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SUBJETIDADE E SUBJETIVIDADE:

UMA MEDITAÇÃO HISTÓRICO-ONTOLÓGICA


A PARTIR DE HEIDEGGER

Marcos Aurélio Fernandes


Professor adjunto na Universidade de Brasília

Natal, v. 21, n. 36
Jul.-Dez. 2014, p. 121-152
122
Subjetidade e subjetividade

Resumo: este texto apresenta e discute a diferença e a referência entre


subjetidade (Subiectität) e subjetividade (Subjektivität), segundo o
pensamento histórico-ontológico de Martin Heidegger1. Expõem-se os
modos como aparecem a subjetidade na era da metafísica, de início, do
comparecimento do tema do “hypokeímenon” (o subjacente) no
pensamento dos primeiros pensadores gregos (Heráclito e Parmênides em
especial) à concepção do ser como “ousía” (vigência, presença,
substância, essência) em Platão e em Aristóteles. Depois, da concepção da
substancialidade no medievo se passa à concreção da subjetidade como
subjetividade na modernidade e à sua configuração como sistema. Por
fim, expõe-se sobre a nova verdade do ente na época da técnica e a perda
do sentido da objetividade e da subjetividade no viger da disponibilidade.

Palavras-chave: Subjetidade; Subjetividade; Substância; Sistema;


Técnica.

Abstract: this text presents and discusses the difference and the
reference between subjectness (subiectität) and subjectivity (subjektivität),
according to the Martin Heidegger's thinking of BEING-as-history. It
exposes the ways how subjectness appears in the age of Metaphysics, from
the beginning, from presence of the theme of “hypokeimenon” (the
subjacent/lie-forth) in the thinking of the first Greek thinkers (especially
Heraclitus and Parmenides) to the conception of Being as “ousia” (state of
being, presence, substance, essence) in Plato and Aristotle. After exposing
the conception of substantiality of the Middle Ages it passed to the
conception of subjectness as subjectivity in the Modernity (Modern Age)
and to Its configuration as system. Finally, it exposes the new truth of
Being in the age of technology and a loss of the sense of objectivity and of
subjectivity in the essence of Being in the way of standing reserve.

Keywords: Subjectness; Subjectivity; Substance; System; Technique.

1
Como aparecerá adiante neste artigo, os termos “subjetidade” (Subiectität) e
subjetividade (Subjektivität) aparecem como “termos técnicos” num texto de
1941, intitulado “Die Metaphysik als Geschichte des Seins” (“A metafísica
como história do ser”), publicado no volume II do Nietzsche de Heidegger.
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Marcos Aurélio Fernandes

A subjetividade é o fundamento “histórico-ontológico” da


modernidade. “Subjetividade” é, aqui, um título ontológico: diz o
ser do ser-sujeito, tal como este é compreendido na modernidade,
a saber, no horizonte da egoidade (ser-eu), ou, mais exatamente,
no horizonte da ipseidade (ser-si-mesmo). “Subjetividade” nomeia o
ontológico da modernidade. “Com o termo ‘ontológico’ queremos
indicar determinado sentido do ser, que age, no fundo do ente no
seu todo, constituindo os gonzos principais das ramificações na
estruturação do mundo. Esses gonzos principais se expressam nos
chamados conceitos ou categorias de fundo de determinado
mundo constituído” (Harada, 2009, p. 132). Os gonzos de uma
estruturação do mundo constituem aquilo que Heidegger chama de
“posição metafísica de fundo”. No curso de 1940, intitulado “Der
europäische Nihilismus” (“O niilismo europeu”)2, Heidegger expõe
em que consiste isso. Segundo ele, “uma posição metafísica de
fundo” (eine metaphysische Grundstellung), se articula de modo
quádruplo, e se determina:

1. pelo modo como o homem é homem e, isto quer dizer, pelo modo
como o homem é si mesmo (selbst) e, nisso, se sabe a si mesmo; 2. pelo
projeto do ente sobre o ser; 3. pela delimitação da essência da verdade
do ente; 4. Pela maneira segundo a qual, a cada vez, o homem toma a
“medida” e dá a medida para a verdade do ente (N II, p. 120)3.

A estruturação do mundo moderno a partir da subjetividade é


uma destinação da verdade do ente na era da metafísica, este dia
histórico de aproximadamente dois milênios e meio, cujo alvor se
anunciou no surgimento da filosofia (leia-se “metafísica”) em
Platão e Aristóteles. A subjetividade enquanto o ontológico da
modernidade é, na verdade, apenas uma concreção histórico-

2
Este curso, ministrado no segundo trimestre de 1940, foi publicado
primeiramente em 1961, no segundo volume do livro de Heidegger intitulado
Nietzsche e, posteriormente, foi publicado no volume 48 das suas obras
completas. Seguiremos, aqui, o texto do livro Nietzsche II.
3
Os textos de Heidegger serão indicados por siglas. Cf. as referências
bibliográficas. Quando os textos citados não forem de língua portuguesa a
tradução será do autor deste artigo.
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Subjetidade e subjetividade

ontológica da era metafísica, ou seja, uma concreção da destinação


do projeto do ente sobre o ser, que comporta uma determinação
toda própria da essência da verdade do ente no seu todo. Com
outras palavras, a subjetividade é apenas uma concreção histórica
do modo como se dá, para o homem ocidental, a parusia do ente
como tal e no seu todo: o dar-se sub-reptício do ser, advindo e, ao
mesmo tempo, se retraindo em tudo quanto está sendo e à medida
que está sendo, respectivamente, em todo o modo de ser, incluindo
aí, bem no meio do ente em seu todo, o homem e o seu mundo
histórico, o modo como homem é homem, isto é, o modo como ele
é si mesmo e se sabe a si mesmo neste modo de ser, bem como o
modo como o homem recebe e dá a medida com a qual ele
dimensiona a verdade do ente, quer dizer, a manifestação da
“realidade” enquanto tal e no seu todo. Nessa era, o ser do ente
como tal e no todo (a “realidade”) é compreendido no horizonte
da subjetidade. Na meditação histórico-ontológica de Heidegger,
que transcende o horizonte dos fatos e de seus condicionamentos,
bem como o horizonte da época e da consciência epocal,
reconduzindo o aparecimento histórico-ôntico à sua raiz histórico-
ontológica (Cf. Volpi, 1989, p. 69), a subjetividade é a culminância
da era da metafísica, ou seja, daquele pensar que, por
aproximadamente dois milênios e meio, experimenta e
compreende o ser a partir do referimento da subjetidade.

1. Diferença e referência de subjetidade e subjetividade


Qual a diferença entre subjetividade (Subjektivität) e subjetidade
(Subiectität)? Como Heidegger distingue entre uma e outra? Em
“Die Metaphysik als Geschichte des Seins” (“A metafísica como
história do ser”)4, texto de 1941, em que Heidegger se concentra
em sua confrontação histórico-ontológica com a metafísica, esta
diferença é nomeada e elucidada. Vejamos:

4
Este texto foi publicado no segundo volume do livro sobre Nietzsche.
Faremos a citação deste texto nesta edição de 1961.
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Marcos Aurélio Fernandes

O nome subjetidade deve enfatizar que o ser é determinado, sim,


partindo do subiectum, mas não necessariamente por meio de um eu.
Ademais, ao mesmo tempo o título contém uma remissão ao
hypokeímenon e, portanto, ao início da metafísica, mas também o
prenúncio do proceder da metafísica moderna, a qual, com efeito,
reivindica a “egoidade” (Ichheit) e, sobretudo, a ipseidade (Selbstheit) do
espírito como traço essencial da verdadeira realidade (N II, p. 411).

Desde o início de sua história, com Platão, a metafísica esboçou


uma compreensão do ser a partir do ente e, de modo especial, a
partir de um “sujeito” (hypokeímenon, em grego; subiectum, em
latim). Somente na modernidade é que o sujeito, ou seja, o fundo
ou fundamento da entidade (ser) do ente, do seu irromper e
aparecer, consistir e subsistir, foi identificado com a egoidade ou
com a ipseidade do espírito (Geist – o termo latino seria “mens”,
mente). O ser-sujeito no sentido da subjetividade (determinado a
partir da egoidade e ipseidade do espírito) é apenas uma
concreção histórica do ser-sujeito em sentido mais fundamental-
ontológico. Na antiguidade e na idade média o ser-sujeito foi
determinado mais ampla e fundamentalmente a partir da noção de
“substância” (ousia, em grego; substantia, em latim). A metafísica
compreendeu a substância, ou melhor, a substancialidade (o ser ou
entidade do ente) numa tríplice referência ou ponto de vista:
primeiramente, a partir da “natureza” (physis, em grego; natura,
em latim) ou do mundo (kosmos, em grego, mundus, em latim);
depois, a partir de “Deus” (theós, em grego; deus, em latim); ou,
ainda, a partir da alma (psykhé, em grego; anima, em latim).
Desde o começo da modernidade a alma (anima) tem sido
experimentada, compreendida e interpretada como “animus” ou
“mens” (mente, espírito; em alemão: Geist), ou, mais precisamente,
como “ratio” (razão; em alemão: Vernunft). A alma enquanto
mente ou razão, ainda por cima determinada a partir da egoidade
e da ipseidade, tornou-se a realidade verdadeira, à medida que
também a verdade foi entendida como certeza: o ente mais certo,
indubitável, é a mente, com sua autoconsciência, isto é, o “eu
penso – eu sou”:
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Subjetidade e subjetividade

Se por subjetividade se entende isto, a saber, que a essência da realidade


em verdade – isto é, para a autocerteza da autoconsciência – é mens sive
animus5, ratio6, Vernunft7, Geist8, então a “subjetividade” aparece como
um modo da subjetidade. Esta última não caracteriza necessariamente o
ser a partir da actualitas da apetição que representa, já que subjetidade
significa também: o ente é subiectum no sentido do ens actu9, seja este o
actus purus10 ou o mundus11 enquanto ens creatum12. Subjetidade quer
dizer, enfim: o ente é subiectum13 no sentido do hypokeímenon14 que,
enquanto prote ousía15, tem a sua distinção no ser presente do que é a
cada vez (N II, p. 411).

