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CULTURAL
GRADUAÇÃO
Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor Executivo de EAD
William Victor Kendrick de Matos Silva
Pró-Reitor de Ensino de EAD
Janes Fidélis Tomelin
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi
ANTROPOLOGIA CULTURAL
SEJA BEM-VINDO(A)!
Este trabalho é, antes de qualquer coisa, a possibilidade de dividir com você um olhar
sobre a espécie humana que se quer um todo, mas é um mosaico. Em toda a minha
vida acadêmica nunca me entreguei a um trabalho como este, tanto em intensidade
como em tempo. A elaboração deste livro está para além de sentar e escrever, uma vez
que também exigiu momentos em que precisei analisar, refletir e repensar. Depois disto
voltar e refazer. Uma tarefa que necessitou paciência em momentos de angústia e an-
siedade.
Sou um historiador com mestrado em História e Sociedade, porém apaixonado pela
trajetória que a Antropologia construiu como ciência. Minhas misturas nos campos do
conhecimento me fizeram abandonar as fronteiras tradicionais das ciências sociais e
perceber o quanto elas caminham rápido para um novo “universalismo”, uma ruptura
com os objetos definidos de forma precisa. Agora, em relação à Antropologia e à Histó-
ria, principalmente, o campo específico de conhecimento está invadido um pelo outro.
Claude Lévi-Strauss afirmou em entrevista a Jacque Le Goff, em 1968: “a Antropologia é
a história do homem”. A História, por sua vez, passou a se apoderar da etnografia e etno-
logia, áreas sagradas e consagradas da Antropologia. Na reformulação sofrida na Europa
com o advento da “Escola de Annales”, a partir de 1929, com Marc Bloch e Lucien Febvre,
a historiografia mergulha na procura de uma nova identidade e encontra na Antropo-
logia, na linguagem, por exemplo, um revigoramento de sua análise. Michel Foucault
(1985) foi o elo entre o campo do conhecimento historiográfico centrado no homem e o
campo do conhecimento historiográfico centrado no ambiente. A simbologia, a lingua-
gem, em sua forma mais complexa, e a semiótica, em sua melhor definição, ampliaram
o leque de uma Antropologia que se encontrava em crise.
Não podemos esquecer que a segunda metade do século XX gerou uma angústia para
os antropólogos, eles estavam diante de uma ciência em decomposição. O estudo das
civilizações não ocidentais deixava de ser o objeto dos antropólogos na proporção em
que iam desaparecendo. A colonização europeia se intensificou e condenou os “selva-
gens”, “bárbaros” ou “primitivos” ao desaparecimento gradativo ou à incorporação dos
valores ocidentais. Antes a Antropologia buscava entender o “Outro”, depois passou
gradativamente a utilizar os métodos que usava para observar o estranho para olhar e
analisar a sua própria sociedade. O ocidental seria o objeto de estudo do Antropólogo,
em grande parte, também um ocidental.
Neste trabalho, você notará como vários campos de conhecimento perpassam a análise
antropológica – a psicologia, a história, a geografia, a linguística e a sociologia. Esta ati-
vidade foi gratificante por permitir perceber o quanto não há fronteiras para o cientista
social, se elas existem, servem para definir formalmente a ciência. Foi isto que gerou a
Antropologia como a conhecemos hoje. Se a antropologia não tivesse vivido a crise em
relação ao seu objeto de estudo, ela não teria se recriado e encontrado a sua existência
impregnada em meio às demais ciências sociais. Lévi-Strauss (1983) e Parsons (1978)
merecem destaque nesse contexto. O francês e o norte-americano recuperaram teses
APRESENTAÇÃO
vel ler o texto desconsiderando-as, mas muitas informações nelas contidas podem
passar despercebidas.
Quanto à linha de raciocínio deste texto, ela é simples. Parti da construção da con-
dição social humana e da formação das civilizações ao longo da história, destaque
para os encontros entre os grupos humanos. Foi nesse caminho que a constituição
da civilização ocidental foi o elemento de maior interesse. Somos ocidentais. Nós,
brasileiros, somos um fruto da expansão europeia, não podemos negar nossa ori-
gem, temos que entendê-la.
Dentro desta ótica se faz necessário perceber a importância da formação das ins-
tituições nas quais estamos inseridos. Quando afirmamos nossa ocidentalização,
estamos estudando nossa própria identidade, nossa construção enquanto seres
humanos.
Construída em uma expansão além do continente europeu, os ocidentais se encon-
traram com inúmeras outras civilizações. A história deste encontro é marcada pela
violência. Os relatos dos povos considerados “estranhos” foram realizados por uma
grande quantidade de viajantes.
A imposição da civilização europeia sobre o mundo conquistado foi o elemento vital
para os primeiros relatos sobre os “selvagens”. Os diários dos viajantes contam muito
da consideração que se tinha sobre quem era, de forma genérica, um não europeu.
Em um segundo momento, é vital falar do nascimento da Antropologia como ciên-
cia, desde o que chama Laplantine de, “a pré-história da Antropologia”, onde os rela-
tos dos homens ocidentais são carregados de definições teológicas, considerando
o “selvagem” como um ser exótico entre a pureza, ingenuidade, sem pecados e ne-
cessitando da conversão cristã; ou como um ser demoníaco, perdido, jogado em um
barbarismo onde a escravidão e o extermínio seriam seu destino. Os relatos trazidos
pelos viajantes são publicados na Europa e despertam análises sobre o “Outro”.
Uma longa jornada eurocêntrica marcou os relatos sobre os povos que se relacio-
naram com as nações européias. O nascimento da Antropologia é como um instru-
mento ocidental de descrição e classificação sobre os chamados de “selvagens”.
Em uma fase posterior, com o amadurecimento da Antropologia como ciência, se
racionaliza o homem não europeu. Enquadravam-se os povos e estabelecia-se uma
escala de desenvolvimento, na qual a Europa “civilizada” estaria no topo dessa evo-
lução e, por isso, teria uma condição quase que natural de se impor. Conhecer os po-
vos não europeus está, nessa fase, ligada à necessidade de propagar a racionalidade
e enquadrar os primitivos na linha do tempo da evolução. Hegel é radical ao analisar
os povos não europeus a partir dos relatos trazidos pelos viajantes: eles estão fora
da história humana, à margem das civilizações.
Malinowski e Boas ganham destaque na fase de consolidação da Antropologia
como ciência. São eles que inauguram a pesquisa participativa. Aquela que deter-
mina a vivência com o povo estranho, conhecer aqueles que não fazem parte da ci-
APRESENTAÇÃO
UNIDADE I
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
17 Introdução
24 O Nascimento do Ocidente
68 Considerações Finais
UNIDADE II
ANTROPOLOGIA CULTURAL
75 Introdução
UNIDADE III
125 Introdução
UNIDADE IV
187 Introdução
UNIDADE V
267 Introdução
299 CONCLUSÃO
301 REFERÊNCIAS
Professor Me. Gilson Aguiar
O NASCIMENTO DA
I
UNIDADE
ANTROPOLOGIA
Objetivos de Aprendizagem
■■ Conhecer a formação da Antropologia como ciência e sua relação
com a formação da civilização ocidental.
■■ Compreender a Antropologia como o resultado da expansão do
Ocidente sobre as demais civilizações no mundo.
■■ Entender o dilema da construção da identidade humana, como ela
está associada à visão que o Ocidente estabeleceu sobre inúmeros
povos.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Construção da identidade humana
■■ Os encontros entre as civilizações
■■ O nascimento do Ocidente
■■ Expansão Ocidental
■■ Os primeiros passos da Antropologia
17
INTRODUÇÃO
Somos ocidentais. Essa afirmação precisa ser entendida para podemos compre-
ender o ambiente em que a Antropologia nasce. Sua formação como ciência viria
mais tarde, mas a condição em que ela foi gerada está relacionada diretamente
à formação da civilização ocidental. Foi nesse berço de incentivo à conquista, à
expansão das fronteiras, que a Antropologia nasceu. Se hoje ela não tem mais
esse aspecto funcional de conquista, sua origem está impregnada de preconceito
sobre as demais civilizações.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Introdução
18 UNIDADE I
tornou mais compreensivo dentro da lógica de que ele estava cumprindo uma
predestinação divina.
Por isso, se a Antropologia, em sua fase de reconhecimento como ciência,
lançava seu olhar sobre outros povos, hoje ela lança o olhar sobre o próprio ser
humano ocidental. Assim, a descoberta é nutritiva, mas, em certos momentos,
pode ser amarga, ao descobrirmos que muitos dos que denominamos “selva-
gens” são dóceis em comparação com nossos atos de selvageria.
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CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE HUMANA
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
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civilizações que cumpriram ao longo da história humana papéis distintos, uma
vez que o julgamento de valor comparando-as gera deformações. Não é possível
classificar como “melhor” ou “pior” civilizado. Não há a organização “perfeita”.
Se fôssemos buscar essa resposta, teríamos que partir de uma escala de valor
preestabelecida, o que denunciaria um preconceito gerador de um pré-conceito.
Anteporíamos nós mesmos a qualquer outro. Por muito tempo, a Antropologia
foi o resultado dessa perspectiva1.
O processo civilizador se alterou, ao longo da jornada humana, com o con-
tato estabelecido entre os diversos povos. Esse contato se intensificou com o
desenvolvimento das práticas mercantis, como já falamos. Além do intercâm-
bio de produtos, há o movimento de pessoas, mudança de seus hábitos, assim
como transformação da linguagem, da interpretação e da ação sobre o mundo.
As migrações tiveram efeitos devastadores para muitas civilizações. Em deter-
minados momentos da história humana, o estrangeiro se impregna e refaz as
identificações chamadas de “nativas”. Ao longo do tempo, há exemplos de como
o movimento de pessoas foi determinante para a humanidade, da migração
hebraica ao tráfico negreiro, do holocausto judeu à xenofobia na atual Europa.
Não se pode desprezar os encontros humanos, muito menos os seus resul-
tados. Na atualidade, na formação de um mundo integrado pelo capitalismo, as
movimentações se intensificam e seus resultados se aceleram, e muitos deles
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
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ainda estão por vir, o que gera uma dificuldade de conceituá-los e de entender
seus efeitos. Mas eles se fazem sentir, existem e dificultam nosso entendimento
sobre os limites de nossa civilização. Muitos dos que chamamos de “bárbaros”
hoje, na prática, são um de nós.
Hoje, no mundo contemporâneo, discute-se sobre os efeitos de uma “glo-
balização” de uma economia mundial e sobre a mídia de massas. Para os que
ainda sustentam os efeitos da mundialização, termo cunhado por Octávio Ianni
(1999), há uma integridade que rompe fronteiras, aproxima, manipula a regiona-
lidade e gera possibilidades múltiplas. Dessa forma, temos que concordar com o
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que ele apresenta com um “globalismo”. Estamos integrados, mas isto não signi-
fica massificados. Há um outro ou “outros” e suas singularidades. Não podemos
esquecer isso.
Não romperemos com essa condição de identidade singular de uma coleti-
vidade, já que essa condição faz parte da própria relação que estabelecemos com
nossas heranças, com o lugar onde vivemos, com o que denominamos “nosso”
mundo. A forma como constituímos nossos vínculos e estabelecemos a fronteira
entre o “nós” e os “outros” são construções incessantes da dinâmica social, que,
por sua vez, é fruto das relações que estabelecemos. O homem que produz, crê,
se expressa pela linguagem e ritualiza simbolicamente sua existência ocasiona a
singular humanização do humano.
Em determinado momento, a Antropologia chegou a buscar esse homem
na sua totalidade. Ela percorreu inúmeros caminhos para atingi-lo. Porém, ela,
mais do que qualquer outra ciência, tem a condição de responder, a esse ser de
forma integral e em sua particularidade civilizadora. Hoje, as cores das cidades
se misturam e a diversidade amplia o leque de possibilidades que os movimentos
humanos desenham. Haverá mais integração, sim. Porém, há uma diversidade
singular acontecendo em cada canto, isso é inegável. Mais do que nunca, a antro-
pologia tem um campo vasto para crescer e vasculhar o mundo mexido por esse
homem total.
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Somos uma espécie marcada pelo movimento. O ser humano é um migrante cons-
tante e assim foi construída a existência sobre o Planeta. O andante eterno que
por fatores múltiplos se desloca em todas as direções. As ocupações territoriais
desenhadas ao longo da história humana podem ser analisadas em muitos aspec-
tos. Falar das necessidades econômicas, entender os rituais, a cultura que tem em
si o estímulo a buscar “além do horizonte”. A migração é uma constante social.
Na antiguidade, o aparecimento das primeiras civilizações no Oriente Médio,
na Ásia ou na África demonstrou que foi por meio dos deslocamentos constantes
que as civilizações se organizaram com uma estrutura social e econômica. Esse
fato daria início à longa história da espécie humana cuja complexidade demonstra
os registros mantidos até hoje. O sedentarismo foi fundado na produção agrí-
cola, em que a lavoura de subsistência foi, depois, substituída pela produção do
excedente, e marcou o desenvolvimento dos instrumentos, da possibilidade da
organização familiar patriarcal, da formalização do Estado, como agente de orga-
nização e estabelecimento do poder sobre um determinado território.
A identificação social gerou as primeiras religiões, nelas o convívio social
passaria a obedecer a uma ética complexa que se colocava mais eficiente que os
rituais mágicos que predominavam em grande parte dos grupos sedentários.
Os monarcas que se constituíram como representantes de estado nas primei-
ras civilizações, eram vistos como representantes de divindades religiosas. Eles
eram ao mesmo tempo o elemento unificador da norma coletiva e a legitima-
ção da posse do território.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
23
O NASCIMENTO DO OCIDENTE
Fica cada vez mais claro que não conseguimos nos livrar de nossa carga ociden-
tal nem quando estamos analisando ou descrevendo o processo de formação das
diversas civilizações. Continuamos a determinar que a Europa ocidental tem o
papel de formar a civilização e de conferir sentido ao estudo de outros povos e
sociedades que ocupam o Planeta.
Poderíamos abordar, quando discutimos o desenvolvimento das práticas
mercantis ou do processo de ocupação dos territórios, o que aconteceu na Ásia,
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quando da expansão da economia mercantil chinesa ocorreram contatos que esta
civilização fez com outros povos que habitavam o Oceano Pacífico e a Oceania.
As navegações do Império Celestial chegaram ao Oceano Índico e mantiveram
relações comerciais com a costa oriental da África e com o território da Índia.
Não podemos deixar de mencionar as viagens chinesas à costa da América pelo
Oceano Pacífico. Os mapas que os europeus utilizaram em suas navegações eram
chineses2. O curioso da produção cartográfica chinesa é que o Império Celestial
estava no centro do mundo desenhado em seus mapas (REGO, 2012)3.
O que nos parece intrigante é que diante de um desenvolvimento cartográfico
singular para seu tempo, os chineses não promoveram uma conquista planetá-
ria como a civilização Ocidental Cristã Europeia implantou. Mesmo tendo as
condições materiais, técnicas e humanas para essa aventura de dominar outros
povos, a China preferiu o cerco de suas muralhas. Elas nos dão uma dimensão
do que o discurso de superioridade possibilita em duas ações aparentemente
antagônicas: na primeira, a busca de conquistar e submeter; a segunda, o caso
2 A navegação europeia pelo Oceano Atlântico dependeu dos mapas chineses. A Itália foi o centro comercial
que permitiu que estes documentos chegassem à Europa, às nações ibéricas, os quais eram isntrumentos
para o sucesso das expedições pelos monarcas católicos de Portugal e Espanha. A astúcia dos navegadores
era, em grande parte, justificada pela documentação cartográfica produzida pelo império asiático.
3 Neste trabalho de dissertação de mestrado está o relato e os desdobramentos de uma análise documental
da presença da Companhia de Jesus em território Chinês, no século XVII. A relação entre o pensamento
cristão e a influência do confucionismo. Mais tarde, no século XIX, a influência ocidental será hostilizada
na China. Muitas das comunidades católicas foram eliminadas e as que sobreviveram sofrem discriminação.
Um dos principais personagens que produziram os documentos, que são fontes da análise de Luís Rego, é o
jesuíta Nicolas Trigault (1577-1628). Ele viveu, a partir de 1612, entre os chineses e desvendou documentos
que mostram que a China concebia sua civilização no centro do Universo e suas províncias como as regiões
civilizadas do mundo.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
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SOMOS OCIDENTAIS
O Nascimento do Ocidente
26 UNIDADE I
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cinco séculos. A ocidentalização do mundo não é mais do que a realização do
que o ocidente estabeleceu, o seu próprio universo. François Laplantine (2000,
p.52), em sua obra “Aprender Antropologia”, argumenta ao falar do olhar dos
ocidentais sobre os outros povos que encontrou em suas conquistas:
Tais são as diferentes construções em presença (nas quais a repulsão se
transforma rapidamente em fascínio) dessa alteridade fantasmática que
não tem muita relação com a realidade. O outro – o índio, o taitiano,
mas recentemente o basco ou o bretão – é simplesmente utilizado como
suporte de um imaginário cujo lugar de referência nunca é a América,
Taiti, o País Basco ou a Bretanha. São objetos-pretextos que podem ser
mobilizados tanto com vistas à exploração religiosa ou à emoção esté-
tica. Mas, em todos os casos o outro não é considerado para si mesmo.
Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele.
EXPANSÃO OCIDENTAL
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
27
O BERÇO
Para que brote a planta, se faz necessário o cultivo da terra. É preciso que o solo
tenha todas as condições necessárias para a fertilização. Em solo fraco, se faz neces-
sária uma semente capaz de sobreviver com pouco estímulo. Em determinados
campos férteis, mesmo tendo uma origem medíocre, a semente brota e a planta
cresce. Uma civilização também obedece aos estímulos do ambiente, os quais podem
vir das heranças incrustradas ao longo do tempo que geram permanências que se
moldam e absorvem o novo, também podem vir dos encontros, dos valores estran-
geiros que dão um significado ao que as heranças não são capazes de responder.
O Nascimento do Ocidente
28 UNIDADE I
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culturalidade. Diversas culturas povoaram as cidades romanas. Se a regionalidade
permaneceu nos campos de trigo, nas regiões de mineração e nas províncias mais
distantes, em cidades como Roma, Alexandria, Antioquia e Bizâncio ocorreram
uma intensificação da cultura cosmopolita5.
Não quero deixar de mencionar a construção da intelectualidade romana e o eixo
condutor da lógica que a constrói. Da cidade latina, Roma, ao poderoso império
que se propagou do Atlântico ao
deserto arábico, a absorvência
de múltiplas civilizações tem
um eixo condutor que orienta
o sentido e dá personalidade
ao Estado. Propaga-se nos
discursos dos imperadores
romanos a civilidade, ela é
helênica, é grega. Importante
pensar que os gregos foram
para os macedônicos assim
como para os romanos uma
referência de civilidade.
5 Um dos objetos de estudo sedutores da antropologia é a cidade. Tanto ao longo da história de inúmeras
civilizações como no decorrer das suas transformações. Na antiguidade, como no caso das cidades romanas
tratadas aqui, ou na atualidade, com as imensas metrópoles que determinam a vida da humanidade além de
suas fronteiras, as cidades representam um ambiente que refaz o ser humano. Ela é o ponto de encontro, o
campo de convergência e onde a divergência ganha um impulso extraordinário. A vida tem na cidade o seu
principal palco.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
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6 Costumeiramente se coloca a intenção como uma busca necessária. Se ela for fundada em uma ética
humanitária, teremos, no futuro, um ser mais humano. Como uma reflexão, ou mesmo com a intenção de
gerar um debate, lanço a questão: você já imaginou se o cavalo que busca comer a cenoura colocada à sua
frente soubesse que ela jamais será seu alimento, o que ele faria? Acredito que esta busca da ética tem uma
relação próxima com a cenoura e nós com o cavalo.
O Nascimento do Ocidente
30 UNIDADE I
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A decadência da civilização romana foi marcada pela fragmentação do poderoso
império. Sua grandeza foi também o mal que o diluiu. A diversidade romana
se alimentava de conquistas, embates constantes com os inimigos em fronteiras
que se moviam cada vez mais “além”. Pela própria natureza da sociedade escra-
vista romana, alimentada por trabalhadores obtidos, principalmente, nas guerras
expansionistas, a reprodução da ordem social estava ameaçada, com data de
validade consolidada. Nada surgiu para dar outro destino ao Império Romano.
Não consideramos que somente o escravismo teria colocado o fim na civili-
zação romana. A queda romana foi consequência da própria relação estabelecida
com as civilizações que dominava. O que os romanos pretendiam manter pela
eternidade não poderia resistir às condições que a forma de dominação gerou.
A grandiosidade das instituições romanas não estav imune às relações que as
mantinham. A escravidão foi o maior exemplo e fator da queda romana. Nada
disso perpetuou a ordem, tudo se refez em outra constituição social cujo funcio-
namento era adverso ao que atendia ao poder implantado pelo império secular,
que, a partir do século III, já sentia os efeitos das rachaduras em suas estruturas.
A ampliação de um território integrado só é possível na proporção em que se
flexibilize a relação estabelecida em cada parcela do território e se torne rígida a
eficiência da vida econômica, política e jurídica, as quais respaldam o sentido da
obediência. A autoridade do imperador passou a representar interesses distintos
nas diversas províncias romanas. Não por acaso, as legiões romanas, o exército
do império, instituição fundamental para a garantia da obediência, se trans-
formaram, em muitos casos, em milícias, que disputavam o poder com grupos
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
31
7 Aqui não queremos fazer nenhuma relação de semelhança de fatores ou relações que comparem
qualitativamente ou quantitativamente os dois momentos, mas nas guerras urbanas que assistimos nas
metrópoles mundiais, na Cidade do México, Bogotá, Rio de Janeiro ou São Paulo, por exemplo, demonstram
a perda de eficiência do aparato de segurança pública. A desobediência se alastra e novos rituais surgem de
reconhecimento do chamado “poder paralelo”. Não por acaso, os milicianos, líderes de ordens criminosas
organizadas, ganham prestígio, seguidores e produções culturais que exaltam o feito do contraventor. Nas
periferias urbanas se produzem música e dança que têm como tema os conflitos armados, o comportamento
dos rebeldes, e decantam os feitos realizados contra a força pública. No sentido inverso e apontando para a
mesma direção de decadência da ordem, está o aparato de segurança pública que reproduz dentro do seu
corpo a mesma lógica dos chamados “subversivos”, “marginais” e “bárbaros” que combatem.
O Nascimento do Ocidente
32 UNIDADE I
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O ambiente romano promoveu o encontro de inúmeras civilizações, mais que
isso, estimulou determinadas práticas reforçadas pelo próprio Estado romano, houve
também aqueles que agiam em sua contrariedade – os opositores também se manifes-
tavam e buscavam na lógica do dominador uma oposição necessária. O embate entre
o cristianismo e o Império Romano foi marcado pela descaracterização do impera-
dor como o senhor de todas as coisas, uma negação, da autoridade máxima romana.
Ao mesmo tempo em que se transformou na negação o cristianismo sobreviveu e
se propagou dentro das estruturas geradas pelo Império Romano. A sobrevivên-
cia do cristianismo só foi possível se alimentando e perpetuando o legado romano.
Ao mesmo tempo em que a sociedade agrária que se constituía isolada e
buscava a sobrevivência com as condições que a localidade lhe dava, o cristia-
nismo lhe foi herança do dominador decadente e combatido. Foi também o
refúgio para o entendimento da vida que se constituía nas relações agrárias. A
servidão e o senhorio nascem simbolizados pela redenção religiosa. Se a magia
já fazia parte das religiões germana, bretã, céltica e goda, incorporaram do cris-
tianismo sua universalidade. Não por acaso, ainda hoje, na Igreja Católica, há
uma grande quantidade de santos. Personagens intermediários entre a divindade
maior (Deus) e elementos menores. Os deuses dos chamados “bárbaros”, polite-
ístas, diga-se de passagem, seguiam essa ordem.
Temos que considerar que essa foi a condição sob a qual o cristianismo sobreviveu
na Europa, se transformou pelo sincretismo e surgiu com aspectos de originalidade.
A fé se cria naquilo que sustenta as práticas que dão sentido à vida. Ainda hoje,
em muitos locais onde o cristianismo se estabeleceu no mundo, esse sincretismo
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
33
se expressa. O cristianismo foi trazido pelo europeu “civilizador”, e essa foi a justi-
ficativa dos conquistadores durante a aventura planetária da expansão marítima,
tal pretexto tornou-se ainda ingrediente para a construção de aspectos únicos, par-
ticulares, do cristianismo, os quais permitiram que se criasse um canal vital para
que se estabelecesse uma relação de dominação. Hoje, em relação à diversidade de
aspectos que o cristianismo apresenta em algumas partes do mundo, o Brasil é um
bom exemplo, pois demonstra o quanto a cultura dominante se impregna da cultura
nativa. Essa é uma característica que o cristianismo já carrega dentro de si desde
sua origem romana, o que fez toda a diferença para garantir a dominação ocidental.
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O Nascimento do Ocidente
34 UNIDADE I
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alimentados mais que os seres humanos, também a simbologia da linguagem, o
exercício da autoridade, a representação social fundamental para a identificação
com o trabalho. A vida imaterial do homem europeu medieval foi mais intensa
do que se descreve costumeiramente.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
35
9 Importante lembrar e frisar que não há aqui uma intenção de construir uma relação direta entre o poder
e a imposição da força como algo arquitetado estrategicamente pelas lideranças medievais. Há uma
preocupação em gerar tanto na história, na sociologia e na antropologia, nas ciências sociais, de uma forma
geral, esta relação determinista. A construção de uma religiosidade cristã que se impôs sobre as demais foi
fruto das forças que se estabeleceram naquele momento na Europa.
10 A classe senhorial alemã, o junker, manteve-se como autoridade local durante todo o Período Moderno e
parte do Contemporâneo. Enquanto na França, Inglaterra, Espanha e Portugal os senhores feudais ruíram,
na Alemanha se mantiveram como elementos predominantes. Mesmo quando a Reforma Luterana atingiu
as relações entre a Igreja Católica e a nobreza germânica, a servidão manteve-se fiel aos seus senhores.
Foram eles que definiram o destino da religiosidade nos territórios alemães.
O Nascimento do Ocidente
36 UNIDADE I
Se tentamos traçar um caminho que desenvolveu entre nós uma linha de cons-
trução da brasilidade, é nas raízes ibéricas, portuguesa em especial, que repousa
a origem brasileira. Raymundo Faoro (2001) estabeleceu esta relação com efici-
ência, assim como Gilberto Freyre (2005). A construção da identidade brasileira
tem uma relação com a formação portuguesa. Para isso, é preciso entender a for-
mação dos Estados nacionais ibéricos, Portugal e Espanha. A centralização do
poder em torno dos monarcas foi marcada pela aliança entre a aristocracia feudal
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e a Igreja Católica. Mesmo o desenvolvimento marítimo, como veremos, teve uma
forte influência do ideário cristão. Há uma diferença, nesses momentos ,entre a
formação portuguesa e a espanhola, que deve ser delimitada. Enquanto Portugal
nasce da monárquica centralizadora que lhe dá forma e garante sua integridade, a
formação espanhola estabelece as concessões regionais entre Astúrias e Castela.
O nascimento da nação portuguesa é o misto entre as guerras de reconquista
que dominaram a Península Ibérica entre os séculos XI e XV, e a necessidade
de resistir à busca de anexação castelhana. O fato de Portugal ser voltado para o
mar garantia sua existência como território nacional. A expansão portuguesa se
consolidou com as guerras, que possibilitaram a formação das colônias lusas, as
quais eram uma extensão do território pátrio. O sentimento de unidade lusitano
foi construído ao longo da trajetória da centralização do poder, da construção de
uma burocracia de nobres ligados ao Estado. Esse grupo de herdeiros do poder irá
se reproduzir no território colonial e na formação brasileira ao longo da história11.
O medievalismo é considerado um importante elemento para entender a for-
mação do ocidente, porém, sua trajetória vai além, chegará em territórios que
a Europa ocidental colonizou e influenciará na formação de novas identidades
locais. Ocorreu, durante a expansão ocidental, o que Edgar Morin (2002, p.23)
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
37
formou a Espanha, essa condição foi sempre uma tensão que persiste até a atu-
alidade. Os conflitos de separatismo e regionalismo em torno da nacionalidade
espanhola, castelhana, basca, ou catalã se constituíram na própria identidade
espanhola, irresolvível.
Em Portugal, essa separação regional se submeteu intensamente. Foi dessa
fragmentação que nasceu o Estado nacional português. Porém, a centralização
passou por elementos de construção que nos permitem dar um significado à rura-
lização e, posteriormente, à urbanização litorânea portuguesa. Uma Portugal do
mar e outra da terra. Como se duas Portugal se encontrassem, uma que se fez e
manteve-se da atividade mercantil que remonta ao Império Romano (Coimbra,
Porto e a própria Lisboa), e outra originária das relações de conquista agrária,
como Portucale12, Alcobaça e Santarém.
Vale destacar que a região de Alcobaça, território banhado pelo Rio Alcoa
e Baça, região litorânea central portuguesa, foi conquistada pelos mouros, pela
ação do rei Dom Henrique, no século XII. Nessa ação de conquista, o príncipe
portucalense contou com o apoio papal para sua conquista, por meio da aliança
e colonização das terras pela doação da Ordem de Citeaux, também chamada de
Ordem de Cister. Os cistercienses foram uma ordem vital para a unidade cristã e
para o reconhecimento da autoridade papal na Europa ocidental. Atuaram desde
a Alemanha até Portugal e tinham sua sede na França.
O Nascimento do Ocidente
38 UNIDADE I
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tão importante que mesmo a formatação da língua portuguesa está relacionada
à Ordem de Citeaux e Cluny. Já falada na região portucalense, mas exercitada
como o galego, o lusitano será organizado pelas ordens religiosas através de
uma estrutura gramatical francesa. O uso da língua portuguesa escrita e estru-
turada, oficializado pelo Rei a partir do Século XIII, fará dela um dos principais
instrumentos de identificação da unidade nacional. Não por acaso, seu desdobra-
mento foi fundamental para a garantia da unidade territorial com suas colônias.
No Brasil, a história da língua portuguesa tem suas peculiaridades que se ins-
crevem na resistência, miscigenação e
regionalização dos encontros e “desen-
contros” que formaram a composição
social brasileira.
Em Portugal, a construção da
nação voltada para a navegação e orga-
nização da empresa mercantil obedece
a dois momentos distintos. Em pri-
meiro lugar, a ameaça da anexação
castelhana durante o século XIV, que
se convencionou chamar de Revolução
13 O uso das ordens religiosas pelo Estado e sua fusão entre a obra da fé e a obra pública irão permanecer
ao longo da história portuguesa e do Brasil. Hoje ainda se percebe essa relação entre a herança de uma
religiosidade, que determina o sentido moral da ação, e a relação entre os temas do poder público. O que as
ordens religiosas representaram irá repercutir ao longo da história portuguesa pelos séculos seguintes. Na
educação essa condição se fortaleceu nos colégios e universidades que geraram o que consideramos ainda
hoje “a boa educação”.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
39
O Nascimento do Ocidente
40 UNIDADE I
A DOENÇA E O MAR
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nente, a rota de Champagne14.
Mas o que foi a Peste Negra? Foi uma doença transmitida por pulgas alo-
jadas em ratos deslocados do oriente para o ocidente. Muitos atribuem sua
origem à Mongólia, outros à Índia. Ela se propagou na Europa no século XIV e
atingiu várias regiões da Europa onde a movimentação populacional era mais
intensa. Transmitida pela bactéria Yersinia Pestis, tinha como hospedeiro pul-
gas do chamado “rato preto”; ela chegou à Europa por meio das rotas comerciais
com o oriente. A doença atingiu, ao longo de mais de 150 anos, diversas par-
tes do continente.
A doença poderia atacar pelas vias respiratórias ou sanguíneas. No primeiro
caso, promovia a morte em poucos dias, dois ou três. Já pela via sanguínea, gerava
o aparecimento de bulbos na virilha ou axilas, levando à morte em pouco mais
de uma semana. A desinformação sobre os fatores que promoviam a expansão
da peste levou a práticas confusas divulgadas pelas autoridades. Em alguns casos,
geraram um ambiente ainda mais propício para que a epidemia se alastrasse.
Antônio Martins relata o enfrentamento da fatalidade por meio da crença
sem fundamento científico.
14 Nessa rota, originária do auge do feudalismo, as trocas comerciais eram consequência do excedente
produzido na Europa pelos campos. Os trabalhadores e senhores desenvolveram a atividade de troca
fundada no escampo e, aos poucos, nasceu a moeda e o processo de integração de regiões distantes com a
implantação de um sistema de câmbio permitindo a troca de valores de regiões produtoras e consumidoras
de produtos. A Rota de Champagne integrou o norte da Europa, onde existiam as ligas hanseáticas
com o Sul, em especial a Itália, as cidades de Gênova e Veneza. Outro ponto importante dessa rede de
desenvolvimento foi a Holanda (Amsterdã).
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
41
O Nascimento do Ocidente
42 UNIDADE I
Não foi diferente entre nós quando a Aids surgiu e se propagou. Uma doen-
ça associada, ainda hoje, ao castigo divino. Mas, ao relatarmos a Peste Negra
na transição da medievalidade para a modernidade, temos uma sociedade
desinformada, a qual ignora seu próprio destino por não conhecer o que
o cerca. Na nossa sociedade mergulhada na informação, a desinformação
reina em momentos de crise. Onde será que repousam as ações que misti-
ficam os responsáveis por problemas que a ciência é capaz de indicar seus
agentes?
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As rotas comerciais que cortavam o interior do continente reduziram suas ativi-
dades diante da propagação da doença que, segundo dados incertos levantados
por governos e pelo clero católico, dizimou um terço da população europeia.
Cerca de 75 milhões de habitantes foram mortos pela contaminação. Em Lisboa,
no auge da doença em Portugal, em 1569, morriam 600 pessoas por dia. Em um
ano foram 60 mil mortes. Devemos levar em consideração que a nação lusitana
estava longe das regiões mais afetadas pela doença.
A Peste Negra foi um mal que instigou a percepção da Europa sobre si mesma,
a sobrevivência à grande epidemia estabilizou as relações sociais. Cidades des-
truídas retomaram a rotina, os campos passaram a ser cultivados e as práticas
mercantis se reestabeleceram. O fim da Peste Negra abriu possibilidades para
outros meios de organização e desenvolvimento na Europa ocidental. O comér-
cio nascente continuou seu desenvolvimento pela navegação costeira, as cidades
portuárias passaram a concentrar uma população cada vez maior e a gerar a
relação necessária com o campo para a garantia da sobrevivência do decadente
regime feudal.
O Estado Nacional terá um papel vital para a superação dos problemas
trazidos pela emergência mercantil e pelas fatalidades da Peste. Os governos
monárquicos unificaram territórios; leis, exércitos, língua e práticas econômicas,
foram vitais na convergência de interesses. Nobres feudais, mercadores, campo-
neses e clérigos irão buscar na monarquia nacional absolutista um alicerce, um
sustentáculo para a sobrevivência e expansão de suas atividades. As cidades
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
43
ganham um papel vital nesse sentido. Elas passam a ser o centro determinante
do poder político, a sede do governo. E governar requer o exercício da autori-
dade de forma eficiente, sensível, notada e reconhecida por todos. Essa prática
de exercício do poder passa a ser um elemento vital na organização do ocidente.
EMERGE A NAÇÃO
O Nascimento do Ocidente
44 UNIDADE I
guerras religiosas que a monarquia se estabilizou nas mãos dos Bourbon, que
eram protestantes de origem, mas se converteram ao catolicismo para manter o
reinado (“Paris bem merece uma missa”).
Foi no exercício da centralização do poder que se constitui o Estado moderno,
com aponta Max Weber (1982, p.102):
Em toda parte, o desenvolvimento do Estado moderno é iniciado atra-
vés da ação do príncipe. Ele abre o caminho para a expropriação dos
portadores autônomos e “privados” do poder executivo que estão ao
seu lado, aqueles que possuem meios de administração próprios, meios
de guerra e organização financeira, assim como os bens politicamente
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usáveis de todos os tipos. A totalidade do processo é um paralelo com-
pleto ao desenvolvimento da empresa capitalista através da expropria-
ção gradativa dos produtores independentes. Por fim, o Estado moder-
no controla os meios totais de organização política, que na realidade se
agrupam sob um chefe único.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
45
isso não é fruto do acaso, mas, sim, das transformações que ocorreram no seio
da sociedade europeia. Uma série de mudanças permitiram o deslocamento dos
europeus para diversas partes do Planeta. A cultura cristã preservada na Europa
após a queda do Império Romano, fundadora do teocentrismo feudal, estará
presente no incentivo às conquistas marítimas. Sem dúvida que há uma busca
pelo lucro, pela riqueza, pela conquista de novos pontos de comércio e a acumu-
lação de capital, mas esses não são os únicos fatores que justificam a expansão
comercial e marítima da Europa. Ou seja, não podemos cair em um determi-
nismo econômico e esquecer que o sentido da economia foi gerado dentro de
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um ambiente cristão.
Anteriormente, falamos, por exemplo, da
Ordem de Cister e sua característica de con-
versão no território europeu. Podemos lembrar
das Cruzadas travadas contra os muçulmanos
no oriente e no ocidente, na Península Ibérica.
Se a atividade mercantil foi, aos poucos, das
feiras medievais se reorganizando em diversas
cidades portuárias na medida em que as tro-
cas se intensificaram, se esta mesma atividade
mercantil já tinha sido uma prática constante
na Europa romana, agora ganha um novo sen-
tido no mundo cristão15.
A formação dos Estados nacionais levará
a convergências das forças econômicas, políticas e culturais pelo Estado. Ele se
tornará o principal agente de organização dos empreendimentos econômicos capi-
talistas que emergem dentro dos territórios europeus e necessitam se expandir
para outras partes do mundo. A necessidade de organização da empresa mercantil
15 Alguns dos primeiros tratados internacionais foram assinados entre Portugal e Espanha no início das
“Grandes Navegações”. A expansão marítima ibérica ganhou proporções mundiais e ousadas. Típicas da
simbologia ocidental. O Tratado de Tordesilhas, por exemplo, 1494, teve o reconhecimento do papado. A
Igreja Católica se mostrava como intermediadora entre os reis ibéricos. A instituição legitima o poder luso-
espanhol sobre as terras do “além-mar”. Não será por acaso que os reis da França e Inglaterra irão questionar
o acordo ibérico. Porém, não se pode negar a ousadia de portugueses e espanhóis que colocaram o mundo
sobre uma mesa e o dividiram sem avisar seus habitantes. Eles sentiram posteriormente o efeito da linha
“imaginária” que se transformou em um corte sobre a pele de muitos povos espalhados no mundo.
O Nascimento do Ocidente
46 UNIDADE I
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às empresas coloniais estabelecerem o contato com a população nativa, instalar
empresas produtoras, organizar a alfândega e promover o surgimento de núcleos
comerciais, teve participação direta do Estado moderno.
Desenham-se e redesenham-se as fronteiras mundiais pelas mãos dos Estados
nacionais europeus. A autoridade dos monarcas se estabelece como agentes
mundiais na busca de atender aos interesses das forças que representam e que
lhe garantem o poder. As áreas coloniais são demarcadas em uma cartografia
internacional legítima. Faz-se necessário que as porções territoriais colonizadas
pelas nações europeias tenham o reconhecimento e respeito pelas demais. Os
tratos entre as nações começam a se suceder e deixam de ser de interesse de um
pequeno grupo de civilizações, passam para a esfera da escala mundial. O globo
terrestre “ganha forma e tem senhores”16.
OCIDENTALIZAÇÃO URBANA
16 As cidades geraram, ao longo da história da Europa, um ambiente de transformação que serviu de palco
para a mudança do curso da história europeia. Toda a mudança ganhou na cidade o centro de consolidação
do poder instituído. Que ele tenha se definido no campo de batalha, na derrubada das muralhas, mas é no
centro urbano que se definiram e se geraram os acordos de paz e as declarações de guerra.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
47
O Nascimento do Ocidente
48 UNIDADE I
por inúmeros agentes sociais, com os mais diferentes interesses, mas dentro de
terminadas possibilidades existentes, naquele momento, somente na Europa. A
decadência do feudalismo, a formação de uma prática mercantil estável, a reor-
ganização do poder militar, político e social, as calamidades como a Peste Negra
são alguns destes ingredientes que deram à Europa o seu protagonismo na his-
tória da humanidade.
