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Olinto Pegoraro

INTRODUÇÃO

À ÉTICA CONTEMPORÂNEA
A ÉTICA DOS ANIMAIS

VOLTANDO À HISTÓRIA
Esse capítulo é uma extensão do anterior. Vimos que os animais
eram tratados como objetos sem importância ética, utilizáveis como
instrumentos para realizar ações do interesse do homem: fazer guerras,
transportar cargas, puxar carroças, arar a terra e finalmente servir de
alimento; pode servir para a diversão esportiva, como na “corrida de
touros" em que o animal sofre golpes cruéis até morrer. Sendo máquinas,
matá-los era um ato indiferente, sem valor ético.
O tratamento agressivo e violento aos animais talvez se deva à
concepção equívoca que a humanidade, especialmente na época moderna,
se fez deles. O animal nunca foi tema de reflexão filosófica antes do século
XX. Para a filosofia moderna, o animal é um ser ambíguo que oscila entre
ser mera coisa, objeto útil, inerte e um mecanismo estranho capaz de
retomar suas energias; uma realidade mecânica que flutua nas
proximidades da vida. Essa equivocidade do conceito de animal foi
sintetizada por Heidegger em termos didáticos: "Pedra não tem mundo; o
animal é pobre em mundo e o homem é formador do mundo" (Heidegger,
1970:104-107). Explicitando, o mineral não tem nenhuma abertura à
relação com as coisas, existe em passividade total; já o animal se comunica
pobremente, sempre do mesmo jeito, sem condição de decidir-se para
ações novas, sujeito ao determinismo da natureza; ao contrário, o homem
constrói o mundo pela cultura, pela ciência, pela filosofia no exercício da
liberdade.
Então não há nada a reconhecer no animal? Nada tem de
respeitável? Não há nenhum comportamento especial do homem em
relação a esse ente? É bem conhecida a resposta de Kant a essas perguntas:
"O animal é um ser análogo da humanidade, por isso, prestando-lhe
alguma proteção, algum cuidado, não é a ele que o fazemos; mas à
humanidade".
Olinto Pegoraro

Em outras palavras, todos os atos positivos em relação aos animais são


feitos para melhorar nosso comportamento de respeito aos seres humanos;
agindo bem em relação ao animal, nada fazemos senão educar-nos para
bem servir aos homens.
A explicação dessa concepção bizarra do animal não tem base
na sua estrutura biológica ou ontológica, mas sim, na tremenda
ambiguidade do antropocentrismo que divide o mundo em pessoas e
coisas. A partir daí o raciocínio flui fácil: "Os animais não são pessoas
porque lhes faltam a inteligência e a linguagem; não tendo liberdade, são
destituídos de qualidades morais porque não podem escolher e decidir
suas ações; e a conclusão é ainda mais fácil e óbvia: são meros instrumen-
tos para uso humano". Assim é o antropocentrismo excludente. (Peter
Kemp, 1997, 50-57)
Mas essa posição puritana já fora relativizada e até ridicularizada
em séculos passados, porém sem sucesso. Aconteceu com o conceito de
dignidade animal o que aconteceu com as ideias contratualistas dos sofistas
gregos: ficaram latentes. Citemos o irônico exemplo de Montaigne que
constata que o homem sempre se considerou "moralmente superior aos
animais; porém, ele mesmo comete torpezas que os animais não praticam; e
os instintos dirigem os animais com mais firmeza que a razão o faz para os
homens, que a usam pouco e mal; então há maior diferença entre um
homem e outro do que entre um homem e uma besta". Em 1755, Condillac,
no livro Tratado dos animais, defende a importante tese segundo a qual a
sensibilidade é comum aos homens e aos animais e que entre a sensação
animal e o intelecto humano a diferença é de grau e não de natureza.
Exatamente essa tese será defendida por Bergson na primeira
metade do século XX. Como filósofo da evolução da vida, entende que o
instinto e a sensibilidade animal são a primeira manifestação, ainda
rudimentar, da inteligência que aparecerá plenamente no estágio humano;
também para esse filósofo, não se trata de diferença de natureza, mas de
nível de aparecimento da inteligência no animal e no homem. O instinto e
a sensibilidade são idênticos em ambos; a diferença está em que, no
homem, o processo evolutivo saltou para inteligência e passou a ser
também intuição pela qual o homem produz a ciência, a história, a filosofia
e descobre os deuses e o amor (Bergson, 1984:179-212).

