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Amém

Ele mora num prediozinho de maioria geriátrica. Praticamente todos os seus


vizinhos são gente idosa que já está na fila de espera, mas que não sobe nunca.
Setenta oitenta noventa anos. Ele é o sujeito mais novo de todo o prédio, desde os
moradores até os funcionários.

Eis sua rotina. Acordar com os latidos dos sete cachorros da vizinha. Tomar o banho
mais gelado do inferno. Vestir as roupas e ir até a porta do elevador esperar que a
vizinha e seus sete cachorros entrem lentamente na cabine e ocupem todo o espaço.
Desistir do elevador e descer pelas escadas de serviço e trombar de vez em sempre
com a faxineira mais velha do mundo carregando dois baldes nas escadas estreitas.
Chegar magicamente ao térreo e seguir até a padaria num trajeto engarrafado de
velhos bengalentos e phebosos. A fila do pão é o relaxamento da rota. Depois voltar
por todos os obstáculos e chegar em casa com os pães já frios de demora.

Se ele pudesse morava em outro lugar. Mas dá tanto trabalho vender um


apartamento num prédio como esse, que ele seria um dos geriátricos quando
conseguisse um interessado. É tradutor e trabalha na incomodidade do lar. O silêncio
que tanto deseja para o ofício é tão raro quanto um desses velhos morrer. O vizinho
da frente é surdo e ouve extremos boleros em volumes inexplicáveis no seu radinho
de pilha. A vizinha do lado tem sete cachorros e isso diz tudo. E a velha de cima adora
usar aspiradores de pó. Sua solução é ouvir músicas enquanto trabalha. O que gera
interessantes resultados de trechos inteiros infectados com versos de Jobim e outras
coisas de velhos.

A paz entre os idosos é impraticável. Ele não consegue sequer trabalhar. Perdeu as
contas de quantas preces fez a Deus pedindo que levasse esses velhos todos e os
fizesse descansar para que ele tenha paz dentro de casa.
Chegou janeiro fevereiro e aquela história toda que você já sabe. Todas as
recomendações feitas aos grupos de risco que rodeavam seu apartamento só
pioravam a sua situação. Manter esse velhos todos dentro de casa? Obrigado OMS.
Obrigado China! Quando a gente pensa que não pode piorar acontece umas coisas
assim.

Eis sua rotina. Acordar com os latidos. O banho mais gelado do inferno. Vestir as
roupas e a máscara. A porta do elevador. A vizinha e seus sete cachorros. Descer
pelas escadas. Chegar magicamente ao térreo e seguir até a padaria. Velhos
bengalentos e phebosos. Fila do pão com distância segura. Depois voltar para casa
com os pães já frios de demora. Nada mudou. Tantos velhos na rua, agora usando
máscaras e passando alcool-gel. Será que eles querem morrer? Tomara!

Março. Abril. Você já sabe também. Os velhos estão loucos por uma calçadinha para
bater perna. Uma praça pra um joguinho de Damas. Ele com cada vez mais
esperanças de que um dia vai ter paz nesse apartamento. Soube dos casos na Itália,
dos velhos que morreram em casa e não puderam ser enterrados. Outras preces em
outros países sendo atendidas e as dele… Nada.

A situação começou a ficar mais grave. O excelente descaso governamental e todas


aquelas críticas que você já fez e tudo mais. Ele a dois meses tendo de aturar vinte e
quatro barra sete seus vizinhos pés na cova que não subiam nunca! Ele mudou sua
rotina para evitar qualquer contaminação de sua parte. E ficava cada dia mais feliz de
ver os velhos se revoltando na idade errada e fazendo tudo que bem entendem.

Primeiro ele acordou com os cachorros latindo e mulheres chorando no apartamento


do lado. Outra vez o bolero tocou durante dois dias seguidos até as pilhas morrerem
juntas do velho. Sem aspiradores, sem faxineiras nas escadas. Enfim a calmaria.
Deus sabe o que faz! O trabalho agora rende, e os vizinhos sãos tão silenciosos
quanto os mortos que agora são.

Amém.

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