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Foi adequado,
ampliado e melhorado para ser publicado numa Revista Qualis A a qual já foi aceito.
Resumo: Neste texto procuro levantar historicamente os rios Maranhão, Passa Três e o Ribeirão
Machambombo em Uruaçu-GO como um símbolo representativo dos rios brasileiros que se constitui
ingrediente básico para o surgimento das cidades, mas como consequência, de seus crescimentos viram as
costas ao rio. A História Socioambiental se apresentou fundamental para esta análise.
Bem recentemente, ali por minha infância e adolescência conheci bem os rios,
ribeirões, córregos e poços3 da cidade Uruaçu e de suas imediações. Era o poço da
usininha4, poço da Tigela e da Bacia no fundo da chácara do Severino Paraíba. O poço da
chácara dos padres... Era o córrego Machambombo onde se buscava alvas areias para
arear o alumínio, catar girino, tomar banho... Rio Passa Três onde nadávamos na prainha
e na ponte velha... rio Maranhão dos piqueniques na cachoeira do Machadinho, mas
também das travessias nas balsas e em canoas ...
Em sentido amplo, os rios são entendidos como um espaço, ou uma porção
do espaço terrestre individualizado, logo identificável. Sei que entender suas histórias
como espaços sociais e ambientais exige conhecer, recuperar e preservar as suas
geograficidades. Por tudo isso estou atenta a um referencial teórico que possa dar conta
de uma compreensão mais elaborada da complexidade que se estabelece em torno dos
espaços vividos sob a perspectiva da História Ambiental.
Quanto aos rios entendo como indicadores da situação espacial, concebido
com base nas relações entre “natureza” e pessoas. Assim sendo, parto do pressuposto de
que a categoria rio tem pertinência histórica como categoria de análise socioambiental.
Algumas categorias e conceitos se apresentam necessárias para reunir aportes mais
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Os resultados aqui apresentados são frutos do trabalho de pesquisa desenvolvido e coordenado pela
Profa. Dra. Gercinair Silvério Gandara na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade
Estadual de Goiás com o projeto intitulado “Estudos Socioambientais dos Rios Cidades-Beira do/no
Norte Goiano: Uruaçu e cidades circunvizinhas”.
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Docente da Universidade Estadual de Goiás. Pós-Doutora em História Universidade Federal de Goiás
(2009-2014). Doutora em História Social pela Universidade de Brasília (2008). Coordenadora Geral do
LHEMA (Laboratório de História e Estudos Multidisciplinares em Ambientes) Líder do Grupo de Pesquisa
História Ambiental: territórios, sociedades e representações e do Grupo de Pesquisa Rios e Cidades na
História do Brasil. E-mail: gercinair@msn.com. gercinair.gandara@ueg.br
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Poços são trechos de córregos mais profundos no percurso.
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Uma usina hidrelétrica foi construída no rio Passa Três e distribuía a “força”, a luz da cidade na década
de 1950.
consistentes e fundamentais para minha análise do território das águas. Assim pensado e
no intuito de atingir o propósito da discussão procurarei identificar e qualificar os termos
teóricos básicos que compõem o centro da discussão, com o objetivo de compreender o
sentido destas representações e de suas dinâmicas. Sintetizarei algumas ideias abrindo
caminho para interpretações alternativas sobre o chamado “território das águas”, o rio.
Uma das categorias fundamental para entender os rios como espaço social é
o entendimento do conceito de espaço, pois segundo Henri Lefvre “cada sociedade produz
um espaço, o seu. E esse espaço deve ser pensado a partir do seu conteúdo material e
social, ou seja, como materialização do processo histórico”. (LEFVRE: 1974 p. 48).
Colocamos como premissa, de início, a condição de que o espaço parece ter como
fundamento as coisas. Desta maneira, articula-se ao espaço da prática social sua
materialidade imediata. Contudo, se torna importante entender que na prática espacial, as
representações do espaço e os espaços de representação são diferentes caminhos da
produção do espaço.
