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e Encontro de Saberes
Rosângela Pereira de Tugny
Gustavo Gonçalves
organizadores
Brasília, DF
Instituto de Inclusão no Ensino
Superior e na Pesquisa – UnB
Salvador
EDUFBA
2020
Desenho de Capa
Zé Antoninho Maxakali
Revisão
Mariana Rios
Normalização
Sandra Batista
ISBN: 978-85-232-2054-9
CDD – 378.1
Editora afiliada à
Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo
s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – Bahia
Tel.: +55 71 3283-6164
www.edufba.ufba.br
edufba@ufba.br
9 Apresentação
13 Introdução
Encontro de Saberes, descolonização e transdisciplinaridade:
três conferências introdutórias
José Jorge de Carvalho
CAPÍTULO 9
MOVIMENTOS SOCIAIS E
CONHECIMENTO EMANCIPADOR
INTRODUÇÃO
Para falar de movimentos sociais e conhecimento, parto de minhas origens.1
Sou do povo preto que veio da África e indígena tupinambá, povos de conhe-
cimentos e saberes milenares. Sou fundador do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) da Bahia, participei do movimento de trabalhadores
em São Paulo na década de 1980 e sou herdeiro dos que fizeram a revolução
na Rússia, dos anarquistas que fizeram a primeira greve geral no Brasil, há 100
anos. Hoje, estou na construção da Teia dos Povos, na certeza de que temos que
enfrentar o capital, senão o capital destruirá a humanidade.2
1 Este texto é construído a partir da junção e edição de transcrições de dois momentos de fala de Joelson
de Oliveira: a aula inaugural proferida no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (Ihac) do campus
Sosígenes Costa da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) em 4 de julho de 2017, gravada e poste-
riormente transcrita por Isak Serafim e editada por Paulo Dimas de Menezes; e a palestra proferida em
10 de julho de 2018 durante o Seminário UFSB Popular e Pluriepistêmica, transcrita e editada por Rosân-
gela de Tugny (N. do O.).
2 Segundo a página oficial da Teia dos Povos: “A Teia dos Povos foi criada a partir dos diálogos continua-
dos da I Jornada de Agroecologia da Bahia, realizada em 2012 e tem o papel de traçar a agenda de ações
anuais que auxiliam no desenvolvimento, empoderamento e emancipação das comunidades integra-
doras. Participam segmentos como acampamentos, assentamentos, quilombolas, indígenas, mestres e
lideranças de tradição oral, pequenos produtores, estudantes, pesquisadores e profissionais em Agro-
ecologia. A Teia dos Povos é uma articulação agroecológico inserido nos movimentos e comunidades,
promotor de mudanças para uma nova sociedade a partir da emancipação, autonomia e dignidade do
ser humano, da Mãe Terra e das suas sementes. A Teia tem como princípios fundantes: I. Terra e alimen-
to como princípio filosófico e de vida, que se constrói através da solidariedade irrestrita aos movimen-
tos pela defesa da territorialidade, tendo como instrumento a pedagogia do exemplo. II. O trabalho e o
estudo para liberdade que possibilite a construção de um novo modo de vida, desconstruindo a herança
dos modelos capitalista, racista e patriarcal. III. Reafirmar o olhar ancestral na edificação de um novo
tempo, contextualizado à nossa forma. A Teia dos Povos criou uma Rede de Sementes Crioulas, promove
e realiza Feiras de Troca de Sementes, Mutirões de Reflorestamento e Plantio de Alimentos, formações
em agroecologia e educação do campo, encontros e espaços auto-organizados pelas mulheres, e Jorna-
das de Lutas para reivindicar os direitos das comunidades integradoras”. Ver em: https://www.facebook.
com/TeiadosPovosoficial/ (N. do O).
Para isso, tenho certeza de que vamos construir essa universidade e não vamos
perdê-la para as elites, porque ela vai nos trazer muita alegria, muitos cientistas,
muitos músicos, muitos médicos e contadores de histórias. Ela vai ser nossa e
vamos ter orgulho dela no mundo todo. Estou aqui na universidade, na casa do
conhecimento, da sabedoria, mas eu também venho de um local que tem conhe-
cimento e sabedoria milenar. Tenho dever de dizer a vocês que eu sou do povo
negro, que veio da África, e lá tem muito conhecimento. Nessa travessia, perde-
mos mais de 20 milhões, mas nós estamos aqui de pé.