A subjetividade é um modo da subjetidade. A subjetidade se


determinou, na história da metafísica, antes de tudo como o
“hypokeímenon”, isto é, como o vigor de ser subjacente. Este foi
nomeado no pensamento grego clássico “ousía”, a vigência
constante, subsistente, perdurante, o que os latinos traduziram e
interpretaram como “substantia”, substância, o que subsiste em si
mesmo, o que está sob as determinações acidentais do ente. Platão
compreendeu a “ousía” em sentido próprio como “idea”, a forma
formadora originária e o aspecto como algo se faz ver em seu
modo de ser típico. Aristóteles, porém, compreendeu a “ousía” em
sentido próprio como “enérgeia”, o ser em obra, o ser como a
consumação ou perfeição de uma obra, o que os latinos traduziram
e interpretaram como “ens actu”, ser em ato, ser realizado, efetivo,
perfeito, completo. Os medievais latinos entenderam o subiectum
(sujeito, fundamento, suporte) como “ens actu”, mas acima de tudo
como “actus purus”, o ente perfeitíssimo, Deus, que cria, isto é, faz

5
Mente ou ânimo/espírito (em latim) (tradução nossa).
6
Razão (em latim) (tradução nossa).
7
Razão (em alemão) (tradução nossa).
8
Espírito (em alemão) (tradução nossa).
9
Ente em ato (em latim) (tradução nossa).
10
Ato puro, realidade pura (em latim) (tradução nossa).
11
Mundo (em latim) (tradução nossa).
12
Ente criado, criatura (em latim) (tradução nossa).
13
Sujeito (em latim: o que está lançado por debaixo) (tradução nossa).
14
Sujeito (em grego: o que subjaz) (tradução nossa).
15
Substância primeira (em grego: aquilo que é vigente e presente em sentido
primordial, o indivíduo, o singular) (tradução nossa).
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Marcos Aurélio Fernandes

passar da potência para o ato, da possibilidade para a realidade


efetiva, o “mundus” (mundo). Somente na modernidade é que o
subiectum em sentido mais próprio e eminente é o “ego cogito”, a
mente, a razão, o espírito, em sua autocerteza e autoconsciência.
Por isto é que a subjetividade é apenas uma forma histórica da
subjetidade. Seguindo a meditação de Heidegger sobre a história
do ser, vejamos, primeiramente, algo desta história da subjetidade.

2. No início do pensar ocidental: o “hypokeímenon”


Comecemos com a compreensão do ser como permanência,
como presença constante, sempre vigente, como vigor que reina
antes de tudo, que Platão e Aristóteles condensaram na palavra
“ousía”. “Ousía” diz o ser do que está sendo, do ente, sua “entidade”,
aquilo pelo que o que é, o ente, tem o ser. Os gregos
experimentaram o ser do que é como a vigência do vigente, a
presença do presente. O ente é sempre algo que de alguma maneira
está presente, está aí, vigendo, vigorando, no ser, sendo. Até
mesmo o que ainda não é e o que já foi são o que são em
referência ao que é, ou seja, em referência ao presente. Neste
sentido, pois, ser diz tanto quanto presenciar(-se). Este vigor do ser
como presença constante, que vige de antemão, é anterior,
enquanto condição de possibilidade, até mesmo ao sujeito
entendido como subjetividade; pois algo só pode ser representado
por um eu (como um objeto) à medida que se apresenta e se
presencia, de alguma maneira (em sentido amplo); e mesmo um
eu só pode ser um eu à medida que é dado a si mesmo como uma
forma de autopresença. Segundo a experiência e a compreensão
grega desde os primórdios da metafísica, “ser” diz, portanto,
“presença” e o diz tanto melhor quanto mais esta presença não
declina, ou seja, é constante, permanente, consistente.
A “ousía”, que os latinos traduziram por “substantia”, ou seja, o
ser do ente, a entidade no sentido de presença constante,
permanente, que sempre perdura, foi também nomeada de
“hypokeímenon”, em latim, subiectum. “Hypokeímenon” significa a
presença que jaz de antemão: presença jacente a priori, ou melhor,
“pré-jacente”. “Hypokeímenon” é “arkhé”, princípio, origem, no
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Subjetidade e subjetividade

sentido do originário que rege e erige tudo; é “hyparkhé”, início, a


partir donde tudo tem sua proveniência e recebe seu lugar, sua
destinação no ser. O “hypokeímenon”, o pré-jacente, é
compreendido, pois, a partir do vigor que se impõe de modo
constante, da vigência que perdura, da presença permanente, da
estabilidade e constância. Ao “hypokeímenon” é atribuído um
“hyparkhein”: um dar princípio, um ser posto como fundamento e
origem imperante. Assim, o “hypokeímenon” é compreendido pelos
gregos como o que está presente, vigorando, dominando, a partir
desta presença constante, a priori, que se dá de antemão. Na
aurora do pensamento grego, com os primeiros pensadores, o que
se apresentou como “hypokeímenon” por excelência foi a “physis”, a
“natureza”, tomando-se esta palavra em sentido originário e o mais
amplo possível, como nome para o ser, para o vigor de presença,
que se apresenta como condição de possibilidade de tudo que se
presencia e se apresenta. Heidegger, num curso do semestre de
verão de 1943 sobre Heráclito, assim se refere ao “hypokeímenon”
no pensamento grego originário:

O ente que a partir de si mesmo se encontra a cada vez, desta ou


daquela maneira, enquanto isso e aquilo, sem acréscimos do homem, o
mar, a montanha, as florestas, os animais, o céu e também os homens e
os deuses, constitui o que advém, o que provém e, portanto, o que ali
está, hypokeímenon, aquilo que vem ao encontro do homem. Aqui
aparece o vigor de presença daquilo que o homem recebe sem precisar
proceder. Este vigora “junto” do homem, vindo ao seu encontro num
excesso e mesmo num sobressalto. Para os gregos, o que aparece a partir
de si mesmo, que “vigora” junto do homem é o ente em sentido
autêntico, porque, por razões que ainda não somos capazes de discutir,
eles fizeram a experiência de ser no sentido de um vigor de presença
(HER, p. 72-73).

Aqui, physis, “natureza” é o nome do ser como tal e no seu todo;


é o nome da “realidade” inteira e não o nome de uma parte, de um
setor da realidade. O homem se encontra no meio da “physis”,
medindo-se com ela, com seu advir, provir e sobrevir. A physis é o
que faz surgir todas as coisas. Ela mesma é o surgimento, que não
declina. A physis é o que está em si mesmo, o surgimento que
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Marcos Aurélio Fernandes

surge a partir de si mesmo, e que, dando-se e retraindo-se, deixa e


faz erguer-se e declinar-se tudo quanto se presenteia e se
apresenta. Já no curso do semestre de verão de 1935, intitulado
Introdução à metafísica, Heidegger buscara meditar acerca do
pensamento da physis nos pensadores originários Heráclito e
Parmênides. Para Heráclito, physis é lógos, a força de reunião que
perpassa e domina tudo, força que reúne o que tende a contrapor-
se, que mantém numa constância o que oscila, a harmonia
inaparente e mais forte, que disciplina os contrastes e que impede
que o todo se disperse e se perca num mero amontoado (Cf. IM, p.
157-158). Ora, segundo Heidegger, ao contrário do que se
costuma a ensinar, Heráclito e Parmênides pensaram e tentaram
dizer o mesmo. Este mesmo que Heráclito pensou como a força de
reunião, de unidade que domina desde o íntimo da physis, por ele
denominada de lógos, foi experimentada e pensada por
Parmênides como hen, um, ou, simplesmente, como einai (ser),
isto é, como “a própria solidez do consistente, concentrada em si
mesma, não atingida por nenhuma inconstância nem mudança”
(IM, p. 124). O ser se contrapõe ao vir-a-ser e ao aparecer.
Entretanto, ao mesmo tempo, o vir-a-ser e o aparecer co-
pertencem ao ser e vice-versa. O vir-a-ser é o aparecer do ser; e o
aparecer é o vir-a-ser do ser. O ser é presença. O vir-a-ser é o
chegar à presença e o sair dela. O aparecer é o apresentar-se que
se clareia e brilha. Assim como o vir-a-ser e o aparece co-
pertencem ao ser, também o não-ser, o nada, pertence ao ser. Ser e
não-ser se co-pertencem como presença e ausência, como emergir
e submergir, como manifestação e ocultação (Cf. IM, p. 140-141).
O homem está em meio a tudo isso. Para Parmênides, sábio (anér
sophós) é aquele homem que dá provas de discernimento ao ser
experimentado tanto no brilho do ser, quanto na escuridão do não-
ser, como no lusco-fusco do aparecer. Ou, nas palavras de
Heidegger,

