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História da terra e do

homem no Planalto
Central
Sustentabilidade
em Debate Kelerson Semerene Costa1

1
Professor adjunto do Departamento de História e do
Núcleo de Estudos Amazônicos da UnB. É autor do livro
Meiaponte: história e meio ambiente em Goiás.

RESENHA

História da terra e do homem no Planalto Central: eco-história do Distrito Federal, de Paulo Bertran. Brasília,
Editora da Universidade de Brasília, 3a. edição, 2011. 615 p. Coleção UnB nos 50 anos de Brasília. R$ 65,00 Ilustra-
do, Índice remissivo, ISBN 978-85-230-1281-6

Desde a sua primeira edição, em 1994, um


dos aspectos mais comentados sobre História
da terra e do homem no Planalto Central, de Paulo
Bertran, refere-se ao desvelamento da história
da região ocupada pelo Distrito Federal antes
da construção de Brasília. Vale a pena retomá-
lo. Diz o autor que Goiânia “eclipsou a história
goiana” e Brasília “acabou de consumir a mito-
poética dos sertões que deixavam de ser ser-
tões” (61). De fato, a inauguração dessas duas terras que depois se revelaram habitadas por po-
cidades planejadas reforçou na visão que a so- vos indígenas, como também relegou ao esque-
ciedade brasileira tem de seu próprio território, cimento as formações societárias que, embora
em particular sobre as suas regiões centrais, a resultantes do movimento colonizador, entre os
separação entre um passado marcado pelo atra- séculos XVI e XVIII, haviam perdido o vínculo
so e um futuro que anunciava o progresso e a maior com os centros dinâmicos do país, consti-
modernidade. tuindo, assim, regiões consideradas atrasadas em
O peso da ideologia do progresso a orien- relação àquelas que recebiam os avanços do pro-
tar a ocupação do território brasileiro foi de tal gresso. De tal modo que o conceito de sertão
ordem que não apenas considerou desertas as não se aplica apenas aos territórios desconheci-

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dos e ainda não integrados à dinâmica da socie- A caminho da eco-história


dade nacional, mas também àquelas regiões nas
quais o colonizador ocupou terras indígenas e Paulo Bertran define seu livro como um es-
exterminou populações autóctones, estabeleceu tudo de “eco-história do Distrito Federal”. Os li-
vilas e cidades, desenvolveu atividades agropas- mites, porém, não se estabelecem de modo estri-
toris ou extrativistas, mas que, por motivos di- to: o Distrito Federal “e suas adjacências”, o qua-
versos, desgarraram-se, ficaram à margem da histó- drilátero demarcado pela Comissão Cruls, a Co-
ria. É o caso, por exemplo, do sertão nordestino, missão Exploradora do Planalto Central do Brasil, da
onde se originaram movimentos como o de Ca- década de 1890, são apenas referências políticas e
nudos, ou da Amazônia e as suas populações ca- administrativas de uma área de estudo que se defi-
boclas. É o caso, também, de áreas do Centro- ne pela combinação de critérios históricos e am-
Oeste que, devido à baixa densidade demográfi- bientais.
ca e ao povoamento disperso, herança da rurali- No artigo Desastres ambientais na capitania de
zação decorrente do declínio da mineração na pas- Goiás,1 um dos primeiros trabalhos de história
sagem do século XVIII para o XIX, foram to- ambiental publicados no Brasil, em 1991, Bertran
madas como vazios demográficos. escreveu sobre os efeitos ambientais da minera-
O simples desvelar desse passado oblitera- ção e da agricultura ainda nas primeiras décadas
do já seria mérito suficiente para conferir rele- da sociedade regional, a partir das descrições e
vância a esse livro. Porém, do trabalho do autor comentários presentes nas fontes coevas. Em
em reconstituí-lo – produzindo uma história História da terra e do homem... a abordagem é mais
“costurada ponto a ponto, por tão esgarçada a ampla: já não se trata apenas de considerar os
memória regional pregressa” (484) -, resultam impactos das atividades humanas sobre o meio
muitos outros aspectos a serem considerados ambiente, mas de entender a própria formação
sobre a arquitetura e as contribuições dessa obra da sociedade regional como processo em grande
que se estende por 18 capítulos e 615 páginas. É medida dependente das condições do meio natu-
uma longa narrativa, que começa no Pré-Cam- ral. Bertran procura sustentar a ideia de que o
briano, entre um e dois bilhões de anos atrás, Cerrado foi o locus de origem de uma sociedade
quando se formaram as mais antigas estruturas ecologicamente diferenciada. É, enfim, a história
geológicas do Planalto Central; passa pela ocu- da formação dessa peculiar sociedade que se de-
pação pré-histórica, os grupos indígenas e as senvolveu nos cerrados do Planalto Central de al-
primeiras incursões paulistas, nos séculos XVI e titude que ele pretende contar.
XVII, a descoberta do ouro e o povoamento da A eco-história de Bertran busca inspiração
região, no século XVIII e, finalmente, a configu- em mais de uma fonte. Em primeiro lugar, o au-
ração da sociedade colonial após o declínio da tor é dedicado à causa da conservação do Cerra-
produção aurífera, entre as últimas décadas do do e pode ser incluído entre aqueles pesquisado-
setecentos e as duas primeiras do oitocentos, a res que encontraram uma motivação maior na crise
inaugurar um tempo “do viver e produzir mode- ambiental das últimas décadas do século XX. Ele
radamente, da auto-suficiência, roçando pelo justifica a empreitada como um débito que “tinha
subsistente, um século de enormes lentidões e consigo mesmo desde que cozinhou-lhe as reti-
vaguidões” (76-77). nas a trajetória da luz nos campos de cerrado”,

