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Eles saem da visão estrutural / patológica para um espectro mais amplo, onde
essas questões podem ser pensadas como dimensões da personalidade ou da
vida mental, ou ate formas de colocação diante do mundo, sem que tenham,
necessariamente, que ser diagnosticadas dentro de um quadro estrutural
específico. Seria mais uma modalidade transitória de funcionamento psíquico,
presente nas neuroses graves e nas perversões. Vocês verão que meu ponto de
vista pende más para o Francês do que o Inglês.
Existem várias nomenclaturas para referir-se a este mesmo fenômeno. Um
grupo de psicanalistas lacanianos, defende o uso do termo pacientes
inclassificáveis, pois esses pacientes não se enquadram nas estruturas clínicas
propostas por Lacan (Miller, 1998). Outros analistas preferem o termo
paciente-limite, pois esses são pacientes que nos colocam nos limites da teoria
e da técnica psicanalítica. O termo paciente-limite me parece particularmente
interessante, já que aponta, também, para a própria constituição dos limites do
psiquismo.
Considero significativo o termo patologias atuais pois indica uma condensação
entre as patologias que estão aparecendo com maior freqüência na atualidade e
as patologias caracterizadas pela atuação (acting out, passagem ao ato e
enactment), pois são essas freqüentes atuações, principalmente, que marcam as
dificuldades técnicas na clínica desses pacientes. O termo “atuais” remete
também as neuroses atuais propostas por Freud, nas quais ele supunha a falta
de um correspondente psíquico à excitação sexual, convertida diretamente em
angústia.
A seguir, apresento brevemente alguns dos elementos comuns a estas
manifestações psicopatológicas: a importância dada ao eu, a fragilidade do eu e
dos mecanismos de defesa, a angústia maciça, onde os conflitos não são
simbolizáveis e se apresentam através de um polimorfismo de sintomas e uma
inconsistência das relações de objeto.
Poderíamos dizer, então, que o estado limite ou quadro borderline se define
pela importância da problemática dos limites ou fronteiras sob diferentes
ângulos: dentro / fora, interior / exterior, eu / fora-do-eu, eu / não-eu,
imaginário / real. Desse modo, o quadro borderline coloca um problema
transnosográfico. Ele obriga a sair do ponto de vista estritamente classificador,
para considerar não só a dimensão estrutural [ou seja, tópica], notadamente em
seus limites, como também a dimensão dinâmica e genética. Vejam uma grande
diferença metapsicologia: enquanto a neurose, a psicose e perversão foram,
desde Freud, definidas como conflitos entre instâncias psíquicas e a realidade;
o funcionamento limítrofe / Borderline se caracteriza por uma precariedade de
constituição do aparelho psíquico e, portanto, por uma porosidade dos limites
entre as instâncias.
Uma rápida revisão na literatura de referência, mostra que as fronteiras entre
todos os termos que denominam este grupo bastante heterogêneo de pacientes
são tão nebulosas e múltiplas quanto suas hipóteses etiológicas.
Esquematicamente, no entanto, considero que as patologias borderline são
derivadas de um represamento da libido no narcisismo primário que, diferente
das neuroses narcísicas, antecede a constituição consistente do Eu e, portanto,
resulta num represamento da libido fora do psiquismo, o que explica por que a
libido é constantemente percebida como traumática. Parece haver consenso na
literatura que nesses quadros o recalque não é o mecanismo de defesa
predominante. Diversos autores sugerem a presença de mecanismos como a
cisão e a recusa, também compreendida como a desautorização do processo
perceptivo por Figueiredo (2003). O ataque ao enquadre e a não formação da
neurose de transferência são outras características essenciais desses quadros. E
nos interessam especialmente neste momento, pois apontam para os limites da
interpretação da clínica e para a necessidade da inclusão do manejo do setting
como possibilidade de intervenção.
Entretanto, eu acredito firmemente que as atuações - enactments - dos pacientes
que atualizam, na relação com o analista, traumas e angústias através da
construção de cenas, podem muito bem ser consideradas como modalidades de
transferência, pois de alguma forma se prestam a comunicar-nos o que está em
jogo na relação analista / analisando. Podemos pensar que tais pacientes
tendem a repetir na situação analítica a vivência traumática que sofreram, tendo
poucas chances de recordá-la. A experiência do trauma está neles dissociada e
não-metabolizada pois é anterior a capacidade de representação. Seu único
meio de expressão é a atuação na transferência (poderíamos chamar acting in).
Nós analistas, precisamos deixar-nos utilizar pelos pacientes como continente
de suas atuações até que, gradualmente, através de um ego mais integrado,
possam processá-las psiquicamente. Neste momento, Ladislau meu ex-analista
falecido, deve está lá encima sorrindo e pensando : “Finalmente entendiste que
eu interpretava na transferência !!!!!!!” Ele era o único que não ria do meu
sofrível Portunhol de 30 anos atrás; 1 mãe e ½ !!!!!
