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Revista Crítica de Ciências Sociais 

64 | 2002
Número não temático

Da estrutura prática à conjuntura interactiva –


relendo o Esboço de uma teoria da prática de Pierre
Bourdieu
Telmo H. Caria

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/1239
DOI: 10.4000/rccs.1239
ISSN: 2182-7435

Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Edição impressa
Data de publição: 1 dezembro 2002
Paginação: 135-143
ISSN: 0254-1106
 

Refêrencia eletrónica
Telmo H. Caria, « Da estrutura prática à conjuntura interactiva – relendo o Esboço de uma teoria da
prática de Pierre Bourdieu », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 64 | 2002, posto online no dia 01
outubro 2012, consultado o 22 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/rccs/1239  ; DOI :
https://doi.org/10.4000/rccs.1239
Revista Crítica de Ciências Sociais, 64, Dezembro 2002: 135-143

Revisões críticas

Da estrutura prática à conjuntura interactiva – relendo o Esboço de uma


teoria da prática de Pierre Bourdieu

A recente edição em português, pela Celta Assim, pareceu-me que um comentário


Editora, do Esquisse d’une théorie de la crítico ao Esquisse cumpriria bem este
pratique é um bom pretexto para reler- propósito e tornaria menos polémica a in-
mos um dos clássicos da teoria social terpretação, dado circunscrever-me a um
pós-estruturalista (Bourdieu, 2002), 1 pas- único texto (estou a excluir do meu co-
sados 30 anos da sua primeira publicação, mentário os três estudos sobre Etnologia
em 1972. Mais do que isso, foi para mim cabila [pp. 3-131] que precedem a Teoria
o reencontro com o autor que, penso, mais da Prática).
influenciou, na primeira metade da déca- Este livro tem ainda a vantagem, como
da de oitenta, a primeira geração de so- refere Richard Figuier na introdução, de
ciólogos licenciados em Portugal, na qual ser o primeiro texto que revela a maturi-
me incluo. Lembro que na altura, para dade teórica do autor, deixando ao mes-
muitos de nós, numa conjuntura em que mo tempo, ainda, do meu ponto de vista,
o pensamento marxista ainda era hegemó- algumas “portas entreabertas” que Le sens
nico em Portugal no meio intelectual, no pratique, de 1980, vai abrir, nalguns casos,
qual se faziam ainda “ouvir” os ecos do e fechar, noutros. Tornemos no entanto
PREC, justificando a necessidade de ra- claro, como tanto gostava Bourdieu de
cionalizar desencantos e frustrações, a salientar nas suas análises sobre os acto-
obra de Bourdieu parecia ser a síntese das res que se movimentam nos campos cul-
sínteses: estrutural mas não estruturalista; turais, que este meu comentário não é
histórica mas não historicista; política mas ingénuo, nem desinteressado. É, de facto,
não militante; marxista q.b. e suficiente- a tomada de posição de alguém (1) que
mente weberiana para ter a legitimação da ocupa uma posição periférica nos campos
ciência social. da sociologia e da antropologia, (2) que
Muitas têm sido as interpretações da obra investiga na aproximação entre a socio-
de Pierre Bourdieu, muitas vezes contra- logia, a antropologia e a psicologia, a fim
ditórias entre si. Sabemos do lamento do de abordar objectos ligados à educação
autor por não ser devidamente compreen- enquanto actividades sócio-cognitivas e
dido e lido. Suponho que, mais impor- actividades de racionalização da cultura,
tante do que ter ou dar a interpretação (3) e que se distanciou, nos últimos 10 anos,
“certa” da obra deste autor, será interro- do quadro teórico de Bourdieu e da socio-
garmo-nos sobre a actualidade desta obra logia institucional que se pratica em Por-
para nos fazer pensar a investigação de tugal para se dedicar ao uso de teorias
hoje (Lahire, 2002) e, mais particular- sociais micro-sociológicas e antropológicas
mente, para me fazer repensar o estudo de inspiração fenomenológica. Vejamos,
etnográfico que realizei entre professores. pois, ao longo das linhas que se seguem,
1
como é que esta posição concorre para o
Todas as referências a Bourdieu ao longo deste texto
(e respectivas indicações de página) são extraídas desta
debate teórico-epistemológico em Ciências
obra. Sociais.
136 | Revisões críticas