Um homem verdadeiramente sábio não é aquele que persegue


cegamente uma verdade. É somente aquele que conhece constantemente
todos os três caminhos, o do Ser, o do não-ser e o da aparência. Um
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Subjetidade e subjetividade

saber superior e todo saber é superioridade, só é concedido àquele que


experimentou o ímpeto alado do caminho para o Ser. Que não estranhou
o espanto para o abismo do Nada. E que aceitou, como constante
necessidade, o terceiro caminho, o da aparência (IM, p. 139).

Já os primeiros pensadores experimentaram e pensaram o ser


do que é, o hypokeímenon, quer seja chamado de physis, quer seja
chamado de lógos ou de hen, ou ainda, simplesmente, de einai,
como “arkhé” e “hyparkhé”. O hypokeímenon é “arkhé”, princípio,
origem, no sentido do vigor imperante, originário, que erige e
rege, sustentando e governando tudo; é “hyparkhé”, início, o que
deixa e faz começar, a proveniência no ser e do ser de tudo aquilo
que é.

3. Platão: a “ousía” como “idea”


Platão assumiu como provocação fundamental do pensamento a
tarefa de pensar a proveniência de tudo o que, de alguma maneira,
está sendo. Pensar é discriminar, discernir tudo que é, enquanto
está sendo, a partir de sua proveniência. É o “caminho genealógico
de Platão”:

O sentido originário do termo filosófico “proveniência” remete, sempre,


para a fonte e a linhagem da diferença constitutiva de todo sendo,
remete para a tensão entre identidade e diferença de cada sendo. A
diferenciação nunca se conclui. E é, por isso, que cada ser, em sendo, se
relaciona com os outros níveis do próprio processo de elaboração do seu
modo de ser. Algo que está sendo vem a ser como é e o que é através de
tensões, de edificação de diferenças, de oposições [...]. Para Platão, a
proveniência não se dá de fora, mas de dentro, entrelaçada com uma
multiplicidade de diferenças. Não é de coisas diferentes, mas de
processos diferenciadores (Leão, 2010, p. 213).

Para Platão, como para Aristóteles, o ser – o vigor ou viger


originário e originador, que deixa e faz vir à presença tudo quanto
torna-se presente e se apresenta – recebe o nome de “ousía”16: o

16
Ousía é um substantivo derivado de oûsa, particípio feminino do verbo eînai
(ser). O particípio do verbo ser (no masculino: ôn; no feminino, oûsa; no
neutro, ón) é, para a compreensão da linguagem entre os gregos, a
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Marcos Aurélio Fernandes

perdurar constante, permanente, como tal (Cf. IM, p. 91). O ser,


em relação ao sendo (ente), é, pois, o primeiro, o a priori, a
proveniência de tudo. Com outras palavras: a presença em que
tudo emerge, tornando-se presente, ou de que tudo se retira,
tornando-se ausente, não declina. Como Parmênides já acenara, o
ser vige sem nascer nem perecer; em sua unicidade e inteireza, não
conhece estremecimento nem precisa de aperfeiçoamento; não foi
antes, nem será depois, pois é presença total, unidade unificadora
de tudo (Cf. IM, p. 124). Ou, partindo-se das palavras de Heráclito,
o ser é “o que nunca declina” (tò mê dûnón pote) ou “o surgimento
incessante” (tò aeì phyon) (Cf. HER, p. 100). No horizonte do
pensamento metafísico, com Platão e Aristóteles, a “ousía” passou
a ser compreendida como “génos” (proveniência), com o seu
caráter de “comunidade” ou “universalidade”:

A ousía, o ser, é aquilo a partir de onde cada ente surge como tal. É a
proveniência dos entes, génos. É assim que Platão e Aristóteles
caracterizaram o ser em relação ao ente. Porque o ser é a proveniência
graças à qual o ente é, como tal, o ser em relação a cada ente é, para
Platão e Aristóteles, tò koinon – o comum, o em conjunto, kathólou, isto
é, o que toca a totalidade e, sobretudo, cada ente (HER, p. 72).

Platão considera a “ousía” como “idea”. Para ele, a “idea” é o ser


autêntico, a entidade propriamente dita do ente, a presença e
vigência única. A “ousia” do “ón” (o ser, a vigência ou presença
permanente do “sendo”, isto é, do ente), experimentada a partir da
“physis” (surgimento incessante), se torna “idea” à medida que o
que aparece oferece de si mesmo uma visão, ou seja, uma vista,
uma mira, um espetáculo, um aspecto que pode ser contemplado,

experiência inaugural da participação (metokhé) no ser por parte daquilo que


está sendo (o particípio grego se traduz para o gerúndio do português). O
particípio expressa, assim, a dinâmica geradora (gerúndio) do ser que se dá, se
comunica, a tudo quanto, de alguma maneira, vem a ser. O particípio diz,
portanto, a comunicação da experiência transcendental-ontológica, de que
tudo quanto é participa e compartilha; diz, portanto, que o que está sendo só
é à medida que participa do ser, compartilha do ser com tudo o mais que está
sendo (entendendo-se o ser como verbo originário).
132
Subjetidade e subjetividade

considerado. Idea ou eidos é o aspecto do ente, ou seja, como ele,


eclodindo, aparece e reluz; e, aparecendo e resplandecendo,
oferece uma vista de si. Enquanto aparecer verdadeiro, o ser
enquanto idea nomeia uma vigência e uma presença que perdura,
que permanece e tem consistência em si mesma. Em Platão,
portanto, idea significa o que o ente propriamente,
verdadeiramente, é: o aspecto permanente e primordial: a priori.
Idea, portanto, nomeia o verdadeiro, próprio e a priori “ti estin” (o
“o que é” do que está sendo, do ente) – a vigência e presença
constante e consistente do ser naquilo e daquilo que está sendo: a
essência do ente. A idea ou essência determina o que o ente é. Ela
é anterior, na determinação, ao fato de que o ente é (sua
existência), ou seja, ela é o a priori do ente. A idea é “to proteron te
physei”: o que vem primeiro, segundo a dinâmica do surgimento
universal (physis), quer dizer, segundo o ser, ou seja, na medida
em que algo se torna o que ele é, vale dizer, o que ele é de
antemão, ou ainda, o que ele já era, enquanto este ou aquele modo
de ser. A idea enquanto essência diz, portanto, a natureza
primordial e verdadeira (consistente, permanente) do ente e
determina o seu desvelar, o seu aparecer no desvelado. A idea,
portanto, se determina a partir da physis (surgimento) e da
aletheia (desvelamento). Para Platão, portanto, a idea é a entidade
do ente, como essência e natureza primordial. É o que no ente é
mais propriamente ente: o “ontos ón” (a realidade realíssima, a
realidade propriamente dita, o ser por excelência) – a vigência
propriamente dita do ser no ente. A idea é o ente mais
propriamente ente e o ente primordialmente ente: a entidade do
ente, a essência que predetermina a existência de todo e de cada
ente. A idea é, portanto, a proveniência essencial, a origem (arkhé)
do ente.
A “idea” é o “koinón”: o comum; ou seja, é o “hen”, o um
unificador. Enquanto origem essencial ou essência originária, a
idea é o modo de ser que permanece o mesmo (identidade) na
mutação dos entes que, de maneira mutável, surgindo e
perecendo, isto é, não permanecendo, participam desse modo de
133
Marcos Aurélio Fernandes

ser permanente. Enquanto sempre o mesmo, a idea é também o


“um unificador” (unidade) dos muitos entes que participam desse
modo de ser. Os muitos (ékasta) remetem de volta ao um que os
unifica e este um unificador é a idea do ente. Enquanto tal, a idea é
o comum dos diversos: o koinon.