Também tenho sangue indígena tupinambá, do povo guerreiro, que tem
muito conhecimento na arte de navegar, na arte da guerra e também vários
conhecimentos na área de “fazer genética”, como outros estão querendo agora
fazer e patentear, dizendo que são donos do conhecimento e também das terras
indígenas. Quando nós fazíamos aqui, não patenteávamos nada – as coisas que
nós praticávamos eram para serviço do nosso povo, da humanidade. Não preci-
sávamos de patente, pois o conhecimento era nosso; agora já vão patenteando,
querendo cobrar royalties, cobrando tudo. Isso é muito difícil para a nossa gente
entender. E eu sou descendente desse povo.
Sou também fruto dos movimentos sociais. Sou daqui do sul da Bahia, de
Itamaraju. Ajudei a fundar o MST na Bahia e já estive em todas as suas ins-
tâncias, desde a base até a mais alta patente. Tenho orgulho de ser do MST e
também da minha trajetória no movimento operário, no movimento de desem-
pregados em São Paulo, no início dos anos 1980, e falamos hoje, há 100 anos da
Revolução Russa, 100 anos também da primeira greve geral no Brasil conduzida
pelos anarquistas.
E hoje estou numa construção, não de mais um movimento, porque já exis-
tem muitos movimentos. É a construção da Teia dos Povos, em que estamos ten-
tando trabalhar, na decisão de juntar os povos, no sentido e na certeza de que nós
temos que enfrentar o capital ou o capital destruirá a humanidade. Isso é o que
nossa geração e a nova geração devem enfrentar.
Quando vi sua proposta, disse: “é essa que precisamos, temos que ‘cair pra den-
tro’ para construir essa universidade, porque ela tem uma proposta inclusiva,
uma proposta que sai dessa mesmice...”. Estava pensando nessas coisas, que
as universidades públicas são elitistas, mais privadas que públicas, que levam
as pessoas a não saberem nada. Como minha avó falava: “meu filho, você está
lavando a cabeça de burro com sabão…”, como que dizendo que dali se sai mais
besta do que entrou, quando assistimos a algumas discussões infinitas, que não
têm nenhum papel na construção humana.
Então, quando vi no papel essa universidade, fiquei maravilhado: “essa
universidade agora vai ajudar”. Porque eu tinha conhecido outra universidade
pública da região, onde o governo do Estado gasta quase 300 milhões todo ano
para mantê-la. Ela não consegue sair do seu muro para ir para um povoadozinho
que é vizinho. Essa universidade, que era para gerar um projeto de desenvolvi-
mento para nossa região, não consegue sair do núcleo dela para ir num povoado
ali colado. E fala de sustentabilidade enquanto o esgoto da própria universidade
cai no rio vizinho, o Rio Cachoeira, que já está morto ao lado dessa comunidade.
Então, nessa universidade que já existia – não estou falando mal dela, só colo-
cando as contradições –, o governo do Estado não faz conta e gasta 300 milhões
por ano. Em todos os cursos importantes, que seriam para fazer qualquer tipo de
intervenção na comunidade e na região, 90% dos alunos não são da região. A uni-
versidade que é pública, paga com dinheiro público, então passa a ser privada,
porque vem gente de fora, que estudou nas melhores escolas particulares e assu-
miu, na universidade, o lugar dos estudantes da região. Aí que fui entender uma
professora falando que não tem necessidade de discutir desenvolvimento regio-
nal e local, porque a universidade não deve ter essa preocupação.
Já havia visto essa professora dizendo que não é dever da universidade bus-
car desenvolvimento para a região, para as localidades, que a universidade não
tinha nada a ver com isso. Então, aqui eu pergunto: qual é o papel da universi-
dade? Se, com o acúmulo de conhecimento que tem, com as possibilidades que
tem, com dinheiro público, se ela não tiver condição de pelo menos provocar os
seus estudantes, os seus professores, para propor um desenvolvimento local e
regional, então essa universidade não vai ter servido para nada.