1. Uma teoria para reflectir sobre a Ciên- pretender desconcertar os epistemólogos


cia Social sem prática e os cientistas sem reflexão
As primeiras linhas do texto de Bourdieu através de um estilo de escrita “de notas
são muito claras quanto aos seus propó- em andamento”, que não é nem o manual
sitos: o de desenvolver uma crítica ao modo de metodologia nem o trabalho de investi-
como se produz ciência social, denuncian- gação empírica (pp.135-136). Mas não, o
do os limites explicativos das teorias sociais que se vai desenvolver é uma teoria que
estruturalistas (principalmente as etnoló- em nenhum momento serve para criticar a
gico-antropológicas) e da posição do teó- ciência no seu todo, enquanto campo so-
rico-intelectual que “fala em lugar de cial autónomo. Nem mesmo se vai ques-
outros” e em “seu lugar” (pp. 137-138). tionar as metodologias em concreto, que
Assim, a ideia base de que Bourdieu parte no terreno fazem a ciência, pois o pres-
é a de que a teoria social que serve para suposto de Bourdieu é o de que, se tiver-
explicar as práticas de outros também deve mos uma teoria geral da prática, podere-
servir para explicar o acto de construção mos objectivar a ciência (como qualquer
da ciência social (p. 135). A ciência, ao ser prática social) sem ter que percorrer o
também uma prática, não poderá escapar caminho do relativismo elementar (p. 140)
à teoria explicativa de toda a prática social que seria o de questionar (acrescentaria
proposta pelo autor. Só a aparente inge- teorizar, cf. Caria, 2000: 37-65) o observa-
nuidade do cientista social poderá fazer dor externo datado e situado.
esquecer que a sua qualidade de estrangei- Bourdieu esclarece que o modo praxioló-
ro numa cultura em estudo supõe uma re- gico de produzir teoria científica (proposto
lação erudita com o objecto em estudo que por ele) está claramente em oposição ao
ilusoriamente estabelece uma oposição modo fenomenológico (típico do interac-
entre a teoria (de que seria o especialista) cionismo simbólico e da etnometodologia),
e a prática dos autóctones. Mas, realmente, dado considerar que este explora a relação
aquilo que é estranho para o observador de familiaridade com o vivido (aproxi-
externo acaba por se revelar bem familiar, mação que poderia ser vantajosa) sem que-
porque se trata de explicar práticas sociais rer entender as condições de possibilidade
quando a actividade do cientista social é que explicam a estrutura da cultura autóc-
também uma prática. Em consequência, no tone existente (p. 145). Para o autor, a
2.º capítulo (pp. 145-162), Bourdieu vai fenomenologia, ao não buscar estabelecer
caracterizar as modalidades de conheci- uma ruptura com as representações indí-
mento teórico existentes para saber qual genas do mundo, não poderá estar em con-
delas é que está em condições de, no mes- dições de poder também realizar uma rup-
mo acto, ser capaz de conhecer os outros e tura com as representações do observador
de dar a conhecer a Ciência Social ao cien- estrangeiro (que permitirá, segundo o
tista. autor, ver a ciência também como uma
A intenção parece confundir-se, antes do prática social). Reforçando o seu distan-
seu tempo, com os pressupostos da crítica ciamento face à fenomenologia, o autor
pós-moderna da cultura, quando esta de- afirma que a praxiologia “parte do conhe-
nuncia a arrogância do conhecimento cimento objectivista” (refere-se ao estru-
científico e a incapacidade deste para turalismo e a todas as construções científi-
reconhecer os limites da sua racionalidade. cas que explicam a realidade a partir de
A apresentação inicial do texto também modelos ou ideias-tipo) para “o superar”
concorre para esta confusão, pois afirma-se (p. 146). Assim, assume como bom o corte