O comércio de especiarias movimentou a Europa mesmo em pleno período
medieval. Durante a consolidação do feudalismo na Europa, as feiras medievais
continuaram existindo. As cidades italianas, por exemplo, por mais que tivessem
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sua população reduzida nesse período, ainda continuaram sendo um impor-
tante centro de trocas. No Mar Mediterrâneo, o comércio não cessou. Entre as
populações muçulmanas que habitaram a orla do mar, antes chamado de “lago
romano”, manteve-se a atividade mercantil como uma das práticas importantes
para interligar a agricultura, as manufaturas e o extrativismo.
Nápoles, Milão, Gênova, Florença e mesmo Roma não perderam o brilho
enquanto cidades latinas. Algumas emergi-
ram, graças às atividades mercantis, como
centro intelectual na Europa. Não se pode
esquecer que a sede da Igreja Católica con-
tinuou na Península Itálica, que também
foi sede de universidades europeias que
ditaram as regras do pensamento euro-
peu. Famílias como os Médici, Bórgia e
Sabóia são algumas das mais ilustres dos
ducados italianos. Os poderes constituí-
dos por essas dinastias estavam ligados ao
poder mercantil de suas cidades mais do
que aos campos feudais.
As atividades mercantis formaram no interior do continente europeu um
grande número de comunas, cidades livres ou francas. A autonomia urbana con-
tracenou com o poder senhorial, tendo sido motivo de enfrentamento em algumas
regiões da Europa, como na Alemanha e na França. Luxemburgo foi o maior
exemplo da Cidade-Estado. A Itália foi recheada delas, fator que determinou a
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
49
unificação tardia em uma das regiões mais prósperas do continente. Esse con-
texto gerou um dos mais belos textos da renascença, “O Príncipe”, de Nicolau
Maquiavel.
Mesmo em países como Espanha e Portugal, as cidades se transformaram
em centros de irradiação do poder. Coimbra (em Portugal), por exemplo, foi o
mais importante centro político, enquanto a Cidade do Porto foi a capital eco-
nômica do reino. Madri disputou com Barcelona, na Espanha, e, de certa forma,
até hoje disputa a hegemonia sobre as Astúrias. Paris reinou como sede fran-
cesa, mas teve que conviver com Bordéus, Lyon ou Cannes. Na Alemanha, ou
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17 As cidades geraram ao longo da história da Europa, um ambiente de transformação que serviu de palco
para a mudança do curso da história europeia. Toda a mudança ganhou na cidade o centro de consolidação
do poder instituído. Que ele tenha se definido no campo de batalha, na derrubada das muralhas, mas é no
centro urbano que se definiram e se geraram os acordos de paz e as declarações de guerra.
18 Uma questão que se tornará fundamental na análise da sociedade contemporânea é o papel que as cidades
representam na organização humana. Passando a ser o espaço de maior concentração populacional no
mundo, hoje mais da metade da população mundial vive em cidades, o espaço urbano é o objeto de estudo
específico de vários campos de conhecimento. Nunca se discutiu tanto as cidades como agora. Hoje há uma
antropologia urbana. A convivência social ganhou peculiaridades na formação de grupos com identidades
próprias. Gangues, tribos, música, ocupação do espaço com uma arquitetura peculiar. Há muito que se
discutir nas cidades.
19 Estamos falando aqui de cidades “clássicas” medievais, europeias, por mais que esta mesma condição
tenha ocorrido em cidades que surgiram na América. No Brasil, algumas das principais cidades guardam
dentro de seu espaço os registros de seu tempo. Porém, há aquelas que, ou por serem muito jovens ou terem
uma dinâmica distinta em relação à mudança, sempre levando em consideração a tecnologia capaz de
alterar com rapidez os espaços, mudam constantemente e apagam seus registros.
O Nascimento do Ocidente
50 UNIDADE I
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O INÍCIO DA OCIDENTALIZAÇÃO
Foi buscando conquistar uma cidade que o reino português deu o primeiro
passo para a Era Planetária. O início da integração do mundo pela Europa oci-
dental se deu com o deslocamento das tropas portuguesas para Ceuta, no norte
da África. A conquista do Estreito de Gibraltar seria para o reino luso a consoli-
dação de um comércio marítimo proporcionada pelo controle de uma das mais
importantes áreas comerciais entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico.
O Rei Dom João I, que havia iniciado a casa de Avis, tinha a intenção de
fortalecer o prestígio de Portugal respondendo aos interesses das forças que o
colocaram no trono. Ao mesmo tempo em que era uma expressão da vontade
popular, do prestígio do clero católico português e de uma nobreza militar emer-
gente, assim como, de uma burguesia mercantil desejosa de conquistas, ele se
aproveita do relacionamento estabilizado com o Reino de Castela e se lança à
conquista. Sua conquista se dá em 1415, tendo à frente das tropas portuguesas
o Infante Dom Henrique, seu filho.
A conquista portuguesa se mostrou um fracasso. A cidade africana, que repre-
sentava um dos principais pontos de troca da desembocadura do Mediterrâneo
no Atlântico, entrou em decadência após o rompimento do comércio muçul-
mano e mouro com a cidade. Um boicote à conquista cristã. Mas os portugueses
pararam? Se tivessem parado, não estaríamos aqui, escrevendo este texto e sendo
e vivendo o resultado da bem-sucedida empresa colonial portuguesa. O espí-
rito cruzadista aliado ao desejo da conquista mercantil ocidental falou mais alto.
Os desdobramentos da conquista de Portugal se fizeram sentir no litoral
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
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O Nascimento do Ocidente
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fiante que Deus determinou a busca lusitana pelo mar:
E vós, ó bem nascida esperança / Da lusitana Antígua liberdade / E não
menos certíssima esperança / De aumento da pequena cristandade / Vós,
ó novo temor da Maura lança / Dada no mundo por Deus, que todo o
mande / Para do mundo a Deus dar parte grande (CAMÕES, 2000, p. 2.)
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
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O Nascimento do Ocidente
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tendo consciência de que houve uma precondição que orientou sua constitui-
ção metodológica, definição de seu objeto e, por fim, lhe garantiu o território
acadêmico, no qual ainda briga para se firmar20.
Hoje, o olhar que se lança sobre a diversidade mudou por completo os pri-
meiros caminhos que a antropologia traçou. Diante da construção de uma
pluralidade originária dos inúmeros encontros que o processo de ocidentaliza-
ção possibilitou, cidades cosmopolitas se multiplicam. As migrações nunca foram
tão intensas como agora, o processo migratório tomou o lugar das invasões bár-
baras do império romano e devem traçar um novo perfil para a humanidade
neste século.
Hans Magnus Enzensberger (1995, p.104-105) traça um panorama das
migrações contemporâneas em comparação com as movimentações do passado:
As migrações contemporâneas diferem dos movimentos anteriores de
populações em mais de um aspecto. Em primeiro lugar, a mobilidade
aumentou muitíssimo nos últimos dois séculos. Foi o comércio oce-
ânico europeu o primeiro a criar a capacidade que tornou possível o
movimento de milhões de pessoas por grandes distâncias. O mercado
mundial desenvolvido requer a mobilização global e a impõe pela força
sempre que necessário, como ocorreu no caso da abertura do Japão e
da China no século XIX. O capital derruba as barreiras nacionais. Pode
fazer um uso tático dos impulsos patrióticos e racistas, mas estrategica-
20 Há um debate que ainda cerca a antropologia na busca de se constituir como ciência com um objeto
definido, que possa chamar de “seu”. Eu, particularmente, não considero que ele exista. Vejo a antropologia
como um campo de conhecimento que se confunde com a história, a geografia, a sociologia, a psicologia, a
economia, a arqueologia e, até mesmo, a filosofia. Como Lévi-Strauss e Laplantine afirmam, “ela é a ciência
do homem inteiro” e assim deve ser. Se há um campo de conhecimento que não deve ter medo de fronteiras
é a antropologia. Nasceu do olhar sobre o estranho, o outro, foi assim e é assim que devemos olhar a todos
e a nós mesmos.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
55
A economia mundial, como o ensaísta alemão relata, tem sua própria lógica.
Porém, arrasta consigo um ser humano que tem uma lógica que vai além do
capital. Mesmo que os efeitos da economia mundial rejam a vida da popula-
ção, deve-se ter cuidado ao deslocar sobre os interesses econômicos o único
elemento capaz de explicar os fenômenos da atualidade. Que estamos diante de
um processo migratório nunca visto na história humana, isso é um fato. Porém,
a movimentação gera um novo efeito sobre a simbologia que a sociedade atual
sustenta. Os efeitos que a economia promove são diversos, porém sua lógica nem
sempre pode ser prevista pelo determinismo econômico.
As grandes navegações despertaram no europeu a curiosidade sobre aqueles
que habitavam o “novo mundo”, as “índias”. Que era o estranho? Essa pergunta
gerou uma curiosidade que o homem ocidental se dispôs a responder por meio
dos seus valores, enquadrando o “estranho” em seu mundo. Relatos difundidos
pelos viajantes falavam de um ser com hábitos que lembravam o animalesco, o
ser humano movido pelo instinto, tendo até mesmo seu pertencimento à espé-
cie humana questionado21.
Nunca se chegou a um consenso sobre como se deve considerar o nativo.
Contudo, nunca houve dúvidas sobre a possibilidade de dominá-los, mesmo
quando se considerava o “selvagem” dócil e passível de uma conversão aos valo-
res ocidentais. Os relatos associavam a paisagem da América tropical à paisagem
21
No século XVIII e no século XIX, foi difundida a ideia de que muitos dos povos encontrados pelos ocidentais
seriam as comprovações do “elo perdido” entre os homens e os primatas. O aborígene australiano foi o que
assumiu com ênfase este papel nos relatos europeus. O caçado ocidental do século XIX, participante de um
safari na África ou Austrália, tinha entre tantos feitos o extermínio de nativos.
bíblica. O livro do Gênese foi o que mais teve citações associadas ao ambiente
americano. Os nativos estariam vivendo a infância da humanidade. Seriam crian-
ças, lhes faltava a maturidade e a “maldade”.
Buscava-se entender o elo entre os povos nativos e os europeus, nesse sen-
tido, os selvagens eram concebidos como a condição primeira do ser humano
ocidental, daí o termo primitivo, pois eles eram aqueles que estariam no estágio
inicial pelo qual todas as civilizações passaram. E aquela que era a mais elevada
das civilizações, a europeia, se legitimava como um modelo universal a ser repro-
duzido. Na obra de Augusto Comte (1989), ao ser justificada a criação da física
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
social, é possível constatar o orgulho do ocidente em relação à sua civilização e
à cadeia de fatores que determinou que a civilização ocidental exercesse seu o
poder sobre as demais civilizações:
Entendo por Física Social a ciência que tem por objetivo próprio o estudo
dos fenômenos sociais. Considerados com o mesmo espírito que os fenô-
menos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, isto é, submetidos
a leis naturais invariáveis, cuja descoberta é o objetivo especial de suas
pesquisas. Propõe-se, assim, a explicar diretamente com a maior precisão
possível, o grande fenômeno do desenvolvimento da espécie humana,
considerado em todas as suas partes essenciais; isto é, a descobrir o en-
cadeamento necessário de transformações sucessivas pelo qual o gênero
humano, partindo de um estado apenas superior ao das sociedades dos
grandes macacos, foi conduzido gradualmente ao ponto em que se en-
contra hoje na Europa civilizada (COMTE, 1989, p.53).
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
57
apesar das condições bárbaras dos seres humanos que o habitam22. Essa é uma
postura comum entre muitos dos viajantes europeus que relatam aos governos
da Europa o que encontram no “Novo Mundo”. Era um discurso que favorecia
o deslocamento da civilização.
A reprodução da “civilidade” ocidental em outras terras foi uma constante
na propagação do domínio ocidental. A empresa colonizadora que se organizou
sobre a América e parte da África demonstra o quanto as instituições do ocidente
se tornaram um ponto de referência para o estabelecimento dos empreendimen-
tos econômicos, sociais e políticos no “novo mundo”.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
22
Ilusão considerar que essa forma de consideração tenha fim. Muitos analistas da contemporaneidade, claro
que hoje mais por ignorância do que por conhecimento, consideram que as populações e a natureza, o
lugar onde vivem, devem ser desassociados. Na própria análise que se faz das condições em que o Brasil
se desenvolveu, não é incomum encontrar relatos que definem o território brasileiro como um lugar de
riquezas, e o povo como um de seus maiores problemas. Até mesmo no hino nacional há margem para esse
tipo de interpretação.
23
Bronislaw Malinowski (1884 a 1942) é polonês, enraizado na Inglaterra, um dos mais brilhantes antropólogos
e considerado o iniciador das pesquisas de campo com um método definido para o conhecimento de uma
civilização não europeia. Com uma permanência considerável de tempo junto a povos australianos (Malu,
e posteriormente, os Trobriand), ele difundiu um método de análise que será, por muito tempo, um dos
principais fundamentos da antropologia.
24
Quando falamos da vaidade do homem ocidental, nos referimos ao discurso que o coloca na condição de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
é importante não esquecer que o
julgamento e a sentença estão nas
mãos do ocidente e não naquele
que serve de referência ilusó-
ria. Eu julgo a mim mesmo pelo
outro e não me coloco diante dele
para ser julgado. Inclusive, o pró-
prio Rousseau nunca suportou o
julgamento alheio, como consi-
dera Bruckner (1997).
Navegadores como Colombo ou Américo Vespúcio relataram os nativos den-
tro do limite de sua compreensão sobre o que lhes parecia estranho. Ao entrar
em contato com os indígenas da América Central, ele tenta utilizar o mandarim,
lhe estende a mão para um cumprimento, utiliza os gestos ocidentais.
Os missionários religiosos, no entanto, eram diferentes e pareciam estar muito
mais preparados para lidar com o estranho. As primeiras impressões dos mis-
sionários jesuítas que se dispuseram a converter os indígenas para a “fé cristã”
demonstram o preparo para enquadrar os nativos em um arquétipo concebido
determinante de valor sobre o nativo. Ele, pelos seus relatos, pela posição que se encontra, terá o poder de
considerar o nativo bom ou mau. Esta sua forma de consideração pode servir de medida para a ação a ser
tomada.
25
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), suíço de origem, mas viveu parte considerável de sua vida na França,
onde influenciou sobremaneira as ações sociais e políticas de seu tempo, foi um defensor de um ser humano
com uma origem “boa”. Há uma bondade natural em nossa existência que foi corrompida com o tempo.
Para ele, a natureza do homem deve ser buscada como fonte fundamental da felicidade. Em sua obra
“Emílio”, um manual da boa conduta diante de uma sociedade corrupta, ele tenta demonstrar a destruição
da natureza humana pela ganância e perversão.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
59
pelo ideário cristão. Não foram somente os jesuítas que promoveram a educação
dos nativos, inúmeras ordens religiosas percorreram e percorrem os territórios
nativos. Ainda está em processo o doutrinamento ocidental26. Porém, nenhuma
outra ordem religiosa, como a inaciana, soube promover com disciplina e inten-
sidade a conversão dos nativos.
Os relatos de viagem se multiplicaram como fonte documental para o conhe-
cimento das primeiras civilizações. Entender sua organização social, suas práticas
econômicas, seus rituais religiosos, a família e toda a estética simbólica foram
temas das abordagens feitas pelos europeus que tiveram contato com os povos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
26
Esse doutrinamento ainda persiste de diversas formas. Educar o nativo se dá pela via religiosa do missionário,
que tenta despertar a bondade cristã, mas também pelos modelos divulgados publicitariamente em todos
os cantos do mundo. Um “ser feliz” se massificou e se distribui em série por todo o Planeta. O preço que
determinadas comunidades pagam pelo contato com as ordens missionárias está expresso no infanticídio,
nos conflitos internos, na propagação do alcoolismo e na violência cotidiana. .
Nos relatos que descrevem como foi o contato entre europeus e povos que habita-
vam as terras descobertas ou dominadas, se destaca o conceito que se estabelece
sobre o valor que o nativo tem. Seria ele um selvagem distante da espécie humana?
O quão distante ele estaria? Teria alma? Seus gestos, seus comportamentos são
bem intencionados27?
Por mais que pareça simples ou imediata a busca por dar sentido ao estra-
nho, ela se torna complexa por fazer parte de uma cadeia de valores que irá
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
justificar, entre outros fatores, economicamente o “porquê” da escravidão. No
processo de colonização português na América, mas não só nele, existia a cha-
mada “guerra justa”. Por ela, os portugueses legitimavam o ataque, conquista de
territórios e escravidão de nativos. Um dos critérios para se estabelecer a guerra
era a resistência dos nativos aos valores cristãos. Não se escraviza o “irmão gen-
til”, mas sim o “mal selvagem”.
Os debates acerca da existência ou não de alma e do grau de primitividade dos
nativos geraram uma discussão acalorada no continente europeu. Representantes
das mais diferentes instituições da Europa se dedicaram ao tema. Lideranças reli-
giosas, políticas, militares e juristas tentam estabelecer um valor aos povos “não
europeus”. Essa conceitualização abarca desde os relatos dos religiosos e sua des-
crição carregada de uma simbologia cristã até os relatos dos militares e juristas
que se apegam à vida moral.
A relação que se construiu foi, ao mesmo tempo, de admiração pelo novo e
também de negação dessa diferença. Em cada passo dado pelos pesquisadores
que contribuíram para construir uma antropologia, há uma relação direta com
essa contradição. Assim, nasceu essa ciência ocidental que lança seu olhar sobre
povos estranhos e busca criar uma condição para estudá-los, e para tal, buscou
um método que, por mais que buscasse orientação em campos de conhecimento
27
Uma questão interessante é a definição da intenção. Como podemos avaliar a intenção de quem não
conhecemos dentro de uma cultura com uma cadeia de valores diferente da nossa? Não temos a menor
condição de estabelecer o sentido de uma agente social sem ter clara a forma como as relações estão
interligadas a outras. Como uma ação promovida tem a possibilidade de gerar outra em curto, médio e
longo prazo. Se estamos diante da necessidade de nos alimentarmos, buscamos o alimento. Desta forma, a
maneira de buscar a comida define nossas intenções. O desejo de nos alimentarmos, neste caso, não é capaz
de denunciar quem somos apenas.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
61
28
Alguns documentos demonstram a consideração que se estabelecia sobre os indígenas e a forma como
deveria se organizar as relações de trabalho nos territórios coloniais. No Brasil, na literatura, na história,
mas também nas análises antropológicas, estão os Sermões do Padre Vieira como uma referência. Antônio
Vieira (1608 a 1697) nasceu em Lisboa, mas o pai se transferiu para o Brasil, como funcionário da coroa.
Educado na colônia, em Salvador, Vieira gozou de prestígio e se dedicou ao contato com os nativos e à obra
de catequização. Ele passou por diversas etapas dentro do estafe da administração colonial e portuguesa.
Visto como um subversivo por defender os cristãos novos (judeus convertidos ao cristianismo), acabou
gerando suspeitas sobre suas atitudes de defesa da população nativa, a quem queria livrar da escravidão.
Já “Os Sermões do Padre Vieira” relatam temas dos mais diversos, desde as questões de exploração do
território até as relações estabelecidas entre senhores e escravos.
Mas a posição de Las Casas encontra resistência diante do Estado, em seu embate
com Sepulvera29, membro da Ordem Dominicana, este foi um dos maiores oposi-
tores da conversão dos indígenas. Sua posição lhe rendeu resistência, mas também
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notoriedade. Ele aconselha o rei espanhol a luta contra os nativos e seu exter-
mínio, os considerando seres animalescos, desumanos. Para ele, é inútil tentar
converter os nativos. Eles jamais seriam capazes de adotar à fé cristã:
Aqueles que superam os outros em prudência e razão, mesmo que não
sejam superiores em força física, aqueles são, por natureza, os senhores;
ao contrário, porém, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo que
tenham as forças físicas para cumprir toas as tarefas necessárias, são
por natureza servos, e vemos isso sancionado pela própria lei divina.
Tais são as nações bárbaras e desumanas, estranhas à vida civil e aos
costumes pacíficos. E será sempre justo e conforme o direito natural
que essas pessoas estejam submetidas ao império de príncipes e de
nações mais cultas e humanas, de modo que, graças à virtude destas
e à prudência dessas leis, eles abandonem a barbárie e se conformem
a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem
esse império, pode-se impô-lo pelo meio das armas e essa guerra será
justa, bem como o declara o direito natural que os homens honrados,
inteligentes, virtuosos humanos dominarem aqueles que não têm essas
virtudes (SEPULVERA apud LAPLANTINE, 2000,p.39).
Esse impasse entre a fala de Sepulvera e Las Casas esconde uma relação de supe-
rioridade na condição de julgador, como já falamos, da civilização ocidental.
Essa forma de se colocar como determinante na construção do conceito sobre
os demais povos faz com que os dois dominicanos, aparentemente tão distantes
29
Juan Ginés de Sepúlveda (1489-1565) foi um dominicano, assim como Las Casas. Filósofo, Sepulveda foi
um dos mais importantes teóricos da Igreja Católica. Controverso, buscou justificar o “direito natural” dos
ocidentais à exploração dos nativos. Considerava que a animalidade dos povos encontrados pelos reinos
europeus estava distante da capacidade da civilidade cristã. Um crítico da reforma protestante, ele defendeu
ações mais duras do Clero diante dos conflitos religiosos que tomaram a Europa de seu tempo. Questionava
Erasmo de Roterdã e sua postura humanista, considerava fundamental a imposição da fé católica e as
doutrinas conservadoras da Igreja.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
63
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
para o desenvolvimento das ciências naturais. Da mesma forma, não podemos
esquecer que esse método abre caminho para a utilização da ciência na busca da
realização humana, assim como para o próprio entendimento do ser humano.
As ciências naturais passam a ser uma instituição reconhecida cujo trabalho
compilado de diversos autores acumularam um saber difundido entre um círculo
de profissionais acadêmicos. As universidades europeias estão mais próximas
do poder e representam uma fonte importante para a orientação dos trabalhos
desenvolvidos pelos governos e outras instituições, inclusive empresariais. A rela-
ção entre ciência e produção garante a agilidade nas mudanças significativas na
política, economia e ordem social. Max Weber, em sua obra a “Ética Protestante
e o Espírito Capitalista”, ressalta o diferencial que fez, na ocupação e colonização
da América do Norte pelos puritanos ingleses, a orientação científica, a leitura, a
racionalidade, por mais que essas estivessem vinculadas a um sentido religioso.
(...) Das linhas de pensamento de Lutero, que de sua parte jamais re-
jeitou por completo a indiferença paulina pelo mundo, não era possí-
vel extrair princípios éticos para com eles dar forma ao mundo; por
isso era preciso assumir o mundo como ele é, e não se devia aplicar
o rótulo de obrigação religiosa senão a isso. – Na visão puritana, por
sua vez, outro é a matiz do caráter providencial do jogo recíproco de
interesses econômicos privados. Segundo o esquema de interpretação
pragmático dos puritanos, é pelos seus frutos que se conhece qual é o
fim providencial da articulação da sociedade em profissões. Ora, acerca
desses frutos, Baxter deixa fluir argumentos que em mais de um ponto
30
Análises como a de Francis Bacon serviram de referência para o desenvolvimento de teses importantes após
a Revolução Industrial. Entre os pensadores liberais, como Montesquieu e mesmo o positivismo de Augusto
Comte. A racionalidade ganha uma dimensão singular, a de trazer para o ambiente social o que foi bem-
sucedido na análise dos fenômenos naturais.
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
65
31
Entender a relação do homem, sua vida material, e a construção de um entendimento religioso é um dilema
que tomou a Europa por muitos anos. As mudanças econômicas e, por consequência, sociais e culturais,
atingem diretamente a ordem que cada indivíduo estabeleceu em relação à vida. O movimento que se
organiza dentro da sociedade e a maneira como ela absorve mudanças estão relacionados diretamente à
compreensão que faz do sentido que as novas relações estabelecem com os valores que lhe são herdados:
“Seria o trabalho algo digno?” “O desejo pelo lucro e a materialidade se traduzem em um pecado e devem ser
condenados?” O desenvolvimento de uma economia mercantil e industrial, posteriormente, se confrontou
com uma crença religiosa determinista do cristianismo.
Os Primeiros Passos da Antropologia
José de Sousa Martins é um dos mais importantes cientistas sociais brasileiros. Um de
seus principais objetos de pesquisa foi o confronto entre as frentes de ocupação que
ele chama de capitalista com as frentes agrárias ou primitivas. Em uma de suas obras, “A
chegada do Estranho”, ele considera a resistência dos nativos como uma constante. Se-
gundo o autor, ela ainda está em andamento, considerando que elas ainda se mantêm
em diversas partes do território brasileiro.
Neste trecho de sua obra, Martins fala de forma irônica, com uma reflexão instigante,
sobre a resistência das populações nativas em relação à presença do ocidental. Leia:
(...) Às vezes é preciso rir. É preciso rir do inimigo e do que dele ficou
dentro de nós. Por isso, é preciso rir também de nossas próprias debili-
dades, dos nossos enganos. Das nossas vitórias quase nunca definitivas.
É preciso rir o riso crítico que denuncia a comicidade dos protagonistas,
conquistadores, na vã tentativa de vestir, e de impor, a apertada roupa
cultural de quem manda ou pensa mandar. Não chorem por nós, porque
a América Latina não é um funeral. A América latina é uma festa, mesmo
quando estamos sepultando os nossos mortos. Porque no silêncio dos
funerais das vítimas dos que nos oprimem há também o cântico interior
de nossas esperanças, anúncio e prefiguração da nossa festa coletiva e
permanente.
Destaco alguns pontos para uma reflexão sobre este tema, para que se
compreenda o sentido dos nossos problemas. Antes de tudo, o que veio
a ser a América latina é um território antropofágico. Já era antes da Con-
quista. As cartas jesuíticas do século XVI nos falam abundantemente de
uma intensa pedagogia orientada contra a poligamia e o canibalismo.
Durante quase cem anos, a sociedade brasileira nascente foi submetida
a uma ação pedagógica cotidiana no sentido de transformar os valores
do canibalismo ritual em valores negativos da sociabilidade do novo
mundo. A negatividade do canibalismo foi implantada nas próprias raí-
zes das sociedades latino-americanas, sepultada repressivamente com a
poligamia nos terrenos profundos do proibido e do ocultado. Recoberta
pela lápide frágil dos adornos barrocos do catolicismo e da fé. Lá no fun-
do, permanece a visagem desse modo ancestral de ser. Na necessidade
da dissimulação, a América Latina se destrói a si mesma, obrigada a pa-
recer mais do que a ser.
Além da questão da resistência, nessa citação, há outro elemento para a reflexão que
construímos durante esta unidade, a discussão sobre a visão distorcida que o ocidente
constituiu das civilizações não europeias. Pensamos que a forma preconceituosa de
olhar tenha ficado no passado, mas não, ela ainda existe.
68 UNIDADE I
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
69
Considerações Finais
1. O processo de formação do ocidente teve “ingredientes” importantes na cons-
trução da dominação promovida sobre o Planeta. Há uma relação direta entre
a concepção cultural e a ação promovida. Nossa cultura predadora, cristã, ra-
cional e capitalista é um encontro na determinação do que foi traçado sobre o
mundo nos últimos 600 anos. Procure estabelecer, lendo a unidade e analisando
as obras cinematográficas sugeridas, uma relação entre a cultura e a economia,
como elas, em conjunto, promoveram a expansão ocidental. Se puder, faça re-
lações com a história da Europa abordando como podemos compreender
a origem de determinados elementos ainda dominantes em nossos dias.
2. Discutimos, nesta unidade, sobre o olhar preconceituoso que o Ocidente es-
tabeleceu sobre o mundo. Quantos povos foram julgados e condenados pelos
ocidentais ao longo da conquista planetária. Uma conquista feita de guerras
constantes. No texto de José de Sousa Martins, em nossa reflexão, há um relato
da resistência ao homem branco, mas também da visão preconceituosa sobre
os nativos, o canibalismo está no centro dessa discussão. Tente estabelecer, na
atualidade, outras formas de preconceito que são expressas em relação a
outros povos ou grupos sociais. Esse é um exercício vital para o conhecimento
ir além da leitura e do conteúdo, sendo fundamental para construir um senso
crítico.
3. A respeito das migrações e os seus efeitos para a construção e a destruição de
muitas civilizações, é correto afirmar que:
a. ( ) O desenvolvimento das práticas mercantis intensificou o contato entre as
pessoas e destruiu muitas fronteiras entre as civilizações, no entanto, muitas
foram reconstruídas com bases nas novas relações estabelecidas.
b. ( ) A Globalização nos integrou e nos levou a uma massificação, destruindo o
“outro” e tornando-nos apenas “nós”.
c. ( ) Conforme o contato entre os diversos povos ao redor do globo foi se esta-
belecendo o “processo civilizador” e as diferenças entre as diversas civilizações
mundiais ficaram mais evidentes.
d. ( ) As migrações têm efeitos devastadores para muitas civilizações, não permi-
tindo que novas identidades sejam reconstruídas.
MATERIAL COMPLEMENTAR
Aprender Antropologia
François Laplantine
Editora: Brasiliense
Sinopse: A primeira indicação é de um trabalho básico do
antropólogo francês François Laplantine, “Aprender Antropologia”.
Esse trabalho apresenta um panorama geral do aparecimento,
formação e desenvolvimento da Antropologia, de sua raiz,
nos primórdios da expansão ocidental, até nossos dias. A obra
desempenha também a função de organizar os campos de
conhecimento que a Antropologia trata. Um bom material para
quem está iniciando no campo de conhecimento ou apenas tem curiosidade acerca do que a
Antropologia trata.
Terra-Pátria
Edgar Morin e Anne Brigitte Kern
Editora: Sulina
Sinopse: A nossa segunda indicação é o trabalho de Edgar Morin
e Anne Brigitte, “Terra-Pátria”. Esse trabalho tenta dar uma resposta
sobre relação do homem com o Planeta e integrar uma gama de
campos de conhecimento para a compreensão do que é a jornada
humana no mundo.
Em sua primeira parte, os autores fazem uma construção histórica
da atualidade. Esse ponto é importante para a compreensão do processo de ocidentalização e de
suas consequências para o mundo. A visão de Morin sobre as conquistas ocidentais é instrutiva e
complementa em muito o que abordamos nesta unidade.
Material Complementar
MATERIAL COMPLEMENTAR
A Missão
Roland Joffé, 1986
II
UNIDADE
ANTROPOLOGIA CULTURAL
Objetivos de Aprendizagem
■■ Entender a transição entre a construção do pensamento ocidental
racional e a organização do método de abordagem da Antropologia.
■■ Estabelecer a importância de a Antropologia ter amadurecido
enquanto ciência com um método próprio de abordagem.
■■ Conhecer os métodos desenvolvidos pela sociologia, em especial o
estruturalismo e o funcionalismo.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ A racionalidade como forma de compreensão das civilizações não
europeias
■■ O papel de dominação que a Antropologia exerceu em seu
nascimento como ciência
■■ A questão da emancipação do evolucionismo e a formação de uma
Antropologia fundada na pesquisa participativa
■■ O amadurecimento e o dilema antropológico
75
INTRODUÇÃO
Introdução
76 UNIDADE II
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A RACIONALIDADE COMO FORMA DE COMPREENSÃO
DAS CIVILIZAÇÕES NÃO EUROPEIAS
O século XVIII foi marcado pela mudança de conceito que o homem constrói
em relação a sua própria existência. A ideia de uma ordem racional que coloca
os homens em uma condição de igualdade natural ganhou contornos diver-
sos. Em teóricos como Hegel, a valorização da racionalidade, do poder sobre
a natureza e a capacidade de organização de uma sociedade são dadas como
formas determinantes para seleção e classificação das civilizações que exis-
tem no mundo. Por mais que exista um número imenso de civilizações, elas
pertencem à espécie humana, mas estão vivendo estágios diferentes de desen-
volvimento, de acordo com Hegel.
Para a Antropologia, esse será um momento fundamental para compre-
ender onde repousa a relação que deve se estabelecer entre aqueles que vivem
na Europa, tida como civilizada, e os demais povos que habitam o Planeta e
se encontram em condições distintas de desenvolvimento. Para alguns teóri-
cos, essa diferença está na relação que se estabelece com a natureza. O meio e
a construção de heranças culturais podem ser o suporte teórico para o enten-
dimento das diferenças entre as civilizações humanas.Nesse contexto, o barão
de Montesquieu1 é uma das mais célebres expressões dessa tendência.
Filho de família nobre francesa, Chales-Louis de Secoudat (1689-1755) teve formação em direito
1
romano, física, biologia e geologia. O que lhe profere em suas obras uma relação entre o ambiente e a
condição humana. A organização social, para ele, tem um vínculo com o ambiente natural. Montesquieu
ANTROPOLOGIA CULTURAL
77
é apontado como um dos fundadores da Sociologia, devido a suas análises comparativas. Cartas Persas
e o Espírito das Leis são suas obras mais conhecidas. Na primeira, ele utiliza a história de dois persas
trocando correspondências com conhecidos para fazer crítica ao Estado absolutista e ao Clero Católico,
seus principais alvos de crítica na vida política. No Espírito das Leis, relata a relação entre a construção das
normas e a vida em sociedade.
2 George Wilhelme Friedrich Hegel (1770-1831) é considerado o ponto mais alto do movimento idealista
alemão. Aprimorando a dialética que serviu como base para o desenvolvimento das ideias de Marx, Hegel
considera que há uma evolução da civilização quando as contradições sociais geram o aprimoramento da
razão. Para ele, temos que compreender a herança histórica que, em momentos aparentemente de crise,
possibilita a superação dos problemas dentro de um ambiente aparentemente contraditório. Para ele, são
os embates entre forças opostas que geram a melhoria da civilização. Por isso, ainda para ele, temos que
valorizar os processos de construção dialéticos que geraram a racionalidade.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
participou, no século XIX, para conhecer em diversos pontos do mundo um ele-
mento comum que pudesse justificar um princípio de todas as espécies vivas que
habitam o Planeta. Por mais que a busca do pai da antropologia inglesa seja tam-
bém uma procura que se deu antes dele e posteriormente a ele.
O que nos parece interessante frisar é o valor que a ciência ganha como
condição para a análise da vida social, do ser humano, de seus rituais, de sua
organização política. Nesse sentido, o conhecimento científico busca entender o
homem e compreendê-lo dentro do seu habitat, seja nas cidades europeias, que
se multiplicaram com a Revolução Industrial, seja nas regiões mais afastadas da
Europa, onde vive o que se denominou, nos séculos XVIII e XIX, de “primitivo”.
Um dos grandes dilemas da formação de uma ciência do homem era afas-
tá-lo da condição ambiental em que vive, mas, ao mesmo tempo, tratá-lo na
condição de ser vivo, um elemento dessa mesma natureza, sujeito a leis univer-
sais. Na Idade Média, o paradigma a ser combatido foi o panteísmo, ou seja, a
presença de Deus em todas as coisas, ou mesmo a concepção de que o universo
era Deus. Analogamente, o antropocentrismo tendeu a colocar o homem como
uma extensão dessa mesma natureza e sujeito a ela.
Em teorias como a de Montesquieu, posteriormente como as de Comte, fica
evidenciada a busca por gerar essa relação teleológica (relação causa efeito) entre
o meio, a natureza e o homem. Essa relação ainda está por ser trabalhada com
cautela pela Antropologia, Sociologia e Psicologia.
Os campos de conhecimento se aprofundam e iniciam a consolidação de áreas
específicas de saber sobre o homem. Surgem dessa especificação a Sociologia, a
Antropologia e a Psicologia. Enquanto a Sociologia irá se dedicar ao estudo da
ANTROPOLOGIA CULTURAL
79
É nessa concepção que uma Antropologia nasce. Ela busca analisar o homem,
fazer dele um objeto de estudo do próprio homem. Contudo, com critérios cla-
ros, bem definidos, sendo um desdobramento do que já foi produzido em outros
campos de conhecimento. A antropologia intenciona ainda fazer com que todos
os campos de conhecimento sejam meios para conhecer o homem, extraindo
informações para elaborar uma leitura do próprio homem, sendo esse seu prin-
cipal objeto ou ponto de partida.
Como falamos anteriormente não foi fácil tirar o homem da sua condição
de extensão de uma natureza e fazer dele um objeto de interesse. Não que não
fosse necessário, com as condições que o processo de industrialização promo-
veu na Europa, com o conhecimento de novas civilizações. Porém, considerar o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mento da desigualdade humana. Não por acaso, ele é o filósofo do romantismo,
uma vez que compreende que a construção de uma civilização como a nossa
foi feita sacrificando a naturalidade da existência. Na contraposição, está David
Hume3, que, em seu “Tratado Sobre a Natureza Humana”, demonstra o quanto
o idealismo francês falha ao não fundar sua análise na observação concreta
dos fenômenos. Leis naturais devem ser constituídas a partir de um comporta-
mento determinado e constante, observado e comprovado a existência da espécie
humana nas mais variadas condições ambientais e sociais. Aqui, o empirismo, o
método indutivo, influencia a obra de Hume, apesar de Isaac Newton ser con-
siderado o seu inspirador.
O empirismo acaba por influenciar a busca por entender outras civilizações
e conhecer sua construção a partir da sua produção material. A arqueologia terá
aqui também seu embrião, cuja tentativa era de estabelecer o conhecimento sobre
outra civilização mediante de seus objetos produzidos. Das expedições que as
nações europeias fizeram pelo mundo, muitas delas trouxeram em seus despojos
as relíquias dos vencidos. Nas viagens das tropas francesas à África, na incursão
das tropas napoleônicas sobre o Egito, foram obtidas muitas riquezas de civili-
zações milenares, as quais estão hoje expostas no Museu do Louvre. Esse tipo
de ação não será feito somente pelos franceses,diversas nações se especializa-
ram na seleção e catalogação desse tipo de objeto. Observa-se, nesse sentido, a
busca de documentar a descrição da história de outros povos.
David Hume (1711-1776) foi um dos mais influentes filósofos do século XVIII, em especial na Inglaterra.
3
Junto com John Locke e George Berkley, ele forma a tríada do pensamento inglês. Seu empirismo radical
influenciou vários pensadores europeus, inclusive Kant.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
81
Lewis Henry Morgan (1818-1881), antropólogo norte-americano, graduado em direito, foi político ativo
4
nos Estados Unidos, chegando ao Congresso como deputado e depois senador. Sua principal preocupação é
o estudo das instituições sociais e das relações de parentesco e família como instituição, a qual estudou junto
aos nativos iroqueses. Sua compreensão ainda buscava gerar uma relação universal entre a constituição de
parentesco dentro das instituições sociais, em especial, a família. Sua formação protestante o influenciou
significativamente, contudo, sua forma de compreensão da diversidade de organizações familiares entre
povos nativos demonstrou o início de uma pesquisa de campo desprendida de um naturalismo europeu.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
produção fundados na maquinofatura como na emergência de governos liberais.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
83
sentido, a Conferência de Berlin (1884 e 1885) foi a mais profunda. Mesmo antes
da exploração racionalizada do interior do continente negro, a escravidão como
empresa mercantil marcou a migração forçada de trabalhadores, principalmente
para a América. Inclusive, vale lembrar que os territórios brasileiros e os norte-a-
mericanos receberam o maior número deles. O Brasil foi destino de 39% dos seres
humanos capturados, enquanto os Estados Unidos da América receberam 9% dos
seres humanos transformados em mercadoria pelo tráfico negreiro.
Outras migrações foram resultado do aproveitamento de desterrados, inimi-
gos do Estado absolutista ou mesmo prisioneiros dos estados liberais. Inglaterra
e França marcaram sua colonização com áreas de desterro de prisioneiros nas
América Central, África e Oceania. A colonização da Austrália, iniciada pelos
ingleses no século XVIII, também tem como característica o deslocamento de
prisioneiros condenados que trocaram a sentença pela vida distante na colônia.