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Em 1789, Jeremy Bentham, num texto famoso e irônico, afirma que "a cor
da pele não é um argumento suficiente para entregar um homem a um
torturador; e talvez descobriremos, um dia, que o número de pernas, os
pelos e o rabo não são um bom motivo para infligir a uma criatura sensível
sofrimentos físicos".
Essa linha de raciocínio permaneceu latente, mas persistente ao
longo da história do pensamento. Foi minando e enfraquecendo o
princípio grego, medieval, kantiano e Rousseauniano do valor moral
reservado só ao homem. Aplainou-se assim o terreno para a afirmação da
tese atual do valor intrínseco para todos os seres vivos: humanos, animais
e vegetais.

OS DIREITOS DOS ANIMAIS

A principal conquista dos defensores dos direitos dos animais


consiste na afirmação de que o prazer e a dor são constitutivos da vida
animal. Já Aristóteles, na Ética a Nicômaco, ao estudar os graus de vida,
afirma que a essência do vegetal é "viver e crescer", a do animal, "sentir
dor e prazer", a do homem, "pensar". Só agora, esse conceito a respeito dos
animais é resgatado com vigor.
A partir do princípio da sensibilidade, a ética reconhece o direi-
to ao respeito moral a todos os seres capazes dos sentimentos de dor e
prazer. Um texto de J. Bentham vem dar peso ao princípio quando discute
a linha que define a distinção entre o ser humano e o animal. Ele pergunta:
"O que traça a linha de demarcação entre o homem e o animal? Seria a
faculdade de raciocínio? Seria a fala? Mas um cavalo adulto ou um cachor-
ro é, sem termo de comparação, um animal mais sociável que uma
criancinha de um dia, uma semana ou um mês. Mas supondo que não seja
assim, em que isto nos ajudaria? Na realidade a pergunta não é: podem os
animais raciocinar? Podem eles falar? Mas, sim: podem sentir dor?"
Essa belíssima passagem mostra com evidência que não po-
demos argumentar sobre o valor moral dos animais a partir do que eles
não podem ter: raciocínio e fala. Essa constatação nos ajuda simplesmente
a afirmar que eles não são seres humanos; isso nada afirma dos animais,
só nega; a negação está certa: os animais não pensam e não falam. Mas o
que é que os define? A resposta é essencial: eles são seres sensíveis ao
prazer e à dor. A sensibilidade é tão essencial para o animal como a razão
o é para o homem. Essa é a especificidade de cada um.
Definir o animal como um ser que não tem o exercício da razão
e da fala é sair do assunto, é extrapolar, é sofismar; é um sofisma dizer que
o animal não é um ser moral porque não tem razão e fala. A moralidade
animal e humana não são idênticas; elas são análogas, isto é, semelhantes,

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comparáveis como valores presentes no homem e no animal, mas de modo