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radical com a experiência do mundo, balho de inculcação pela prática (ver fazer
desenvolvido pelo objectivismo, como e fazer acompanhando os que sabem fazer)
único meio para entender as estruturas em que o agente social interioriza, de modo
sociais que determinam as experiências, sistemático e coerente, as estruturas de
desde que estas estruturas não sejam en- relações de poder, a partir do lugar e da
tendidas do exterior (como fixas, mecâni- posição que nelas ocupa, e exterioriza em
cas e invariantes) mas como disposições práticas as disposições (os esquemas pré-
interiorizadas pelos agentes sociais que as -reflexivos estruturados) que antes inte-
actualizam e as produzem em processos riorizou (pp. 163-164; p. 182). No entanto,
histórico-sociais (p. 145). a prática não é produto da estrutura pre-
Nesta linha de raciocínio, para Bourdieu, sente mas antes “uma relação dialéctica
os indivíduos são sempre determinados entre a estrutura interiorizada pela história
socialmente, não interpretam opções pos- do grupo ou da classe social (habitus) e
síveis nem têm projectos, são sempre a estrutura social presente” (pp. 166-167).
agentes e não actores ou sujeitos sociais. O eventual desfasamento entre uma e outra
No entanto, a prática social, sem ser uma implica a necessidade de improvisação, não
interacção (uma interpretação de expec- se podendo repetir mecanicamente o que
tativas mútuas em reciprocidade, na versão foi praticado no passado (pp. 178-179).
fenomenológica), também não é um com- O facto de se reconhecer o improviso so-
portamento de execução. Tal como a fala, cial, determinado pela história do agente
a prática não depende do conhecimento social, no modo como a lógica da prática
das estruturas (da gramática e das regu- opera, faz com que, por um lado, o con-
laridades sócio-estatísticas) para existir ceito de prática nunca possa ser conside-
(pp. 153-154). rado como a obediência a regras sociais
externas ainda que implícitas ou a cons-
2. Esquemas pré-reflexivos e automatis- trangimentos institucionais (p. 164). Assim,
mos da acção a diferenciação entre o social e o indivi-
O conceito central de Bourdieu para ex- dual, tantas vezes valorizada pelas ciências
plicar o modo como a prática social existe sociais, perde sentido porque o indivíduo
é o de habitus. É a teorização em torno será sempre o produto estrutural da sua
deste conceito que permite a Bourdieu história social face ao estado conjuntural
explicar nos capítulos 3, 4 e 5 (pp. 163- presente das relações de poder (p. 167;
-212) como e porque é que a lógica da prá- p. 178). Por outro lado, o improviso social
tica ou o domínio prático da prática social também não deve ser entendido como uma
não se confunde com a interacção social, qualquer adequação a fins posteriores ou
com a consciência prática, com as racio- a intenções estratégicas prévia e conscien-
nalizações discursivas ou com a regra (do temente formuladas (pp. 257-258).
costume ou da instituição) mais ou menos A incerteza da lógica da prática (que torna
explícita. necessário o improviso), segundo Bour-
O habitus é definido (a síntese é minha dieu, supõe que as construções subjectivas
porque os elementos referidos são varia- da consciência sejam consequência a poste-
dos ao longo do texto) como um conjunto riori da prática improvisada e não a sua
de esquemas pré-reflexivos (disposições) origem ou explicação. Assim, as aspirações,
de percepção, apreciação e antecipação as categorizações e os julgamentos sociais
que foram produzidos no agente social. tendem a adequar-se ao provir, ao nomeá-
Estes esquemas são o resultado de um tra- vel e ao realizável, através dos esquemas
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pré-reflexivos, respectivamente, de anteci- A incorporação das estruturas cumpre a