O que faz alguma coisa ser verdadeira, o que leva uma atividade ou um
processo a ser livre são respectivamente a verdade e a liberdade. O que
faz o justo ser justo é a justiça. Do mesmo modo, o que ser algo que está
sendo é o ser, o que leva um real a realizar-se é a realidade. Aristóteles
forma do particípio presente substantivado, tò ón, o sendo, um
substantivo abstrato, he ousía, para designar o ser e a realidade, onde
provém, em que se funda e fundamenta todo sendo e qualquer real. Por
isso tanto Platão como Aristóteles dizem que o ser é para todos os sendo
tò génos, “a fonte” e “origem”; que a realidade, face e em comparação
com os modos de ser e realizar-se de todo sendo e de qualquer real, é tò
koinón, o único e coincidente, tò kathólou, o todo e a totalidade (Leão,
2010, p. 179).

Para a experiência do pensar de Platão, a idea é doação de ser,


comunicação de ser a tudo aquilo que, de alguma maneira, está
sendo. É forma, em referência à qual, tudo o que está sendo, no
seu modo de ser, se forma, se reforma, se transforma, se deforma.
O ser, a ousía, como idea, forma originária e originadora, abrange
todo o sendo e dá a cada sendo a sua procedência, destinando a
cada sendo o seu lugar e o seu tempo no todo do ser. O valor de
cada sendo se mede, justamente, por sua capacidade, maior ou
menor, de participar no ser e em sua permanência. O “céu” é
aquilo que participa do ser de modo perpétuo, puro e límpido,
luminoso. A “terra”, a realidade sublunar, é aquilo que participa de
modo inconstante, fugidio, fugaz. O ser, enquanto entidade do
ente, no sentido da idea, forma originária e originadora, é o
permanente por excelência. O sendo, o ente, especialmente o sendo
sublunar, é o mutável: o que vem a ser e deixa de ser, o que
aparece e desaparece, se torna presente e se ausenta. O ser é; o
sendo, especialmente o terreno, nem é propriamente, nem não é
propriamente, ou, quiçá, é e não é, participando, no reino do devir
e da aparência, tanto do ser quanto do não-ser. O ser é o infinito, o
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Subjetidade e subjetividade

sendo é o definido, o delimitado, o determinado. O ser é um, o


sendo é múltiplo – pluralia tantum: só se dá no plural. “Pois uma
realização, que, para poder realizar-se, tem de separar-se das
outras realizações por termos e armações, através de fins, confins e
limites, só pode mesmo trazer inscrito o nada da pluralidade na
própria dinâmica de seus poderes de ser e vigência” (Leão, 2010,
p. 201-202). Assim, em Platão, a tensão criadora entre ser e vir a
ser, entre ser e parecer, entre ser e não-ser, que vigorava no
pensamento de Heráclito e de Parmênides, perde sua força e, em
vez disso, abre-se uma separação ou um distanciamento (khôrismós)
entre ser e vir a ser, entre ser e parecer, entre ser e não-ser. É o
começo da meta-física.
Ora, se a idea é o que no ente é mais propriamente, o ser
comum, o um e idêntico, a natureza primordial e originária, a
essência do ente, o ser verdadeira e propriamente, então aquilo
que é a cada vez (o singular) e provisoriamente na pluralidade das
realizações definidas, o que é mutável não é verdadeira e
propriamente, nem não é verdadeira e propriamente. Mas, por não
satisfazer plenamente as condições para ser considerado ser em
sentido verdadeiro e próprio, mais merece ser designado como me
ón: não-ser – o que nunca satisfaz ao ser na sua consistência
verdadeira e própria. “Partindo [...] da idea, o tóde ti, o ente que a
cada vez é, permanece inconcebível na sua entidade (o tóde ti é
um me on – e, no entanto, é um on)”, conclui Heidegger (N II, p.
372). Isso implicou a necessidade de outra orientação para o
pensamento da ousía em Aristóteles.

4. Aristóteles: a “ousía” como “enérgeia”


O pensamento de Aristóteles só pode se diferenciar do de Platão
à medida que há algo de comum entre ambos os pensadores. De
fato, também Aristóteles parte da compreensão do ser como ousía,
vigência, presença. Também ele pensa a ousía como o a priori
transcendental-ontológico. Trata-se, aqui, da anterioridade do ser
em relação ao ente, da presença em relação a tudo quanto se torna
presente e se apresenta, da realidade, em relação às realizações e
ao real.
135
Marcos Aurélio Fernandes

O ser, a realidade já é sempre mais antigo do que todo sendo e qualquer


real. Por isso o ser, a realidade já era e se tinha realizado para todo
sendo ser e todo real realizar-se. Antes do sendo ser o que é, o ser já era.
É o que Aristóteles expressa numa fórmula lapidar: tó ti ên eînai, “o ser
que, de alguma maneira, já era em todo sendo” (Leão, 2010, p. 179-
180).

Que fenômeno é este? Esta é a própria fenomenalidade de todo


o fenômeno. Em tudo o que está sendo, em sua vigência, se
recolhe o ser e o não-ser, o ser e o vir a ser, o ser e o aparecer. Do
mesmo modo, em tudo o que está sendo, acontece identidade e
diferença: tudo o que está sendo, enquanto vige entre o aparecer e
o desaparecer, entre o apresentar-se e o ausentar-se, se recolhe no
ser e acolhe o não-ser, sendo si mesmo para si mesmo (identidade)
e sendo outro para outros (diferença). Tudo está vindo a ser o que
já era: terra está vindo a ser terra, água, vindo a ser água, ar vindo
a ser ar, fogo vindo a ser fogo, enfim, cada fenômeno, cada ente,
cada real, está vindo a ser o ser que ele já era. As coisas não
somente se transformam em outras coisas. Elas também, e, antes
de tudo, se formam a partir de si mesmas, em referência a si
mesmas (identidade) e em referência ao que elas mesmas não são,
ao outro de si mesmas (diferença) (Cf. Leão, 2013, p. 27; 34-35).
Como conceber, então, o singular, o individual, o que é a cada
vez (tóde ti) em sua positividade? Como Aristóteles encontrou uma
possibilidade de repensar a ousía, o ser, a presença, a realidade, de
modo a dar conta de conceber o singular e o mutável em sua
positividade?

A mesma essência do ser, o ser presente ou vigente, que Platão pensa


para o koinón da idea, Aristóteles concebe para o tóde ti como a enérgeia.
Enquanto Platão não pode nunca admitir o ente individuado como o
ente verdadeiro e próprio, enquanto Aristóteles incluiu o individuado no
ser presente, Aristóteles pensa em modo mais grego do que Platão, ou
seja, de modo mais adequado à essência do ser inicialmente decidida (N
II, p. 372-373).

Mas, o que significa “enérgeia”? O que diz esta palavra no


pensamento de Aristóteles? A palavra “enérgeia” remete a “ergon”:
136
Subjetidade e subjetividade

obra. Entretanto, aqui a obra é pensada a partir do movimento e


do repouso, bem como do desvelamento. A obra é aquilo que veio
a ser, que se erigiu, crescendo e aparecendo, apresentando-se
estavelmente no desvelado. A obra é, pois, uma presença, algo que
repousa em si mesmo, numa estabilidade, numa subsistência,
numa quietude: ela é uma “ousía”, e o é no modo da “prote ousía”,
ou seja, da singularidade, do “a cada vez” (kath’hekaston), do “este
aqui” (tóde ti).
A obra vige a partir de um ser pro-duzido: ou seja, trazido para
fora, trazido para a luz, posto no desvelado. Há dois modos de pro-
dução: a physis – o deixar que algo emerja e se abra por si mesmo;
e a poiesis – o pôr algo diante de si no sentido de perfazer, ou seja,
de aprontar e de fabricar. Na posição da obra se dá a composição
de movimento e repouso, ou seja, de motilidade e quietude. A
quietude, no entanto, não é a privação do movimento, mas sim a
completude, a consumação do movimento:

A casa que está lá é enquanto posta em evidência no seu aspecto,


exposta no desvelado, está neste aspecto. Estando, repousa na forma
externa do aspecto. A quietude do pro-duzido não é um nada, mas um
recolhimento. Recolheu em si todos os movimentos do produzir a casa,
os finalizou no sentido da delimitação que dá o acabamento – péras, télos
– não do mero cessar. A quietude custodia a consumação do movido.
Aquela casa é como ergon. “Obra” quer dizer aquilo que repousou na
quietude daquilo que tem o aspecto de – estando de pé, jazendo –,
aquilo que repousou no ser presente do desvelado (N II, p. 368).

