivamente de psicoterapia relacionada aos estudos de psicologia
arquetípica, em que a aprendizagem do psíquico acontece e é possível e em que o estudo
do irracional quer ser visto dentro das normas e dos limites arquetípicos aos quais
pertence.

69
O estudo do irracional nesse momento se torna muito mais acessível. As copiosas
contribuições a esse respeito testemunham isso; parece como se o estudo estivesse mais
perto do irracional (tanto é assim, que as últimas contribuições sobre a tragédia grega já
chegam a considerar as emoções como a primeira coisa a ser tratada); como se o ângulo
em que está sendo vivido e estudado se aproximasse mais do âmbito no qual Lorca nos
transmitiu seu Duende. Parece também que, por necessidades históricas, os estudos
houvessem entrado mais na conjunção que propõe Lorca: teoria e movimento, mas um
teorizar com todas as implicações que esse teorizar tem, incluindo as associações
eruditas, essas conexões intelectuais que nos oferece Lorca à maneira de seu tempo,
arrematadas com sua graça surrealista. O Duende tem suas formas.
Mas deixemos isso dentro do marco teórico dado pelos estudiosos e vejamos que
o conjunto desses movimentos suscita a participar em relações mais graciosas e
profundas com essas teorias: e é assim que começamos a considerar um livro sobre
estudos clássicos gregos, que abriu a grande porta ao estudo do irracional; seu título: Os
gregos e o irracional.5 Sabemos que seu autor, um estudioso irlandês, conta-nos em sua
autobiografia6 sua vivência com o irracional: a loucura de um mundo envolvido em
conflitos políticos e sociais, a vivência da psicologia do derrotado por complexidades
históricas, por aquilo que não se resolve e não se resolverá nunca; a amizade com grandes
poetas (e isso é sempre muito importante), aqueles que no seu trabalho devem o irracional
à intervenção divina, à cannabis, às sociedades de parapsicologia, aos sonhos.
5
E. R. Dodds, Losgriegos e Io irracional, Alianza Editorial, Madri, 1980.
6
E. R. Dodds, Missing Persons, An Autobiography, Clarendon Press, Oxford, 1978.

70

Quando E. R. Dodds nos entrega seu precioso tratado sobre o irracional, temos a
impressão de que os campos da psicologia e da cultura se aproximam, de que a geografia
se torna mais acessível e de que o scholar se aproxima mais intuitivamente do estudo do
irracional, respaldando-nos e indiretamente aproximando-nos mais ainda desse canto do
mundo, Andaluzia, lugar de onde Lorca nos transmite o magistral legado de seu ensaio
sobre a Teoria e jogo do Duende.

Limitar-nos-emos aqui a ver a possível fusão do daimon como uma interioridade


que tem um acento pessoal e uma linguagem própria que nos chega através de intuições:
o instintivo, que aparece às vezes arbitrariamente e que pode chegar às raias do absurdo,
pois através da divina intervenção do deus temos de nos dar conta de nosso atrevimento.
Dar um passo a mais nos âmbitos do mistério seria irreverente. Pode ser que seja aqui o
lugar em que a epifania de um deus apareça, nesse elemento diferenciado de individuação
que nos fala desde o insondável e que chamamos daimon. E Lorca nos diz cheio de alegria
andaluza que o Duende é, nem mais nem menos, descendente daquele alegríssimo
demônio de Sócrates. A fusão sucede em um estado de confusão e na confusão é que se
vivem os segundos de tal acontecimento. Assim, dar um passo mais além com o Duende,
desde onde o deixou Lorca, tratar de propiciar o que hoje em dia é inquietude dentro dos
estudos dos clássicos, necessidade de época, substância transformada do psíquico,
estudo e vida em psicoterapia, pode muito bem ser uma compensação para nossos
estudos.
Gostaria de considerar o ensaio de Lorca como uma obra fundamental, porém com
um conteúdo mais in vivo do que aquele que nos acostumaram os scholars desde a
segunda metade do século XIX, ainda que devêssemos dizer que hoje em dia o material
que eles tratam aparece

71

com uma visão mais acertada e mais profunda, com urgências históricas e
interesses que transcendem o âmbito das universidades. E se o ensaio de Lorca é uma
obra fundamental, ele o será mais ainda se considerarmos certo que grande parte das
aborrecidíssimas mil conferências que ele denuncia nas primeiras linhas de seu escrito
versa sobre o tema da criatividade, que se presta às especulações e divagações de uma
subjetividade que não pertencem nem aos deuses nem ao daimon; puerilidades que
tratam de profetizar gênios criadores: histerias aceitas como revelações divinas. É uma
criatividade concebida através do suor titânico, dando voltas no mesmo lugar como as mil
conferências já citadas, e que na maioria terminam em cansaço não reconhecido, um
breakdown irresgatável; mas se o que se estabelece hoje é ensinar, educar com alma, a
criatividade se iguala a gerar a alma. Já vimos o ensaio de Lorca como uma obra
fundamental, como uma fonte de referência que nos inicia em novos estudos, insinuando
que devemos estudar os mesmos tratados, mas aproximando-nos deles com outra visão,
visão que está em nós mas que foi encoberta por milênios. Chegar até esse canto de
Andaluzia, o ambiente de Lorca, e ter a sorte de sentir o Duende, é como ir a um reservoir
das velhas iniciações mediterrâneas, onde o iniciático do Duende se conjura a passos de
ritual que não pode ser aprendido.

Assim vemos como em Andaluzia se estuda, se propicia e se tem a expectativa do


aparecimento do Duende. De modo que podemos ler um tratado, A arte do flamenco, 7 que
nos chama a atenção por ter sido escrito por D. E. Phoren, nascido em Mineápolis,
Minnesota, que recebeu o Prêmio Nacional 1970 da Cátedra de Flamencologia de
7
D. E. Phoren, El arte del flamenco, Sociedade de Estudos Espanhóis, Finca
Espartero, Sevilha.

72

Jerez de la Frontera; podemos ler dom Luis Bollain, taurômaco, instruindo-nos na


tauromaquia do século, que me contou de cursos sobre a arte de tourear que são
administrados na Universidade de Sevilha nos semestres de inverno. Vemos como dois
homens de origens tão diferentes, um norte-americano e o outro espanhol de linhagem
pura, são dois exploradores do Duende, os dois querendo em seus tratados, como disse
dom Luis, com ”repetição insistente”, abrir-nos ao ensino, educação e ascese à
possibilidade do Duende. Isso nos faz concluir que o flamenco e a arte de tourear se
estudam através de exercícios que nos são ensinados e nos preparam para sustentar em
nós o aparecimento do Duende. O que seria esse Duende senão esse momento de verdade
muito precisa, em que, na confusão, a alma e um deus que aparece dentro do campo que
lhe pertence se fusionam tanto nos coros do flamenco como na tourada, tocando o
demônio de cada um? A individualidade e o coletivo em fusão. Isso altera os conceitos de
individuação, já que é um produto altamente ”individuado” que se vive em sua emoção
própria, fazendo-nos sentir nossa interioridade, mas que ao mesmo tempo se dá em um
âmbito coletivo. A flamencologia e a tauromaquia são como tratados de ascese.
Lorca nos diz que na tourada o Duende aparece nas verônicas8 iniciais quando o
touro está inteiro ou no momento supremo: quando o toureiro entra para matar. Nos
tempos de Lorca, os Mod Twenties da tourada, havia grandes artistas do volapié; 9
toureiros que se deleitavam nessa arte. Um público atento observava o toureiro preparar
o touro para uma estocada suprema. Naquela época a maior das glórias era uma volapié
com tudo a que se ti-
8
Lances de capa. (N. do T.)
9
Movimentos ágeis e precisos que o toureiro executa para ferir o touro parado. (N.
do T.)

73

nha direito. Hoje em dia essa arte não está em voga; com isso não quero dizer que
no dia de amanhã ela não recupere o que lhe pertence, porque perfilar-se, inclinar-se sobre
o touro na distância exata, com o olhar em seu cangote, e fazendo a cruz cravar a espada
em grande estilo e sair com dignidade, lentamente, pela lateral do touro, com o chifre a
milímetros do corpo, é algo que desafia qualquer concepção de tempo e espaço que
sejamos capazes de imaginar. Uma arte viva e um reativar-se a imagem primordial da
morte do touro: a missa primordial. Há a possibilidade de que reapareça o ritual em sua
essência, que, como disse dom Luis, vejamos com nossos próprios olhos como a espada
vai entrando no lugar exato, no cangote do touro, com uma lentidão admirável e que então
o Duende apareça. Mas todos sentimos que a morte do touro na arena vai muito além do
virtuosismo de um bom matador num momento dado. Existem touros que morrem na
arena e, enquanto estão morrendo, nesse momento de agonia entre a estocada final e a
morte, há um tempo justo e um temple, e um espaço que move nosso sentir, pois — por
que não dizer? — existem touros que morrem de maneira magnífica, como se estivessem
dando uma lição do morrer para a arena inteira.
Como já dissemos, hoje em dia é difícil ou quase impossível que apareça o Duende
na estocada; todavia, para dar uma idéia ao leitor, podemos trazer como referência os
comentários que o grande tratadista da arte de tourear, dom José Maria de Cossío, nos
deixou em sua famosa enciclopédia Los toros.10 Sobre Diego Mazquiarán ”Fortuna”, um
grande artista do volapié nos tempos de Lorca, ele nos conta: ”Indubitavelmente, Diego
Mazquiarán ’Fortuna’ é um dos bons matadores que marca e há de marcar a história da
arte de tourear. É talvez o melhor de
10
José Maria de Cossío, Los toros, 6a ed. Ed. Espasa-Calpe, Madri, 1969.

74

sua época ou o mais importante dela; época que coincide quase totalmente com a
época gloriosa de dois colossos, Joselito e Belmonte. ’Fortuna’ foi um estilista, um
virtuoso da estocada a volapié. Dominava e executava os movimentos dessa arte com a
maior perfeição. Marcava todos os tempos dela como talvez ninguém o tenha feito.
Colocava-se a matar na distância que pediam as qualidades do touro, mostra indubitável
de seu perfeito conhecimento dessa arte, já que muitos matadores, que gozam de bom
cartaz como matadores que são, tiveram o defeito de se colocarem sempre na mesma
distância — longe ou perto — no momento supremo. Tudo isso, e seu tipo, tornava esse
momento uma beleza e uma altivez insuperável, motivando as delirantes ovações que
tanto lhe ofereciam”.11 Consideremos o momento em que o toureiro entra para matar como
marco de referência propiciatório para o aparecimento do Duende. Como já disse, isso
quase desapareceu nos momentos atuais; mas o que pode nos acontecer hoje é outro
aparecimento do Duende nos touros tal como se refere Lorca. Em 9 de setembro de 1979,
na Plaza de Ias Ventas de Madri, José Luis Vazquez, filho do matador de mesmo nome,
fazia uma primeira aparição como matador de novilhos. Lançou-se com sua capa em seu
primeiro touro e lhe deu seis verônicas e meia. De pronto me senti suspenso no ar, com o
rosto inundado de lágrimas; mole, parei sentindo um não sei o quê. Não recordo se gritei,
mas o que sei é que quando voltei a praça inteira parecia que compartilhava do mesmo
delírio; velhos aficcionados ao meu redor se entregavam ao mesmo frenesi com seus
rostos também inundados de lágrimas. O Duende havia feito sua aparição nessa série de
verônicas que não se pode definir de nenhuma maneira. No dia seguinte o cronista se
reportava ao que lhe contou um ve-
11
José Maria de Cossío, op. cit., vol. Ill, p. 575.

75

lho aficcionado: ”essas verônicas me tiraram vinte anos de cima”. E aqui o Duende,
como se estivesse nos chamando a atenção para o renascer, toca-nos por trás e por baixo,
não sabemos de onde, e nesse ativar de essências que estão adormecidas sente-se um
renascimento que é como uma reafirmação da vida.12
Porém vamos dizer algumas palavras a mais sobre o tourear; tratemos de nos
aproximar do mistério que torna possível o aparecimento do Duende na tourada,
apoiando-nos no já mencionado dom Luís Bollain e em seu tratado El toreo, e reduzamos
todo um tratado de essência e estética taurinas à concepção do temple. ”Entendo que
templar é harmonizar, tornar condizente, colocar no mesmo ritmo o movimento do artifício
(capa ou espada que o toureiro leva na mão) e a investida do touro, de tal maneira que o
touro tenha sempre a seu alcance o tecido da capa, mas não consiga alcançá-la nunca.”13
Arte difícil, infinitamente mais complexa do que podemos imaginar pelas linhas que aqui
cito, e essência dinâmica propiciatória do Duende.
Gostaríamos de ampliar as concepções e vivências que do temple têm os
entendidos no assunto. Temple é lentidão. Mas isso não quer dizer que seja única e
exclusivamente lento; eu diria que é uma lentidão tremendamente animada, um estar lento
estando a psique disposta. Temple é um movimento em lentidão que pode aparecer em
alguns momentos da tourada, no cantar ou dançar do flamenco e — por que não? — na
vida. Para mim, temple é algo que se refere ao dionisíaco, pertence à sua
12
Não creia o leitor que minha leitura dos scholars seja literal ou direta. A isso me
referi na primeira página do meu livro Hermes e seus filhos, ao qual remeto o leitor. Até
outro dia se relacionavam Morte e Ressurreição, relacionadas à tragédia, com o ritual, e
em que o ciclo anual e os ritos vegetais estavam em suas origens. O psíquico da
experiência do morrer e renascer eu o relaciono totalmente ao emocional.
13
Luis Bollain, El toreo, Ed. Católica Espanhola, Sevilha, 1968, p. 173.

76

essência. É também algo que podemos sentir quando, às vezes, ouvimos outra
música que nos apetece por ser dionisíaca em sua essência, quando o cantor de blues ou
de jazz ou os coros dos spirituals cantam com os sons negros a que se refere Lorca, e
com um temple ajustado à lentidão que lhes correspondem, transmitindo-nos assim sua
emoção e seu Duende. Temple é nervo central e seu aparecimento em psicoterapia nos
assinala constelações dionisíacas, fala-nos claro do psíquico em movimento interior e da
constelação do corpo dionisíaco, ainda mais se sabemos e aceitamos que a tradição
assimilou Dioniso e seu par Ariadne com o par Eros-Psique. Assim, quando em
psicoterapia há uns segundos de temple entre paciente e psicoterapeuta, estes nutrem
mais, são mais importantes e falam mais à psique do que todo o resto da hora de
interpretações redutivas, amplificações inflacionárias e infinitas associações. Porém os
taurinos já sabem disso e sobretudo essa minoria que vai às arenas para ver se acontece
o milagre desses segundos inefáveis. E mais: para referir-se a isso, usam como metáfora
o atributo simbólico mais próximo à Psique (o frasco de perfume). Esse tipo de
aficcionado aos touros pode se contentar com muito pouco, e o seu usual comentário
depois desses instantes de embriaguez psíquica que justificam todos os seus zelos
taurinos é: ”o frasco se destampou”. É que as essências do psíquico penetram pelos
sentidos. José Bergamin, poeta e taurino que escreveu um importante livro sobre touros,
sentia a música quieta da tourada.14
Também havia temple naquelas seis verônicas e meia que deu José Luis Vazquez.
Seis verônicas e meia com temple que tornaram possível o aparecer do Duende e que
tocaram o Duende dos espectadores e do velho, que se sentiu reviver.
14
José Bergamín, La música callada dei toreo, 3° ed., Ed. Turner, Madri, 1985.

