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UMA ESQUERDA DISNEY WORLD

Nestes últimos três anos, continuamos a observar o avanço do reformismo, que


mantém a ilusão ofertada à classe trabalhadora de que as eleições mudarão a
vida, que as eleições seriam a saída para a classe trabalhadora1

Neste momento que escrevo, dia 12 de maio, já são 11.519 mortes por COVID-
19 no Brasil. No mundo, são 283.2712 mortes e cada uma dessas vidas importa.
Vivemos na crise do capitalismo, diante de uma pandemia e governados por
uma burguesia decadente, ultraconservadora, miliciana e que debocha da vida
de mais de 200 milhões de brasileiros.

O número de desempregados explode no Brasil. As fontes de pesquisas ligadas


à classe burguesa falam de 13 milhões de trabalhadores sem emprego (dados
formais da própria patronal). Ainda confessam que esse número ultrapassará 17
milhões, de acordo com pesquisa da Fundação Getúlio Vargas3.

A questão é que estes números apresentados pelas instituições que defendem


o capitalismo já estão ultrapassados. Outras instituições de pesquisas, que não
são financiadas pelo capital – como, por exemplo o Instituto Latino-americano
de Estudos Socioeconômicos (ILAESE) –, são categóricos ao apresentarem os
números, e eles são bem diferentes. De acordo com o Anuário do
ILAESE/2019, o número de trabalhadores sem emprego é de 45 milhões. O de
subempregados é de 33 milhões 4. Os dados do ILAESE escancaram os dados
utilizados pelo governo Bolsonaro e os métodos de levantamento das
instituições burguesas sobre a realidade.

O ministro da economia, Paulo Guedes, anuncia sem pudor, em uma


live/conferência com o banco Itaú-BBA: “200 milhões de trouxas são explorados
por seis bancos”5. A burguesia nem se preocupa mais em manter escondido o
1
Esse artigo já fora publicado em agosto de 2017, em uma pequena plataforma de
textos, nada sofisticado como nosso jornal Balaiada. Foi difícil não desejar publicá-lo
sem mudar absolutamente nada. Todavia, ele foi revisto, pois a história não para,
embora os problemas possam permanecer. E, neste caso, os problemas se ampliaram.
2
Esses dados estão disponíveis em: https://covid.saude.gov.br/ e em
https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019. Acesso em 12 de Maio de 2020.
3
Release da pesquisa disponível em :
https://portalibre.fgv.br/data/files/0B/86/7D/E0/7E151710199794F68904CBA8/Indicadores%20de
%20Mercado%20de%20Trabalho%20FGV_press%20release_Mar20.pdf. Acesso em 10 de Maio de 2020.
4
Dados disponíveis em: https://drive.google.com/file/d/1tgl7OQWxJRgxwhNcbf-qDqjLC1Dq1bsk/view.
5
A conferência toda pode ser acessada em:
https://www.facebook.com/AANoticiasePolitica/videos/243364503565613/. Acesso em 11 de Maio de
que realmente pensa em relação ao que se deve fazer diante da crise. Para
além destes lacaios do capital, precisamos debater francamente a seguinte
questão: qual é a saída para a classe trabalhadora?

A opção reformista

Entre os reformistas, existem aqueles que falam em nome de um certo


socialismo, aliado dos grandes representantes da burguesia. Defendem a
conciliação de classes, a via eleitoral para solucionar a crise do capitalismo,
enfim, falam de um capitalismo humanizado. Para isso, dizem: “é preciso votar
certo da próxima vez!”.

Continua sendo cada vez mais difícil publicar palavras de verdades.

Neste artigo, o caro leitor terá acesso a algumas palavras sobre os limites do
socialista de salão.

Como sempre, inicio limpando o terreno: por esquerda Disney World, refiro-me
a perspectiva que se apresenta como revolucionária em nosso tempo presente,
mas que ignora fundamentalmente o conceito de Revolução Social
desenvolvido por Marx, mesmo se autointitulando “marxistas revolucionários”.
Proponho um diálogo direto com a imagem que István Mészáros chamou de
socialismo Mickey Mouse, ao referir-se àquele tipo de socialista caricato,
medíocre e hipócrita, que na verdade não possui nada de socialista em sua
perspectiva política6. Mészáros se referia diretamente aos social-democratas, ao
Partido Trabalhista Inglês, aos reformistas em geral na Europa. Aqui, ampliamos
um pouco a imagem, ao nos referirmos à esquerda Disney World, pois apenas o
Mickey Mouse não daria conta de representar tantos traidores da classe
trabalhadora diante da crise mundial.