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aos quais devotava um “intrincado amor” herda- fitofisionomias que participam do Cerrado – a
do de seu pai (482, 488). Contudo, o autor não Regio Montano-Campestris, reino das ninfas Oréades,
apenas manifesta interesse pela relação entre o como o definiu Martius em sua poética formula-
homem e seu nicho ecológico em uma região especí- ção, aqui relembrada, sobre os domínios ecológi-
fica, mas também expressa preocupação quanto cos brasileiros.
às relações entre a humanidade e o planeta – o Depois, dedica todo um capítulo à ocupa-
que o leva a se referir à eco-história como “forma ção pré-histórica da região, no qual recorre am-
de abordagem, (...) que pressupõe a compreensão plamente à literatura então disponível para, mais
abrangente da Mãe-Terra e dos filhos homens” do que identificar datações antigas, “investigar em
(482). que termos ocorreu na pré-história a integração
Nada disso, porém, faz desse livro um catá- homem-natureza, vale dizer, em que ambiente
logo de denúncias da devastação ou um compên- ecossistêmico aconteceu tão antiga existência hu-
dio das riquezas do bioma. A produção do autor mana no Planalto Central do Brasil, pelo menos
mais diretamente ligada às questões ambientais desde 12 mil anos” (41). Mas, os conhecimentos
contemporâneas está registrada em outras obras. proporcionados pela arqueologia não se prestam
Em História da terra e do homem..., é por meio da apenas ao entendimento da pré-história: Bertran
abordagem histórica inédita, que coloca em rele- recorre também aos trabalhos produzidos pelo
vo o papel do bioma na formação da sociedade Dr. Eurico Miller, arqueólogo da Eletronorte que,
regional, que Bertran chama a atenção para o va- entre 1991 e 1994, identificou mais de vinte sítios
lor socioambiental do Cerrado, contribuindo para no Distrito Federal, a maioria dos quais cerâmi-
o seu reconhecimento e valorização. Se isso é im- cos ou pré-cerâmicos, mas também alguns teste-
portante em nossos dias, era-o ainda mais há 18 munhos de antiga ocupação colonial (47-49).
anos, quando o bioma pouca ou nenhuma aten- Geografia histórica, bandeiras e sesmarias
ção recebia de governos, organizações não gover- Outra fonte de Bertran é a historiografia
namentais ou organismos internacionais de coo- brasileira clássica, que pôs em relevo os processos
peração e financiamento, embora a fronteira agrí- de formação do território nacional e as interfe-
cola já avançasse célere sobre ele. rências do meio geográfico na formação da soci-
Ao buscar o entendimento das relações en- edade nas diferentes regiões do país. Tem grande
tre sociedade e natureza, o autor está atento às força em sua obra a geografia histórica, a preocu-
exigências de um conhecimento multidisciplinar pação com os movimentos da sociedade na for-
que incorpore conceitos e dados da geografia, ar- mação do território. É assim que o tema do ban-
queologia, etnologia, geologia, zoologia, zootec- deirismo assume relevância em sua compreensão
nia, botânica e linguística para a construção de da história regional. Não se trata, aqui, da antiga
sua narrativa. Embora o seu esforço se concentre visão apologética das bandeiras. Ao contrário,
sobre a história colonial – “do indígena ao colo- Bertran afirma que a “questão do bandeirismo
nizador”, diz o subtítulo -, Bertran entende a ocu- antigo (...) forjou-se e esgotou-se por excesso de
pação humana do Planalto de Altitude em sentido retórica e por seu uso abusivo na construção ide-
lato. Inicialmente, estabelece as suas bases físicas, ológica do Estado Novo e de períodos seguintes
incluindo em sua narrativa a história geológica, as de forte expansão interna no País” (79). Mas, as-
formas dominantes do relevo, a hidrografia e as sim como não concorda com essa construção ide-