A partir desta exposição do ser-obra, no horizonte da


compreensão grega, o que significa “enérgeia”? Resposta: O viger
como obra em obra, ou, o ser-obra: o ser posto no desvelado, o ser
posto ali, na proximidade, o ser posto de modo ereto. Aristóteles
inventou então a palavra “entelékheia”: o estar-no-fim, no sentido
do estar consumado, na plenitude da presença, como um “tóde ti”:
um este aqui, um singular, um indivíduo. Para Aristóteles, “ousía”
em sentido predominante, em primeiro lugar e acima de tudo,
seria o “hypokeímenon kath’autó”, o “sujeito”, o subjacente em
sentido eminente. Por sua vez, a presença em sentido eminente e
137
Marcos Aurélio Fernandes

primordial, que, por isso, Aristóteles chama de “prote ousía”, a


presença primordial, primária, a “substância primeira”, segundo a
terminologia tradicional, é o permanecer de alguma coisa que, por
si mesma, a cada vez permanece e se mantém no ser, prejaz, jaz de
antemão na vizinhança, na proximidade. Ser diz respeito, em
primeiro lugar, portanto, ao permanecer daquilo que a cada vez
perdura: à prote ousía, que é a ousía do “kath’hékaston”: do que se
dá a cada vez, quer dizer, o “respectivo”, o singular, o individual
(ex.: “este homem aqui”, “este cavalo aqui”). Em sentido
secundário (deutera ousía), porém, “ousía” é a presença do aspecto
(eidos17: aspectus: espécie), do modo de ser no qual o ente singular
se apresenta, ou então a proveniência essencial deste aspecto
(genos18: gênero)19.
Para Aristóteles, portanto, ser (presença/vigência) em sentido
primário é o “hóti estin”, literalmente, o “que é” do que está sendo
(ente), aquilo que, na terminologia escolástica, se chamará de
“existentia” (existência). E ser (presença/vigência) em sentido
secundário é o “tí estin”, literalmente, o “o que é” do que está
sendo (ente), aquilo que, na terminologia escolástica, se chamará
de “essentia” (essência). A essência responde à pergunta “o que é?”
um ente (em grego: “tí estin?”; em latim: “quid est?”). Já a
existência responde “que um ente é (quod est)” à pergunta se um
ente é (an sit?). A distinção de essência e existência, portanto,
nomeia uma diferença no ser: a existência nomeia que o ente é; a
essência nomeia o que o ente é. Falando numa linguagem
escolástica, Aristóteles estabelece o primado da existência sobre a
essência, invertendo o pensamento de Platão, que apresentava o
primado da essência sobre a existência. Isso obriga-nos a reportar
aquela “gigantomachia perì tes ousias”, de que fala Heidegger na
introdução de Ser e Tempo, no primeiro parágrafo: o combate de

17
“Eidos” deriva do verbo arcaico e poético “eídomai”: apareço, sou visto.
Significa o aspecto em que algo se faz ver, como também, o brilho, o
esplendor, a beleza que reluz neste fazer-se ver.
18
“Genos” vem do verbo “gígnomai”: nasço, venho a ser. Significava raça,
descendência, proveniência.
19
Cf. Aristóteles, Categorias 5, 2a 11-19.
138
Subjetidade e subjetividade

gigantes acerca do ser, ou melhor, acerca da entidade do ente


enquanto ousia: presença, vigência (SZ, p. 2).
Entretanto, a iniciativa de Aristóteles foi mais bem sucedida do
que a de Platão? Em que medida? Por mais que Aristóteles pense
de modo mais adequado à essência do ser tal como esta se tornou
manifesta no início do pensar grego, em que ser e vir a ser, ser e
não-ser, ser e aparecer ainda se mantinham numa tensão criadora,
a saber, como physis (surgimento) e alétheia (desencobrimento),
Aristóteles ainda pensava em contraposição a Platão e, neste
sentido, em dependência dele, ou melhor, em dependência do
pensamento “metafísico” que com ele começou. A resposta de
Heidegger soa assim:

Todavia, Aristóteles pôde pensar por sua vez a ousía como a enérgeia
somente como contra-ataque em relação à ousía como idea, de tal
maneira que ele mantém então o eidos como presença subordinada no
patrimônio essencial do ser presente do ente presente em geral. Que
Aristóteles pense nos termos indicados de modo mais grego que Platão
não quer dizer, todavia, que ele chegue, de novo, mais próximo do
pensamento inicial do ser. Entre a enérgeia e a essência inicial do ser
(alétheia – physis) está a idea. Ambos os modos da ousía, a idea e a
enérgeia formam na reciprocidade da sua distinção a estrutura
fundamental de toda metafísica, de toda verdade do ente enquanto tal.
O ser manifesta a sua essência nestes dois modos: o ser é presença
enquanto manter-se do aspecto. O ser é o perdurar daquilo que é a cada vez
em tal aspecto. Esta dupla presença subsiste com base no ser presente e
é, por isso, presença como constância, viger duradouramente, demorar
(N II, p. 373; grifo de Heidegger).

Voltando ao começo desta reflexão, em que falávamos de uma


“posição metafísica de fundo”, podemos, agora, perguntar: como
se caracteriza a posição metafísica de fundo do pensamento grego?
E como o homem se situa nela? A palavra que resume esta posição
metafísica de fundo é “ousía”, o ser presente, a presença como
constância, como o viger duradouro, como o demorar; e isso, por
sua vez, sob duplo aspecto: a ousía, como idea, forma, estrutura,
perfil estrutural do modo de ser de um ente, ou eidos, aspecto; e
como enérgeia, o perdurar daquilo que é a cada vez, daquilo que é
139
Marcos Aurélio Fernandes

singular, individuado. Entretanto, a ousía é um desdobramento a


essência inicial do ser, que se manifestou no pensamento
originário dos primeiros pensadores como physis (surgimento) e
alétheia (desencobrimento). Resumindo, podemos dizer: na
antiguidade grega, o homem se era si mesmo e se sabia a si mesmo
na pertença ao desvelamento do ente. Ser homem significava ter o
próprio fundamento no desvelamento do ente. O ente era aquilo
que se apresentava no domínio do desvelado. O ser do ente tinha o
caráter de presença e presença constante, perdurável, subsistente
(substância). A verdade era o desvelamento daquilo que estava
presente. O homem era aquele ente finito, que se media com o
desvelamento e o velamento do ente, lutando por alcançar a
verdade do ser em meio à aparência do ente (Cf. N II, p. 123).

5. Substância (substancialidade) no medievo.


Dizíamos no começo que a subjetividade é uma concreção
histórica da subjetidade. A condição de possibilidade da
subjetidade já se dá como physis-alétheia, segundo a manifestação
essencial do ser concedida aos primeiros pensadores (Heráclito,
Parmênides). A partir daí, uma primeira concreção da subjetidade
se dá como ousía, “substância”. Mutatis mutandis, o medievo ainda
teve na “substantia” um registro central de sua compreensão do
sentido de ser de tudo aquilo que, de alguma maneira, está sendo.
Para o medievo, o subiectum em sentido próprio é a substantia.
Não podemos entrar aqui nos pormenores da ontologia medieval.
Por isso, daremos apenas uma indicação a partir de uma citação
sobre a concepção medieval da realidade:

Todos os entes que constituem as diferentes ordenações das esferas dos


entes do universo medieval, desde a esfera das coisas sem vida, das
coisas viventes (vegetais), das coisas sensíveis (animais), das coisas
humanas (homem, animal-racional), dos espíritos em diferentes níveis
de intensidade do ser (os coros dos anjos) até o próprio Deus, enquanto,
como Criador de todas as coisas, é fonte de todo ser, são chamados
substâncias (substâncias compostas e simples). Assim todos os entes,
enquanto obiecta, isto é, lançados e mantidos de encontro em face da
percepção, da imaginação, do julgar e mirar, se assentam numa vigência
140
Subjetidade e subjetividade

de fundo, cuja imensidão, profundidade e criatividade prenunciam o ser,


uma presença inominável, “denominado” Deus. Sua caracterização é
assinalada, como substância simples e a se, isto é, ab-soluto assentamento
da e na plenitude do ser, por e para si (Harada, 2009, p. 135-136; grifo
do autor).

Assim, no medievo, substantia e subiectum são o mesmo. Tudo


aquilo que não é acidental (o que tem o ser apenas “in alio”, em
outro), ou seja, tudo aquilo que é “in se” (em si), em diferentes
graus e modos de ser, é substância. Fundamentalmente, porém, há
dois modos de ser radicalmente diferentes: o modo de ser do que é
principiado por outro (ens ab alio: ente a partir de outro) e o modo
de ser do que não é principiado, mas que é a partir de si mesmo
(ens a se), como, por exemplo, a essência divina, em sentido
particular, o Pai, na Trindade. Assim, a substancialidade enquanto
vigência de fundo do ser, aparece em sentido eminente em Deus,
ou, dito de outro modo, na essência divina, na deidade. A
substância é, aqui, a prejacência absoluta da deidade. Resumindo o
sentido de substantia no universo medieval:

Substância, hypokeímenon significa, portanto, o prejacente, o apriori, a


arché, a hyparché. É o fundo a partir do qual todo um mundo de entes
recebem identidade, localização no todo, unidade de participação, no
sentido do ser que os faz surgir, crescer e se consumar, como elementos
componentes ou melhor estruturantes da eclosão de uma paisagem da
possibilidade de ser. Trata-se, portanto, digamos, do ponto de salto do
próprio eclodir que se perfaz, como surgir, crescer e consumar-se num
possível mundo (Harada, 2009, p. 137-138).

