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Resumo

O artigo conjectura sobre a Teoria da Guerra Justa, suas raízes


político-filosóficas e implicações ético-jurídicas da moderna forma de fazer a
guerra. Inicialmente, o texto contextualiza a história política e jurídica do
Direito Internacional do Uso da Força, passando pelos fundadores da teoria,
como Bartolomé de las Casas, Juan Ginés de Sepúlveda, Francisco de
Victoria, Hugo Grotius, Samuel Pufendorf e Emmer de Vattel. Posteriormente,
aborda os elementos duais da Teoria da Guerra Justa: o Jus ad Bellum e
o Jus in Bello. Finalmente, sintetiza as principais ideias apresentando que há
uma intrínseca conexão entre o colonialismo e as disposições ético-legais
sobre o uso da força nas relações internacionais.

Palavras-chave: Colonialismo. Relações Internacionais. Teoria da


Guerra Justa. Orientalismo. Teoria Política do Direito Internacional.

ABSTRACT
Just War Theory: ethico-juridical and politico-philosophical aspects of
the laws of war

The paper conjectures about the Just War Theory, its political-
philosophical roots and ethico-legal implications on the modern warfare.
Firstly, it contextualises the legal and political history of the International Law
of the use of Force, passing through the founding fathers of the theory, as
Bartolomé de las Casas, Juan Ginés de Sepúlveda, Francisco de Victoria,
Hugo Grotius, Samuel Pufendorf and Emmer de Vattel. Secondly, it mentions
the dual elements of Just War Theory: the Jus ad Bellum and the Jus in Bello.
Thirdly, it argues about the principle of proportionality, its indetermination and
openness. Lastly, it summarises the main ideas arguing that it has an intrinsic
connection between colonialism and the ethico-legal dispositions on the use of
force in international relations.

Key words: Colonialism. International Relations. Just War Theory.


Orientalism. Political Theory of International Law.

1.Introdução

O texto é uma breve meditação sobre a Teoria da Guerra Justa e suas


implicações para as Relações Internacionais e, como não poderia deixar de
ser, para o Direito Internacional da Guerra  . A Doutrina da Guerra Justa é
[01]

uma resposta tanto às interdições como às permissões totais da guerra


desordenada nas Relações Internacionais. Outrossim, a teoria dirige-se tanto
como crítica ao pacifismo absoluto  quanto ao realismo ofensivo  , criando
[02] [03]

categorias lícitas e ilícitas de se aplicar a violência institucionalizada contra


outros atores políticos, arrolando argumentos e justificativas em que,
pressupõe, seriam aceitáveis os conflitos armados (TEICHMAN, 1986;
WALZER, 2004). A Teoria da Guerra Justa é um método que, além de
argumentar sobre as guerras, permite criticá-las, denunciando-as como justas
ou injustas (WALZER, 2004).

Os critérios da Teoria da Guerra Justa podem ser congregados na


seguinte tipologia: (i) quem pode deflagrar e conduzir uma guerra (Jus ad
Bellum), (ii) quais as intenções e causas passíveis de serem utilizadas na
justificação de uma guerra e (iii) quais os meios (em termos de alvos,
armamentos e técnicas) que podem ser utilizados em um combate (o Jus in
Bello). Exporemos sobre esses tópicos em seguida.

Esse texto estrutura-se da seguinte forma: inicialmente, serão


apresentados os teóricos que, ao longo do pensamento jurídico e filosófico,
contribuíram para a construção da Teoria da Guerra Justa. Em segundo,
serão delineados os temas ligados ao Jus ad Bellum e ao Jus in
Bello. Finalmente, serão apresentados problemas específicos ligados à ideia
e princípio da proporcionalidade aplicado ao Direito Internacional e à Ética.

2.HISTÓRIA DO DIREITO: ÉTICA, DIREITO


INTERNACIONAL DA GUERRA E A NORMATIZAÇÃO
DO USO DA FORÇA
É difícil precisar as origens das disposições éticas sobre o combate.
Em um rápido escorço, serão apresentados alguns teóricos marcantes para a
Teoria da Guerra Justa, bem como os marcos da arquitetura jurídica
internacional dispondo sobre o Direito da Guerra.