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ológica, ele tampouco aprova o abandono com- tório goiano - expandindo-se desde os currais da
pleto ao qual o tema foi relegado pela visão crítica Casa da Torre, de Garcia D’Ávila, no sertão baia-
à ideologia do bandeirismo. Por isso, retoma-o no, atravessando a Serra Geral e alcançando o alto
de modo a entender o lugar que as porções cen- Paranã, que nasce nas imediações da atual cidade
trais do Brasil ocupavam nos séculos XVI e XVII, de Formosa, e o vale do Tocantins; ou, por Minas
antes de iniciado o seu povoamento pela minera- Gerais, subindo o Urucuia, afluente do São Fran-
ção, cujos marcos são a fundação de Cuiabá, em cisco, e alcançando o rio Preto, que também par-
1719, e de Vila Boa, em 1726. Desse modo, a abor- ticipa da bacia daquele grande rio, nasce nas ime-
dagem vincula, desde o início, a região, ainda em diações de Formosa e, atualmente, serve de limite
formação, à dinâmica colonial e às vicissitudes do natural entre o Distrito Federal e Minas Gerais
império português. (131-138).
O movimento das bandeiras é entendido em Ao mesmo tempo em que reconstitui o qua-
sua relação com o movimento da sociedade colo- dro mais amplo em que se desenvolvem entradas
nial desde alguns de seus principais polos de or- e bandeiras, o autor se dedica à “variedade das
ganização e expansão - São Paulo, Bahia e Mara- expressões históricas do bandeirismo” (82), isto
nhão. A partir da primeira bandeira a pisar o atual é, aos detalhes que conformam esse movimento
território goiano, em 1589, liderada por Domin- maior, ao revelar o destino – muitas vezes trágico
gos Luís Grou e Antônio de Macedo, identifica – e a contribuição específica de diferentes grupos
duas ondas distintas do bandeirismo em Goiás. A de desbravadores (para a toponímia, a cartografia
primeira, motivada pelos mitos cartográficos, e o conhecimento do território). Fornece ainda
como o mito do lago dourado ou o mito dos la- informações sobre as relações entre o homem e
gos do Planalto, abrandados, depois, mas muito o meio ambiente naqueles primórdios da coloni-
fortes no século XVI, a atrair os homens para os zação, pois, afinal, “sobreviver antigamente nos
sertões centrais; e pelo estímulo de captura de ín- cerrados, as assim chamadas savanas do interior
dios para os engenhos do Nordeste. brasileiro, era um exercício de arte ecossistêmica”
A segunda onda de bandeiras teve início a e foi nesse bioma “que se houveram, desde 1589,
partir de 1655, depois de meio século de andarem os índios Jê e os conquistadores paulistas” (83 e
os paulistas voltados para as missões jesuíticas do 84). Quanto ao confronto entre índios e paulis-
sul. Essas novas bandeiras ocorrem no contexto tas, deve-se dizer que, embora a ênfase recaia so-
de um império português abalado pela perda de bre a obra do colonizador, Bertran também se
domínios no Oriente, pelas guerras de expulsão ocupa dos habitantes originários do Planalto Cen-
dos holandeses do Nordeste, pela perda da hege- tral nos séculos XVI e XVII; das migrações de
monia no comércio do açúcar e pelas guerras que grupos tupi em fuga das frentes colonizadoras que
se sucederam à restauração do trono, com o fim avançavam pelo Nordeste, a ensejar conflitos com
da União Ibérica. As entradas pelo interior do ter- os grupos jê, autóctones; e, principalmente, do
ritório passam a ser estimuladas pelas autoridades contexto etnográfico do século XVIII, quando,
coloniais e esse também é o momento de grande depois de várias expedições de apresamento, a
expansão pelo sertão nordestino, especialmente população indígena já estava reduzida. Aqui, cabe
com a pecuária.2 Antes mesmo da mineração, foi observar certa imprecisão quanto a alguns etnô-
a criação de gado que iniciou a ocupação do terri- nimos. Em certas passagens, o autor não distin-