Ora, o “mundo” na concepção medieval da realidade era o


“ordo” (a ordem), o “universum” (o universo: o que está vertido no
e para o Um), entendido como “ens creatum” (ente criado,
criatura). E o homem era, aí, no medievo cristão, a “imago Dei”
(imagem de Deus), ao mesmo tempo em que era o “minor
mundus”, o mundo em miniatura, o microcosmo, aquele ente que
na unidade de sua essência reúne a multiplicidade do universo;
aquele ente com cuja natureza o Deus se une e, que, daí, recebe a
possibilidade de se tornar ele mesmo filho de Deus. Sem dúvida,
141
Marcos Aurélio Fernandes

esta substantia, este subiectum, o homem, é uma realização


privilegiada. Entretanto, o homem aí ainda não é propriamente o
sujeito da subjetividade. Como, pois, vem à tona o ser-sujeito da
subjetividade? Como se passa da subjetidade como substância para
a subjetidade como subjetividade?

6. Subjetidade como subjetividade


Costuma-se caracterizar a passagem do medievo para a
modernidade como um processo de libertação das constrições e
restrições que o estar vinculado à doutrina da revelação bíblica e
da Igreja impunha ao homem ocidental. Não que esta opinião seja
incorreta. É correta, mas pode ser que ela não desvele o essencial,
o que se dá como decisivo no nível histórico-ontológico. Neste nível
de profundidade da história ocidental, o que se dá é uma
transformação ontológica, ou seja, “uma nova determinação da
verdade do ente no todo e em sua essência” (N II, p. 129). Em que
consiste, pois, esta transformação?
Trata-se de uma transformação na verdade do ser do ente, ou,
dito simplesmente, na verdade do ente. O ser do ente era
experimentado e compreendido como ousía, substantia. Agora, o
ser do ente é determinado como objetividade. A vigência ou
presença substancial (Anwesenheit) agora se torna presença
objetual, objetiva (Praesenz). Objetividade diz, aqui, o ser do
objectum20. Objeto é o que está lançado diante de, em face de – isso
quer dizer: é a presença que se dá como correlata de um
representar. Trata-se, portanto, de uma presença representativa
(repräsentative Praesenz), ou seja, da presença que é retrorreferida
a um ego, respectivamente, a um si-mesmo (Cf. N II, p. 409).
Representar é trazer diante de si algo como algo, é intuí-lo (Cf. N
II, p. 425). Objetividade é, pois, representatividade, no sentido da

20
“Objectum” é particípio passivo neutro do verbo objicere: jogar em face de,
diante de. Objectum seria, portanto, o que está jogado em face, lançado diante
de [...]. Grosso modo, esta palavra latina corresponde ao termo grego
“antikeímenon”. Com este termo Aristóteles designava os correlatos das
faculdades da alma (De Anima, 402b, 415a).
142
Subjetidade e subjetividade

presença que se deixa representar, ou seja, apresentar como


correlata de um intuir (Anschauen), em sentido essencial. Neste
novo advento da realidade (nova vigência do ser, ou seja, da
entidade do ente e de sua verdade), muda o sentido de presença: a
presença-ousía se determinava como um apresentar-se no
desvelado e com base no desvelado (alétheia); a presença-do-
representado, a presença representativa, ou seja, objetual ou
objetiva, só é atuada a partir de uma referência a um ego (Cf. N II,
p. 409). O ego cogito, o “eu penso”, ou mais exatamente, o ego
sum, ego existo – eu sou, eu existo – agora se põe a si mesmo como
“subjectum”: fundamento de representação de todo o ente. Isto
significa: a verdade da coisa, do real, do ente no seu todo, deve
estar fundada na verdade da mente21.
Com que direito, porém? Em razão de que? Em razão de sua
indubitabilidade. A Meditação II das Meditationes de Prima
Philosophia de Descartes nos introduz na justificação ontológica
deste direito. Ainda que tudo fosse aniquilado pela dúvida, o ego
cogito, ego sum permaneceria de pé em si mesmo, ou seja, o
pensar, a mente, a egoidade como tal traz consigo o privilégio
ontológico de permanecer firme na evidência, na verdade, na
certeza de si mesma, mesmo quando tudo é tomado pelo vórtice
da dúvida. O ego, isto é, a egoidade, é indubitável, estável em sua
verdade, certo de uma certeza firme: aquilo que é certo e
inabalável (quod certum est et inconcussum)22. Assim, o ego, ou

21
“Adeo ut, omnibus satis superque pensitatis, denique statuendum sit hoc
pronunciatum, Ego sum, ego existo, quoties a me profertur, vel mente concipitur,
necessário esse verum” – “Assim, portanto, depois de ter ponderado tudo mais
do que o bastante, pode ser estatuído que isto que é pronunciado: eu sou, eu
existo, é necessariamente verdadeiro, toda a vez que for proferido por mim ou
que for concebido pela mente” (Descartes, 1641/1998, p. 162 – tradução
nossa, grifo do próprio texto editado).
22
“Quare jam denuo meditabor quidnam me olim esse crediderim, priusquam in
has cogitationes incidissem; ex quo deinde subducam quidquid allatis rationibus
vel minimum potuit infirmari, ut ita tandem praecise remaneat illud tantum
quod certum est & inconcussum” – “Por isso eu agora vou meditar de novo
sobre o que eu antes acreditava ser, antes de cair nestas cogitações; disso eu,
então, irei subtrair o que quer que possa ser infirmado ainda que
143
Marcos Aurélio Fernandes

melhor, a egoidade, ou, melhor ainda, a mente, é apresentada


agora como a substantia, o subiectum, o fundamentum por
excelência. Não se trata, aqui, pois, do eu individual, fático, mas
do eu enquanto tal, da essência do eu, da egoidade, ou, como diz
Descartes, do ego enquanto dado ao cogito, ao pensamento23, ou
seja, do ego enquanto res cogitans, enquanto mens (mente)24. A
indubitabilidade do ego pertence à essência da mente como tal (Cf.
Rombach, 1981, p. 448). A mente é uma presença cuja
autodatidade é autoevidente, por se dar numa intuição imediata.
Além disso, ela é uma atenção, um ser presente junto ao real, que
pode trazer em si o caráter de um “perceber claro e distinto” do
que quer que ela perceba ou intua25, e que tem a capacidade de

minimamente pelas razões aduzidas, a fim de que permaneça precisamente


somente aquilo que é certo e inabalável” (Descartes, 1641/1998, p. 162).
23
“Cogitare? Hic invenio, cogitatio est, haec sola a me divelli nequit: ego sum,
ego existo, certum est. Quandium autem? Nempe quandiu cogito” – “E o pensar?
Eis que encontrei: o pensar é a única coisa que não me pode ser tirada. Eu
sou, eu existo; isto é certo. Mas, por quanto tempo? Certamente, enquanto eu
penso” (Descartes, 1641/1998, p. 166).
24
“Nihil nunc admitto nisi quod necessario sit verum; sum igitur praecise tantùm
res cogitans, id est, mens, sive animus, sive intellectus, sive ratio, voces mihi priùs
significatione ignotae. Sum autem res vera, & vere existens; sed qualis res? Dixi,
cogitans” – “Nada agora admito a não ser o que de modo necessário é
verdadeiro; eu sou, portanto, precisamente, somente uma coisa pensante, isto
é, mente ou ânimo ou intelecto ou razão, vocábulos cuja significação me era
antes ignota. Eu sou, pois, uma coisa verdadeira, e verdadeiramente existente;
mas, que tipo de coisa? Eu já o disse, uma coisa pensante” (Descartes,
1641/1998, p. 166 – tradução nossa). Mais à frente Descartes diz: “Sed quid
igitur sum? Res cogitans. Quid est hoc? Nempe dubitans, intelligens, affirmans,
negans, volens, nolens, imaginans, quoque, & sentiens” – “Mas, portanto, o que
eu sou? Uma coisa pensante. O que é isto? Certamente, uma coisa que duvida,
que entende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina
também, e que sente” (Descartes, 1641/1998, p. 168).
25
“Atque, quod notandum est, ejus perceptio non visio, non tactio, non
imaginatio est, nec unquam fuit, quamvis prius ita videretur, sed solius mentis
inspectio, quae imperfecta esse potest & confusa, ut prius erat, vel clara &
distincta, ut nunc est, prout minus vel magis ad illa ex quibus constat attendo” –
“Mas de qualquer modo, há que se notar que a sua percepção [desta cera] não
é nem um ver, nem um tocar, nem um imaginar, nem foi jamais algo disso,
embora antes parecesse assim, mas um inspecionar da mente somente, que
144
Subjetidade e subjetividade