77

O aparecimento do Duende como nos traz Lorca, ou como eu pretendi explicar com
a imagem anterior e com as que se seguem, é o aparecer explosivo, expansivo, aberto, e
que se dá em casos extremos. Mas creio que náo devemos passar por cima de outros
aparecimentos que quero atribuir ao Duende, pois se dão no mesmo contexto e
correspondem às emoções mais íntimas, privacidades dos que as sentem. E é quando,
tanto nas imagens taurinas como na imagem feita música de flamenco, chegam
sentimentos que nos tocam anteriormente, como se movessem algo em nós, umedecendo
nossos olhos, mas conseguimos manter a compostura. Como dizem os andaluzes, o que
acontece é ”por los bajines”, e acompanhando isso, sentimos que nossa psique se move
e nossa alma vai se forjando. O flamenco nos oferece possibilidades mais íntimas do que
as dajuerga;15 pode-se ver dois amigos sentados em uma mesa com uma garrafa de vinho,
cantando um para o outro em sussurros... ”por los bajines”. E isso nos mostra uma
imagem muito antiga, muito mediterrânea, da beleza de um Eros: o diálogo de duas almas
tendo por veículo o flamenco, um Eros contido em seu próprio refúgio. Há imagens na
poesia flamenca que podemos associar facilmente com o sonho. A imagem sucede como
no sonho, como se viesse dessa zona desconhecida de onde vêm os sonhos e chegasse
ali onde sonho e imagem poética se tornam um. Há outro aparecimento do Duende que
tampouco podemos deixar de lado; é quando nos desconcerta: é o que o andaluz chama
”pasmo”. Em tudo isso já sentimos como se Dioniso fosse dando a mão a Hermes: é uma
rajada, um instante irrepresável, algo como um fantasma que fez sua aparição súbita e se
desvanece tal como apareceu. Da mesma maneira apare-
15
Encontro festivo de várias pessoas, acompanhado de canto, dança e bebidas. (N.
do T.)

78

cem na mente algumas imagens de morte, de sutileza evanescente e que nos


deixam pasmos. São esses fantasmas interiores que não se contam.
Escrevo essas linhas tratando de vivenciar o que Lorca nos deixou na forma de
anotações e reflexões, e com isso pretendo propiciar um acesso para a aceitação e, se
possível, uma expansão da contribuição de Lorca. Meu interesse seria tomar de Lorca ou,
se o leitor preferir, roubar-lhe hermeticamente tudo o que se pode, para com isso nos
enriquecer. Lorca, em duas pequenas linhas, nos define o núcleo mais íntimo da arte de
tourear, o que em tauromaquia necessitaria de um tratado: ”O touro tem sua órbita; o
toureiro a sua, e entre órbita e órbita um ponto de perigo onde está o vértice do terrível
jogo”.16 Essas linhas nos movem a reflexões mais profundas e portanto de grande
maturidade; em síntese, elas nos transmitem o conhecimento mais íntimo da tourada, dos
terrenos e das distâncias, a única coisa que evita os feios atropelamentos e os penosos
percalços, o que torna possíveis o temple e o Duende. Algo que podemos roubar de Lorca
e da tauromaquia, e que é de grande valor para a vida, para não falar já de seu valor na
psicoterapia, em que as transgressões missionárias em terreno alheio sufocam, e não
deixam que o psíquico respire, e atropelam, evitando que a psique viva psiquicamente.
Por outro lado, o que Lorca nos conta do aparecimento do Duende no flamenco é
algo que não se poderia melhorar, nem creio que os tratadistas que tive ocasião de ler
também o melhoraram. Porém existe uma imagem que me impressionou muito e que
sobrevive em minha mente, ainda que tenha sido lida há muito tempo em um tratado sobre
flamenco: estava um grupo de cantores numa juerga em Madri e, entre eles, nada mais
nada menos do
16
Federico Garcia Lorca, op. cit., p. 119.

79

que dom Antonio Chacon, quando a um dos juerguistas ocorreu chamar Manuel
Torre a Andaluzia. Nós imaginamos que Torre chegaria a Madri pelo menos no dia
seguinte. Chegou Manuel Torre àjuerga e sentou-se em um canto para ouvir os outros
juerguistas cantar, até que um deles cantou uma estrofe, e aqui Manuel Torre se levantou
e cantou uma única linha da estrofe e junto com essa linha a loucura do Duende se
apoderou dos presentes. Essa imagem de Torre é semelhante à que nos passa Lorca do
prêmio dado num concurso de dança em Jerez de la Frontera a uma velha de oitenta anos:
”só pelo fato de levantar os braços, erguer a cabeça e dar um golpe com o pé sobre o
tablado”. Essa imagem nos move a outras direções, pois evidencia a psique do corpo
dionisíaco presente na velhice, e nos ajuda a penetrar melhor no sentido do baile dos
anciãos, Tiresias e Cadmos, em As bacantes de Eurípedes. com essa imagem, evidencia-
se claramente que a psique-corpo dionisíaca chega à velhice; e mais — e isso
confirmaremos adiante —, as mais profundas complexidades dionisíacas só se desvelam
na velhice. Sempre me chamou a atenção o fato de Eurípedes escrever As bacantes — o
testemunho mais expressivo do dionisíaco — exilado de sua querida Atenas na Macedonia
e quase aos oitenta anos.
Por tudo isso, a única coisa a que poderia me referir aqui é ao rito, ao rito
propiciatório do Duende no flamenco. É através dajuerga que se propicia
espontaneamente o suceder da festa. A alma necessita do Duende como algo nutritivo,
mas a alma se nutre do acontecer, do suceder espontâneo. É assim que ajuerga começa:
se bebe e se come e se põe a cantar, move-se de um lugar para outro, encolhe-se e se
impõe aos concorrentes; tudo isso como um rito dionisíaco propiciatório à espera de que
o conjuro, o vinho, a intenção do canto façam aparecer esse minuto de Duende que revive,
que dá sentido ao suceder: ”A

80

chegada do duende pressupõe sempre uma mudança radical nas formas dos velhos
planos, dá sensações de desembaraço totalmente inéditas, com uma qualidade de rosa
recém-criada, de milagre, e chega a produzir um entusiasmo quase religioso”.17 Tanto no
flamenco quanto na tourada esse reviver e a morte não são coisas distantes. Quando na
concepção do Duende se fala de um renascer, de um reviver, a experiência vivida está
conectada com imagens que pertencem especialmente à imagética da morte. Assim, o
renascer, sem esta imagética que nos associa à morte, é inconcebível.
Viver o perigo na tourada ou um canto profundo que nos vem do ”obscuro e
estremecido” faz-nos sentir que a imagem que nos chega procede do âmbito arquetípico,
dali de onde a vida recebe o sentido e revive com a morte. A dança flamenca em suas
acepções mais profundas alude à morte; a imagem, que nos apresenta o dançarino e a
dançarina quando o Duende aparece, fala de um rasgar, de um desmembramento
dionisíaco, da essência da loucura dionisíaca. E aqui já estamos no âmbito de uma loucura
da imagética da morte, que nos ensina a morrer. É dessa forma que sentimos essas
lamúrias, esses prantos, esse rasgar a roupa a que se refere Lorca.
Estão por se explorarem as relações entre loucura dionisíaca e morte; mas
deixemos isso só na referência e, ajustando-nos ao texto de Lorca, sintamos a influência
da imagem, de uma imagem em oposição a essas mil conferências. Isso nunca foi mais
bem dito do que pelo escritor taurino venezuelano Carlos Villalba. Em julho de 1976, o
jornal El Nacional de Caracas publicou magníficos artigos a respeito da morte de
Heidegger, que se ajustam tremendamente ao que trato aqui. Villalba nos diz que dois
chifres de touros falam mais sobre a morte do que
17
Idem, p. 113.

81

toda a obra do filósofo sobre o ser para a morte. Diz com suas palavras que os
filósofos não sabem o que tratam ao falar da morte; que os mestres do ensino, da
aprendizagem e da iniciação da morte são os toureiros: os imaginantes da morte. Pois
uma só imagem nos dirá mais sobre a morte que todos os tratados de filosofia. Também
para Villalba a tourada é um agregado de ”ensino da morte”, e parece que o Duende
rondou suas palavras.
Já no nível de Duende e morte, permito-me apresentar ao leitor uma personagem
que é figura relevante na obra de Lorca. O pranto pela morte de Ignacio Sanchez Mejías18
é um clássico de nosso século. O público leitor conhece Ignacio Sanchez Mejías através
do grande poema de Lorca, o poema mais importante que se escreveu sobre algo que foi
fonte de inspiração para os poetas, como são os touros e os toureiros. Aproximar-se de
alguns traços da personalidade de Sanchez Mejías, que com sua morte inspirou tal poema,
creio que é de interesse para aproximarmo-nos do lugar em que o Duende e a morte se
roçam. Um pranto feito poema, um poema com Duende e nesse caso com dois
protagonistas: o toureiro que morre e o poeta. Néstor Luján em Historia dei toreo nos diz:
”Ao chegar à biografia de Ignacio Sanchez Mejías, forçosamente se tem de empregar um
torn distinto do de qualquer outro toureiro que tenha existido. Porque Ignacio Sanchez
Mejías foi sem igual como toureiro e como homem”.19 Delinear uma personalidade tão
complexa ”como toureiro e como homem”, como é a de Ignacio Sanchez Mejías, e com a
intenção de aproximar o leitor das entranhas de Lorca e das vivências do Duende não é
nada fácil.
18
Idem, p. 537. Brian Vickers, em sua obra Towards Greek Tragedy, p. 88, nos diz:
”It is remarkable how much of Greek Tragedy — and how much of the greatest poetry —
is in essence a lament for the dead”.
19
Néstor Luján, Historia del toreo, Ed. Destino, Barcelona, p. 294.

82
Ignacio Sanchez Mejías nasceu de família rica e foi filho de médico, coisa rara entre
toureiros, pois, salvo raras exceções, eles surgem das classes baixas, ”dos derrotados
sociais”. Lorca chamou Ignacio de ”o bem nascido”. Apesar de ter começado a tourear
desde menino na arena da granja de sua casa, com Joselito, nada mais nada menos que
o maior toureiro de todos os tempos e, com o passar dos anos, seu amigo e cunhado
(Ignacio casou-se com Lola, a irmã menor de Joselito), pode-se dizer que não nasceu
toureiro, no sentido que usualmente se dá a tal palavra. Ele teve de se fazer, teve de
aprender o que aprendeu, e a cada aparecimento na arena foi uma luta contra ele mesmo
e contra um público que o empurrava ao inverossímil. ”Um toureiro mais bruto, de gesto
dionisíaco e de uma temeridade desmandada. Foi um toureiro com autoridade na praça e
de uma vida aventureira e inquieta. Espírito forte e vital, dedicou-se aos touros porque, no
momento sevilhano em que nasceu, a única saída gloriosa e romântica para um herói era
a tourada. Em outro momento talvez tivesse sido um conquistador, contrabandista ou
guerrilheiro...Viveu uma vida de fábula entre os dançarinos, toureiros e poetas e, além
disso, Ignacio foi um dos entusiastas mais fervorosos e eficazes da magnífica geração de
poetas anteriores à Guerra Civil”.20 Isso já nos faz entrever uma personalidade que se faz
sentir com sua presença, que estimula e é capaz de mover a alma dos poetas. Grande
mecenas do flamenco, protegeu as velhas dançarinas e conseguiu que readquirissem uma
relativa confiança: La Malena, La Macarrona (imortalizada por Picasso), a velha e
estropiada Fernanda voltaram ao tablado. Sua fazenda era um refúgio do mais puro
flamenco, onde se ouvia o último grande cantor, graças a quem o flamenco se torna mi-
20
Néstor Luján, op. cit.

83

tologia: Manuel Torre. Conta-se que ele fez uma chamada telefônica a Lorca, de
madrugada, para que ouvisse o sapateado da Argentinita. Como escritor, estreou em
Madri em 1928 seu drama Sem razão; e nos diz Cossío: ”O toureiro não aborda um
pequeno tema burguês, tangente mais ou menos ao ambiente taurino, senão que,
voluntariamente, enfrenta um problema de loucura ou razão e se desenvolve
elegantemente entre seus obstáculos”,21 com o qual o tratadista nos está dizendo que
Ignacio andava cômodo com o irracional. Escreveu também uma comédia, Zayas, que
estreou no mesmo ano em Santander. Como toureiro conviveu com ”os melhores de seu
tempo, isto é, ao lado dos melhores de todos os tempos”. Como bandarilheiro 22 foi
excepcional, genial. Aqui sua personalidade e seu valor apareciam ao máximo: desafiava
as possibilidades, provocava a dificuldade e isso nele era risco e emoção. Ali aparecia seu
Duende aproximando-nos do imaginário da morte. Ignacio Sanchez Mejías, dizem os que
o conheceram e o viram nas touradas, ”não reconheceu o perigo”, como se a equação
perigo-morte não existisse para ele. Hemingway, que o conheceu, disse-nos que um ano
antes de ele morrer os ciganos flamencos de ”Villarosa” de Madri intuíam a morte que ele
levava dentro de si. Quando seu filho quis ser toureiro, ele se enfureceu e disse: ”O único
que entra nesta casa morto por chifres de touro sou eu”. Isso é para mim suficiente para
traçar as linhas de uma personalidade, mas também para refletir o dionisíaco a partir de
seus extremos mais exaltados e vitais.
Garcia Lorca também era dionisíaco. O mundo em que se ajustava era o dos poetas,
toureiros e flamencos. Lorca era poeta, músico, homem de teatro. Seu talento se
21
José Maria de Cossío, op. cit., p. 875.
22
Bandarilheiro: toureiro que clava dardos no touro. (N. do T.)
84

expressou através do dionisíaco. Ele cantou repetidamente à morte e escreveu


sobre o Duende. Sua morte é tema do nossos dias, e com isso quero dizer que é matéria
de ustudo e reflexão. E assim como a morte de Lorca se torna uma representação do teatro
do mundo, o âmbito que torna possível a reflexão a partir de suas avaliações arquetípicas.
José Antonio Rial, em sua obra A morte de Garcia Lorca,23 montagem cênica do
livro O assassínio de Garcia Lorca,24 do escritor irlandês Ian Gibson, livro definitivo sobre
a morte do poeta, propõe um final imaginativo que combina com o que sinto. É quando
nos faz ver o fuzilamento de Lorca como se a morte no redondel25 e a morte, não importa
como, na Guerra Civil Espanhola fossem uma mesma coisa: ali se expressam as mais
altas avaliações da morte do touro feito rito dionisíaco e primordial. Isso foi dito pela boca
de Galadí, o bandarilheiro (Lorca morreu com dois bandarilheiros, Galadí e Arcollas, e com
um mestre-escola, coxo, Dióscoro Galindo Gonzalez, e teve como coveiro um cigano).
Assim sendo, eu sinto — e aqui expresso meu sentimento — a Guerra Civil Espanhola
como uma grande corrida mitológica; e não sinto irreverência em Rial nem desatino em
mim. Afinal: ”Não pode compreender bem a história da Espanha desde 1650 até hoje quem
não tenha feito uma rigorosa construção da história das corridas de touros no sentido
estrito do termo; não da festa de touros que mais ou menos vagamente existiu na
península desde há três milênios, mas o que nós chamamos atualmente com esse
nome”.26
23
José Antonio Rial, La muerte de Garcia Lorca, Monte Ávila C. A., Caracas, 1975.
24
Ian Gibson, El asesinato de Garcia Lorca, Ed. Crítica Espanhola, Grupo Grüalbo,
Barcelona, 1979.
25
Redondel: arena das praças de touro. (N. do T.)
26
Carlos Orellana (editor), Los toros en Espana, 1.1, Ed. Orel, Madri, 1969, p. 10.