O mesmo fizeram os franceses nas Antilhas. Portugal, bem antes disso, promoveu
o deslocamento dos desterrados para a costa brasileira. Na região sul do Brasil,
é possível encontrar inúmeros municípios cuja história remonta o desterro6.
5
Aqui, quando tratamos da Revolução Industrial, não gostaríamos de reduzir sua ocorrência ao território
inglês e a tradicional maquinofatura têxtil marcada pela produção fundada na máquina a vapor e no
carvão como energia. Estamos traçando sua ocorrência além das fronteiras britânicas, sua chegada em
vários países europeus. Além disso, o processo de mudança sofrido em toda a cadeia produtiva promovida
pela maquinofatura e a multiplicação da divisão do trabalho. A organização do campo que passou a ser
uma extensão dos interesses rurais vai determinar ainda mais a mudança dentro do território europeu,
mas também fora dele. Em muitos lugares, nas Américas, na África, na Ásia e Oceania, os territórios
serão explorados com mais intensidade na busca por atender à máquina de transformação ocidental,
seus poderosos parques industriais. Porém, também serão alguns desses territórios, na segunda metade
do século XX, espaços onde irão se desenvolver parte do integrado processo de produção mundial. Uma
globalização estará surgindo e mudando profundamente o curso da história humana.
6 Florianópolis, capital catarinense, tem sua origem no desterro de portugueses dos açores. Seu nome
original é Nossa Senhora do Desterro. No final do século passado, houve intenção de retornar o nome
Convocada por Portugal, interessada em criar uma ligação entre suas prin-
cipais colônias na África, a Conferência de Berlin foi organizada pela Alema-
nha. O motivo do interesse alemão era garantir espaço territorial em um
continente já retalhado pelas nações europeias e pelos turcos. Envolto por
uma série de conflitos, o continente africano assistiu as nações europeias
contribuir em demasia para aprofundar e garantir seu domínio. Por influên-
cia de Otto von Bismarck a conferência acabou por ceder a Namíbia, sudoes-
te africano, aos germânicos. Na Conferência de Berlin as nações redesenha-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ram o mapa da Europa e consolidaram a exploração do continente com a
intensificação de meios de exploração, tropas, ferrovias, entrepostos. Novos
interesses surgiram, agricultura e mineração. No processo minerador, a ex-
ploração da África do Sul pelos holandeses (Böers) e posteriormente pelos
ingleses gerou um território dominado por brancos, e com exploração dos
nativos africanos e de trabalhadores indianos.
da cidade a sua nomenclatura histórica, mas prevaleceu a homenagem ao presidente Floriano Peixoto,em
memória à Revolução Federalista. A capital catarinense foi sede da revolta contra o governo federal. Com
a vitória do presidente Marechal Floriano, o nome da cidade foi um troféu. Imposição autoritária que se
tornou identidade, como muitas na história brasileira.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
85
CONHECIMENTO E DOMINAÇÃO
7 Em quantas dessas comunidades a existência desses quistos não representou também conflito. Na história
do Brasil, principalmente na memória regional, estão presentes as marcas de sangue deixadas pela luta
contra o “perigo estrangeiro”. Na formação da identidade do país, o imigrante contribui, mas antes era visto
como uma ameaça. Os alemães foram, durante duas guerras mundiais, vistos como um perigo da expansão
germanistas. Escolas alemãs foram fechadas em núcleos urbanos como Blumenau e Joinville. Japoneses
ficaram sobre suspeitas ou foram colocados em campos de observação, para não dizer concentração,
durante a Segunda Guerra Mundial (1938-1945). No caso nipônico, hoje, quando se celebra a importância
dos traços culturais japoneses no nosso dia a dia, ao se visitar uma feira Nipo-Brasileira e perceber os
quantos de nós são eles, se esquece enão se denuncia a “paz construída com sangue”.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a formação da Alemanha (1871), Itália (1870) e na busca de uma emancipação
na Polônia (1864) e nos países eslavos (1856 a 1914). Esse mesmo nacionalismo
que construiu a rivalidade entre as nações europeias foi à pedra de toque8 que
gerou a destruição da imagem de superioridade colocada há pouco.
Como já argumentamos, a ciência passa a ser produzida sistematicamente. O
conhecimento acadêmico se torna uma referência para construir na Europa um
conceito sobre a sociedade, seja ela da própria Europa ou de povos não europeus9.
As mudanças na economia capitalista são um propulsor que, movido também
pela formação do ideário ocidental, vai se desdobrando em inúmeras possibilida-
des. No campo do conhecimento, é perceptível que as descobertas significativas
para a humanidade se concentrem entre os séculos XVIII e a primeira metade
do século XX. Foi nesse longo trajeto que as ciências sociais encontraram seu
berço e seu desenvolvimento, o qual ocorre até hoje.
A longa jornada da Antropologia como ciência encontrou seu curso no século
XIX. Nesse período, desenvolveu-se o método e se consolidou a relação entre
a compreensão do homem não só com o elemento chamado de primitivo, ou
8
Quando falamos da expressão “pedra de toque” e a relacionamos com o advento do nacionalismo na
Europa, percebemos que ele foi o responsável pela formação de um culto à pátria, ao território, à língua e
à corrida pela dominação mundial entre as grandes potências europeias. Não se pode separar a formação
da Alemanha, por exemplo, a forma como ela ocorreu, da tensão gerada na Europa em relação à França
e Inglaterra. Quem soube fazer muito bem essa leitura foi Max Weber, ao prever o desastre da aliança da
Alemanha com a Áustria-Hungria e sua rivalidade beligerante com ingleses e franceses. O teórico alemão
também foi capaz de relacionar a guerra e seus desdobramentos com a entrada dos Estados Unidos no
conflito.
9
Vale a pena lembrar que a multiplicação de publicações literárias na Europa contou para a valorização
social da ciência. O conhecimento produzido pelos pensadores europeus, cientistas, passou a ser publicado
e chegou à parte da população com o surgimento dos livros de bolso, das publicações de massa, dos
periódicos que atingiram cada vez mais pessoas.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
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Um dos fatos marcantes para que houvesse uma mudança no curso da antropolo-
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gia foi a ocorrência das duas guerras mundiais10. A noção de ser uma civilização
superior e a de ser dotada de uma capacidade de racionalidade que conduzia
instituições europeias, as quais pudessem ser capazes de dar um norte comum
à humanidade, ruíram. Tudo o que foi gerado como a evolução do homem, que
de uma sociedade primitiva construiu todo o ocidente, não foi capaz de impe-
dir um genocídio inconteste praticado no interior da Europa11.
Foi após as duas grandes guerras que determinados temas passaram a fazer
parte de forma mais constante das ciências sociais. A Antropologia não escapou
dessa discussão. Compreendia-se então que os grupos humanos não obedeciam
a uma lei constante no desenvolvimento das civilizações, assim não haveria uma
linha histórica que poderia classificar os povos e colocar no topo da cadeia evo-
lucionista o homem do ocidente. O olhar da barbárie que era direcionado para
determinados grupos humanos agora se encontrava voltado para o espelho onde
a Europa refletia.
Um dos primeiros autores a questionar o discurso de supremacia racial oci-
dental foi Franz Boas, antropólogo teuto-americano. Em suas obras de análise
sobre a cultura esquimó, um dos primeiros trabalhos de sua carreira, mesmo
10
Tanto a Primeira (1914 a 1918) quanto a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945) foram marcos para a
mudança de conceito que o homem ocidental cultuou sobre si mesmo. A violência praticada nos campos
de batalha e o envolvimento de uma grande parte do mundo em um conflito, que teve a Europa como seu
centro, fez mudar o conceito de civilizado.
11
A questão judaica é uma ferida que não cicatriza na história da Europa. Na Alemanha, ela é relembrada
como um memorial invertido. Uma busca de jamais esquecer os efeitos que a violência praticada pelo
regime nazista gerou em uma imperfeição na superioridade que os ocidentais cultuaram por séculos e, no
século XIX, chegou a ser considerado com naturalidade um destino natural de supremacia do ocidente.
considerando que tenha um viés eurocêntrico, ele já demonstrava uma forte influ-
ência por ideias de igualdade racial. Contudo, sem deixar de levar em consideração
as distinções e as condições em que uma sociedade gesta suas particularidades.
Tal característica de Boas influenciou a escola de antropologia cultural norte-a-
mericana e, por consequência, teve um papel crucial nos trabalhos de Gilberto
Freyre, um dos mais ilustres fundadores da antropologia no Brasil.
Essa ruptura que descrevemos aqui é profunda. Ela é uma negação ao que
determinou por mais de um século o objeto de estudo da antropologia. O enten-
dimento do homem universal agora se tornava um eixo vital para a lógica que
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os antropólogos desenvolveram ao longo do século XX. Os trabalhos de Boas,
Malinowski, Claude Lévi-Strauss (1983) são demonstração dessa mudança.
Enquanto Malinowski se mostra como um pesquisador de campo à procura de
definir um método, Boas busca a compreensão da funcionalidade social, assim
como entender as peculiaridades das civilizações como uma orientação para
suas investigações.
Na forma em que se consolida o método, estabelece-se uma antropologia aca-
dêmica. O que Boas gerou nos Estados Unidos da América, na Universidade de
Columbia, será o ponto de partida para o modelo acadêmico que a Antropologia
irá seguir em diversas nações onde a ciência ganhou notoriedade. Passa-se, então,
a constituir uma visão não mais fundada no modelo ocidental, mas a partir de
pesquisas de campo junto aos grupos humanos que se deseja conhecer.
A busca de conviver com outras civilizações, que levou muitos dos pesqui-
sadores europeus a saírem de seu continente, está relacionada com a desilusão
com a vida europeia. A sociedade industrial que encantou muitos dos intelec-
tuais do século XIX, como o ambiente da superioridade de convivência entre os
homens, ganha oposição. Essa trajetória de exaltação e descontentamento não
foi só nas ciências humanas, na antropologia, em especial, foi também nas artes,
como no caso do surrealismo e impressionismo.
André Breton, surrealista do século XX, foi autor do “Manifesto Surrealista”,
no qual se expressava o rompimento com toda a racionalidade, a ruptura com a
métrica esperada. A ideia principal era o elogio à forma de criação da subjetivi-
dade descomprometida com a racionalidade a qual determinou o mundo europeu
industrializado, o qual se autointitulou desenvolvido e civilizado.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
89
12
Há, na atualidade, uma discussão para aproximar a Antropologia da História, que se denomina
“Antropologia Histórica”. Essa tendência antecede a chamada “História das Mentalidades”. Mais importante
que o conhecimento, os relatos, sobre os grandes feitos históricos, os grandes personagens, é a história do
cotidiano, dos alimentos, da vida privada, da moda, da estética, exatamente do cruzamento entre o campo
da história e o da antropologia.
13
Apenas como lembrança, os jesuítas desenvolveram uma técnica eficaz de aproximação dos nativos, o
conhecimento sobre a língua. Por meio dela, ao longo da história da colonização do Brasil, ocorreu a
aproximação que facilitou o extermínio e submissão dos indígenas.
COLONIZAÇÃO
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Muitos campos de conhecimento nasceram e cresceram fora da Europa.
Botânica, arqueologia, geografia, zoologia, geologia, cartografia e a própria antro-
pologia são alguns desses campos que ampliaram o poder do ocidente sobre várias
civilizações e territórios. Na proporção em que os deslocamentos das expedi-
ções europeias chegavam aos mais diversos campos do mundo, as relações entre
a economia, as guerras e o conhecimento científico se aprofundaram.
Mais uma vez, é importante lembrar que entre o conhecimento como ins-
trumento e a intenção de quem o utiliza há uma diferença fundamental. Em
determinados contextos, o saber garante as condições de existência coletiva,
em determinados momentos, segrega e permite a implantação de um estado de
violência próximo à barbárie. O uso do conhecimento depende de quem o usa.
Mesmo em plena maturidade, o instinto pode falar mais alto e expressar o lado
insano de uma civilização.
A própria arte da guerra é um campo em que a ciência foi vital para o seu
aprimoramento. A chamada “arte de matar” não encontrou em nenhuma outra
civilização o extermínio do próprio ser humano como na civilização ocidental. A
história do ocidente, em diversos momentos, é a história das guerras14. Não por
acaso, atualmente, ritualizamos na violência o poder de destruição. A guerra é a
14 A capacidade de extermínio que a Europa constituiu ao longo de sua história se expressou no século XX.
Mesmo com as guerras coloniais que marcaram o domínio sobre diversas civilizações, foi no século passado
que a capacidade de destruição humana chegou ao extremo. As bombas atômicas lançadas sobre o Japão
(Hiroxima e Nagazaki) demonstraram não só o poderio bélico de uma potência, mas a capacidade do ser
humano de exterminar a própria espécie. Hans Magnus Enzensberger (1995) fala dessa natureza do homem
de destruir a si mesmo: “Somos a única espécie que planeja seu próprio extermínio”. Edgar Morin fala da
“Era Damocleana”, o poder científico a serviço do extermínio está associado a um Planeta interligado e
movido por uma rede de relações. Segundo Morin, cada um de nós carrega o planeta dentro de si.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
91
condição vital que constrói o herói. Aquele que lidera as tropas deixa suas marcas
e galga quase sempre o ponto mais alto da memória coletiva. Temos inúmeros
ídolos da paz, mas cultuamos em demasia “os senhores da guerra”.
As fronteiras geradas nas áreas de dominação, aos poucos, foram organi-
zando uma cartografia que incrustou na história uma distribuição territorial e
impôs o encontro entre um número significativo de populações. As característi-
cas regionais foram dando lugar a caldo cultural que se formou pela convivência,
nem sempre pacífica, do ocidente com os demais povos. Nos desdobramentos da
empresa colonial, a manipulação dos nativos foi elemento vital para consolidar
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15 Em 1554 uma expedição secreta francesa se dirigiu ao litoral brasileiro para detectar uma área de
instalação de um núcleo colonial francês. Interessados em manter um entreposto para poder extrair pau-
brasil no litoral do território português, os franceses desejavam ter uma colônia nas terras lusitanas na
América. Villegagnon foi escolhido pelo ministro francês Colygni para liderar a expedição de conquista.
Os franceses fizeram contato com os Tamoios, nativos tupinambás da região, para obter informações sobre
os portugueses. Posteriormente, foi com a ajuda deles que os franceses conseguiram se estabelecer no
território. Portugal reagiu com apoio dos tupiniquins, inimigos tradicionais dos tupinambás.
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tataremos que grande parte das etnias e tribos em conflito é um desdobramento
das linhas autoritárias, as quais demarcaram a formação das colônias europeias
consolidados em fronteiras dos Estados modernos.
A destruição de inúmeras civilizações com a aproximação do homem ociden-
tal, a exploração intensa sobre os territórios coloniais, ou influência e dominação,
sejam elasdireta ou indiretas, ainda ocorrem e estão em curso. Seria irônico
negar que ainda estamos vivendo o extermínio de culturas em diversas partes
do mundo. Essa eliminação se traduz não só na conquista territorial, mas na
exploração indireta, na economia que se estabelece pela dependência, na influ-
ência cultural que os meios de comunicação exercem em nosso dia a dia. Porém,
vamos tratar desse tema com maior detalhe mais à frente.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
93
16 No final do século passado, a Europa esteve envolvida com a formação de Comunidade Europeia, um
plano traçado após o final da Segunda Guerra Mundial (1945). Porém, mesmo diante da racionalidade
formadora de uma união das nações europeias, franceses e alemães demonstram o quanto não se aceitava
facilmente superar os anos de construção de uma identidade nacional forjada na rivalidade, na negação do
outro, no fortalecimento da fronteira.
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comentamos, foi questionada com a depressão vivida pelo ocidente no século XX.
A difícil capacidade da alteridade fez com que o ocidente descrevesse os povos
não europeus como uma aberração ou, como já falamos ao analisarmos o pensa-
mento de Hegel, apartados da história. Sua existência não afetaria em momento
algum a condição humana. Eles não poderiam ser vistos como algo que fosse além
do lugar onde foram encontrados, quase anulando, dessa forma, a diferença entre
o nativo e a natureza que o cerca. Para o olhar eurocêntrico, eles estão condena-
dos a permanecer como os animais e as plantas com quem convivem.
Não por acaso, essa visão abriu a possibilidade da formação de uma etno-
grafia, etnologia, arqueologia e, posteriormente, a antropologia cultural. Ou seja,
uma fragmentação do que se colhia no campo de investigação e a formação de
uma “tabela” de enquadramento de civilizações. As semelhanças aproximam e
as diferenças afastam. Com um modelo próximo ao dos usados pelos botânicos
para classificar as plantas, os etnógrafos e arqueólogos iniciaram sua colheita de
objetos e descrições de comportamentos para serem enquadrados.
Serão os etnólogos os que primeiro iniciarão, como observadores atentos, a
convivência com os povos nativos para assim compreenderem seu modo vida.
Eles vão se dedicar a descrever o comportamento, mas também aprender a língua
e entender o sentido dos rituais, dos gestos, das instituições e sua relação com o
ambiente. Será esse pesquisador que começará a entrar na cultura da sociedade
observada para compreender a lógica da organização social.
Nessa relação de convivência, organiza-se a vida dentro de um mundo comple-
tamente diferente daquele do pesquisador. Por mais preparado que ele considere
estar, para conviver com um ambiente social distinto do seu, profundamente
ANTROPOLOGIA CULTURAL
95
Foi dentro dessa primeira observação que se colocou a relação do homem com
a natureza como um determinante necessário à observação. Não se deve enten-
der aqui que o meio determina o homem, mas relevar a influência que esse
meio exerce em determinado grau. Existe um meio no qual estamos inseridos e
ele rege, até determinado momento, o que somos. Compreender isso colabora
fundamentalmente para estabelecer vínculos posteriores com outras variáveis.
ARQUEOLOGIA
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tante para a antropologia.
Os estudos da arqueologia reforçavam a ideia de uma evolução. Dessa forma,
levantou-se a hipótese de que o homem ocidental seria o resultado de uma longa
evolução da espécie humana iniciada na pré-história, deixando vestígios das civi-
lizações que fizeram parte da longa trajetória humana. Essa seria então a missão
das ciências que se dedicavam ao estudo dos povos não europeus.
O modelo industrial, urbano, racional e organizado em Estados-nação era a
demonstração da superioridade europeia. Cada elemento descoberto no mundo
se encaixava nesse destino preestabelecido pelo evolucionismo, o qual ainda con-
tinua sendo uma forma de compreender a existência da diversidade humana. O
processo de globalização que estamos vivendo e a cadeia mundial de produção
são exemplos de fatores que fazem com que as pessoas estabeleçam contato cada
vez mais constantemente com as diversas partes do mundo. Esses contatos acabam
por facilitar o acesso a informações, ajudam a conhecer culturas, mas também
influenciam mudanças. Na expansão ocidental a busca por integrar o mundo
a uma rede econômica capitalista foi o grande motivador a, ainda hoje a inten-
ção continua. A padronização imposta pela cultura de massas e a forma como
é trabalhada a diversidade tendem a expressar mudanças na cultura de pratica-
mente todos os povos. Estamos diante da formação de um mundo em evolução.
As diferenças existentes entre os seres humanos hoje seria então uma relação
constituída com os ambientes diferenciados, geografia, clima, vegetação, animais
e tudo o que se desenvolveu ao longo de milhares de anos. Fora essa condição
ambiental, está a construção de um saber com a natureza, de habilidades e orga-
nizações sociais relacionadas à necessidade de superar as condições que a própria
ANTROPOLOGIA CULTURAL
97
natureza determina. Outro fator de mudança dos seres humanos foram as mis-
cigenações, os encontros entre os diversos grupos e as mudanças que geraram.
O que se observa nas pesquisas contemporâneas sobre a formação biofísica
da espécie humana é que temos a mesma origem. Somos todos da mesma espécie,
somos alterados pelo tempo de vida em determinados ambientes. Nosso corpo
se adaptou a determinadas condições e está em constante mutação. Hoje, o que
estamos vendo do ser humano é um estágio de mudança constante que vai se
processando ao longo do tempo. Não há um ser ideal, apenas uma espécie em
constante mudança promovida pela própria ação do ser humano.
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EVOLUCIONISMO
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em relação às demais sociedades. Em sua análise sobre a divisão do trabalho social,
um dos importantes pontos de partida do teórico francês, a produção da vida em
sociedade depende de uma cadeia de relações que envolvem um determinado
número de indivíduos e funções. Nas sociedades com uma grande divisão de tra-
balho, há uma dependência maior do indivíduo em relação aos demais agentes
sociais. Em sociedades com menor divisão, há menos dependência.
Com esse princípio, foi definida a principal diferença entre a ordem social
complexa da sociedade industrial e a simplicidade das sociedades denomina-
das “primitivas”.
A organização racional da vida em sociedade é então uma derivação dessa
condição de organização. Para Durkheim (1981), não se pode associar de forma
simples a relação dos fatos com os indivíduos em uma sociedade industrial,
porém, em sociedades tidas como “primárias”, isso é possível. A baixa divisão
do trabalho faz com que cada agente social reproduza em suas ações o compor-
tamento de grande parte da coletividade.
Durkheim (1981) analisa as sociedades agrárias tradicionais da Europa, os
camponeses e as mudanças ocorridas com a industrialização. Há uma relação
de dependência maior entre os membros da sociedade industrial, porém a par-
ticularidade é um estímulo mais intenso nas sociedades urbanas. Nas sociedades
agrárias, há menor dependência, mas uma unidade maior em torno de valores
coletivos. Assim, as sociedades primitivas teriam uma organização mais simples,
o que geraria uma facilidade maior de entendimento.17
17 Comte considerava que sociedades que se organizavam de forma física ou metafísica estavam em condição
ANTROPOLOGIA CULTURAL
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superior àquelas que tinham sua organização dependente de elementos místicos e religiosos. A falta de uma
organização complexa nas sociedades primitivas denuncia sua simplicidade de organização.
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é uma revolução que o funcionalismo estabeleceu na análise social.
Porém, o grande passo que a Antropologia deu ao se consolidar como ciên-
cia foi com Franz Boas e Bronislaw Malinowski. Foram eles que romperam com
o evolucionismo como postulado metodológico que se colocava como uma natu-
ralização do olhar ocidental sobre as demais civilizações.
Franz Boas (1858-1942) é uma referência na análise das civilizações não euro-
peias. Foi com ele que as pesquisas de campo ganharam significado singular e
passaram a orientar outras abordagens. Para ele, tudo o que se observa em uma
civilização é resultado de uma totalidade que tem que ser entendida. O que não
se pode negar, segundo o evolucionismo moderno, é que o ser humano tem um
potencial inquestionável de adaptação ao meio, seja ele qual for.
Para ele, deveria se separar a evolução econômica da cultural. Há que se
compreender que o potencial de uma civilização em explorar o meio onde ela
se encontra depende de sua capacidade de desenvolvimento que envolve uma
diversidade de elementos. Porém, não se pode generalizar em um determinismo
universal o conceito sobre um determinado grupo. As condições de encontros
culturais com certos ambientes geram condições distintas para o desenvolvi-
mento de aspectos únicos a um determinado grupo social.
Há uma racionalidade nas civilizações ocidentais que deu a elas uma condição
de supremacia sobre a natureza. Para Boas, o desenvolvimento da complexidade
ANTROPOLOGIA CULTURAL
101
FUNCIONALISMO
em uma comunidade não europeia e buscar conhecer desde seus mais impor-
tantes rituais e instituições até os detalhes dos atos e significados do dia a dia.
Malinowski conhecia a língua trobriand, o que lhe permitiu se aproximar da
comunidade e ser aceito por ela. Um hóspede aluno, como afirma o próprio
Malinowski. Foi aceito e era atento a tudo para aprender o que podia, a fim de
recolher detalhes sobre os nativos. Muito do que se compreende não é ciente ou
consciente para os próprios trobriandeses.
Uma das curiosidades sobre a história de Malinowski é sua formação origi-
nal em matemática. Ele, formado em ciências exatas, vai se deixar envolver pela
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antropologia na Inglaterra. Um dos responsáveis por sua mudança de objeto de
observação foi Sir James Frazer, um estudioso dos rituais mágicos e da religiosidade.
Porém, quando Malinowski decidu viver junto aos nativos da Oceania, revolucio-
nou o comportamento do antropólogo e colaborou para que ele constituísse um
método mais próximo às ciências naturais, por exemplo, para a observação sobre
fenômenos concretos, os quais poderiam ser mensurados. Portanto, não havia mais
a presença de um intermediário, como o viajante, o missionário, o militar ou o tra-
dutor. Agora, o estudo se dava em campo, com o etnógrafo praticando a etnologia
para, enfim, chegar a uma compreensão antropológica18.
Uma das primeiras abordagens de Malinowski
junto aos trobriandeses foi a organização dos kulas.
Eles praticavam o contato entre os nativos e os ingle-
ses, colonizadores do território. O seu papel não era
exclusivamente comercial, por mais que praticas-
sem a troca de produtos entre os trobriandeses e os
comerciantes ingleses. Eles eram a instituição que
permitia o contato do povo das Ilhas Trobriand com
os ocidentais. Uma autorização que tinha seu funda-
mento, seu reconhecimento dentro de uma cultura.
18
Essa separação das funções da investigação se deve, em grande
parte, ao trabalho efetuado por Spencer, mas também por Boas
e Malinowski. Ser etnógrafo é levantar os documentos, observar e
descrever os comportamentos, os objetos produzidos pela civilização estudada. Fazer a etnologia é avaliar
previamente esses documentos, saber separá-los para facilitar sua leitura, sua análise. Essa última fase será
executada pelo antropólogo, dar sentido e totalidade ao que se recolhe e seleciona previamente.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
103
portamento que, em outra civilização, está ligado a sua origem. Uma mesma
instituição em civilizações diferentes não cumpre a mesma função nem serve
como parâmetro de classificação impositiva. Logo, se para os ocidentais certas
práticas de povos não europeus remontam a pré-história do homem civilizado,
não significa que ela serve como comprovação do atraso ou da condenação à
marginalidade dos valores que representa19.
A CRÍTICA
19 Darcy Ribeiro, antropólogo brasileiro, que junto com Gilberto Freyre, é considerado um clássicos
brasileiros, também considerava essa diversidade como uma característica de civilizações distintas. Em suas
obras “O Processo Civilizatório” e “O Povo Brasileiro”, ele deixa claro a aculturação como uma condição
formadora do Brasil.
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“amargo” da convivência com o chamado homem branco. Vale aqui lembrar de
Benedict Andersen, um dos analistas da formação dos estados nacionais den-
tro e fora da Europa. Em cada canto onde a nação surge tem na formação de
uma inteligência os intelectuais que darão forma teórica, ideológica e cultural à
formação da pátria. A música, o romance, o folclore, a arte plástica, a religião e
o perfil nacional serão descritos pelas mãos dos intelectuais nacionais. O senti-
mento de identificação com a pátria que brotou de traços coloniais não significa
que a guerra contra o colonizador é rejeitar o amor pela obra que ele colabo-
rou na construção e a qual o nativo declara seu amor, a jovem nação que nasce
da “velha” colônia:
Numa época em que é tão comum que intelectuais cosmopolitas pro-
gressistas (particularmente na Europa?) insistam no caráter quase-pa-
tológico do nacionalismo, em suas raízes no medo e no ódio do Outro,
e em suas afinidades com o racismo, é útil lembrarmos que as nações
inspiram amor e, frequentemente, um amor profundamente abnegado.
Os produtos culturais do nacionalismo – poesia, ficção, música, artes
plásticas – apresentam esse amor com muita clareza, em milhares de
formas e estilos diversos. Por outro lado, quão raro, na verdade, é en-
contrar produtos nacionalistas análogos que exprimam temo e aversão.
Mesmo no caso de povos colonizados, que têm toda razão para sentir
ódio de seus dominadores colonialistas, é surpreendente como é insig-
nificante o elemento de ódio nessas expressões de sentimento nacional.
(...) (ANDERSEN, 1989, p.154-5).
ANTROPOLOGIA CULTURAL
105
futuro das nações que surgiram da descolonização, uma vez que estas buscaram
se espelhar no colonizador para se colocar diante do mundo organizado com
uma complexa rede de produção mundial, pois a economia vivia naquele perí-
odo o que se denominou, segundo Ianni (1999), a nova divisão internacional
do trabalho, resultado de uma expansão das empresas transnacionais ou mul-
tinacionais. Assim, ao mesmo tempo em que se buscava o rompimento com a
colonização, com a submissão militar, gerava-se uma nova ruptura de frontei-
ras. Instalava-se a cadeia mundial de produção.
Muitas vezes fechado em mundo local, em um regionalismo ou nacionalismo,
deixa-se de perceber o quanto a parte faz parte de um todo complexo. Um novo
desenho de uma sociedade mundial que integra as localidades, mas que nem sem-
pre se percebe como integrada, dependente. Nesse sentido, Octávio Ianni afirma:
Ocorre que o que é mais visível e evidente é o lugar, o local e o nacio-
nal, a identidade e o patriotismo, o provincianismo e o nacionalismo.
Ainda que problemático, esse lugar articula geografia e história, espaço
e tempo, servindo de ponto de referência, parâmetro, paradigma. São
séculos de tradições e façanhas, heróis e santos, monumentos e ruínas
cristalizados em valores e padrões, práticas e ilusões, línguas e religiões.
Sob vários aspectos, o enraizamento no lugar e a ilusão da identida-
de podem dificultar a percepção do que é outro, estrangeiro, diferente
ou estranho, assim como o que internacional, multinacional, mundial,
cosmopolita ou global. São gradações da geografia e história, do real e
possível, do ser e devir, que às vezes ultrapassam os dados imediatos da
consciência, as percepções empíricas e pragmáticas, as convicções sedi-
mentadas, as categorias elaboradas, as interpretações conhecidas(IAN-
NI, 1999, p.25-6).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Essa interferência superou em intensidade e quantidade as potências tradicionais
europeias que estiveram à frente dos dois conflitos mundiais. A corrida arma-
mentista, com a posse, pelas duas forças, de armas nucleares, e a quantidade de
tropas organizadas e preparadas para uma intervenção, era descomunal20.
Essa força organizada, e com capacidade de atuação em qualquer parte do
mundo, foi determinante para garantir o interesse das superpotências em ações
pontuais em todo o Globo. As guerras de descolonização contaram com os inte-
resses dessas forças para chegar ao seu intento. A questão era qual das tendências
ideológicas as nações recém-emancipadas adotariam, o socialismo ou o capita-
lismo. O mundo se transformou em um grande “tabuleiro de xadrez” segundo
Henry Kissinger21.
Em conjunto com as forças armadas, há uma produção cultural ideológica
em parte considerável do Planeta. Difícil encontrar um canto deste mundo que
20 Um dos dados curiosos em relação ao final da II Guerra Mundial, quando o ambiente da Guerra Fria se
organizou, é que os números de soldados das duas superpotências aumentaram, mesmo em período de
“paz”. A derrota da Alemanha tinha sido uma obra das nações aliadas, em seu conjunto militar. Contudo, ao
final da guerra, a chamada “volta para casa” não ocorreu para uma parte do corpo militar. União Soviética e
Estados Unidos passaram a convocar tropas e a organizar entrepostos militares, bases armadas em diversas
partes do mundo. Também se aceleraram os acordos mundiais. Os mais conhecidos foram a Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), liderado pelos Estados Unidos e o Pacto de Varsóvia, liderado pela
União Soviética.
21 Alemão de origem judaica, ele acabou se naturalizando norte-americano e fazendo uma carreira brilhante
na diplomacia. Foi Secretário Geral dos Estados Unidos na presidência de Richard Nixon. Além disso,
ocupou importantes posições na diplomacia internacional, negociando acordos com as forças soviéticas.
Em várias entrevistas sobre a Guerra Fria, foi de Kissinger uma das definições mais interessantes sobre
como entendê-la. Segundo ele, o mundo se transformou em um imenso tabuleiro de xadrez em que os
jogadores (Estados Unidos e União Soviética) manipulavam as peças, as nações do mundo, de forma radical,
sem acordos aparentes. Um jogo disputado com inteligência e dificuldade entre as superpotências, porém,
segundo ele, sem jamais chegar ao extremo de um “xeque-mate”, o que seria a destruição mundial. Kissinger
tinha claro, como parte do mundo, que se um dia ocorresse um confronto entre os norte-americanos e
soviéticos não haveria vencedores.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Paulo com essa especialidade. Foi também no Brasil que Lévi-Strauss descobriu
a Antropologia. Seus estudos sobre os indígenas brasileiros tiveram início ainda
na qualificação acadêmica. Sua obra, Tristes Trópicos (1955) relata sua viajem
pela região central do Brasil (Goiás, Mato Grosso e Paraná).
Na obra, é impossível não perceber sua frustração com a condição em que
se deu o contato entre os elementos nativos brasileiros e a ocidentalização. Ele
afirma que os nativos não são nem selvagens, nem civilizados, encontram-se
nessa marginalidade absurda da rejeição. O que ele detecta é o início de um des-
dobramento do que ocorreu ao longo da história dos nativos indígenas no país.
Mais do que civilizar, o processo civilizatório exterminou nativos da forma mais
torpe, os adoeceu, os deixou passar fome, eles foram urbanizados pela fome.
Ainda hoje estão nos sinaleiros dos cruzamentos das cidades, nos traços, a lem-
brança de uma floresta que não reflete mais em seus olhos tristes, espelhando o
concreto urbano.
No início de sua vida acadêmica, Lévi-Strauss foi influenciado pelo mar-
xismo. Publicou em periódicos socialistas e atuou de forma engajada na denúncia
da violência cometida contra as populações marginais. No Brasil, sua expedição,
a qual deveria durar um ano, foi reduzida em seis meses por desentendimento
com autoridades do país. Ele era acusado de “ser um olhar socialista” nas terras
dos trópicos. Voltou à França na década de 1950 e se consolidou como um dos
mais importantes teóricos da antropologia.
O estruturalismo tem em Lévi-Strauss (1983) um dos seus maiores defen-
sores. O pesquisador reorganizou uma linha metodológica clássica, na qual a
Antropologia se solidificou na crítica aos evolucionistas. Sua postura em resgatar
ANTROPOLOGIA CULTURAL
109
mas é em Mauss que encontrou seu principal mestre. Esse pesquisador valoriza
o inconsciente de uma forma intensa, para alguns críticos, de forma exagerada.
Para Lévi-Strauss (1983), os fatos sociais são uma expressão das estruturas men-
tais. Essa condição de um inconsciente coletivo, mas que se expressa em cada
elemento do grupo, é o interesse do antropólogo francês.
Ele considera, então, que há uma universalidade no modelo de pensamento
do homem. Assim, o modo de pensar dos nativos será o mesmo dos homens oci-
dentais, sendo esta uma posição que se coloca em confronto com o evolucionismo.
Como se dedicou às relações de parentesco, para ele, há uma substituição gra-
dativa do instinto na ordem familiar, fundada inicialmente na reprodução sexual
puramente, para uma ordem estabelecida sobre uma simbologia que toma o sen-
tido da vida. Dessa forma, o instinto é moldado por uma série de estruturas que se
codificam na vida cotidiana. Não por acaso, Freud é um dos pilares do pensamento
de Lévi-Strauss. Esse inconsciente que se expressa nos fatos está na construção
da linguagem. A oralidade, nessa perspectiva, é para o antropólogo francês outro
elemento vital. Outro elemento importante nas teses que defende é a dialética de
Marx, a qual versa acerca da relação com a natureza que constrói uma ordem social
determinada pela busca de superação das necessidades humanas.
Lévi-Strauss aproximou a antropologia da psicologia e a afastou da sociolo-
gia. Ele considerava que a antropologia era uma psicologia social. Na busca de
entender o inconsciente, ele inaugura uma busca importante no entendimento
da vida social. Essa é uma ação que outros pensadores também vão efetivar,
como Eric Fromm, o psicanalista, filósofo e sociólogo germano-americano, que
defendia a necessidade de compreender os mecanismos sociais pela relação que
os indivíduos estabelecem entre si. A psicologia passa a ser chave para a com-
preensão dos fenômenos sociais.
O MARXISMO E A ANTROPOLOGIA
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marxista. Seu principal discípulo foi Maurice Godelier. O antropólogo francês
buscou trazer o marxismo para a antropologia, fazendo uma releitura da superes-
trutura e das relações de produção, para assim compreender como as sociedades
se organizam a partir de uma relação de apropriação da natureza e como as cons-
tituições simbólicas acabavam por determinar uma visão contraditória entre a
expressão do valor discursivo e a relação material estabelecida.
Essa postura se confronta com a do evolucionismo e, até mesmo, com parcela
do estruturalismo e funcionalismo. Há uma construção de símbolos que servem
para harmonizar os conflitos sociais. Nenhuma sociedade em um determinado
tempo e lugar pode ser comparada com outra. É possível que isso ocorra, mas
sem cair em um determinismo. Essa é a principal arma do antropólogo para lutar
contra a acusação que recaía sobre o marxismo antropológico: o determinismo.
A complexa relação de produção em diversas comunidades tem na terra o
fundamento inicial da apropriação. Partindo desse princípio, inicia-se a discus-
são sobre a necessidade de compreensão acerca de como essa apropriação se
estabelece e como ela envolve os elementos sociais.
Uma abordagem de Edgar Assis Carvalho que trata do marxismo na
Antropologia, na Revista Perspectiva, afirma:
Alguns princípios de natureza metodológica daí decorrem: em primei-
ro lugar, que o conceito de totalidade não é mais entendido como justa-
posições e camadas de instituições fundadas na regularidade compara-
tiva, mas como sistema cuja lógica interna deve ser apreendida em suas
contradições internas, em segundo, que a análise da gênese histórica
e da evolução é sempre posterior ao entendimento da especificidade
interna. Finalmente, em terceiro, que a causalidade estrutural dos pro-
ANTROPOLOGIA CULTURAL
111
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
maior informação e poder de decisão no caso, lembrou-se da ocorrên-
cia, tanto da aparição do demônio quanto da decisão de chamar o pa-
dre. O outro engenheiro lembrava-se das dificuldades técnicas que apa-
receram com a mudança de tecnologia nas novas seções de produção
de ladrilhos, mas não se lembrava do aparecimento do demônio. Um
filho do mestre da seção de escolha confirmou-me que seu falecido pai
fizera em casa comentários a respeito da ocorrência.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
113
Emmanuel Le Roy (1995) faz uma compreensão dessa nova forma de abor-
dagem histórico-antropológica, relacionando o olhar da sociedade em dois
extremos que saem das raízes das relações que sustentam a ação social. De um
lado, encontra-se o comportamento marcado na história, o movimento do parti-
cular e do ser coletivo que ficam escondidos no que ele chamava de “porão social”;
do outro, os que repousam no inconsciente coletivo e se expressam nas ações de
cada um, o “sótão”. Em outras palavras, um dos extremos é o fato racional capaz
de ser compreendido pela pesquisa historiográfica mais objetiva, o quantitativo
e qualitativo observável, e o outro extremo, o inconsciente, o que não se quanti-
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fica, mas tem um papel determinante na conduta da ação social.
A formação dessa abordagem ficou marcada pelo encontro de Jacques Le
Goff com Claude Lévi-Strauss, o antropólogo participou como convidado do
programa de rádio do historiador francês. Na conversa que tiveram nessa oca-
sião, ficou exposto o tom do fundamento metodológico que se estabeleceu entre
os dois campos de conhecimento. Lévi-Strauss afirma que a Antropologia e a
História são uma ciência única. A segunda metade do século XX é marcada pela
proliferação de uma série de obras que coroam essa abordagem: Carlo Ginsburg
em O queijo e os vermes; E. P. Thompson em A formação da classe operária
na Inglaterra; Robert Darton em O grande massacre dos gatos. Porém, uma
coletânea de trabalhos organizados por Jacques Le Goff e Pierre Nora é a mais
marcante nessa nova corrente, os títulos que compõem a trilogia são: História:
Novos Objetos; História: Novos Problemas; História: Novas Abordagens.