diverso. Viver sua vida,' realizar seu destino é a meta da moralidade do
homem e do animal.
Então, não se trata mais de proteger "nossos irmãos inferiores"
dos maus tratos que as pessoas lhes podem infligir; mas trata-se de
defender seus direitos intrínsecos de viver sua própria dignidade.
Essa tese, hoje consolidada na literatura filosófica, deve
enormemente ao utilitarismo em suas várias modalidades, desde o
fundador Bentham até o dia de hoje especialmente no âmbito da ética
anglo-americana. E útil recordar aqui alguns traços fundamentais dessa
filosofia.
O utilitarismo surgiu praticamente na época em que começam
a ganhar força as ciências econômicas no século XVIII. Na esteira dessas,
o utilitarismo pretende transformar a ética em ciência positiva dos
comportamentos humanos. Desde o início abandona o princípio ético do
bem derivado do conceito metafísico do homem: "a realização do bem
humano". Nessa concepção greco-cristã, os bens materiais são apenas
instrumento para realizar a meta.
Bentham faz o contrário: reduz o "bem humano" metafísico ao
"bem de produção de utilidades", bens de consumo para sustentar a vida
de cada homem e de toda a sociedade. E por isso que o utilitarismo ético
cresce ao lado da ciência econômica. Sua tese central diz tudo: "O maior
bem possível para o maior número possível de pessoas". Esse é o princípio
da universalização das utilidades de que todos os seres humanos
precisam. É o princípio do bem-estar. Uma ação é eticamente boa quando
produz benefícios às pessoas e será eticamente negativa quando produz
malefícios aos outros (Singer,1994:229-261).
Apesar desse sentido altruísta, o princípio central da ética
utilitarista encerra conflitos internos graves. Primeiro, admite que nem
todos serão incluídos na partilha das utilidades produzidas pela
sociedade, mas apenas "o maior número possível de cidadãos"; então no
sistema não haverá lugar para todos. O segundo conflito é que há
situações que podem exigir o sacrifício de pessoas em nome do "maior
bem social": o sacrifício de poucos justifica o benefício de muitos.
Por causa dessas ambiguidades, existem variantes ou versões
diferentes do princípio ético-filosófico do utilitarismo. Singer, por
exemplo, em nossos dias adota a versão seguinte: "Dar igual consideração
aos interesses iguais". É o princípio do igual

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tratamento ético às pessoas e aos animais que se apresentam com os


mesmos interesses para seu bem-estar.
O grande sucesso de Singer está, pois, em ter estendido seu
princípio ético a todos os seres dotados de sensibilidade; "É hora de tomar
a sério os direitos dos animais" afirma com veemência Singer. E
prossegue: "Todos eles têm igual interesse dos humanos de usufruir o
máximo de prazer com o mínimo de sofrimento" (Singer, 1994:120-135).
Em nome desse princípio se insurge contra a criação industrial
de animais para o consumo humano, e a utilização de animais para
pesquisas científicas; critica com igual veemência a caça e a captura de
animais selvagens para a comercialização. Nessa tese inspiram-se muitas
associações de proteção aos' animais.
Singer, em função dessa tese, refaz a definição de pessoa. Para
combater o antropocentrismo excludente, ele faz distinção entre "ser da
espécie humana" (homo sapiens) e "ser pessoa humana" (persona). No
primeiro caso, temos uma definição apenas biológica de ser humano e o
classificamos dentro de sua espécie; no segundo, temos uma definição
moral e o classificamos como pessoa moral. Para Singer, as duas
definições não são equivalentes: o homem biológico não é pessoa moral.
O argumento que invoca é de mão dupla: por um lado, os fetos, os
deficientes mentais graves e os adultos em coma irrecuperável são
tratados como pessoas; o que quer dizer que não é o exercício da razão e
da fala que fundam o respeito moral, mas a sensibilidade; é por isso que
esses seres humanos "marginais" à razão, são moralmente respeitados. Por
outro lado, os chimpanzés, os cachorros e outros animais são dotados de
sensibilidade igual ou maior do que o feto e o deficiente mental, mas não
são considerados seres morais. Por que essa diferença de tratamento
moral entre seres humanos sensíveis e animais igualmente sensíveis? Ao
nível da sensibilidade devem receber igual respeito moral, em nome do
princípio ético "da igual consideração aos interesses iguais". Então,
sustenta Singer, não há razão convincente para que não recebam o mesmo
respeito moral que o feto; em ambos os casos há interesses iguais e
merecem igual tratamento ético.
Singer continua: "A capacidade de sofrer e de sentir prazer é
um pré-requisito para ter interesses; seria insensato dizer que não é do
interesse das pedrinhas, por exemplo, receber chutes das crianças ao longo
do caminho para a escola. Uma pedra não tem interesses porque ela não
pode sofrer. Já um ratinho tem interesse de não receber golpes ao longo
do caminho, porque ele sofre com isto.