pação, percepção e apreciação, de acordo função de disciplinar o corpo selvagem,
com as possibilidades estruturais relativas exigindo-se o pormenor das atitudes, dos
à posição de poder ocupada por cada gestos, dos tons de voz, etc., aparentemente
agente social. Os improvisos que se desen- “insignificantes”, e exigindo-se o rodeio e
volvem nas situações de desfasamento en- o adiamento da satisfação, diferindo e di-
tre o passado e o presente supõem: (1) para versificando os prazeres no tempo, isto é,
o caso das apreciações, transferências de exigindo-se a forma pela forma, sem razão
sentido que operam através de “um cír- (pp. 193-194). Deste ponto de vista, o habi-
culo de metáforas que permite analogias tus é “um ser que se reduz a um ter, a um
implícitas entre sistemas de classificação” ter sido e um ter feito ser” (p. 182). Assim,
(p. 167); (2) para o caso das antecipações, nada tem a ver com qualquer teoria que
um cálculo estratégico prático que opera aborde o problema da identidade social
por homologias estruturais de posições de como construção de uma consciência
poder entre diferentes situações – o inte- colectiva. Existirão habitus mais seme-
resse de ter posição, mantendo-a ou evitan- lhantes e outros mais diversos conforme a
do perdê-la (pp. 176-177; 208; 234; 237; identidade de condições de existência (dos
247; 263); para o caso das percepções, com- teres). Estes, ao serem regulados estrutu-
petências culturais adquiridas de apropria- ralmente, supõem uma harmonização de
ção e descodificação simbólicas, que pos- habitus diversos que se tornarão previsíveis
sam transformar os interesses materiais das e inteligíveis, na prática, os comportamen-
estratégias práticas em relações de comu- tos de outros, reproduzindo-se as estru-
nicação e de cooperação, apresentadas turas de desigualdade existentes, como se
como desinteressadas e generosas a fim de de uma grande orquestra se tratasse, em-
dissimular as desigualdades de poder exis- bora sem maestro: “uma invenção sem
tentes (pp. 177; 237-240). intenção”, “uma concertação objectiva”
O melhor argumento de Bourdieu para (pp. 169-176).
que a explicação do improviso prático não Em conclusão, a lógica da prática permite
passe pela consciência do agente social está uma adequação automática do pensamen-
no facto de a inculcação do habitus se to e da acção à conjuntura, para vencer os
produzir e reproduzir através do corpo (do desfasamentos entre o habitus e as ocasiões,
fazer e ver fazer, como dissemos atrás). sem que a subjectividade do agente social
Existe, assim, nos primeiros anos de vida tenha que ser activada, dado estar em pri-
(“há uma cronologia das estruturas”, meiro lugar inscrita no corpo (pp. 164-
p. 183) um “trabalho pedagógico difuso 165). Esta adequação automática supõe um
e anónimo, sem autonomia e sem especifi- domínio prático da prática, presente nos
cidade, que enquanto ambiente social es- princípios organizadores das disposições
truturado vai ser incorporado (uma hexis do habitus, em que da prática se passa à
corporal)”, desenvolvendo-se no corpo prática pela “arte” de quem aprendeu fa-
os esquemas pré-reflexivos já referidos zendo sem manifestar interesse ou intenção
(pp. 185-186). Sendo aprendido por incor- em saber (pp. 185-187; 232) e em que
poração (os exemplos apresentados são o tempo é irreversível, supondo para o
inúmeros e estão centrados nos ritos so- agente social uma cronologia e uma se-
ciais, pp. 187-193), o habitus não é trans- quência de acontecimentos necessários e
parente à consciência e à sua transformação óbvios (a naturalização da história em in-
voluntária (p. 194). consciente) (pp. 168; 227-231).
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3. As facetas das teorias indígenas e a relativo à explicação subjectivista da acção.