Santo Agostinho (354-430) e São Thomás de Aquinas (1225-1274)


elaboraram seus próprios esquemas explicativos, com fundamentos ético-
religiosos sobre a moralidade e a justiça aplicada aos casos de conflitos
armados (MIGUEL, 2009). No período medieval, o cristianismo, como
expressão político-cultural da Europa, formulou a Guerra Justa em termos
dos códigos de cavalaria e honraria. A "cordialidade bélica" era, contudo,
reservada para segmentos específicos: a um estrato social (era um código
ético-militar restrito aos membros da nobreza, excluindo-se desse seleto rol,
milhares de camponeses e trabalhadores, contra os quais, a brutalidade era a
regra) e a um segmento étnico-cultural (era uma forma de tratamento
reservada aos europeus cristãos, não se aplicando aos árabes e muçulmanos
na "Terra Santa") (PASHUKANIS,  ). Enquanto argumentação, a Teoria da
[1925]

Guerra Justa deu-se em termos de conflitos para a apropriação territorial (a


Palestina histórica) e a expiação dos pecados dos cruzadistas, sob a forma
de engajamento direto no combate ou por meio de vultosas doações à
estrutura religiosa.

<!-- relacionados -->

Entre os demais fundadores da disciplina, ainda no âmbito do


cristianismo, fulguram os espanhóis Bartolomé de las Casas (1474-1566),
Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573) e Francisco de Victoria (1492-1546).
Se Casas celebrizou-se enquanto um defensor da "humanidade" dos nativos
nas Américas, Sepúlveda fez a mais evidente advocacia do expansionismo
espanhol. Sua obra, "De Justis Belli Causis apud Indos" ("As justas causas
da guerra contra os índios") concebia como conveniente e saudável a
dominação dos "bárbaros" indígenas  , descrevendo a vitória espanhola
[04]

como "um grande bem para os vencidos, para que aprendam dos cristãos a
humanidade, para que se acostumem com a virtude", e que sejam
"submetidos ao império [espanhol]". A recusa indígena à obediência motivava
a justa guerra, ou, nos termos de Sepúlveda, autorizaria que fossem
"compelidos à justiça e à probidade  " (2006, pp. 301-302). Essa "justiça e
[05]

probidade" europeia apresentaria "alguma utilidade aos vencedores", mas


utilidade "muito maior aos bárbaros vencidos  " (p. 304).
[06]

Victoria  , igualmente a Sepúlveda, pautava-se pela defesa do direito


[07]

europeu à guerra contra os não-europeus na América. Segundo ele, em seu


texto "De Jure Belli Hispanorum in Barbaros" ("Do direito à guerra
empreendida pelos espanhóis contra os bárbaros"), o caráter incivilizado e
não-cristão   dos índios na América era uma demonstração de seu estágio
[08]

evolutivo (político, social e espiritual) incompleto, como que em um momento


infantil e, por isso, deveriam ser tutelados por aqueles com maioridade, ou
seja, os europeus. Mas Victoria argumentava que a diferença religiosa, as
ambições por glória ou para a extensão do império não seriam causas justas
para uma guerra. Essa seria justificável apenas para defender-se de uma
agressão. Daí, seu raciocínio jusfilosófico dá um salto: se os índios, em
condição de minoridade, recusassem a tutelagem europeia – que serviria
para a gestão político-territorial e apropriação dos recursos econômicos do
indígena pelo europeu – estariam cometendo uma agressão! Dessa forma, os
europeus ou, mais detidamente, os espanhóis poderiam, contra essa alegada
agressão do indígena, empreender uma guerra justa. A concepção colonial-
paternalista de Victoria alega ainda que os índios eram explorados pelos
próprios líderes, uma liderança ilegítima e opressiva o que, mais uma vez,
justificaria a altruísta intervenção militar da Europa (ANGHIE, 2006).