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É por isso que a sensibilidade constitui o único limite válido ao respeito


que devemos aos interesses dos outros. Seria arbitrário fixar esse limite
por meio de outra caracterização, como a inteligência ou a racionalidade".
É evidente que esse texto espelha exatamente aquele de
Bentham, há pouco comentado. Vamos apontar que a razão central de sua
tese ecológica é atacar o antropocentrismo que exclui do campo ético o
animal em nome da razão. Isso revela, diz Singer, a arrogância do
antropocentrismo que cria "um reino de fins" para o homem e relega o
"resto do mundo" à "categoria de meios".
Essa observação nos leva ao tema do "especismo", tema
importante nas teses de Singer e, muito discutível, em termos de filosofia.
Senão vejamos.
Singer sustenta que "um interesse é um interesse seja qual for
o ser ao qual o interesse se refere". Esse princípio gera a igualdade moral
entre os seres capazes de sentir dor e prazer. Nas palavras de Singer "todos
os animais (inclusive o homem) são iguais em interesses".
Por esse princípio Peter Singer se lança numa incansável
batalha contra o especismo. O termo é carregado de cores negativas como
tantos outros: racismo, sexismo, escravismo, nazismo. São termos que
exaltam uma condição em detrimento das outras; por exemplo, racismo
exalta uma raça com desprezo das outras; sexismo exalta um sexo contra
o outro. Assim é do especismo: o privilégio conferido à espécie humana
através do conceito de pessoa consciente e livre, e reduz todas as outras a
meros objetos. E prossegue Singer: "O especismo, termo nada bonito, é um
preconceito ou uma atitude de priorização dos interesses dos membros de
sua própria espécie em detrimento dos interesses dos membros de outras
espécies; como os racistas e os sexistas, os especistas permitem aos
interesses de sua espécie elevar-se acima dos maiores interesses dos
membros de outras espécies: nos três casos trata-se do mesmo tipo de
comportamento". Segundo Singer o fato de os homens serem mais
inteligentes que os animais não lhes confere nenhuma superioridade
intrínseca: "Animais e homens são iguais em dignidade moral".
Sem dúvida é assim, se tomarmos em consideração só a
sensibilidade; todos os seres sensíveis sentem dor e prazer do mesmo
modo, portanto têm igual direito de procurar um e evitar o outro. Essa
tese não autoriza Singer a ignorar a esfera própria do homem para torná-
lo igual aos animais. Ele é igual sim, mas na sua parte sensível; ele é
metafisicamente diferente na sua parte racional e livre.