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gue de modo suficiente os Caiapós que habitaram XVIII, verdadeiro arcano do espaço fundiá-
a porção meridional de Goiás – os Caiapós do rio, mostrando que se transmitia aos séculos
Sul, que ocuparam também o território paulista, o seguintes, embora fragmentadas pelas neces-
noroeste de Minas Gerais e o leste de Mato Gros- sidades sociais e econômicas das futuras ge-
so – daqueles que historicamente habitaram entre rações” (344-45).
as bacias do Tocantins e do Xingu, no Pará. Ao
acompanhar equivocadas afirmações feitas por Métodos para a história ambiental
Diogo de Vasconcelos, em História média de Minas
Gerais, entre as quais a de que seriam provenientes O historiador ambiental, ou o eco-historia-
do Maranhão, toma-os como variantes de um dor, preocupado em identificar as características
mesmo grupo, quando, ao contrário, trata-se de ambientais passadas de uma região submetida a
grupos que, em comum, têm apenas a filiação lin- grandes alterações, assim como a leitura e a utili-
guística (jê) e a denominação atribuída pelo colo- zação que os homens do passado faziam do meio
nizador ou por outros povos indígenas (71, 85). natural, defronta-se com o problema das fontes.
Outro ponto forte da obra reside no estudo Elas raramente tratam diretamente do assunto,
do sistema sesmarial que acompanha a conquista levando o pesquisador a trabalhar por meio de
do território. Assim como em outras regiões, a inferências. No caso em questão, o problema é
formação do latifúndio goiano se fez mediante ainda maior para os séculos anteriores à efetiva
também a expulsão e o extermínio dos povos in- ocupação colonial, quando os registros escritos
dígenas: os comandantes das expedições de “de- são escassos. Bertran contorna parcialmente o
sinfestação” dos sertões eram recompensados problema por meio da toponímia registrada na
com “sesmarias enormes”. A partir de minucio- cartografia, em língua portuguesa e, sobretudo, em
sas pesquisas em fontes primárias, especialmente língua indígena. No caso desta, trata-se, curiosa-
os requerimentos de sesmarias, Bertran identifica mente, de toponímia tupi em terras habitadas por
as propriedades fundiárias estabelecidas na região, povos do tronco macro-jê. Na verdade, ela deve
procurando associar a quantidade de pedidos, as ser atribuída aos primeiros grupos de paulistas que
dimensões das terras e as suas finalidades aos di- frequentaram a região, nos quais predominavam
ferentes momentos da sociedade colonial que se índios e mamelucos falantes da língua geral do sul,
formava no Planalto. Mais do que isso, com base o nheengatu.3 A toponímia em língua indígena, ge-
em precários memoriais descritivos, ele identifica os ralmente reveladora de elementos característicos
seus limites, traça o mosaico das antigas sesmarias do meio ambiente, desempenha, neste caso, im-
e acompanha sua fragmentação durante um sécu- portante papel na construção de roteiros de ca-
lo, até o registro paroquial de 1857. Ao comparar minhos do sertão, ao fornecer verdadeiras descri-
o resultado de suas pesquisas com um mapa atual ções dos elementos da paisagem. Indica, também,
das fazendas do Distrito Federal, o autor constata a maior ocorrência de determinadas espécies da
que “estava ali bordado, quase íntegro, o velho fauna ou da flora em determinados sítios. Assim é
cenário dos registros paroquiais de 1857” e que que, para o autor, a toponímia “come-se, veste-se,
“juntando-se três ou quatro fazendas de emprega-se em ranchos e utilidades domésticas e,
1857, lá vinham estampadas, quase com de- antes de mais nada, constrói um vasto discurso
talhes, as efígies das sesmarias do Século ecossistêmico nas raízes da história” (67).