Por isso, quando vi a proposta dessa universidade nova, achei que devia bater
palma. Eu ainda estou confiante nessa escola, acreditando que ela pode ser vetor
de desenvolvimento dessa que é uma das regiões mais pobres do estado, o sul e
o extremo sul da Bahia. Os maiores índices de violência estão nessa região, por
causa da pobreza, do apartheid, da miséria. Todos os índices, de tudo o que há
de ruim, estão aqui nessa região. Mas acredito nessa universidade, com os pro-
fessores que tem, com os quadros que tem; acredito que, se a juventude agarrar
essa proposta, podemos não deixar acontecer o que aconteceu com outras uni-
versidades públicas na Bahia.
Ela tem que ser diferente, tem que ser uma universidade inclusiva, com os
indígenas com os quilombolas, com os assentados, com os pequenos produtores,
bonita que é aqui. Nós dos movimentos sociais, nós dos povos originais, nós do
povo preto temos que entender essa missão nossa.
Mais que vir para essa universidade, nós não podemos ficar só no smartphone
pensando que aquilo é uma máquina para entreter a gente. Essa é uma máquina
de guerra e pode servir tanto pra nosso bem quanto para nosso mal. E a univer-
sidade também é desse mesmo jeito. Tem muita gente que quer que só a ciência
prevaleça; tem gente que pensa que a ciência é tudo, como o pessoal que está
tentando fazer com que a gente acredite que “o agronegócio, é tec, é pop, é tudo”.
Não é verdade. Eles desembolsam milhões, bilhões de reais para serem eficien-
tes e não são eficientes. Tem que fazer uma propaganda danada, daquela na
Globo, para dizer que eles são tec, são pop, são tudo.
Quem enxergar além dessa propaganda, vai ver que 70% dos alimentos são
produzidos pelos pequenos agricultores, pelas comunidades ribeirinhas, pelas
comunidades tradicionais – 70%! E se for olhar a quantidade de terra e a quan-
tidade de recursos que nós temos e a que eles têm, é insignificante aquilo que
eles colhem todo ano. Então, acho que a gente precisa já assumir o nosso papel,
o nosso comando, a nosso favor. Esse é o nosso papel.
Nós temos que nos agarrar ao projeto estratégico dessa universidade, como
ela foi proposta. Essa universidade se propõe a ser uma universidade inclusiva,
aberta, uma universidade que Darcy Ribeiro pensou – e Anísio Teixeira! Ela
começou a ser implementada na Universidade de Brasília (UnB), não consegui-
ram, e agora nós temos essa possibilidade, aqui, nessa região.
E lembrem-se que essa região é a última fronteira da universidade pública
federal. Nós só tínhamos uma aqui na Bahia, a Universidade Federal da Bahia
(UFBA), em Salvador, e tinha a escola de agronomia do Recôncavo, que hoje é
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Então, só tínhamos esses
dois lugares para estudar e tínhamos que nos deslocar, exceto quem fosse para
as universidades particulares e as duas universidades estaduais: a Universidade
Estadual de Santa Cruz (UESC), que é lá no sul, e a Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), que tem campus aqui, mas com recursos limitados para nós. Hoje,
temos o prazer e a alegria de ter uma universidade federal que atende ao sul e
extremo sul da Bahia.
Isso, para nós, foi uma conquista, mas precisamos internalizar esse ganho
porque, se ficarmos com as cotas somente, vêm dois, três indígenas para cá e
somem no meio da multidão. Se ficar só procurando cota aqui para o povo preto,
também sumiremos na multidão. Se também ficar escrevendo que os Colégios
Universitários (Cunis) vão lá para as nossas comunidades, mas sem dinheiro,
sem orçamento, então nós não teremos a nossa universidade.
E nós, todos nós, sabemos que estamos passando por uma crise generali-
zada, não só no Brasil, mas em todo o mundo – mas essa é a crise terminal do
capital. E toda vez que há uma grande crise, quem paga? É quem? Os pobres.
Eles lá fazem uma dívida grandiosa, não perguntam nome, não fazem nada que
deviam, depois quem “paga o pato” somos nós.