hysteresis do habitus Globalmente, toda a teoria estrutural da
A necessidade que Bourdieu tem de des- prática de Bourdieu está subordinada à
valorizar o papel da consciência e da inter- ideia, no que se refere às possíveis con-
acção na dinâmica social é coerente com o tribuições da fenomenologia, de que não
posicionamento epistemológico inicial de podemos reduzir a estrutura objectiva da
rejeitar totalmente a tradição fenomenoló- relação social à estrutura conjuntural da
gica e aceitar parcialmente a tradição estru- interacção (p. 177-178). Pergunto: E o in-
turalista. Penso que a colocação do pro- verso, típico da análise estrutural, reduzir
blema nestes termos poderá ser resultado a conjuntura à estrutura da relação social,
da conjuntura intelectual dos anos 70 em podemos? Bourdieu responder-nos-ia que
França e do facto de os trabalhos de inves- sim. Mas suponho que, em vários momen-
tigação (os três estudos sobre os Cabila) tos do seu texto, nos dá sinais de que
em que se apoia terem provavelmente cor- podem existir excepções. Vejamos: fala-
respondido a um corte na sua trajectória -nos da lógica da prática (p. 203; 223)
intelectual de formação, de filósofo para como aberta porque necessariamente in-
etnólogo (Pinto, 2000: 17-36). Daí que coerente nos princípios e incerta na pre-
tenhamos que perguntar até que ponto visão dos resultados, para assim poder
Bourdieu nos deixa “portas abertas” para permitir o improviso e subordinar a cons-
pensar as também parciais contribuições ciência às funções práticas da prática.
da fenomenologia para uma teoria da prá- Acrescenta (p. 222) que só a lógica for-
tica? No caso, uma teoria da prática que malista do teórico pode imaginar uma ló-
não se centre apenas na análise estrutural gica da prática como formando um todo
(essa é retirada parcialmente da con- homogéneo. Admite, ainda, que “uma
tribuição epistemológica objectivista que forma de consciência lacunar, parcial e
o texto em análise expressa) e enfatize descontínua acompanha as práticas na for-
aquilo que poderíamos designar como ma de controlos de vigilância sobre os au-
análise conjuntural (esta, pelo contrário, tomatismos” (p. 201) (Giddens [1989]
retirada das contribuições fenomenoló- chama-lhe consciência prática), dado o in-
gicas). É, principalmente, nos capítulos 5 consciente não ser totalmente opaco à in-
e 6 que encontramos os elementos que nos teracção (p. 200). Os costumes (Giddens
fizeram admitir como possível este outro [1989] chama-lhes rotinas de acção) e as
olhar e leitura. normas (como produtos dos habitus,
Não pretendo afirmar ou dar a entender p. 198; 202) estão próximos da lógica da
que Bourdieu tenha formulado este pro- prática porque não enunciam princípios
blema. Neste texto, não o encontrei e explícitos (apresentam situações singu-
aquilo que conheço da restante obra de lares como exemplares) e porque reforçam
Bourdieu não me permite afirmá-lo. A per- os princípios implícitos dessas situações
gunta é minha e justifica-se no quadro de exemplares sem os explicarem, embora
raciocínio que desenhei no início desta re- podendo enunciar o que não se pode fazer
censão: ler Bourdieu para ver das suas (isto é, sem implicar a racionalização
contribuições para repensar a teoria e a in- discursiva).
vestigação social de hoje. O propósito é o Em síntese, na minha leitura, aquilo a que
de saber até que ponto pode existir uma Bourdieu chama as teorias indígenas da
regulação consciente da prática sem a con- prática tanto pode servir as ideologias e os
fundir com o reducionismo culturalista conflitos de legitimidade (as racionaliza-
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ções dos “discursos enganadores do enga- quando os qualifiquei de problemas do quo-