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Para explicar uma situação que não raro apa- manas. Mas, em meio à escassez de fontes, Ber-
rece nos estudos de história ambiental, Bertran tran conta com uma de caráter especial para o
lança mão de um recurso bastante didático, e até historiador ambiental. Trata-se do Inventário natu-
mesmo prosaico. Ele conduz o leitor à zona ru- ral do município de Santa Luzia, atual Luziânia,
ral do município de Cocalzinho, onde, em volta escrito em 1886 por Joseph de Mello Álvares. O
das ruínas de um antigo casebre, um velho po- documento, reproduzido entre os anexos do li-
mar abandonado se transformou em bosque com vro, oferece uma “taxonomia do Cerrado”, ao
centenas de árvores frutíferas, aparentando uma descrever as suas diferentes fitofisionomias, além
formação natural (354-56). O autor sintetiza as- da descrição do relevo, da hidrografia e dos recur-
sim o fenômeno: “Meio ambiente em movimen- sos da fauna e da flora da região e, para Bertran,
to, antrópico e depois anantrópico, numa lição prá- “revela-nos o profundo telurismo, senso de ob-
tica de eco-história”. A sentença é adequada e servação geomorfológico, florístico e botânico
explica bem o que ocorreu não apenas em Co- deste autodidata” (73).
calzinho, ou em Traíras e Niquelândia, no norte
goiano – em cujas “brenhas setecentistas (...), A cultura do sertão
matinhas de limão galego [vão] vencendo o sa-
robão das capoeiras” -, ou ainda na região do rio Bertran está atento aos diversos aspectos da
São Francisco, casos também citados por Ber- história do Planalto. Ele se ocupa da geografia his-
tran, mas um fenômeno registrado nas mais di- tórica e da formação do território, do ordenamen-
versas regiões da América nas quais os traços de to espacial e da distribuição das sesmarias, das va-
uma antiga ocupação colonial, depois abando- riações das atividades econômicas entre o auge e
nada, incorporaram-se ao ambiente nativo e as- o declínio da mineração. E também confere gran-
sumiram o aspecto de uma paisagem natural. de importância a aspectos relacionados às expres-
Muitas novas áreas ocupadas pelo colonizador, e sões culturais e, por assim dizer, ao modo de ser
aparentemente selvagens, já haviam sido objeto da peculiar sociedade que se constituiu na região,
de alguma ocupação malograda, por gerações especialmente durante o seu período de maior iso-
passadas. Ou haviam sido ocupadas e transfor- lamento. Ele relata, por exemplo, a ocorrer no
madas por povos indígenas – Bertran é leitor dos arraial de Santa Luzia, festas e celebrações religio-
estudos de Darrel Posey sobre os cultivos dos sas e encenações de óperas italianas. Algumas des-
Caiapó - ou paleo-indígenas, antes mesmo do pe- sas celebrações, compostas por expressões da cul-
ríodo colonial – como é o caso dos sambaquis tura erudita, ocorriam por ocasião da chegada de
do litoral brasileiro que, recobertos por sedimen- autoridades como o governador da capitania, re-
tos e vegetação, aos colonizadores pareceram presentante direto da coroa portuguesa, e reve-
apenas elevações naturais a serem exploradas lam o alcance dos rituais próprios da corte euro-
como minas de calcário. peia nos mais longínquos domínios lusos, onde a
Assim, o autor se depara com grandes vazi- colonização se expandia pela violência. Era uma
os de informação que ele tenta preencher por meio cultura de sertão, “que surgia no limiar da escrita,
da habilidade no emprego das fontes e de aguça- nasceu entre a fé e a blasfêmia, entre cartas régias
da capacidade de identificar na paisagem as trans- e contrabandistas, entre oficiais de justiça e ca-
formações produzidas por antigas ocupações hu- pangas”.4