Quanto ao conceito de espaço vivido lembro que no final dos anos sessenta
surgiu uma corrente francesa que deu destaque ao espaço vivido. Gallais e Frémont foram
os primeiros a valorizar a "experiência humana dos lugares, das paisagens e dos espaços,
procurando redescobrir uma ‘géographie à visage humain’". Na década de 1970, os
trabalhos de Armand Frémont e Paul Claval questionaram o método utilizado nas
abordagens do espaço vivido e do espaço percebido, contribuindo, assim, com a formação
da Geografia Cultural Francesa, que desde 1981 conta com o laboratório Espace et
Culture – Villes et Civilisations, na U. E. R. De Géographie de l’Université de Paris-
Sorbonne, onde são desenvolvidas pesquisas nesta área. Independentemente dos critérios
que definiram o conceito sabemos que os espaços vividos são o principal suporte dos
processos socioeconômicos e culturais em cada período histórico. Isso significa que eles
são os próprios fundamentos da atividade humana. Destarte, o espaço geográfico se
exprime em relações entre grupos sociais pelos quais se define uma sociedade, sendo,
portanto, um produto social, segundo Isnard (1982).
Propus a noção de território quando evoquei os rios como o “Território das
Águas”. A transformação da categoria espaço em território trata-se de um fenômeno de
representação por meio do qual os grupos humanos constroem sua relação com a
materialidade num ponto em que a natureza e a cultura se fundem. Contudo lembro que
a noção de território trata-se de uma representação coletiva, uma ordenação primeva do
espaço. A implicação temporal-espacial das representações sociais nos remete às relações
de poder que é correlato à noção de apropriação e à definição de papéis sociais
hierarquizados.
Uma das formas concretas de apropriação temporal-espacial mediada pelo
poder é o território. Para Rogério Haesbaert (1998), o território tem uma dupla face. É
um espaço dominado ou apropriado com um sentido político, mas também apropriado
simbolicamente, onde as relações sociais produzem ou fortalecem uma identidade
utilizando-se do espaço como referência. Neste sentido, a dupla dimensão do território,
cultural e sociopolítico-disciplinar pode estar conjugada, reforçada ou ainda contradita,
devendo ser analisada de acordo com as formas e a intensidade com que se apresenta a
relação entre a dimensão material (político-econômico) e a dimensão imaterial
(simbólico-cultural). Entre estas categorias, devemos lembrar, que o território esteve
muito vinculado ao controle do "poder estatal" e à constituição do espaço do Estado-
nação. É claro que esta visão de território é também uma criação cultural, mas estabeleceu
uma certa rigidez de suas fronteiras e uma fixidez temporal do controle do espaço físico.
Muitos autores têm contestado esta simplificação, dando ênfase ao caráter político não-
estatal na construção do território. Outros autores têm priorizado a dimensão simbólico-
cultural na construção do território, considerando-o como uma identificação que
determinados grupos desenvolvem com seus "espaços vividos". Entre eles, Felix Guatari
(1985) entende que,
...o território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no
seio do qual um sujeito se sente 'em casa'. O território é sinônimo de apropriação, de
subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos
quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de
investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos”.
(GUATARI:1985, p.110).
Enfatizou que mesmo que o tempo não seja estruturado dessa forma, para
qualquer entidade aprisionada dentro dele essa distinção entre passado, presente e futuro
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IBGE: Agência de Uruaçu. Aspectos históricos e geográficos elaborado por Francisco Garcês – Agente
Municipal de Estatística em Uruaçu – Julho 1956. p.04
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Ver Gandara, Gercinair Silvério. Cadinho do Brasil: Uruaçu... Cida beira, Cidade fronteira nos caminhos
dos Sertão de Goiás (1910-1960) Goiânia: Ed. Espaço Acadêmico, 2016.
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Doação da família Fernandes de Carvalho à Igreja Católica para a formação da cidade.
