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Rccs 1239
Rccs 1239
64 | 2002
Número não temático
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/1239
DOI: 10.4000/rccs.1239
ISSN: 2182-7435
Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Edição impressa
Data de publição: 1 dezembro 2002
Paginação: 135-143
ISSN: 0254-1106
Refêrencia eletrónica
Telmo H. Caria, « Da estrutura prática à conjuntura interactiva – relendo o Esboço de uma teoria da
prática de Pierre Bourdieu », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 64 | 2002, posto online no dia 01
outubro 2012, consultado o 22 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/rccs/1239 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/rccs.1239
Revista Crítica de Ciências Sociais, 64, Dezembro 2002: 135-143
Revisões críticas
radical com a experiência do mundo, balho de inculcação pela prática (ver fazer
desenvolvido pelo objectivismo, como e fazer acompanhando os que sabem fazer)
único meio para entender as estruturas em que o agente social interioriza, de modo
sociais que determinam as experiências, sistemático e coerente, as estruturas de
desde que estas estruturas não sejam en- relações de poder, a partir do lugar e da
tendidas do exterior (como fixas, mecâni- posição que nelas ocupa, e exterioriza em
cas e invariantes) mas como disposições práticas as disposições (os esquemas pré-
interiorizadas pelos agentes sociais que as -reflexivos estruturados) que antes inte-
actualizam e as produzem em processos riorizou (pp. 163-164; p. 182). No entanto,
histórico-sociais (p. 145). a prática não é produto da estrutura pre-
Nesta linha de raciocínio, para Bourdieu, sente mas antes “uma relação dialéctica
os indivíduos são sempre determinados entre a estrutura interiorizada pela história
socialmente, não interpretam opções pos- do grupo ou da classe social (habitus) e
síveis nem têm projectos, são sempre a estrutura social presente” (pp. 166-167).
agentes e não actores ou sujeitos sociais. O eventual desfasamento entre uma e outra
No entanto, a prática social, sem ser uma implica a necessidade de improvisação, não
interacção (uma interpretação de expec- se podendo repetir mecanicamente o que
tativas mútuas em reciprocidade, na versão foi praticado no passado (pp. 178-179).
fenomenológica), também não é um com- O facto de se reconhecer o improviso so-
portamento de execução. Tal como a fala, cial, determinado pela história do agente
a prática não depende do conhecimento social, no modo como a lógica da prática
das estruturas (da gramática e das regu- opera, faz com que, por um lado, o con-
laridades sócio-estatísticas) para existir ceito de prática nunca possa ser conside-
(pp. 153-154). rado como a obediência a regras sociais
externas ainda que implícitas ou a cons-
2. Esquemas pré-reflexivos e automatis- trangimentos institucionais (p. 164). Assim,
mos da acção a diferenciação entre o social e o indivi-
O conceito central de Bourdieu para ex- dual, tantas vezes valorizada pelas ciências
plicar o modo como a prática social existe sociais, perde sentido porque o indivíduo
é o de habitus. É a teorização em torno será sempre o produto estrutural da sua
deste conceito que permite a Bourdieu história social face ao estado conjuntural
explicar nos capítulos 3, 4 e 5 (pp. 163- presente das relações de poder (p. 167;
-212) como e porque é que a lógica da prá- p. 178). Por outro lado, o improviso social
tica ou o domínio prático da prática social também não deve ser entendido como uma
não se confunde com a interacção social, qualquer adequação a fins posteriores ou
com a consciência prática, com as racio- a intenções estratégicas prévia e conscien-
nalizações discursivas ou com a regra (do temente formuladas (pp. 257-258).