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Além dessas expressões da cultura colonial, da no Brasil e, em nossos dias, celebrada até mes-
o autor identifica a permanência, em nossos dias, mo em escolas públicas da zona rural do Distrito
de elementos de uma visão de mundo que, se não Federal. Há, também, uma peculiar versão da nar-
se forjou no Planalto, para aqui migrou ainda nos rativa do Gênesis, na qual está presente o puniti-
primeiros tempos da colonização e se manteve vo dilúvio, a transformar e a degenerar uma Terra
avessa a mudanças, decorridos mais de duzentos criada perfeita e provedora de abundância. Mas,
anos. A esse respeito, há dois exemplos notáveis. aqui, o criador é Jesus, e foi pela palavra, pelo uso
O primeiro é a “lenda do Ouro do Urbano”, mito da fala, que homem e mulher se corromperam.
construído sobre o roteiro de uma fabulosa mina Tudo terminará com um novo dilúvio. Além des-
de ouro descoberta por Urbano do Couto na pri- sa licença na narrativa da história da Terra, esses
meira metade do século XVIII, que estaria situa- roceiros também apresentam particular entendi-
da nas imediações da atual Planaltina de Goiás, mento sobre o ordenamento do cosmos e do lu-
município distante 63 quilômetros de Brasília. O gar que o homem nele ocupa, dividindo-o em três
roteiro existe, de fato, e foi publicado em cinco níveis: “a profundidade, (...) interior da terra onde
edições entre 1863 e 1980, em linguagem carrega- uma outra humanidade, apiedada da nossa, gera e
da de um hermetismo que, ao ser decifrado, reve- planta os minérios, os matos, as águas que nos
la elementos da paisagem regional. O mito é bem servem”; a superfície em que vivemos é a miolida-
conhecido de roceiros e moradores mais antigos de, “lugar de pagar dívida”; o terceiro nível é o céu
de pequenas cidades como Brazlândia, Sobradi- das estrelas, nosso lugar de origem, pois que vie-
nho e Planaltina, atuando como estímulo perma- mos de outro planeta, o Planeta Jesus, e “viramos
nente à busca da riqueza que, entretanto, revela- terratórios”.
se sempre inalcançável. De tal sorte que “cente- Religiosidade popular, mitos, lendas, diferen-
nas de pessoas da região foram e ainda vão ao tes formas de entendimento do mundo se desen-
encalço do ouro do Urbano, desde tempos ime- volveram em todo o território brasileiro. Mas, ain-
moriais, configurando um mito próprio e resis- da que muitas vezes partilhassem uma base co-
tente” (268-69). mum, foram, com frequência, desenvolvimentos
O outro exemplo vem daquilo que Bertran específicos, próprios das singularidades de cada
denomina cosmogonias roceiras (477 e ss.), expressas região. É para essa singularidade local que Bertran
por moradores das áreas rurais do atual Distrito chama a atenção - tanto mais que ela esteja oculta
Federal e seu entorno. São, em geral, manifesta- e como que soterrada por estratos modernos -,
ções e concepções de mundo fundamentadas em deixando, assim, importantes sugestões para es-
forte tradição cristã, mas reveladoras de um cato- tudos de história cultural. No entanto, creio que a
licismo de extração popular, desenvolvido de sua proposta de uma denominação específica para
modo relativamente livre das orientações e restri- o homem típico da região dos cerrados, o cerraten-
ções doutrinárias, nas solidões do sertão, onde a se, a distingui-lo do caipira, grupo que inclui as an-
presença do sacerdote era ocasional. Expressão tigas populações rurais de São Paulo, Minas Ge-
primeira é a forte devoção ao Divino Espírito rais e Goiás, será de mais proveito se, por ora, não
Santo – a heresia do monge calabrês Joaquim de a tomarmos ainda como uma nova categoria dos
Fiori, acolhida em Portugal, no século XIII, por tipos humanos brasileiros formados no processo
Isabel de Aragão e Don Dinis, mais tarde enraiza- colonizador, mas como um convite ao aprofun-