85

Isso foi dito por Ortega y Gasset que, quando ia aos touros, dizia: ”you ver como
anda a Espanha”. Eu prefiro a loucura que expresso com isso às outras loucuras com que
tem sido vista a Guerra Civil Espanhola, pois não necessitamos pular fora da interioridade
de nossa psique nem nos dividir em frações para referir-nos aos acontecimentos do
mundo nem necessitamos tomar partido para nos expressar. A maldição de tomar partido
está em optar e concordar com uma loucura de fácil acesso (loucura maldita, titânica), a
difícil é a outra...
Recordemos agora as primeiras linhas do ensaio sobre o Duende, para mim
incandescentes, pois me fazem sentir a batalha de Lorca para arrancar de sua alma a
esterilidade titânica daquelas ”mil conferências” e desprender-se de tudo o que caia sobre
o que chamamos ideologia, e reconheçamos que isso também é dionisíaco.27
Circunscrever a morte de Garcia Lorca aos limites dos bandos em conflito na Guerra
Civil Espanhola me parece muito simplista. A consciência do homem de hoje está
suficientemente distante do romantismo político dos anos 30; há quase meio século de
distância que torna possível a reflexão. Deixar o conflito no âmbito dos bandos me
pareceria, no melhor dos casos, como indicar ou localizar a loucura de um modo cheio de
repetições titânicas, loucura que, como já dissemos, é arena e cenário propício para matar
outras loucuras. Arquetipicamente, Dioniso será sempre o perseguido e o desmembrado,
o mais reprimido de todos os deuses (conta Euripides, que foi reprimido em Tebas, onde
mitologicamente havia nascido sua mãe), não importa o regime político em que se vivia;
isso pertence à sua essência.
27
Para mim é impossível conceber Dioniso apregoando ideologias. Sua epifania,
quando se dá no coletivo, sucede entre um grupo de mênades, em umajuerga, antes da
batalha de Salamina, ou na Festa Nacional de Espanha, em uma praça de touros, ou na
alma feita corpo do homem de sempre.

86

É precisamente aqui que este tema de nossos dias me soa como uma reatualização
histórica de um mitologema de sempre: a perseguição e morte de Dioniso pelos titãs mais
o fuzilamento de um grande poeta.28 Assim me chega a morte de Garcia Lorca como
fundamento de consciência. Os elementos históricos se tornam um marco de referência,
campo em que o drama mitológico de novo se atualiza. A imagem mitológica de
perseguição e desmembramento de Dioniso pelos titãs me salta como imagem primordial.
Se deixássemos tal fato só nos terrenos da luta de frações políticas, cairíamos numa
grande ingenuidade, pois seria como, por exemplo, deixar dentro dos conflitos raciais ou
sociais algo que na realidade constela sombras, conflitos psicológicos, batalhas
mitológicas muito antigas e de sempre. Aqueles são conflitos que tornam possíveis, como
estamos tratando nessas páginas, a perseguição e a morte por desmembramento de
Dioniso pelos titãs. É dentro das complexidades desse mitologema, e querendo conter
dentro de mim as imagens que aqui discuto, que trato de me aproximar vivencialmente do
acontecer da morte de um ser humano hoje em dia, neste mundo em que vivemos; um
mundo cuja história tem sufocado as imagens que nos serviriam de acesso e nos nutririam
e sustentariam no ”momento da verdade”, nesse ”momento supremo” que é a morte. As
imagens propiciatórias para o acontecer de uma vida que se acaba estão em retirada, em
menosvalia, em franca derrota (mas o dionisíaco sempre esteve em fuga, em menosvalias
vergonhosas, em derrota, como seus atributos essenciais). Mas se temos alguma conexão
com elas seria em um canto de nossa alma que se assemelharia, na geografia de nossa
natureza (alma em corpo e nature-
28
Bunuel, em sua autobiografia Mi último suspiro, disse ao referir-se a Lorca: ”Ele
foi o melhor de todos nós”.

87

za humana), a esse canto do mundo, Andaluzia, e ali, se vivermos a possibilidade


do aparecimento do Duende, isso nos fará sentir e vivificará nossa alma em sua ascese
de morte, ensinando-lhe um morrer dionisíaco.
Hoje em dia se pensa e se escreve sobre a morte no Ocidente e tanto é assim que
este é o título de um livro, quase bestseller, que nos fala acerca da história da morte no
Ocidente.29 Ficamos maravilhados quando os historiadores nos passam a rica imaginação
da morte durante a Idade Média, mas com isso também estão assinalando o que ficou para
trás em relação ao morrer: a morte, tal como aparecia diante do homem ocidental do
mundo católico, era um trânsito para um lugar mais além; e a confissão, com ânimo
reconfortante, era a presença do religioso ou a garantia de um morrer em paz com a
consciência, salvo-conduto para a prometida felicidade do céu cristão. Todas essas
coisas estão hoje em retirada.
Podemos acrescentar a isto que no mundo católico a imagética de paixão e morte,
com a imagem central da agonia, também está em retirada, para não falar no mundo
protestante, no qual brilha por sua ausência. Hoje a morte está nas mãos da tecnologia
médica e já sabemos que o titanismo tecnológico não reconhece a morte. A equação
”memória da morte na alma” é lacunae. Assim, a imagem da agonia parece que sequer
pode ser concebida e é, portanto, desrespeitada. Se no cristianismo religioso não houve
morte em si mas trânsito para outro mundo, na tecnologia cristã já não é nem isso. A morte
aqui perdeu o sentido e até a possibilidade de que se respeite a agonia que torna possível
o aparecimento do Duende.
É por isso que tudo o que nos diz Lorca em sua Teoria e jogo do Duende é tão
importante para o homem
29
Philippe Aries, La muerte en Occidente, Ed. Argos Vergara, Barcelona, HW2.

88

atual, pois são vivências da alma de sumo interesse para ele e, certamente, para a
psicoterapia que, em vez de deter-se em especulações ingênuas e incultas sobre a
infância e o trauma inicial — no fim nascemos como nascemos, nos criamos como foi
possível dentro das complexidades históricas que tocaram a cada um, e funcionamos na
vida com mais de um pé no mistério da natureza que somos —, dá mais valor à morte e
sua imagética que às puerilidades de nascimento e infância, visão esta que nos faz sentir
o esforço dos pioneiros como algo distante. Temos a morte diante de nós, e sentimos, e
pelo sentir sabemos que as relações interiores que temos com a morte nos contam muito
mais sobre nossos conflitos psíquicos, e muito mais ainda sobre a obscuridade
psicossomática que somos, do que todos os rastreamentos redutivos que possamos fazer
sobre nossa infância.
Se ajustarmos mais essas reflexões, que são da psicoterapia atual, à equação
morte-Duende que viemos tratando, abriremos nossa alma para a avaliação pelo sentir: o
spectrum da catarse. É uma grande pobreza que na psicoterapia catarse só tenha sentido
se ligada a confissão. Emoções catárticas aparecem no Duende, assim como na tragédia
grega,30 ante a perfeição de certas formas. Eu limito aqui formas ao dionisíaco. Ivan
Linforth, em seu excelente Desmembramento de Dioniso,31 estabelece que Dioniso
sempre é o corpo. Em qualquer coisa que chamemos psicoterapia, as emoções-catarses
se dão no corporal e são de valor essencial, porque já sabemos que o que chamamos de
corpo psíquico é habitado pelos deuses mais reprimidos pela história: por isso, o que nos
30
Não há dúvidas de que a tourada e a tragédia grega se associam no essencial de
suas formas. Para os dois, medo e pena são emoções básicas (Aristóteles).
31
Ivan Linforth, The Arts of Orpheus, Arno Press, Nova Iorque, Times Co.,
1973.

89

vem dali é de importância capital; coisa que pela psicologia dos opostos
compensaria a repressão histórica do corpo psíquico, procurando equilíbrios
psicossomáticos, tornando possível o equilíbrio saúde-enfermidade.

Em qualquer coisa que se trate hoje em dia e que tenha a ver com as vivências da
alma do homem atual, o importante é se em seu morrer há um toque, umas poucas gotas
de essências dionisíacas, que façam aparecer alegria em seu morrer. E isso, mitológica e
arquetipicamente falando, está em oposição irreconciliável com a máquina infernal
prometéico-titânica e seu surgimento nos tempos atuais: o cientificismo tecnológico.
Mitológica e poeticamente falando, Dioniso e os Titãs são dois aspectos da natureza
humana em oposição irreconciliável, e a imagética é a de um Dioniso em constante fuga,
tratando de fugir, esconder-se e defender-se da agressão e do excesso titânico. A
intromissão do titanismo no morrer, o morrer tecnológico com pretensões médicas de
”prolongar a vida”, nega, ou em todo caso distorce, um morrer que poderia dar sentido a
toda uma vida.
No Prometeu de Esquilo, o titã Prometeu diz claramente: ”Eu fiz com que os homens
se esquecessem da morte”. E isso nos fala da depreciação titânica pelo morrer. Bem, isso
já sabemos e também sabe qualquer pessoa, já que é notícia da atualidade, coisas dos
jornais e da conversa mais coloquial. E se podemos entender a intromissão ou a agressão
do Titã em algo que não lhe pertence, o mais difícil de entender, e o que aparece como
camuflagem e dissimulação do horror, é quando começamos a ouvir falar de morte (falar
e dar conferência sobre a morte em alguns círculos está em moda) com o mesmo
aborrecimento daquelas mil conferências a que se refere Lorca em seu escrito. Assim,
ouvimos coisas como as prescrições de ”morrer aceitando a morte com naturalidade”, ou
HO pretende ensinar e aprender a ”manejar” a morte, como

90

se se quisesse minimizar a importância do assunto; ou nos dizem que não devemos


ter medo do morrer. Dioniso é igual a Hades, disse-nos Heráclito, e Dioniso é o único deus
que sente medo e não o oculta, mas o manifesta. Porém medo como emoção trágica que
nos conecta e vivifica, não como defeito nem covardia.
Cada arquétipo tem uma concepção distinta da morte; e isso seria uma limitação
arquetípica que deixa de um lado a vivência íntima da maravilha alquímica que é cada ser
humano. E com isso trato de distinguir as diferentes concepções religiosas do morrer,
cada uma de acordo com as formas do deus que a rege.
Voltemos ao Duende e à equação lorquiana, segundo a qual onde há o Duende há
morte. Porque: quem duvida que nos processos de morte ou no transe de morrer — o
momento supremo — se dêem os movimentos propícios para o aparecimento do Duende
e que ali esse aparecimento do Duende esteja nos dizendo o que pertence a seu
momento? Isso que a tradição e os filósofos chamam ”sentido de vida” pode estar
preservado pelo mais profundo das iniciações dionisíacas, só para ser sentido no
momento do morrer e em estado de Duende... ”O Duende não chega se não vê
possibilidades de morte, se não sabe que ela há de rondar sua casa, se não tem segurança
de que há de mexer nessas raízes que todos levamos e que não têm e não terão consolo.”32
Isso pertence à divina intervenção: Dioniso fazendo sua epifania no tempo que lhe
pertence e aí não podemos interferir, pois, ante a divindade como mortais que somos, só
podemos aceitar a sua intervenção. Mas, como mortal, a única coisa que me atrevo a dizer,
de maneira taurina, com algo de Duende e a partir do conflito e com medo, é que ”se fará
o que se pode”.
32
Federico Garcia Lorca, op. cit., p. 117.

91

CONSCIÊNCIA DE FRACASSO

Para Adolf Guggenbühl-Craig

Em um mundo em que só encontramos proposições e fórmulas cujas metas são o


sucesso, escrever algo que leve o título ”consciência de fracasso” põe quem o escreve
em posição diametralmente oposta às demandas prementes da consciência coletiva.
Porém isso que tratamos de refletir é produto de um movimento psíquico sobre o que nos
pressiona interiormente para que o conheçamos e o tornemos consciente — isso que aqui
chamo consciência de fracasso. E o fracasso, como tema a ser discutido, está fora das
inquietudes de nosso tempo. O fracasso e o que lhe diz respeito está fortemente
reprimido; é como se isso fosse a última coisa de que gostaríamos de nos inteirar.
A consciência de fracasso é algo que vem me rondando há anos. O assunto, sem
dúvida, tem a ver com minha prática como psicoterapeuta. É como se a partir de meu
trabalho me fosse um pouco mais fácil imaginar que se alguém vem me ver e falar comigo,
em outras palavras, entrar em terapia, é porque algo fracassou em sua vida: os moldes
em que vivia já não funcionam, fracassaram, desmoronaram. Isto é, na psicoterapia a
pessoa que se encontra na minha frente está vivendo um fracasso e, apesar dos níveis
superficiais em que às vezes aparece, usualmente esconde complexidades insuspeitadas.
Uma coisa é chamar isso de fracasso e mover-nos para a cons-

92

ciência dele e outra coisa é chamarmos eufemisticamente de crise ou algo do tipo,


com a desculpa redutora de que é uma crise que pode ser resolvida com facilidade,
quando na realidade está alterando uma vida inteira; e nem sempre esse fracasso ou essa
crise promove uma reorientação ou um novo sentido do viver. Desde há uns quatorze ou
quinze anos, durante meus estudos e em minhas discussões de casos e treinamentos
com outros psicoterapeutas, incluí na semântica psicoterapêutica frases do estilo de ”sim,
a psicoterapia de alguém está em andamento, mas falta muito e sobretudo lhe falta
consciência de fracasso”. Como se o que faltasse na relação psicoterapêutica fosse
precisamente isso que chamamos consciência de fracasso. Então, que alguém tenha
sofrido um fracasso em sua vida e como conseqüência venha para a terapia, não quer
dizer que perceba nem remotamente esse fracasso e, muito menos, que se aproxime dele
como sendo um veículo propiciador que o mova para isso que chamamos consciência de
fracasso. Muitas vezes pode ocorrer que as expectativas do paciente são de que a
psicoterapia respalde e reforce suas fantasias de sucesso. E também ocorre, e é o pior,
que grande parte da psicoterapia atual se reduz a apoiar a devoção unilateral do sucesso
em que tem vivido o paciente, purificando-o redutivamente de tudo o que se oponha ao
sucesso como meta pessoal e coletiva. Apesar de ter-me referido a essas idéias pelo
menos durante os últimos quinze anos, e com a segurança de que têm estado em mim por
muito mais tempo, nunca antes me atrevi a expô-las, como se o assunto se negasse a ser
tratado. Se bem que tenha usado o termo de maneira coloquial, isso não quer dizer que
esteja claro para mim. E mais: se ao paciente lhe custa aceitar ou mesmo pronunciar a
palavra fracasso, ao psicoterapeuta ocorre o mesmo. Se existe consciência, é melhor que
a chamemos certa consciência, ou intuição, descartando toda preten-

93

são de clareza e aceitando a obscuridade que tem. Pode ser que nisso sejam os
psicoterapeutas os mais aptos para entender o que quero dizer, já que me parece muito
insensato o psicoterapeuta que se identifique com os seus ”sucessos” e tem uma atitude
triunfalista, pois, se age assim, não terá outro remédio senão o de identificar-se também
com os fracassos, a não ser que divida essa mecânica de sucesso e fracasso como quem
divide uma maçã e conceba ingenuamente que os sucessos são seus, e os fracassos, do
paciente. O modelo que proponho apareceu em meu livro Hermes e seus filhos: é o do
psicoterapeuta que está a serviço de um processo regido por arquétipos consteíados na
psicoterapia; arquétipos através dos quais a natureza humana se expressa
psiquicamente, e num processo em que nem sempre há uma concordância do tempo
interno e externo na relação terapeuta-paciente. Duas alquimias distintas e de
complexidades insondáveis e que ainda assim tornam possível o suceder
psicoterapêutico.
A resposta ao porquê de o fracasso negar-se tanto a ser reconhecido deve ser
procurada nas complexidades da natureza humana, dentro das quais colocamos o que
podemos conhecer como estudos de psicologia, com toda sua infinita e infernal
terminologia, pois tudo isso que cai dentro da terminologia psicoterapêutica como
Consciência, Espírito, Persona, Psique, Alma, Inconsciente etc. são concepções que em
todos os casos pertencem à natureza humana, dona ainda de maiores complexidades e
mistérios. Se há uma luta por uma consciência, esta consciência seria produto de uma
batalha dentro das complexidades dessa natureza, consciência de nossa natureza, e não
algo mais abstrato. Eis o ponto crucial, do qual nós, psicólogos, não podemos olvidar.
Não percamos de vista o fato de que, tratando com o chamado material psicológico,
estamos tratando da natureza humana.