Aí vai faltar dinheiro para os Cunis, para bolsas, para contratação de profes-
sores, e não vai ter como aumentar salário – porque agora colocaram numa lei
que são 20 anos para não aumentar salário, não é isso? São 20 anos! Então, nós
fomos praticamente roubados aí, e não fomos nós que fizemos essa crise. É uma
crise de um grupo pequeno, que depois generaliza para todo mundo pagar, e
quem paga a parte maior somos nós.
CONHEÇAM A POLÍTICA
Aí tem uns sabidos, não é? Muita gente dizendo “eu não faço parte, não sou de
partido político, não sou nada...”. Cuidado com esse discurso! Nós não pode-
mos fazer parte de politicagem, da malandragem, mas da política nós temos que
fazer. Entender para “botar o dedo”, porque, no final, quem paga as contas somos
nós. Bertolt Brecht tem um poema muito bom, em que ele fala para a gente assu-
mir o comando. E eu estou dizendo pra vocês: conheçam a política! Venham pra
o campo da universidade e conheçam a política, porque é ela que define tudo.
Infelizmente, é ela que decide tudo.
Mas não queiram ser os maus políticos, os golpistas, os malandros, gente de
propina; não queiram ser esse pessoal. Sejam políticos para a gente preservar
e cuidar do bem comum. Esse tem que ser o real poder político. Não podemos
desistir nunca de ter esse poder.
Nós estamos também num momento difícil para os movimentos sociais, por-
que não estão entendendo o papel estratégico que têm, correndo atrás de coisas
pequenas. Todo mundo agora está falando em eleições? Nós já quisemos resolver
o problema assim. Nós elegemos um presidente, depois elegemos uma presidenta
mulher, e isso não resolveu o problema. Nós estamos de novo querendo cair no
conto do vigário, atrás de soluções fáceis. Por quê? Não existe solução fácil.
Essa elite que está aí é uma elite escravista, é uma elite que está no poder
desde de 1500. Vocês acham que ela vai dividir o poder com os movimentos
sociais? Vai entregar terra indígena? Vai entregar terras aos quilombolas? Vai
entregar terras para o MST? Vai entregar terra aos movimentos sociais? A troco
de quê? Por que eles são bonzinhos?
Só para dizer do mar, 20 milhões de negros morreram. Eles mataram. Mais
de 4 milhões de indígenas, eles mataram, estupraram, fizeram a maior perversi-
dade. Nós que sobramos, nós, negros, indígenas, vivíamos no máximo 20 anos,
de tanto castigo, tanto ataque, tanto trabalho forçado, tanta coisa que nós não
temos nem condições de lembrar. Fizeram tudo isso aí e dessa fortuna toda se
apoderaram. E você acha que eles vão entregar de graça? Falando em eleições?
Eleger Lula agora de novo vai resolver o problema?
Nós temos que começar a entender e participar da política, mas, sobre os
movimentos sociais, eu tenho muito receio que esteja todo mundo parado den-
tro dessa canoa, que é uma canoa furada. Não existe nenhuma possibilidade de
sermos incluídos nesse sistema, de fazer reforma, de querer melhorar esse sis-
tema, porque esse sistema está falido! Esse sistema não é nosso e a humanidade
não cabe dentro dele.
Então, se não cabe, não tem outro jeito: nós temos que destruí-lo. E isso não
é fácil. Nós temos que partir para uma construção. Na humanidade, temos vários
exemplos a olhar, a entender. Na revolução de 1917, nos dez dias que abalaram o
mundo, o povo tomou o poder na Rússia. Depois, com pouco tempo, eles retoma-
ram tudo de novo. Nós fizemos a revolução e eles tomaram o poder.
Nós temos que construir o poder. Essa é uma construção popular, uma
construção grandiosa. É uma missão coletiva, mas é também extremamente
particular, individual. Não vamos fazer as mudanças depois que construirmos
e conquistarmos o poder. Nós temos que fazer revolução agora, todos os dias.
Você, dentro da universidade, tem que fazer a revolução aqui dentro. Você está
na sua casa, você tem que fazer a revolução na sua casa; você está na aldeia, você
tem que construir a revolução na aldeia. Nós temos que sair dessa alienação.