A contemporaneidade será analisada pela Antropologia por meio dessa
nova metodologia, sendo que esta fará do homem ocidental o novo objeto de
estudo. Ela irá se dedicar a compreender a vida cotidiana, seus signos, sua forma
de organização complexa, entrelaçando a origem e a atualidade na instituição
social. Pensadores como Jean Baudrillard, Pascal Bruckner e Zygmunt Bauman
são alguns deles. No Brasil, quem se destaca é Roberto da Matta, Jurandir Freire
Costa e João José Reis, na atualidade. Mas não podemos esquecer os clássicos
Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Todos eles serão nossos objetos de análise nas
próximas unidades.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
115
A ESCOLA DE BOAS
22 Ainda há uma discussão profunda na atualidade sobre os processos migratórios e seus efeitos. Qual é a
condição em que o imigrante chega e como será sua convivência com aquele que se intitula “nativo”. Desse
debate podem-se tirar alguns dos principais problemas da atualidade, a desigualdade econômica regional
e as formas que se utilizam para tentar impedir os efeitos que a migração das populações mais carentes
provoca no mundo. Hans Magnus Enzensberger, autor que iremos trabalhar na próxima unidade, trata
dessa questão como o fato mais importante do começo do século XXI.
23 Hans Magnus Enzensberger, em “A Guerra Civil” (1995) faz uma análise da presença dos hispânicos nos
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Na atualidade, a obesidade é uma denúncia do que a antropometria faz do com-
portamento do ser humano. Por meio dessa observação, podemos compreender
o efeito que uma alimentação industrializada promove na espécie. Há um hábito
alimentar que está associado também à simbologia dos alimentos. A função da
alimentação culturalmente mudou. Esse é um dos tantos campos para o qual a
antropologia urbana, cultural, biológica e social irá se dedicar.
Boas atuou na luta contra o preconceito, sempre é bom frisar. Muitas vezes,
cai-se na acusação irresponsável de que ele fundamenta suas teses no preconceito,
o que é um absurdo. A antropóloga Margarida Maria Moura estudou o trabalho
de Boas e recuperou o conhecimento sobre um dos mais importantes cientistas
sociais do século XX. Sobre a questão da luta contra o preconceito racial na his-
tória de Franz Boas, ela afirma:
Com sua atuação cada vez mais importante nos comitês dos direitos
civis, que procuravam contra-arrestar a crescente entrada de idéias fas-
cistas e mesmo nazistas nos Estados Unidos, o antropólogo desempe-
nhou, em 1940, papel dos mais importantes de mediação diplomática
por ocasião do chamado episódio Paul Rivet, quando pressionado pelo
governo de Vichy. Na França ocupada, anos mais tarde, teria de se de-
cidir sobre a sua mudança para a América, fosse para o México, fosse
para os Estados Unidos, o que finalmente ocorreu. Boas, nesse momen-
to, voltou a fazer uso extensivo de suas forças ainda notáveis, apesar de
diminuídas na sua amplitude e duração. Foi justamente aos 80 anos que
sua longa carreira científica chegou ao apogeu, em 1938.
Estados Unidos na atualidade. Para ele, alguns consideram esse fato como uma invasão. Essa migração
tomou o território estadunidense, mudando suas características originais. Mais do que em toda a sua
história, o país é fruto de uma imigração. Se no passado foi desejada, pela maioria da população, hoje é
vista com desconfiança. O que é irônico, os que apresentam maior preconceito com o imigrante é o recém-
chegado.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A jornada vivida pela Antropologia até seu reconhecimento como ciência não
foi fácil. Sendo um produto da expansão ocidental e estando na linha de frente
das conquistas efetuadas pelos europeus diante de populações condenadas a se
submeterem, o Antropólogo tinha dilemas como: “Qual é a finalidade de sua
ciência?”, “Estaria a Antropologia condenada a um fim, quando não existissem
mais povos não europeus?”.
A conquista promovida pelo ocidente encurralou o antropólogo para ser
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Considerações Finais
1. A expansão ocidental proporcionou um ambiente para a formação da Antro-
pologia como ciência. Dela, nasceu às posturas “evolucionistas” dos primeiros
pensadores, o que caracterizou, para os críticos dessa postura, uma reafirmação
da supremacia Ocidental. Sendo assim, reflita por que isso ocorreu.
2. Dois pensadores se destacam como clássicos da Antropologia: Franz Boas e Ni-
colau Malinowski. Os dois apresentaram posturas distintas em relação à obser-
vação das civilizações e dos homens que a compunham. Eles defenderam a
pesquisa participativa. O que isso significa? Escreva com suas próprias pa-
lavras.
3. O século XVIII foi marcado por um novo conceito de homem, uma ideia de or-
dem racional que, colocou os homens em uma condição de igualdade natural:
somos todos seres humanos. No entanto, essa condição será abordada de forma
diferente por vários estudiosos. Sendo assim, leia as afirmações abaixo sobre
o modo como Hegel entendia as várias civilizações humanas e de que forma
isso foi importante para a formação da Antropologia enquanto uma ciência
que a princípio servia para detectar as diferenças entre os europeus e os
“outros”:
I. – Hegel entendia que as diferenças entre as civilizações se centravam no po-
der que elas tinham sobre a natureza e, portanto, em sua capacidade de se
organizarem. Quanto mais organizada e racional fosse uma civilização, mais
“evoluída” ela seria.
II. – Para Hegel todas as civilizações pertencem à espécie humana, desse modo,
não podemos emitir classificações para diferenciá-las.
III. – Hegel entendia que por mais que as civilizações sejam todas formadas por
seres humanos, elas estariam vivendo estágios diferentes.
IV. – As premissas de Hegel foram fundamentais para a formação de uma Antro-
pologia que nascia enquanto uma ciência que buscava estabelecer diferenças
entre uma Europa “civilizada” e os demais povos.
É correto, apenas, o que se lê em (enumere somente opção):
a. ( ) I e II.
b. ( ) I, II e IV.
c. ( ) I, III e IV.
d. ( ) I, II e III.
e. ( ) I, II, III e IV.
MATERIAL COMPLEMENTAR
Olhar Distanciado
Claude Lévi-Strauss
Editora: Martins Fontes
Sinopse: neste livro, Claude Lévi-Strauss busca esclarecer seu
método, sua forma de abordar temas como rituais místicos, família
e parentesco. Essa obra é o resultado de um longo trabalho de
observação de comunidades nativas, incluindo aquelas com as quais
conviveu no Brasil.
Lévi-Strauss, um estruturalista, fortemente influenciado pelo
marxismo, coloca sua experiência de pesquisador e esclarece o
método de pesquisa participativa que defende.
Dersu Uzala
Diretor: Akira Kurosawa
Ano: 1975
Sinopse: o filme faz um relato sobre as expedições russas
para a região do Lago Volga, na Sibéria. Vladimir Arseniev,
comandante de duas expedições, se relaciona com nativo
Dersu. A história relata a amizade que se desenvolveu entre
esses dois personagens e, muito mais que isso, a relação do
homem com o ambiente natural. A diferença do conceito
entre a forma como o homem nativo, Dersu, e o ocidental,
Capitão Vladimir, se posicionam diante da exploração do meio
ambiente.
A obra é resultado do livro de Vladimir Arseniev, o capitão russo,
que relata sua relação com DersuUzala e a convivência com
os homens da natureza, com o ambiente que gerou uma forte
admiração com o lugar. Uma natureza que as forças ocidentais
que o capitão Arseniev representou.
Material Complementar
Professor Me. Gilson Aguiar
A CRISE DO HOMEM
III
UNIDADE
OCIDENTAL
Objetivos de Aprendizagem
■■ Perceber a importância da Antropologia como ciência para a
compreensão do homem contemporâneo.
■■ Entender os principais dilemas da vida urbana e como se tem a perda
da racionalidade e da complexidade da sociedade atual.
■■ Ter uma postura crítica em relação ao homem cultural
contemporâneo.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ A crise de identidade da Antropologia como ciência
■■ O Estudo do homem contemporâneo e seus dilemas
■■ Os novos rituais de consumo e a simbologia como diferença
125
INTRODUÇÃO
Olhar para si não é uma tarefa fácil. Quando a Antropologia se viu diante da
possibilidade de desaparecer o seu principal objeto de estudo, as civilizações
não ocidentais, voltou o olhar para si mesma. Estudar o Ocidente passou a ser
o interesse dos antropólogos. O desafio de olhar o ocidente por uma ciência
constituída na busca de justificar sua superioridade. Hoje, o que chamamos na
Antropologia do “olhar para si mesmo” é um desafio. Entender o homem oci-
dental com os mesmos critérios que se buscou entender os nativos australianos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Introdução
126 UNIDADE III
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interpretação que encontramos na mídia.
Muitas das marcas de produtos mundiais que encantam os chineses tam-
bém são desejadas por nós. Elas provocam e simbolizam uma padronização do
mundo. Porém, contraditoriamente, possuir produtos é buscar singularidade.
Vivemos a dualidade entre a identificação com a massa e a nossa busca de uma
particularidade que nos construa como únicos. Mas, por incrível que possa
parecer, os objetos de consumo permitem isso. Essa identificação de particula-
ridade com um bem industrial ou um serviço produzido em larga escala. Todos
desejam a mesma coisa, mas ter o objeto desejado nos faz diferentes, cobiçados.
Nossos rituais ficaram massificados, ao mesmo tempo em que se comuni-
cam com cada indivíduo. Praticamente, os bens de consumo que se encontram
nas prateleiras de um supermercado, em uma vitrine de shopping center, dese-
jados por uma multidão, são adquiridos pelo sentimento, principalmente, que
despertam em cada um. Claro que a compra de um determinado produto é tam-
bém uma escolha racional, mas seu principal apelo para aquisição está longe de
uma racionalidade.
Nas cidades, há uma identificação com elementos que nos permitem ter um
pertencimento em meio à multidão. O camponês e a vida agrária são reproduzi-
dos na cidade em forma de produtos cujas embalagens lembram a vida bucólica.
Mas, é apenas no rótulo que a foto romântica dos campos é expressa, sua ver-
dadeira origem não passa, nem de perto, pelo que a aparência busca associar.
Essa sociedade cheia de simbolismos e difícil de ser entendida com uma
racionalidade lógica é hoje o campo da Antropologia. Os rituais da sociedade
urbana são é um mar de objetos infinitos à espera de serem entendidos.
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A expedição mais simples sobre qualquer território torna-se, para alguns, a alcu-
nha de “cidadãos do mundo”. Fazer turismo virou experiência de vida. Por isso, se
aceita-se com facilidade a discussão de que a paz mundial é possível, e conviver
com a diferença é uma possibilidade ao alcance de todos, se ela não aconteceu
ainda é porque esbarra na “má vontade”. Estamos diante da falta de dimensão da
verdadeira diferença e não se conhece com clareza nem o território onde se vive.
Os seres humanos estão se movimentando no que Mar Augé (1994) chama
de “não lugares”, aqueles espaços onde não há permanência, mas uma mudança
constante: os supermercados, os shoppings, os aeroportos, as casas de espetá-
culo, o restaurante, a loja, a livraria etc., ou seja, a grande maioria dos lugares
onde convivemos. Podemos considerar que uma nação, seus pontos turísticos
e sua diversidade exótica acabam por se tornar um não lugar. Eles estão sem-
pre se movendo. Há sempre algo novo a ser instalado no ambiente que se deseja
impressionar. Se no museu a exposição é trocada para permitir que novos ele-
mentos históricos e culturais possam nos dar uma noção de nossa civilização,
os ambientes de consumo, como shoppings, aeroportos, supermercados, maga-
zines estão a serviço de uma exposição de bens que são raros, mas foram feitos
para serem consumidos pelos visitantes consumidores.
Raros são os ambientes onde a identidade social é constituída de forma
“definitiva”, dentro de condições duradouras. Lugares onde se estabelecem as
permanências e a condição de uma existência humana do princípio ao fim. Os
lugares onde o conhecimento científico, onde as técnicas, a arte, ou a grande des-
coberta que mudou as nossas vidas estão em exposição.
só pessoa. Essa mesma pessoa, quando sai, encontra em todos os lugares praze-
res, pequenos objetos e serviços, todos simbolizados e voltados ao personalismo.
Se quisermos adquirir os objetos de desejo, necessitamos única e exclu-
sivamente de um cartão, o chamado “dinheiro de plástico”. Ele nos estimula a
aquisição sem sentimento de culpa. A aquisição, por sinal, se transformou em
nossa grande meta na vida, pois ela nos garante a busca da perfeição dos obje-
tos. Reproduzimos nos bens que adquirimos um certo ardor e perfil de alguém
perfeito para encobrir nossa humanidade imperfeita. Nunca foi tão insano e
insensato ser humano.
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O CONSUMO NAS CIDADES
As cidades são o ambiente do ser humano cercado de objetos. É nela que convi-
vem mais da metade das pessoas que habitam o Planeta. As urbes são um lugar
confuso, cheio de contradições, onde se desenrola parte considerável dos pro-
blemas sociais. A miséria e a riqueza podem conviver lado a lado nos espaços
urbanos inclusive, muitas das cidades de grande porte apresentam essa realidade
pois são fatiadas e recheadas de lugares dos sonhos e ambientes de pesadelo.
Não quero fazer aqui uma crítica ao planejamento urbano, de forma alguma.
É importante entender a cidade. É fundamental compreender o que ela significa
e buscar fazer da convivência urbana uma condição de vida melhor. A cidade é
feita de pessoas, cidades devem ser para pessoas. É importante entender que a
cidade deve ter o sentido de coletividade que ela representa e é, na sua essência,
a construção de muitas mãos. Não há outra definição para a cidade que não seja
o encontro. Porém, o que assistimos em grande parte dos espaços urbanos é a
busca de garantir a privacidade no ambiente coletivo. Podemos, nesse sentido,
observar o crescimento das empresas de segurança e dos aparatos de vigilân-
cia dentro e fora dos ambientes privados. Os “inimigos” estão próximos. A luta
de “todos contra todos” é na cidade, para muitos, uma regra. Por isso, “vigiar e
punir” está incorporado a vida urbana como um sinônimo de “segurança”. Para
isso, as cidades se transformaram em um ambiente cinematográfico: “sorria,
você está sendo filmado”.
Quando a ocidentalização iniciou sua longa jornada, ela levou o homem europeu
para os cantos mais remotos do Planeta. A viagem marítima era uma aventura
que, em intensidade, pode ser comparada à dos astronautas diante de um espaço
incerto. Esses aventureiros, então, conquistaram novos territórios se impondo
sobre o outro, o estrangeiro.
Nas grandes navegações, o mapa recortava um mundo que não era conhe-
cido com precisão. Os desenhos cartográficos que orientaram as viagens de
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a conquista planetária, marcada pela violência, pela destruição, pela resistência,
pela ocupação, pela diversidade espalhada e autônoma nas diversas civilizações no
Mundo, foi rompida e se fez das marcas do antigo “estranho”, “bárbaro”, “nativo”,
“selvagem”, uma ilusão simbólica que nos cerca associadas a produtos. A diver-
sidade de produtos nas prateleiras dos mercados tem por detrás a mesma lógica
do ambiente aparentemente estranho do documentário televisivo ou reproduzido
nos sites dentro dos ambientes virtuais. Assistimos seguros à exposição harmô-
nica da história de civilizações extintas, seus mistérios, suas características, sua
eliminação, sem nos sentirmos “culpados” ou relacionados com o que vemos.
Se no passado havia tribos remotas, elas ocupavam um espaço único e repre-
sentavam a possibilidade exclusiva de se conhecer determinada tribo somente se
fossemos onde elas estavam. A viagem e o viajante eram necessários para poder
se sentir o cheiro, o gosto, e para se colocar em frente ao estranho. O convívio
exigia a alteridade. A relação com o estranho causava o sentimento de estra-
nheza, havia, portanto, a dificuldade de compreender os gestos, as intenções e
os elementos que constituíam a vida de quem não se conhecia. Não por acaso a
destruição de populações nativas se justificou das mais diferentes formas. A ine-
xistência da alma, a animalidade, a perversão e a maldade foram algumas das
justificativas que legitimaram extermínios. Teorias de superioridade, sejam elas
civilizadoras ou raciais, tomaram formas diversas e apontaram para uma única
direção, o extermínio do outro, do estranho.
Hoje, a intolerância em relação ao que se chama de estranho se multiplica.
Na Europa, diante das câmeras de televisão, faz-se associação de pessoas com
animais, joga-se a banana ao jogador de futebol, ele é chamado de macaco diante
pobres. Despertam uma guerra cheia de símbolos. Quantos andam por aí com
as marcas do nazismo estampadas nas roupas ou tatuadas no braço. Exigem res-
peito e estão prontos para combater por uma causa que desconhecem. Diferente
do passado, eles não conhecem a ideologia que seus símbolos representam.
Na antiguidade, assim como entre os povos que habitavam diferentes par-
tes do Planeta, o uso da lança demonstrava a clara condição de caçador. Ter a
arma de sobrevivência anunciava simbolicamente o poder que o seu portador
tinha de tirar a vida. Não por acaso, o acasalamento estava associado à condi-
ção de poder garantir a própria sobrevivência. A pintura no rosto ou no corpo
do caçador demonstrava o que sua habilidade comprovava com certeza, ele era
tudo o que os símbolos associados a ele indicavam, um vencedor, o herói. Hoje,
a simbologia não significa essa condição. O que expressa a vitória pode estar nas
mãos de quem não tem nenhuma habilidade ou capacidade de competir. O ati-
rador de bananas inveja o sucesso do homem que chama de “macaco” por ter
feito sucesso no mundo simbólico dos falsos homens civilizados.
Criamos a facilidade de manipular em nossas arenas o encontro e o desencon-
tro. Ao mesmo tempo em que promovemos os grandes feitos de uma sociedade
que avança e ganha espaço como uma aparente comunidade, ela também pro-
move as ações de violência com proporções tão intensas como quanto as pessoas
se relacionam ou interdependem umas das outras. Na sociedade industrial con-
temporânea, há uma cadeia de produção da vida humana em larga escala. Ao
mesmo tempo, as relações estabelecidas entre os indivíduos se intensificam, inter-
mediadas por meios de comunicação. Nunca foi tão fácil “fazer um amigo”, mas
ele é, quase sempre, virtual.
Outra interdependência que marca nossa vida nas cidades e nossa relação
com os meios de comunicação é sermos testemunhas em tempo real da fata-
lidade. Ela é transmitida para todo o mundo em tempo real. Ao ligarmos a
televisão ou ao acessarmos um site de notícias, as informações vêm em “tempo
real”, dando notícias do mundo distante. A ação de um homem só ganha noto-
riedade mundial se for propagada na mídia eletrônica, ou nas emissoras de TVs
que percorrem o mundo via satélite. Esse ambiente de comunicação é constante,
contudo, como falamos, é virtual. Ele se expressa na transmissão da propagada
carregada de mensagens que nos chegam aguçando quase todos os nossos sen-
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tidos e promovendo o nosso desejo. Essa promoção da fantasia tem um efeito
anestésico sobre a condição real.
A nova forma de organização e relação social contemporânea tem seus sím-
bolos, seus rituais. Onde eles se sustentam? Como entender o significado das
instituições contemporâneas? Quantas instituições mudaram ao longo do tempo,
o que é da própria natureza da vida em sociedade, mas as mudanças na atua-
lidade parecem rápidas e provocam efeitos na vida em sociedade. Debruçar-se
sobre essa sociedade para entendê-la é o desafio ao qual a Antropologia se dispôs.
Uma crise se instalou na Antropologia quando o processo de mundialização
da produção se ampliou. Após as duas grandes guerras mundiais (1945), se inten-
sificaram-se os meios de integração da economia, das relações, das migrações,
dos produtos, dos símbolos. Os meios de comunicação tiveram nessa integra-
ção um papel crucial. Cada canto do mundo se tornou uma parte integrante de
um caleidoscópio que se movimenta e gera mudanças diversas dentro de uma
engrenagem planetária. Nem todos são ligados a ela da mesma forma, mas com
maior ou menor intensidade recebem seus efeitos.
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e mensagens associadas a bens de consumo oferecidos pelas campanhas publici-
tárias. Elaboradas com toda a inteligência e conhecimento sobre o ser humano,
elas aguçam a busca pelo surpreendente, pelo que seduz, pela “inovação” que
falamos anteriormente. Queremos estar em um estado permanente de paixão
sem apego permanente1, isto porque tudo é descartável.
Parte considerável desta capacidade de influência que o ambiente de con-
sumo e dos meios de comunicação exercem sobre o ser humano na atualidade
está no conhecimento desenvolvido para entender o comportamento individual
e coletivo. Saber detalhadamente os elementos que estimulam as pessoas, o que
elas gostam, onde gostam de estar, quais os seus principais objetos de desejo,
com quem gostam de estar, são questões feitas e respondidas para atender a uma
meta, levar ao consumo, mas isso tem sua origem.
Hoje há uma busca incessante pelo novo, ao mesmo tempo em que se propaga a doença dos acumuladores.
1
Os fósseis eram, no passado, o resquício de civilizações e pessoas cujos objetos deixados são estudados
pelas civilizações posteriores. Nós, agora, temos empilhado nossos fósseis enquanto estamos vivos. O que
“ontem” era a novidade que diferenciava o indivíduo dos demais agora repousa em uma pilha de rejeitos,
de resíduos. Agora, a questão do “lixo” se transformou em um dilema apocalíptico. Vamos morrer afogados
nos produtos industriais que produzimos alguns anos antes e que tiveram pouco tempo de vida, mas o
bastante para saírem de nossos sonhos, serem usados e descartados.
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mental na busca do que se deseja consumir, já o compromisso com a realidade
não faz parte do “pacote de interesses do ser humano”. Se ao se falar dos nativos
da África e América, dos séculos XVI ao XIX, a literatura fantástica promovia
a criatividade literária, as obras literárias da atualidade estão desprendidas de
uma existência, não necessitam ser comprovadas, apenas sentidas. É a emoção
fantasmagórica ou fantástica.
Hoje, nas tribos indígenas, os chamados nativos se vestem com os trajes de
seus antepassados para promover o espetáculo ao visitante que se encanta ao
olhar o espetáculo que se desdobra no palco do teatro e acredita que o que está
presenciando é uma parcela da realidade cotidiana desses indígenas. Logo após
a encenação, o mesmo nativo coloca suas roupas ocidentais e se comporta como
a plateia. Onde repousa a cultura indígena que se quer proteger? Ela é apenas um
ambiente gerado para promover sensações, uma extensão do “shopping a céu
aberto” que promove a preservação que encanta e se descompromete em enten-
der a realidade por trás da cortina.
Os indígenas estão cada vez mais urbanos. Eles crescem na paisagem urbana
como fruto de uma migração que se acelera e que se coloca como constante.
Parte considerável dos nativos que vemos circulando pelos espaços urbanos no
Brasil são reflexo da falta de condições de sobrevivência nas reservas. Para com-
plementarem a renda ou mesmo garantir a sobrevivência, eles percorrem os
espaços urbanos, vendendo produtos de seu artesanato, adaptado para encantar
e pouco expressa a identidade de sua comunidade, a qual não existe em grande
parte do seu dia a dia.
Não é por acaso que os indígenas que assumem sua identidade no Censo
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em sua maioria, vivem
entre a população marginal e sofrem as consequências disso. Em um dos cri-
mes mais polêmicos do país, jovens atearam fogo em um indígena, pois tinham
“confundido” o herdeiro da identidade nativa com um mendigo. Esqueceram
na escola de ensinar sobre a condição dos nativos na atualidade para que fosse
rompida a fantasia que repousa na mente da maioria da população do país, a
que ainda acredita que os indígenas vivem como aqueles que Cabral conheceu
na sua chegada ao Brasil.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
expressa e deseja, há uma ordem de
sentido da vida humana. Por isso,
é importante entender a linguagem
como uma construção humana e
resultado da consolidação da vida em
sociedade. A linguagem só chegou a
condição atual nas sociedades urba-
nas após uma ampla rede de relações
sociais terem se organizado e serem
integradas por meio da comunica-
ção que nos acompanha por todos
os lugares.
Hoje, a linguagem se tornou complexa e capaz de associações também com-
plexas, o que aumentou a capacidade de informação ou deformação da mensagem
com a manipulação de símbolos.
Ao mesmo tempo em que a mídia constituiu um campo novo do conheci-
mento para os cientistas sociais, a semiótica, também gerou um empobrecimento
dos sentidos e suas generalizações. Os significados de determinados códigos neces-
sitavam de um determinado ambiente para ser entendidos, agora eles podem dar
um significado aos ambientes que não têm vínculo com as relações que origina-
ram sua formação. Se buscarmos nas marcas dos produtos suas associações nas
relações sociais, teremos bons exemplos das distorções simbólicas a que assisti-
mos todos os dias nos comerciais ou lemos em mensagens publicitárias.
amplo leque de análises. Hoje, autores como Umberto Eco e Roland Barthes,
seguidores de uma visão mais ampla da semiótica, levam em consideração
uma reflexão mais psíquica e fundada no inconsciente, diferente de Peirce,
que era muito mais próximo de neopositivismo, o qual se desenvolveu no
Círculo de Viena.
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aproximaram-se entre si e afinaram seus campos de conhecimento. Seus inte-
resses e objetos se fundem e geram facetas para as quais uma única perspectiva
de análise não se mostra capaz de dar uma resposta, se é que ela existe. Há um
emaranhado nas relações humanas da sociedade contemporânea. Há inúmeros
significados de elementos inteligentes elaborados racionalmente para envolver
a massa. O que aparentemente se parece com uma obra do acaso, não o é. Nada
do que estamos presenciando na ambientação dos “não lugares”, como afirma
Marc Augé (1994), é obra do acaso. Esses significados elaborados distorcem e
recriam o sentido da existência. Umberto Eco, ao tratar a linguagem como essa
relação entre a mensagem e o que se lê, quer denunciar a cumplicidade.
Muitos dos pensadores contemporâneos, utilizando a linguagem ou não,
buscam entender esses valores dominantes expressos nas mais diferentes for-
mas e sentidos que as relações sociais estabelecem. Estamos sempre à procura
do significado de tudo o que tem a nossa volta, acreditamos na lógica fundada
em um princípio comum.
A linguagem pode nos fazer entender os símbolos, seus significados e sig-
nificantes. Entre a boa prática e o elemento negativo a ela, seu oposto, há uma
distância onde só a irracionalidade poderia simplificar e anular os efeitos de
oposição, resolvendo toda a contrariedade em um passe de mágica. Um determi-
nado produto, mesmo que associado publicitariamente às práticas sustentáveis,
existe como fruto da apropriação da natureza, de sua transformação, destruição e
negação. Não é por acaso que colocamos a moça saudável, de corpo esbelto, con-
sumindo um alimento com alto teor calórico. A negatividade estimula a compra
do bem maléfico para aqueles que buscam o resultado oposto às consequências de
e riscos, caçar o animal selvagem. Ele é homenageado pela sua tribo quando
chega com o seu troféu. Quem duvidaria de sua coragem?
Agora, imagine que esse caçador ficou deitado à sombra de uma árvore, espe-
rando um tempo infinito e temendo os animais selvagens e a possibilidade de
ser devorado por eles. E aí, em suas andanças seguras, depara se com um animal
morto. Ele perfura o animal com sua lança, chega com ele em sua aldeia e é con-
templado como um vencedor. Esse falso caçador terá sua glória, mas não fez por
merecer as honrarias lançadas sobre ele. Colhe frutos que não plantou, nega o
esforço e reforça o valor simbólico da vitória. Nossos falsos heróis da atualidade
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são assim. Nada fizeram, mas são contemplados pelos símbolos que ostentam,
os quais foram adquiridos sem esforço nas prateleiras do mercado.
Nos espaços urbanos, os lugares estão carregados de mensagens publicitárias
e de associações de objetos e marcas; elas cercam o ser humano com linguagens,
associando os mais diversos sentidos. Quanta simbologia nos cercam. Como
esses símbolos são construídos? Qual é o efeito que geram? Perguntas relevantes
para o homem da atualidade perdido em meio a tantos significados e signifi-
cantes, porém, sem saber qual o sentido real da lógica da sua existência. É nessa
abertura, nas brechas da ausência de um sentido da existência, que o estudo da
semiótica ganha importância dentro do campo antropológico.
Para termos uma dimensão do que significa o estudo dos símbolos na con-
temporaneidade, faz-se necessário o encontro entre dois elementos vitais, um
deles é a linguagem e o outro é a compreensão da existência, quem sou e como
construo este sentido na vida em sociedade. A forma como organizamos nos-
sas ideias é estimulada constantemente pelas experiências em nossas relações
concretas. Ordenamos nossas ações subjetivamente em uma escala de valor no
sentido de uma causa e efeito. Conforme vamos experimentando nossas ações,
vamos reformulando o sentido da expectativa de uma “nova” experiência. A
existência se define por meio dessas cadeias de experiências vividas, que são
construtoras de um sentido na condição presente e buscam realizar um resul-
tado com uma ação futura.
Percebemos, então, que a simbologia é uma expressão de experiências e uma
associação com as intenções. Associam-se carros de luxo, roupas sofisticadas e
bebidas raras ao poder aquisitivo, pois há uma experiência vivida ou simbolizada
A PEDAGOGIA DO CONSUMO
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A relação entre a semiótica, a antropologia e a economia é elemento importante
para a sociedade industrial contemporânea. Estudos sobre as relações sociais
dentro de determinados ambientes, além da própria relação com a disposição do
ambiente, são vitais para o desenvolvimento de estratégias de mercado. As cam-
panhas publicitárias têm se alinhado com uma propagação midiática eficiente.
Em todos os lugares onde os seres humanos estão, há a presença de símbolos
de produtos associados a marcas. Esses elementos geram uma leitura que indu-
zem ao consumo.
As cidades, espaço ao qual recorreremos a todo o momento neste livro, são o
campo de encontro dos seres humanos, onde se concentram, organizam-se e for-
mam suas vidas. Nela, apresentam-se os rituais sociais, as relações de tensões e o
centro de decisões política e econômica do mundo. As grandes cidades se trans-
formaram em pontos de referência para o que se propaga em todo o Planeta. As
grandes capitais passaram a ter importância na vida de toda uma nação. Algumas
das grandes cidades mundiais passaram a ter importância estratégica tão ou mais
importante que as nações onde estão inseridas. As metrópoles, algumas chama-
das de megalópoles, pela grande quantidade de pessoas habitando seu espaço,
têm um papel decisivo na economia e na geopolítica mundial.
Algumas grandes cidades se transformaram em referência de conceito urbano,
de condições de vida. Há, nessas grandes metrópoles, um ambiente de civilização
mundial. Elas estão carregadas de marcas, símbolos, hábitos, propagação de valo-
res da cultura de massa. Por isso, a simbologia urbana universalizou conceitos.
Comentamos anteriormente sobre as diferenças que habitam o ambiente
urbano. O mundo das cidades é um mundo de desigualdade. Claro que não é em
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Na contração dessa condição, temos a propagação de uma sensação de satisfa-
ção pessoal. Bastamo-nos, e pronto.
Essa construção particularizada dos significados dos elementos que nos cer-
cam começa na infância. Os rituais de apresentação dos sentidos humanos aos seus
novos componentes são feitos com esmero pelo particularismo. Organizamos o
quarto para o bebê se sentir senhor de um universo que gira a sua volta. Essa pro-
pagação da satisfação rápida, imediata e constante não irá se apagar ao longo da
vida. Amar é contribuir para que os símbolos falem de um sentimento que não é
construído nos gestos concretos da relação com as pessoas. A emoção é simbolizada
pelos objetos associados a mensagens publicitárias de amor, inteligência, compre-
ensão, combate ao preconceito, preservação etc. Por qual motivo construir um ser
humano, fazê-lo pensar? Os objetos são mais humanos e inteligentes que as pessoas.
Voltamos a lembrar dos caçadores e suas pinturas, suas marcas, seus símbolos.
Essa simbologia representava a realidade construída concretamente. A simbolo-
gia não sobreviveria a exigência de comprovação. Na noite, quando jovens saem
para curtir seus visuais de homens e mulheres adultos, o que estamos vendo na
aparência sedutora e amadurecida não é a realidade. É apenas um ritual carre-
gado de gestos e símbolos, os quais comprovam o efeito pela crença na fantasia
como realidade por todos que compartilham o mesmo lugar, que se relacionam
com objetos que idolatram, os que se alimentam de uma ilusão do espetáculo.
Hoje, a condição existe porque os símbolos a constroem. O prestígio, a honra,
o sentimento de vitória, não são geradores dos símbolos, mas os símbolos é que
geram os vencedores, como se possuir o troféu fizesse do seu detentor um vence-
dor, sem nunca ter participado de qualquer competição. A verdadeira competição
faz dela uma caçadora, porém, lhe dá a noção de manuseio do objeto que é neces-
sária para poder iniciar sua vida e sobreviver. Hoje, brincamos eternamente com
os objetos sem ter a obrigação de dar a eles uma função. Mesmo adultos, continu-
amos no centro da aldeia, manipulando objetos sem o compromisso de crescer e
dar um sentido maduro a nossa existência. A eterna criança (BRUCKNER, 1997).
Desmaterializamos a construção da identidade cultural na atualidade. O
que já foi o resultado de uma condição de produção humana, agora, está asso-
ciado a um emaranhado de símbolos trabalhados visualmente e associados a
informações e mensagens de efeito, as quais manipulam os sentidos por meio da
manipulação do formato dos produtos, do cheiro e do som. Readequamos todo
o conhecimento sobre a percepção humana para que tenhamos o controle dos
efeitos que o mundo pode gerar na massa. Porém, a massa carregada de símbo-
los, em determinados momentos, fica imprevisível. Acredito que a violência a
nossa volta, por mais que esteja associada aos hábitos humanos, expressa uma
nova forma de se conceber o desejo de extermínio do “outro”. Particularizamos
interesses, dessa forma, somos exigentes na convivência, queremos que os que
estão a nossa volta cumpram o roteiro que estabelecemos, caso isso não seja
feito, podemos eliminá-los.
Os assassinatos dentro do ambiente familiar demonstram essa nova sim-
bologia da violência. Os pais sustentam os filhos, mantêm suas vidas materiais.
Porém, tudo isso está simbolizado no cartão de crédito, na conta corrente, no
dinheiro de plástico, nos bens materiais. Onde está o ser humano por trás de
tudo? Ele desaparece. Muito dos extermínios realizados pelos filhos para ficar
com o patrimônio dos pais está ligado à falta de entendimento do papel da
produção da vida atrás dos bens de consumo. Quando pais exterminam filhos,
o extermínio de uma escolha minha (filhos) tem o mesmo peso de me desfazer
de um determinado produto. Não tenho tolerância para conviver com a abne-
gação dos prazeres particulares. Se o rebento se coloca diante do meu caminho
para satisfação da minha vontade pessoal, ele será eliminado.
O mais engraçado em relação aos dados da atualidade é que a sociedade
está ficando mais velha. O número de jovens está diminuindo, e o futuro aponta
para o predomínio de pessoas que estão na terceira idade. Porém, os mais velhos
desejam rejuvenescer e permanecer na juventude. Não se abre mão da adoles-
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cência assim tão facilmente. A felicidade repousa em não deixar o tempo passar,
ou melhor, em se manter eternamente jovem a qualquer preço. Não estamos nos
referindo ao cuidado com o corpo, mas à manutenção de nossa eterna juven-
tude mental. As emoções do adolescente e sua irresponsabilidade sobre os atos
agora estão eternizadas no adulto jovem.
O desejo da eternidade, de preferência da juventude eterna, é fruto de uma
educação. Uma complexa cadeia de estímulos que constroem uma percepção
lógica do mundo fundada na particularidade, no “eu mereço” viver tudo sem
ter arrependimento de nada. Esses objetos e ambientes estimulantes nos cer-
cam por todos os lados e constroem uma lógica perversa por meios eficientes.
Os ambientes produzem com intensidade o estímulo à particularidade, tradu-
zem os desejos mais tolos em necessidades vitais a serem atendidas a qualquer
preço, sob pena de pagarmos caro por não realizá-las, uma infelicidade eterna.
Todos temos o direito a uma justificativa para nossos atos, vontades, interesses
e, principalmente, erros. Erros são dados como parte de um direito natural ao
qual todos são sujeitos a desfrutar e a ter que aceitar em nós como uma condição
natural. A exceção virou regra e para garantir que esta seja cumprida, ganham-
se campos de investigação novos. Damos direito ao particular por incapacidade
de entender a coletividade.
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(1964 a 1985) a promessa de que o Brasil seria a potência do futuro foi susten-
tada no crescimento do parque industrial. Na multiplicação de indústrias de bens
duráveis, parte delas pertencentes a rede de empresas multinacionais. As chami-
nés das fábricas já foram um símbolo de modernidade, tanto quanto a foice e o
martelo foram o símbolo do comunismo. Nos dois casos não são mais. As chami-
nés poluem e o proletário já não utiliza a foice e o martelo com tanta constância.
Octávio Ianni, em sua obra “A era do globalismo”, define assim a ocorrência
dos milagres econômicos em alguns países do mundo:
A relevância do trabalho, em geral e em suas formas particulares e sin-
gulares, começa a revelar-se quando se reconhece que o capitalismo
transformou o mundo em uma espécie de uma imensa fábrica. Em
relativamente poucas décadas, principalmente após a Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), a industrialização espalhou-se pelo mundo. A
época da Guerra Fria (1946-1989) foi também uma época de desen-
volvimento extensivo e intensivo do capitalismo no mundo. A contrar-
revolução mundial embutida na Guerra Fria favoreceu a criação e o
desenvolvimento de indústrias em nações subdesenvolvidas, agrárias,
periféricas, do Terceiro Mundo. Incialmente desenvolvera-se políticas
de industrialização substitutivas de importação e, depois, de industria-
lização orientada pela a exportação, sendo que em vários casos combi-
nam-se as duas políticas. Em poucas décadas, muitas nações asiáticas,
latino-americanas e africanas ingressaram no sistema industrial mun-
dial. As empresas, corporações e conglomerados transnacionais desen-
volveram-se e generalizaram-se. Intensificou-se o movimento de capi-
tal, tecnologia e formação de trabalho, Formaram-se e expandiram-se
as alianças estratégias, os centros e os sistemas decisórios. Emergiram
as cidades globais, com elas as polarizações fundamentais da sociedade
global, muitas vezes lugares privilegiados das estruturas globais de po-
der (IANNI, 1999, p.20).
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No século XIX e na primeira metade do século XX, os movimentos urbanos
demonstraram os efeitos da industrialização nos países ricos com uma concen-
tração populacional desabituada ao espaço urbano, diferente do que ocorreu
em algumas das cidades que cresceram com a formação industrial posterior à
expansão dos parques industriais. Nelas, a migração campo cidade se deu tar-
diamente, além de conviver com um intenso processo de migração. Os conflitos
sociais que existiam nas sociedades agrárias, por muitas vezes, migraram para o
campo e geraram segregação disfarçada de novas simbologias4.
2
O processo de abertura dos mercados das antigas colônias mercantilistas foi fundamental. Se observarmos,
a partir dos séculos XVIII e XIX, irá se estabelecer uma política liberal de abertura de mercados. A Inglaterra
esteve à frente do processo de liberação dos mercados comerciais nas colônias ibéricas que acabaram por
gerar o processo de independência dos países latino-americanos. Esta abertura de mercado inicia uma nova
política econômica e diplomática. A luta pela independência passa a interessar países como a Inglaterra,
França, Holanda e mesmo, tardiamente, a Alemanha e Estados Unidos. O desejo te ter influência sobre uma
grande quantidade de mercados leva as nações industrializadas a uma disputa por áreas de influência ou
mesmo coloniais.
3
Não por acaso é fácil perceber o número de fenômenos sociais ligados ao crescimento urbano em larga
escala. As revoltas que surgiram a partir do crescimento urbano e da formação de sociedades complexas
dentro do ambiente das cidades são um exemplo disso. Na Inglaterra, nação pioneira no processo de
industrialização, as revoltas se multiplicaram entre 1750 e 1850. Uma das mais conhecidas foi o Movimento
Quebra-Máquinas, que ocorreu posteriormente às ações do movimento cartista e às ações grevistas em
Londres e Liverpool. Mesmo em países periféricos, como o Brasil, os movimentos urbanos se multiplicaram
no final do Século XIX e principalmente ao longo do século XX. Um dos movimentos mais conhecidos
foi a Revolta da Vacina, em 1904. As condições de trabalho eram desumanas. Os mesmos fatores que
impulsionaram as revoltas nas cidades inglesas foram também determinantes para os movimentos que
aconteceram no Brasil.