94

É fácil constatar na história que família, sociedade e o coletivo exigem e se


interessam somente pelo sucesso. É como se, na confusão criada pela necessidade de
sobreviver, o sucesso fosse o mais extremo do pólo luminoso que viveu o homem
ocidental. Polarização que deixou para trás o pólo oposto, no qual ficou sepultada grande
parte de nossa natureza; sem nos dar conta de que só podemos sobreviver se estivermos
conectados com nossa natureza, se permitirmos que ela seja a guia de nossa
sobrevivência. Por isso, se nos esforçássemos em criar consciência de fracasso,
estaríamos mais dispostos a entendê-la como uma consciência compatível com algo que
está obscuro: o sofrimento em uma parte de nossa natureza que tem sido rejeitada. Visto
a partir da polarização da consciência coletiva, o que tem a ver com o termo fracasso está
reprimido e descartado: o coletivo demanda apenas o sucesso. Demandamos sucesso e
a demanda de sucesso é imperiosa, tanto que se deve vencer custe o que custar,
transpondo quaisquer barreiras, sejam quais forem. O único lema é o sucesso, e
freqüentemente sucesso feito dever. Se a demanda é o sucesso a todo custo, o sucesso
converte-se em automatismo, passando a ser lema e se torna um complexo autônomo; e
assim o sucesso não precisa estar ligado às possíveis delimitações de cada um nem a
nenhuma realidade terrena: necessitamos ter sucesso em qualquer coisa e a qualquer
preço. Quando, por causa dessa demanda, caímos na repetição de que temos de vencer,
”seguir em frente”, que o sucesso está no futuro, entramos num estado fantasioso que
nos faz sentir merecedores do sucesso.
Já nesse extremo, perdemos contato com toda possível reflexão e qualquer coisa
que compreendemos por sucesso torna-se irreflexão, o que nos afasta dos padrões
básicos da realidade terrena. O que chamo ”realidade terrena” vem de um termo que foi
incorporado desde prin-

95

cípios do século aos estudos de psiquiatria por Jung, que notou que nos pacientes
psicóticos e esquizofrênicos havia uma falha, que Janet denominou function du reel. No
que convém a este ensaio, desejo manter a mesma acepção e uso que lhe deu Jung em
seus trabalhos sobre psicose e esquizofrenia, para que nos sirva de pano de fundo em
que possamos ver o elemento de loucura que tem o que aqui chamo carência de realidade
terrena. Uma loucura não encontrada na maioria das vezes em hospitais psiquiátricos,
mas uma loucura que se faz patente na visão que nos oferece a autonomia triunfalista no
mundo em que vivemos. De qualquer forma, não é difícil de aceitar que essa falta de
realidade é parte da chamada personalidade normal, mas que somente é diagnosticada
como tal ao irromper em grande escala, alterando então a personalidade. É assim que a
conseguimos observar e registrá-la. Dado que essa realidade psíquica existe como
”normalidade”, dependerá dos critérios de quem observa estabelecer o que a afeta física
e psicossomaticamente e se ela toma parte no equilíbrio da saúde e da existência dessa
”normalidade”.
No que chamamos consciência coletiva e suas demandas não entra a possibilidade
de fracasso. Quando acontece um revés que poderíamos sentir como um fracasso do qual
aprender e refletir, fugimos desse revés rapidamente com o pretexto de outra fantasia fútil,
indo irremediavelmente ao encontro de outro fracasso; pois o que possivelmente nos
preveniria de novos fracassos seria tomar consciência deles: o fracasso provendo
reflexão. Mas não, a demanda de sucesso é tão avassaladora que não nos prove do tempo
nem do ritmo interior necessário para que a reflexão seja possível. A demanda de sucesso
como um complexo autônomo nos impele à repetição. Entre as grandes contribuições da
psicologia deste século está a teoria dos complexos, que nos diz que complexo (pedaço

96

de história) sobre o qual não se reflete e do qual não se l.oma consciência, repete-
se e aparece em nós potencializado e de maneira hipertrofiada.
Nas etapas da infância e adolescência, a dinâmica psíquica é de concorrência
competitiva e triunfalista: sucesso nos estudos, nos esportes, entre o grupo de amigos,
na vida. A competição, a rivalidade, a inveja, a concorrência têm na adolescência sua idade
biológica legítima e é campo no qual o sucesso e as fantasias triunfalistas imperam. Essas
fantasias do adolescente abrigam certo futurismo que é próprio dessa etapa: terminar a
faculdade, casar-se, fazer pós-graduação, constituir família e ter sucesso na vida. Estas
são fantasias e projetos constitutivos da psicologia dessa idade e são válidos, ainda que
muitos tenham de refazê-los antes de chegar aos trinta anos: o casamento fracassou, o
sucesso na profissão não é tão fácil como se supunha, e se evidenciam sinais inequívocos
de depressão e inclusive de destruição, com uma imagem totalmente oposta à triunfalista.
Assim, as fantasias e projetos que são importante combinação na média dos
adolescentes (saiba o leitor que deixo de lado muito de destrutivo que tem a adolescência)
algumas vezes passam para a via adulta. Elas se perpetuam no ser humano e vemos
homens na idade adulta, no final dos trinta ou já na casa dos quarenta, ou até depois dos
cinqüenta anos, vivendo a mesma fantasia que talvez fosse válida na adolescência. Querer
ter os mesmos impulsos e igual velocidade de antes deixa-nos claro que houve falhas,
paralisia no processo de iniciação psíquica para a vida adulta.
Estes processos a que me refiro aqui foram vistos a partir da perspectiva
evolucionista por William Sheldon, que escreveu sobre isso nos anos anteriores à
Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo que discutia em Zurique com C. G. Jung estas
noções. Referindo-se a William

97

James, Sheldon nos diz: ”Ele descobriu que um crescimento mental é algo muito
raro nas últimas décadas da vida; que um intelecto maduro aparece como uma
curiosidade”. Trinta anos depois Sheldon dirá:
Hoje em dia a situação é aparentemente pior. Os dias de juventude às vezes pululam
com sonhos prematuros, planos enobrecedores; mas a mente humana aos quarenta anos
está comumente atrofiada, morta, com suas melhores horas mal aproveitadas,
freqüentemente envenenada com álcool ou drogas. Mas ainda existem alguns que
progridem para um completo crescimento mental. Aos vinte anos não sobressaem
particularmente em nada, exceto em que eles com freqüência se mostram socialmente
imaturos para sua idade. Mas ao trinta e cinco anos ou quarenta anos nos damos conta,
por meia dúzia de sentenças, de que aqui existem mentes ainda vivas. A filosofia é por
tentativas e sensitiva, os interesses estão em expansão e há desejos de novos
conhecimentos.
As pessoas que mostram essas qualidades na meia-idade se inclinam a continuar
seu desenvolvimento mental pelo resto do caminho, às vezes mostrando avanços e
competências ainda nas décadas finais. Para elas, um ano nos setenta e oitenta pode ser
valioso, com realizações tanto afetivas como cognitivas, muito mais que um ano de
juventude. Estes poucos vivem mais para a segunda metade da vida do que para a
primeira. Eles se mostram mais felizes e intrinsecamente mais fortes na velhice do que na
juventude. Suas vidas sugerem uma nada fácil intuição que nos diz que onde a juventude
é um desproporcional período feliz, a vida pode ser um grande fracasso.
Assim, pois, o que aqui estamos tratando pertence ao espírito da idade, na qual
existe mais do que uma consciência que sabe apreciar o fracasso como fonte de nova
consciência. Assim, a educação, a academia, a universidade são espaços regidos por
Apoio, o deus que personifica a unilateralidade do brilhantismo e da visão do sucesso que
domina a vida. Não obstante, conheço um senhor,

98

professor universitário norte-americano, que dá seminários sobre Planificação. Mas


para aceitar o estudante nesses seminários, é necessário que o aspirante lhe demonstre
que fracassou em algo e compreenda que haver falhado e aceitado a falha demonstra
aptidão. Ele me explicou que se a Planificação é por si algo tão abstrato, tão acelerado,
com uma visão sumamente apolínea, e que leva para uma visão global e por isso tende
para uma inflação psíquica, o mínimo que se pode pedir ao aluno que a estuda, e como
credencial indispensável e compensatória, é um fracasso. E podemos entender o
fracasso, nesse exemplo, como uma âncora que conectaria o estudante à realidade
terrena.
Assim também nos estudos de psicologia e de psicoterapia — e me refiro
especificamente à experiência no Instituto Jung de Zurique —, aqueles que resultam
serem os piores psicoterapeutas e os mais enfadonhos em suas concepções e ensaios, e
que pouco acrescentaram para os estudos com suas contribuições pessoais, são
precisamente aqueles estudantes cuja inscrição no Instituto se baseou em seleção de
curriculum vitae summa cum laude, isto é, que entraram para estudar psicologia a partir
de um ângulo brilhante e triunfalista, sem que no decorrer de seus estudos e psicoterapia
tivessem corrigido essa unilateralidade. Isso é um defeito grave em uma psicologia que
se baseia sobretudo na leitura da imagem que tem diante de si e do conteúdo inconsciente
que a acompanha. Esta é uma psicologia que necessita aprender do lado mais obscuro,
do lado oposto e reprimido, e ter consciência bem disposta para reconhecê-lo e valorizá-
lo. Talvez hoje essa qualidade seja mais importante do que nunca, pois os escritos de
psicologia junguiana se moveram, depois da morte de Jung, do mercurial espiritual, que
era característico do mestre de Zurique, para o mercurial ctônico, terreno e
99

subterrâneo. Por isto entendemos os movimentos herméticos cuja dominante é o


gravitacional: um Hermes que nos aproxime mais das intuições exploratórias do
inconsciente como corpo humano e natureza.
Existem três elementos fortes na natureza humana: o Puer Aeternus, a histeria e o
componente psicopático, que têm a aceleração como traço dominante de sua expressão,
traço intimamente ligado à irreflexão. Quando os três elementos dominam a
personalidade, esta termina identificando-se com eles, perdendo a capacidade de mantê-
los à distância que permitiria o estímulo à reflexão. Aqui consideramos a reflexão como
um dos cinco instintos que, segundo Jung, habitam o ser humano, a saber: fome,
sexualidade, fazer coisas, reflexão e criatividade. Temos de diferenciar o instinto de
reflexão do que se chama reflexão espiritual; esta consiste em refletir dentro dos limites
de uma tradição religiosa e dentro das normas de vida do que chamamos ”homem
civilizado”. A reflexão a que me refiro aqui, a instintiva, é central na psicoterapia
junguiana, psicoterapia que se apoia nas bases instintivas da reflexão. Em nossos dias,
Alfred Ziegler, referindo-se a ela, disse: ”é, com efeito, hermenêutica, a arte das
interpretações fenomenológicas, e tão fácil como difícil. A um só tempo, parece ser a coisa
mais simples e a mais complexa do mundo”.1 Porém é preciso um mínimo de tempo para
que a reflexão ocorra, e que esse tempo considere o ritmo interno, a lentidão em que a
reflexão acontece. E isso só é possível dentro das complexidades da natureza de cada
um.
Os três elementos que vamos discutir são vistos como parte integrante da natureza
humana, provocam hybris (transgressão) e, como assinalamos, são de difícil refle-
1
Archetypal Medicine, trad. Gary V. Hartman, Spring Publications, Dallas, l!w:», p.
45.

100

xão. Dois deles são arquetípicos: o Puer Aeternus e a histeria, e por isto
entendemos que pertencem a configurações arquetípicas de nossa natureza; enquanto o
terceiro, o componente psicopático da personalidade, mesmo não sendo arquetípico, não
tendo formas que o contenham, também pertence à natureza humana. Esses três
componentes podem ser estudados e vivenciados de várias maneiras. Em muitos casos,
os três se confundem e ocorre de observarmos pacientes em psicoterapia ou
personalidades do mundo em que vivemos que apresentam uma verdadeira confusão
destes três componentes. Em outros, um dos componentes destaca-se do resto. Outros
casos, quando temos observado com tempo suficiente, começaram em sua juventude
com a dominante do Puer reforçada em excesso por hístrionismos histéricos e depois, na
maturidade, caíram no repetitivo psicopático.
O Puer Aeternus, o eterno adolescente, rege arquetipicamente a vida da criança e
do adolescente. O Puer, com seu brilho e velocidade, aparece em estudos arquetípicos de
distintas maneiras: para os fins que aqui interessam, em oposição ao Senex, isto é, à idade
senil, com suas limitações pela idade, sua lentidão, sua doença cronológica, sua
existência no umbral da morte. No que concerne a esse trabalho, devemos deixar de lado
a sua relação com a mãe. Mas temos sempre de levar em conta que por mais evidente e
complexa, conflitiva e caótica que seja, a relação do Puer com a mãe é arquetípica e, por
isso, incomensurável. Vista assim, é uma relação que contém as infinitas possibilidades
que lhe confere essa ordem, e isso também deixa claro o absurdo de qualquer redução.
Sabemos que mãe e filho são figuras centrais na religião e tema de estudos de religiões
comparadas. Essa criança que contemplamos no altar nos braços da virgem mãe é o Puer
Aeternus como nos oferece o cristianismo. Às vezes, a