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damento dos estudos da história regional em suas a data precisa de instalação de um pequeno povo-
variadas dimensões. ado, o que não é sem motivo em sua narrativa; ali,
recorre à imaginação, à criatividade e à prosa de-
As fontes e o estilo da escrita senvolta para converter uma coleção de rígidos
dados numéricos em um quadro da paisagem ru-
Bertran tem estilo próprio e constrói o seu ral e dos tipos humanos. Ilustra essa situação o
livro com a segurança de quem desenvolveu um emprego que faz do Livro de lançamento dos Dízimos
pensamento autônomo. É assim, por exemplo, que de Santa Luzia em 1810, cujos extratos foram pu-
ele combina dois estilos muitas vezes considera- blicados como anexo ao Capítulo XVI (543-559).
dos excludentes: de um lado, o ensaísmo que bus- O lançamento dos dízimos, como se sabe, é uma
ca o livre desenvolvimento de ideias sobre gran- simples relação de impostos devidos por cada pro-
des temas; de outro, a análise histórica fundamen- dutor conforme os produtos de sua propriedade,
tada em sólida pesquisa documental. O autor re- constando também a data em que cada um deles
corre a farta documentação primária – da qual uma foi visitado pelo coletor. Mas, o autor vê no docu-
pequena parte está reproduzidas nos anexos do mento um verdadeiro roteiro de viagem do lança-
livro - coletada mediante pesquisas próprias em dor de impostos, certo Luciano Rodrigues (366-
arquivos de Goiás, de São Paulo, do Rio de Janei- 379). A viagem dura cinco meses, de julho a de-
ro e de Portugal. O seu conhecimento da docu- zembro de 1810 e, assim como o lançador, Ber-
mentação relativa à história goiana dos séculos tran não tem pressa, acompanhando as suas idas
XVIII e XIX é enorme; ele foi um dos responsá- e vindas conforme chegam as chuvas ou as tré-
veis pela parte relativa à capitania de Goiás do guas da estiagem. Assim, somos conduzidos pelas
“Projeto Resgate”, que incorporou aos acervos imediações da atual Luziânia, pelo que hoje é a
de nosso país cópia de toda a documentação refe- cidade do Gama, passamos pela Papuda e atraves-
rente ao Brasil colônia existente no Arquivo His- samos o rio São Bartolomeu, cruzamos todo o
tórico Ultramarino, em Lisboa. Recorre, também, Distrito Federal e chegamos ao atual município
aos clássicos viajantes naturalistas (especialmente de Formosa e à divisa com Minas Gerais; de re-
Pohl e Saint-Hilaire), à chamada historiografia tra- gresso, passamos por Planaltina, Sobradinho, Pa-
dicional, de expressão nacional, especialmente dre Bernardo e uma série de outras localidades no
aquela dedicada ao bandeirismo, e a uma série de atual Distrito Federal e o seu entorno, que inte-
historiadores de expressão local, muitas vezes gravam o antigo julgado de Santa Luzia. No cami-
profissionais liberais (médicos, advogados) ou au- nho, conhecemos as sesmarias, engenhos, peque-
todidatas que se dedicaram à recuperação da me- nos sítios e as suas parcas produções, espalhados
mória histórica de suas cidades, registrando a me- pela vastidão do Planalto a compor um quadro
mória oral dos “antigos” e coletando a documen- regional no qual predomina a “economia rural de
tação disponível, muitas vezes perdida e à qual, abastança”, resultado do desfazer-se da economia
hoje, só temos acesso por meio de suas obras. baseada na extração de ouro, “notável recolhimen-
Mas o autor não é prisioneiro das fontes, as to da região sobre si mesma”. Conhecemos, tam-
quais ele submete à crítica, analisando-as, compa- bém, pelos nomes, sesmeiros e sitiantes. Detalhes
rando-as, inquirindo-as. Ele as usa de diversos não escapam ao historiador, que repara até mes-
modos: aqui, minuciosamente, busca estabelecer mo nas assinaturas: as trêmulas revelam os semi-