Todavia, o primeiro a secularizar as noções de justiça na guerra foi


Hugo Grotius (1583-1645), aclamado como o patriarca do Direito
Internacional. Grotius debruçou-se sobre a questão e ponderou que, sob
certas circunstâncias, uma guerra seria "legal" e "permissível". Essas
circunstâncias seriam três: (i) a defesa contra um ataque ou ameaça de
ataque, (ii) um ato intentado restabelecer o que é legalmente devido e cujo
reparação é injustificadamente recusada, ou (iii) uma punição contra um ato
injusto (DRAPER, 2002). Como veremos, esses postulados seguem
reiterados na Teoria da Guerra Justa até os nossos dias.

Outro teórico, cujas contribuições merecem destaque, foi Samuel


Pufendorf (1632-1694). Defendendo às vantagens da paz, ele inventariou
poucas as exceções que justificariam o uso da violência: a defesa contra uma
invasão injusta ou o ataque para restauração de um dano. Em sentido
contrário, como causas injustas para uma guerra, Pufendorf censurou
aquelas motivadas pela ambição e desejos expansionistas. O jusfilosófo
também recriminou práticas excessivas durante as hostilidades, sugerindo o
banimento de danos que fossem desnecessários para a imediata defesa, o
uso de métodos "não civilizados" de guerra, como o emprego de venenos, e
indicava a observância do princípio da humanidade (PUFENDORF, 2002).
Rememorando as concepções anteriores, Emmer de Vattel (1714-1767)
também definiu de forma restritiva as hipóteses para a guerra, limitando-as
como a preservação da segurança ou de direitos e o enfrentamento a um
agressor. Vattel estipulou normas e impedimentos morais, a serem
observados durante a guerra, como a interdição aos ataques contra não-
combatentes e balizas para o tratamento dos prisioneiros de guerra (VATTEL,
1916).

Entretanto, a despeito dessas considerações histórico-filosóficas, a


regulamentação das guerras, formulando o que hoje conhecemos como o
Direito Internacional da Guerra (ou Direito Internacional Humanitário) tem sua
moderna concepção na "Declaração de Paris sobre o Direito Marítimo"
(1856). Em 1863, durante a guerra civil, o governo dos EUA publicou um
manual para as tropas da União, estipulando regras de combate, o que não
chegou a ter um reflexo tão grande, vez que se tratava de um conflito interno.
Em seguida, a "Declaração de São Petersburgo" (1868), firmada pelo Czar
Alexandre II, renunciava o uso de projéteis explosivos. Em Bruxelas, no ano
de 1874, estadistas reafirmaram as regras delineadas pelo Czar Alexandre II,
em um documento que posteriormente formaria as "Convenções de Haia", de
1899 e de 1907, dispondo sobre combate em terra e limitando o uso de gases
asfixiantes e munições expansivas (KENNEDY, 2004).

Outras regulações foram criadas, como as "Regras de Haia para


Combate" Aéreo (1923), um "Protocolo de Genebra" vedando a utilização de
gases asfixiantes, venenosos ou similares (1925) e o "Tratado de Londres
sobre o Uso de Submarinos na Guerra" (1930). Após a II Guerra Mundial, a
normatização da conduta na guerra foi recriada no sistema jurídico da
ONU. Pari passu, as "Convenções de Genebra" (1949) alargaram o
tratamento dado aos prisioneiros de guerra, feridos em combate e na
concessão de medidas protetivas aos civis em tempos de guerra. Os horrores
da II Guerra Mundial e a escala de destruição motivaram à criação de novos
patamares éticos aplicados à guerra e promoveram a inserção dos Direitos
Humanos na agenda. Nessa época, a "Convenção contra o Genocídio"
(1948) e o surgimento das cortes internacionais foram uma tentativa de
resposta às atrocidades vivenciadas na Europa. O grande avanço, nessa
época, são os "Protocolos às Convenções de Genebra", de 1977, dispondo
sobre a proteção de vítimas de conflitos nacionais e internacionais, a Carta da
ONU, impondo, de acordo com seu artigo 51  , o monopólio da autorização
[09]

do uso da força ao Conselho de Segurança e, em 1999, o estabelecimento do


Tribunal Penal Internacional, considerando como crime a prática de
agressão   (KENNEDY, 2004).
[10]