costume ou da instituição) mais ou menos A incerteza da lógica da prática (que torna
explícita. necessário o improviso), segundo Bour-
O habitus é definido (a síntese é minha dieu, supõe que as construções subjectivas
porque os elementos referidos são varia- da consciência sejam consequência a poste-
dos ao longo do texto) como um conjunto riori da prática improvisada e não a sua
de esquemas pré-reflexivos (disposições) origem ou explicação. Assim, as aspirações,
de percepção, apreciação e antecipação as categorizações e os julgamentos sociais
que foram produzidos no agente social. tendem a adequar-se ao provir, ao nomeá-
Estes esquemas são o resultado de um tra- vel e ao realizável, através dos esquemas
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explícitas permitir regular práticas que pela apenas por via dos automatismos pré-re-
sua lógica, enquanto orquestração impro- flexivos. Assim, trata-se de tomar em con-
visada, não ocorreram automaticamente sideração que as falhas da inculcação e as
(p. 206; 234) deficiências do habitus decorrem de um
Assim, poderemos perguntar: será que a problema geral de todas as sociedades, que
reflexividade interactiva dos actores sociais em Portugal tem sido reafirmado por Raúl
(oralidade pré-formalizada e consciência Iturra (1988, 1989, 1992) para fundamen-
prática) em conjunturas de desfasamento tar o objecto da antropologia da educação,
entre as estruturas sociais passadas e futu- a saber: o problema conjuntural relativo à
ras pode desempenhar um papel comple- morte das gerações mais velhas que têm
mentar à regulação da prática pela prática, que se questionar sobre as condições em
sem que tal possa ser confundido com as que entregam a sua herança (de património
racionalizações discursivas inscritas nas e saberes sociais) aos mais novos, pois, nas
lutas simbólicas que ocorrem nos campos relações inter-geracionais, é reconhecida a
sociais? existência, especialmente nas nossas socie-
Uma das possíveis explicações para que dades, de um problema de envelhecimen-
Bourdieu não tenha formulado esta per- to dos habitus dos mais velhos, que expli-
gunta, tendo antes sempre valorizado os caria a sua hysteresis como facto social
desfasamentos entre habitus e ocasiões comum e não excepcional à teoria da práti-
novas pelo lado das macrodinâmicas dos ca. O trabalho simbólico de igualitarização
campos sociais, decorre do facto de, para social (que atrás referi como um dos re-
explicar a conduta social do agente nestas sultados da nossa investigação com profes-
situações, apenas ter como recurso o con- sores) constitui, a meu ver, um bom exem-
ceito de interesse (p. 208). Lembro, como plo do que é a produção social de um
já referi atrás, que a lógica da prática, que estar-ser que não se reduz à lógica da dis-
reproduz os habitus, é em primeiro lugar a simulação dos interesses e que, pelo con-
do “ter” e só depois a do “ser”. De facto, a trário, parece funcionar em sentido inver-
definição de capital simbólico no capítulo so: o de objectivar uma subjectividade
8 (pp. 237-258), é apenas desenvolvida na diversificada (uma cultura como processo
crítica ao economicismo marxista, isto é, de interacção), absolutamente necessária
como uma dissimulação dos interesses ao desafio conjuntural de socializar as gera-
materiais (uma economia das trocas sim- ções mais novas nas práticas de um grupo
bólicas). Bourdieu nunca coloca como de pertença e/ou referência numa conjun-
problema teórico a tarefa tantas vezes enfa- tura de mudança (Caria, 2000: 579-586).
tizada pela antropologia social: a produção Do meu ponto de vista, é a formulação do
dos homens pelos homens que, sendo ma- problema nestes termos que dá autonomia
terial, também será cultural-identitária. à análise conjuntural da prática e dá plau-
Este problema torna-se decisivo se admi- sibilidade à hipótese de que a reflexividade
tirmos que a hysteresis do habitus ocorre interactiva, tal qual a definimos anterior-
em todas as conjunturas em que existem mente, pode desempenhar um papel
descoincidências e desfasamentos entre acrescido que supera as situações difíceis
estruturas passadas e processos de mu- e acidentais em que não se dá a concer-
dança em curso, tornando a estrutura so- tação objectiva dos habitus.
cial presente pouco estruturante e, por isso, Em conclusão, o conceito de cultura (no
as condições da prática excessivamente sentido antropológico) sem se opor ao de
incertas para que o habitus possa operar habitus e sem se reduzir a este (como faz
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