Vocês já perceberam que não se trata aqui daquela acepção mais
tradicionalmente Freudiana de transferência, que remete à repetição e
atualização dos desejos e conflitos psíquicos inconscientes na relação com o
analista, e sim de uma concepção mais ampliada que enfatiza o aspecto
comunicador da transferência, ainda que não seja de desejos e conflitos.
Nessas encenações das vivências traumáticas, o borderline ataca o enquadre
(tempo, dinheiro, número de sessões, pagamento das sessões a que se falte, o
respeito, a regra fundamental- associação livre e escuta flutuante ... ) além de
colocar em risco a continuidade da própria análise.
O principal problema é que o enquadre clássico, tal como foi concebido por
Freud, é supostamente a condição básica para o exercício da interpretação. Nas
palavras de J. André :
A experiência borderline em psicanálise começa aí onde a
neurose de transferência não começa. E o risco que corre isso
que não começa é que nunca termine - ou então que pare de
repente. "Perdendo" a neurose de transferência, a análise perde
também seu aliado natural (André, 2004: 74-78).
Diante disso, grande parte dos autores que se debruçam sobre a temática da
clínica dos pacientes-limite, inspirados nos ensinamentos de Ferenczi e
Winnicott, sugerem a flexibilização e o manejo do enquadre como instrumento
fundamental para o tratamento desses pacientes. Isto por se darem conta da
ineficácia da interpretação em muitos momentos da análise, devido, entre
outros fatores, à impossibilidade de manutenção de um enquadre clássico.
Alguns autores apontam para a "construção" como um dos principais objetivos
do trabalho analítico com esses pacientes. Vale lembrar que Freud já havia
notado de certa forma que em alguns casos a interpretação não dava conta da
complexidade do trabalho analítico e por isso propôs, ao final da sua obra, o
conceito de construções em psicanálise.
Após esta não tão breve digressão, volto para minha proposta original de
abordar a trajetória psicanalítica do conceito Borderline (Deve ser que eu
queria falar do Ladislau !?) Vai parecer outra digressão mas não é. Acontece
que gostaria de relatar como foi que entrei em contato com o termo Borderline:
Como alguns de vocês já sabe, me interesso pela toxicomania já faz algúm
tempo. A partir de minhas leituras sobre psicopatologia psicanalítica descobri
que os fenômenos que eu observava na minha clínica com toxicômanos eram
muito semelhantes àqueles dos chamados “borderline”. Foi assim que passei a
investigar a evolução histórica do conceito borderline e sua ligação com a
toxicomania.
Para minha surpresa, praticamente toda a bibliografia por mim consultada a
respeito da origem do termo, considera Adolph Stern1 como aquele que o
concebeu o termo borderline no seu artigo de 1938, no qual apresenta sua
teoria a respeito do grupo de neuroses borderline.
Eu, porém, acredito tratar-se de outro psicanalista, pois descobri que com o
intuito de ampliar as categorias de diagnóstico estrutural, o psicanalista
britânico do Grupo dos Independentes, Edward Glover – estudioso da
criminalidade e drogadicção – propus que a toxicomania não seria
1 Stern A., "Psychoanalytic investigation of and the therapy in the borderline group of neuroses." Psychoanal. Quart. vol. 7,
1938. Vide artigo de Costa Pereira M., "A introdução do conceito de 'estados-limítrofes' em psicanálise: o artigo de A. Stern sobre 'the
borderline group of neuroses'". Rev. Latino americana de Psicopatologia Fundamenta. vol. II, nº 2, São Paulo: Escuta, 1999.
característica de uma estrutura psicopatológica específica, situando-a na
fronteira dos territórios da neurose e da psicose.
Na tentativa de explicar a etiologia e classificar nosograficamente o fenômeno
psicopatológico da toxicomania, Glover cunha o termo BORDERLINE. A
origem do termo borderline remonta a dois artigos publicados por ele no
mesmo ano.2 (1932, ou seja, 6 anos antes da publicação do artigo de Stern e,
para melhor situarmos, 7 anos antes da morte de Freud).
No primeiro destes, dedicado à etiologia da toxicomania, Glover propõe que
esta não seria característica de uma estrutura psicopatológica específica por
tratar-se de um "estado transicional". Refere-se ao fenômeno como uma
"neurose narcísica circunscrita" e introduz o termo "reação específica"
caracterizada por tipos de reações que beiram as psicoses; nas palavras do autor
"... whose reactions border closely on psychotic mechanisms".
No segundo artigo, apresenta um esquema classificatório dos distúrbios mentais
onde a toxicomania ocupa um lugar especialmente diferenciado no limite entre
a psicose e a neurose. Refere-se à toxicomania, ipsis litiris, como um “estado
borderline" onde o indivíduo tem um "pé nas psicoses e o outro nas neuroses.”