Todavia, no período seqüente à II Guerra Mundial, a forma jurídica


não avançou nas restrições ao uso da força por mero idealismo, sem esteio
em relações reais de poder. Podemos inventariar algumas motivações para o
ressurgimento do Direito Internacional da Guerra, corroendo as antecedentes
estruturas jurídico-coloniais na década de 1950 em diante. A primeira questão
é o desgaste econômico e arrasamento dos países centrais durante a Grande
Guerra que, somada às lutas sociais pelo direito à autodeterminação nos
países colonizados, tornou a manutenção dos protetorados via manu
militari mais custosa e, por isso, inviável da perspectiva do lucro. Outra
questão foi a nova distribuição de poder, com a URSS e os EUA fortalecidos
e interessados em romper o estatuto colonial europeu para que eles próprios
pudessem ter acesso à esses mercados. Esses três fatores (necessidade de
reconstrução da Europa, resistência armada nas colônias e realinhamento
dos pólos hegemônicos) na política internacional, deram força às normativas
internacionais contra o colonialismo e para o emprego da força.

3.Jus ad Bellum e Jus in Bello

A distinção terminológica entre Jus ad Bellum e Jus in Bello foi criada


pela Liga das Nações e não foi utilizada até momento posterior à II Guerra
Mundial e a Conferência de Genebra (KENNEDY, 2004; KOLB, 1997). A
primeira expressão refere-se ao direito de deflagrar a guerra, enquanto a
segunda implica na conduta durante a batalha (O’BRIEN, 1981). A distinção
está presente tanto na tradição teórica da Guerra Justa como no Direito
Internacional, carregando a noção de que, mesmo um Estado-combatente
atuando em causas justas, deve observar um corpo normativo ético-legal, não
podendo atuar livremente para impor seu direito. Evidentemente, essa
dissociação bipartida (ou tripartida, ao se considerar o Jus post Bellum, como
versaremos a seguir) vigora para fins explicativos, não sendo de fácil
apartação na realidade. Ian Brownlie (1963), em sua magistral tese de
doutoramento, depois publicada em livro, assinalou que há uma
interdependência entre os conceitos na medida em que o Jus in Bello é
determinado pelo Jus ad bellum, já que "a força empregada [na guerra] deve
ser proporcional à ameaça [que motivou a guerra]  ".[11]
As justificativas na categoria Jus ad Bellum são (i) uma justa causa, (ii)
proclamada publicamente por uma autoridade legítima, (iii) o último recurso,
(iv) tendo uma probabilidade de sucesso e (v) ser proporcional (OREND,
2000). Obviamente, a ideia de justa causa não admite qualquer
argumentação, que poderia descambar em retórica capaz de dar guarida aos
mais absurdos motivos, tal qual, como já feito, defender a expansão de um
segmento religioso, a superioridade de um grupo étnico ou a exploração
colonial. A Teoria da Guerra Justa define como "justa causa" apenas o intento
de repelir uma agressão objetivando proteger a soberania política ou
integridade territorial do Estado. Doravante, não há mais espaço para as
guerras punitivas ou de conquista e, tampouco, aquelas para imposição de
uma concepção política, étnica, ou religiosa. Há, todavia, uma mudança de
paradigma nos anos 1990, quando se formatou um discurso em torno da
"intervenção humanitária" como causa autorizativa da guerra (O’DRISCOLL,
2008). Ainda quanto à justa causa, alguns autores reputam que essa deve ser
uma resposta a uma agressão anterior. E mais: essa agressão inicial não
deve ser tida apenas como "o primeiro disparo" ou o primeiro grupo a
empregar suas tropas, mas imputá-la ao agente causal preponderante –
aquele que mais contribuiu para a guerra  (FOTION & ELFSTROM, 1986). Já
[12]

quanto à autoridade legítima, se antes havia uma cláusula de reserva para a


autoridade religiosa ou política centrada no poder discricionário do monarca,
alguns autores versam que seria de exclusividade do Conselho de Segurança
da ONU (BROWNLIE, 1963).