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O animal não precisa dessa dimensão para ser o que é. Mas para que
tenhamos um ser humano é preciso que haja além da sensibilidade, razão
e liberdade, nível específico do homem. Isto não dá ao homem um
superpoder no seio do mundo natural, como teme Singer, a não ser por
uma teoria exclusivista como o antropocentrismo. Bem entendidas, a
inteligência e a liberdade são produtos da evolução, seu momento mais
elevado; mas a inteligência e a liberdade estão a serviço de todos os seres
e não só do homem. Pela inteligência e liberdade, a natureza inteira galga
o nível da razão. A natureza produziu a razão, tornou-se um todo capaz
de governar-se através da inteligência no homem.
Então entre o homem e o animal existe continuidade e também
descontinuidade. Em metafísica, se chama analogia, isto é, a semelhança
entre o homem e o animal e, ao mesmo tempo a diferença. O animal não
é um ser humano diminuído ou inacabado e nem o homem é um animal
elevado a pensar para dominar. São duas realidades metafísicas plenas,
dois seres completos cada um segundo seu modo de existir.
Um último comentário, para concluir. Singer afirma: "O
elemento fundamental, a tomada em consideração dos interesses da
criatura, sejam quais forem seus interesses, deve, por força do princípio
de igualdade, aplicar-se a todos os seres de raça branca ou negra, de sexo
masculino ou feminino, de natureza humana e não humana".
A reflexão é inquestionável se considerarmos que "humanos e
não humanos têm interesses sensíveis iguais". Sucede, porém, que, do
ponto de vista metafísico, as diferenças de raça, sexo e cor são acidentais
e em nada podem alterar as estruturas ontológicas e o tratamento igual
para todos. As diferenças fundamentais não estão aqui, nos exemplos
citados por Singer; mas estão na estrutura ontológica do animal
(sensibilidade) e do homem (sensibilidade e razão). Portanto, são
idênticos na sensibilidade, diferentes na racionalidade. E os níveis
ontológicos diferentes demandam tratamento moral diferente. Essa
diferença não está em considerar mais elevado um e rebaixar o outro.
Nada disso: cada um é pleno de dignidade por aquilo que é: um é pleno
como ser sensível e outro, pleno como ser racional.
Singer oferece um exemplo claudicante. Diz ele: "Existem
animais não humanos cuja vida terá mais valor que aquela de certos
humanos. Um chimpanzé, um cachorro ou um porco terão, por exemplo,
uma consciência mais aguda de si e uma capacidade maior de estabelecer
laços que um feto gravemente imaturo ou um indivíduo num estado
avançado de senilidade".

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Porém, Singer há de concordar que como o chimpanzé não perderá sua


dignidade ética por nunca escrever um livro, permanecendo por inteiro
em sua estrutura ontológica de ser sensível, assim também o ser humano
em estado senil avançado não perderá seu estatuto ontológico de ser
sensível e racional. Mas essa reflexão não é possível no utilitarismo porque
lhe falta a metafísica.
Singer critica também as filosofias que defendem a sacralidade
da vida. Ele teme que o orgulho do antropocentrismo se aprofunde ainda
mais com a ideia da sacralidade, criando um abismo entre o ser humano
e o resto do mundo. Sem dúvida, assiste ao utilitarismo e a Singer o direito
de criar uma teoria ética independente da metafísica, em nome de uma
ética mais prática e próxima das teorias científicas. Sabemos, porém, que
nenhuma teoria abrange todo o arco da condição humana e animal, nem
a metafísica, nem o utilitarismo nem a religião. Há que reconhecer que
existem valores e dimensões que nossas teorias não incluem. Nem por isso
esses valores deixam de existir e de ser tomados em consideração na vida
prática. Trata-se apenas do maior ou menor alcance de uma teoria.
Singer prefere falar da qualidade de vida como a dignidade
ética do homem e do animal. Essa tese em nada conflita com a da
sacralidade. São valores convergentes e complementares. A sacralidade
não exalta o homem acima de tudo e de todos. Pelo contrário, quanto mais
ética e religiosa for uma pessoa mais se integra no mundo e mais respeita
as realidades humanas e não-humanas. Por exemplo, poucas pessoas na
história foram mais amigas e carinhosas com os animais que S. Francisco
de Assis, para quem todas as criaturas são irmãs. Por outras vias, essa será
a conclusão do evolucionismo e da ciência genômica muitos séculos
depois.
Ademais, quem aceita a sacralidade não a considera exclusiva
do homem, mas ela abrange toda a criação, todos os seres do universo,
que, na ótica bíblica, "saíram do sopro divino". Então, todos os seres têm
sacralidade, qualidade e dignidade. Sacralidade nada tem a ver com
antropocentrismo, como é falsa a sacralidade que inclui só o homem. A
ética dos animais tem poucas décadas, mas veio para ficar. Bentham, na
fundação e Singer na continuação do utilitarismo, são autoridades
máximas, sobretudo no capítulo da ética dos animais.