4
A análise da formação das periferias urbanas, para muitos autores ligados ao estudo das cidades, é a
reorganização das lutas agrárias. No Brasil se discute muito a periferia, as favelas, como uma demonstração
da marginalização agrária estendida para o espaço urbano. A questão da abolição da escravidão estaria
reproduzindo no centro urbano a discriminação e concentração dos descendentes da escravidão nas
periferias, nas favelas. Esta leitura tem lógica se observarmos, no Brasil, a concentração da população
afrodescendente nas periferias. Ela acabou por ser o ponto de chegada dos que tinham sido alforriados e
foram discriminados. A periferia urbana se tornou o reduto para a resistência a discriminação.
Muitos dos conflitos gerados na fase agrária das sociedades não indus-
triais serão levados para o ambiente urbano. Em países da África e Índia, rituais
considerados típicos nas sociedades agrárias se reproduzem no espaço urbano
provocando um conflito entre o valor tradicional, que reivindica os movimentos
sociais, e as condições de existência no espaço urbano. Só por tolice podería-
mos considerar que a resistência dos afros nas cidades é uma luta, que começou
nos engenhos brasileiros, contra discriminação e violência praticada contra o
negro na senzala. Só por desconhecimento poderíamos associar as guerras na
África (entre tribos) à tentativa de fazer renascer os territórios e as tradições que
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uma noção do processo de aculturação que isso provoca. Temos a certeza de que
o objeto que traduz o domínio do ocidente faz por si um trabalho de catequi-
zação e conversão que muitos missionários, ao longo da história da propagação
do cristianismo, não conseguiram. Um exemplo é dado por Frederick Turner ao
falar do uso das armas de fogo pelos nativos da América do Norte:
Deste catálogo ele conclui que “com o arco e flecha, o selvagem do alto
rio Missouri pode passar muito bem sem o nosso comércio, que só se
impõe depois de criar necessidades”. A experiência de Tebeau no esta-
belecimento de vínculos comerciais no novo território levou também
a definir os três estágios de intercâmbio com os “selvagens”: “a fase do
outro, no primeiro encontro; a fase do ferro, quando eles começam a
perceber vantagens; e a fase do latão, quando uma experiência bem
longa já mitigou um pouco a sua ferocidade e o nosso comércio já se
tornou indispensável para eles”.
“Eu não sosseguei até conseguir um rifle desses, que me custou dez
mantas muito boas. Esse rifle podia ser recarregado num cavalo a ga-
lope. Abandonei para sempre o meu arco. Alguns dos meus velhos, no
entanto, continuaram usando a sua arma familiar. Compreendia a sua
atitude antes da chegada do rifle de cápsulas, mas agora o arco me pa-
recia apenas um brinquedo (TURNER, 1990, p.264).
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comandar, governar o território militarmente, se impor pela legislação, o domí-
nio é também simbólico e garante o poder pelo desejo do dominado reproduzir
o valor do dominante na aquisição dos objetos.
Para refletirmos um pouco sobre a importância do símbolo e seus efeitos,
vale mencionar o poema de Mário Quintana, “Supremo Castigo”:
O SUPREMO CASTIGO
Em todos os aeródromos,
Em todos os estádios,
No ponto principal de
Todas as metrópoles
- Quem é que não viu – aquele cartaz.
De modo que,
Se esta civilização desaparecer
E seus dispersos e bárbaros sobreviventes
Tiverem de recomeçar tudo, desde o início
- Até um dia também
Tenham seus próprios arqueólogos
- Estes hão de sempre encontrar,
Quantas guerras foram travadas por comunidades nativas utilizando as armas ocidentais. Para aliciar os
5
nativos que se deseja dominar, nada melhor do que promover o escambo, a troca de objetos, e introduzir
o produto em uma comunidade. Se, por séculos, a Cruz foi o símbolo maior da dominação, carregado
de um ideário ocidental, hoje, os símbolos dos produtos mundiais produzem um efeito devastador. Eles
promovem mais certezas do que dúvidas e rompem mais fronteiras do que, se comparados, o cristianismo
nos tempos de colonização.
para se associar ao que ele representa não é novidade nas sociedades humanas.
Nossa vinculação aos objetos, a nossa identificação e da própria natureza, expres-
sam-se como uma linguagem. Como negar a condição que determina nossa
leitura do universo e fazer com que ele tenha sentido?
Com a multiplicação dos elementos midiáticos na atualidade, não podemos
mais escapar dessa possiblidade de simbologia. Faz-se necessário entender os
efeitos da relação com múltiplos símbolos e suas consequências na vida social.
Esse tem sido o objeto de interesse da Antropologia contemporânea. Nas cida-
des, os grupos humanos se segmentam. As tribos urbanas, como se costuma
dizer, se multiplicam e traduzem as novas formas de se estabelecer diferenças
dentro da sociedade. Michel Maffesoli, em sua obra “Tempo das Tribos”, afirma:
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muito mais pela emotividade da fusão de elementos com interesses próprios do
que pela organização de um movimento com um fim de maior relevância definido.
A PERDA DE IDEOLOGIA
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comprar, adquirir serviços e produtos. Porém, os majestosos ambientes da aqui-
sição não são para todos. Denuncia-se uma falsa democracia na atualidade. Nos
desejos de todos está o que se quer em comum, todos querem bens parecidos ou
desejam que frequentar determinados lugares. A inclusão tem um sentimento
de igualdade possível não por ter acesso as mesmas possiblidades, mas por ter
determinados bens que lhe atribuem o direito de ser respeitado. Associando à
aquisição, fator vital da inclusão, ao local público. Esta é uma forma eficiente,
mas superficial, de superar barreiras de discriminação.
Na rede econômica planetária os bens de consumo não têm comprometi-
mento com as relações concretas onde circulam os bens produzidos. O garoto
da periferia ou o residente de um condomínio de abastados podem circular
com o mesmo objeto. O bem desejado é o que há de comum, o que aproxima
os dois elementos distantes em seus ambientes. O excesso e a falta não deixam
de compactuar com o mesmo desejo. Sempre haverá uma busca frenética pelo
que não se tem.
Em nenhuma outra sociedade se constituiu uma vida estabelecida no desejo
da aquisição. O objeto de desejo é produzido em série e se envolve em uma sim-
bologia industrializada de larga escala, sendo direcionada a todos e saciando a
busca da existência particular. A todo o momento há algo novo a se buscar. Esse
novo desejo é ditado mundialmente, sendo muitas vezes lançado internacional-
mente para distinguir os possuidores dos despossuídos, um diferencial vital na
sociedade contemporânea.
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assim como matéria-prima. A realidade de trabalho para o número imenso de
seres humanos envolvidos direta ou indiretamente na produção de bens mundiais
é contraditória, desigual e surpreendente diante da imagem do bem produzido
e sua simbologia.
Há uma exploração maciça de trabalhadores que desempenham suas ati-
vidades em condições desumanas na cadeia produtiva mundial. Isso é um fato
conhecido e preocupante. Essa realidade é mantida exatamente pela importân-
cia da redução dos custos de produção, que utiliza um número significativo de
seres humanos disponíveis para exploração em larga escala. Os ambientes de tra-
balho onde eles são dispostos são regidos por um Estado nação que compactua
e gera condições para a exploração massiva de trabalhadores. Na Índia, cons-
tantemente se têm notícias de desabamentos de prédios que matam centenas de
trabalhadores. Edificações precárias que abrigam facções de empresas que pres-
tam serviços para marcas internacionais ruem e provocam a morte de pessoas.
A marca que está associada ao produto não será lembrada quando a catástrofe
for anunciada nos meios de comunicação mundiais, se quer percebida ou asso-
ciada, na hora da aquisição do produto.
A quantidade de pessoas disponíveis para a exploração em larga escala cresce
nos países periféricos. Nesse sentido, o termo “periferia” necessita ser trabalhado
com cautela, tanto no que diz respeito à periferia econômica (região marginal na
rede de decisões, de comando, da economia capitalista) quanto no que se refere
aos espaços físicos dos centros urbanos ou conglomerados de cidades, chama-
das de periféricas. Há uma diferença significativa entre esses dois conceitos.
supérfluo, e no que diz respeito a esta última característica, tanto quanto as regi-
ões requintadas do espaço urbano, onde vivem aqueles consumidores “naturais”.
As periferias amam os produtos e são capazes de sentir nele uma inclusão que
os programas sociais de governo não podem resolver. A periferia está ligada à
idolatria dos signos da cadeia mundial com a mesma intensidade que os consu-
midores considerados ideais para a aquisição do bem. Lembrando que o termo
“ideal” utilizado por nós não pode ser restrito, e sim estético. Na propaganda,
há aquele que se associa esteticamente ao bem. Observando e incorporando a
mensagem publicitária está aquele que não se reconhece na estética natural do
bem, mas pretende tê-la ao adquirir o produto.
Logo, o desejo de possuir um bem de consumo aproxima os desiguais e realça
a diferença. Coloca-nos acima dos problemas coletivos. Um determinado bem con-
sumido e toda a simbologia que ele traduz nas mensagens publicitárias permite
valorizar o particular e destacá-lo diante de uma realidade empobrecedora. Uma
expressão simbólica inversa à condição comum de todos da comunidade a qual
pertenço. Se resido em uma periferia marcada pela falta de condições básicas, onde
a renda per capita é baixa, ter um objeto de desejo nas mãos é expressar minha
“singular” diferença. A telefonia móvel é um elemento de inclusão social, não há
dúvida, mas a importância dos aparelhos que permitem isso gera mais relevância
para a particularidade do que a necessidade social do sistema de comunicação.
Se observarmos toda a construção simbólica em torno do bem de consumo
e da prática de consumir vamos entender a reflexão que Jean Baudrillard (1995)
desenvolve sobre a transformação do homem em objeto. Considera que a cons-
trução de uma identidade a partir da simbologia do consumo rege as relações
entre os seres humanos e os objetos. O ser é o que a coisa à qual estou associado
determina. Minha existência se expressa na possibilidade de ter a mensagem
publicitária como a explicação vital para a vida. Estamos cercados pelos obje-
tos, como afirma Baudrillard:
À nossa volta, existe uma espécie de evidência fantástica do consumo e
da abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços, dos
bens materiais, originando como uma categoria da espécie humana.
Para falar com propriedade, os homens da opulência não se encontram
rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais por
objetos. O conjunto das suas relações sociais já não é tanto o laço com
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seus semelhantes quanto, no plano estatístico segundo uma curva as-
cendente, a recepção e a manipulação de bens e de mensagens, desde a
organização doméstica muito complexa e com suas dezenas de escra-
vos técnicos até ao “mobiliário urbano” e toda a maquinaria material
das comunicações e da natividades profissionais, até ao espetáculo per-
manente da celebração do objeto na publicidade e as centenas de men-
sagens diárias emitidas pelos “mass media”, desde o formigueiro mais
reduzido de quinquilharias vagamente obsessivas até aos psicodramas
simbólicos alimentados pelos objetos noturnos (...) (BAUDRILLARD,
1995, p.15).
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publicitário. É como se a filosofia fosse tomada de assalto pelo profissional de
propaganda, e a reflexão se transformasse na busca do melhor slogan para lite-
ralmente se vender uma ideia.
Quando a novidade salta aos olhos como um surpreendente encontro, a
resposta para os nossos problemas parecem vir de um “estalo”. Tudo se resolve
como em um passe de mágica. Dessa forma, “a grande tacada” será dada e todos
os demais problemas acumulados ao longo do tempo, com um histórico neces-
sário para o seu esclarecimento, se torna obsoleto. Desparece a necessidade da
lógica profunda e emerge a crença simples de uma lógica resumida. A frase de
impacto pode traduzir o que os pensadores ao longo do tempo não consegui-
ram desvendar, o mistério da vida6.
Com a simplificação, faz-se o distante ficar perto, o complexo se torna sim-
ples e a condição de existência se reduz à experiência da particularidade. Uma
banalidade se torna um fato de relevância e passa a dominar as manchetes dos
jornais ou a se associar aos símbolos publicitários. Revive-se e reveste-se a bana-
lidade com toda a pompa para que ela se torne, na estética do imediato, mais
relevante ao ponto de encobrir temas efetivamente importantes. Nesse contexto,
emerge o que se chama de minorias, a condição que antes existia como exten-
são de um elemento menor agora se encontra diante de seus próprios interesses
Uma evidência interessante do quanto estamos vendendo a falsa ideia de inteligência e enlatando a
6
complexidade esta nos livros de autoajuda ou os manuais de pensadores em forma de livro de bolso. De fácil
leitura, trazem um número imenso de frases de pensadores diferentes. As ideias contraditórias dos teóricos
desaparecem diante da necessidade de atender a um leitor sem capacidade e tempo para compreender a
complexidade das ideias. Dessa forma, tudo se resume e se alia às oposições históricas. Em uma mesma
obra, é possível encontrar uma obra de Locke e de Marx, ou aliar as mensagens de Comte às devesas de Mao
Tsé-Tung. Não há comprometimento com a coerência ideológica, mas sim com a particularidade rasa.
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Não podemos deixar de considerar que o ambiente simbólico promovido
pela economia mundial gera essa fusão entre cidadão e consumidor. Eles já não
podem ser separados nas análises de seus comportamentos ou em relação àquilo
que desejam. É na busca de realizar o desejo particular, disfarçado no discurso
do “bem comum”, que repousa o estímulo para agir. Quem se compromete com
a meta de atender seus próprios interesses se sente incluído no debate social.
As minorias se formam então nesse bojo. Voltadas para os seus interesses,
gerando seus próprios partidos políticos, multiplicados para atender interesses
específicos e contribuindo para a manutenção de uma ordem cada vez mais desi-
gual. Segundo Baudrillard:
É a lógica da classe que impõe a salvação por meio dos objetos, que é
uma salvação pelas obras: princípio “democrático” oposto à salvação
pela graça avantaja-se sempre em valor à salvação pelas obras. É em
parte ao que assistimos na classes inferiores e médias, onde a “prova
pelo objeto”, a salvação pelo consumo, se asfalta por atingir um estatuto
de graça pessoal, de dom de predestinação. Mas este, seja como for,
continua a ser privilégio das classes superiores que, por outro lado,
comprovam a sua excelência no exercício da cultura e do poder
(BAUDRILLARD, 1995, p.59).
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racional da vida, que está na construção do sentido dessa civilização (ocidental),
agora é minimizado. Todos podem frequentar a escola, o que parece uma vitória.
Há menos de 50 anos, faltavam instituições de ensino básico, médio ou superior,
as pessoas deveriam aceitar o rompimento da vida escolar pela ausência de uma
instituição educacional. Ingressar no ensino superior foi o desejo de muitos, a
condição de poucos e a valorização do conhecimento adquirido como uma pos-
sibilidade de mudança concreta da vida. A formação acadêmica, o laureado, era a
comprovação simbólica da eficiência do ser humano que estava associado ao que
era uma conquista. Parece, contudo, que as instituições de ensino se proliferaram
na proporção em que o conhecimento ficou medíocre e seu domínio desmerecido.
Há uma diferença fundamental entre elevar o nível das pessoas ao de uma
instituição acadêmica e rebaixar as exigências da formação educacional para dar
sensação de inteligência a massa ignorante. Reduzimos a altura dos obstáculos
para aumentar a porção de vitoriosos. Tudo para dar aos derrotados um motivo
de orgulho. Quantos não ficariam para trás se a eficiência fosse exigida daque-
les que se dispõem a cumprir determinadas funções?
O que estamos presenciando é o rebaixamento do saber. O conhecimento
fundado na lógica simplificada, como já afirmado antes, é o que se desenvolve
atualmente. O saber científico, com toda a sua complexidade, não é mais pré-re-
quisito para se entender uma questão relevante na vida social. A abordagem de
temas complexos segue o roteiro simples que tenta facilitar a compreensão pela
redução da lógica. O improvável, os opostos, a negação, o contraditório, agora,
associam-se e sem que tenham que estar vinculados à necessidade substancial
da racionalidade. Na mídia, essa simplificação é mais notável.
Os dados estatísticos, por exemplo, que são trabalhados nos meios de comu-
nicação, são muitas vezes apresentados de forma distorcida, favorecendo uma
associação perigosa entre os números e a dimensão da fatalidade que não corres-
ponde à verdade dos fatos ou permite uma generalização. Índices de renda per
capita, violência, uso de drogas, aborto, prostituição etc. são dados apresentados
como certezas, “costurados” com textos que associam números a comportamen-
tos que não se comprovam com tanta facilidade7. Não se sabe, como em muitos
laboratórios médicos, se estamos diante de uma doença que deve ser curada com
o medicamento certo ou se estamos dando uma dose de tranquilizante para anes-
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Nossa sociedade é abortiva. Prática que já se coloca no Brasil com números preocupantes. Contudo, o
7
tema é mal trabalhado nos veículos de comunicação e está carregado de uma simbologia religiosa. Trata-se
a sexualidade, tema relevante, inclusive para tratar do aborto, como se fosse um tabu. E é importante frisar
que não estamos tratando de uma sociedade árabe, carregada de uma cultura determinante na vida social.
Somos uma civilização fundada na ciência e geramos uma organização política que expressa o interesse de
organizar a vida coletiva sob a égide da racionalidade lógica. Porém, não é isso que ocorre ao se tratar de
certos temas, como os dois que colocamos aqui.
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dobra-se, pois, de certo “deslize” dos valores e de nova hierarquia das
utilidades. A distorção e a desigualdade não se reduziram, foram trans-
feridas. Os objetos de consumo corrente tornam-se cada vez menos
significativos de categoria social, e até mesmo os rendimentos, na me-
dida em que a maiores disparidades se vão atenuando, vêem diminuir
o seu valor com critério distintivo. É mesmo possível que o consumo
(tomado no sentido de despesa, de compra e de posse de objetos visí-
veis) perca progressivamente o papel eminente que desempenha hoje
na geometria variável de estatuto, em proveito de outros critérios e de
outros tipos de conduta. Em última análise, será o apanágio de todos,
quando já nada significar (BAUDRILLARD, 1995, p.56).
A forma como a organização da vida real é feita não se torna tema elementar para
grande parte da sociedade. Não será tratada com relevância. Busca-se o elemento
que traz a aparente satisfação da redução da desigualdade enquanto a verdadeira
necessidade a ser atendida é desprezada. No Brasil, há uma falta de saneamento
básico que corrói uma parte considerável da condição de vida da população de
baixa renda e lhe deixa a margem de qualquer possibilidade futura. Porém, esse
não é o desejo maior para quem busca o sonho da casa própria. Programas como
o “Minha Casa, Minha Vida” carregam esse estigma.
O ser humano compreende na atualidade a inclusão ao se identificar com
determinados símbolos do consumo que são oferecidos em todos os cantos. Ele
deseja o que todos desejam, mas o que ele não quer é ser qualquer um, impera a
busca do “ser único”. A vontade de realizar o sonho da particularidade, da felici-
dade como uma condição privada, é o apogeu da existência na atualidade. Mais
que o estar vivendo em meio à coletividade, condição vital para a vida do indi-
víduo, viver para si mesmo é uma obrigação que se tem ao nascer.
todos no mesmo sentido. Ter alguma coisa em comum com o outro não me faz
um igual. A verdadeira igualdade não está aí. Ela repousa na qualidade humana
de existir, de viver e sentir a humanidade em sua condição legítima, tudo o que o
processo de industrialização não permite ao ser mortal. Por sinal, o ser humano
se esquece constantemente de sua mortalidade.
A sociedade ocidental massifica, mas vê nascer a desesperada busca pela par-
ticularidade, pelo tribalismo, pela exclusividade. Tanto nos produtos como nos
movimentos sociais há uma sociedade se estabelecendo enquanto um recorte na
massa. Uma colcha de retalhos está se constituindo e fazendo com que as cos-
turas que a mantêm unida ao restante do corpo social se desprendam, sem que
deixe de fazer parte do mosaico social. A bandeira gay é conhecida, ela ocupa
o espaço junto com outros símbolos, como as bandeiras dos estados nacionais.
Há um movimento separatista agindo na busca de independência de um deter-
minado território. Não se crê tanto no ideal da causa como na vontade de fazer
algo da própria vida, mesmo que seja de significado duvidoso.
As metrópoles estão cheias de redutos ao mesmo tempo em que estão mas-
sificadas. Seus habitantes são capazes de entender os cartazes, outdoors das
grandes empresas, são apaixonados pelos símbolos e fazem de tudo para tê-los.
O garoto da favela deseja o tênis de marca, sonha com a roupa de grife, com o
carro esporte ou com a moto de muitas cilindradas. Porém, o mesmo garoto sabe
que vive na periferia, nas regiões da exclusão e sofre os efeitos da marginalização.
Ele espera superar essa marginalização com a aquisição dos produtos simbóli-
cos que o fariam ser aceito pelo grupo que ele considera “dominante”, mas que
na prática tem apenas uma coleção maior de objetos.
O EMPOBRECIMENTO HUMANO
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existe. Nunca foi tão difícil ser feio.
Aqui temos o que chamamos de contradição da vida social. Toda a cadeia
mundial de produção da qual falamos é fruto de uma ciência e tecnologia que
geraram as condições para o desenvolvimento da civilização ocidental. Porém, ele
não é mais que um valor distante para a grande maioria dos indivíduos que vivem
e desfrutam de forma desigual das condições que a sociedade planetária gerou.
A potencialidade científica do ocidente a serviço de uma submissão,
de conquista e sedução, aproximou todos os cantos do mundo, integrando
pela força, pela persuasão da economia, pela informação e seus meios,
gerando uma cadeia mundial de dependência, que se chama mundiali-
zação ou globalização. É fato que a economia capitalista se organiza em
uma rede de relações planetária. Essa mesma rede mundial se alimenta, também,
do movimento de pessoas, da
imposição de uma condição
de produção em larga escala
que envolve a grande parte
dos indivíduos. Para resu-
mir, somos frutos de uma
alta capacidade científica e
técnica. Indiscutível.
O homem desses meios
complexos é nada mais que
um ser infantil. Estamos
retomando a “lógica da
piscina rasa” para crermos que navegamos em “mar aberto”. Explicamos o todo
pela parte e acreditamos no simplismo como o conhecimento de todas as coisas.
Em todos os cantos, a mensagem que se propaga é a de garantir ao indivíduo o
seu lugar no mundo. Ele deve ser aceito. Não se pode recriminar a individuali-
dade. Para isso, pode-se colocar em prática a lógica da criança, abrir espaço para
a infantilidade como um direito do adulto.
Os rituais sociais estão criando uma criança adulta. Nossas preocupações
repousam em um mundo onde o interesse primário, os direitos tolos, típicos da
primeira idade até a adolescência, são aceitos para os mais velhos.
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não foi capaz. Acredita-se na resposta guardada dentro de cada um. Pregando a
certeza de que nós não precisamos de ninguém para sair de nossos problemas8.
Vale lembrar aqui da divertida obra de Rudolf Erich Raspe, escritor alemão
que publicou “As loucas aventuras do Barão de Munchehausen”, um clássico
europeu que relata a história de um nobre russo e suas aventuras fantásticas.
Munchehause sai dos problemas, das situações mais difíceis, com ações mágicas,
sem precisar de ninguém. A mais fantástica é quando afunda em areia movediça
e não há ninguém que possa ajudá-lo. Diante de tal situação, ele salva a si e a
seu cavalo, pegando a si mesmo pelo cabelo. Não por acaso, livros e filmes como
os da saga do jovem bruxo Harry Potter estão entre os mais lidos e assistidos.
Não há nada contra a literatura fantástica. Muitas das obras de ficção mere-
cem toda a consideração e respeito pelo sucesso atingido. Porém, ao distorcer
a realidade, os autores desse tipo de obra sabem que ela não tem comprome-
timento com a descrição do real e muito menos com receita objetiva de vida.
Porém, há hoje um número imenso de “novos profetas” apregoando as “aventu-
ras do Barão” como uma forma de comportamento possível, anunciando uma
solução para todos os problemas.
Ligando o que afirmamos até aqui, temos então um indivíduo que tudo pode,
não deve ser contrariado e tem uma infância legitimada até a fase adulta, onde
a preocupação com os atos pode ser absolvida pelo potencial de superar qual-
quer problema instalado, de forma “oculta” dentro de cada um de nós. Esse bebê
8
Polêmico ou irônico, a chamada “autoajuda” passou a ser um campo de exploração literária. A lucratividade
dos livros focados nesse tema é denunciada pelos títulos mais vendidos. Eles estão sempre no topo da lista.
Obras contraditórias em seu fundamento ideológico viram bíblias para a busca de sucesso.
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representantes públicos. Eles estão na mesma toada que os discursos publicitários,
as obras literárias, as tendências dos enfoques das instituições acadêmicas. Não
se culpa ninguém que seja um “inocente eterno”. Há uma regulamentação da fra-
gilidade permanente das particularidades. Uma parte considerável da sociedade
pode se enquadrar na condição de “excluído” e usufruir dos benefícios legais que
oferece, contudo, nunca houve um número tão grande de minorias como agora.
Os poderes legislativos espalhados pelo ocidente regulamentam constan-
temente algum benefício para aqueles que são considerados excluídos. Todos
podem ter algo que os coloque como excluídos e merecer tratamento diferen-
ciado. O que não falta é abaixo assinado pedindo para mais uma minoria ainda
não reconhecida ser incluída no benefício.
Infantil e profético, o mundo das minorias vai traçando o caminho dos
conflitos urbanos e dificultando a construção de uma razão lógica para enten-
der os fenômenos na atualidade. De um lado, a simplificação do entendimento
das relações sociais gera uma infantilidade, por outro, impõe o autoritarismo da
particularidade como lógica sem razão. Em todos os campos do conhecimento,
estamos nos agarrando às particularidades por não termos competência de expli-
car a totalidade. Vamos, nesse sentido, esvaziando o projeto social coletivo e a
exigência da participação de todos por um bem comum. Porém, as grandes per-
das continuam ocorrendo, a desigualdade se estabelece mais agressiva e poucos
percebem seu curso e suas consequências.
Jean Baudrillard deu uma entrevista à Revista Época, em 2002. Nela, ele falou sobre um
dos seus principais temas, “A Sociedade do Espetáculo”. Autor de “A Sociedade de Con-
sumo”, ele fala da simbologia que tomou conta da sociedade atual. Para ele, perdemos
o contato com a realidade e há uma perda ideológica sensível. Leia um trecho da entre-
vista:
ÉPOCA - Como o senhor explica a espetacularização da realidade?
Baudrillard - Os signos evoluíram, tomaram conta do mundo e hoje o dominam. Os
sistemas de signos operam no lugar dos objetos e progridem exponencialmente
em representações cada vez mais complexas. O objeto é o discurso, que promove
intercâmbios virtuais incontroláveis, para além do objeto. No começo de minha
carreira intelectual, nos anos 60, escrevi um ensaio intitulado ‹A Economia Política dos
Signos›, a indústria do espetáculo ainda engatinhava e os signos cumpriam a função
simples de substituir objetos reais. Analisei o papel do valor dos signos nas trocas
humanas. Atualmente, cada signo está se transformando em um objeto em si mesmo
e materializando o fetiche, virou valor de uso e troca a um só tempo. Os signos estão
criando novas estruturas diferenciais que ultrapassam qualquer conhecimento atual.
Ainda não sabemos onde isso vai dar.
Leia a entrevista na íntegra em:
<http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT550009-1666,00.html>.
182 UNIDADE III
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Há uma construção simbólica na relação com os objetos e também com
os ambientes de consumo. São novos valores derivados dessa mundialização
de marcas e produtos, que são como ditadores de uma nova realização. O que
define a associação de pessoas a determinados valores como vestimentas, músi-
cas, penteados e frequência a determinados ambientes expressa as formas como
as pessoas encontram uma maneira de pertencimento.
Estamos vivendo uma organização de fronteiras dentro da sociedade urbana.
A constituição de rituais comuns para habitantes de uma mesma cidade, mas
separados pela frequência em ambientes distintos. Alguns desses ambientes
como escolha. A segregação é uma prática de todos e contra quase todos os
tipos de diferença.
A Antropologia ganhou um novo lugar no campo das ciências humanas e
não deve perdê-lo mais. Ela irá realizar, ao longo de seus estudos, uma compre-
ensão dos fenômenos urbanos, ambiente em que os homens contemporâneos
vivem a maioria de suas relações sociais. A Antropologia se desdobra a entender
o que eles são e qual é o papel da vida em sociedade em que as identificações se
pulverizam em um ambiente cosmopolita.
IV
BRASIL: A CONSTRUÇÃO
UNIDADE
DA SOCIEDADE E DE UM
ESTADO AUTORITÁRIO
Objetivos de Aprendizagem
■■ Conhecer a formação da sociedade brasileira e seus encontros
étnicos, o ambiente onde se deu a formação regional e os conflitos
sociais.
■■ Estabelecer a relação entre o regionalismo e a formação do Brasil
com sua diversidade, as diversas formas de organização social e o
processo de miscigenação.
■■ Entender a formação do Estado nacional brasileiro, a questão
autoritária do Estado e suas heranças que permanecem até nossos
dias.
■■ Compreender a transição da sociedade agrária para a sociedade
urbana e seus efeitos.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ As condições sociais, econômicas e culturais para a formação da
colonização portuguesa
■■ A instalação da colonização e o papel do engenho. A manutenção da
grande propriedade o mando agrário
■■ A questão da escravidão e os efeitos sociais do trabalho escravo
■■ As mudanças sociais com a imigração e a urbanização brasileira
■■ A formação do Brasil contemporâneo e a reflexão sobre a brasilidade
■■ As questões sociais do Brasil e seus principais pensadores
187
INTRODUÇÃO
Introdução
188 UNIDADE IV
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PARA A FORMAÇÃO DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA
O maior desafio deste livro é falar sobre a formação humana do que denomi-
namos Brasil. Desenha-se aqui o território? Fala-se das pessoas e abre-se mão
das diferenças? Isto é impossível. Estas dúvidas podem parecer tolas, “se fala do
Brasil e pronto!”, porém, não é bem assim. Há uma longa história que aqui pode
ser apresentada cortando um começo, que confesso: é impossível de delimi-
tar. Grandes pensadores da formação do Brasil, como Darcy Ribeiro, Gilberto
Freyre, Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Holanda e tantos outros, pensa-
ram o Brasil partindo de Portugal, da formação do Estado luso, das povoações
ibéricas. Freyre, por exemplo, chega a buscar nos mouros um pouco do colo-
rido da arte sarracena. É preciso ir tão longe? Acredito que sim! E daria para ir
mais! Porém, aqui não posso.
Meu começo, para falar do Brasil, também vai a Portugal, como Raymundo
Faoro, na formação do Estado português, com sua burocracia, sua corte, sua
imposição denunciante do apartado social, um Estado que se impõe e demarca
o território. Ao mesmo tempo em que advém das forças sociais, nega e oprime
as forças geradoras de sua identidade. O Brasil é português neste aspecto, é a
“mãe-pátria” deixando marcas no filho pródigo. Se um dia os portugueses quise-
ram fazer de sua colônia nos trópicos uma “imensa” Portugal, não conseguiram,
contudo, olhando o rosto da “terra brasilis”, se percebe os traços da nação lusitana.
Lá, além do mar, está a impregnada busca de conquista expressa na formação
de Portugal. O reino ibérico, forjado pela cruzada cristã contra os muçulmanos,
tem na sua raiz uma profunda relação da terra com a Igreja Católica. O rei, Dom
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Mas este é apenas um aspecto de nosso sangue, também lusitano. Há o outro
lado da crença brasileira cristã que se difundiu no Brasil, consistente no trato
das coisas do dia a dia. A religiosidade afro-indígena, Umbanda em especial,
deu misticismo ao cristianismo típico e peculiar dos trópicos, e tem nos símbo-
los o encontro entre a magia afro, a cura da pajelança e a fé cristã. Esta crença
permitiu resolver as dores do corpo, promover a convivência improvável pela
razão e fortalecer a resistência à dominação disfarçando a identidade afro ou
indígena dentro da aparente unidade cristã. O filho doente, o parto, a dor de
cabeça, a fome, a vontade de vingança, o amor impossível e tantos outros males
irão se resolver nos terreiros de umbanda, nas “garrafadas”, na constante prá-
tica do xamanismo. Vem do afro e seu culto, mas também do indígena e suas
crenças, o uso do alimento como forma de salvar o corpo, o que se deve comer
em determinados tempos, os perigos das misturas que podem levar à morte, a
salvação pelos chás, inclusive incorporados por ordens religiosas e padres trans-
formados em apóstolos e feiticeiros.1
Hoje, há uma proliferação de igrejas cristãs marcadas pela magia, pelo transe,
êxtase dos membros das comunidades religiosas marcadas por rituais chamados
de “intervenção”, são movimentos religiosos, neopentecostais, que não foram
A construção do messianismo no Brasil é fruto desta capacidade mágica do líder religioso. Os Muckers
1
(1871-1874), no Rio Grande do Sul; a Guerra de Canudos (1896-1897), na Bahia; e do Contestado (1912-
1916), na fronteira do Paraná com Santa Catarina, foram conflitos onde os líderes religiosos tinham uma
liderança política e militar inconteste. Nem em todos, como no caso de Canudos, liderado por Antônio
Conselheiro, havia a ocorrência de milagres, como no caso de Jacobina, líder dos Muckers, e no Contestado,
José Maria.
Este encontro se consolida dentro de uma condição única nas Américas. Não há
composição similar à formação do Brasil dentro do continente. Ela é, ao mesmo
tempo, uma formação que atende aos interesses de uma economia mercantil em
expansão, assim como os demais nações latino-americanas, porém, também
traz peculiaridades que dão forma a uma sociedade original; não será o que os
europeus e portugueses estabeleceram em seu projeto colonizador nem os tra-
ços fortes das populações afro-indígenas.
Esta mistura, este encontro, e o Brasil é um país de encontros, se deu de
forma diferente em regiões distintas, com peculiaridades econômicas e sociais.
Lembrando que, quando falamos de encontros humanos, processos migrató-
rios, estamos nos referindo a grupos étnico-culturais distintos e ao papel que
desempenharam nas atividades produtivas, marcadas por conflitos constantes.
Em muitos casos, os conflitos estabelecidos permaneceram durante séculos e
também deixaram suas marcas nas gerações futuras.
No nordeste brasileiro, a relação entre o sertanejo e a terra é uma expres-
são do que a história cunhou. Esta região exige um trato constante com o solo,
onde a produtividade é difícil e acontece em ciclos descontínuos de tempos de
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um mesmo destino. Nesta caminhada, acabaram gerando uma sociedade que
se fez com muitas mãos. Quando os africanos vieram para o Brasil, para a con-
dição de escravidão, percorreram o Rio São Francisco e formaram quilombos à
margem dele e de seus afluentes.
Isoladas e integradas posteriormente, as demais regiões brasileiras foram
ocupadas gradativamente. Acabaram se moldando e iniciando a colcha de reta-
lhos que acabaria por ser uma das principais características da formação da
sociedade brasileira e sua diversidade. Porém, vale lembrar que as peculiarida-
des de cada região do Brasil não foram capazes de impedir a unidade nacional,
a formação de um “povo brasileiro”. Esta se constitui dos laços econômicos esta-
belecidos pela sociedade colonial e incentivados por um Estado centralizador
instalado a partir de 1549, com o Governo Geral, e 1759, com a implantação do
regime de províncias e a transferência da sede administrativa da colônia para o
Rio de Janeiro.
A integração final do território se deu com a transferência da corte portu-
guesa liderada por Dom João VI, em 1808. Ela atravessa o Atlântico, fugindo de
Napoleão Bonaparte, e se instala no Brasil para decretar o fim do período colo-
nial e iniciar a formação do Estado autônomo. O Brasil ganharia a condição de
nação das mãos da metrópole; foi ela que lhe deu o contorno da porção territorial
e estabeleceu o modelo administrativo que permaneceu após a independência
formal (1822). O Brasil nasce do Estado Português, mas não será uma Portugal.
Ao longo da trajetória formadora do Estado-nação, ocorre uma série de mudan-
ças da ordem social que deram início à colonização.
Sem ter como evitar, por consequência da própria expansão colonizadora
que interessou a Portugal, sua principal colônia acabou por constituir vida pró-
pria. Gerou-se uma sociedade vinculada à colônia e formando hábitos nativos,
distintos dos aceitos no território metropolitano.
Da relação estabelecida entre o branco lusitano, os indígenas e, principal-
mente, os africanos, se gerou um novo elemento, o brasileiro. O mulato e caboclo
propagaram pelas diversas partes do território brasileiro uma diversidade de ati-
vidades econômicas e formaram valores culturais distintos.
Afastados do empreendimento colonial português instalado no litoral ou
nas regiões auríferas, ocuparam o interior das matas e constituíram plantações
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AS ORIGENS
O Brasil, de certa forma, demonstrou, em sua expansão territorial e na luta por suas fronteiras, uma
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reprodução do que Portugal efetivou na Península Ibérica, a resistência à Espanha. Cercada por inúmeras
colônias espanholas e anexando parte considerável das terras da Espanha na América, indo muito além
do Tratado de Tordesilhas, a formação do território, ou pelo menos uma grande parte dele, se deu pela
aventura do bandeirante. Um branco miscigenado com indígena, apaixonado pelas guerras e movido pela
fé.
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pela centralização precoce, acontecida ainda no século XII, a primeira a estabe-
lecer um Estado Nacional monárquico na Europa. Desta forma, o poder do Rei
se coloca acima das questões sociais, porém, é preciso fazer sentir este poder,
que necessita ser exercitado pelo uso da força, da língua, da economia orientada
pelo governo central e associado às instituições representativas da sociedade.
Tudo isso a monarquia portuguesa consegue estabelecer e consolidar entre os
séculos XII a XIV.
A primeira dinastia francesa foi a de Borgonha, uma família nobiliária aliada
ao Reino de Leão para combater os mouros na Península Ibérica. Esta família
se constituiu ao longo do tempo com uma ameaça à unidade da Península tão
desejada por asturianos e castelhanos. E o temor se fez realidade quando veio a
conquista de Alcobaça e Lusa, assim como o reconhecimento do Papa das con-
quistas borgonhesas. Portugal nasceu pela caneta do Sumo Pontífice3. É o papa
que nomeia Henrique de Borgonha “Rex Portucalense”. Assim, na a formação
de Portugal pelas armas, há o reconhecimento da autoridade do Rei pelo Papa.
O rei e “Deus” geram uma intimidade inseparável no imaginário lusitano.
A Ordem de Cister, desdobramento da Ordem Beneditina, é uma instituição
presente e importante na formação de Portugal, que acabou por administrar ter-
ras conquistadas pela Família Borgonha. A relação entre a Ordem e o poder real
se ampliou; ter nos membros do Clero defensores da autoridade monárquica e
Pela caneta do Papa se estabeleceram as fronteiras de muitos dos territórios europeus e fora da Europa.
3
Os tratados de limites entre Portugal e Espanha são o exemplo da influência da Igreja sobre as monarquias
ibéricas. O Tratado de Tordesilhas (1494) definiu com uma linha imaginária as fronteiras dos domínios
espanhóis e português no além-mar. “Quando Deus na Bíblia, no Gênesis, estabeleceu que o Mundo
pertencia a Portugal e Espanha”, reclama o Rei da França, Henrique IV.
papal em conjunto permitiu traçar uma resistência aos inimigos. Foi exatamente
o trabalho de propagação do cristianismo nos territórios dominados pelos muçul-
manos que minou, em parte, o poder mouro na Península Ibérica e gerou uma
unidade entre os cristãos, representada pela figura do Rei.
Tratamos deste tema em nossa primeira unidade, quando discutimos a oci-
dentalização, por isso vamos tratar de aspectos que ainda não foram abordados,
a formação da língua e da participação do clero na constituição da gramática ofi-
cial do reino lusitano e seu exercício pelo governo; exigir que determinada língua
seja o instrumento de comunicação entre o poder instituído e os governados. A
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do mercado exportador.
Aqui há uma aliança clara entre a burguesia e o Rei, mas, além disso, outro
elemento acaba consolidando esta relação, organizando uma representação
junto aos camponeses e trabalhadores urbanos, mantendo o poder monárquico
a favor de uma nação unida pela identificação com o poder central e não com a
nobreza, a Igreja Católica portuguesa. O monarca atrai os interesses e só sobre
sua autoridade eles se resolvem.