Quanto ao Jus in Bello, há (i) a interdição do ataque aos civis não-


combatentes, (ii) a proporcionalidade, como elemento central no
planejamento de cada operação militar e (iii) a vedação à utilização de
armamentos ou métodos de combate que afrontem à consciência da
humanidade (OREND, 2000, p. 5). Passemos a um apanhado pormenorizado
de cada um desses subitens.

A interdição do ataque aos civis não-combatentes é consentâneo com


variados princípios basilares do Direito Internacional Humanitário, entre eles o
(i) da imunidade do não-combatente, o (ii) da distinção entre os objetivos
militares e a população civil e o (iii) da identificação do objeto como legítimo
para o ataque (GREEN, 1999; OETER, 2008). Desses princípios gemelares,
depreende-se que os não-combatentes não podem ser alvo de ataques, que
a parte que empreende uma ofensiva deve distinguir a população civil dos
objetivos de impedir novas agressões e, finalmente, deve diagnosticar quais
objetos podem ser atacados.

A proporcionalidade na atuação implica em considerar injusta a


atuação excessiva ou irrazoável, ainda que para contrapor ofensiva anterior.
Desse modo, o contra-ataque deve limitar-se à interromper a agressão
(BROWNLIE, 1963). O quantum de força empregado é limitado, assim como
os locais, vez que pessoas (não-combatentes), lugares (de uso civil, hospitais
e escolas) e entidades (como organismos internacionais) podem ser
beneficiários de imunidades contra ataques intencionais não-intencionais,
gozando do privilégio de não serem expostos à assaltos que ofereçam riscos
de atingi-los (OREND, 2000).

Vedação à utilização de armamentos ou métodos de combate que


afrontem à consciência da humanidade é a proibição genérica de práticas
consideradas abjetas, podendo ser inscritas no seu rol a utilização de lança-
chamas, de venenos, de projéteis que não são identificados por raio-x,
dificultando o tratamento médico, de armas nucleares, da destruição de
cidades inteiras, de estupro coletivo, de tortura ou de outras formas de
grandes violações de Direitos Humanos que caracterizem crimes contra a
humanidade  .[13]

Finalmente, para além do Jus ad Bellum e do Jus in Bello, há uma


tendência recente no debate quanto à possibilidade de uma terceira tipologia,
como derivação da segunda, a saber, um Jus post Bellum (uma justiça
posterior à guerra). Nesse critério, se agrupariam (i) a restauração dos
Direitos Humanos, (ii) a dissociação entre a liderança política e militar, (iii)
uma proporcionalidade nos termos da paz, abstendo-se de infringir punições
draconianas, seja imputando sanções que impossibilitem a reconstrução ou
medidas que importem em formas de espoliação colonial dos vencidos,
pontos que deveriam ser seguidos por uma declaração pública.

4.A PROPORCIONALIDADE NO DIREITO


INTERNACIONAL HUMANITÁRIO
A proporcionalidade subjaz como uma das mais contraditórias
temáticas do Direito Internacional Humanitário e da Teoria da Guerra Justa.
Sua inclusão, enquanto elemento balizador das operações militares, não foi
bem recebida pelas grandes potências, insatisfeitas com a óbvia limitação
que o princípio impunha ao uso imoderado das novas tecnologias bélicas e
que significavam uma vantagem incontrastável diante do poder de fogo dos
inimigos que não dispunham de avançadas tecnologias (BEST, 1994). De
difícil (senão impossível) determinação semântico-jurídica, a
proporcionalidade é o argumento central sobre a licitude e/ou moralidade de
um conflito armado. Ela perpassa todos os cálculos para encetar a guerra
(macro-análise) e para deflagrar um ataque (micro-análise).