Muitos desejam Lula em 2022. Por isso, preferem chamar à unidade para as
eleições (com as mesmas regras) e não à “greve geral” como ação direta para
combater os planos de austeridade do capital em tempos de pandemia. Penso
que é legítimo gostar de Lula. Afinal, foi um grande dirigente sindicalista que se

2020.
6
Em entrevista gravada para o programa Roda Vida da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura) em
12.06.2002, respondendo ao apresentador Heródoto Barbeiro “O que é um socialismo Mickey Mouse?”.
Transcrição da entrevista completa disponível em:<
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/266/entrevistados/istvan_meszaros_2002.htm>. Acesso em 11
de Maio de 2020.
tornou presidente do Brasil. Mas não soframos de amnésia: governou para o
capital, conciliando (ou tentando conciliar) classes sociais antagônicas. Todavia,
a luta por eleições gerais, com as mesmas regras, não é a pauta de uma
perspectiva revolucionária. E aqui tocamos em uma questão bastante
vulgarizada: a perspectiva revolucionária.

O que as pessoas pensam ser Revolução?

Reivindicar esta perspectiva não é exclusividade de um ou dois grupos políticos


na história. Mas a vulgarização daquilo que se reivindica revolucionário me
parece facilmente constatável no nosso tempo. Se diz revolucionário daquele ou
daquilo, de comportamentos, pessoas e coisas. Diante da vulgarização, tudo se
transforma em revolucionário. O uso de uma roupa, um tipo específico de sutiã
confortável ao corpo; o consumo de algo que nunca se consumiu – por
exemplo, um pudim, indiscutivelmente especial; um viagem inédita para a
Disney; um perfume também inédito que provoca sentidos únicos; a compra de
um tipo de carne, com um tipo específico de molho especial; o acesso a lugares
magníficos, como a Transpantaneira, Chapada dos Guimarães, Serra do
Roncador, Shopping Iguatemi, a quitanda da esquina, o Parque do Ibirapuera, a
praia de Bertioga, entre outros lugares; aquela farofa de carne seca; o secador
de cabelos de última geração; o “pretinho” para passar no pneu do veículo…
tudo isso e muito mais pode ser chamado de revolucionário, mas não é.

A partir de onde posso afirmar que algo é ou não é revolucionário? Posso fazer
uma afirmação desta? Posso, faço. Como?

É preciso entender que o que “eu” desejo, considero ou entendo como


revolucionário não é necessariamente revolucionário. E isso não acontece
porque existe um “revolucionariômetro”, mas porque há uma consideração, a
partir de uma tradição, que tem seus referenciais teóricos e revolucionários. E
teoria aqui é uma atividade ideal a partir do mundo concreto, real, vivo,
necessariamente tangível. Não de ideias que brotam do nada, ou de qualquer
relação com utopias. Referencial teórico, na perspectiva marxiana, é aquele que
pensa a realidade do presente considerando o processo histórico em suas
múltiplas determinações. Em outras palavras: o complexo de complexo, a
totalidade.
Se ficássemos apenas no campo da epistemologia, Revolução é um conceito e
tem lá suas definições dentro de uma tradição revolucionária. Todavia,
Revolução é um conceito e aqui ultrapassamos o sentido epistêmico (sem
ignorar a episteme) e adentramos no campo ontológico do ser.

O conceito de Revolução desenvolvido (não simplesmente criado como se


fosse um raio em dia de céu azul) por Karl Marx tem as suas determinações,
não sendo possível adaptar o conceito de acordo com o imperativo da
subjetividade em um tempo histórico determinado pela vontade do ser. Criar
uma “perspectiva revolucionária” a partir daquilo que acha, deseja, sonha ou
mesmo acredita, não autoriza o “espancamento” de um conceito, no caso o de
revolução social e sua perspectiva a partir de Marx.