nado”, p. 202) como corresponder ao tidiano (Caria, 2002a), em três factos que
domínio simbólico da prática, no qual os reflectiam o enquadramento histórico
agentes detêm a sua atenção em segmen- desta cultura local de orientação profis-
tos da acção que são mais relevantes, mais sional (Caria, 2000: 225-306): (1) as mu-
recomendados ou mais reprovados nos danças institucionais que decorriam dos
jogos sociais. Nestes jogos sociais, o dever- esforços políticos de democratização do
-fazer e o dever-ser já não são vividos como campo escolar que pareciam conflituar
únicos mas, entretanto, os princípios da com a maioria das orientações prático-
prática continuam implícitos, sem que se -pedagógicas dos professores; (2) a diver-
apresentem como regras sociais exteriores sidade de orientações prático-pedagógicas
(p. 198; 201). Trata-se de analisar, por protagonizadas por diferentes gerações de
hipótese, esse saber social procedimental e professores, socializadas no campo escolar
categorial que é já uma norma mas ainda em conjunturas histórico-políticas muito
não é uma doxa, isto é, um saber que é diversas; (3) a nova conjuntura de procuras
descritível e nomeável (principalmente pela escolares, reconhecida pelos professores no
negativa) mas continua a ser inexplicável local pela chegada de novos grupos sociais
para os próprios agentes sociais, dado exis- àquele nível de escolaridade para o qual
tir na oralidade pré-formalizada da cons- estes mostravam não ter uma experiência
ciência prática, numa fase intermédia en- pedagógica acumulada.
tre o estado de incorporação e o estado Sabemos que Bourdieu, quando analisou
discursivo (Caria, 2000: 195-206, 2002a). o campo escolar e outros campos culturais
Também Augusto Santos Silva (1994), no noutras obras desenvolveu um modelo de
seu trabalho sobre a Sociologia da Cultu- análise que enfatizava esta dimensão
ra, enfatiza este nível intermédio de histórica através do conceito de campo,
domínio simbólico da prática que ficaria permitindo-lhe situar e explicar a diversi-
entre o sentido prático e a formalização dade de habitus em presença através das
discursiva/doutrinária. posições, ocupadas enquanto capitais espe-
A minha experiência de investigação etno- cíficos, e das tomadas de posição dos
gráfica com professores encontrou os ele- agentes sociais, enquanto participação nas
mentos referidos por Bourdieu no qual as lutas simbólicas de legitimação de práticas
teorias indígenas tinham esse carácter aber- e obras no quadro de relações de força e
to, incoerente e muito pouco sistemá- poder estabelecidas através da história do
tico, para permitir que a lógica da prática campo em análise. Penso que o conceito
pudesse improvisar. Para exprimir estas de campo conduziu Bourdieu a valorizar
características, concluí que a cultura dos sempre muito mais às dimensões macro-
professores era como um puzzle de peças -sociais da reprodução social, relativas às
desencaixadas mas onde os actores sociais relações de desigualdade, tendo isso como
não deixavam de reconhecer, no plano consequência ver sempre dissolvidas na
local das suas interacções, as incertezas da análise estrutural as dinâmicas sociais, pro-
prática sem que desenvolvessem discursos vocadas pelas incertezas da prática (por
racionalizadores (Caria, 2000: 525-586). exemplo aquelas que acima referi) que não
A explicação para esta oralidade interactiva geravam mudanças estruturais. Nunca viu
(em muitos casos com valor normativo para as dinâmicas sociais como corresponden-
o grupo, referida acima como pré-forma- do aos micro-processos de socialização que
lizada) estava, como mais tarde analisei têm que lidar com a heterogeneidade de
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trajectórias sociogeracionais para produ- mento de metodologias de investigação