A tradicional conceituação de proporcionalidade coloca-a como uma


relação de meios e fins, aproximando-se do princípio da necessidade:

"A doutrina da proporcionalidade é simplesmente que os meios


utilizados devem ser justificados em termos de ganhos esperados. Isso
implica, por exemplo, que uma resposta militar mesmo para um claro ato de
agressão pode ser injustificada se os custos excederem os ganhos
esperados  " (FOTION & ELFSTROM, 1986, p. 116).
[14]

O filósofo Michael Walzer (1977) define a proporcionalidade como o


impedimento de se cominar danos excessivos, contestando a precitada visão.
Para Walzer, se a proporcionalidade fosse meramente um cálculo entre
meios e fins, todos os atos de força poderiam, de uma ou outra forma, serem
considerados como decisivos para a vitória em uma batalha e, portanto,
seriam sopesados como permissíveis. Um exemplo claro – mas grotesco –
seria um ataque indiscriminado e desproporcional, matando muitas crianças
desarmadas (caracterizando óbvia e flagrante violação à
identificação/diferenciação dos não-combatentes e da vedação de danos
excessivos), mas que, num cálculo muito simplista, causaria o choque aos
combatentes daquele grupo, abalando sua moral e, por sua vez, facilitando a
vitória. A prevalecer a tese de Fotion e Elfstrom (e a restante vulgata da
proporcionalidade), o ataque contra às crianças seria "proporcional", pois teria
permitido (e mesmo acelerado) o triunfo das tropas aliadas.

Uma visão contemporânea e com radical teor humanista é a esposada


por Larry May (2006). May apresenta que a proporcionalidade implica que "a
quantidade de força usada como tática de guerra não deve ser nem tão
grande, nem tão fraca para os objetivos a serem atingidos  " (2006, p. 211).
[15]

Para ele, o tratamento humano é o núcleo da ideia de proporcionalidade e


coloca-se como um limitador às necessidades militares, pois, em uma
ponderação entre a necessidade e a proporcionalidade, há que se prevalecer
o último. Em outras situações, mesmo quando atacando um alvo militar
legítimo, o uso desproporcional de força é inaceitável (op. cit., p. 219). L. May,
então, pugna por uma nova hermenêutica do princípio: esse deverá ser
analisado de forma a minimizar os danos e o sofrimento a ser causado,
restringindo as operações militares ao máximo (op. cit., p. 220). Nesse caso,
não é o bastante intentar não matar civis, é preciso operacionalizar isso, não
impondo riscos previsíveis a eles.

Em se prevalecendo essa concepção mais restritiva às entidades


beligerantes, não é demais repisar a formulação do Incidente Caroline (1837),
fundamental sempre que se discorre sobre o uso da força nas relações
internacionais: a auto-defesa   deve ser instantânea, necessária uma vez
[16]

que as condições não oportunizam a deliberação ou opção por outros meios,


não devendo ser irrazoável ou excessiva e restringida à necessidade de
debelar a agressão.

No entanto, apesar dessas delimitações teóricas, a literatura vem


delatando a maleabilidade, flexibilidade e indeterminação do vocabulário de
princípios aplicados à guerra (KENNEDY, 2004). O princípio da
proporcionalidade, no centro desse embate, por exemplo, vem sendo
apresentado e reapresentado como "muito escorregadio", com "tendência à
subjetividade" e "amplamente definido" devido a "terminologia aberta",
criando dificuldades para a sua avaliação, ponderação e, principalmente, a
sua própria efetivação (BEST, 1994; GREEN, 1999; OETER, 2008;
KOSKENNIEMI, 2008). Com isso, questiona-se a própria viabilidade da
utilização do precitado instituto para mensurar as operações militares e,
mesmo, de criticá-las.

Teoria da guerra justa.