Quando algum professor vier aqui dizendo “tem uma bolsa ali na Veracel
para pesquisar eucalipto”... Não precisa mais pesquisar isso. Essa é a árvore
mais estudada no Brasil, com dinheiro público, do Banco Nacional de Desenvol-
vimento Econômico e Social (BNDES)! Eles já têm tudo. Então, vamos estudar
como é que está a situação da nossa aldeia. Quais os problemas que existem lá
na nossa aldeia, que nós precisamos estudar? Quem está na saúde tem que estu-
dar: como é que está nossa saúde na aldeia? Como nós vamos resolver? Como é
que está nossa saúde do nosso quilombo? Como nós vamos resolver? Como é que
está a economia do nosso quilombo? Como é que vamos fazer? Na nossa aldeia,
como é que está a economia?
Nós vamos ser os próprios coitadinhos? Vivendo de esmola? Nós não precisa-
mos viver de esmola. Nós temos terra, e em terra se planta!
alimento tão grandioso? Como é que vocês fizeram isso? Será que a gente pode
construir outros?
Precisamos começar a dialogar com os mais velhos, aprender com nossos
antepassados. Essas são coisas essenciais, lhes garanto. Ficamos 12 mil anos
aqui, e o pessoal que veio de fora chegou e encontrou um paraíso, uma beleza,
uma coisa extraordinária... Esse povo que estava aqui não tinha ciência? Esse
povo não tinha conhecimento? Não tenha dúvida disso; eles viveram isso. Pega-
ram uma rama venenosíssima e transformaram em uma coisa grandiosa, cria-
ram outros conhecimentos, conheciam as ervas medicinais.
Nós temos esse conhecimento. O nosso povo tem conhecimento, a nossa
localidade tem conhecimento, e nós precisamos cuidar disso. A floresta tem coi-
sas de que nós precisamos tratar. Ao invés de estudar o eucalipto, porque não
estudamos o jacarandá, o pau-brasil, a juçara, os fungos?
Eu estava falando aqui: só no resto que ficou, nos 7% de Mata Atlântica, nós
temos trilhões de dólares! Se nós fôssemos pesquisar os fungos, saber a impor-
tância deles, pesquisar as árvores, as madeiras importantes para recompor; se
nós estudássemos a questão da água, a possibilidade de preservar a água, aí
encontraríamos milhões de coisas que poderíamos transformar em riqueza para
as nossas localidades. E nós temos que vir para a universidade pra isso: enten-
der, aprender a pesquisar essas coisas e tentar avançar nisso.
Para os movimentos sociais, estou dizendo que agora só tem um caminho.
Primeiro, é buscar a unidade dos povos. Os Sem Terra hoje não vão vencer essa
guerra sozinhos, os indígenas não vão vencer essa guerra sozinhos, o povo preto,
os quilombolas não vão vencer essa guerra sozinhos.
mas agora eles voltaram e com mais gana ainda, fazendo o maior retrocesso que
vocês podem imaginar. Não tem nem dois anos de governo e já acabaram com
todas as conquistas que tivemos. Voltaram para a mão do atraso, que está em
falência serviçalmente, para atender os interesses norte-americanos. Primeiro,
fizemos guerra, nós fomos para a guerra para defender os interesses europeus;
agora voltaram novamente com essa postura, mas só que para os interesses pura-
mente norte-americanos.
Essa universidade tem dono e a gente tem que entender isso. A escola para
dominar é uma escola de excelência e de capacidade, tem seus teóricos, tem
tudo, mas nós não entramos lá, nem passamos perto. Também tem a universi-
dade deles, de pensar, de construir. Eles têm institutos para organizar a mente de
quem vai mandar. E eles deixaram para nós? A partir de 1930, era necessário tirar
a população do campo e levar para a cidade, para servir ao desenvolvimento que
eles estavam propondo. Então, fizeram um arremedo de escola: a escola para for-
mar capatazes para mandar, formar os feitores, os capitães do mato. Mas agora já
diferente, na cidade, fizeram a escola para os obedientes, a escola mínima. Você
só tem que aprender a obedecer e a trabalhar, pois sua função é essa e mais nada.