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alfabetizados; as ágeis e firmes, feitas, porém, a Brasília e da região hoje ocupada pelo Distrito
rogo, revelam a maioria de analfabetos. Federal. O aparecimento dessa terceira edição
Em Paisagem e memória, Simon Schama lem- apenas reitera a vitalidade de uma obra que ainda
bra que um dos seus “professores mais queridos, está a propor diversos caminhos para a pesquisa e
um arruaceiro intelectual e escritor de extraordi- que passa a ocupar justo lugar no selo editorial
nária coragem, sempre dizia que era preciso vi- que celebra os cinquenta anos de Brasília e de sua
venciar um local, usar ‘o arquivo dos pés’”.5 É com Universidade
esta imagem que eu gostaria de concluir esta rese-
nha do belo livro de Bertran - a do historiador Notas
andarilho, que ele de fato foi. Um historiador que
se sentia à vontade nos gabinetes da Torre do 1
Professor adjunto do Departamento de Histó-
Tombo ou da Biblioteca Nacional, tanto quanto ria e do Núcleo de Estudos Amazônicos da UnB.
É autor do livro Meiaponte: história e meio ambi-
nos jeeps, caminhões e lombos de burro nos quais
ente em Goiás.
cruzou o Planalto Central e o sertão goiano, como 2
Paulo Bertran, “Desastres ambientais na capi-
bem lembrou o jornalista e escritor Jaime Sau- tania de Goiás”, in: Ciência Hoje, vol. 12, n. 70,
tchuk na apresentação à terceira edição. p.42-48.
3
Ver, por exemplo, Pedro Puntoni, A guerra dos
Bertran levava ao extremo o seu esforço de
bárbaros: os povos indígenas e a colonização do
geografia histórica, buscando projetar a história sertão, São Paulo, Hucitec/ Edusp, 2002.
sobre o território. Realizou inúmeras viagens a 4
De acordo com o professor Aryon Dall’Igna
procurar na paisagem os vestígios daquilo que as Rodrigues, há diferenças entre a língua geral fa-
lada em São Paulo (“do sul”) e aquela utilizada
fontes coloniais registraram em palavras. Traçou
na Amazônia (“do norte”), ambas denominadas
novamente os caminhos do sertão, longos trechos nheengatu. Aryon Dall’Igna Rodrigues, Línguas bra-
das antigas estradas reais, identificou os limites das sileiras: para o conhecimento das línguas indíge-
antigas sesmarias, decifrou, na paisagem do Pla- nas, São Paulo, Editora Loyola, 2002.
5
Victor Leonardi, Entre árvores e esquecimentos: his-
nalto, o enigma do roteiro do Urbano do Couto –
tória social nos sertões do Brasil, Brasília: EdU-
apenas até onde a legenda permite ser decifrada, nB/ Paralelo 15, 1996, p.312.
pois, afinal, “a natureza própria dos roteiros é a 6
Simon Schama, Paisagem memoria, São Paulo, Com-
de pertencerem-se a si próprios em desdobrados panhia das Letras, 1996, p.33-34.
mitos”. Bertran, enfim, reconstruiu, para si e para
os leitores, o cenário vivo desses “mares de cha-
padas” por onde fluíram, e ainda estão a fluir,
“mares de histórias”.
História da terra e do homem..., que até aqui
contou com duas edições e diversas reimpressões,
constituiu-se como referência para uma série de
pesquisadores que, em trabalhos de pós-gradua-
ção ou em publicações independentes do meio
acadêmico, além de uma série de iniciativas de ca-
ráter pedagógico e turístico, dedicaram-se a aspec-
tos até então inéditos nos estudos da história de

Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 3, n. 1, p. 165-174, jan/jun 2012 173

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