Com a morte do Rei Dom Fernando, filho de Afonso IV, surge a oportu-
nidade da nobreza portuguesa reestabelecer o seu poder. Para isso, era preciso
enfrentar a autoridade da Igreja, impor-se sobre uma burguesia urbana e mer-
cantil em ascensão e a relação próxima entre as classes populares, camponeses e
servos, e o Estado. Vale lembrar que o Rei Afonso IV já havia instituído a língua
pátria e comunicava-se com sua população pela língua nacional. 4
O enfrentamento acabou por ocorrer quando a viúva do Rei, Leonor Teles,
declara a unificação do reino lusitano com Castela (1383). Sem condições de
acordo, os grupos nacionalistas encabeçados pela Igreja e aliados aos empre-
sários mercantis fazem de Coimbra o centro da resistência e nomeiam o filho
bastardo do rei, Dom João de Avis, monarca. Na batalha de Aljubarrota (1385),
consolida-se a autonomia portuguesa sob uma nova organização de forças. São
elas que irão promover as navegações e formar o império colonial de Portugal.
O Testamento de Afonso IV foi um dos primeiros documentos regidos em português, reconhecido como a
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língua pátria.
Lisboa, a administração central. Portugal foi feita nas ruas, nos mercados, nas
trocas à beira-mar, e arrastou a sociedade feudal predominante na zona rural
para esta empresa sob a “benção de Deus”.
A primeira grande conquista portuguesa foi a África. Frequentado por
comerciantes aragoneses e italianos, o mercado norte-africano era cobiçado e dis-
putado pelos navegadores cristãos e muçulmanos. Foi a Cruzada para o oriente,
em busca de Jerusalém, que permitiu abrirem-se à Europa ocidental de forma
mais intensa os objetos do comércio, e Portugal desejava participar desta busca.
Ceuta, cidade na desembocadura africana e europeia que forma o estreito
de Gibraltar, foi a meta da conquista lusa. Em 1415, a ação portuguesa foi bem-
-sucedida, a conquista da cidade africana foi consolidada, mas não significou
uma vitória mercantil, e sim, um desastre:
A conquista de Ceuta, em 1415, não representou, contudo, a constru-
ção de uma sólida rede comercial na África. A Ceuta portuguesa foi,
quase de imediato, isolada pelos mouros dos demais centros comerciais
e os grandes mercadores, inclusive transaarianos, desviaram suas rotas
da cidade, que passou a importar alimentos para o seu abastecimento.
Desde o início surgiram vozes, no próprio Portugal, de desacordo sobre a
manutenção, ou não, da cidade. O rei temia, entretanto, a belicosidade de
seus nobres, ou como nos diz o próprio Zurarar. O hábito de “travarem
arruídos e contentas entre si, como se lê que fizeram os romanos depois
que tiveram suas guerras acabadas e estava sob pressão dos seus filhos
mais novos, os infantes dom Henrique e dom Pedro, interessados em pro-
verem-se de domínios, independente do seu irmão, o príncipe do Duarte.
Como bem destaca, porém, Lúcio de Azevedo: “iniciada a passagem à
África, as mesmas necessidades da conquista impunham o alargamen-
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A conquista portuguesa poderia ter cessado em Ceuta. Diante do fracasso eco-
nômico, o reino lusitano se coloca em marcha para um projeto mais ousado,
amplo, a conquista das ilhas atlânticas e do literal ocidental da África; a formação
de um império colonial português exigia planejamento. Era preciso direcionar
recursos financeiros e humanos para vencer os obstáculos que as conquistas
marítimas exigiam.
A Escola de Sagres foi um exemplo da organização promovida pelo rei e
seus aliados. Sagres era um mosteiro onde se concentrou inúmeros técnicos em
navegação, voltados a desvendar e copiar mapas, aprimorar a engenharia náu-
tica e dar a Portugal um plano para sua aventura marítima. O Estado lusitano,
mais que qualquer outro, no século XV e XVI, abraçou profundamente o curso
marítimo por ser a condição vital para sua permanência. Se Fernando Pessoa
afirmou que “navegar é preciso”, foi porque ele tinha a dimensão do que repre-
sentava para a vida da nação portuguesa a conquista de terras além-mar, manter
a independência da “terra-mãe” na Europa. Portugal foi uma “matriarca” alimen-
tada por seus filhos; ela lhes deu vida, mas tirou deles tudo o que pôde em busca
de sobreviver a ameaças constantes dos reinos castelhanos.
O Estado português passa a reger no além-mar a mais importante força
econômica de sustentação da nação. São os benefícios propagados pelo poder
monárquico que garantem dentro do reino o sucesso ou insucesso das empre-
sas mercantis. Empresários que adquirem monopólios comerciais para portos na
África ou exploração das exportações dos produtos produzidos nas colônias. Não
por acaso, estar ligado à autoridade monárquica faz bem aos negócios. As famílias
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fio para o Estado e exigiu empenho de recursos. A monarquia precisou buscar
sócios para o empreendimento, porém foi avalista de garantias. Empréstimos
com banqueiros holandeses permitiram as condições iniciais para se estabele-
cer as primeiras unidades, mas foi o governo português assumiu que os maiores
riscos do empreendimento colonizador.
Vale ressaltar que o Estado português e, posteriormente, o brasileiro serão
ordenadores da prosperidade econômica e controladores da ordem social. O
autoritarismo fez a riqueza para aqueles que estão ligados de alguma forma ao
Estado. A sociedade teve e tem, pela imposição, uma desigualdade difícil de
superar; esta não pode ser justificada como se fosse natural, ela é uma condição
construída socialmente.
Ao longo da história brasileira se naturalizou, cristalizou no interior da
população, uma identificação muitas vezes semelhante às castas indianas. Não
somos a Índia, não há semelhança na história ou na forma em que a economia
e a sociedade foram constituídas, mas uma semelhança é a hereditariedade do
poder, o endurecimento da ordem social, o abismo entre os privilegiados e os
“condenados”, o que ainda é um desafio brasileiro. Considera-se que poder abu-
sar das pessoas e colocá-las como um instrumento a serviço de um determinado
grupo dominante é um direito naturalizado.
Portugal estabeleceu no Brasil uma sociedade diferente daquela estabelecida
na metrópole, porém, uma extensão do reino. Os privilégios dentro do territó-
rio colonial continuaram ligados a um grupo restrito de senhores detentores
do poder. Esta “casta” administrativa, política e econômica se diversificou nas
atividades econômicas e estabeleceu os hábitos de poder, famílias tradicionais,
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Engraçado perceber que esta condição de mando e seus rituais ainda se repetem de uma forma mais
declarada nas regiões agrícolas, que ainda preservam o tradicional ritual coronelista. Nelas, o senhor de
terras “faz e desfaz” das pessoas à sua volta. Usa-lhes e tem ao seu entorno um número significativo de
vidas dispostas a lhe satisfazer. Os que resistem sentem o peso da mão sobre suas vidas. As dificuldades de
poder satisfazer interesses e os bloqueios às buscas. Se quiser algo que dependa do poder terá dificuldade.
Já os apadrinhados do poder podem se elevar com facilidade, desde que beneficiem a autoridade instituída.
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As castas estabelecidas foram diferentes, dependendo de cada região do Brasil.
Elas se constituíram de formas e relações distintas, ligadas às atividades eco-
nômicas e ao ambiente cultural em que foram geradas, reproduzindo, por sua
vez, novos símbolos. A dialética das relações se coloca como ferramenta para
cunhar significados. Esta simbologia da autoridade permite que se aceite o que
em outros lugares se estabelece como resistência. O hábito faz das pessoas seres
que esperam ou não resultados de determinadas práticas, assim, constituiu-se,
por exemplo, a questão do trabalho, valorizado em determinadas regiões por
migrações de homens livres que foram as bases do trabalho no sudeste e no sul
do Brasil. Porém, nas regiões de predomínio do trabalho escravo, ele, o traba-
lho, não representou uma satisfação, mas penúria. Ser livre é não trabalhar, ser
feliz é não ter o labor diário como obrigação, peso.
O regionalismo é um elemento a ser considerado quando se fala da formação
da nação brasileira. Há condições distintas na organização dos espaços físicos e
humanos; o que foi viável em determinadas regiões, não foi em outras; o que se
teve, por exemplo, nas áreas de produção açucareira do nordeste brasileiro, não
se repetiu nas produtoras de café na região sudeste. Os tempos de formação dos
povoamentos de diversas regiões do Brasil, os relevos, os ambientes naturais,
A constituição do trabalho escravo foi fundamental para estabelecer as empresas agrícolas no Brasil, tanto
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no período colonial como na monarquia. Contudo, não representaram uma relação idêntica nas relações
de autoridade. Há peculiaridades no exercício do poder dos senhores de engenho e da aristocracia cafeeira
escravista do Império. No primeiro, a unidade agrícola era um mundo em si mesmo, não produzia sua
própria vida, mas tinha uma relativa autonomia na constituição social. Já, a economia cafeeira estava
vinculada a uma rede de produção, o Estado lhe era fundamental para gerenciar seus interesses. A
aristocracia cafeeira participava da construção do poder. Já a elite dos engenhos disputava e se rivalizava
com o poder instituído.
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europeus foram vitais para garantir o sucesso da conquista, mas também mani-
pularam os inimigos europeus visando ao mesmo interesse.
Darcy Ribeiro chega a argumentar a possibilidade de uma supremacia gua-
rani nas terras da América do Sul, ou em boa parte dela, na porção brasileira,
principalmente se o processo colonizador não tivesse se instalado. As guerras
indígenas eram uma permanência, um ambiente propício para certas possibi-
lidades. Desta forma, se o português era intencionado a se impor, a intenção
também residia entre os nativos.
Estas guerras de resistência ocorreram em diversos momentos da histó-
ria brasileira. A vitória da empresa colonizadora deu-se devido à capacidade
de organização da empresa mercantil ocidental. A condição em que a autori-
dade portuguesa se estabeleceu não foi simples, a conquista não foi uma ação
sem revés ou contrariedade, exigindo a alteração de estratégias de dominação;
existe uma mudança de curso e de negociação, um fluxo e refluxo na busca de
manter o poder.
Nos discursos de cunho nacionalista brasileiro, buscou-se resgatar o gua-
rani; fez-se da língua indígena uma simbologia da originalidade. Durante um
bom tempo do início da colonização, a “língua geral”, como era chamada o gua-
rani, predominou sobre vários territórios brasileiros.
A alimentação gerada na colônia é a alimentação indígena. A mandioca pre-
cisa ser lembrada como o alimento básico da população nos primeiros tempos da
formação social brasileira, era indígena e foi incorporada pelo colonizador em
conjunto com outros alimentos da “mesa”, hábito português. A roça, o contato
sexual com a mulher indígena, a formação do caboclo e a ocupação do interior
Seria o Brasil gigante pela própria natureza da mandioca? A conquista do território brasileiro foi feita com a
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permanência das comunidades caboclas, abandonadas, distantes, incialmente, do projeto colonial. Somente
nos últimos 150 anos foram anexados com a expansão agrária, a “marcha para o oeste” brasileiro.
foram diversos, com formas de organização que expressaram tradições das guer-
ras entre as tribos indígenas da América ou do continente africano, até mesmo
a reprodução da sociedade escravocrata dentro dos quilombos, que aparente-
mente deveria combatê-lo (trabalho escravo). Não podemos considerar que a
escravidão nos quilombos tenha reproduzido as mesmas bases de exploração
nos engenhos, porém ela existiu.
A escravidão enquanto instituição ainda está para ser entendida; faltam estu-
dos de suas relações dentro dos engenhos e fora deles. Na grande propriedade,
a relação estabelecida entre os indivíduos também precisa ser melhor compre-
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endida. O escravo tornou-se uma imagem generalizada, porém teve momentos
distintos dentro de condições específicas, com trabalhos nas lavouras que se dife-
renciavam entre si. A produção do açúcar e a lavoura da cana, a produção do
cacau, do algodão, as criações do gado foram diferentes da mineração.
O preço do escravo diferenciava de região para região. A oferta reduzida
de trabalhadores nas regiões menos produtivas ou que tinham um significado
periférico para o processo colonial lusitano influenciava no tratamento dado ao
cativo. O custo de manutenção de um escravo nas áreas menos produtivas para
a empresa colonial e seu retorno demorado enquanto mão de obra determinava
uma relação diferenciada com o senhor, seu proprietário.
Além dessa questão econômica, há a relação estabelecida entre o senhor e o
escravo, o homem livre e o trabalhador compulsório. Se em alguns momentos
o escravo se torna necessário para todas as atividades, como objeto de uso, um
patrimônio do senhor, ele também manteve relações íntimas com seu “proprie-
tário” e explorador. A miscigenação marca a formação do povo brasileiro. Parte
considerável e uma das mais importantes na constituição do elemento nacio-
nal é aquela estabelecida entre o homem branco, o colonizador, e o escravo de
origem africana.
Nos engenhos, na mineração, além de outras atividades, os libertos, alfor-
riados, quando eram pessoas simpáticas aos seus senhores, recebiam escravos
e reproduziam a escravidão em terras doadas ou adquiridas. Em Minas Gerais,
na história da produção de subsistência ou naquela voltada ao mercado interno,
há um número considerável de pequenos proprietários rurais que foram escra-
vos e tinham escravos.
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racional. O senso comum se estabelece como medida para tratar a discussão de
políticas públicas em relação aos afrodescendentes. A questão das cotas raciais, o
desemprego, a violência contra jovens negros ainda é debatida superficialmente.
A mesma escravidão que gerou violência, também constituiu nossa identi-
dade. Ela resgatou em nós um princípio comum de miscigenação, pregada ora
como o nosso mal ora como herança identificadora. A mistura que nos formou
ainda está sendo digerida pela sociedade carregada de preconceito, não conse-
guimos ter a plena consciência de nossa identificação como um povo fruto do
encontro, das possibilidades migratórias, da diversidade e não da segregação.
Hoje, quando falamos da violência praticada dentro da sociedade brasileira,
vemos que ela é histórica. Sua construção se deu ao longo de conflitos que se
generalizaram e persistem até nossos dias. Parecem “insolúveis”. Entender a ori-
gem destes conflitos, as condições em que ocorreram e as suas consequências
ao longo da história é um passo fundamental para resolver os seus reflexos nos
movimentos sociais da atualidade.
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Manoel da Nóbrega em sua marcha catequizadora
sobre os índios Guaianases, chefiados por Tibiriçá. A relação entre os indígenas
da região e os “homens brancos” foi intermediada por João Ramalho, coloniza-
dor que já habitava as terras do Planalto Paulista antes mesmo da fundação da
Capitania de São Vicente9.
Muitas destas empresas de catequização e o estabelecimento de núcleos de
povoamento tinham como meta apaziguar a convivência entre os nativos e os
colonizadores. Portugal e o Governo Geral implementaram ações de conquista
de regiões litorâneas e de áreas que entravam território adentro margeadas pelos
rios que desembocavam no litoral Atlântico da colônia. São Paulo, assim como
São Matheus, Vitória do Espírito Santo e São Sebastião do Rio de Janeiro são
resultados deste desdobramento.
A fundação de Salvador, por Tomé de Sousa, deu-se pelo combate aos indí-
genas, que tinham eliminado a primeira empresa colonizadora instalada na
Capitania de Todos os Santos (Bahia), 1549. Os sucessores do primeiro gover-
nador tiveram problemas com as revoltas nativas e a presença de estrangeiros
no litoral.
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A Serra do Mar ganhou este apelido, Muralha, ao longo da colonização. Sua extensão, do Rio de Janeiro ao
Rio Grande do Sul, significou um obstáculo à tentativa portuguesa de uma ocupação efetiva do interior do
território colonial que hoje corresponde à parte da região sudeste e sul. Em busca de instalar uma empresa
colonizadora que se efetivasse como uma ação sobre as intenções espanholas sobre a região platina, os
portugueses estabeleceram entrepostos para atingir as fronteiras do Rio da Prata e chegar o mais próximo
possível dos empreendimentos mineradores dos espanhóis.
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A Capitania de São Vicente foi o marco entre a fase de reconhecimento do litoral e a exploração exclusiva
do Pau-Brasil para o estabelecimento da colonização. Martin Afonso de Sousa foi o primeiro donatário a
tomar posse das terras estabelecidas pela coroa portuguesa, em 1530.
Em uma análise mais profunda, até mesmo a instalação do Governo Geral teria
sido uma ação de Portugal para garantir suas porções territoriais na América,
diante dos avanços da Espanha e, posteriormente, França, Inglaterra e Holanda
sobre outras partes do Império Colonial lusitano em outras porções do mundo,
como a África10.
Outro fato relevante na busca para a expansão do interior por Portugal foi a
conquista espanhola além da Cordilheira dos Andes. Ao conquistar as Minas de
Botosi, na Bolívia, os espanhóis estabeleceram uma importante unidade de ocu-
pação que permitiu o avanço sobre o Peru, Venezuela, Colômbia e, mais tarde,
a consolidação da ocupação sobre a Bacia do Prata.
O domínio sobre a bacia platina seria um dos episódios fundamentais para
a delimitação das fronteiras entre a colonização portuguesa e espanhola em suas
áreas coloniais. A forma afunilada do território brasileiro é um registro desta luta
por terras na região platina. Estabelecer as fronteiras nestes territórios implicou
em constantes ações de ocupação. Empesas de exploração foram implantadas
nas áreas extremas da colônia portuguesa. O Rio Grande do Sul e a indústria
da carne, as missões jesuítas implantadas às margens dos rios da Bacia do Prata
deixaram registros que ainda hoje são objetos de pesquisa por arqueólogos, his-
toriadores, antropólogos etc.
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Os portugueses assistiram as invasões e perdas de uma série de territórios na África, um dos fatores foram
os custos de manutenção de tropas em áreas de ocupação litorâneas onde foi difícil garantir a manutenção
de tropas. Cabo Guiné (1549), Safin e Azamor (1542), Alcacer Ceguer e Arzila (1550) são alguns exemplos
das perdas portuguesas em um curto espaço de tempo. Associados aos conflitos no litoral brasileiro com os
nativos, estes fatos geraram tensão e exigiram reação por parte da coroa lusitana.
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agente participativo das guerras de conquista. O elemento conquistador aliciou
parte dos indígenas em sua empresa aventureira pelo desejo de fazer a guerra,
isso era visto como honra para muitos indígenas.
Dois agentes sociais acabaram por se encontrar neste ambiente, o elemento
religioso e o conquistador bandeirante. Os dois serviram à coroa portuguesa,
mas foram fortemente influenciados pelas comunidades indígenas, com quem
conviveram e, de certa forma, colaboraram para alterar profundamente sua orga-
nização original. Enquanto muitos nativos incorporaram as técnicas ocidentais
de combate, outros foram eliminados por elas. Darcy Ribeiro (1995, p. 34) retrata
as guerras constantes em que viviam os tupis:
Cada núcleo tupi vivia em guerra permanente contra as demais tribos
alojadas em sua área de expansão e, até mesmo, contra seus vizinhos da
mesma matriz cultural (...). No primeiro caso, os conflitos eram cau-
sados por disputas pelos sítios mais apropriados à lavoura, à caça e à
pesca. No segundo, eram movidos por uma animosidade culturalmen-
te condicionada: uma forma de interação intertribal que se efetuava
através de expedições guerreiras, visando à captura de prisioneiros para
a antropofagia ritual11.
Esta tendência dos nativos buscarem a guerra como uma forma de afirmação
de seus próprios valores serviu ao europeu como instrumento de manipulação
das comunidades nativas para atender à ocupação do território e à submissão
11
Vale lembrar que José de Souza Martins não considera a antropofagia como uma prática dos indígenas
que habitaram o território brasileiro, diferente do que Darcy Ribeiro apresenta. Esta, até hoje, é uma
questão polêmica. Difícil de ser delimitada. Há registros por viajantes de atos antropofágicos, mas eles não
permaneceram ao ponto de ainda hoje serem detectados entre as comunidades indígenas.
rio religioso profundo, mas não são os únicos, os números de ordens religiosas se
multiplicaram dentro do território colonial. A presença das instituições católicas
apenas reafirmou a construção de uma cultura cristã profunda. Esta religiosi-
dade deu ao colono a compreensão de que sua vida era orientada também pela
fé, porém, com o contato com os elementos étnicos no território colonial, ao
longo das gerações de colonizadores, incorporaram a magia presente nos ritu-
ais indígenas.
Em alguns lugares do Brasil, nos seus múltiplos cantos, estão benzedei-
ras, parteiras, curandeiros, padres que dominam a cura pelas ervas, as receitas
miraculosas de garrafadas etc. São tantas as formas de estabelecer dentro de um
cristianismo a magia do afro-indígena que os terreiros de Umbanda ou mesmo
a importação do Candomblé são apenas um esboço.
Quem resistia a esta prática se lançava em um campo perigoso. A difícil fuga
da dominação estabelecia campos estreitos para a vida dentro do território colo-
nial: fugir para o interior e tentar escapar da conquista do “homem branco” ou
se submeter; crer ou se deixar morrer, como afirma Darcy Ribeiro (1995, p.43):
Mais tarde, com a destruição da base da vida social indígena, a negação
de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos índios dei-
tavam em suas redes e se deixavam morrer, como só eles têm o poder
de fazer. Morriam de tristeza, certos de que todo o futuro possível seria
a negação mais horrível do passado, uma vida indigna de ser vivida por
gente verdadeira.
Sobre esses índios assombrados com o que lhes sucedia é que caiu a
pregação missionária, com um flagelo. Com ela, os índios souberam
que era por culpa sua, de sua iniquidade, de seus pecados, que o bom
deus do céu caíra sobre eles, como um cão selvagem, ameaçando lançá-
-los para sempre nos infernos. O bem e o mal, a virtude e o pecado, o
valor e a covardia, tudo se confundia, transtrocando o belo com o feio,
o ruim com o bom.
Esta dominação se daria, neste sentido, diferente com o indígena do que o que
se processou com o negro. Enquanto com o primeiro se retira as condições de
sobrevivência que tinha, com o outro se amputa a vida em determinado lugar
para estabelecer a força em outro. Implanta-se o interesse da exploração nos dois
elementos, porém, com um se recria uma cultura diante do estranho (negro)
e com o outro se destrói a condição existente para implantar-se a dominação.
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Esta luta incessante entre os movimentos humanos em um ambiente colo-
nial e, posteriormente, o que viria a ser o território nacional imposto pela força
do Estado, seria contínua e necessária para formar um território nacional, o povo
brasileiro, regionalizado e unificado pela autoridade mais do que pela integração.
As condições de dominação se estenderam por grande parte do território
colonial com atos extremos de violência. O dominador legitimou seus interesses
de todas as formas que pretendeu, criou em torno de si um imenso patrimônio,
porém, o custo para a acumulação deste patrimônio ainda é elevado. Hoje, no
Brasil, são as áreas de fronteira agrícola que traduzem a violência em seu aspecto
tradicional. A violência dos primeiros tempos de colonização para a conquista
do território, o extermínio para tomar a posse da terra, na qual o dono do lugar
é aquele que permanecer de pé sobre ela é uma constante. Ainda hoje está pre-
sente em muitas fronteiras agrícolas brasileiras.
O ocidental venceu por dar ao território um sentido além das fronteiras. A
ambição do europeu se traduz na concentração de uma riqueza que gerou um
significado oposto àquele que o nativo estabeleceu sobre a natureza, desta forma,
há um encontro de sentidos diferentes. O branco (e seu mando), interessado no
empreendimento lucrativo e se identificando como um “civilizador”, se defron-
tou com um nativo em seu ambiente, vivendo sem a ambição acumulativa do
homem ocidental mercantil. Os indígenas em natureza apresentavam, sob diver-
sos aspectos, diferenças significativas em relação ao branco cristão. Uma destas
diferenças os aproximou, mas com sentidos diferentes na prática conjunta do
contato sexual. O “bem resolvido” indígena seduziu o homem branco, mas isso
não o livrou do extermínio:
Porém, esta construção da identidade não pode ser romantizada, necessita ser
analisada a partir das condições reais em que foram estabelecidas. A exploração
colonial instalada no território brasileiro é determinante no destino dos indíge-
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nas. A forma como tratamos o tema do índio e sua condição na atualidade nos
parece mais uma retórica saudosista que desconhecemos do que uma compreen-
são fundada na racionalidade gerada pela lógica dos fatos. Os relatos do próprio
Darcy Ribeiro, que nos serviu até aqui como uma orientação, são exagerados,
porém reflexivos. Não podemos negar o “mal feito”, sempre levando em consi-
deração para quem ele serviu. O processo colonizador exterminou os nativos
e lhes deixou à margem da sociedade. Destituiu as condições de sobrevivência
e gerou a obediência de forma torpe. O gozo que foi obtido ao se apropriar do
corpo da nativa foi acompanhado do ódio, não permitindo a extensão da con-
vivência necessária sobre a égide do respeito.
Dentro da construção da regionalidade, ambiente onde a identidade nati-
vista se formou, a religiosidade integrou as diferenças. Em todas as porções do
território formador do Brasil, a fé é elemento comum. A religiosidade preservou
a possibilidade de comunicação cultural entre os diversos espaços onde a pre-
sença da intenção colonizadora se estabeleceu. Como uma parte do folclore, as
diversas regiões brasileiras se consolidaram com variados rituais de fé.
O cristianismo foi, desde o período colonial, um elemento comum nas variá-
veis da relação entre os grupos étnicos formadores brasileiros. Há uma construção
gradativa dos símbolos religiosos e a definição de como eles se organizaram den-
tro do imaginário regional. A fé foi, também, fundamental para estabelecer a
compreensão da dominação.
OS BONS E MAUS
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O trabalho feito com as comunidades indígenas se desdobrou para regiões
cada vez mais distantes dos núcleos litorâneos, onde a colonização tinha se ini-
ciado. O empreendimento colonial produtor de açúcar ou de outros produtos
agrícolas voltados à exportação aos poucos estabeleceu uma sociedade escravo-
crata interessada na ampliação das estruturas de colonização que atendessem à
necessidade de uma elite colonial. Muito do regionalismo esteve ligado à ascen-
são de uma aristocracia agrária e extrativista, estas empenhadas na defesa de
seus interesses.
As empresas evangelizadoras se distanciaram de sua função inicial, servir
como evangelizadoras, mas garantir o domínio sobre os povos indígenas pela
coroa portuguesa. Uma das formas de compreendermos este distanciamento
é o posicionamento do Padre Vieira em relação à exploração de nativos no
Maranhão, no século XVII, quando o território colonial português foi invadido
pelos holandeses e o tráfico negreiro foi interrompido com parte considerável
das áreas produtoras agrícolas coloniais. Os empresários se voltaram para os
nativos na busca de trabalhadores compulsórios que viessem substituir a carên-
cia de mão de obra africana.
A extensão do território brasileiro foi fruto do deslocamento de missionários
e de bandeirantes; mais o segundo do que o primeiro se destacou na anexação
dos territórios que foram oficializados como portugueses pelo Tratado de Madri
(1750) e depois consolidados no de Badajós (1803), com a anexação de Sete Povos
das Missões. Os missionários também tiveram um papel de destaque no dese-
nho cartográfico do território do país.
tos e criações. Essa produção alimentou os indígenas aldeados, mas também deu
aos padres inacianos empresas econômicas promissoras. O governo de Pombal12
considerou a presença dos jesuítas uma “ameaça estrangeira” ao domínio por-
tuguês nos trópicos.
O empreendimento inaciano tinha aspectos duros nas relações de conversão
dos nativos, tinha uma ordem constituída sob uma orientação disciplinar militar,
rígida, onde converter implicava em domesticar o corpo. Os inacianos retiraram
a organização nativa das aldeias, da convivência na família, separando os idosos
e, principalmente, as crianças do seio familiar. Eles não queriam que os jovens
tivessem os vícios da vida “selvagem” que seus pais tinham. Consideravam que os
hábitos dos indígenas eram pervertidos e destruíam o caráter das crianças. Para sal-
vá-los, eram retirados desde cedo do convívio familiar e educados de forma rígida
na busca de formar uma geração afinada com os princípios da religiosidade cristã.
As gerações que se criaram dentro das missões e aldeamentos incorpora-
ram a fé cristã, mas alguns resistiram a ela. Muitas das empresas jesuítas viram
os nativos fugirem com a aproximação dos bandeirantes, eles desejavam ter uma
vida de aventura a ficarem condenados à pregação e à monotonia do cotidiano
doutrinário inaciano. Os paulistas das Bandeiras não foram só uma ameaça às
missões jesuíticas pelos ataques que faziam às comunidades missionárias, mas
também pela forma de viver, que seduzia os jovens indígenas.
12
O Marquês de Pombal governou Portugal entre 1750 e 1777. Seu governo foi marcado pela busca de
um empreendimento nacionalista, valorizando as empresas portuguesas. Sua administração foi marcada,
também, por problemas recorrentes de déficit orçamentário. Os gastos da coroa foram elevados quando um
maremoto atingiu o litoral de Portugal e destruiu Lisboa. Não por acaso o Marquês pensava em transferir a
capital portuguesa para o Brasil. Ato que foi executado mais tarde pelo Regente D. João VI.
A empresa inaciana chegou a ter mais de 150 mil nativos sobre seu domí-
nio. Em diversas partes da colônia portuguesa, os missionários jesuítas foram o
braço avançado da ocidentalização, porém, sonharam em organizar uma repú-
blica associada aos nativos, em especial aos guaranis, erguendo um território
livre onde os padres seriam os organizadores de um Estado separado do empre-
endimento colonial português e espanhol. Aqui se firma, na região da Bacia do
Prata, no século XVIII, a possibilidade de implantar uma República Guaranítica.
Em 1753, os indígenas da região de Sete Povos se recusaram à retirada do
território onde tinham se estabelecido em amplas áreas produtivas e se organi-
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zado em comunidades lideradas pelos padres inacianos. Alegavam que todo o
território tinha sido organizado pelos missionários e indígenas convertidos. A
luta deveria ser pela implantação de uma comunidade autônoma apartada da
colonização portuguesa e espanhola. Os jesuítas ousaram desafiar o reino portu-
guês e espanhol e constituir uma república guaranítica na Bacia do Rio do Prata.
Os jesuítas desejavam um território disputado pelas coroas ibéricas. Espanhóis
e portugueses desejavam o controle da desembocadura do Rio do Prata onde
desembocavam os rios Paraná, Paraguai e Uruguai. Uma região estratégica para
a invasão espanhola no interior do território boliviano, onde imperava o extrati-
vismo castelhano, mas a região também era valorizada pela produção agrícola e
a criação de gado. As riquezas produzidas pelos aldeamentos jesuítas instigaram
o interesse dos portugueses e espanhóis, exatamente em um tempo, no século
XVIII, em que a fé iniciava sua submissão aos interesses do capital.
As mudanças nos interesses portugueses sobre seu território colonial foram
um reflexo das condições em que o capitalismo ingressou em sua fase industrial.
A racionalidade da política econômica, que ganhou corpo na Europa, afetou, de
determinada forma, os interesses portugueses ligados às práticas mercantilistas.
A empresa comercial monopolista passaria a ser explorada pelo império inglês
para atender às demandas da produção maquinofatureira e valorizar o processo
de transformação de bens. Portugal buscou um desenvolvimento industrial para
romper com a dependência da economia inglesa. O Marquês de Pombal foi a
expressão política desta busca de autonomia portuguesa através de medidas eco-
nômicas nacionalistas.
Para atingir o seu objetivo, Pombal tomou uma série de medidas político-
--administrativas, mas também econômicas. A expulsão da Ordem Jesuíta foi
uma delas. A presença inaciana nas colônias portuguesas com o poder mate-
rial e humano adquirido em forma de terras, índios convertidos e membros do
clero, ameaçavam os planos de Portugal de romper com qualquer interferência
externa. A Igreja Católica, antiga aliada, passou a ser uma ameaça.
A retirada dos jesuítas, em 1759, desmantelou a política educacional e cate-
quizadora. A orientação religiosa e educacional promovida pelos inacianos não
se manteve dentro do território, porém deixou suas marcas. A religiosidade se
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será seu capacho aceitando suas imposições. Quem se aproxima do poder e lhe
dá apoio recebe as benesses do regime instalado.
O governo de Pombal foi o marco de uma política econômica despótica, ao
modelo lusitano, onde o poder do rei será sempre exercido, mesmo associado a
atos de desenvolvimento. O poder público, aqui, se coloca como determinante
das mudanças, gerador da infraestrutura e garantidor dos retornos financeiros
necessários e encorajadores do burguês.
Vale lembrar que a burguesia lusitana, assim como a brasileira, ao longo da
história, dependerá do poder público para lhe fazer as vezes e alimentar uma
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“covardia econômica” típica; ter influência no poder público permite favores.
Essa prática é antiga na nação portuguesa e remonta sua formação quando da
relação dos reis da Dinastia Borgonha e Avis, cada uma a seu tempo e intensi-
ficada com os Bragança.
Os empresários portugueses dependeram de sua coroa para a conquista do
mar; o empresário mercantilista na sua dependência, “sombra”, nos desdobra-
mentos da colonização, na busca por tomar posse de terras e estabelecer empresas
agrícolas. O comércio controlado pelo Estado é outra demonstração da depen-
dência da burguesia em relação ao poder público.
Não foi por acaso que, com a transferência da corte portuguesa, em 1808,
Dom João VI fundou o Estado Nacional Brasileiro, sem sua autonomia formal.
Esta seria efetuada por seu filho Dom Pedro II. Este, o herdeiro do trono por-
tuguês, se tornou líder do Estado-nação brasileiro. Uma liderança obtida pelas
condições estabelecidas por seu pai, quando transferiu a Corte de Portugal para
o Brasil. As condições geradas no passado, organizada por Dom João são per-
manências que a monarquia no Brasil incorporou e usou como prática política
constante. Uma delas foi o clientelismo e o nepotismo, o uso da máquina pública
para beneficiar os aliados do poder.
Dessa forma, o território foi se constituindo por uma autoridade distante
de parte considerável da sociedade. A grande maioria da população não convi-
veu com os serviços públicos, não conheceu o exercício da representatividade,
mas foi marcada pelas agressões constantes sobre aqueles que denominavam
seus súditos, nos tempos do império, ou cidadãos, na república. O Estado surgiu
e se impôs através de leis de gabinete, dos decretos voltados aos interesses das
existia para a administração portuguesa mais do que para os colonos. Era o resul-
tado de uma anexação de territórios a Oeste, além do Tratado de Tordesilhas.
O Brasil é colcha de retalhos costurada por linha dura. O regionalismo foi
vencido pela capacidade de intervenção e controle do Estado centralizador e das
alianças promovidas com membros das elites locais. Os oligarcas proprietários
de terras que ousaram enfrentar o Estado Português sofreram as consequências.
O poder regional dos grandes proprietários de terra, das oligarquias, se estabe-
leceu antes mesmo da formação do Estado nacional. Mantiveram-se depois de
um acordo implícito de legitimidade do centralismo em respeito ao localismo
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patriarcal. O senhor de terras tinha seus mecanismos para manter o controle
sobre uma grande massa de trabalhadores rurais. O poder se perpetuou e pas-
sou a significar uma tradição, lhe dava um significado incontestável na vida
social, cotidiana. As bases do Império (1822-1889) foram o acordo oligárquico
e a manutenção da escravidão amalgamada pelas forças de repressão, fossem elas
o exército ou as pertencentes aos senhores de terras e escravos.
A violência representa no Brasil um meio comum para garantir a ordem
interessante ao grupo dominante. A economia, neste sentido, explica sua orga-
nização na lógica de deter, com os instrumentos de repressão, de censura, ou
interpretação, as forças populares, assim como fazer cumprir o que se denomina
de “ordem estabelecida”. As revoltas ao longo da história brasileira expressam o
não reconhecimento pela sociedade do Estado estabelecido.
O que faz uma autoridade ser reconhecida? Na formação do Estado brasi-
leiro, há uma série de fatores a serem pontuados. Um deles é a repressão que o
Estado brasileiro exerceu e exerce sobre a sociedade. Foi excessivo em sua for-
mação e manteve-se ao longo de sua história. Não é por acaso que nossa relação
com o Estado ainda é conflituosa e engatinha para uma maturidade democrática.
Constantemente se idealiza o processo representativo como uma organização
social voltada a tomar o Estado e fazer dele um representante dos interesses
sociais, gestar organizações partidárias, ou associações civis, aptas a tomarem as
instituições públicas e fazê-las ser uma expressão da vontade popular. Contudo,
a história construída não é essa. O poder público não é público, ele tem dono,
tem seus “senhores”.
Quando a colônia dava os seus primeiros passos, era a casa grande nos enge-
nhos a sede administrativa da região. Fazia-se da propriedade do senhor a sede
administrativa da região, o espaço de convívio de todos. Quando a sede adminis-
trativa se instalou em um lugar próprio, o qual deveria ser público, foi instituída
sob a égide da extensão da “casa grande”, porém, os senhores locais trocaram de
lugar físico para simbolizar o mando ainda praticado dentro de seu patrimônio,
assim, o mando do poder público é a chibata do senhor sobre o escravo.
Sentimos todos os dias o distanciamento do poder público em relação aos
nossos interesses. O Estado é para nós um agente de repressão sentido de forma
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escravo através de uma política diplomática de combate ao tráfico negreiro ou ao
trabalho escravo no Brasil. Tendo como alvo o governo imperial, o governo de D.
Pedro II, por exemplo, manteve-se resistente. Não se pode negar, por mais que
os “ilusionistas” tentem, a abolição da escravatura foi o resultado da mudança
do contexto econômico mundial e das pressões diplomáticas sofridas pelo país.
Há o peso do movimento abolicionista? Há, mas não com tanta determinação
sobre o desfecho expresso na abolição.
O incentivo aos estudos das ciências exatas e técnicas nas reformas educacionais
que Pombal promoveu expressa isso. A expulsão dos jesuítas, considerados uma
ameaça aos interesses nacionais portugueses, foi uma das expressões do raciona-
lismo e produtividade buscadas por Pombal e mantidas no governo de D. João VI.
A transferência da capital, de Salvador para o Rio de Janeiro, foi uma das
medidas tomadas por Pombal para integrar o território colonial. Com ela, a extin-
ção das capitanias hereditárias e a implantação das províncias, colocando fim
aos administradores privados. A definição das fronteiras foi fundamental para a
nacionalização do comércio, a reorganização da política de produção a busca de
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A inteligência a qual Benedict Andersen se refere é o grupo de intelectuais formados dentro de um
determinado território, os quais terão o papel de formar os valores teóricos de emancipação. Na literatura,
esta condição fica mais clara. Parte, por exemplo, dos inconfidentes mineiros eram escritores. Ligados ao
Arcadismo, eles foram os responsáveis por dar à busca de liberdade um ideal social. Interpretaram teóricos
clássicos e gestaram um modelo, romântico ou não, nacional.
(1989), foi fundamental para a constituição dos Estados nacionais. É ela a líder
das ações rebeldes, bem-sucedidas ou não, que vão dar o tom da organização do
Estado e os moldes pelo qual se forma. Hoje ainda há esta inteligência. Os filhos
da elite continuam sendo formados nas academias fora do território nacional.
A política despótica pombalina foi um prelúdio do que viria. O despotismo
esclarecido instalado na administração portuguesa se fez sentir no reino e em
suas extensões, no Brasil com mais singularidade. A regência de D. João VI
retoma esta política. A morte de Dom José I, o monarca que tinha no Marquês
o seu ministro, fez romper parcialmente o projeto de racionalização da produ-
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ção e reorganização da máquina pública. A busca de formar em Portugal uma
política econômica voltada aos interesses da empresa capitalista e romper com
os misticismos religiosos e os humanismos elitizados foi frustrada parcialmente.
Foram os desdobramentos europeus ligados à emergência do liberalismo e
das guerras napoleônicas vinculadas à nova ordem econômica, política e social
um ato determinante para a mudança do curso da história portuguesa. Foi este
contexto o responsável pela transferência da Corte para o Brasil.
Porém, o deslocamento da sede do reino para os trópicos não era novidade.