conter em si, intencionalmente, ou seja, ideal ou espiritualmente,


todas as coisas que ela representa. Esta autoevidência e esta
capacidade de ser a instância da recepção da evidenciação da
forma (ideia, essência) do que quer que seja caracteriza a mente
enquanto “razão pura”.
Subjetividade e objetividade se pertencem como momentos
correlativos de uma mesma funcionalidade, que é o processo da
representação. O representar, porém, se funda no refletir, na
reflexão. Refletir é, fundamentalmente, estar a caminho de si
mesmo. Só que este caminho tem um sentido de um regresso.
Reflexão é um retorno sobre si mesmo, um virar, um voltar para si
mesmo, um dobrar-se sobre si mesmo (Cf. N II, p. 397). Só há
objeto lá onde houver sujeito, ou melhor, um “ego cogito”, um “eu
penso”, uma “apercepção transcendental”, ou seja, uma
“consciência de si”. Reflexão é, pois, um redobrar-se sobre si. Na
intuição, a consciência põe, no sentido de fazer presente, algo
como algo, e isso ela o faz em referência a si mesma, para si
mesma. O tornar presente, pondo diante de si algo como algo, se
dá à medida que a consciência retorna para si, remete-se de volta
para si mesma, fornecendo-se, ante de tudo, a si mesma para si
mesma. Somente a partir da reflexão é que pode haver a formação
do conceito, em que algo é posto como algo e posto como
“idêntico”, ou seja, como uma “mesmidade” fixa e constante (Cf. N
II, p. 422 – 425).
O traço fundamental da subjetidade enquanto subjetividade
consiste em o sujeito querer-se a si mesmo, e, assim, em erguer-se
autonomamente no sentido de pôr-se de pé a si mesmo e de
produzir-se, ou seja, de pôr-se a si mesmo diante de si mesmo. No
pensamento moderno, a subjetidade, pela vontade de
autoasseguramento, põe a verdade do ente como certeza:

A subjetidade não é um artefato do homem, mas o homem se assegura


como aquele ente que é conforme ao ente enquanto tal, porque ele se

pode ser imperfeito e confuso, como era antes, ou claro e distinto, como é
agora, à medida que eu preste atenção mais ou menos àquilo de que é
constituída” (Descartes, 1641/1998, p. 174).
145
Marcos Aurélio Fernandes

quer como sujeito-eu e como sujeito-nós, se põe diante de si mesmo, por


si mesmo, se remete a si mesmo (N II, p. 346).

Na modernidade, a subjetividade (a subjetidade como egoidade


e ipseidade) aparece como autoposição e autoprodução. Isto quer
dizer: a egoidade se quer a si mesma, se busca a si mesma, se
produz e se fornece a si mesma. O “eu penso” se transforma em
“eu ajo” e o “eu ajo” e em “eu quero”. Mas, assim como o “eu
penso” é um “eu me penso”, também o “eu ajo” é um “eu me
produzo”, e, no fundo, o “eu quero” é um “eu me quero”. A
vontade de domínio de tudo que se dá, do lado objetivo da
funcionalidade de sujeito e objeto, como ciência (vontade de
conhecimento) e como técnica (vontade de controle), se dá, do
lado subjetivo da mesma funcionalidade, como busca de
autonomia. A subjetividade se experimenta como um querer pôr-se
de pé a si mesma, a partir de si mesma; e como um manter-se de
pé a si mesma a partir de si mesma.
No horizonte da experiência e da compreensão moderna do ser,
a mente é a realidade verdadeira e primordial, mas, na mente, se
sobressai tanto o pensar (repræsentatio) quanto o querer ou
apetecer (appetitio), sendo que, por fim, o querer se afirma como
cada vez mais decisivo, à medida que a realidade se torna
funcionalidade. É a partir do horizonte da funcionalidade como
operacionalidade, eficiência e eficácia, que se impõe também a
correspondência entre as funções da subjetividade e as funções da
objetividade.

7. Subjetividade como instalação do mundo enquanto


sistema
Na consumação da metafísica moderna da subjetividade,
acontece a antropomorfização de tudo, e, com isso, a experiência e
compreensão do ser como vontade chegam a seu ápice com Hegel,
Schelling e Nietzsche: em Hegel, como vontade de saber absoluto; em
Schelling, como vontade de amor; em Nietzsche, como vontade de
poder. Schelling parece pensar a essência do ser de todo o ente
nesta direção. De fato, ele chama de “vontade” o ser primordial,
146
Subjetidade e subjetividade

originário, o fundamento do existir de tudo aquilo que existe. Ele


diz: “Na última e mais elevada instância, não existe nenhum outro
ser além da vontade. A vontade (Wollen) é o ser primordial
(Urseyn)...” (Schelling, 1991, p. 33). Em Nietzsche, o mundo
aparece como vontade para o poder, vontade de potência. Enfim, a
vontade, é, pois, um querer que se quer a si mesmo, que quer a
estabilização e a constância do ser, a unificação, a unidade, no
devir e como devir. É uma vontade de realização do mais próprio
ser-si-mesmo (Selbstsein), da mais própria ipseidade (Selbstheit).

Todos estes traços do ser que pertencem à subjetidade como


subjetividade desdobram uma essência unitária que, segundo o próprio
caráter exigencial, desdobra a si mesma na sua unidade própria, isto é,
na junção (Fügung) da sua conjuntura essencial (Wesensgefüge). Tão logo
o ser alcançou a essência da vontade, é em si mesmo sistemático e um
sistema. De início o sistema, enquanto unidade de ordem de um saber,
aparece somente como a imagem que guia a exposição de todo o sabível
na sua estrutura. Porque, porém, o ser mesmo enquanto efetividade é
vontade, e a vontade é o unir – que apetece a si mesmo – da unidade do
universo, o sistema não é um sistema da ordem que um pensador tenha
na cabeça e exponha a cada vez de modo só imperfeito e sempre numa
medida unilateral. O sistema, a systasis26, é a estrutura essencial da

26
Em grego há a palavra “synthema”, que remete ao verbo “syntíthemi”, que é:
pôr junto, recolher, reunir, combinar, associar, urdir, enredar, tramar,
maquinar, organizar, dispor, fazer um acordo. “Synthema” tinha, pois, o
sentido de uma combinação, tanto no sentido de uma convenção ou acordo,
quanto no sentido de conexão. Heidegger, porém, aqui, remete à palavra
grega “systasis”. “Systasis” vem de “Synístemi”, que significa: a) como verbo
transitivo: pôr junto, compor, combinar, conjugar, condensar, tornar
consistente, constituir, instituir, fundar, estabelecer, decidir, organizar,
recomendar, compor; b) como verbo intransitivo: unir-se, juntar-se, constituir-
se, tomar forma ou corpo e vir a existir; o assumir consistência ou compacidade
(o tornar-se compacto) de uma obra; tratando-se de pessoas, o verbo significa
tornar-se e manter-se unidas. O verbo pode ter também um sentido hostil de
chocar-se num encontrão, de vir a combater-se, de ser envolvido numa
batalha. “Systasis” significa, pois, em sentido transitivo, o pôr em relação, a
apresentação e recomendação de alguém, proteção, comunicação com a
divindade; em sentido intransitivo, reunião, assembleia, união política,
aliança, concurso, confluência; constituição, composição, estrutura;
consistência, densidade, substância, existência.
147
Marcos Aurélio Fernandes

realidade do real – decerto, só quando a realidade alcançou a sua


essência como vontade. Isto acontece quando a verdade se tornou
certeza, a qual evoca, a partir da essência do ser, o traço fundamental do
asseguramento completo da estrutura em um fundamento que se
assegura a si mesmo (N II, p. 413).

Subjetidade enquanto subjetividade é, pois, o homem como


centro de referência do mundo e o mundo como sistema. A
totalidade do ente já não é o kosmos que surge do kháos, nem o
ordo universal da criação divina, o universum como expressão de
uma creatio (criação), mas sim a totalidade do ente que se
presenteia e se apresenta objetivamente, isto é, na representação e
para a representação do homem; falando nos termos da preleção
de 1938, intitulada “Die Zeit des Weltbildes” (“O tempo da
imagem do mundo”), pode-se dizer que o mundo se torna, ele
mesmo, uma imagem. Não se trata, porém, de uma imagem que é
outra coisa do que o mundo, algo assim como um quadro que
retrata o mundo, que reproduz, no sentido de um retrato ou de
uma cópia, o mundo. Trata-se, pelo contrário, de uma imagem que
é o mundo mesmo: o mundo como a totalidade do que está sendo,
cujo sentido de ser se instaura a partir da objetividade, ou seja, o
universo (a unidade-totalidade) do que é apresentado e
representado em referência à egoidade ou ipseidade. Mais do que
isso, imagem do mundo significa: o mundo enquanto aquilo de que
o homem está a par, de que ele está inteirado, de que ele
continuamente se informa e do qual ele toma conhecimento
objetivamente: o mundo-arranjo, o mundo-rede, o mundo-sistema, o
mundo-organização, o mundo-instituição, no qual o homem se
instala. “Onde o mundo se torna imagem, o ente no todo é contado
como aquilo em que o homem se instala (einrichtet), aquilo que
ele, por isso, de modo correspondente, quer trazer para diante de
si e ter diante de si e, com isso, num sentido decisivo, pôr diante
de si” (HW, p. 89). Imagem do mundo é, pois, o mundo
compreendido como imagem. Quando surge o mundo como
imagem, o todo do ente, o universo do que está sendo, passa a ser
só e à medida que é levado em conta pelo homem que representa e
reflete. Com outras palavras:
148
Subjetidade e subjetividade

