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A Ética Dos Animais (Texto 7)
A Ética Dos Animais (Texto 7)
INTRODUÇÃO
À ÉTICA CONTEMPORÂNEA
A ÉTICA DOS ANIMAIS
VOLTANDO À HISTÓRIA
Esse capítulo é uma extensão do anterior. Vimos que os animais
eram tratados como objetos sem importância ética, utilizáveis como
instrumentos para realizar ações do interesse do homem: fazer guerras,
transportar cargas, puxar carroças, arar a terra e finalmente servir de
alimento; pode servir para a diversão esportiva, como na “corrida de
touros" em que o animal sofre golpes cruéis até morrer. Sendo máquinas,
matá-los era um ato indiferente, sem valor ético.
O tratamento agressivo e violento aos animais talvez se deva à
concepção equívoca que a humanidade, especialmente na época moderna,
se fez deles. O animal nunca foi tema de reflexão filosófica antes do século
XX. Para a filosofia moderna, o animal é um ser ambíguo que oscila entre
ser mera coisa, objeto útil, inerte e um mecanismo estranho capaz de
retomar suas energias; uma realidade mecânica que flutua nas
proximidades da vida. Essa equivocidade do conceito de animal foi
sintetizada por Heidegger em termos didáticos: "Pedra não tem mundo; o
animal é pobre em mundo e o homem é formador do mundo" (Heidegger,
1970:104-107). Explicitando, o mineral não tem nenhuma abertura à
relação com as coisas, existe em passividade total; já o animal se comunica
pobremente, sempre do mesmo jeito, sem condição de decidir-se para
ações novas, sujeito ao determinismo da natureza; ao contrário, o homem
constrói o mundo pela cultura, pela ciência, pela filosofia no exercício da
liberdade.
Então não há nada a reconhecer no animal? Nada tem de
respeitável? Não há nenhum comportamento especial do homem em
relação a esse ente? É bem conhecida a resposta de Kant a essas perguntas:
"O animal é um ser análogo da humanidade, por isso, prestando-lhe
alguma proteção, algum cuidado, não é a ele que o fazemos; mas à
humanidade".
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Em 1789, Jeremy Bentham, num texto famoso e irônico, afirma que "a cor
da pele não é um argumento suficiente para entregar um homem a um
torturador; e talvez descobriremos, um dia, que o número de pernas, os
pelos e o rabo não são um bom motivo para infligir a uma criatura sensível
sofrimentos físicos".
Essa linha de raciocínio permaneceu latente, mas persistente ao
longo da história do pensamento. Foi minando e enfraquecendo o
princípio grego, medieval, kantiano e Rousseauniano do valor moral
reservado só ao homem. Aplainou-se assim o terreno para a afirmação da
tese atual do valor intrínseco para todos os seres vivos: humanos, animais
e vegetais.
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O animal não precisa dessa dimensão para ser o que é. Mas para que
tenhamos um ser humano é preciso que haja além da sensibilidade, razão
e liberdade, nível específico do homem. Isto não dá ao homem um
superpoder no seio do mundo natural, como teme Singer, a não ser por
uma teoria exclusivista como o antropocentrismo. Bem entendidas, a
inteligência e a liberdade são produtos da evolução, seu momento mais
elevado; mas a inteligência e a liberdade estão a serviço de todos os seres
e não só do homem. Pela inteligência e liberdade, a natureza inteira galga
o nível da razão. A natureza produziu a razão, tornou-se um todo capaz
de governar-se através da inteligência no homem.
Então entre o homem e o animal existe continuidade e também
descontinuidade. Em metafísica, se chama analogia, isto é, a semelhança
entre o homem e o animal e, ao mesmo tempo a diferença. O animal não
é um ser humano diminuído ou inacabado e nem o homem é um animal
elevado a pensar para dominar. São duas realidades metafísicas plenas,
dois seres completos cada um segundo seu modo de existir.
Um último comentário, para concluir. Singer afirma: "O
elemento fundamental, a tomada em consideração dos interesses da
criatura, sejam quais forem seus interesses, deve, por força do princípio
de igualdade, aplicar-se a todos os seres de raça branca ou negra, de sexo
masculino ou feminino, de natureza humana e não humana".
A reflexão é inquestionável se considerarmos que "humanos e
não humanos têm interesses sensíveis iguais". Sucede, porém, que, do
ponto de vista metafísico, as diferenças de raça, sexo e cor são acidentais
e em nada podem alterar as estruturas ontológicas e o tratamento igual
para todos. As diferenças fundamentais não estão aqui, nos exemplos
citados por Singer; mas estão na estrutura ontológica do animal
(sensibilidade) e do homem (sensibilidade e razão). Portanto, são
idênticos na sensibilidade, diferentes na racionalidade. E os níveis
ontológicos diferentes demandam tratamento moral diferente. Essa
diferença não está em considerar mais elevado um e rebaixar o outro.
Nada disso: cada um é pleno de dignidade por aquilo que é: um é pleno
como ser sensível e outro, pleno como ser racional.
Singer oferece um exemplo claudicante. Diz ele: "Existem
animais não humanos cuja vida terá mais valor que aquela de certos
humanos. Um chimpanzé, um cachorro ou um porco terão, por exemplo,
uma consciência mais aguda de si e uma capacidade maior de estabelecer
laços que um feto gravemente imaturo ou um indivíduo num estado
avançado de senilidade".
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CONCLUSÃO
Uma boa conclusão é aquela que nada conclui, nada fecha, pelo
contrário, abre os temas tratados para novas indagações.
Nesta ótica, encerro os trabalhos deste livro sob o signo da
universalidade, palavra importante em filosofia, mas traiçoeira. A ética
sempre, desde os gregos até hoje, quis ter uma abrangência universal;
mas, de fato, nunca saiu da particularidade da espécie humana. As teorias
éticas sempre ignoraram os outros seres da natureza porque não pensam,
não ponderam e não podem tomar decisões. Estas são as atividades das
quais a espécie humana se serviu para instituir-se como único ser ético,
única dignidade no meio de utilidades que só têm valor de troca.
A partir dos anos cinquenta do século passado, as coisas
mudam de rumo no campo da ética. As pessoas começaram a perguntar
se a dignidade ética tem origem exclusiva na capacidade de pensar ou se,
pelo contrário, poderia originar-se no modo de existir de cada coisa. Todas
as coisas são seres existentes; portanto, dignos pelo simples fato de
existirem e do modo como existem: o vegetal, o animal e o mineral. Isto é,
estes seres têm valor ético por eles mesmos, pelo seu modo de existir e não
deixam de ser morais porque não pensam. Foi a partir do reconhecimento
do valor intrínseco da natureza que se criou a ética ecológica, a ética dos
animais e a bioética que trata da relação entre ciência e qualidade ética.
Assim a ética tomou-se realmente universal.
O filósofo Bergson, no início do século XX defendeu uma teoria ética de
toda a natureza justamente porque todas as coisas partem de um mesmo
impulso originário, o impulso vital, o mesmo élan que vigora no fundo
dos seres vivos e não vivos criando um parentesco ontológico na natureza.
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