101

criança sustenta em sua mão, como atributo simbólico, uma bola coroada com uma
cruz. Essa criança em seu relacionamento essencial com sua mãe, fato central no mundo
religioso e também em nossa psique e corpo emocional, é a versão cristã transformada
daqueles Pueri das mitologias da antigüidade, amantes da grande mãe: Tamuz, Ormu,
Marduc na Mesopotamia, Adonis na Fenícia, Átis na Ásia Menor e Osiris no Egito. No
legado clássico grego, Kerényi e Jung trabalharam o Puer levando em conta que todos os
deuses eram Pueri, crianças divinas. A criança divina é central na cultura do Ocidente e,
se é central tanto religiosa como psiquicamente, é central, certamente, na patologia do
homem ocidental. E assim vivenciado sentimos nele uma longa e profunda história, pano
de fundo dos complexos que todos carregamos.
Para o que nos interessa, temos de abranger outros opostos, Puer-Senex:
juventude-idade senil. Visto assim, o Puer e o Senex formam um arquétipo de duas
cabeças, em uma polaridade essencial, que os torna um e o mesmo, dois lados da mesma
medalha, pois não existe um sem o outro; não existe Puer sem Senex nem Senex sem
Puer. Dessa maneira, são considerados em estudos junguianos sobre os arquétipos em
sua polaridade essencial. Para nossos propósitos, eles correspondem a pressas e
velocidades juvenis e a lentidões e limitações da velhice; marcam o calendário da vida,
isto é, fazem-nos sentir, com maior ou menor exatidão, nossa idade cronológica e nossa
idade psicológica. Estão ajustando constantemente a velocidade tanto psíquica como
física de nossa vida. Outra manifestação ocorre quando dominam a personalidade, que
então cai na limitação estreita de ver quaisquer outras possibilidades de vida somente a
partir da consciência Puer/Senex. O domínio do arquétipo Puer /Senex bloqueia
completamente qualquer acesso

102

a outra forma arquetípica de vida e, na psicoterapia, demonstra a imagem repetitiva


e patética lembrada por Sheldon de uma vida passada solitária nos limites do modelo e da
retórica do Puer j Senex.
O Puer nos faz sentir que na adolescência existe uma velocidade mental que, entre
outras coisas, torna possível que o homem aprenda o que tem de aprender nessa idade e
que aparece na curiosidade de descobrir o mundo. Isso é estudado como uma velocidade
na consciência que permite fazer as múltiplas conexões que são o deleite, o
enriquecimento, o inebriamento e a fantasia do adolescente. Isso produz a maravilha e o
êxtase, a partir dos quais os vôos mentais do Puer lhe permitem fantasiar que tem ”o
mundo nas mãos”, mas também que veja os homens de maior idade como lentos,
caducos, incapazes. Aqui já sentimos o problema mais imediato do Puer quando aparece
muito polarizado: que é tremendamente inconsciente do Senex, o outro pólo que traz
dentro de si; e tão inconsciente que geralmente o projeta, tratando de invalidar o que não
pertença a seu tempo e ritmo interno, o que não caia dentro do ”novo” de sua fantasia.
Também isso nos diz, e é algo que devemos ter muito presente, que se o Puer tem
essencialmente em sua natureza essas velocidades de vôo da consciência, quanto mais
veloz for sua consciência, mais lentos serão os elementos do Senex que habitam seu
inconsciente. O problema central do Puer é que sua mente atua em velocidades tais que
não consegue sentir a força gravitacional necessária à conexão com os arquétipos cuja
velocidade difere da sua; nem sente, por certo, a força gravitacional dos deuses ctônicos,
os quais se colocam em oposição exclusiva ao vôo do Puer. Vôo e liberdade são inerentes
à natureza do Puer. Marie-Louise von Franz brindou-nos com uma imagem do Puer
volante, em sua interpretação do Pequeno Príncipe de St.

103

Exupéry,2 obra-prima no tratamento desse aspecto do arquétipo, ao nos mostrar


uma concepção do vôo do Puer transformado em arte. O Pequeno Príncipe, vivendo lá em
cima, em seu mundo de asteróides, fornece uma imagem dramática e desolada de alguém
que está desligado da terra, daquele que não tem conexão alguma com o que aqui
chamamos realidade terrena.
Essa imagem vinda da arte literária podemos transportá-la ao quadro psicológico
que realça a superfícialidade da psicologia àoPuerAeternus: o psicólogo cuja natureza o
impeliu a permanecer a vida toda possuído pelo arquétipo do Puer. Uma pessoa assim
entende os estudos de psicologia, e a prática da psicoterapia, apenas mediante os
conflitos das tantas teorias pelas quais passou, lançando-se invariavelmente na teoria
mais atual e em voga, esquecendo que, como dizia Jung, a psicoterapia é praxis.
Fôssemos ver as coisas em termos de teoria, cada paciente precisaria de sua própria
teoria. O psicólogo Puer jamais discute a psicologia do corpo, o que nos leva a indagar:
”Como alguém, cuja consciência move-se nessa velocidade e que está polarizado assim
nas alturas, consegue falar ou escrever acerca do corpo, tema tão oposto aos seus vôos
e idéias?”
com o que expus até agora, creio que o leitor facilmente imaginará que o Puer
Aeternus vive hoje sua idade de ouro, com concretizações que vão muito além de seu vôo
psíquico, o que lhe assegura um futuro promissor. Vivemos em uma época de vôos
espaciais e o futuro promissor do Puer projeta seu olhar na guerra nas estrelas, guerra
que pouco tem a ver com os conflitos terrenos, guerra que será vencida ou perdida no
âmbito solitário do Puer.
2
Cf. trad, bras.: Puer Aeternus - A luta do adulto contra o paraíso da infância,
também na coleção ”Amor e Psique” de Paulus Editora.

104

A psicologia do Puer se desenvolve numa velocidade tal que não pode conectar-se
com o aspecto gravitacional da terra, com as lentas velocidades terrenas. Para que as
altas velocidades do Puer toquem a terra, é necessário um processo de descida, planar
pouco a pouco até que haja uma reconciliação com a realidade terrena. Isso é o que
deveria ocorrer ”em um caso normal”, porém muitas vezes a descida se dá bruscamente;
algo ocorre na vida do Puer que o força para as lentas velocidades terrenas e a confrontar-
se de um dia para outro com a realidade terrena que sua natureza tratou
desesperadamente de evitar. Esse reajuste brusco estará isento de traumas muito fortes
e profundos ou de dolorosas mudanças na personalidade. Mas nem sempre acaba nisso,
pois, às vezes, a psicologia do adolescente se perpetua além dos limites fixados pelos
ciclos da natureza. com o respaldo de sociedades nas quais predominam perigosamente
os ideais juvenis, toda a fantasia e imagética se projetam a partir do âmbito do
adolescente; assim temos hoje em dia sociedades nas quais desde o comer, o vestir, a
estética pessoal etc., todo o viver é regido pela fantasia e imagética do adolescente. Mas
sociedades em que predomina o adolescente como ideal coletivo e individual não
consideram o seu pólo terreno oposto, e quando o fazem, geralmente de maneira
destrutiva.
Não obstante, o eterno adolescente está em todos nós e cumpre uma função em
nossa vida psíquica; e, além disso, sua esfera de criatividade tem sido estudada, e tem se
manifestado em certos gênios: recordemos Heisenberg, aos dezenove anos, tomando sol
no telhado de sua casa em Berlim, nos tempos da República de Weimar, quando lhe veio
sem mais nem menos, acompanhada por disparos antitumulto, a teoria da indeterminação.
Recordemos também a Rimbaud, que na idade de dezenove ou vinte anos já havia escrito
sua obra poética. E tanto na ciência

105

abstrata como na poesia as velocidades psíquicas do Puer podem fazer aparições,


assinalando uma personalidade criadora desde bem cedo; mas nem todas as atividades
do ser humano se prestam para o aparecimento espetacular do Puer.
Assim, se entendermos o estudo da psique não somente em relação às teorias já
existentes, mas considerarmos também sua relação com o processo de formação
psíquica da pessoa dedicada a esse estudo, a contribuição que oferece o brilhantismo
adolescente é mínima; dizer que aos dezenove ou trinta anos uma pessoa é um gênio da
psique é um escândalo, e um escândalo monstruoso, já que o estudo da psique necessita,
entre outras coisas, da experiência psíquica e da reflexão da pessoa que a estuda. Isso é
”fundamental e só é possível no decorrer de uma longa vida. E mais: os estudos de
psicologia oferecem material in vivo daqueles que começaram a estudá-la muito jovens,
sem o respaldo da experiência de vida. Atacaram a psicologia já existente e seguiram
estudando com pretensões de chegar a produzir novas teorias com seguidores e escolas,
tratando de aplicar-lhes modelos titânicos de panacéias incrementadas e revolucionárias.
Mas já vivemos o suficiente para ver como grande número deles permaneceram atolados
naqueles impulsos juvenis, e como sua própria psique não foi mais além; como aqueles
estudos não progrediram além da intuição com a qual o Puer os concebeu e agora, em
sua idade madura, só oferecem uma repetição lamentável das idéias que conceberam
quando jovens.
Tentei dar ao leitor uma visão sumária que se ajuste ao interesse deste ensaio, de
algo cuja condição arquetípica é incomensurável e central na história das religiões e da
cultura, mas que também é inevitável em cada um de nós. Todos fomos crianças e
adolescentes. E, ainda que tenha assinalado os elementos de irrealidade e

106

destrutividade do Puer, isso não significa que menosprezo e desvalorizo esse


nosso componente psíquico. Assim como assinalei as conseqüências fatais que
acontecem quando se perpetua além do devido como dominante psíquico da
personalidade, também devo mencionar que a natureza lhe outorgou uma importante e
específica função em nossa maturidade e velhice, sempre quando estas forem vividas na
realidade da idade que lhe corresponde. Por ser arquétipo, o Puer nos acompanhará até o
fim de nossos dias.
Antes nos referimos a Sheldon e sua visão evolucionista relativa às etapas da vida;
agora darei sucintamente a visão junguiana. Jung era muito consciente da importância do
Puer, e a Escola de Zurique trabalhou muito nesse assunto. Foi o próprio Jung quem
começou os trabalhos sobre o estudo do Puer e ao longo do seu trabalho fez muitas
referências à imagética doPuerAeternus. Viu que, nos casos em que se nota uma
maturidade e velhice mais plenas, observam-se o papel e a função do Puer em harmonia
com as idades que se vive. Mas os estudos básicos sobre o Puer se devem a Marie-Louise
von Franz, e me baseio em suas contribuições no que aqui estou dizendo. Acrescento,
porém, que onde ela viu o lado negativo e destrutivo do arquétipo do Puer, eu situo a
psicopatia. A psicopatia, vista isoladamente, carece dos vôos mentais e da imagética do
Puer. Para mim, a relação é de mimetismo. O psicopata mimetiza as idéias infladas do
Puer, tanto no pessoal quanto no coletivo, sendo a história um vivo exemplo deste último.
Mencionamos antes que na adolescência e na juventude o Puer aparece com uma
consciência muito rápida e um inconsciente muito lento, impossibilitando-o de dar forma
ao que lhe vem à consciência na realidade de uma forma terrena (aqui as palavras
consciente e inconsciente devem ser tomadas didaticamente; a primeira tem a ver

107

com tudo o que cai dentro dos limites de nossas representações mentais, e a
segunda ao que está reprimido, seja no campo pessoal ou coletivo, ou ainda naquilo que
está esperando para ser vivido). Mas ao longo da vida, até chegar a uma maturidade e uma
velhice que se considerem produtivas, observa-se um movimento rotativo e lento desses
opostos. E onde antes havia velocidade na consciência, esta começa a tornar-se mais e
mais lenta, até obter uma lentidão adaptada ao ritmo do evento psíquico que vem de dentro
e ao evento com o qual depara no mundo externo. A consciência diminui sua velocidade
porque o Senex a está ocupando gradualmente e, enquanto isso ocorre, as velocidades
da consciência do Puer vão se movendo para ocupar um papel importante no
inconsciente. Assim, podemos imaginar como ao longo da vida as imagens do Puer e do
Senex, no ritmo de um relógio de areia, invertem-se e nos oferecem outra realidade vital
na maturidade e velhice: a de uma consciência lenta, lentíssima, mas um inconsciente
rápido e ativo que é capaz de conectar-se com a memória nele armazenada, na velocidade
necessária para isso. O processo de iniciação na segunda metade da vida, o que Jung
chamou metanóia, é de importância capital para nossos estudos, pois nunca devemos
esquecer que as mudanças na metade da vida é que dão perspectiva, dimensão e
profundidade à concepção junguiana de vida e, é claro, à psicoterapia. É isso que preserva
a visão analítica de fixações causais.
Se creio ter dado ao leitor os elementos do eterno adolescente funcionando no
momento em que lhe pertence, enriquecendo a vida ou querendo se perpetuar além de
seu tempo arquetípico, emperrando uma personalidade por excesso de identificação com
esses elementos, quero agora referir-me a outro elemento psíquico arquetípico que
distorce a personalidade e indica aceleração psíquica. Este componente se caracteriza
por não encorajar descobertas

108

em uma relação mais profunda com os complexos, que representam a possibilidade


de uma consciência mais madura; ao contrário, bloqueia o acesso à consciência de
fracasso.
Os estudos de psicologia do nosso século, um século que sente a necessidade das
explorações psíquicas, começaram precisamente com os estudos sobre histeria. Não you
me referir aqui a Charcot, que atraiu para o seu estúdio em Paris as melhores cabeças do
fin de siècle, por não ser de interesse para os propósitos deste ensaio e, afinal, o
compêndio histórico é bem conhecido e não tem grande importância. O que desejo é
tomar dentre as muitas concepções sobre histeria uma que veio a Jung sob a forma de
imagem por volta de 1908. Jung nos disse que a histeria é como uma plataforma em que
todos os acontecimentos são rebatidos, impedindo que estes passem aos complexos,
ativando-os ou animando-os, movendo e tornando possível a vivência psíquica,
transformando-os em experiência. Essa imagem já nos dá uma primeira impressão de
superficialidade, porque tudo o que acontece fica na superficialidade que essa histeria é;
não chega a tocar mais profundamente nos fragmentos da história pessoal nem da história
do homem sobre a terra. Essa imagem também nos faz sentir — se o leitor aguçar sua
imaginação — uma velocidade, velocidade que precisa ser desenvolvida por aquele que é
dominado pela histeria, porque precisa ficar rebatendo constantemente na superfície
dessa plataforma histérica, nessa superficialidade, sem ter relação com conteúdos
psíquicos dos quais nutrir-se e que não sejam histeria.
Desde que Jung escreveu isso, os estudos sobre histeria se multiplicaram, e hoje
podemos dizer que o emaranhado infinito que esses estudos formaram não levaram em
conta o ponto de vista histérico dos que a estudavam. Isto é, não se contava com as
próprias projeções histéricas sobre o que se estava estudando.

109

A histeria hoje é vista e estudada como um componente arquetípico e, portanto,


pertence a todos nós, homens e mulheres. com isso deixamos de lado a misoginia que
dominou em grande parte esses estudos e que fazia ver a histeria como um mal que atingia
só às mulheres. Dizer que a histeria é arquetípica e, portanto, ter de aceitar que todos
somos histéricos em intensidade variável, devemos isso aos estudos de Neil Micklen.3
Não you estender-me aqui nas complexidades de seu estudo, pois estaria fora dos
propósitos. Meu interesse para os efeitos desse trabalho requer que me restrinja a
assinalar a histeria como bloqueando o acesso à consciência de fracasso; ainda assim,
quero referir-me ao elemento arquetípico mais evidente e objetivo da histeria, que é a
sufocação. Esse elemento foi diagnosticado no século XVI pelo médico inglês Edward
Jordan, em sua obra Breve comentário de uma doença chamada sufocação pela mãe. Sua
descrição da histeria como sufocação da filha pela mãe baseou-se em caso real, o de uma
menina de quatorze anos que havia sido enfeitiçada por uma velha. Mas foi seu trabalho
que colocou Micklen na pista do estudo arquetípico da histeria. E assim, pela leitura por
analogia da imagem do mitologema da mãe e da filha, DeméterPerséfone, o trabalho de
Micklen contribui para uma melhor abordagem de um componente psíquico que está em
todos nós das mais diferentes formas e que, portanto, aparece em nosso dia-a-dia de
inúmeras formas, e que também pode dominar uma patologia específica.
Sabemos que o estudo da histeria apareceu já nas primeiras civilizações do
Ocidente, Egito e Grécia, e es-
3
Por questões de clareza, os aspectos da histeria de que aqui tratarei vêm de
baseadas no primeiro trabalho de Neil Micklen: ”On Hysteria: The ysterical Syndrome”
(Spring, 1974). Para a perspectiva e os propósitos do presente estudo, esse artigo é mais
do que suficiente. Para uma visão mais ampla e distinta, remeto o leitor aos Essays on the
Nature of Hysteria, do mesmo autor.