Em minha opinião, portanto, como já defendi na minha dissertação de mestrado
“O Fim da Picada” sobre Toxicomania e Psicanálise defendida na PUC SP em
1988, é no trabalho de Glover que se encontra a origem da imbricação entre a
descrição dos estados-limíte ou borderline e a toxicomania.
Acho que finalmente chegou a hora de cumprir a promessa. Agora vai !!!!!
O conceito borderline se originou numa estranha mistura de critérios de
inclusão e exclusão. Conseqüentemente, traçar o desenvolvimento de um termo
que veio a funcionar como um guarda-chuva para um número de entidades
psicopatológicas diferentes é uma tarefa difícil e vai, inevitavelmente, envolver
condensação, simplificação e sacrifício de sutilezas e nuançes.
O termo borderline está indubitavelmente associado à psicanálise mesmo que as
2 Glover E., "On the aetiology of drug addiction". International Journal of Psychoanalysis. vol.13, 1932 "A psychoanalytic
approach to the classification of mental disorders" Journal of Mental Science. nº 7 - 8, 1932.
condições clínicas que ele representa fossem descritas desde as épocas mais
primitivas da psiquiatria. Alguns exemplos de transtornos que podem estar
associados, de alguma forma, ao que hoje chamamos de borderline: a manie
sans délire de Philippe Pinel (1801) é o mais antigo da lista, que inclui também
a insanidade moral de John Pritchard (1835) e a folie hystérique de Jean-Pierre
Falret (1890). Nessa mesma época os adolescentes hebefrénicos de Kahlbaum
(1890)
Já no século passado, podem citar-se Emil Kraepelin e certas formas da
demência precoce (1905) e a Eugene Bleuler (1911) com certas formas de
esquizofrenia, que percorreram este território intermediário entre a psicose
plena e a normalidade "não convencional".
Podemos considerar que a trajetória psicanalítica da questão borderline, na
psicanálise, começa com a descrição feita por Wilhelm Reich em sua
monografia de 1925 sobre o "caráter dominado por impulsos" (impulse-ridden
character).
No que seria uma premonição de idéias por vir, Reich notou a ambivalência
marcante, a primazia da agressão pré-genital, os defeitos profundos na
formação do ego e o narcisismo primitivo que caracterizam estes pacientes.
Vocês vêm que Reich veio antes até do Glover.
Este segundo período pode ser chamado de "consolidação ilusória" pelo fato de
os psicanalistas americanos ortodoxos se sentirem ameaçados pelas inovações
na técnica psicanalítica propostas pelos analistas imigrantes. Dentre estes,
destaca-se Franz Alexander (1946) que introduziu o conceito denominado:
Corrective Emotional Experience "Experiência emocional corretiva". Esta,
caso não saibam, propunha uma mudança radical na postura do analista perante
seu paciente.
A ênfase do tratamento psicanalítico não recaia mais sobre o insight
intelectualmente apreendido, mas sobre as vivências emocionais na díade
analítica: transferência / contratransferência.
É assim, então, que o tratamento das patologias borderline pode considerar-se
como o nascimento da clínica da contratransferência, pois se trata da história
das práticas destinadas a suprir as supostas insuficiências da interpretação
psicanalítica.
Paula Heinmann (1949) faz a crítica da ortodoxia freudiana que reduzia a
contratransferência a um obstáculo, uma perturbação daquilo que seria mal
resolvido analiticamente no analista.
Ela defendeu a idéia de que a contratransferência é uma ferramenta essencial de
trabalho e pesquisa psicanalítica, propondo que o analista acolhe e interroga
seus sentimentos em relação ao paciente, pois esta seria a via regia para o
inconsciente do seu paciente. Seguindo esta mesma trilha, alguns anos mais
tarde, Margareth Little (1956), (psicanalista psicótica borderline, ela se
autodenominou como tal, paciente de Winnicot por longos anos) adota este
conceito alargado de contratransferência elaborado pela sua colega e aloca todo
3 Rangell L., "The borderline case." Journ. Amer. Pychoanal. Assoc. vol. 3, nº 1, 1955.
o inconsciente na relação intersubjetiva.
A subjetividade do analista, aquilo que Freud havia cuidadosamente excluído da
díade analista / analisando, foi assim introduzida na experiência analítica.
Aquilo que justificava a inclusão do ego do analista no trabalho analítico,
segundo estes autores, era a regressão do ego encontrada no paciente com
distúrbios narcísicos do tipo borderline. O grau de regressão do paciente
requereria, como contrapartida, um movimento contratransferencial
complementar por parte do analista. Para poder acolher psicanaliticamente
estes pacientes supostamente “impossíveis”, legitimaram-se mudanças técnicas
em relação à postura do analista.