Aspectos ético-jurídicos e político-filosóficos do Direito da Guerra

5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Teoria da Guerra Justa apresenta-se, em seu próprio auto-retrato,
como uma tentativa de ponderação, determinando as motivações para o
emprego da violênciainstitucionalizada e os procedimentos e técnicas para tal
prática. Se o seu propósito de regular a guerra pode ser interpretado como
nobre e mesmo idealista, as críticas à concepção da Doutrina da Guerra
Justa são arrasadoras.

Historicamente, como asseveramos, o corpo teórico da Guerra Justa


esteve atrelado ao seu berço europeu e consolidou-se como projeto jurídico e
filosófico para enfrentar "o outro", a saber, os índios em toda a América,
as sociedades na África e os povos "maometanos" no Oriente Médio, todos
descritos como bárbaros incivilizados. Em um campo sociológico e filosófico,
a Teoria da Guerra Justa mostrou-se como etnocêntrica/eurocêntrica,
favorecendo sua aplicação (i) apenas no encontro entre europeus, (ii)
incluindo de forma seletiva-discriminatória o Outro, Outro esse cujas ações
são abrangidas pelo universalismo apenas para a aplicação de sanções ou
para denunciar sua violação de direitos humanos e nunca abarcado para
extensão de benefícios do Direito Internacional.

Nesse sentido, a despeito das boas intenções de certos teóricos que


possam pensar no emprego seletivo da Doutrina da Guerra Justa para
criminalizar as operações militares ao longo do mundo, há que se ter o alerta:
a denunciação da violência desmedida, desproporcional e com nítidos
propósitos de domínio político-econômico empreendida por agentes
hegemônicos no sistema internacional, embora admirável trabalho intelectual,
tem uma forte disposição a perder-se, de forma inócua, enquanto formulação
discursiva incapaz de fazer frente ao poderio militar. O "Outro", a contraparte
do colonizador europeu, na Teoria da Guerra Justa, é tocado pelo
universalismo etnocêntrico para a inculpação e criminalização. Esse nexo da
Teoria da Guerra Justa com o colonialismo é ignorado pela historiografia
predominante e atualiza-se nas contemporâneas relações internacionais.
Basta ver que, outrora, a Martens Clause, colocada no bojo da "1ª
Conferência Para a Solução Pacífica de Disputas Internacionais", em Haia
(1899), instituíra que, no silêncio de disposições expressas do Direito da
Guerra, aplicar-se-iam "os princípios do Direito Internacional, que são
resultado dos usos estabelecidos entre as nações civilizadas" (g. n.). Vinte e
nove anos depois, o "Protocolo para a proibição do uso de gases asfixiantes
e de métodos bacteriológicos na guerra", em Genebra (1928), repetiu a
fórmula, declarando que essas precitadas técnicas de combate "foram
corretamente condenadas pela opinião geral do mundo civilizado  " (g. n.).
[17]

Posteriormente, o Estatuto da Corte Internacional de Justiça (art. 38, "c"),


formulado na década de 1940, estipulara, como fonte de direito, "os princípios
gerais do direito reconhecidos pelas nações civilizadas  " (g. n.). Finalmente,
[18]

a "Convenção (I) para a melhoria das condições dos feridos e doentes nas
forças armadas em campo  ", novamente em Genebra (1949), refere-se, no
[19]

art. 3º (1), às "garantias judiciais que são reconhecidas como indispensáveis


pelos povos civilizados  ". Assim, a exclusão do outro das práticas do Direito
[20]

Internacional não chega a ser novidade, estando consignados em seus


variados documentos que se tratava de um conjunto normativo cujos critérios
de aplicabilidade e efetividade eram para "a sociedade de nações
civilizadas  ", e não para os bárbaros.
[21]

Conquanto tenha havido forte questionamento da forma colonialista


das Relações Internacionais, iniciado no nítido enfrentamento às práticas
imperialistas, pela Conferência de Bandung, em 1955, materializado na
"Declaração Concedendo a Independência aos Países e Povos Colonizados
– Resolução 1514 (XV)" (14 de dezembro de 1960), da Assembléia Geral da
ONU e, ao fim, positivado no "Protocolo Adicional à Convenção de Genebra"
(1977), alterando significativamente as disposições do Direito Internacional e
as formas de se produzir teoricamente a Doutrina da Guerra Justa, nota-se
que foi do encontro com o "Outro" e das formas de dominação, que esse
corpo teórico desenvolveu-se.