Agora, estamos em um dilema, pois, com o avanço da tecnologia, com a apro-
priação da quarta revolução tecnológica pelo capital – desenvolvida pela huma-
nidade, mas apropriada por ele –, eles não vão necessitar de nós nem para seus
escravos. Na plantação de cana-de-açúcar, não vai precisar; na fábrica, também
não, por conta dos robôs. Eles trocaram o nome da agricultura, botaram “agrone-
gócio” e estão robotizando esse agronegócio. Até os tratores já não necessitam de
tratorista; ao invés disso, vai ter a pessoa que controla o robô.
Temos que entender isto: estamos indo para um caminho do matadouro em
um silêncio estarrecedor. Parece-me que nós não estamos entendendo a gra-
vidade desse momento, o retrocesso dele e, acima de tudo, não entendemos o
papel das cotas e como elas podem nos ajudar, porque as cotas servem simples-
mente para a gente vir para casa dos outros e bagunçar. Tem gente que está que-
rendo gostar dessa casa, mas a verdade é que aqui não tem vaga para nós. Por
mais que tenhamos professores bem intencionados, pessoas finíssimas, a casa
não é nossa, e se a casa não é nossa, eles nos expulsam a qualquer hora que eles
quiserem. Então, nós temos que entender essas premissas para que possamos
entender que a educação, a escola e a universidade são lugares que têm dono.
Se nós quisermos influenciar, temos que ser muito inteligentes para fazer isso.
Caso contrário, nós precisamos – e isso pode ser aqui na UFSB ou em outro lugar
– construir a nossa escola e a nossa universidade. Nós é que temos que construir.
O período das cotas e sua condição servem para entendermos algumas coisas.
Estive na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na Ilha do Fundão. Pas-
sei dois anos lá. O lugar da nossa escola estava caindo aos pedaços – o prédio de
Filosofia –, esse que não interessa à burguesia, não interessa a nada. A gente almo-
çava lá no restaurante da universidade, que era para pobre, tinha o teto caindo,
aquela sujeira, uma esculhambação. Então, fui entender, quando eu fui no lado
que era da Petrobras, o lado que servia ao capital, tudo era digital: colocava o dedo
para entrar, com homens musculosos na frente que barravam a entrada de quem
não estava credenciado. Fui entender que o que não presta é para nós.
Fui na África do Sul. Para surpresa minha, a mesma característica da UFRJ, a
mesma coisa! Fui pesquisar a questão da terra, a mesma desgraça: 90% da popu-
lação negra da África do Sul está com 13% da terra; 10% de branco têm 87% da
terra. Os brancos ficaram com todas as áreas do conhecimento para mandar e
dominar. E nós, com a filosofia, história, os cursos que não servem para mandar.
Então, quero dizer que, por maior que seja a boa vontade da UFSB, vamos demo-
rar pelo menos uns 20 anos nessa boa vontade para bagunçar aqui dentro. Mas,
se quisermos uma universidade, vamos ter que construir a nossa. Vamos fazer
uma universidade popular e pluriepistêmica.
Colocamos uma frase de Che Guevara lá no nosso assentamento: “O ser
humano deixa de ser escravo quando se converte em arquiteto do próprio des-
tino”. Nesse momento de crise e de discussão, essa união é muito importante,
mas temos que ser arquitetos do nosso próprio destino. Nós abandonamos a luta
de Zumbi, o povo preto; temos que retomar. Os povos indígenas vêm numa cami-
nhada e precisamos fazer uma aliança, pois eles estão em uma luta pela terra, e
união da cosmovisão africana e a cosmovisão dos povos originários é a grande
aliança estratégica que temos que construir para lutarmos por terra e território.
O povo preto tem que assumir que nossa primeira tarefa é terra para morar e
terra para plantar, pois, depois da escravidão, nós não tivemos. Os povos indíge-
nas estão corretíssimos em sua luta de retomada de seu território, e agora preci-
samos juntar para construir a nossa universidade. Temos, ainda, que construir
uma aliança que me parece que está na ordem do dia, a aliança índia-negra-
-popular, para que possamos assumir uma outra perspectiva. Como estava con-
versando com os três mestres dos saberes populares da luta, o companheiro
congolês Kabengele Munanga, o companheiro José Jorge e o companheiro
Edson Kayapó, precisamos fazer mais esse diálogo. Esse seminário aqui,3 vocês
ainda não sabem a importância dele: é um seminário histórico, porque temos de
dar conta de nós, do nosso papel e da nossa responsabilidade, e, além disso, esse
encontro vem em um momento oportuno para discutir essas questões.