110

teve presente ao longo de dois milênios de nossa civilização e, como já dissemos,


foi a condição psíquica que por sua imediata evidência deu início aos modernos estudos
de psicologia profunda. Apesar de ser reconhecida há séculos e ser tão perceptível na
vida, não quero dizer que sempre seja de fácil reconhecimento e muito menos de fácil
terapia. A histeria, por ser arquetípica, é incomensurável e faz parte da natureza humana.
Ela pode aparecer, e aparece, sob disfarces e formas insólitas em nosso dia-a-dia, que
confundem inclusive os que tenham maior consciência dela ou habilidade em detectar seu
surgimento e refletir sobre ela.
O grande médico do século XVI, Thomas Syderham, dizia que a histeria tem mais
formas que Proteu e mais cores que o camaleão, e é capaz de simular qualquer coisa ou
qualquer enfermidade; comumente é chamada de a grande simuladora, chegando até ao
extremo de simular a vida inteira. É difícil, mas não impossível, imaginar que isso que
chamamos viver sobre a terra esteja dominado pela simulação histérica e que quando
ouvimos alguém conclamando a um viver ”autêntico”, detectamos nisso também uma
simulação histérica. Porém nos custa muito imaginar uma vida sem simulação, porque
este é um ingrediente da natureza humana. A histeria, seja ela uma enfermidade que
domina a personalidade ou um componente que todos temos, manifesta-se de maneira
caprichosa, com histrionismos inusitados, mas sobretudo, e o mais importante, é
tremendamente irreflexiva e inconsciente em si mesma. Por irreflexão aqui podemos falar
de estados de identificação que são tão inconscientes que não existe nem a mais remota
possibilidade de que a histeria — seja no estado possessivo dominante e passivo, ou
como componente que aparece de maneira intermitente ou velada, alterando
circunstancialmente a vida — seja de fácil acesso à reflexão do paciente ou de

111

fácil terapia, pois devemos aceitar que não é. A única coisa capaz de mover a
histeria psiquicamente e salvá-la das repetições fatigantes é precisamente o que provém
das mesmas complexidades arquetípicas, misteriosas e profundas às quais a histeria
pertence. Devemos nos limitar a visualizar a imagem arquetípica da mãe e da filha:
Deméter protegendo a sua filha Perséfone de um provável raptor e, nesse proteger,
identificamos a sufocação como causa arquetípica da histeria. O que remete ao
mitologema da mãe e da filha, dando origem à expressão de Kerényi: ”o milagre grego”.
O milagre de haver concebido ritual e iniciaticamente o arquétipo da mãe e da filha: os
mistérios de Elêusis.
Assim, apesar de sua irreflexão, e precisamente por causa disso, a terapia da
histeria deve conter o que mencionamos anteriormente como reflexão, porém sabendo
que o que chamamos reflexão instintiva não tem nada a ver com os clichês com pretensão
de reflexão. Refletir sobre a histeria deve centrar-se em captar a imagem da sufocação,
para que o paciente se familiarize com ela até que se torne mais ou menos psíquica. Isso
só como base psicoterapêutica, porque na realidade a dificuldade da psicoterapia da
histeria como dominante é que ela não permite a possibilidade de que se criem os
opostos, que é onde a psicoterapia começa a tornar-se profunda, a tocar profundamente
nos complexos e na natureza do paciente.
No mitologema da mãe e da filha, aparece como oposto à sufocação da filha pela
mãe o rapto da filha pela divindade subterrânea Plutão-Hades. Na longa lista de raptos do
legado grego, esse é um rapto específico, já que é a própria morte imaginada. É Plutão,
personificação da morte, quem rapta Perséfone. Podemos aqui igualar rapto com morte,
e rapto que aparece na psique como oposto compensatório da superficial polarização
histérica. E isso

112
sim, podemos dizer, é que transporta a vida dos perigos da superficialidade
repetitiva e destrutiva para profundidades em que a vida psíquica pode começar a
participar do corporal, abrindo a possibilidade de uma consciência que já pode tomar
distância da mãe, do que antes era uma identificação histérica sufocante. O rapto é central
na psique e nas origens da cultura.
A lista de raptos nas origens culturais do Ocidente é imensa: o rapto de Europa por
Zeus foi experienciado em seus inícios e em seu reaparecimento no Renascimento italiano
como a essência da religião, não da religião tornada, lei, com suas formas e ritos que a
sustentam, mas como atributo central da vida religiosa. E desse ponto, até o rapto das
Sabinas, em que o mito abre espaço para a imagem externalizada, é o principal
componente da fundação da cidade e da cultura. Sim, quando imaginamos o rapto, não
podemos omitir-lhe os antecedentes primordiais e primitivos, com o fato real do homem
que parte em disparada de sua tribo e rapta uma mulher de outra tribo. Que se tome todo
esse primitivismo como a base mítica do rapto na origem da cultura. O rapto subjaz no
fundo do legado grego; diríamos dele como a fonte do conhecimento psíquico grego, dada
a profusão de suas ocorrências; é fundamental na Ilíada e na Odisséia de Homero, cuja
inspiração original fora o rapto de Helena, rapto cuja intervenção extremamente
complicada da divindade resultou na sedução de Helena por Paris, ela que é a
personificação terrestre de Afrodite.
Agora, o que chamamos rapto psíquico é um acontecimento de profunda
importância na natureza psíquica, que ocorre quando o mito do rapto, neste caso o rapto
de Perséfone por Plutão, acontece na psique; e isso é algo que por sua natureza
arquetípica não é possível fomentar ou induzir e, muito menos, mimetizar. É um
acontecimento na natureza psíquica onde a psicoterapia só pode

113

chegar a propiciar a incubação que o precede e a reflexão do seu suceder. Isso é a


única coisa que compensa a histeria nos casos em que a personalidade apresente o que
patologicamente se considera histeria, ou em casos de possessão; de qualquer maneira,
no mais comum dos mortais o rapto seria o impacto psíquico que deflora a alma e com
isso abre as portas da emoção madura, da emoção que conecta o psíquico à corporalidade
na qual vive e ao sentimento.
Mas no que aqui tratamos a histeria, o rapto psíquico seria o que altera o estado
histérico de uma vida bidimensional, em que a dominante é a repetição infernal, rebatendo
constantemente naquela plataforma que imaginou Jung. Não creia o leitor que com o
acima exposto estamos resolvendo a histeria de uma vez por todas. Não, de jeito nenhum!
O mito da sufocação da filha pela mãe, Deméter sufocando a sua filha Perséfone, e
Perséfone logo raptada por Plutão são episódios centrais, isso sim, mas episódios de
iniciações misteriosas; tanto que formam parte dos mistérios eleusianos, os quais nos
dizem que a histeria pertence a mistérios maiores. E isso nos leva a considerações
maiores de um mitologema que contém em si complexos muito primitivos, arcaicos e
presentes nos quadros clínicos dominados pela histeria e pelas patologias que dela
surgem. Por outro lado, são vivências que a partir do rapto transformam e provocam
movimentos psíquicos.
Podemos vivenciar o lado primitivo da histeria quando a sufocação já não é algo
dissimulado dentro dos padrões da vida, e se torna altamente possessiva. As noções que
nos passa a antropologia nos dizem que em algumas sociedades primitivas os pais
concebem os filhos como sua posse, atitude que pode levá-los até a matar os filhos. E
iflHO já nos dá uma visão da imagem de horror a que os extremos da sufocação podem
chegar. Isso pode nos mos-

114

trar também o pano de fundo de algo que vemos na vida diária e que em psicoterapia
se observa com lente de aumento, quando a sufocação se torna altamente possessiva.
Qualquer psiquiatra ou psicoterapeuta experiente pôde ler mais de uma vez, em situações
semelhantes, a origem de muitas psicoses e esquizofrenias e também o que se encaixa
dentro do termo psicossomático. you me referir ao caso de uma paciente esquizofrênica
de diagnóstico precoce. Quando falei com a mãe, ela me confessou que sua atitude com
a filha foi sempre a de protegê-la e guardá-la ”como se estivesse em uma caixinha de
cristal”. Podemos mencionar essa imagem verbal como exemplo daquilo a que estou me
referindo: a sufocação levada a níveis de possessão primitiva. Mas sem cair nesses
extremos, quem não presenciou alguém em sua função política, de magistério ou outra,
em que a sufocação histérica atingiu níveis possessivos primitivos, deixando
transparecer em seu exercício o toque dimensional que vem dos complexos mais antigos?
Assim, no político que nos dirige, no sacerdote que consola nossa alma, no médico que
cura nossas doenças físicas, no mestre que nos ensina, no banqueiro que negocia com
nosso dinheiro e no psicoterapeuta para quem relatamos os nossos conflitos psíquicos,
em todos se manifesta a histeria com suas múltiplas e às vezes sutis manifestações. Em
tudo que se relaciona ao casal, como instituição básica da vida, bem sabemos que a
histeria está sempre presente, manifestando-se sob alguns pretextos corriqueiros em um
rompante aqui e ali. É escusado dizer que muitas separações se dão quando um dos
cônjuges já não consegue suportar uma vida regida pela histeria. Ao observar por alguns
anos a histeria que ocupa o centro da vida dos casais, uma vida denominada ”normal”
pela consciência coletiva, certo respeito se impõe e obriga-nos a repensar acerca do que
se poderia chamar de mistérios de um relacionamento regido por mútua sufocação. Mas
é na

115

medicina e na psicoterapia, sem dúvida nenhuma, que esse traço possessivo


aparece com maior evidência. Quando o médico e o psicoterapeuta se referem ao paciente
como ”meu paciente” ou ”seu analisando”, com as infinitas variações que isto tem, isso
nos deixa claro que a prática da medicina ou da psicoterapia permaneceu no primitivo da
sufocação histérica. Essa sufocação usada em nome do poder não permite que a terapia
seja consciente e possibilite a ocorrência do rapto psíquico.
No começo do século Jung diagnosticou outra espécie de histeria, a que chamou
histeria hebefrênica, e que eu acho importante mencionar para ampliar nossa visão das
patologias incomuns e aparências que encobrem o acesso à consciência de fracasso. A
histeria hebefrênica é um estado histérico em que predominam os traços infantis. Sem
avançarmos muito nas complexidades dessa condição, e usando-a, como dizíamos antes,
como lente de aumento para enxergar a vida cotidiana, percebemos que esse tipo de
histeria é mais comum — quase diríamos mais ”popular” — do que imaginamos... dado
que às vezes sentimos que ela se torna ”cultura”. Ao ser dominado por teorias
psicológicas ingenuamente aceitas e que se concentram na infância à procura das causas
das doenças mentais, afirmaríamos que a cultura do nosso século conferiu à infância uma
importância exagerada e sem precedentes, resultando num exagero histérico do lado
infantil da personalidade. Agora nos apercebemos de que o poder e a culpa apontados
por essas teorias criaram uma cultura que projeta muito da histeria sobre a importância
de uma educação precoce da criança: a partir da importância de uma infância feliz, como
base de uma vida Had ia, transformada em uma Disneylândia em que o acesso mental é
fácil e constante, alimenta-se essa histeria )icl)(vfrênica. O que se afirmava antes a partir
do ângulo do 1’ucrAeternus aparece aqui refletido a partir do ângu-

116

Io da histeria. É sem dúvida válido qualquer quadro que possamos formar a partir
da diagnose junguiana da histeria hebefrênica, seja ela pessoal ou cultural.
Os aspectos culturais aqui mencionados provêm de imagens em minha prática
clínica, de uma visão antecipatória da sociedade ocidental e, por fim, da obstinação de
teorias psicológicas infantis que dominam a mente de muitos psicólogos. Tais psicólogos,
parece, retêm essas teorias a vida inteira, como se estivessem numa casamata poderosa,
não atentando para o fato de que a pessoa que estão tratando está numa idade com uma
realidade psíquica muito distante da da infância. Para uma personalidade dominada pela
histeria, a vida é para ser vivida segundo sua concepção histérica, e qualquer coisa que
não tenha a ver com essa ilusão carece de validade. O estudo da conexão entre certos
tipos de personalidades histéricas e aquilo que a psicologia junguiana chama de
psicologia de contos de fada está ainda por ser feito. Conhecemos personalidades
históricas para as quais a fantasia do castelo encantado chega ao máximo, não admitindo
discussão nem reflexão; o castelo encantado está em suas mentes como única forma de
se viver, e isso já os diferencia substancialmente dos casos em que a psicologia de contos
de fada admite reflexão e movimento psíquico para níveis mais consistentes da psique.
Quero também mencionar outra importante concepção que nos levaria a ver mais
ajustadamente a diferença e a relação entre histeria e animus. O animus foi descoberto,
por assim dizer, por Jung e seus seguidores da primeira geração. Ele aparece como um
pseudologos, algo que permite que a mulher aprenda o que foi concebido e criado pelo
logos masculino. Aqui essa concepção de animus é vista como um instrumento da mulher,
é algo de tremenda importância no mundo de hoje — um mundo em que a mulher muitas
vezes trabalha no mesmo

117

ritmo e condição dos homens — e é o utensílio que faz com que a mulher, na história
atual, da noite para o dia, conheça o homem em quase todas as suas atividades, inclusive
naquelas que, historicamente, eram reservadas só a ele. É visto como um instrumento da
mulher. Mas o animus, dentro das maiores complexidades que contém, tem uma que
concerne igualmente à mulher e ao homem e que aparece hipertrofiada no mundo atual,
como um clichê, quase sempre grotesco: o lado ”opinante” do animus.
Vivemos num mundo de opiniões que influenciam nossa vida diária, opiniões que
cobrem todos os aspectos da vida: opiniões que têm grande peso para o homem atual e
afetam tanto a sua alimentação como sua vida erótica, sem contar com a política e sua
relação com a sociedade em que vive, e que chegam a influenciar seus costumes e hábitos
até o ponto de alterar e destruir suas tradições familiares e religiosas mais íntimas. Por
mais conscientes que possamos ser, essas opiniões superficiais, concebidas a partir
desse pseudologos que é o animus, são tragadas e passadas para nosso sistema de vida.
O fato é que também esse aspecto ”opinante” do animus aparece muitas vezes como
elemento possessivo. Assim vemos personalidades que estão possuídas não por forças
inconscientes ou irracionais de procedência arquetípica, mas por opiniões que defendem
até o fim. Não creio que seja difícil observar como estas opiniões combinam perfeitamente
com a sufocação histérica, e a sufocação não é somente algo que está dentro dos limites
arquetípicos aos quais nos referimos, mas também aparece de forma alarmante através
de opiniões.
Sentimos que vivemos numa época de grande histeria o que existe um exagero em
nossa vida; exagero que «•m poucos anos — nos últimos quarenta anos — tomou
proporções maiores do que em todo tempo anterior da