zir uma identidade social colectiva (diría- quase sempre centradas em inquéritos que
mos, um estar-ser). inevitavelmente reduziram a reflexividade
No trabalho de investigação que já referi, dos agentes sociais aos discursos raciona-
junto de professores, lidei directamente lizadores, desvalorizando por isso a orali-
com este problema das microdinâmicas dade interactiva e pré-formalizada que
inscritas em dinâmicas de campo e vice- atrás referi. Porventura, esta oralidade
-versa, tendo para o efeito analisado o feixe não seria relevante no contexto dos Cabila
de trajectórias sócio-profissionais exis- (e das sociedades arcaicas, como lhes cha-
tentes no grupo em estudo e procurado ma Bourdieu) mas, hipoteticamente, pode
problematizar estes factos através dos con- ser determinante em sociedades com ex-
ceitos de (re)produção social da profissão, tensos espaços sociais institucionalizados
de capital sócio-profissional e de fracções e em processo de transição e mudança
geracionais da profissão, englobando di- acelerada, contendo desfasamentos estru-
mensões e variáveis tanto micro como ma- turais acrescidos.
cro, tanto objectivas como subjectivas (Ca-
ria, 2000:240-305; 581-584). Expressão da 4. Para uma teoria conjuntural da prática
relevância destes processos é também o Em rigor, este problema não parece ser
trabalho simbólico que analisei, realizado inteiramente estranho às formulações de
pela hierarquia informal do grupo de pro- Bourdieu neste texto. De facto, encontra-
fessores, para dissimular as heterogenei- mos afirmações que nos ajudam a melhor
dades de práticas e representações, prove- explicar esta reflexividade dos actores so-
nientes da heterogeneidade de trajectórias ciais, ao nível da sua consciência prática e
existentes, desenvolvendo-se processos interactiva, sem o desenvolvimento de dis-
que designei de igualitarização social (Caria, cursos racionalizadores. Bourdieu dá-nos
2000: 536-538). A análise destes processos dois tópicos de análise que considero rele-
e os conceitos que mobilizei para o efeito vantes para este problema: (1) fala-nos de
correspondem a dinâmicas que penso ten- uma hysteresis do habitus enquanto desa-
deram a ser pouco valorizadas no uso que justamento das estruturas incorporadas
foi dado ao conceito de campo social e que passadas às estruturas sociais presentes da
correspondem à tarefa de inculcação dos prática, para referir o eventual efeito de
esquemas pré-reflexivos em uso nas novas conjunturas revolucionárias (desvalorizan-
gerações num determinado contexto, para do-as dizendo que o passado continua a
que a posição e as tomadas de posição no ser preponderante para a lógica da prática),
campo façam sentido com as teorias indí- não chegando a negar a possibilidade de
genas vigentes, nem que para isso seja ocorrerem mudanças sociais significativas,
necessário (imposição de uma necessidade embora não a totalidade daquelas que eram
objectiva) dissimular os habitus diferencia- desejadas pelos actores sociais (as chama-
dos numa cultura oral que se reproduz na das ocasiões falhadas, p.179); (2) diz que a
interacção social quando é confrontada harmonização dos habitus (o chamado fun-
com processos de mudança. cionamento da orquestra social sem maes-
Será importante não esquecer que esta tro) tem graus variáveis, reconhecendo a
aparente opção de Bourdieu de sobreva- possibilidade de existirem falhas nos pro-
lorizar os processos macro-societais tem cessos de inculcação e deficiências nos ha-
associada, posteriormente, nos seus prin- bitus, e acrescenta a possibilidade de a
cipais trabalhos dos anos 80, o desenvolvi- institucionalização de regras sociais mais
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explícitas permitir regular práticas que pela apenas por via dos automatismos pré-re-
sua lógica, enquanto orquestração impro- flexivos. Assim, trata-se de tomar em con-
visada, não ocorreram automaticamente sideração que as falhas da inculcação e as
(p. 206; 234) deficiências do habitus decorrem de um
Assim, poderemos perguntar: será que a problema geral de todas as sociedades, que
reflexividade interactiva dos actores sociais em Portugal tem sido reafirmado por Raúl
(oralidade pré-formalizada e consciência Iturra (1988, 1989, 1992) para fundamen-
prática) em conjunturas de desfasamento tar o objecto da antropologia da educação,
entre as estruturas sociais passadas e futu- a saber: o problema conjuntural relativo à
ras pode desempenhar um papel comple- morte das gerações mais velhas que têm
mentar à regulação da prática pela prática, que se questionar sobre as condições em
sem que tal possa ser confundido com as que entregam a sua herança (de património
racionalizações discursivas inscritas nas e saberes sociais) aos mais novos, pois, nas
lutas simbólicas que ocorrem nos campos relações inter-geracionais, é reconhecida a
sociais? existência, especialmente nas nossas socie-
Uma das possíveis explicações para que dades, de um problema de envelhecimen-
Bourdieu não tenha formulado esta per- to dos habitus dos mais velhos, que expli-
gunta, tendo antes sempre valorizado os caria a sua hysteresis como facto social
desfasamentos entre habitus e ocasiões comum e não excepcional à teoria da práti-
novas pelo lado das macrodinâmicas dos ca. O trabalho simbólico de igualitarização
campos sociais, decorre do facto de, para social (que atrás referi como um dos re-
explicar a conduta social do agente nestas sultados da nossa investigação com profes-
situações, apenas ter como recurso o con- sores) constitui, a meu ver, um bom exem-
ceito de interesse (p. 208). Lembro, como plo do que é a produção social de um
já referi atrás, que a lógica da prática, que estar-ser que não se reduz à lógica da dis-
reproduz os habitus, é em primeiro lugar a simulação dos interesses e que, pelo con-
do “ter” e só depois a do “ser”. De facto, a trário, parece funcionar em sentido inver-
definição de capital simbólico no capítulo so: o de objectivar uma subjectividade
8 (pp. 237-258), é apenas desenvolvida na diversificada (uma cultura como processo
crítica ao economicismo marxista, isto é, de interacção), absolutamente necessária
como uma dissimulação dos interesses ao desafio conjuntural de socializar as gera-
materiais (uma economia das trocas sim- ções mais novas nas práticas de um grupo
bólicas). Bourdieu nunca coloca como de pertença e/ou referência numa conjun-
problema teórico a tarefa tantas vezes enfa- tura de mudança (Caria, 2000: 579-586).
tizada pela antropologia social: a produção Do meu ponto de vista, é a formulação do
dos homens pelos homens que, sendo ma- problema nestes termos que dá autonomia
terial, também será cultural-identitária. à análise conjuntural da prática e dá plau-
Este problema torna-se decisivo se admi- sibilidade à hipótese de que a reflexividade
tirmos que a hysteresis do habitus ocorre interactiva, tal qual a definimos anterior-
em todas as conjunturas em que existem mente, pode desempenhar um papel
descoincidências e desfasamentos entre acrescido que supera as situações difíceis
estruturas passadas e processos de mu- e acidentais em que não se dá a concer-
dança em curso, tornando a estrutura so- tação objectiva dos habitus.
cial presente pouco estruturante e, por isso, Em conclusão, o conceito de cultura (no
as condições da prática excessivamente sentido antropológico) sem se opor ao de
incertas para que o habitus possa operar habitus e sem se reduzir a este (como faz
Revisões críticas | 143