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Como o utilitarismo optou por distanciar-se da metafísica e aproximar-se


das ciências econômicas sofre críticas especialmente de outras filosofias,
dos antropólogos e sociólogos. Mas as críticas fazem parte do debate
ético. A meu ver, o flanco mais exposto de Singer é o tema da pessoa
humana que tem uma longuíssima tradição filosófica e metafísica: não é
convincente a distinção do “homo sapiens ", um ser da espécie humana
meramente biológico e a pessoa dotada de razão. A tese do especismo,
que deriva dessa primeira, fica igualmente fragilizada.

O mérito principal do utilitarismo, no que se refere à ética dos


animais, é o de ter dado destaque e centralidade à sensibilidade, ao prazer
e à dor dos animais. F. Singer chegou lá a partir do princípio da igual
atenção ética a interesses iguais.
Aristóteles, na Ética a Nicômaco, diz que sentir dor e prazer
define a essência do animal. Mas ele não atribuiu nenhum valor ético a
essas manifestações exatamente porque, para Aristóteles, a ética só é
possível no nível da racionalidade. Assim sempre pensaram todos os
filósofos posteriores, tendo em Kant seu último grande expoente dando
fôlego ao antropocentrismo.
Mas hoje a ética dos animais é defendida também pela via da
evolução da vida, pela ética dos ecossistemas e pelas éticas
preservacionistas da natureza e das espécies da vida. A completar essa
perspectiva, nos últimos anos do milênio, o mapeamento do genoma
humano deu foro científico à teoria da evolução ao provar o grande
parentesco genético entre homens e chimpanzés, entre homens e lesmas.

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CONCLUSÃO

Uma boa conclusão é aquela que nada conclui, nada fecha, pelo
contrário, abre os temas tratados para novas indagações.
Nesta ótica, encerro os trabalhos deste livro sob o signo da
universalidade, palavra importante em filosofia, mas traiçoeira. A ética
sempre, desde os gregos até hoje, quis ter uma abrangência universal;
mas, de fato, nunca saiu da particularidade da espécie humana. As teorias
éticas sempre ignoraram os outros seres da natureza porque não pensam,
não ponderam e não podem tomar decisões. Estas são as atividades das
quais a espécie humana se serviu para instituir-se como único ser ético,
única dignidade no meio de utilidades que só têm valor de troca.
A partir dos anos cinquenta do século passado, as coisas
mudam de rumo no campo da ética. As pessoas começaram a perguntar
se a dignidade ética tem origem exclusiva na capacidade de pensar ou se,
pelo contrário, poderia originar-se no modo de existir de cada coisa. Todas
as coisas são seres existentes; portanto, dignos pelo simples fato de
existirem e do modo como existem: o vegetal, o animal e o mineral. Isto é,
estes seres têm valor ético por eles mesmos, pelo seu modo de existir e não
deixam de ser morais porque não pensam. Foi a partir do reconhecimento
do valor intrínseco da natureza que se criou a ética ecológica, a ética dos
animais e a bioética que trata da relação entre ciência e qualidade ética.
Assim a ética tomou-se realmente universal.
O filósofo Bergson, no início do século XX defendeu uma teoria ética de
toda a natureza justamente porque todas as coisas partem de um mesmo
impulso originário, o impulso vital, o mesmo élan que vigora no fundo
dos seres vivos e não vivos criando um parentesco ontológico na natureza.
Introdução à Ética Contemporânea

Muitos séculos antes, pelo caminho da mística, S. Francisco de


Assis, descobriu a fraternidade de todas as coisas e a todas tratava como
irmãs, não por um piedoso sentimental, mas por reconhecer nelas uma
mesma fonte originária divina.
Enfim, hoje estamos no estágio inicial de uma ética de fato
universal, a ética antropocósmica que abrange todos os seres naturais,
mas também, todos os artefatos científicos. Por seu lado, muitos
populares, cientistas, filósofos e agremiações ecológicas estão fazendo a
autocrítica da antiga vontade de dominação. A inteligência que a natureza
nos deu serve para ordenar o mundo, a história, a ciência e a natureza e
não para destruí-la.
A partir da visão da universalidade da ética podemos fazer
grandes pregressos em bioética, ecologia e ética dos animais que foram
capítulos deste livro.

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