Pombal já tinha esta ideia quando Lisboa foi abalada por um tsunami14: fazer
de Portugal uma potência capaz de enfrentar suas nações rivais, estabelecer um
poderoso império integrado que cobrisse o Atlântico e desse aos portugueses
uma dianteira econômica, que perdera depois da União Ibérica (1580-1640).
A mineração no Brasil foi importante para reorganizar as contas do Estado,
porém os recursos obtidos pela extração aurífera não foram utilizados em inves-
timentos produtivos. O erário público atendeu aos gastos da corte parasita. A
dinâmica econômica percebida em países como a Inglaterra, Holanda e França
não fora praticada pela monarquia portuguesa.
A debilitação do Estado português era o resultado de uma política de sus-
tentação de uma máquina pública onerosa e enferrujada, inchada pela elite
aristocrata, improdutiva desde sua origem. O trabalho não foi uma meta cultu-
ada no reino, mas, sim, viver dos benefícios do poder público ou das empresas
14 Portugal foi abalado por um tsunami em 1755. A cidade foi destruída. Até hoje há estudos sobre este fato.
Muitas incertezas sobre onde estaria o epicentro que provocou um avanço de ondas de mais de 10 metros
sobre a cidade. Calcula-se a morte de 10 mil pessoas com o evento.
lucrativas garantidas pelo monopólio. O objetivo era fazer parte do poder para
manter privilégios. Esta elite formada dentro e em torno do Estado português
foi um mal difícil de ser vencido, considero que o maior de todos.
A transferência da Corte para o Brasil, a implantação da sede do reino na
principal colônia lusitana, foi tomada como decisão temporária aparentemente,
mas se fez permanente pela intenção e pela ação do rei Dom João VI. O estabe-
lecimento de uma burocracia estatal foi o ato determinante da constituição de
forças sociais distintas. Mesmo implantando uma estrutura administrativa trans-
ferida de uma nação para outra, o Estado criado no Brasil ganhou características
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próprias dentro de uma lógica lusitana. A implantação só foi possível pela exis-
tência previamente, no território brasileiro, de práticas comuns em Portugal.
Algumas das práticas comuns foram o nepotismo, o patrimonialismo e o
intervencionismo. A família real foi a expressão da hereditariedade do poder e
a associação do sobrenome ao mando, ato existente no território brasileiro antes
do período joanino e potencializado com a chegada da corte15.
Neste contexto, o clientelismo e a gentileza deveriam ser recompensados. O
ato de colaborar é um pré-requisito fundamental para ter acesso aos favores do
Estado e ter acesso ao rei implicava em facilitar empreendimento.
Enquanto o Estado se estabelecia, uma sociedade amalgamada se constitui,
nas fronteiras estabelecidas, de forma autoritária ao longo da colonização. A defi-
nição do território foi mantida e expandida no período Joanino (1808-1821).
O reino deveria reproduzir em sua dimensão a intenção do Império, construir
uma nação poderosa e com capacidade de expressar a busca de ser uma potên-
cia. O mesmo Napoleão que fez Dom João VI se retirar de Lisboa foi inspiração
para implantar nos trópicos um grande território.
A inspiração em Napoleão, por sinal, seria mais evidente em Dom Pedro I.
O filho de Dom João vai mostrar que a ruptura formal com a coroa portuguesa
não irá significar a perda dos interesses de um poderoso território. O “gigante
pela própria natureza” é a simbologia da dimensão fadada ao insucesso, nunca
realizado plenamente para o povo, mas propagado como a redenção possível. O
15 O Estado português ordenou a desapropriação de casas no Rio de Janeiro para receber os membros
da Corte, sem indenização. Porém, muitos dos proprietários de imóveis na cidade do Rio de Janeiro
fizeram questão de oferecer seus bens ao monarca lusitano. Um primeiro ato de gentileza que deveria ser
recompensado pelo Estado em um momento adequado.
O POVO
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O Brasil se organizou dentro de uma lógica de integração ao capitalismo, porém,
foi sendo definido com elementos específicos de cada região, onde as relações
geraram identificações próprias.
Estamos falando deste regionalismo perceptível e descrito por Darcy Ribeiro
(1995) como “cinco brasis”, cada um deles com uma história de formação distinta
em diferentes regiões foram resultados de uma empresa colonizadora autori-
tária. Hoje, é possível perceber as consequências desta formação, os traços de
identificação regional que se preservaram ao longo do tempo e incorporaram
elementos de regiões mais distantes. Uma organização imposta por lutas, dizima-
ção e exploração, porém, de encontros fundamentais para as misturas de raças.
O Brasil caboclo da região amazônica, marcado pela miscigenação do indígena
com o branco, é típico dos desdobramentos das bandeiras, missões religio-
sas e migrações de nativos e miscigenados da exploração colonial portuguesa.
Permaneceram, por muito tempo, isoladas dentro do território. Os seringuei-
ros são expressão desta possibilidade de viver isolado na mata e extrair dela a
sua sobrevivência. Isolado na floresta o homem vive e retira dela seu sustento.
O conhecimento indígena permite a vida no ambiente que é inóspito para uma
parte considerável do civilizado. O território amazonense está longe de ser um
ambiente de ocupação intensa, sua população não preencheria a quantidade de
habitantes da capital paulista, porém, é o território que guarda a originalidade
da maior parte dos nativos.
No nordeste brasileiro se formou o sertanejo, ser sofrido que habitava as
regiões formadas pela periferia dos engenhos constituídos no Período Colonial.
Muitos deles se transformaram em vaqueiros e outros em agricultores de terras
nacionalidade, mas se misturaram com facilidade aos elementos dos trópicos. Já,
os que habitaram as terras do sul, as fronteiras agrícolas dos pampas, das regi-
ões serranas e planaltos às margens da Bacia do Prata, mantiveram traços de sua
nacionalidade de origem. Porém, estes imigrantes, italianos, alemães, eslavos,
ucranianos, japoneses, fundaram muitos quistos étnicos, geraram conflitos e são
uma exclusividade brasileira. Não se encontra na Alemanha os nossos alemães;
nossos japoneses e italianos falam uma língua que se distanciou em muitos ter-
mos da língua pátria.
Não por acaso, pesquisadores da língua clássica alemã encontram no Rio
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Grande do Sul um campo fértil do uso contínuo de uma língua que ficou conge-
lada no tempo. O quisto racial, a fronteira cultural, gerou um isolamento fundado
no preconceito com o brasileiro. Os imigrantes que fundaram suas comunidades
não desejavam a cultura deste povo brasileiro, se pudessem, teriam transformado
o território que ocuparam em uma extensão de sua “mãe-pátria”. Eles não con-
seguiram a autonomia, mas organizaram um mundo “à parte”.
Hoje, partes consideráveis dessas comunidades se transformaram em pontos
turísticos, um atrativo para conhecer partes do Brasil invadido por um estran-
geiro. Blumenau, Nova Trento, Mafra, Pomerode, São Bento, São Leopoldo e
tantos outros são lugares de línguas correntes estrangeiras misturadas com um
português com sotaque de terras distantes.
16 A relação entre o exército e o poder no Brasil é íntima. Nos principais momentos em que a luta pelo poder
se estabeleceu, a autoridade militar se impõe como instrumento regulador, porém, nunca só, nunca com um
projeto próprio de governança e quando tentou, acabou por se isolar e necessitou se articular com os grupos
dominantes no Congresso Nacional.
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canos já estavam consolidados, os movimentos rebeldes, socialistas em especial,
reinventaram o militarismo. Um exemplo é a Revolução Cubana, liderada por
Fidel Castro, o general instituído por um movimento libertador e estabele-
cido com o mesmo simbolismo militar do general que se propunha derrubar.
As Forças Revolucionárias da Colômbia (FARC), enfraquecidas na atualidade,
aliadas ao tráfico de drogas, seu principal financiador, estabeleciam a busca pela
liberdade, mas se colocam hoje como um movimento dos camponeses, exata-
mente os repreendidos pelo militarismo guerrilheiro das FARC.
Mas voltamos à nossa Guarda Nacional e ao “coronelismo” que ela instituiu,
o militarismo como uma constante na vida brasileira. Ao longo da trajetória do
Estado Nacional, as rupturas e permanências têm sempre a farda como vesti-
menta de alguns de seus importantes personagens.
Na implantação do Estado Nacional (1822), quando da ruptura com Portugal,
vale lembrar que com o filho do rei assumindo o comando das tropas, que antes
eram portuguesas, os militares fizeram-se presentes como braço do Imperador.
Lima e Silva, seu oficial de ordens, foi um importante aliado para garantir a uni-
dade das forças necessárias para combater os portugueses na Bahia. O mesmo
Lima e Silva estaria à frente do movimento que pediu a renúncia do imperador,
em 1831. O militarismo se constituiu como a vertente do contraponto oligár-
quico da máquina pública. O “moralizador” do regime, como mais tarde os
marechais da Guerra do Paraguai (1864-1870) passaram a declarar, com base
no Positivismo com o qual eram simpáticos.
Os coronéis e a Guarda Nacional como relatamos anteriormente, desmo-
bilizaram parte do exército e transferiram seu poder de fogo e repressão para o
da máquina pública e aquele que depende de seus favores, tem aspectos do mando
agrário. Hoje, há meios discretos de controle dos votos mesmo com as elogiadas
urnas eletrônicas. O controle do eleitor se faz e se recompensa com pequenos
favores: dentaduras, panelas e tampas, contas de água, luz e aluguel pagos, furar
a fila do transplante e a guia de atendimento médico; estes favores contam como
meios para satisfazer e alimentar o poder da oligarquia agrária e urbana.
A miséria foi o “prato” em que os coronéis se serviram no passado, do Brasil
predominantemente agrário, para poder satisfazer a fome de poder. Mesmo
com o farto campo produzindo uma grande quantidade de produtos, a mesa do
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caboclo e do caipira permanecia vazia. A fome tem sempre duas formas de ser
entendida neste contexto: aquela que é satisfeita por quem tem o poder e a que
mata pelo estômago os que produzem o alimento.
Estes hábitos de mando não se desfazem com facilidade, pois instituem o
predomínio das forças que estabeleceram no Estado-nação sua marca. Não por
acaso, a terra, a propriedade agrícola de grande extensão, vista pela simbologia de
poder, nunca foi tratada com a lógica capitalista merecida. Ainda somos lusitanos
e medievais ao considerarmos que a porção de terra é a medida certa da riqueza.
Na agricultura adensada da atualidade, nas técnicas agrícolas e insumos que fazem
da terra árida fértil, há aqueles que na porção veem a razão da agricultura. O Brasil
sofre e perde com esta mentalidade arcaica, por não saber fazer o uso adequado
da terra, por uma cultura estabelecida sobre a idealização da propriedade rural.
Mas a estrutura extensiva da terra permanece, agregando, no passado, a
grande maioria da população do país. A zona rural foi o espaço de controle
da vida social, nela, as famílias de produtores agrícolas estabeleceram núcleos
coloniais, as vilas de camponeses, que geraram pequenos municípios, ainda
persistentes em algumas regiões do país, como no interior de São Paulo, Sul
de Minas e noroeste do Rio de Janeiro, onde há pequenos núcleos agregados a
antigas propriedades agrícolas. Foi neste ambiente que o imigrante europeu foi
arregimentado em meados do século XIX.
Na implantação de um capitalismo moderno, como o que temos na atu-
alidade, há uma mudança gradativa na estrutura de produção rural, a cidade
se sobressai como campo de concentração populacional e de mando social. O
mundo urbano capta um grande número de trabalhadores, estes deslocados das
A BUSCA DO “BRANQUEAMENTO”
O campo foi o responsável por grande parte da construção do Brasil. Não por
acaso, Ianni (1999) tem em uma de suas principais obras a análise da formação
agrária do Estado brasileiro. É na atividade agrícola extensiva que as relações
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Há inúmeros estabelecimentos de núcleos europeus no Sul do Brasil. Uma diversidade de nacionalidades se
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significativa de seus empreendedores. Estabelecimentos urbanos passam a ter
na fachada a lembrança da terra de origem. A ocupação das cidades se deu pelo
“acaso”. As cidades, receptivas à imigração, constituíram cortiços e isso dege-
nerou a convivência pela sua falta de planejamento, com alamedas espremidas
e formas desorientadas cortando as cidades. O português, dono de muitos dos
estabelecimentos urbanos alugou, despejou e especulou o mercado imobiliário.
Houve a concentração desordenada nas cidades litorâneas do Rio de Janeiro e
Salvador, mas também o Porto Alegre e Recife foram núcleos onde a falta de
infraestrutura propagou doenças e mortes em massa.
No século XIX, o Rio de Janeiro foi atingido por uma epidemia de varíola
e o imperador Dom Pedro II convocou profissionais de várias nacionalidades
para conter a doença. Neste momento, a medicina ganhava força no mundo e os
médicos se tornavam personagens sociais destacados na Europa, porém a ten-
tativa de cura de uma doença pela racionalidade da medicina não era vista com
“bons olhos” pela população. Enquanto para o governo era uma questão de ação
científica, por mais que autoritária, para a população, era mais uma tentativa de
aniquilamento popular.
A doença no Rio de Janeiro só foi erradicada na Primeira República, em
1904, quando Oswaldo Cruz, secretário de saúde do Rio de Janeiro, estabeleceu
a vacinação obrigatória da população. E para colocar em prática sua medida, ele
estabeleceu nos territórios dos estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná. No caso deste último,
sua emancipação em 1853, se desdobrando do estado de São Paulo, foi uma busca de ocupação mais intensa
do chamado vazio entre o sudeste e o sul. A imigração foi uma das formas encontradas pelo Império para
garantir a posse de terras que faziam fronteira com os países do Prata (Argentina, Uruguai e Paraguai).
O que ocorreu no Rio de Janeiro foi uma expressão do problema pelo qual
as cidades vindas do período colonial passaram. Várias delas guardam estes tra-
ços em seu desenho atual: o encontro entre a miséria e a abundância; a falta de
espaços públicos articulados com a valorização imobiliária. Outro problema,
denunciado pelos encontros que a cidade promoveu e promove, é a falta de sane-
amento básico, no caso do Rio de Janeiro, agravado no final do século XIX com
o aumento significativo da população.
Frédéric Mauro (1991) fala sobre o problema da cidade do Rio de Janeiro com
a chegada do imigrante no século XIX, um dos encontros marcados pela propa-
gação de doenças, o que desde a formação do Brasil é uma constante. A doença
denuncia a herança portuguesa em uma declaração de Charles Ribeyrolles, na
obra de Mauro (1991, p. 28-29):
Essas negligências um pouco portuguesas demais, essas infecções que
não arredam pé, esse desprezo insalubre pela água lustral são ainda
mais graves porque o Rio carece de ar. Nos morros entravam a venti-
lação da terra e do mar. Ela só chega por lufadas, nesta planície baixa
sobre a qual o raio tropical e os seus reflexos ardentes convergem como
em uma fornalha. Às vezes, nos tórridos calores do verão, a cidade fica
em fermentação, e até o negro procura abrigo.
Na obra de Mauro (1991), se fala em jardins não frequentados pelo calor, ruas
com esgoto a céu aberto, com uma proliferação de ratos em algumas das ruas
centrais. A cidade do Rio de Janeiro, assim como parte considerável das cidades
vindas do período colonial, convivia com o encontro entre o passado e o pre-
sente, e a necessidade de refazer os ambientes sobre a pena de um caos.
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se conseguia. Aqui, o morro passou a ser moradia dos desalojados e constituiu um
novo espaço para a resistência; as favelas nasceram e se multiplicaram neste ambiente.
Com este exemplo do Rio de Janeiro, podemos ilustrar os desdobramentos
urbanos de muitas cidades brasileiras. Diferentes de cidades como Recife, plane-
jada pelos holandeses, no século XVII; ou Petrópolis, planejada pelo interesse do
Imperador, no século XIX, as cidades tradicionais viveram este conflito. Hoje, mui-
tos dos grandes centros urbanos do país vivem uma guerra urbana, onde os espaços
públicos não são públicos e o tratamento é desigual dentro de um mesmo ambiente.
HERANÇAS E MUDANÇAS
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A burguesia no Brasil é dependente do poder público e necessita dele para
gerar condições favoráveis de produção, portanto, lutar com a burguesia sem ter
o reconhecimento do Estado ou fazer dele um campo de luta se tornou inviável.
Por isso os anarcossindicalistas foram mais eficientes ao reconhecerem o sindi-
cato como instrumento de negociação com o Estado.
O cotidiano operário também teve sua forma de organização cultural: seus
lugares, bares, moradias, músicas, esportes, linguagem, alimentos e os bairros,
como o do Bexiga, Moca ou o Brás18, lugares onde o ambiente denuncia uma
unidade entre os primeiros moradores na busca de uma solidariedade no campo
estranho da nação que os recebeu. Todo imigrante traz consigo os valores de sua
pátria e se agarra a eles nos primeiros tempos no lugar onde chega. É a forma de
enfrentar o estranho, de dar sentido às pequenas coisas no dia a dia. Muito desta
permanência é o resgate à origem como forma de sobreviver à pressão da explo-
ração do trabalho. Para os japoneses, o Bairro Liberdade teve a mesma finalidade.
Contudo, vale lembrar que os braços que construíram as cidades moder-
nas brasileiras foram os dos nordestinos. Não haveria a São Paulo de hoje, Belo
Horizonte, a expansão do Rio de Janeiro, Campinas e as demais cidades do inte-
rior paulista ou do Paraná sem a vinda e convívio do trabalhador migrado do
nordeste do país. A presença dos nordestinos deixou, no Brasil, traços cultu-
rais fortes, tanto quanto o italiano, o espanhol e português, e fez as periferias se
multiplicarem.
18 Tem quem fale que a pizza paulista é a melhor do mundo. Se é, não sabemos, mas que o mundo passou
por São Paulo passou e comer uma pizza no Brás e Bexiga é algo brasileiro que os italianos desenharam.
Luiz Gonzaga foi uma expressão do que o nordeste trouxe para o sudeste e
se propagou para o resto do país. Ele foi um de tantos outros também que fize-
ram de sua arte regional um passo para a conquista do restante da nação. Na
literatura de Jorge Amado ou na música de Dorival Caymmi, fundiram-se a arte
regional com o desenho de uma cultura nacional identificada com a diversidade.
O que Minas Gerais representou no Período Colonial, como o território de for-
mação brasileiro, a “esquina do Brasil”, São Paulo foi, no século XX. A capital
paulista recebeu o migrante, o nacional, e ambientou o estrangeiro, o italiano, o
espanhol, o português, o asiático.
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Vale lembrar que estes encontros não foram fáceis de digerir no conhecido
“país da diversidade”; houve movimentos que desejavam expulsar os nordestinos
de São Paulo. A busca por purificar a raça sempre perseguiu muitos na terra da
miscigenação e este preconceito existe até hoje. Na nossa última unidade, vamos
tratar deste tema, o qual ainda é uma ferida aberta.
O Brasil foi construído por muitas raças, porém houve o desejo de ter uma
pureza e a luta por esta busca gerou ações nacionalistas radicais de branquea-
mento, em especial, quando a abolição da escravidão se estabeleceu.
É importante recuperar neste contexto a questão da inteligência, os intelec-
tuais que interpretaram as transformações brasileiras ou tiveram que dar conta
de entender o Brasil sem escravidão e sua miscigenação. Uma das questões que
foram o ponto de partida para a discussão da “brasilidade”, “O que é ser brasi-
leiro?”, seguia dos sentidos distintos, nossa miscigenação seria um mal ou um
bem? Para compreender a formação do povo brasileiro, muitos intelectuais e
artistas se dispuseram a trabalhar os valores que formaram o Brasil, uns para
maldizer e condenar nossa origem, para eles, a principal responsável pelas maze-
las que assolam o país; já na compreensão de outros, o que temos de melhor é a
mistura. Segundo estes, a originalidade brasileira deve ser compreendida, enten-
dida e usada em benefício da nação.
Há inúmeros fatores que podem fazer despertar o sentimento de nacionali-
dade. Movido por acontecimentos internos ou influências externas, até mesmo
ameaças colaboraram para compreendermos o porquê a nação desperta. O
fato externo foi a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando as nações se
colocaram em confronto e mudaram as relações econômicas com regiões de
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exemplos. Mas como descobrir o Brasil?
O início do século XX foi carregado de buscas pela brasilidade. Esta condi-
ção se associou à formação de uma burguesia urbana, interessada em uma nova
organização do poder no Brasil e voltada ao mercado interno, principalmente. A
indústria de substituição de importados deu ao capitalista brasileiro um imenso
mercado a ser explorado. Um mercado aberto pela falta de produtos que antes
eram comprados dos europeus e passaram a ser substituídos pela produção nacio-
nal. Para poder se apoderar das decisões do Estado, e favorecer o mercado de
produtos da indústria nacional, era necessário participar amplamente das deci-
sões governamentais. Os empresários industriais brasileiros teriam que mudar
o curso da tradicional relação entre o Governo Federal e a aristocracia agrária,
relação histórica entre o poder oriundo do mando agrário e a máquina pública.
Para isso, se fazia necessário incorporar os elementos de origem do trabalho,
associar-se à luta pela construção de um Brasil moderno, exaltar a nacionalidade
e retrabalhar os símbolos de formação brasileira. Valorizar o elemento nacio-
nal, sua cultura. Estabelecer a cidade como o ponto de concentração social, pois
nela habitava o operário.
É exatamente o trabalhador urbano que se organizou em sindicatos e mani-
festava-se nas ruas das principais cidades brasileiras, São Paulo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre, Salvador, Curitiba, Belo Horizonte. Esta manifestação operária
gerou frentes ideológicas em forma de partidos. O anarquismo, o anarcossindi-
calismo e o socialismo foram suas principais expressões.
A intelectualidade, os meios de comunicação e a propagação de valores tam-
bém passaram por mudanças. Inspirados inicialmente no mando do grande
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estudar nos Estados Unidos, na Universidade de Columbia, e teve a influência das
ideias de Franz Boas. Passou pela Inglaterra e Portugal e desembarcou aqui com
parte de sua obra máxima, “Casa Grande & Senzala”, produzida em manuscritos
de recortes de papel, feita de lembranças e vivências. Como ele, Joaquim Nabuco,
Caio Prado Junior, Rui Barbosa e, posteriormente, Darcy Ribeiro, cada um à sua
forma e jeito, também determinados por seu tempo e origem, construíram nas
suas análises, o Brasil que se colocava à frente de seus olhos ou repousavam na
sua lembrança fervilhante.
A Semana de Arte Moderna, em 1922, pode ser trabalhada com um resul-
tado dessa proposta de redescoberta do Brasil. Mesmo quem não participou dela,
estava ligado a seus temas, é o caso de Monteiro Lobato. A Semana foi voltada à
Classe Média, consumidora cada vez maior de uma cultura nacional. Este con-
sumo, diga-se de passagem, era também uma forma de traçar fronteiras com a
elite oligárquica e dar um enfoque original ao seu gosto, o Brasil. No movimento
organizado no Rio de Janeiro e com braço em São Paulo, buscou-se resgatar os
valores brasileiros, porém sem perder o romantismo. Propondo-se a serem rea-
listas, os modernistas foram idealistas e deram um passo à frente, conseguindo
romper com a literatura de corte predominante no país.
Quando falo em idealismo no movimento modernista brasileiro, estou falando
de Mário de Andrade, o autor de “Macunaíma”. Nesta, o Brasil se inventa do
herói afro-indígena, que gerou relevos, sabores, esportes e crenças. O Brasil foi
uma invenção de um encontro natural carregado de coincidências inexistentes
no mundo real. Por mais que a diversidade seja um fato, sua construção é cheia
de cicatrizes e tem gosto de fel para seus construtores.
Villa Lobos não foi entendido em seus sons, um emaranhado sem lógica
para os críticos da época. O maior compositor clássico brasileiro foi reconhe-
cido na França e fez de sua música a expressão dos sons do Brasil, descobertos
por meio das visitas às regiões distantes para uma busca da sonoridade original,
porém arranhando os ouvidos acostumados à harmonia desejada dos seus clás-
sicos europeus. O ato de se negar também está na música e isso, para alguns, é
demonstrado na definição de nossa música como barbárie.
Nas artes de Di Cavalcanti, Anita Malfatti ou Menotti Del Picha estavam a
expressão do olhar sobre o novo Brasil. Os temas são antigos, porém sob novas
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cores; o trabalho, os problemas sociais, a vida cotidiana pintada sob uma nova
tonalidade dava ao Brasil um sentido novo. Porém, estabelecer a relação com
as raízes não significava estar satisfeito com o que se era. Todos consideravam a
mudança como algo necessário para o Brasil, mas qual seria o seu melhor destino?
Para uns, o melhor destino seria estabelecer um crescimento rápido sob a regên-
cia do Estado. A formação de um governo centralizador é imposta, fundada em
uma ética progressista e levada a cabo por militares ou grupos similares em hie-
rarquia. A questão da sociedade deveria ser resolvida, para este grupo, pela ação
de purificação, se destacando aqui mais uma vez a busca pela eugenia.
O integralismo de Plínio Salgado foi o que melhor expressou esta ideia de
desenvolvimento, autoritarismo e eugenia. Para ele, a indolência do brasileiro
e sua tendência à morosidade eram prejudiciais. Formar um elemento nacio-
nal disposto ao trabalho, determinado às regras e voltado ao crescimento seria
uma tarefa árdua e iria requerer uma ação de doutrinamento. Investir em seto-
res específicos voltados a essas medidas seria fundamental.
Nacionalista convicto, sua proposta era a de fortalecer o amor pela pátria,
assim o civismo deveria ser estimulado na escola, precisaria fazer com que
desde cedo as novas gerações mantivessem uma relação afetiva pela pátria e seus
símbolos. Plínio Salgado era literário e também fez parte do grupo modernista,
conviveu com outros pensadores que tinham posição oposta à sua, mas o nacio-
nalismo era um ponto em comum.
Enquanto Salgado buscava a eugenia, Gilberto Freyre publicava sua obra
baseada na miscigenação, onde era valorizando o regionalismo. E foram essas
diferenças locais que formaram o Brasil, os encontros entre os elementos étni-
cos formadores que trouxeram consigo as heranças dos lugares de onde vieram.
Porém, considerava que em cada região do país os encontros étnicos se deram
em condições diferentes, ou seja, seria impossível generalizar a formação ou lhe
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dar um padrão, como queria Salgado.
O posicionamento de Freyre contrariava a busca de um Brasil que fosse igual
em todos os sentidos. Para ele, o bem e o mal se encontravam em uma única
forma e nenhum teria existido sem o outro, como o caráter ruim, o bom; a ale-
gria e a dor, que formaram o que o Brasil se tornou.
Em diversos momentos da obra “Casa Grande & Senzala”, é possível per-
ceber a subjetividade exagerada. Há uma pessoalidade na forma de retratar os
elementos formadores e o perfil das três raças. Nota-se que Freyre tem certo
desdém pelo indígena, não o considerando com o mesmo valor que o afro ou o
português. Deste último, faz críticas degenerativas e coloca-lhe atos de prejuízo
pouco vistos em sua época, dar ao elemento europeu a responsabilidade pela
devastação moral, pela promiscuidade e violência que constituíram meios tor-
pes na formação da sociedade brasileira. Freyre foi ousado em dar ao branco a
responsabilidade pela contradição entre a santidade religiosa, moralista e con-
troladora do corpo – castidade e fidelidade – e ser o elemento que se utilizou do
mando, principalmente os senhores de engenho, para se apropriar do corpo das
escravas negras ou indígenas. Tudo isso em um tempo em que o elogio a nossa
parte ocidental cristã europeia era visto como civilizador.
Mas há mais que isso no nascimento de um olhar sobre o Brasil, há Caio
Prado Junior e a primeira análise com base metodológica marxista sobre a for-
mação brasileira. Foi em sua primeira obra, “Evolução Política do Brasil”, que
buscou fundamentar a formação da sociedade agrária com os engenhos e deu às
capitanias hereditárias e aos senhores donatários os aspectos de consideração feu-
dal, ponto criticado mais tarde como o “grande calcanhar de aquiles” de sua obra.
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país, como já falamos. Nesta busca e neste sentido, surgiram teses novas e com
mais sustentação científica. Pesquisas de campo, análises de documentos voltadas
ao estudo das ciências sociais, que se preocupavam em organizar o pensamento
afinado aos interesses de um tratamento racional às questões sociais.
Uma dessas instituições foi a Escola Livre de Sociologia e Política, de São
Paulo, uma instituição de tendência norte-americana, liberal-conservadora, mas
defensora da democracia, e buscava um alinhamento com a postura dos Estados
Unidos, algo que muitos intelectuais já demonstravam ao longo de seus traba-
lhos ainda na primeira república, como Quintino Bocaíuva e o próprio Joaquin
Nabuco.
Outra instituição importante a ser lembrada é a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, fundada em 1934, em São Paulo, um dos braços formado-
res da maior universidade do Brasil, a Universidade de São Paulo (USP). Ela
se colocou como uma corrente de esquerda e foi fortemente influenciada pela
escola francesa de ciências sociais. Seu principal expoente foi Armando Salles
de Oliveira, fundador da academia e responsável pelo peso que ela teve na for-
mação de outros intelectuais.
Na Universidade de São Paulo, ao longo de sua história, diversos pensado-
res produziram as mais importantes obras sobre a formação do Brasil, Florestan
Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e José de Souza Martins,
mas falaremos destes pensadores posteriormente. O que vale ressaltar no momento
é a atração que a USP promoveu trazendo intelectuais europeus, foi a chamada
“Missão Francesa”, na qual desembarcou Roger Bastide, Paul Arbousse-Bastide,
Fernand Braudel, Georges Gurvitch e Claude Lévi-Strauss.
AS COISAS MUDARAM
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Em 1930, Getúlio Vargas, também vindo das fardas e dos campos coronelistas
das estâncias gaúchas, se colocou à frente das tropas. Ele tinha na sua formação
os dois elementos de acesso ao Estado. Outro fator importante da ascensão getu-
lista é o chamado “vazio de poder”, estabelecido com a crise entre os oligarcas
agrícolas diante de uma sociedade que se industrializou parcialmente e teve na
cidade um núcleo de poder diferenciado daquele habitual da extensão de terra.
Os militares que apoiaram Vargas estariam contra ele 15 anos depois. Em
1945, um golpe dirigido pelo marechal Eurico Gaspar Dutra colocou fim à
Ditadura do Estado Novo. Vargas foi para sua fazenda em São Borja para voltar
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mais tarde “nos braços do povo”. Funda-se o Personalismo no Brasil e Vargas foi
seu autor, pois tinha carisma e deixou um legado de idolatria, a qual não morreu
e não morre, sendo um dos símbolos pátrios que Vargas construiu como legado.
A personificação do poder é uma construção típica de determinadas socie-
dades onde o carisma do líder tem na história das relações sociais uma constante.
A autoridade está relacionada diretamente ao culto ao líder. As práticas do poder
associadas a uma carga simbólica fundada no paternalismo e na religiosidade
construída ao longo do tempo. “O salvador da pátria”, aquele que com um ato
pessoal vai redimir toda uma sociedade, um cristo político, um messias.
O personalismo influenciou as sucessões de poder e ainda faz carreira dentro
dos cargos públicos eletivos; no Poder Executivo é mais fácil perceber os seus efei-
tos políticos. Com força e identificação carismática, esta forma de fazer política e
se identificar com ela tem o populismo, a identificação com o líder, governar apa-
rentemente para as massas e saber manter-se no poder, como grande expressão.
Juscelino Kubitscheck, Jânio Quadros, João Goulart, Ademar de Barros e,
recentemente, Luís Inácio Lula da Silva são expressões do populismo ou pelo
menos de suas heranças, identificando o povo com o líder como expressão paternal
sobre uma nação carente. A propaganda política pública colaborou para cons-
truir esta imagem de patriarca bondoso ou pai austero e preocupado. Getúlio
Vargas se dedicou a construir um Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP) e seus efeitos foram positivos em uma sociedade a caminho da urbaniza-
ção. O rádio, como meio de comunicação, também contribuiu para criar uma
ligação entre o governante e o povo.
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O Brasil não ficou imune a esta polarização, na qual também sen-
tiu os efeitos econômicos gerados. Nossa economia se dinamizou com a
aceleração da industrialização. As bases fundadas por Getúlio Vargas para receber
o capital estrangeiro e ampliadas por JK permitiram um crescimento econômico
acelerado. A migração da população do campo para a cidade, o êxodo rural, foi sig-
nificativo e também foi expressiva a preocupação em agilizar políticas públicas para
atender às novas demandas sociais. O crescimento urbano, como já falamos ante-
riormente, trouxe novas formas de organização e relações para o tratamento público.
Nesta perspectiva, temos a questão da América Latina dentro do jogo de for-
ças das duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética. Qual o papel que
as nações latino-americanas desempenharam dentro de uma economia mun-
dial que se multiplicava em multinacionais, aportando em países como o Brasil,
Argentina, México e Chile? Como entender o camponês latino-americano agora
jogado nas cidades ou explorado por novas formas de organização da produção
agrícola, a mecanização do campo? A reforma agrária, por exemplo, se trans-
formou em tema corrente nas décadas de 1950 a 1970.
Inúmeros teóricos passaram a defender, por meio de suas teses, o cami-
nho que a América Latina deveria tomar no jogo de forças da Guerra Fria.
Enquanto pensadores como Florestan Fernandes defenderam uma ruptura com
a dependência norte-americana e uma aproximação com a comunidade latino-a-
mericana, Raymundo Faoro (2001) vai orientar uma discussão de modernização
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econômica são reflexos desta permanência. Nos países mais atrasados, como no
caso das nações do Caribe, a realidade próxima à da colonização, agrária expor-
tadora, continuaria.
Foi por idealização de Celso Furtado que foram criados o Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Superintendência para o
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Ele participou ativamente dos gover-
nos de Juscelino Kubitscheck (1956-1961) e de João Goulart (1961-1964). Estas
atuações acabaram por marcá-lo como um protetor da burguesia nacional. Sua
postura protecionista lhe dava o perfil de defensor da empresa brasileira atra-
vés de barreiras alfandegárias e favorecimentos fiscais, pelo menos, foi este um
dos perfis de sua teoria; contudo, foi também incentivador do desenvolvimento
econômico.
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corre os lugares mais distantes do país e se vê na Amazônia, em Altamira, mas
lá a televisão também já havia chegado. E assim se redefine o tamanho do país
para os próprios brasileiros, também suas preocupações com os demais seres
humanos que habitam o lugar onde vivem, quem são e onde estão. A televisão
muda a noção de espaço e tempo, abre uma janela que traz de forma resumida
uma lógica complexa que não será sentida em toda a sua profundidade.
A sociedade onde as relações de produção econômica são complexas, onde
há uma cadeia internacional, envolveu inúmeras unidades produtivas; a deno-
minada “fábrica mundo” se expande e inclui todos os cantos do planeta em sua
rede de produção. Os bens gerados por esta rede são incompreensíveis quando
estamos diante dos bens produzidos. Aí entra em cena a simbologia midiática.
Ela vai reconduzindo os sentidos das relações sociais e invadindo o que consi-
derávamos próximo ou realmente preocupante. Os movimentos sociais urbanos
apresentam agora novas formas de entender o mundo que parece ser traduzido
nos meios de comunicação. A internet é um campo novo de investigação e rápido
de ação. Tivemos, em 2013, as manifestações de julho, e muitos consideravam
que seriam um marco na mudança do país, mas não foi. Não repercutiu efeitos
duradouros, porém, foi uma expressão nova que deve ser investigada.
Não é por acaso que os meios de comunicação estão ganhando um papel vital
nesta nova relação mundial de produção. A complexa cadeia que gera os bens abre
espaço para ambientes que expliquem ou reexpliquem a origem dos produtos. O
que Marx considerava a reificação dos objetos, da mercadoria, ou a simbologia
dos sentidos de Max Weber se propaga e intensifica. Muitos dos bens que utili-
zamos e nos relacionamos ganham significados distantes de sua função racional.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais
1. A formação do Brasil foi marcada pelo encontro étnico-cultural de três raças: o
branco, o negro e o indígena. Nesta condição se desenhou a colônia portugue-
sa e a afirmação de um povo marcado pela mistura. Havendo a relação entre o
interesse de obtenção de riqueza pelo colonizador e a resistência de escravos e
indígenas. Sendo assim, faça um relato histórico das resistências das classes
populares, passando pela invasão, escravidão, até a sociedade atual.
2. A formação do Estado nacional brasileiro foi marcada pela permanência da fa-
mília real portuguesa no poder. Desta formação original do Estado, com a mo-
narquia como regime, vivemos por muito tempo o autoritarismo. Ainda hoje é
possível perceber o quanto há de autoritarismo nas práticas de quem está no
poder. O nepotismo e o clientelismo são alguns dos exemplos de abuso do
poder público. Justifique esta afirmação.
3. Ao falar do regionalismo no Brasil, Darcy Ribeiro fala da existência de “cinco bra-
sis”. Cada um deles como sendo o resultado de encontros e migrações que se de-
senvolveram de forma variada em cada uma das regiões brasileiras, dando-lhes
aspectos sociais e econômicos variados. Sobre as características gerais desses
“cinco brasis”, leia as afirmações abaixo e assinale a alternativa correta:
I. – Na região amazônica, fruto da miscigenação entre o branco e o índio, temos
a figura do caboclo. Região essa que, por ser afastada e ter permanecido iso-
lada por muito tempo, possui ainda muitos traços nativos originais.
II. – No nordeste temos o sertanejo, herdeiro de uma escravidão abolida e sofri-
do devido às constantes secas que tornam a agricultura difícil e dão espaço
ao “coronelismo” baseado na submissão, não sem resistência, aos grandes
proprietários de terra.
III. – No sul e no sudeste temos o caipira, fruto das bandeiras, de incursões colo-
nizadoras ou guerras por disputas territoriais, que vive aflito diante do pro-
gresso que consigo traz a marcha agrária da qual ele tanto foge.
IV. – Na faixa litorânea a figura do crioulo é resultado dos encontros étnicos en-
tre brancos, índios e negros, que ao habitarem os primeiros núcleos urbanos
do Brasil, se dedicaram as mais variadas atividades.
V. – No sul, a leva de imigrantes acabou por disseminar as culturas estrangeiras
e eliminar a antiga cultura dos pampas.
É correto, apenas o que se lê em (enumere somente uma opção):
a. ( ) I, II e III.
b. ( ) I, II e IV.
c. ( ) II, III e IV.
d. ( ) I, II, IV e V.
e. ( ) I, II, III e IV.
261
Darcy Ribeiro é um dos mais importantes cientistas e pensadores brasileiro. Sua obra
é vasta e direcionada para a compreensão da América Latina e do Brasil, em especial.
Ele deu uma entrevista ao Programa Roda Viva, exibido pela TV Cultura, em 1995. Nela,
ele fala sobre a sua trajetória profissional, suas múltiplas atividades, e mais que isso, sua
paixão por conhecer o país, os brasileiros.
Um dos destaques desta entrevista é a produção do livro “O Povo Brasileiro”, o qual foi
uma das bases para a confecção desta obra que você tem em mãos. Com esta entrevista,
Darcy coloca o Brasil como uma nação a ser construída. Lembra-se dos autoritarismos e
relata sua paixão por ser um ser inquieto e de muitas atividades.
Aqui você tem um pequeno trecho desta entrevista:
Matinas Suzuki: Bem, para fazer esta entrevista histórica com o senador e antropólogo
Darcy Ribeiro, nós convidamos hoje o jornalista Zuenir Ventura, que é repórter do Jornal
do Brasil; a socióloga Maria Victoria Benevides, que é professora da USP; o comentarista
da Rede Cultura e diretor da revista Placar, Juca Kfouri; o jornalista Marcos Augusto Gon-
çalves, que é editor de domingo da Folha de S. Paulo; o colunista de O Estado de S. Pau-
lo José Castello e o jornalista Ricardo Noblat, diretor de redação do Correio Braziliense.
Matinas Suzuki: Boa noite, senador Darcy Ribeiro. O senhor, vendo as imagens que a
gente colocou aí, disse que “tinha saudades de mim mesmo”. O que o senhor quis dizer
com isso?