Como disse, o sujeito pode imperar da forma que desejar, mas uma coisa não
deixará de ser o que é para se moldar a subjetividade, pois a regência nestas
quadras históricas não está centrada no sujeito. Uma perspectiva não é
revolucionária apenas porque a pessoa afirma que é. E esta consideração se
estende à todas as classes sociais.

Vulgaridades conceituais

A vulgaridade da perspectiva revolucionária se dá por não possuir


fundamentação teórica. Ou seja, exatamente por não existir um referencial
fundamental, mas por se apegar a um pluralismo oscilante que vaga no espaço-
tempo ao bel prazer de cada um. Neste sentido, se para você, fazer uma selfie
com o Mickey Mouse é revolucionário… ou ainda, comer uma costela de porco
criado no Brasil em uma franquia de restaurante australiano instalada no
shopping Iguatemi é revolucionário, então, sua perspectiva seria revolucionária.
Nada mais distante da realidade, se considerarmos o que Marx conceitua. E o
conceito marxiano de Revolução não é uma determinação absoluta da sua
subjetividade, pois em sua construção comparece a história, o processo de
múltiplas determinações que escapa à vontade e ao desejo do indivíduo.

Nesta altura, meu caro leitor já deve ter percebido que me refiro a vulgarização
do conceito de revolução para além dos fast food da vida.
Parte daquilo que se reivindica como esquerda na política também se coloca
como sendo de perspectiva revolucionária. Aqui a coisa começa a ficar
fantasiosa, extremamente fantástica!

É preciso dizer que o conceito de esquerda, além de vago, é uma criação da


própria burguesia, se o considerarmos etimologicamente, remontando ao 89
Francês (Revolução Francesa de 1789), chegando até nosso tempo presente
com tantas variações que nem mesmo o termômetro mais sofisticado seria
capaz de apresentar suas marcações.

Entende-se, hoje, como esquerda desde aquele sujeito que desfila com uma
camiseta do “Che” pelos corredores de um shopping, até aquela organização
que se diz preocupada com justiça social e uma política de inclusão na
sociedade de consumo (sociedade de consumo é um mito muito parecido como
o da mula sem cabeça, o que não poderei aprofundar aqui).

Não seria tão sério se não se tratasse de grupos políticos importantes, que
possuem, de alguma forma influência na vida de milhares de pessoas.
Reivindicar uma perspectiva revolucionária a partir do acetileno (um gás que
fica oscilando no espaço) poderia até mesmo ter algum sentido caso
assumamos o pluralismo metodológico e a tradição pós-moderna de
compreender a vida. Poderíamos até mesmo não aceitar seus postulados,
refutá-los um a um; ainda assim existiria uma sintonia entre aquilo que se
defende e aquilo que se procura viver. Mas legitimar a perspectiva
revolucionária a partir do acetileno, colocando o conceito de Revolução Social
de Marx no mesmo balaio de gatos?!! Isso é completamente absurdo. Absurdo
porque é incoerente e não se sustenta.

Marx e a Revolução Social

O conceito de revolução que Marx trabalha considera a transformação radical


da sociedade, das estruturas da vida. Este conceito não se resume as eleições
guiadas pelas regras do Estado burguês, a eleição de uma personalidade ou de
outra, para que a esquerda Disney World administre os negócios da classe
burguesa. Este conceito, em Marx, não tem nenhum acordo com a democracia
dos ricos e nenhuma crença na representatividade do Estado em relação as
necessidades materiais ou não da classe trabalhadora.
Neste sentido, é incoerente atribuir ao conceito de revolução de Marx um
caráter conciliador de classes como fizeram, e ainda fazem, o PT, PC do B,
PSOL e mesmo o PCB, juntamente com um incontável número de intelectuais
que se autointitulam marxistas (nas universidades ou fora delas). Pode-se,
como disse, até mesmo desejar reconfigurar o conceito de acordo com os seus
interesses mais particulares e organizacionais, mas isso daria vida a uma outra
coisa, distante do conceito marxiano de Revolução Social. Muitos gostam de
chamar essa remodelagem de ressignificação. Neste caso, diria: ressignificação
daquilo que não significa o que se deseja, daquilo que não é o que quer que
seja. Numa palavra: falsificação.

O conceito, disse, está em movimento. Mas não se trata de um movimento


determinado pela subjetividade de um indivíduo em determinado tempo da
história. O movimento do conceito se dá pelo conjunto humano e não por um
decreto da vontade.