118

humanidade. A história recente do homem tem aumentado a histeria a proporções


às vezes alarmantes, especialmente se sabemos que a histeria cobre um espectro da
natureza humana que vai desde o que arquetipicamente qualquer mãe faz — sufocar a
filha — até uma figura que carrega facilmente toda a maldade que se possa atribuir à raça
humana: Adolf Hitler.
Não sem razão, o termo histeria foi eliminado da terminologia médica da Associação
Psiquiátrica Americana e substituído por conversão. Isso é o mesmo que dizer que o
fenômeno histérico é somente levado a sério e tratado medicamente quando aparece
como fenômeno de conversão. Mas ao mesmo tempo nos diz que a maior parte das
infinitas manifestações histéricas que brotam na vida diária ultrapassa a tela da
concepção psiquiátrica que, no geral, as menospreza e deprecia. Assim sendo,
submergem para o inconsciente coletivo, impregnando nossa vida diária desde seus
níveis mais banais até onde, por assim dizer, dependem os destinos da humanidade —
embora isso soe um tanto histérico. É inegável que nossa vida se torne cada vez mais
histérica, basta apenas prestar atenção a qualquer dos chamados ”meios de
comunicação”, agora hipertrofiados pela tevê, e sentir ou estudar como esses elementos
dos complexos da histeria são alimentados de maneira brutal, variando desde uma
simples propaganda de sabão até a confrontação de armas nucleares.
A conexão que fizemos anteriormente entre histeria e contos de fada nos indica
claramente a superficialidade da histeria, mas sentimos esta mesma superficialidade
quando lemos as notícias arrepiantes das grandes potências, seus armamentos e
possíveis guerras nucleares. Não surpreende a apatia do homem atual diante de coisas
tão importantes como estas, pois está acompanhada de uma grande dose de histeria e,
quando chegam, são pegas na

119

plataforma que imaginou Jung, e não as deixa passar para os complexos históricos
e os arquétipos e, certamente, os instintos, que são os que deveriam reagir. Lemos um
jornal e, no mesmo nível de superficialidade histérica, encontramos a notícia de uma
celebridade, os esportes, um desastre nacional ou algo sobre a quantidade de mísseis que
tem esta ou aquela potência; não há uma maior diferenciação entre os valores. Parece que
tudo fica reduzido à informação histérica para alimentar nossa histeria.
Esta superficialidade mágica de contos de fada da histeria é cotidiana na
psicoterapia, na qual nos é permitido apreciar com lente de aumento a impossibilidade na
psicoterapia de uma aceitação real de situações, problemas, conteúdos psíquicos
evidentes que possam tocar emocionalmente a psique e que ela se sinta em movimento
por isso. Assim vemos — e nossa sensibilidade se escandaliza às vezes com isso — que
penas, dores, tragédias são banidas instantaneamente pela histeria. Aqui cabe a frase de
Eliot quando nos diz que ”o ser humano não pode suportar demasiada realidade”, mas
para o que interessa em nosso trabalho, caberia dizer que a personalidade histérica — o
componente histérico de cada um e as histerias coletivas — dá um jeito de escapar, com
superficialidade pasmosa, da realidade básica à qual já nos referimos, o que nos permitiria
aceitar a consciência de fracasso e o aprendizado psíquico que a acompanha.
Espero que o leitor tenha presentes as limitações desta pequena exposição sobre
histeria, se bem que ela traga consigo uma visão arquetípica da histeria, e isso é novidade.
Essa mesma concepção arquetípica da histeria nos propicia ver com outro olho a metáfora
mais comum com que tem sido vista: ”tem mais formas que Proteu e mais cores que o
camaleão”. A intangibilidade, assim como o espectro misterioso que já assinalamos,
fazem parte da histeria, e dentro do misterioso desse mistério devemos

120

aceitar que apenas se sabe de sua função e do porquê da om nossa natureza (se
não nos agarrarmos hisIni Iminente a reduções superficiais). Colocando-a como parte
integrante de nossa natureza nos parece um passo limito válido, pois ali está o mistério.
O mistério arquetípico dos mistérios eleusianos.
Porém há algo mais que é importante nisso: é que a histeria é capaz de utilizar-se
de qualquer instrumento pura ser o seu veículo de manifestação. Parece que um dos
instrumentos mais à mão da histeria é a culpa, algo que vem à mão da histeria como o
anel ao dedo. Assim, mais vezes podemos observar o espetáculo da histeria fazendo uso
da culpa com refinamento e insinuações e outras vezes em que nos aflige com seu
descaramento. E isso nos aproxima do porquê a histeria é tão importante para o tema que
estou tratando: se ela maneja a culpa com habilidade característica, estou dizendo que ela
tem à sua disposição um espectro infinito de possibilidades para culpabilizar qualquer um
ou qualquer coisa, não aceitando assim a consciência de fracasso. A histeria, ao
culpabilizar, destrói a imagem do acontecer psíquico.
O terceiro elemento, que não reconhece o fracasso e que aparece como o mais
perigoso, é o que cai dentro do conceito de transtornos da personalidade, que aqui
consideramos como componentes psicopáticos da personalidade, dando-lhe um
significado mais geral. São componentes que também todo ser humano abriga, mesmo
quo não sejam arquetípicos, o que já os caracteriza de maneira mais específica e aponta
para sua poriculonidade. Não sendo arquetípicos, carecem, por ÍHHO, do imagem e forma;
irrompem na personalidade como manifestação do excesso e falta de limites do ser
luunnno lOles estão em oposição radical às formas iininHipir.-iH da vida, porque, como já
dissemos, são elemontoH que; carecem de forma. Mas permitam-me es-

121

tender um pouco mais esse particular. Se conhecemos algo com formas, as formas
já impõem um limite; agora, se fizermos um esforço para conceber algo que não tem
formas — esforço que na verdade temos de fazer para chegar a tal conceito, no
componente psicopático que todos carregamos, e que não tem forma —, o que aparece
em vez de forma com limites é uma falta desses limites, um excesso. E no estudo da
personalidade em que esse componente é dominante que aprendemos a ter alguma
vivência dessa parte de nós mesmos; porque aceitar que esse psicopata desmedido que
aparece na história e nas notícias dos jornais todos os dias, nas revistas e como heróis
de filmes etc., está em nós, é algo muito difícil; tão difícil quanto dizer e conceber na
própria vivência que a maldade se aloja ou está presente em cada um, dentro de nós.
Aceitemos isso como extremo e, segundo a definição de psicopata nos textos de
psicopatologia, mas também aceitemos como algo que tem a ver com a natureza humana,
a qual temos nos referido neste estudo. Mas aqui quero olhá-lo de maneira mais mundana,
se é que isso seja possível, e traze-lo como elemento de importância, o que mais bloqueia
o acesso à consciência de fracasso. Já que o psicopata não tem forma, ele não pode
reconhecer nenhum e, assim, não concebe o fracasso e muito menos a consciência dele.
Desejaria dar ao leitor um retrato do que é o psicopata, ou do componente
psicopático de todos nós, e por isso permita-me tomar emprestadas as contribuições da
literatura atual. Tomemos duas obras que nos ajudam nesse propósito. A laranja mecânica
e O estrangeiro. A laranja mecânica, obra exemplar de Anthony Burgess, nos mostra um
mundo em que o psicopata reina livremente. Ávida é um excesso, não existem limites nem
formas; o que poderia contribuir com formas, como a religião, o estado etc., está tomado
pelo excesso, como se o

122

excesso houvesse banido todas as formas em que a vida se assenta. Apropria


psiquiatria, na obra, é também um resultado desse excesso, querendo curar
tecnologicamente algo que, se situado em um diagnóstico clínico, seria uma falta de alma
— e isso é em si a personalidade psicopática: onde deveria haver alma, psique,
experiência de vida, vivência interior, senso de valores pessoais, o que existe é uma
lacuna, nada: alguém sem coração ou alma.
A obra de Burgess situa-nos diante do horror e do perigo da psicopatia, desse
excesso que não só se expressa nos extremos que A laranja mecânica nos mostra, mas
também está presente na existência de todos nós, em proporções menores e mais
dissimuladas, em ocasiões disfarçadas das melhores intenções. O estudo disso que
chamamos personalidade psicopática ou componente psicopático é possivelmente o
maior desafio aos estudos de psicologia e psiquiatria atuais; estudos muito difíceis,
devido à própria carência de forma daquilo que estamos estudando, e que se tornam cada
vez mais difíceis se o abordarmos a partir da tradição conceituai. MHH, hoje em dia,
qualquer psicoterapeuta que se preze nabo que deve ter noções sobre o que aqui estou
falando e precisa saber também, se não refletir, pelo menos lidar fortemente e o mais a
fundo possível com o componente psicopático. Corre o risco de que esse mesmo
componente o assalte e desvirtue todas as suas concepções e teorias psicoterapêuticas,
menospreze ou barre tudo o que ele veio trabalhando na prática, com as imagens que lhe
oferece o paciente, ou com as teorias, se é nelas que assenta sua prática. O campo da
psicoterapia está cheio de teorias que, no melhor dos casos, servem de ponto de
referência; muitas são meros esquemas e contêm boa dose de miopia e até de cegueira.
Miopia e cegueira que o psicopata aproveita para fazer sua aparição; teorias psicológicas
que nas mãos de um titã pre-
123

tende fazer psicoterapia com base em teorias que ele mostra interesse em aplicar,
mas sem remotamente conceber que o suceder psicoterapêutico é um produto da própria
psique, da inter-relação psíquica entre terapeuta e paciente; e que as teorias, qualquer
uma, são irrelevantes e, na maioria dos casos, obstruem a manifestação natural da psique.
E por isso que prefiro apoiar-me nas contribuições da literatura e na reflexão que
nos prove a mitologia, para usá-las como instrumento mais plástico e imaginativo. Assim,
podemos ver outra obra-prima, O estrangeiro, de Albert Camus, que nos fala desse
estrangeiro que todos temos dentro de nós. O título da obra já nos diz do que se trata: é
algo estranho a nós. Também o livro de Camus nos oferece com dramatismo direto, única
e profundamente sentido, o vazio interior do psicopata: essa carência de formas interiores
concebida por Camus em Mersault, a personificação do estrangeiro. Sempre nos
surpreenderá a primeira página dessa novela — obra mestra da literatura moderna — cada
vez que lemos que Mersault recebe um telegrama anunciando a morte de sua mãe, porém
nele não existe uma resposta que tenha relação com o imaginário que corresponda a essa
notícia.
Perdoe-me o leitor por repetir esses dois exemplos da literatura atual, mas melhor
do que simples repetições seria considerá-los como variações sobre o mesmo tema.
Embora eu pudesse trazer outros exemplos, nenhum teria a convincente expressão
dessas duas obras. Minha intenção é enfatizar algo que sinto ser de interesse e
necessidade essencial, pois o tema é tão importante que o mais aconselhável seria
agarrar-nos às figuras que melhor sirvam de acesso ao que queremos apreender; e o que
queremos apreender é de difícil acesso, pois não tem ínnuas. Tendo isso presente, remeto
o leitor a Luchino Visconti, para quem este tema é central e com muitas variações
riquíssimas na totalidade de sua obra cinematográfica.

124

Espero que com esse breve relato o leitor perceba que o componente psicopático
que funciona em excesso, que não se ajusta a limites e formas, nos evidencia a existência
de falhas na natureza humana. O excesso de um psicopata ou o componente psicopático
não pertence a nenhum arquétipo nem se sujeita a nenhuma forma. Como vimos em O
estrangeiro, a falha que aparece na primeira página nos diz que o arquétipo da mãe — que
nesse caso seria visto como um arquétipo de duas cabeças (a mãe e o filho, o filho e a
mãe) — parece que não existe. Ao remeter o leitor às obras citadas, passo-lhe uma visão
viva, prática, da personalidade psicopática nas vertentes externas e internas, uma visão
de fácil acesso a realidades tão cruéis do ser humano. Também, com isso, permitome sair
de tamanhas complexidades e me limitar ao que tenho de dizer sobre o mimetismo, para
mim essencial ao estudo da psicopatia, tanto quando domina a personalidade, como
quando o concebemos como um componente.
O psicopata é a viva expressão disso que podemos dizer de algumas pessoas: que
”não têm nada por dentro”. Tudo está fora, emprestado e captado por processos de fácil
acesso. Nesse mimetismo do mundo exterior, a personalidade psicopática ou o
componente psicopático se adapta ao evento que se lhe apresente. Todos necessitamos
de certo grau de mimetismo e parece que é por isso que a natureza nos dotou dele;
necessitamos dele para adaptar-nos a uma situação extrema, desconhecida para nós. Mas
não há dúvida de que na história de nossos dias, nas sociedades atuais, há um aumento
dessas necessidades prementes de adaptações externas e pode ser que por isso tais
componentes se hipertrofiaram de maneira tão notável em um mundo como o de hoje, no
qual estamos constantemente encontrando coisas que não podemos

125

aprender, pois embora nos excitem e devamos nos adaptar a elas por causa de sua
ocorrência diária, são ainda muito estranhas para o nosso processo de aprendizagem.
Isso faz com que o histrionismo mais imediato da histeria e o fácil mimetismo psicopático
sejam dois instrumentos que a história, por necessidade, nos tenha feito desenvolver.
Parece que o homem ocidental tem certa consciência desse aspecto a partir do seu legado
clássico, pois Platão em Timeu nos fala do que aqui nos interessa. Se existe uma alma
com seus arquétipos, imagens, formas e inteligência, também existe a necessidade
(ananke) que precisamos para responder a algo que não tem forma conhecida para nós.
As respostas são infinitas e podem variar desde mimetismos que aparecem diante de
situações desconhecidas até os extremos da maldade. Há um velho refrão que diz que se
fores a Roma aja como um romano, ou como me disse um amigo: se me atiram de um
páraquedas na China, para sobreviver eu tenho de fazer algo, e a primeira coisa que me
ocorreria seria sorrir como os chineses. O exemplo é claro e nos faz ver com humor isso
que Timeu, em seu discurso em Atenas no século V a.C., chamou de Necessidade, mas
também nos deixa claro o absurdo superficial dessa necessidade. Para o chinês, o sorriso
é algo que vem de dentro, um sorriso que, como dizem os entendidos, é uma linguagem
em si de uma tradição milenar, e chega até a expressar sabedoria. Assim, por mais que o
amigo exercite esse sorriso, não conseguirá fazê-lo como um chinês; seu sorriso será
uma manobra que no melhor dos casos pode tornar possível sua sobrevivência entre os
chineses.
Perdoem-me ter usado uma anedota chinesa para pnssar-lhes uma imagem de
acesso, diríamos coloquial, daquilo que foi reflexão tão profunda nas origens do Ocidente,
como é o Timeu. Mas também sentimos profundaiiinil o que o que aqui estou falando são
urgentes necessi-

126

dades de nossa época. Isso é o que nos transmite o cômico norte-americano Woody
Allen, quando em seu filme Zelig nos dá, numa imaginária cheia de historicidade, a
reflexão do mimetismo levado a extremos de autonomia total. Zelig mimetiza quando vê,
mas dentro do cômico e da história que se produz, nos chama a atenção ver que Zelig
chega ao extremo de também mimetizar Adolf Hitler, e aí vemos as intenções audaciosas
do comediante chegar ao que aqui estamos tratando: dois extremos do que em
terminologia psiquiátrica moderna se chama psicopata e que vai do mimetismo
adaptativo, por sobrevivência, até a maldade.
A história desenvolveu esses elementos por necessidade, mas às custas de nosso
mundo arquetípico de formas e, por que não dizer, da perda da alma; e alma quer dizer
aqui registrar interna e emocionalmente o acontecer da vida. Vivemos num mundo onde a
Necessidade chega ao homem através dos meios de comunicação; mas esses meios,
como a palavra diz, faz dele um medíocre, transmitindo-lhe apenas as demandas do que
Timeu chamou de Necessidade. Necessidade que vai aumentando e destruindo
sistematicamente os restos de valores próprios do homem ocidental e, por isso, seu
sentir, suas próprias emoções, sua privacidade.
Como resultado, acreditamos que os países dominantes do cenário do mundo são
os mais miméticos. Estamos contemplando como um país de habilidade mimética, como
o Japão, domina da noite para o dia a tecnologia, essa filha da Necessidade e da qual
Esquilo já era consciente, ou seja, que a tecnologia, algo nativo do Ocidente, hoje em dia
nos mostra o absurdo de uma nação totalmente alheia à cultura ocidental que a mimetiza
e domina esse campo. Mas vemos algo ainda mais absurdo: a ganância excessiva do
Ocidente, que quer mimetizar a tecnologia japonesa — mimetizar o mimetizado —, colocar
o mimetismo tecnológico como carta de triunfo.

