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LÉON CHANCEREL

A GOTA DE MEL
RECITAÇÃO CORAL

TRADUÇÃO DE MARIA HELENA LUCAS

EDIÇÃO FRANCESA DA LIVRARIA

L’AMICALE

1969

A GOTA DE MEL
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Nº 1 – Era uma vez,
Nº 2 – Um bom merceeiro.

Nº 1 – Era uma vez,


Nº 2 – Um bom pastor

Nº 2 – É verdade que foi assim.


Nº 3 – Foi assim que isto começou.
Nº 1 – Numa bela noite de verão.

Nº 3 – Isto começou, porque numa noite,


Nº 2 – Numa serena, bela e clara noite de verão,
Nº 1 – Um forte, alto, belo e bom pastor
entrou com o seu perdigueiro,
na loja do merceeiro.

Nº 5 – Senhor merceeiro, tem mel para vender?


Nº 4 – Mel excelente, meu bom pastor.
Far-lhe-ei esse favor.
Bem medido e a preço razoável.

Nº 1 – Falavam, assim, fraternalmente,


Durante uma serena, bela e clara noite de verão,
O vendedor e o cliente.
Nº 2 – O pastor e o merceeiro.
Nº 1 – Ora, enquanto o bom merceeiro
pesava, honestamente, o mel.

Nº 3 – O belo mel com âmbar,


que louras irmãs abelhas

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extraíram às flores vermelhas,
Nº 2 – Tic! Uma gota!
Nº 2 – Uma gota de mel com âmbar.
Nº 4 – No chão da loja.

Todos – Uma gotazinha se entornou.

Nº 2 – Sim, foi assim que isto começou.


Ora…

Nº 3 – Uma mosca…

Nº 4 – Uma mosca que estava além,


Nº 1 – Veio pousar sobre a gota,
Nº 3 – A pequena gota,
caída no chão.
Nº 5 – O que entrava, naturalmente, na sua lógica de mosca.

Nº 1 – O gato,

Nº 1 – Debaixo do armário,
Nº 2 – O gato gordinho do bom merceeiro,
Nº 1 – Já há muito que espreitava a mosca,
Nº 5 – O que entrava, naturalmente, na sua lógica de gato.
Nº 1 – O gato
Nº 4 – Miau…
O gato deu um salto para cima da mosca.

Nº 2 – Comeu-a.
Nº 5 – O cão…
Nº 2 – O cãozarrão do pastor,

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Nº 3 – Assustado pelo pulo do gato,
Nº 1 – E, julgo que era com ele,
Nº 5 – (O que entrava, naturalmente, na sua lógica de cão).
Nº 2 – O cão pulou.

Nº 4 – Uah!
Nº 3 – E, sem ser de propósito,
Nº 2 – O merceeiro agarra num pau
Nº 4 – E zás! Zás!
Nº 3 – Pobre do inocente cão do pastor!
Nº 2 – Jaz morto, ao lado do gato.

Nº 1 – E o belo, grande, forte e bom pastor,


Nº 2 – Para sempre no chão estendeu
O bom do merceeiro seu.

Nº 1 – Foi precisamente, assim,


Nº 5 – Na loja do merceeiro,
Nº 4 – Que a coisa surgiu primeiro,
Nº 2 – Em noite de verão fagueiro.

Nº 3 – Assassino!
Nº 5 – Matador!
Nº 2 – Prendam-no!
Nº 4 – Matem-no! Matem-no!

Nº 1 – Tota a cidade está amotinada,


Toda a cidade está desnorteada,
E os sinos a tocar
As sirenes a apitar
Os bombeiros e soldados a chegar.

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Nº 1 – Defronte da loja, amotinada,
a multidão está concentrada
Nº 2 – O crime estava premeditado
Nº 3 – Foi um ataque preparado
Nº 5 – A montanha contra a planície.
Nº 2 – Os vendedores
Contra os pastores.
Nº 5 – Raça maldita!
Nº 4 – Raça ímpia.
Nº 2 – Morte aos merceeiros!
Nº 3 – Viva os pegueiros!
Nº 5 – Vingança.
Nº 4 – Honra ultrajada!

Nº 1 – Mobilização proclamada!

Nº 5 - Deitem fogo às aldeias.


Nº 4 – Ponham granadas nas pontes.
Nº 2 – Envenenem as cisternas.
Nº 4 – Devastem os campos,
Nº 3 – Árvores cortadas.
Nº 5 – Reféns fuzilados.

Nº 1 – Bom isto pode durar


Para os corvos alimentar.

Nº 1 – Doce mel das abelhas,


Fluido e açucarado
Nº 3 – Doces abelhas…
Nº 1 – Quem o teria pensado!

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Nº 1 – A T.S.F. através do mundo,
Difunde comunicados.
Nº 4 – Salvemos a civilização (bis)
Nº 5 – Quem quer tomas partido pelo direito? (bis)

Nº 1 – Pelo triunfo da justiça!


Troem canhões!
Nº 2 – E, sobre toda a humanidade,
O manto vermelho da guerra,
O cheiro medonho da guerra
Nºs 2, 4 e 5 – Em vez de casas para os vivos,
Erguem-se casas para mortos.

Nºs 1 e 3 – A nossa mãe Terra encheu-se de túmulos e incha.

Nº 4 – Mas, porquê?
Nº 5 – Mas, porquê?
Nº 2 – Porquê tudo isto?
Nº 1 – Porque chegámos a tal?
Nº 3 – Como foi que começou?

Nº 2 – Nunca se vira tal hecatombe.


Nº 1 – Tantos meios para matar, utilizados ao mesmo tempo.
Nº 5 – Tanta loucura sanguinária.
Nº 4 – Tanta crueldade no mundo.
Nº 3 – E isto durou anos.
Nº 5 – Centenas e centenas de anos.

Nº 1 – Só havia um ofício.
Nº 2 – Só havia uma indústria.
Nº 5 – Só havia uma vocação humana.

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Todos – Guerra.

Nº 4 – E a fome veio.
Nº 5 – E com ela a doença.
Nº 2 – Já nem há tempo para enterrar os mortos.
Correm rios de sangue.
Nº 3 – O fumo escureceu o céu.
Nº 4 – Já não se sabe o que é uma árvore verde.
Nº 2 – Uma ribeira azul
Nº 1 – Tudo é vermelho e negro.
Nº 5 – Espesso e viscoso.
Nº 3 – Tudo está reduzido a cinzas.
Nº 1 – Sangue.
Nº 2 – e lama.

Nº 4 – Gota de mel!
Nº 1 – Gota de mel!
Nº 1 – Mataram-se tantos e tantos durante séculos, que,
um dia, só ficaram, frente a frente, dois soldados.
Ombro contra ombro
Nº 1 – E olhavam-se nos olhos,
No momento em que iam expirar.

Nº 4 – Mas, porquê?
Nº 5 – Mas como?
Nº 4 – Como é que isto começou?
Nº 5 – Não sei.
Nº 4 – Nem eu.

Nº 5 Morramos, pois, mas sem saber porquê.

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Nº 4 – Morramos, sim, sem saber porquê.

Nº 1 – Uma gota de mel…


Nº 3 – Numa bela noite de verão…

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