Darcy Ribeiro: Isto. Cada vez que eu vejo imagens dessas, que me colocam nas posi-
ções que eu ocupei, eu fico com saudade. Por que que eu não fiquei ali? Por que eu não
fiquei com os índios, tratando só de índio? Por que eu não fiquei só na universidade
dando aulas? A minha vida é uma variação constante. Eu sou um homem inconstante.
Se eu ficasse em uma coisa só, eu poderia ser o melhor etnólogo do mundo, porque
eu sou competente nisso. Mas enjoei. E depois eu poderia ser o melhor educador do
mundo também, um dos melhores, como Anísio Teixeira. Fui ministro da Educação, po-
deria ter ficado nisso, quietinho. Mas a política era irresistível. Fazer alguma coisa para
o Brasil melhorar, fazer alguma coisa para mais gente usar os instrumentos do poder
para mudar. Depois caí do cavalo, me jogaram no exílio. E lá eu fiquei, pondo remen-
dos nas universidades, inventando novas universidades, dando conferências, e, digo de
mim e do Fernando Henrique que “nós comemos o amargo caviar do exílio”, porque no
primeiro dia estávamos contratados. Então, muitos exilados passaram uma vida muito
dura, eu não gosto muito de falar do meu exílio, que o meu exílio foi um passeio muito
bonito, contratado de país em país. Então eu vim na minha vida variando assim. No
Rio, ao voltar, fui eleito. Fiz coisas formidáveis, quinhentas escolas para mil alunos. Uma
universidade nova [Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF),
implantada, em 1993]. Te digo: o ministro da Educação esteve lá para dar a aula inaugu-
ral. E disse que esta nascente universidade, que eu estou fazendo no norte do Rio, essa
nascente universidade é a quarta universidade do Brasil.
Acesse a entrevista na íntegra em:<http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/63>.
MATERIAL COMPLEMENTAR
Raízes do Brasil
Sérgio Buarque de Holanda
Editora: Companhia da Letras
Ano: 1995
Sinopse: Sérgio Buarque de Holanda é um clássico brasileiro. É
impossível entender o que somos e esta nossa forma de compactuar
com os mandos e desmandos e as nossas expectativas de termos
resultados pessoais com as relações cordiais. Nosso modelo
de autoridade é associado às heranças de uma nação marcada
pela desigualdade. Muito dos hábitos considerados nocivos são
constituídos em nossas origens e reproduzidos ao longo do tempo. Em “Raízes do Brasil”, Sérgio
Buarque de Holanda fala de nossa formação. Temos que saber de onde viemos para compreender
a realidade à nossa volta e darmos um passo na busca da mudança. Lembrando sempre que
qualquer olhar sobre o passado é um conceito e ele não significa a realidade. Temos que admitir
nossa pessoalidade mesmo na busca da racionalidade científica. Nas ciências humanas, não
há uma neutralidade como os positivistas defendem, mas há uma racionalidade na busca de
compreender os fenômenos sociais.
Material Complementar
Professor Me. Gilson Aguiar
V
O ENCONTRO COM O
UNIDADE
INDÍGENA E A PONTE COM
A ÁFRICA
Objetivos de Aprendizagem
■■ Estabelecer um relato sobre os encontros entre os elementos étnicos
brasileiros e suas consequências para a sociedade atual.
■■ Compreender a formação das comunidades indígenas antes da
chegada dos europeus e sua trajetória até a atualidade.
■■ Conhecer as condições em que a população africana foi
transplantada para a América portuguesa e a relação que
estabeleceru dentro das áreas produtivas.
■■ Analisar os resultados deste encontro em relação aos problemas
atuais derivados deste passado escravista e de exploração social.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Moradores da Terra Brasilis.
■■ Encontros étnicos e a formação do Brasil
■■ O resultado desses encontros e os reflexos na condição atual
brasileira
267
INTRODUÇÃO
A violência é considerada uma marca do país. Ela está estampada nos meios de
comunicação e toma o interesse de boa parte da sociedade. Ao tentar compreender
as imagens que são estampadas nos jornais, imagens essas associadas ao barba-
rismo diário de assassinatos, furtos, tráfico de drogas e vandalismo, nota-se que
o perfil dos agressores é quase sempre o mesmo: eles são afrodescendentes. Mas
isso corresponde à realidade? A violência é uma questão de raça, de cor da pele?
Para aqueles que trabalham esses temas com racionalidade, a resposta é não.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Introdução
268 UNIDADE V
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Não pretendemos construir o discurso da “história dos vencidos”, o que nos
parece sem função. Não há como refazer os fatos, mas há como entender suas
interpretações e permanências, as condições em que foram produzidos e seus
reflexos na atualidade. Um desses elementos foi o trabalho escravo, ele tem uma
relação direta com a discriminação racial na atualidade. Se desejamos combater o
preconceito, temos que conhecer e reconhecer os fatos da formação da sociedade
brasileira. Há uma gama de informações e análises que podem nos dar respos-
tas melhores do que a superficialidade com que o preconceito racial é analisado
na atualidade. Vamos tentar um pouco disso aqui.
Os combates eram marcados por disputas territoriais, foi o caso dos caingangues
contra os guaranis e destes contra os xetás. Guerras entre civilizações nativas
também foram a marca da coexistência entre astecas e texcocos para ampliar a
escravidão ou resistir a ela. Darcy Ribeiro (1995) acreditava que se os europeus
não tivessem chegado à América, os guaranis teriam construído um império
nas terras sul-americanas.
Mas essa variedade de povos que habitou a América antes da chegada dos
europeus não é originária do território. Na verdade, esses povos são herdeiros
de uma migração pré-histórica através do Estreito de Bering, há 15 mil anos.
Eles se espalharam gradativamente pelo continente, consolidaram-se em agru-
pamentos com ambientes distintos de sobrevivência e formaram comunidades
com interesses variados e organizações sociais particulares.
A população original de nativos anterior ao encontro com o homem branco
era calculada em 20 milhões. Hoje, restam menos de 2,5 milhões. No Brasil, há
uma parte considerável dessa população indígena americana, mais de 800 mil
(pelos menos dos que se declaram indígenas). As condições em que os nativos
vivem no continente, nos diversos Estados Nacionais que se formaram, não se
diferem muito. Em sua maioria, os índios estão marginalizados nas nações onde
vivem. Se há algum destaque sobre sua existência, está mais nos livros didáticos
das escolas do que no tratamento dado aos descendentes indígenas.
A população indígena que habitava o território brasileiro era de aproximada-
mente cinco milhões de nativos. As variações linguísticas, de hábitos alimentares,
ou organizações sociais dessa população eram variadas. Como exemplo, podemos
citar o mito do canibalismo entre as nações indígenas que habitavam o território
brasileiro. Para José de Sousa Martins, é uma lenda, não houve canibalismo, ele
teria sido uma construção do imaginário ocidental para justificar a selvageria e
permitir o extermínio dos índios. Já Darcy Ribeiro trabalha com essa possibili-
dade e fala dos rituais antropofágicos como forma de renovação da vida.
Independente de a antropofagia ter existido ou não entre os nativos da
América, repousou no imaginário europeu, de diversas formas, a demonização
dos indígenas. Outras formas de considerar os nativos pelos europeus foi a apro-
priação do corpo das índias e a mudança dos hábitos alimentares. A influência
da roça guarani garantiu o alimento no período colonial. O milho, a mandioca,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a bata doce e o amendoim foram alguns dos produtos que permitiram a supe-
ração da fome.
A língua também foi uma expressão da influência indígena sobre a popula-
ção branca. Em parte considerável do litoral, a “língua geral”, como era conhecido
o guarani, se propagou. Em cidades como São Paulo, fundada pelos jesuítas, ela
era a forma de comunicação da população. As identificações com a língua estão
expressas, hoje, no nome dos lugares, dos rios, das serras e das cidades.
A propagação da população nativa pelo território gerou nações e promoveu a
demarcação de territórios. As guerras eram uma constante entre nativos, às vezes,
dentro da própria nação. Os guaranis, os
tupiniquins e os tupinambás travaram
combates homéricos no litoral. Muitos
deles, durante o Período Colonial, ser-
viram como mecanismo de dominação
dos portugueses ou para auxiliar as
tentativas de invasão dos franceses e
holandeses. Pode parecer contraditório,
mas o indígena estava ao lado do branco
na conquista do território para a expan-
são da colônia portuguesa. As Bandeiras
(forma de expedição militar organizada
pelos colonos, cuja Capitania de São
Vicente foi o principal ponto de origem
e partida das expedições) eram formadas em sua maioria por indígenas apreados1.
Em todo o território correspondente ao que hoje é o Brasil, habitavam mais
de 215 grupos ou nações. Cento e oitenta línguas eram faladas entre os indíge-
nas, lembrando que a classificação dessas línguas, ainda hoje, sofre mudanças,
pois novos elementos são descobertos.
Os jesuítas foram os primeiros a tentar desvendar os múltiplos dialetos usa-
dos entre os nativos. Inicialmente, classificaram esses dialetos em tupis e tapuias,
língua solta e língua travada. A sonoridade e a construção das variações verbais
serviram como parâmetro para a transformação da língua indígena em escrita.
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1 Quando falamos do nativo apreado, estamos nos referindo àquele que intensificou sua convivência com o
homem branco, passou a incorporar alguns dos seus hábitos e promover relações de miscigenação. No caso
das Bandeiras, os nativos encontravam nelas a forma de exercitar a aventura, promover a caminhada para
o interior da floresta. Os guaranis acreditavam que a vida é uma eterna procura por um lugar para se viver
de fartura. Porém, pela própria natureza da crença em um paraíso, como nós ocidentais sempre tivemos
também, essa busca nunca é alcançada, porque o nosso destino é continuar caminhando sempre. O que se
exalta é o motivo para o constante deslocamento.
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tificação dos povos indígenas aldeados pelos padres da Companhia de Jesus. A
conversão se deu de modo autoritário, separando as famílias nativas, e as crian-
ças foram o principal alvo dessa conversão religiosa. Assim, após a maturidade, os
curumins tinham se transformado em adultos que temiam a floresta, com crenças
contrárias à vida na “selva”. Já não sabiam caçar, pescar, correr e guerrear. A depressão
foi um sentimento constante entre nativos aldeados2 distantes de sua vida original.
Contudo, e vale ressaltar, nada dizimou mais a população indígena do que
as doenças transmissíveis, pois milhares de nativos foram mortos pelas relações
que estabeleceram com o homem branco. A gripe, a sífilis e a tuberculose são
exemplos de doenças que se propagaram com a chegada da colonização euro-
peia, visto que a miscigenação fez a troca de bactérias e vírus se multiplicar. O
organismo do nativo assim como do homem ocidental passaram por mutações
devido ao contato com outros ambientes, contudo, essa mutação é uma condição
que leva séculos para acontecer, mas o tempo para que haja uma estabilização
no organismo foi e é o suficiente para o extermínio de uma espécie.
A destruição dos indígenas chegou a reduzi-los a uma população de pouco
mais de 150 mil almas. O interesse de se pensar é que nossa visão do extermí-
nio é sempre ligada à colonização. Contudo, foi depois dela que a violência se
estabeleceu com mais intensidade. O século XIX e início do XX foi o período
de um grande número de extermínio.
2 Não por acaso, quando os aldeamentos tinham notícia da proximidade de uma Bandeira, nativos
abandonavam a missão religiosa e se uniam à expedição vicentina. Quando isso não ocorria, eram atacados
pelos bandeirantes, que capturavam os nativos aldeados para eles se transformarem em escravos dóceis na
mão de colonizadores.
O início da relação entre indígenas e homens brancos foi pacífico, marcada pela
troca de presentes e de carícias. Já na relação inicial, o português seduzido pela
nativa e realizando seus desejos que em Portugal seriam vistos como pecado, com
essa nativa, deu origem ao primeiro brasileiro. O mameluco ou caboclo nasce
desse encontro. Muito do Brasil será povoado por esse elemento. Um encontro
constante que até hoje se dá e faz uma das faces mais importantes do Brasil, a
constante miscigenação.
As bugigangas trazidas nas caravelas encantam. O espelho parece um rio
congelado, um olhar para si mesmo que o nativo não tinha como hábito. Apesar
de vaidoso, de gostar da higiene pessoal tanto quanto da decoração do corpo,
o indígena não tinha o hábito do “amor egocêntrico”, ao qual o europeu estava
habituado, particularidade essa que alimenta ainda hoje as almas dos chama-
dos civilizados.
Nessa troca inicial também foram articuladas as primeiras explorações, como
no caso do Pau-brasil. A madeira extraída, que servia para a confecção de tinta
na Europa, existia em abundância do litoral da Bahia ao Rio de Janeiro. Os nati-
vos foram arregimentados para extrair a árvore em troca das delícias luminosas
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governo lusitano instalou o Governo Geral em 1549.
Uma das principais funções dos governadores era conter a resistência indí-
gena e promover o combate daqueles que gerassem resistência. A invasão francesa
(1555), na Baía da Guanabara, foi uma dessas expressões da resistência nativa aliada
ao invasor francês. Interessados em ampliar a crença protestante e se apoderar de
parte do território colonial luso, os franceses huguenotes se lançaram em uma
empresa colonial nos trópicos brasileiros e fizeram dos tupiniquins seus aliados.
As Bandeiras passaram a ter um papel importante para conter as invasões
estrangeiras. Os bandeirantes tinham uma formação com elementos miscige-
nados e que conheciam as técnicas de sobrevivência na floresta, este era o seu
lado indígena. Por outro lado, e ao mesmo tempo, tinham como meta a submis-
são do nativo aos interesses do colonizador, uma ambição típica do ocidental.
Ao longo da colonização, a presença dos nativos foi incorporada no cotidiano,
ou foram colocados em um lugar mais distante, devido à proliferação da escravi-
dão afro nas regiões litorâneas. Assim, esses nativos passaram a uma condição
de marginalidade, porém a chegada da exploração ao interior fez ser inevitável
o contato com o colonizador, o que gerou algo inevitável, o momento de maior
extermínio das comunidades nativas. Também foi o momento de busca para se
conhecer a forma de organização e preservação dessas comunidades.
Os deslocamentos das expedições colonizadoras no interior, a partir de 1870,
geraram uma releitura das comunidades nativas. A organização de novos alde-
amentos no Período Imperial (1822-1889) definia o nativo como um marginal,
ou seja, ele não era considerado um elemento nacional. Ele passa a ingressar a
condição de brasileiro no final do Império e na Primeira República (1889-1930).
3 Militar e sertanista, descendente de indígenas, muito sedo órfão, Rondon se dedicou à causa indígena
por dois fatores: sua origem e sua experiência em expedições pelo interior do Brasil. Foi responsável pela
instalação de cabos telegráficos no Mato Grosso, momento em que conheceu e passou a admirar a cultura
indígena. Ele ordenava a não reação aos nativos quando a expedição militar encontrava com os indígenas
ou era atacada por eles. Preservar a vida do nativo, para ele, era fundamental. O Marechal conhecia o sertão
como a “palma da mão”, pois viajava constantemente pelas áreas mais inóspitas. Ele era um bandeirante
moderno.
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de pessoas nas áreas de preservação. A fome atinge a reserva indígena e arregi-
menta os nativos à procura de sobrevivência na selva de pedra.
DEFENSORES DA SELVA
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A tendência é que os nativos venham a se aproximar, cada vez mais, das
comunidades tidas como civilizadas, das populações integradas à economia capi-
talista e dos efeitos da vida ocidental de mercado. Em muitos dos agrupamentos
e reservas, já se percebe o efeito do desejo pelos objetos e símbolos, pois os nati-
vos ainda desejam a troca de suas coisas pelas “coisas” do homem branco. Essa
troca continua desigual e promovendo, lentamente, o afastamento dos nativos
de sua originalidade.
O contato entre esses dois núcleos, a África sudanesa e o Nilo, foi marcado pelo
comércio entre o Lago Vitória e as regiões do Delta do Nilo. Muitos dos nobres
das dinastias egípcias eram negros e vinham de linhagens do sul do Império. O
comércio de escravos era praticado costumeiramente entre civilizações medi-
terrânicas e o império egípcio.
Fenícios, gregos, cartagineses, sicilianos e persas praticaram o comércio de
produtos egípcios e negociaram escravos em troca de alimentos. Na costa norte
da África, as cidades se multiplicaram como pontos de troca de grande quanti-
dade de bens que vinham do interior do continente. Esse comércio de especiarias
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e pessoas encantou muçulmanos, os quais avançaram sobre o norte africano à
procura de estabelecer seus entrepostos e dominar a orla do Mar Mediterrâneo.
Califas surgiram ao norte e desenvolveram a política de conversão e inte-
gração ao islã. Não por acaso, até hoje, as comunidades do centro-africano se
converteram, assim como, as do norte. Argélia, Nigéria, Marrocos, Egito, Líbia
são exemplos de nações com uma cultura muçulmana aguçada.
No que se refere aos sudaneses, esses foram convertidos ao islã no século X.
Essa conversão se fez refletir no Brasil, mais tarde, quando as revoltas de escravos
na Bahia estavam ligadas aos conflitos entre cristãos e muçulmanos. As chamadas
Revoltas dos Males assolaram a Bahia entre os séculos XVIII e XIX. Assim, ser
islâmico era um ponto a mais da resistência do negro à escravidão, lembrando
que essa cultura islâmica também se expressa nas roupas brancas das baianas.
Mas foi a expansão europeia que ocasionou a maior ruptura na trajetória
do continente africano. A conquista de Ceuta por Portugal (1415) foi o prelúdio
de uma expansão ocidental que se desenha até nossos dias, como afirma Edgar
Morin. Essa ocidentalização levaria à conquista do litoral africano no século XV e,
posteriormente, à sua anexação e divisão ao longo dos séculos XVIII a XX. Nesse
último, a emancipação dos países africanos deixou as marcas do poder europeu.
Na expansão marítima vivida pela Europa nos séculos XIV e XV, a con-
quista do litoral africano implicou novas rotas comerciais e o interesse intenso
sobre produtos. Pedras preciosas, marfim, canela, cravo, pimenta, café e seres
humanos foram alguns dos produtos explorados pelo mercado mundial fun-
dado pela Europa.
Ao serem trazidos para o Brasil, que absorveu 38,7% dos africanos traficados
para a América, eles perdiam suas origens. Diferentemente dos afros trazidos para
as colônias inglesas na América ou espanholas e francesas, no Brasil se arregimen-
tou um grande número de trabalhadores compulsórios para a empresa açucareira.
Portugal estabeleceu uma rede comercial extensa e sólida de comércio de
escravos. Entre os grupos étnicos trazidos para o Brasil, como escravos estão os
Bantos, vindos do Congo e da costa angolana, comercializados em Pernambuco,
Rio de Janeiro e, durante a mineração no século XVIII, em Minas Gerais. Também
foram trazidos os sudaneses, estes tinham uma conversão ao islamismo e vinham
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reram no caminho e seus corpos foram jogados no mar. Os navios negreiros
vinham abarrotados de escravos. O excesso de seres humanos nas embarcações
negreiras era um meio de garantir um bom lucro prevendo a perda de pessoas
capturadas pelo caminho.
Para se ter uma ideia do que significou a construção dessa ponte entre a
África e o Brasil, forjada de sangue, de muitas vidas deixadas como rastro no
Oceano Atlântico, o número de mortos com o tráfico é maior que a quantidade
de afros levada para ser escravizada nos Estados Unidos da América, 472 mil.
38% dos afros que serviram à escravidão europeia foram levados para as terras
brasileiras, por isso, somos o maior país afro fora da África.
O tráfico de escravos se lançou, principalmente, sobre as populações de ban-
tos, angolanos e sudaneses. As guerras tribais entre esses grupos e seus rivais
colaboraram no comércio de escravos. A guerra entre as tribos africanas per-
mitia e facilitava a captura de um grande número de pessoas. A negociação dos
prisioneiros com os europeus passou a ser uma constante. Muitas nações euro-
peias, além de Portugal, praticaram o tráfico – ingleses, franceses e holandeses.
A prática passou a ser uma atividade mercantil lucrativa. Para algumas nações
africanas, era uma fonte de sobrevivência, uma prática que se fez constante, con-
forme o contato com os ocidentais aumentava.
Para Portugal, o tráfico negreiro significou uma das principais fontes de
riqueza, muitas vezes e por muito tempo, sendo mais lucrativo do que o comér-
cio do açúcar. Assim, o produto incentivador do tráfico para o Brasil não foi tão
lucrativo e eficiente, enquanto prática mercantil, quanto foi o comércio de seres
humanos.
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estabeleceram as plantações de açúcar ou o engenho, na casa grande, o trato e o
uso do escravo tiveram os diversos fins. As mulheres escravas que eram novas,
por exemplo, também eram usadas na lavoura, porém, algumas eram colocadas
no serviço doméstico. Com algumas delas, o senhor teve seus filhos mulatos, os
quais carregavam no próprio nome o preconceito, o desrespeito, a condição a
que seriam subordinados nas dependências do engenho. A palavra “mulato” vem
de mula, animal que é fruto do cruzamento do jumento com a égua. A mula é
estéril pela própria condição de formação. Dessa forma, o senhor se considerava
um ser humano, a escrava um ser inferior, o filho, resultado desse “cruzamento”,
é um ser sem identidade.
Mas todas as miscigenações que se estabeleceram na colônia foram marca-
das por termos pejorativos. Se formos considerar o “mameluco”, filho do branco
com a índia, o termo vem do uso dos jesuítas e é uma redefinição para o indígena
traidor que lutava ao lado do bandeirante. Já o termo “cafuzo”, mistura do índio
e do negro, é considerado uma designação de indolência. Para concluir, ser bra-
sileiro também é uma forma de dar rótulos discriminatórios aos seres humanos
que ocupam esse território. Quase todas as palavras que terminam com sufixo
“eiro” são relacionadas à profissão ou ação de pouco valor ou de comportamento
desprezível: sacoleiro, muambeiro, maconheiro, trambiqueiro, cambalacheiro e,
também, o ser brasileiro.
O mulato, filho do senhor e da escrava, crescia no engenho com outras
crianças, tinha sua infância junto com os filhos dos escravos negros e do senhor.
Brincar era também exercitar o mando da escravidão. Os mesmos “amigos” de
infância seriam mais tarde divididos pelo mando de um sobre os outros. Porém,
lhe dado carinho, os gostos pelo cafuné (como a índia lhe fará o alimento sabo-
roso), cantará para ele dormir e, mesmo depois de tudo isso, será negado a ela
sentar-se com o senhor à mesa. Essas contradições se preservam na condição
de muitos dos mulatos e negros elevados na sociedade, pois nossos heróis afro-
descendentes nem sempre souberam lidar com sua origem.
Machado de Assis, por exemplo, era mulato, assim os amigos o chamavam
quando se encontravam na casa do mais importante autor da literatura brasileira.
Porém, Machado proibia que o chamassem pelo apelido nos encontros sociais. É
interessante ressaltar que, nas festas da corte, era convidado, pelas filhas do impe-
rador, a dançar, pois tinha dificuldade em encontrar parceiras, e pela boa educação
das filhas do monarca, exigia-se o esforço por parte delas dançarem com “o” mulato.
O maior literário brasileiro casou-se com uma mulher branca. Sua mãe que o criou,
negra, ele visitava sempre sozinho, aos domingos, na periferia do Rio de Janeiro.
Muitos dos nossos mulatos bem-sucedidos ainda fazem isso, tentam se branquear.
Suas origens os incomodam, pois eles compraram o discurso de desvalorização que
o branco lhes impôs. O branqueamento legitima a violência do mulato de farda con-
tra o negro ou mulato periférico. Por exemplo, em determinados momentos, ainda
na Primeira República, as forças armadas, os aparatos de segurança, tinham uma
grande quantidade de mulatos em suas fileiras, prontos para bater, exercer sua auto-
ridade subalterna, mas que permitia atos de branqueamento mediante a violência.
Também houve a resistência, a busca por negar a condição de escravo e fugir
do mando do senhor. Ela se propagou pelos quilombos, formas de organização
em comunidades que ainda persistem em diversos estados brasileiros, as quais
passaram a ser protegidas por lei.
OS QUILOMBOS
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colônia. A escrava que, por muitas vezes, era também um objeto de uso do senhor,
com seu consentimento ou não, foi quem deu a ele o gosto pela alimentação. Se
“envenenou” o senhor, foi mais com seus encantos do que desejando a morte dele.
Mas foi o quilombo a forma de resistência mais conhecida. As comunidades
quilombolas existem, hoje, em praticamente todas as partes do território bra-
sileiro. São registros vivos da resistência dos afros ao processo de escravidão e
uma forma de eles reproduzirem as características de sua herança cultural tra-
zidas da África, as quais permaneceram reeditadas em condições adversas na
colônia. A existência do trabalho escravo nos quilombos, durante o período colo-
nial, foi uma dessas expressões.
Os quilombos se constituíram como um núcleo de resistência em diversas partes
do território brasileiro. Concentraram-se em maior escala nas porções territoriais
onde o processo colonizador foi mais intenso, na região nordeste principalmente.
Em Alagoas, a formação do Quilombo de Palmares é um marco na resistên-
cia das comunidades marginais em relação à sociedade colonial, mas também
uma alternativa de convivência coletiva. Palmares abrigou não só escravos que
fugiam das lavouras extensivas ou engenhos, mas também brancos e indígenas,
fugitivos ou não. O fato comum é que todos eram marginalizados ou buscavam
uma alternativa de sobrevivência.
Os quilombos recuperaram muito da cultura afro em territórios onde a cul-
tura ocidental foi negada. Não podemos esquecer que a forma como a captura
dos afros e o tráfico foi organizada buscou eliminar a identificação dos africanos
com as suas comunidades de origem, pois esses africanos tiveram suas famílias
separadas e foram separados também de suas comunidades e dos membros dela.
4 O Quilombo do Campo Grande, em Minas Gerais, tinha práticas de ataque a caravanas e tropas que
vinham com uma grande quantidade de ouro. Os saques a essas tropas eram a forma de obter recursos para
a manutenção do quilombo, mas também acumular riqueza e garantir a permanência das castas dentro
dos territórios quilombolas. Há os que associam essa prática à resistência das periferias no Brasil. Assim,
os ataques feitos a bairros de melhor renda, pilhagens e resistência urbana seriam uma expressão do que os
quilombos praticaram no passado.
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nidade. Zumbi foi seu principal líder e Palmares durou mais de 100 anos.
André João Antonil (1649-1716) foi um jesuíta italiano, por mais que passou
parte considerável de sua vida em Salvador. Amigo do Padre Vieira, o qual o
convidou a vir para a Bahia, ele discordou em muitos pontos do parceiro de
Ordem. A questão da escravidão dos nativos foi um dos pontos de discórdia
entre eles. Porém nunca romperam sua amizade por isso. A maior obra de
Antonil foi Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Neste tra-
balho, o padre jesuíta descreve a economia e a sociedade do Brasil colônia,
em especial as relações econômicas e o poder dos senhores de engenho.
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A EXPANSÃO DO ESCRAVISMO NAS DIVERSAS PARTES DO BRASIL
organizado sem acarretar prejuízos aos senhores, mas marcado por uma pro-
funda discriminação do negro.
A imigração europeia foi a solução para a crise de mão de obra que se ins-
talou com a falta de trabalhadores para a expansão das lavouras de café. A lenta,
gradual e discriminatória abolição deixou os afros na periferia econômica. Como
saída, muitos migraram para as cidades à procura de trabalhos alternativos, fazer
o “bico” ou “biscate”.
A discriminação aumenta exatamente nesse momento, na hora em que a
liberdade chega sem gerar condições para que se alterasse a condição de explo-
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violência nesses cinco anos, a taxa de homicídios da população branca caiu 13%,
ao passar de 17,1 por 100 mil habitantes, em 2006 (15.753 em número absoluto),
para 14,9 por mil, em 2011 (13.895 casos).
Logo, fica evidente que todo histórico da escravidão tem sequelas, e isso
comprova que o que assistimos nos noticiários tem origem. Resta saber como
trabalhamos com esses dados e qual é o significado que eles têm e terão na his-
tória da sociedade brasileira.
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Na reportagem Três momentos da falsa democracia racial no Brasil, a jornalista Larissa Ve-
loso fala sobre três momentos de preconceito no cotidiano brasileiro. Ela aponta aque-
las atitudes pequenas que deixam marcas profundas e minam o discurso da democracia
racial. Leia, a seguir, um pequeno trecho:
Na rua
Nesta semana, conheci um cara numa mesa de bar. Ele tem 19 anos, é negro, alto, não
diria que é forte, mas tem um porte físico bem grande. É também incrivelmente simpá-
tico e um pouquinho nerd. Como ele mora num bairro vizinho ao meu, perguntei como
ele voltaria para casa. “A pé”, ele disse. Eu me admirei: “Nossa, eu não tenho coragem de
voltar a pé para casa à noite, vivo com medo de ser assaltada. Mas isso realmente não
deve ser problema para você” (eu não passo dos 1,60m, e ele tem mais de 1,80m fácil).
Ao que ele respondeu: “Bom, eu tenho um certo medo sim. Mas o pior nem é isso. O pior
é quando as pessoas têm medo de mim”.
Então ele me contou os diversos episódios no qual as pessoas atravessavam a rua quan-
do o viam vindo em sua direção. Ou quando apressam o passo quando ele se apro-
ximava. “Ontem mesmo eu estava descendo a minha rua, ouvindo música no fone de
ouvido, todo feliz, quando vi uma velhinha com uma criança mudarem de calçada para
me evitar. Cara, isso é algo que estraga o seu dia. Já cheguei a chorar por coisas desse
tipo”, desabafou.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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A violência continua e a consciência ainda não se fez da forma necessária. Estamos
ainda longe de rompermos o preconceito, pois ele está enraizado. Uma das for-
mas para conseguirmos buscar meios de consolidar a sociedade de encontro que
somos é a razão científica. Ou seja, conhecermos a história dos elementos que
nos formam, dedicarmo-nos a agir em prol da verdadeira inclusão, romper com
a desigualdade econômica e desassociá-la da questão da raça.
Somos ainda embebedados pela nossa busca de branquear, pois aquele sen-
timento que moveu intelectuais como Oliveira Viana ou Plínio Salgado ainda
encanta muitos ao retratarem o Brasil. Ou seja, ainda temos o sonho de esquecer
nossa mãe afro-indígena, mas ela existe e é a nossa melhor parte. Desse modo,
compreender de onde viemos sempre nos dá lucidez para tratar dos problemas
que enfrentamos, é o que a Antropologia no Brasil tem descoberto.
Ações educativas estão sendo feitas nesse sentido. Uma das questões impor-
tantes que se discute é a inclusão de afrodescendentes e indígenas no âmbito
educacional. As cotas raciais podem não ser uma resposta duradoura, se não
forem acompanhadas de outras ações, como: a busca de uma efetiva melhora de
renda e de empregabilidade, a inclusão pelo trabalho e pela construção de uma
dignidade de origem. Afinal, somos afros e indígenas, mais do que pensamos. Não
podemos nos apoderar da herança cultural deixada por raízes que nos explicam
tão bem e denunciam o porquê de sermos uma diversidade e não um padrão.
Na educação, medidas foram tomadas para que o ensino da história e cultura
afro fosse resgatado, mas pouco material está disponível para isso. O cumpri-
mento do Artigo 11, das Leis e Diretrizes Básicas da Educação afirma:
Porém, a Lei ainda é só um sonho, uma expectativa. A cada tempo, a cada dia,
podemos realizá-la ou simplesmente transformá-la em letra morta. Nossos atos
vão construindo o caminho que nos aproxima ou nos afasta desse ideal. Com
este livro, pretendemos contribuir para alcançarmos esse objetivo.
Considerações Finais
1. Há uma discriminação latente na sociedade brasileira. Essa discriminação tem
origem em nossa formação, mas como identificá-la no passado e descobrir
sua expressão na atualidade? Essa questão deve ser o ponto de referência
para a produção de um texto que leve em consideração a formação brasileira
com a participação do afro-indígena.
2. A África é um continente pouco conhecido por nós. O que ela representa? Uma
incógnita. Porém, faz-se necessário conhecer o quanto temos que aprender so-
bre o continente africano para entendermos nossa própria origem. Pontue o
que há de afro na cultura brasileira e como isso foi formado nas relações
sociais que formaram o Brasil.
3. Vários quilombos se espalharam por vários territórios como resultado de resis-
tências isoladas, com características próprias dos locais e das condições em que
foram criados. Sobre algumas características dos Quilombos que se formaram
no Brasil desde o período colonial, leia as afirmações abaixo e assinale a al-
ternativa correta:
I. - Os quilombos foram responsáveis em muitos casos, por realizarem um res-
gate da cultura afro em muitos territórios onde a ocidentalização foi negada.
II. – A escravidão era uma prática entre muitos povos africanos e chegou a ser
reproduzida nos quilombos.
III. – O continente africano tem uma diversidade imensa e nos quilombos, que
reuniam vários grupos étnicos, essa diversidade esteve presente.
IV. – As comunidades quilombolas em geral tinham características bem pareci-
das, portanto, podemos afirmar que mesmo espalhados pelo Brasil possuí-
am a mesma formação e práticas semelhantes.
É correto apenas o que se lê em (enumere somente uma opção):
a. ( ) I e II.
b. ( ) II e III
c. ( ) I, II e III.
d. ( ) I, II e IV.
e. ( ) II, III e IV.
MATERIAL COMPLEMENTAR
Brasil: Afro-Brasileiro
FONSECA, Marina Nazareth Soares
Editora: Autêntica
Sinopse: “Brasil Afro-Brasileiro” é o livro organizado por Maria Nazareth Soares
Fonseca. Um trabalho que busca pesquisas e análises sobre a formação afro
no Brasil. Vários dados surpreendem por demonstrarem o quanto somos
uma ponte com o continente africano. O país, carente de pesquisas sobre
nossa negritude, tem aqui um bom exemplar que resgata origens e dilemas
cotidianos.
A simbologia brasileira, as palavras e os lugares, a história e os dados
contemporâneos ajudam a desenhar o que somos: uma mistura.
Macunaíma
Baseado na obra de Mário de Andrade, Macunaíma (1969) relata a aventura
do personagem que é o herói brasileiro, o mito da construção do Brasil.
Marcado por uma origem de deuses nórdicos-afro-indígena, Macunaíma é
coisa nenhuma e todos nós. O herói, Macunaíma, sai em suas aventuras e,
nelas, gera as comidas, os relevos e, até mesmo, o futebol. Um bom começo
para se pensar, com uma obra da Semana de Arte Moderna de 1922, o que é
a busca de ser brasileiro e nossos múltiplos lados.
Material Complementar
299
CONCLUSÃO
Encerramos este livro com um olhar sobre a África, reconhecendo nossa “ponte so-
bre o Atlântico”. Somos um país com profundas raízes africanas. É importante nos-
Lembrarmos que os escravos não são fruto de um tráfico, de uma civilização pa-
dronizada, generalizada em nossas mentes. São muitas as nações africanas, muitas
civilizações e histórias distintas. Saber como elas se formaram é buscar pelo olhar
diferenciado que nos leva a uma ação consciente. Este livro buscou descrever um
pouco a história da África e a escravidão como instituição. Esperamos ter alcançado
com êxito nossos propósitos.
301
REFERÊNCIAS
MARTINS, José de Sousa. A chegada do estranho. São Paulo: Editora Hucitec, 1993.
MARTINS, Roberto de Andrade et al. Contágio: história da prevenção das doenças
transmissíveis. São Paulo: Moderna, 1997.
MARX, Karl. O capital: Crítica a Economia Política. Rio de Janeiro: Civilização
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MAURO, Frédéric. O Brasil no tempo de Dom Pedro II: 1831-1889. Tradução de
Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
MORIN, Edgar, KERN, Anne-Brigitte. Terra Pátria. Porto Alegre: Sulina, 2002.
MOURA, Margarida Maria. A antropologia cultural no seu nascimento. REVISTA
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PEIRCE, C. S. Semiótica e Filosofia, trad. Octanny Silveira da Mota e Leonidas
Hegenberg. São Paulo:Cultrix, 1993.
REGO, Luiz Felipe Urbieta. A China dos jesuítas: o Tratado da Amizade de Matteo
Ricci e sua contribuição para o diálogo cultural entre Oriente e Ocidente. Rio de
Janeiro, 2012. 158 p. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
RUSSEL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental: a aventura das ideias dos
pré-socráticos a Wittegenstein. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2001.
TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
TURNER, Frederick W. O espírito ocidental contra a natureza: mito, história e as
terras selvagens. Tradução de José Augusto Drummond. Rio de Janeiro: Campus,
1990.
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito Capitalista. Tradução de José Marcos
Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
305
GABARITO
UNIDADE I
UNIDADE II
1. Segundo Aguiar (2014, p. 77), “há de se considerar Hegel, o teórico alemão, fun-
dador de uma dialética histórica que influenciou parte considerável dos pensa-
dores alemães, entre eles Marx. Ele considera que se faz necessário compreender
o desenvolvimento das civilizações por meio do potencial que se constrói da
relação do homem com a natureza, de sua concepção de si mesmo e de sua ma-
turidade racional, gerando a superioridade de determinadas civilizações sobre
outras. Para Hegel, por exemplo, determinados grupos humanos que se encon-
tram em estágios primários, povos africanos e americanos, estão apartados do
progresso civilizador, estão fora de qualquer capacidade de contribuição para a
evolução humana” (apud LAPLANTINE, 2000, p. 51).
Ademais, o aluno deverá atentar-se à concepção de ciência e de seu objeto, o
homem, oriundas de vertentes como o positivismo e a estruturalista. Tais corren-
tes defendiam o estudo do homem em sociedade tal qual o estudo da natureza,
assim, as mesmas regras metodológicas foram aplicadas e disso derivaram con-
clusões como a concepção evolucionista da História.
2. Resposta presente no tópico “A QUESTÃO DA EMANCIPAÇÃO DO EVOLUCIO-
NISMO E A FORMAÇÃO DE UMA ANTROPOLOGIA FUNDADA NA PESQUISA
PARTICIPATIVA” (AGUIAR, 2014, p. 93).
3. c) I, III e IV.
GABARITO
UNIDADE III
UNIDADE IV
UNIDADE V
1. Deve-se discutir a vida dos povos nativos que habitavam o território que veio a
ser o Brasil antes da chegada dos portugueses e as transformações na vida dos
mesmos após a chegada destes, mas, sobretudo, dar destaque a marginalização
contínua das populações indígenas conforme a colonização se efetuou e, poste-
riormente, com a formação do Estado brasileiro independente, que não inseriu
esses indígenas completamente, pois, ou eles vivem afastados ou em contato
com a “civilização”, perdendo suas raízes e tendo os seus costumes destruídos.
Quanto ao negro africano, deve-se apontar que desde a escravidão eles viveram
em condições de trabalho insalubres. Conforme a escravidão foi perdendo for-
ças com o fim do tráfico, decretado em 1850, a abolição foi se delineando, con-
tudo, de forma lenta e gradual, o que legou aos ex-escravos e seus descendentes
à uma marginalização econômica. Se nas colheitas e na casa grande eles sofriam
com as chibatadas, após a abolição da escravidão, com a marginalização, se vi-
ram excluídos em sua maioria de condições que lhe garantissem qualificação e
por consequência, trabalho digno. Tudo isso gerou uma visão que, ao longo dos
séculos, identifica o negro à essas condições indignas, visão distorcida que gera
preconceito.
2. O continente africano é imenso e com uma diversidade cultural muito grande. O
Brasil, considerado o país mais afro fora da África, pois para cá vieram a grande
maioria dos africanos durante o comércio Atlântico de escravos. Das etnias que
se destacaram, encontram-se os bantos, os sudaneses e angolanos. No campo,
na indústria açucareira ou na casa grande, os africanos serviam ao senhor de
várias formas e ao mesmo tempo formavam muito do Brasil. A preferência por
jovens resistentes ao trabalho legou resistência física, assim como as mulheres
escravas deram vida a muitos dos filhos “mulatos” que formam o povo brasileiro.
Em Minas Gerais a mineração foi responsável por tornar esse estado um estado
negro, acrescentando à cozinha o feijão, a carne da galinha d’angola e muitos
temperos. Vemos progressivamente aspectos afros adentrando a formação do
povo brasileiro e da sua cultura.
3. c) ( x) I, II e III.