Bourdieu, p. 177) abre-nos as portas para Referências Bibliográficas


a especificidade da análise conjuntural da Bourdieu, Pierre (2002), Esboço de uma teoria
prática que permite à epistemologia da prática – precedido de três estudos sobre
praxiológica aceitar (parcialmente e para etnologia cabila. Oeiras: Celta.
a superar, à semelhança do que Bourdieu Caria, Telmo H. (2000), A cultura profissional
afirma querer fazer com o objectivismo) a dos professores – o uso do conhecimento em
tradição fenomenológica. Mostra que a contexto de trabalho na conjuntura da refor-
conjuntura interactiva nem sempre se ma educativa dos anos 90. Lisboa: Fundação
reduz à estrutura prática, podendo ter com Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciên-
ela provavelmente uma relação que começa cia e Tecnologia.
por ser de conflitualidade sócio-cognitiva Caria, Telmo H. (2002a), “O uso do conheci-
ao nível dos contextos da prática de cada mento: os professores e os outros”, Análise
indivíduo e das relações intra-grupos (cf. Social, 164 (no prelo).
Caria, 2000: 20-27,170-177; cf. 2002b), Caria, Telmo H. (2002b), “Dos dualismos de
antes de ser conflito e luta simbólicas em sentido aos usos sociais das teorias educati-
campos sociais particulares, nas relações de vas”, Educação, Sociedade e Culturas (no pre-
poder entre grupos sociais. lo).
Portanto, Bourdieu deve ser levado a sério Giddens, Anthony (1989), A constituição da
quando afirma que “a reacção contra o ju- sociedade. São Paulo: Martins Fontes.
ridicismo sob a sua forma aberta ou mas- Iturra, Raúl (1988), “A construção conjuntural
carada não deve levar-nos a fazer do habi- do grupo doméstico”, Sociologia – problemas
tus o princípio exclusivo de toda a prática e práticas, 5, 61-78.
(…)” (p. 200). Parece-me que muitos dos Iturra, Raúl (1990), Fugirás à Escola para traba-
seus discípulos, e mesmo alguns dos seus lhar a terra. Lisboa: Escher.
críticos, sempre partiram da ideia inversa: Iturra, Raúl (1994), “O processo educativo: en-
a de que, para este autor, o habitus era o sino ou aprendizagem?”, Educação, Socie-
único princípio de explicação da prática. dade & Culturas, 1, 29-50.
O meu propósito foi mostrar que Bourdieu Lahire, Bernard (2002), “Reprodução ou pro-
nos deixa portas “entreabertas” para pen- longamentos críticos?”, Educação & Socie-
sarmos os restantes princípios explicativos dade, XXIII(78), 37-55.
da prática, ainda que admitamos que ele Pinto, Louis (2000), Pierre Bourdieu e a teoria
muito provavelmente não se reveria na do mundo social. Rio de Janeiro: Fundação
lógica dos argumentos expostos de apro- Getúlio Vargas.
ximação à fenomenologia. Silva, Augusto Santos (1994), Tempos cruzados
– um estudo interpretativo da cultura popu-
Telmo Caria lar. Porto: Afrontamento.

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