127

Desde já podemos nos dar conta de que para ”triunfar” em qualquer coisa naquilo
que chamamos sociedade moderna, tanto o histrionismo histérico como o mimetismo
psicopático são moedas de uso corrente, legal e efetivas de imediato. E começamos a
sentir como esses componentes que se caracterizam um por sua superficialidade, outro
por seu excesso — este, seguido de um vazio, de um nada —, passam a ser de importância
superior. Também esses componentes estão nos dizendo que sua única meta é o sucesso,
que os valores desse sucesso não são nem remotamente relevantes e que qualquer coisa
que pensemos deles nos leva de imediato a sentir que são um bloqueio constante ao
acesso da consciência de fracasso.
Temos de saber, pois sentimos assim, que o que chamamos de consciência de
fracasso é algo interior e muito obscuro. Quando nos referimos à consciência de fracasso,
nunca estamos nos referindo a algo a que podemos chegar mediante esquemas de fácil
acesso. A consciência de fracasso pertence, e creio que isso estamos compreendendo
agora, a áreas obscuras nas quais se move nossa interioridade. Quando nos referimos à
consciência de fracasso estamos nos referindo a estados médios e lentos da alma: Anima
Media Natura. Pois nesse estado da alma não existem triunfalismos, simplesmente porque
há uma alma ou psique que é consciente, que não concebe as acelerações necessárias
para as concepções do Puer, nem do histrionismo histérico, nem do mimetismo
psicopático. Esta é uma alma que não sofre os tormentos da busca do sucesso, mas
também é uma alma que não anula o pólo oposto: o fracasso feito realidade; esse fracasso
que aparece de vez em quando e se infiltra na enfadonha cantilena liiHtórica do ”eu me
sinto fracassado”, com esse toque de histeria e repetição depressiva psicopática, além de
ser

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um fracasso projetado para fora. Um ”sinto-me fracassado” que quer dizer ”sinto-
me fracassado por não poder cumprir as metas do triunfalismo vigente”. Consciência de
fracasso é outra coisa, é algo mais precioso e muito psíquico, é evasiva, vem e vai, e com
isso nos indica suas características mercuriais. É uma consciência, como já dissemos,
média e obscura, cujo sítio é o umbral e sua luz crepuscular. Mas é nesse lugar que nos
reconciliamos com nossas mortais limitações e, fazendo isso, encaixamo-nos nos limites
definidos do nosso ser e dentro da realidade que somos. É isso que torna possível a
imagem com suas possibilidades de uma vida culta.
Já desde aqui e graças a nossa reconciliação com a consciência de fracasso,
entramos inadvertidamente no âmbito da imagem, e a imagem, como diz o poeta, é
possibilidade. Um pensamento de Lezama Lima diz: ”A hipótese da imagem é a
possibilidade”. E as possibilidades são do imaginário, o que torna possível o exercício
daquele que trabalha a imagem, e essa capacidade de imaginar é já uma atividade terrena
e limitada, por estar dentro dos limites arquetípicos consistentes que lhe pertencem. Por
limitada quero dizer super abundante, como também estabelece Lezama. Quando falamos
da imagem já começamos a falar de superabundância, porém sem aceitarmos que uma só
imagem é mais que suficiente para preencher toda essa vivência. Quando a imagem a que
pertencemos começa a emergir, já existe movimento psíquico, rico e muito distante, pois
nada tem a ver com o movimento repetitivo psicopático-titânico. Sim, e isso tem de ser
repetido: ”A hipótese da imagem é a possibilidade”; a imagem que nos faz possível, e na
possibilidade da imagem estamos um tanto distantes, ainda que nunca imunes, do horror
intolerável dos opostos sucesso-fracasso. É na imagem e a partir da imagem que
encontramos o repouso dos opostos sucesso-fracasso.

129
Na psicologia junguiana dos opostos se entende a arte como uma tentativa de
compensar a consciência coletiva, pois uma arte que se interesse em concordar com a
consciência coletiva é algo que evidencia sua superficialidade, e se a aceitamos é sabendo
o nível que ocupa. Nós deveríamos saber que também é assim que deve ser experienciada
a psicoterapia, e aqui vemos uma afinidade entre poeta e psicoterapeuta. Psicoterapia
entendida como artesanato e arte. Isso também nos serve como meio de constraste para
poder valorizar nosso sentimento quando nos atinge algo da arte que nos toca fundo e
nesse toque nos compensa do tédio, do aborrecido, do horror da consciência coletiva,
que no mundo atual se torna mais esmagador por tudo o que aqui estamos dizendo.
Mas a arte necessita de independência e privacidade, requer também certa
consciência que propicie o roçar limítrofe com o poético; o acontecer da arte é algo que
nos comove por sua economia. O poeta só necessita de um lápis e de papel. Um pintor
necessita de um pouquinho mais: cores, pincéis, tela. E tanto o poeta como o pintor
podem se soltar com esses instrumentos e sentir e ouvir o que quer se expressar através
deles. E se assinalo essas economias é porque sinto — e a partir do meu sentimento
conheço e valorizo — que o mundo psíquico, a experiência da alma, nos presenteia com
economias parecidas. Se somos capazes de valorizar psiquicamente as experiências da
alma, já nos aproximamos um pouco disso que se chama crise da alma, e então tratamos
de viver um pouco mais ajustados à rica gama das depressões e aí é que começamos a
viver, sentir e valorizar as profundezas, porque os movimentos lentos da depressão — e
podemos di/.or hoje sem a menor dúvida — são via regia, a única via rvtfin para qualquer
coisa que chamemos criatividade psíquica. Criatividade que cria alma e se expressa nisso
que chamamos arte, arte que tem a ver com a alma.

130

A este ponto podemos começar a ler um poema de Rafael Cadenas, cujo título é
Fracasso, e que apareceu em minha vida dando uma bela forma poética a pensamentos,
idéias que estavam comigo, como disse no início, por muitos anos, e que eu vivenciava
como consciência de fracasso, mas que agora, graças a isso que chamamos de arte,
podem estar contidos em um recipiente adequado, esse que contém vivência interna
expressa e dada com generosidade exemplar.
Tudo o que tomei como vitória é só fumaça. Fracasso, linguagem do fundo, pista de
outro espaço mais exigente, é difícil ler a tua letra nas entrelinhas. Quando punhas tuas
marcas na minha fronte, jamais pensei na mensagem que trazias, mais preciosa que todos
os sucessos.
Teu flamejante rosto me perseguiu e eu não soube que era para me salvar.
Para meu próprio bem relegaste-me aos cantos, negasteme fáceis êxitos, fechaste-
me as saídas. Era a mim que querias defender, não me outorgando brilho. De puro amor
por mim dirigiste o vazio que tantas noites me fez falar febril a uma ausente.
Para me proteger cedeste o passo a outros, tens feito com que uma mulher prefira
alguém mais determinado, afastaste-me de tarefas suicidas. Tu sempre vieste para me
salvar.
Sim, teu corpo chagado, cuspido, odioso, recebeu-me em minha mais pura forma
para me entregar à nitidez do deserto.
Por loucura eu te maldisse, te maltratei, blasfemei contra ti.
Tu não existes.
Foste inventado pela delirante soberba. Quanto te devo!
Promoveste-me a uma nova classe, limpando-me com uma esponja áspera,
lançando-me a meu verdadeiro campo de batalha, cedendo-me as armas que o sucesso
abandona. Conduziste-me pela mão para a única água que me reflete. Por ti eu não
conheço a angústia de representar um pa-

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pel, do manter-me à força em um escalão, de subir com esforços próprios, disputar


por hierarquias, inflamar-me até explodir.
E fizeste-me humilde, silencioso, rebelde. Eu não te canto pelo que és, mas por
aquilo que não me deixaste ser. Por não me dar outra vida. Por haver-me limitado.
Deste-me apenas nudez.
Certo que me ensinaste com dureza e tu mesmo me cauterizaste! Mas também me
deste a alegria de não temer a ti. Obrigado por tirar-me a densidade em troca de tuas rudes
palavras.
Obrigado por me privar das vaidades. Obrigado pela riqueza a que me forçaste.
Obrigado por construir com barro a minha morada. Obrigado por apartar-me. Obrigado.
O poema de Rafael Cadenas é o único escrito que encontrei e que se ajusta e
concorda com o que em mim vem sendo elaborado há anos, e é o que tenho chamado de
consciência de fracasso. O poema nos mostra como um só homem poeta, com um só
poema, compensa todo o excesso triunfalista que nos rodeia. Desde o começo do poema
diz que o fracasso é ”linguagem do fundo” e nos deixa claro que sua consciência vem de
baixo, dos âmbitos da depressão, ao qual a repressão histórica a condenou. E é nesse
âmbito tão profundo de nosso próprio ser que há outros espaços e outras luzes de mais
difícil leitura e vivência. Chamemos assim a depressão. Mas tomemos nota já aqui que o
que sai dessa depressão é a consciência, que aparece como jóia rara, e que não podemos
tomar como uma bugiganga que se vende no mercado livre a qualquer um, mas jóia
cultivada na alma, e vale tantos quilates que eqüivalem à salvação. Cadenas faz um
chamado para a salvação através da consciência de fracasso, c» não há dúvida de que
com isso está nos levando para nossas próprias profundezas. Ele deixa isso claro quando

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é perseguido pelo deus que queima e salva. Somos perseguidos por aquilo que é
tão alheio à nossa natureza consciente, que para ela é difícil aceitar ou tolerar. A
consciência é ignorante e temerosa, e um rosto flamejante só pode causar temor. É assim
que os deuses se disfarçam; aqui a imagem é inequívoca: com o horror vem a salvação.
”Teu flamejante rosto me perseguiu e não soube que era para me salvar”. Aceitando o
horror vem a salvação, e o fracasso começa a impor seus limites que se ajustam à
configuração de uma personalidade em estado de consciência de fracasso; limites muito
precisos: ”Para meu próá prio bem relegaste-me aos cantos, negaste-me fáceis êxitos,
fechaste-me as saídas”.
Existe uma outra linha que se encaixa perfeitamente ao anteriormente escrito, e é
quando nos diz: ”Tens feito com que uma mulher prefira a alguém mais determinado”.
Isso é fácil de conectar com aquela Anima Me-
dia Natura. Essa mulher que trazemos dentro e que, ao mesmo tempo, é
companheira da alma. É uma mulher que não se deixou levar por alguém mais
determinado, que não se entrega à vitória e ao êxito, mas que desfruta de sua natureza
média. Uma anima que não nos empurra para o êxito, mas que também nos livra de
”tarefas suicidas”, das depressões suicidas às quais já nos referimos.
Quando Cadenas diz da consciência de fracasso ”tu sempre vieste para me salvar”
(tu siempre hás venido ai quite), está nos passando um sentimento de confiança, como se
a única coisa em que se pudesse confiar fosse na consciência de fracasso. A linha é muito
taurina, relativa à arte de lidar com touros, e está cheia do colorido da festa. O ”quite” se
dá quando há momentos de perigo na corrida de touros, quando estamos em perigo, e é
a consciência de fracasso que o faz aparecer. Na tradição taurina o ”quite” é visto como
uma intervenção da Divina Provi-

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dência. Existem ”quites” que são como se a capa do toureiro fosse levada pela mão
da providência, que o salva de um perigo iminente. Para o poeta é assim que aparece o
fracasso: para salvá-lo do perigo. Sentimos aqui como se a consciência de fracasso fosse
um movimento interior que termina em profundas realidades, em verdades nuas e na
apoteose da alegria.
Perdoe-me o leitor por me atrever a passar-lhe minhas vivências sobre algumas
linhas do poema de Rafael Cadenas, mas nisso creio estar manifestando o grande
contentamento que produziu em mim o encontro com o poema Fracasso. Contentamento
que se afirma, que se vive em estado de consciência superior, que aparece da profunda
consciência de fracasso. Pois é difícil encontrar uma linha que nos fale tão ajustadamente
da realidade que somos quando Cadenas diz: ”Eu não te canto pelo que és, mas por aquilo
que não me deixaste ser. Por não me dar outra vida. Por haver-me limitado”.
Isso é realidade de individuação, adaptação a si mesmo e limitação aos próprios
contornos. Aqui já estamos nus ante nós mesmos. ”Deste-me apenas nudez”, realidade
limitada e verdade nua. Realidade e verdade indispensáveis para sentir a alegria. Alegria
que em Cadenas é apoteose interior e que alegra esse mundo interior e torna possível a
consciência de fracasso. Alegria que se pode sentir como uma consciência maior que
contém a alegria e o fracasso num abraço paradoxal.

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BIBLIOGRAFIA

BURKERT, Walter, ”The Great Gods, Adonis and Hippolytus”, em History in Greek
Mythology and Ritual, University of California Press, Berkeley, California, 1982.

CADENAS, Rafael, Los cuadernos del destierro. Falsas maniobras. Derrota, Editora
Fundarte, Caracas, 1979. GUGGENBUHL-CRAIG, Adolf, Eros on Crutches, Spring
Publications,

University of Dallas, Texas, 1980. JUNG, C. G., Psychiatric Studies, The Collected
Works, vol. I, Routledge

and Kegan Paul, Ltda., Londres, 1957. KERÉNYI, Carl, Eleusis. Archetypal Image of
Mother and Daughter,

Bollingen Series LXV 4, Bollingen Foundation, Nova Iorque, 1967. LEZAMA LIMA,
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1971. MICKLEN, Neil, ”On Hysteria: The Mytrical Syndrome”, em Spring,


1974, Spring Publications, Zurique, 1974. SHELDON, William, Prometheus Revisited,
Schenkman Publishing Co.,

Cambridge, Massachusetts, 1975. VON FRANZ, Marie-Louise, Puer Aeternus - A luta


do adulto contra o

paraíso da infância, Paulus, São Paulo, 1992. ZIEGLER, Alfred J., Archetypal
Medicine, Spring Publications Inc.,

Dallas, Texas, 1985.

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ÍNDICE

5 Introdução à coleção AMOR E PSIQUE


9 Prefácio
11 Loucura lunar — Amor titânico
34 Ansiedade cultural
65 Reflexões sobre o Duende
92 Consciência de fracasso
135 Bibliografia

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