O “socialismo” à Walt Disney

Considerando estas breves palavras, retomamos o socialista Mickey Mouse.

A esquerda Disney World chama para si a perspectiva revolucionária, mas o


que apresentam está distante da perspectiva marxiana, pois a transformação
radical da sociedade comparece apenas como um jogo de palavras
abstratas/vazias.

O socialista camundongo justificará que o movimento histórico exige a


“ressignificação” daquilo que Marx escreveu sobre o capitalismo no século XIX,
pois poderia estar ultrapassado, seja em a “Miséria da Filosofia” (1847) ou no
“Manifesto do Partido Comunista” (1848). Entretanto, o que não nos fala esse
tipo de filisteu é que a sua grande estratégia é apenas a reforma e não a
revolução. Muitas vezes, como já disse um outro tipo de filisteu: “um reformismo
sem reformas”.

A esquerda Disney é tão contraditória que muitas de suas organizações nem


mesmo se preocupam mais em esconder as suas incoerências políticas diante
daquilo que falam e aquilo que fazem. É como se contassem com a amnésia
coletiva ou mesmo com algum tipo de ignorância universal. Exemplo nítido é a
política do PSOL, que tem como parceiros empresas como a Gerdau – que
ajuda a financiar as campanhas políticas, não apenas do PSOL, mas como dos
demais partidos, como o PSDB, PT e MDB. Filantropia da Gerdau? Não, trata-
se de nítido investimento capitalista. Uma perspectiva revolucionária não-
falsificada deveria repudiar esse tipo de prática. Não por moralismo, mas por
lógica.

Revisionismo do século XXI

A vulgarização do conceito de Revolução Social de Marx tem início com a


social-democracia alemã em finais do século XIX. Portanto, não é de hoje que
este tipo de adaptação (falsificação) é operacionalizada para atender às
necessidades reformistas. Há mais de 160 anos, na Alemanha, Karl Kautsky e
Eduard Bernstein fizeram uma série de falsificações do pensamento de Marx
(exemplarmente para os neorreformistas do nosso tempo), reproduzindo este
tipo de aberração que é responsável por manter a classe trabalhadora em crise
diante de uma necessidade imperiosa: a da Revolução Social.

Assim como a social-democracia alemã, hoje – como uma versão


extremamente empobrecida –, a esquerda Disney World trabalha para minar a
perspectiva da Revolução Social entre os trabalhadores, usando todas as suas
forças para apresentar uma proposta política performática de manutenção do
capitalismo, de um capitalismo mais humanizado, mais democrático. Isso como
se algum dia tivesse existido um capitalismo com estas características. Qual é a
lógica de se apresentar como revolucionário e não construir a Revolução? De
se colocar como revolucionário e receber dinheiro de empresas que açoitam a
classe trabalhadora todos os dias? Que não vacilam em chamar a polícia para
os trabalhadores em luta? Como sustentar que é revolucionário nestas
condições? Nada mais distante da realidade se considerarmos o que Marx
conceitua.

A esquerda Disney World não é revolucionária em nenhum sentido. Trata-se de


um grupo político que existe com dinheiro de grandes empresas, que conta com
a intelectualidade do capital e que acredita que o Estado pode ser de todos.
Que a justiça tarda mas não falha. Que o conceito de Revolução de Marx pode
dar boas teses de doutorado, rendendo títulos a serem exibidos no currículo
Lattes. O desserviço que promovem não só oblitera a organização da classe
trabalhadora, mas alimenta a burguesia e o modo de produção capitalista. Não
pretendem fazer transformação alguma em relação às formas de produzir e
reproduzir a vida. Não se preocupam em organizar a classe diante da crise do
capital e os planos de austeridade impostos aos trabalhadores. Ocupam-se de
defender as eleições burguesas como estratégia, como fim, não como tática
para denunciar a democracia dos ricos.

Este tipo de esquerda é a que a burguesia gosta. Certa vez, escutei o


historiador Osvaldo Coggiola dizer: “governo violino, pois apoia na esquerda e
toca com a direita”. E, se neste balaio de gatos da esquerda Disney World,
muitos se apresentam como se fossem revolucionários, eu perguntaria: o que é
mesmo revolução?

Com a palavra, os amigos do Pateta.

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