Precisamos fazer esse trabalho, precisamos abrir um campo de debate para
construirmos nosso caminho e saber onde queremos chegar. O velho Raul Seixas
dizia: “eu sou o início, o fim e o meio”. O meio é o conhecimento, mas nós temos
que nos apropriar dele para fazer as transformações que nosso povo necessita.
Quando vem um índio aqui que nega seu povo, está morto. Saiu da aldeia com
responsabilidade de voltar para levar um conhecimento para seu povo ou tra-
zer um conhecimento de seu povo para esse espaço e fazer o pessoal acreditar
no conhecimento do seu povo. Seu povo, que foi renegado, destruído, mas tem
3 Joelson se refere ao Seminário UFSB Popular e Pluriepistêmica, realizado em julho de 2018. (N. do O.).
Essa construção é feita todos os dias, toda hora. É lavando o prato, cuidando
da casa, limpando a casa, plantando uma flor, lendo um pouco, ao invés de ficar
no smartphone só vendo besteira... Pega ali um livro pra ler um poema bom, vai
ouvir uma boa música, de Mercedes Sosa, dos clássicos, de Luiz Gonzaga... Para
a gente ter conhecimento, cultura e aprender, acima de tudo, a cuidar do que
é nosso. E esse Brasil, que é o país mais lindo do mundo, pode se tornar o Bra-
sil mais lindo do mundo de novo, se a gente “meter a mão na massa”, se a gente
cuidar dele, se a gente topar construir um processo grandioso de humanidade.
Darcy Ribeiro fala isso com grandeza, com muita sabedoria.
Nós podemos dizer que, como os portugueses foram sábios em construir
uma escola de navegação, nós aqui podemos ser sábios para construir grandes
universidades, para ir além do capital. E podem ter certeza que nós não vamos
perder essa nossa universidade para as elites. Nós vamos fazer de tudo pra cons-
truir uma universidade que será nossa, que vai trazer muitas alegrias para aqui,
com muitos médicos, muitos cientistas de várias áreas, vários músicos, vários
cantores, vários contadores de história... Todo mundo que puder fazer, para um
dia celebrar de novo e dizer: nós construímos uma grande universidade aqui e
temos muito orgulho dela perante o mundo inteiro.
a capacidade de ser comandantes e outros terão que trabalhar para ver o triunfo
da revolução, mas não tem caminho para esse país se não fizermos a revolução,
e a revolução é todos os dias das nossas vidas, é permanente, nunca acaba, por-
que ela não é perfeita. Não pode haver ilusão de que vamos fazer algo perfeito;
não tem perfeição. É todos os dias fazendo. Primeiro, em nós; segundo, onde a
gente mora. Onde a gente pisa, tem que fazer revolução. O pai da educação chi-
nesa disse: “Façam a ideia para os olhos e os ouvidos do mundo e ela por si só se
transforma em milhões”. Sejamos sujeitos da mudança e sujeitos de bagunçar
essa universidade para que possamos avançar nessa perspectiva.
Já disse para os professores que existe muita coisa para se fazer. Quando
estiverem tristes aqui, chateados, vão para uma aldeia indígena, porque lá tem
o maior banco de germoplasma de mangaba do mundo. Só com isso podemos
fazer milhões para retirar da condição que estamos vivendo submetidos os nos-
sos povos originais. Então, se quisermos trilhões de dólares, vamos recompor
a Mata Atlântica, destruir essa ignorância do eucalipto, da pecuária extensiva,
e vamos fazer uma revolução com a Mata Atlântica. É essa responsabilidade
que temos que assumir. Temos tudo na mão; precisamos nos apropriar do que é
nosso e retomar, junto com os povos originários, a nossa terra sagrada e respei-
tá-la como ser vivo.