é quase universal. Esse sentido de tempo se baseia em fatores psicológicos, mas ele
depende também de influências sociais e culturais. Como disse Braudel, “chegamos assim
a uma decomposição da história em planos sobrepostos: ou, se se quiser, à distinção, no
tempo da história, de um tempo geográfico, de um tempo social e de um tempo individual.
(BRAUDEL, 1983, p.26)
Os rios uruaçuenses, como outros rios brasileiros vêm passando por
transformações históricas conduzida por motivações culturais, econômicas, políticas e
socioambientais. A poluição sistemática dos rios e mananciais pela ação social
compromete a vida citadina, e traz malefícios a sociedade. Eles tiveram/tem suas
condições agravadas pela precariedade do saneamento básico, pela poluição ambiental e
pela ocupação irregular das suas margens. Estes rios perpassaram de águas claras,
límpidas e/ou barrentas para escuras e fétidas. No conjunto há uma pluralidade de tempos
descompassados cujas modalidades de combinação geram mudanças a cada instante.
Aqueles mesmos rios de águas abundantes, claras e doces, as estradas que caminham, o
rio do sustento e meio de vida, dádiva primordial concedida às coletividades humanas
estão hoje degradados, fétidos e de águas inapropriadas.
Ribeirão Machambombo o mais uruaçuense território das águas
O ribeirão/córrego Machambombo divide a cidade de Uruaçu ao meio. Ele
possui uma largura inferior a dez metros. Este ribeirão se tornou o marco da cidade de
Uruaçu. Em sua razão se confere expressões de sinalização devida a topografia tais como,
“de lá” e “de cá”, “do outro lado” e do “lado de cá”, “acolá embaixo”, “lá nos Fernandes”,
entre outras.
A construção da primeira ponte, de madeira, sobre o ribeirão Machambombo
emprestou à Vila as feições que hoje a cidade possui. Esta foi uma das obras de
envergadura na gestão de Enéas Fernandes. Dessa ponte não colhemos nenhuma
impressão, pois foi demolida em 1952. Mais tarde outras pontes foram construídas. A
cidade de Uruaçu daqueles tempos não possuía ruas paralelas ou transversais, com
exceção do Beco da Ponte, calçado de pedras e o beco que fazia esquina com a Casa
Aurora. O núcleo, protegido na fazenda, cujas “ruas” obedeciam a um sistema
radiococêntrico tinha o ribeirão Machambombo como ponto zero tanto a leste quanto a
oeste e, mais tarde a norte e sul com as ruas paralelas que vão surgindo tendo como marco
o ribeirão. No mesmo lugar da antiga ponte de madeira construída por Enéas foi
construída, posteriormente, essa ponte que se mostra na imagem. Ela divide e une a
Avenida Tocantins, antiga estrada cavaleira.
Hoje as margens do ribeirão Machambombo se encontram totalmente
descaracterizada, com ausência de mata ciliar e com presença de imóveis na várzea. O
ribeirão foi canalizado desde a Avenida Tocantins até abaixo da sua primeira paralela, a
Avenida Goiás como se pode ver nas imagens que se
seguem. O ribeirão se encontra confinado na parte
central da cidade até abaixo da Rua Goiás primeira
paralela à Av.Tocantins. Abaixo desse trecho
encontra-se assoreado e contaminado por dejetos de
toda natureza
O que mais me impressionou,
negativamente, no meu retorno a cidade de Uruaçu
foi encontrar uma pracinha na várzea do córrego
Machambombo. Ela está posta logo abaixo da ponte da Avenida Tocantins entre esta e a
Rua Goiás. Certamente essa praça fora feita a título de embelezamento da cidade.
O rio Passa Três é afluente do rio Maranhão, que por sua vez é afluente do
Rio Tocantins. Ele nasce tímido em uma mina lá na Serra Dourada.