Agora com a modernidade se instala o mundo. Deve-se compreender,


histórica e ontologicamente, portanto, o conceito de sujeito como o
conceito de mundo. Sujeito não diz, em primeiro lugar, nem a
consciência nem o eu, nem o indivíduo humano nem a pessoa. Sujeito é
o suporte real, a infraestrutura de sustentação, o substrato do processo
histórico de organização do mundo, que, como fundo e fundamento,
reúne tudo e concentra tudo em si e para si. É no sujeito que os aviões
voam, é no sujeito que os valores valem, é no sujeito que as instituições
dominam, é no sujeito que a técnica e a ciência, a estética e o estado se
expandem. Trata-se no sujeito da força de aglutinação e do poder de
senhorio das realizações do real (Leão, 2010, p. 172).

Na modernidade, abandona-se o horizonte teológico da


doutrina da criação, mas se mantém a pressuposição de uma
“ordem”. Em lugar da “ordem da criação”, entra e vige agora a
“ordem do mundo”, entendendo-se mundo no sentido da instalação
humana, conforme foi dito acima. Mas, em que consiste esta
ordem do mundo, que substitui a ordem da criação? Heidegger, na
preleção de 1930, “Von Wesen der Wahrheit” (“Da essência da
verdade”), caracteriza esta ordem como “o ser passível de
planificação (Planbarkeit) de todos os objetos por meio da razão
universal (Weltvernunf), que se dá a si mesma a lei e, daí, também
reivindica a compreensibilidade imediata do seu proceder (aquilo
que se tem por “lógico”)” (WM, p. 181). O mundo é, portanto, o
planificável, o programável, o calculável, enfim, o que é passível de
ser representado num processo matemático-lógico. Dos corifeus da
nascente ciência moderna27 a Hegel, a infraestrutura do mundo
será dada pela razão, ou seja, pelo pensamento representador-
calculador, enfim, pelo projeto matemático-lógico. Na consumação
da era moderna e da história da metafísica ocidental, Hegel dirá
que “O Lógico (é) a forma absoluta da verdade e muito mais que
isso, a verdade pura em si mesma” (apud IM, p. 147).

27
Galileu Galilei (1564-1642), René Descartes (1596-1650), Christian
Huygens (1629-1695) e Isaac Newton (1642-1727).
149
Marcos Aurélio Fernandes

8. Da objetividade à disponibilidade.
Fim da subjetividade e da subjetidade?
Esta consumação continua acontecendo no mundo
contemporâneo com a transformação da lógica em logística28 e com
o surgimento da cibernética como uma ciência que mantém numa
unidade rigorosamente técnica a diversidade dos conhecimentos.
Num texto intitulado “Das Ende der Philosophie und die Aufgabe
des Denkens” (“O fim da filosofia e a tarefa do pensar”), cuja
tradução francesa, feita por Jean Beaufret, que foi publicada em
1964 numa coletânea de textos reunida pela Unesco, Heidegger
assim indicava o papel da cibernética:

Esta ciência corresponde à determinação do homem enquanto o ser


agente-social. Pois ela é a teoria do controle do possível planificar e
instalar do trabalho humano. A cibernética transforma a linguagem num
intercâmbio de informações. As artes se tornam instrumentos
controlados e controladores da informação (ZSD, p. 65 – tradução
nossa).

Em uma conferência dada por Heidegger em 30 de outubro de


1965, por ocasião de celebrações em honra de Ludwig Binswanger,
que fora publicada em 1984 sob o título “Zur Frage nach der
Bestimmung der Sache des Denkens” (“Para a questão da
determinação da coisa do pensar”), Heidegger adverte que, em sua
consumação, a filosofia se dissolve em ciências autônomas, da
natureza e da história, e que a cibernética exerce em relação a
estas um papel unificador, não no sentido de uma ciência
fundamental, mas sim no sentido de uma unidade rigorosamente

28
Toma-se aqui a palavra “logística” em seu sentido contemporâneo, ou seja,
como “lógica algorítmica”. Segundo o Vocabulário Técnico e Crítico da
Filosofia, de Lalande, a lógica algorítmica é um “sistema de notações e de
regras de cálculo, análogas às da álgebra, que permite quer somente
representar operações da lógica clássica de maneira mais condensada e mais
rigorosa, quer alargá-la e definir operações novas, p. ex. as que concernem às
funções lógicas, à lógica das relações, etc.” (Lalande, 1999, p. 43). Em sentido
diverso, a palavra é bem antiga. Já Platão, com efeito, usava a expressão
“logistikè tekhné” (Górgias 450 d, República, 525 b, etc.) para designar a
“aritmética prática” (Cf. Lalande, 1999, p. 636).
150
Subjetidade e subjetividade

técnica. E acrescenta: “a cibernética é predisposta (eingestellt) para


preparar e fabricar (bereit- und herzustellen) a perspectiva sobre os
processos comumente controláveis” (FC p. 32)29. Entretanto, o
predomínio da cibernética, na esfera do conhecimento, e, com ela,
da informação e da informatização e, com isso, do virtual, é apenas
o sinal distintivo de uma nova transformação ontológica da
verdade do ente: a presença do ente já não é a presença como
vigência no desvelado, não é nem mesmo mais a presença do ente
no sentido da presença-objetual, que se dá na e para o representar
(vorstellen), mas sim a presença do que está posto em função de
uma disponibilidade, do que está a postos para um
desencobrimento desafiador (herausfordernden Entbergen),
explora, isto é, extrai do encobrimento o que quer que seja,
predispondo-o para ser processado, estocado, encomendado,
enfim, empregado. É o real como encomenda; a realidade como
encomendabilidade, conforme o famoso texto intitulado “Die Frage
nach der Technik” (“A questão da técnica”), de 1953 (Cf. VA, p.
18-23). Neste texto, Heidegger já advertia o fim do objeto
(Gegenstand). O real já não é mais caracterizado em sua presença
como o que está contraposto ao ego como objeto de representação
(Gegestand ou Objekt), mas sim como o que está assegurado e sob
controle, a postos para ser empregado, enfim, o que se dá numa
disponibilidade para uma efetividade (Bestand).
No texto de 1965, Heidegger retoma esta transformação
ontológica. Ele diz: “entrementes, porém, a presença daquilo que é
presente perdeu também o seu sentido de objetividade. Aquilo que
é presente diz respeito ao homem de hoje como algo que se pode
sempre empregar” (FC, p. 35). Ora, o que é empregável é
empregável para quem? Para os homens individuais, que enquanto
sujeitos se contrapõem aos objetos? A resposta é: não. É
empregável para o ser-um-com-o-outro e o ser-um-para-o-outro da
sociedade. Seria, então a sociedade, o nós, o novo sujeito?
Também não. Na verdade, o homem, quer como indivíduo, quer

29
Deste texto só dispomos de uma versão italiana. Cf. Referências
Bibliográficas.
151
Marcos Aurélio Fernandes

como sociedade, quer, ainda como humanidade da civilização


planetária da técnica, está ele mesmo posto no pertencimento à
disponibilidade. Não só no sentido de que ele mesmo e tudo o que
é humano é posto como recurso a ser explorado e empregado em
vista da eficiência, mas também no sentido de que o homem é
chamado a participar deste modo de desencobrimento,
empreendendo a empreitada da técnica (Cf. VA, p. 22). Em um
texto de 1969 (quando Heidegger tinha completado 80 anos), ele
diz: “o homem de hoje pensa que se faz a si mesmo e às coisas às
sua volta. Não lhe chega nem lhe é acessível que a
encomendabilidade do acervo constante de encomendas em
estoque não seja senão um destino velado do que os gregos
pensaram como a vigência do vigente” (MH, p. 54). O fim da
objetividade é também o fim da subjetividade? O que é da
subjetidade no fim da subjetividade? Outra forma de subjetidade
substitui a subjetividade? Ou, com o fim da metafísica, chega ao
fim também toda forma de subjetidade? Em que tudo isso
desemboca? No nada? Ou o declínio (Untergang) em que finda o
dia ocidental de dois milênios e meio é o acontecer de uma
derrocada (Niedergang) ou é o apelo para uma passagem
(Übergang) que requer uma outra vigência do homem, aberta para
uma outra parusia do ser?

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152
Subjetidade e subjetividade

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Artigo recebido em 31/05/2014, aprovado em 18/11/2014

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