A Conferência de Bandung (1955) repudiou claramente o colonialismo.


Já a Resolução 1515 (de 1960) alçou o direito à autodeterminação à posição
central do Jus in Bello, interditando o uso de força contra-revolucionária.
Assim ("4" da Declaração) "toda ação armada ou medidas repressivas de
todas as formas dirigidas contra povos dependentes deve cessar com o
objetivo de permiti-los exercitar pacificamente e livremente o direito à
completa independência e à integridade de seus territórios nacionais deve ser
respeitada  ". Convém nomear alguns dos países que não votaram na
[22]

aprovação da resolução, se abstendo: África do Sul, Bélgica, Espanha, EUA,


França, Portugal e Reino Unido. Obviamente, tratam-se dos grandes
beneficiários e ideólogos da expansão e dominação colonial-racista. A
questão do colonialismo foi trazida também na "Declaração de Princípios de
Direito Internacional sobre Relações amigáveis e cooperação entre os
Estados", da Assembléia Geral da ONU (A/RES/25/2625 em
1970 in Brownlie, 1983), quando se consignou que o colonialismo (qualificado
como a "sujeição dos povos à subjugação estrangeira, dominação e
exploração") era incompatível com os princípios da igualdade e
autodeterminação e, portanto, contrário à Carta da ONU (MIGUEL, 2010b).
Finalmente, o "Protocolo Adicional" de Genebra assinalou a extensão da
proteção às populações civis "em conflitos armados em que povos estejam
lutando contra a dominação colonial, ocupação estrangeira e regimes racistas
no exercício de seu direito à autodeterminação (...)  " (art. 1º, "4", 1977),
[23]

reconhecendo o problema e ampliando as garantias a esses combatentes.

Desses elementos trazidos, vê-se que a Teoria da Guerra Justa foi, ao


longo dos séculos, um continuum resultante do embate com o colonizado. No
mesmo esteio, temos a reutilização do discurso da Guerra Justa contra o
Outro, propagado na ideia do choque de civilizações, no enfrentamento
contra o terrorismo pós-11/09/2001 e na promessa de libertação dos
oprimidos nas periferias do capitalismo mundial, notadamente, no
Afeganistão, Iraque e, recentemente, Irã, configurando-se, de fato, um
retrocesso nas interdições do uso da força nas relações internacionais. No
atual contexto histórico-social, se atualizam as formas descritivas do não-
europeu, em freqüente repetição de seu caráter bárbaro, não podendo haver
momento de diálogo ou compreensão, lidando com a diferença por meio da
violência militar. Como defendemos em outra oportunidade,

"[o] conceito do "outro incivilizado" pode ser sido substituído por um


atrativo/assustador termo com o "terrorista" ou pela definição jurídica de
"combatente ilegal" – como que se o uso de violência "lícita" fosse um
privilégio do "civilizado" nós  " (MIGUEL, 2010a).
[24]

Se a barbárie do "Outro" não é mais admitida como justa causa para a


guerra, a indeterminada terminologia da "guerra contra o terrorismo" cumpre
o seu papel de substituto para a institucionalização de formas de controle e
domínio face aos novos paradigmas e necessidade do colonialismo. E, contra
o terrorismo, já se demonstrou que são aceitáveis as modalidades
anteriormente banidas do Jus in Bello, como a tortura, encarceramento sem o
devido processo legal e a ampla defesa e que, qualquer uso de força contra o
"terrorista" será admitido como proporcional. Evidentemente, tenta-se
encobrir, de forma deliberada ou inconsciente, o caráter colonizador e
etnocêntrico da mission civilisatrice contida nos postulados ético-jurídicos da
Doutrina da Guerra Justa, no exato momento de exacerbado unilateralismo
estadunidense.

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