. Os rios que provem destas nascentes passam pelos espaços citadinos. Além
disso, a Serra Dourada, divisora de águas, em vários pontos é acompanhada pela BR-153,
rodovia Belém-Brasília, a qual caso seja duplicada poderá aumentar os impactos
ambientais sobre a áreas das nascentes. Os demais cursos d’água da região de Uruaçu são
de pequeno porte e em geral correm em leitos pedregosos formando encachoeiramentos,
a exemplo do córrego Machambombo. O lago formado pela barragem da usina Serra da
Mesa represou parte do rio Passa Três. Mas não o afetou no trecho a oeste da cidade de
Uruaçu onde há as dragas de abastecimento da cidade. O recuo do lago Serra da Mesa
somado ao assoreamento do rio Passa Três tem prejudicado a captação de água em Uruaçu
que tem sido feita pela metade do que seria necessário para atender a população. Além
disso o rio Passa Três recebe a carga de despejos e dejetos urbanos sem tratamento. Outra
preocupação ambiental que percebemos é a intensa proliferação de algas no rio Passa
Três, que deságua no Lago Serra da Mesa. Em condições naturais, a acumulação de
matéria orgânica contida nas margens desses ribeirões e córregos pode acarretar numa
coloração mais escura de suas águas.
Rio Maranhão... Lago Serra da Mesa
O alto rio Maranhão tem as águas relativamente limpas, embora as atividades
agrícolas e o adensamento populacional estejam contribuindo para sua poluição. Na
região da divisa do Distrito Federal com Goiás sofre também as consequências da
atividade mineradora. Na região de Uruaçu, o rio Maranhão também teve atividades
garimpeiras que foram historicamente de vital importância para o crescimento do
município. Na década de 1980 esta atividade foi considerada uma fonte geradora de
empregos no município que propiciou significativo crescimento demográfico e comercial
da cidade. Hoje, as atividades garimpeiras são praticamente inexistentes, porém, um
grande percentual da população - migrante - permaneceu na cidade e município exercendo
outras atividades.
Entre Uruaçu e o município de Niquelândia se fazia a travessia do rio
Maranhão por balsas e canoas. As balsas tinham como força motriz o braço humano para
pegar impulso e depois deslizava no cabo de aço. A força braçal somada à musculatura
do peito que desempenhavam maior função, pois servia de apoio a uma extremidade do
varão pesado para empurrar a embarcação.
Na década de 1970 se construiu uma ponte sobre o rio Maranhão. Ela foi
construída exatamente no local de travessia das balsas. Mais tarde, com a abertura das
comportas da Hidrelétrica da Serra da Mesa fora totalmente coberta/inundada submersa
pelas águas que formaram o Lago Serra da Mesa. A foto mostra a inundação da ponte
sobre o rio Maranhão e a sociedade em última visita à ponte.
Inundação da antiga Ponte sobre o rio Maranhão com a abertura das comportas da |Hidrelétrica
Serra da Mesa para Criação do lago de Serra da Mesa
Em consequência da
formação do lago em terras uruaçuenses percebemos um crescimento, retomado, rumo a
Leste, ou seja rumo ao Lago Serra da Mesa. Muitas chácaras de lazer se formaram,
flutuantes e bares na orla movimentou o beira-lago. Mas veio a estiagem e as aguas
baixaram. Não chegou ao que era como rio, mas também deixou o aspecto majestoso do
grande Lago. Das aguas profundas do Lago Serra da Mesa vimos emergir a antiga ponte
do rio Maranhão. Acompanhei e registrei seu emergir por meio de fotografias, as quais
aqui socializamos.
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Esta ponte após a sua submersão reapareceu na seca de 2001 e pela segunda
vez emerge neste ano de 2016. Segundo notícia veiculada no Jornal O Popular de
11.10.2016 “o volume de água chegou a 9,91%, segundo os dados do Operador Nacional
do Sistema (ONS). O pior patamar dos últimos quinze anos ficando atrás justamente do
mês de novembro de 2001 quanto o nível atingiu 9,12%”. Hoje o grande lago se encontra
assim com as águas baixas e com as margens desnudas.