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DOS FIOS ÀS TRAMAS

TECENDO HISTÓRIAS, MEMÓRIAS, BIOGRAFIAS E FICÇÃO


ELIANA EVANGELISTA BATISTA
PAULO SANTOS SILVA
(ORGANIZADORES)

DOS FIOS ÀS TRAMAS


tecendo histórias, memórias, biografias e ficção

2019
Sumário

Apresentação..................................................................................... 7
PARTE I
História em jornais: escritos sobre o tempo, intelectuais e política

Proust, Bergson e Halbwachs: diálogos sobre (com) o tempo............. 15


Carlos Nássaro Araújo da Paixão

As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na políti-


ca partidária ..................................................................................... 33
Eliana Evangelista Batista

Clodualdo Cardoso: “O paladino dos trabalhadores” em Itajuípe ..... 63


Igor Farias Góes

O Observatório Astronômico Antares: o relato de uma experiência


moderna............................................................................................ 79
Lise Marcelino Neto

PARTE II
História e Política em Memórias e (Auto)biografias

O poder político e a escrita sobre Alagoinhas nos pós-abolição ime-


diato.................................................................................................. 97
Aline Najara da Silva Gonçalves*

Notas sobre biografia a partir da tese um caminho brasileiro para o


socialismo. A trajetória política de Mário Alves (1923 – 1970).......... 117
Ede Ricardo de Assis Soares
Trajetórias, memórias e revoluções:
arte e política em Albertina Rodrigues............................................... 135
Jonatas Pereira

Eduardo Silva e Faustino Ribeiro júnior: a produção de vestígios


autobiográficos e a popularização da arte curativa da imposição das
mãos.................................................................................................. 151
Rafael Rosa da Rocha

PARTE III
Os sentidos da literatura: história, política e cultura nas obras de ficção

A política em prosa: representações comunofeministas em A sombra


do patriarca....................................................................................... 171
Iracélli da Cruz Alves

Euclides Neto: apontamentos biográficos e literários......................... 189


Albione Souza Silva

A Invenção do pecado: a prostituta nas obras de Nelson Gallo e Her-


berto Sales (1930-1960).................................................................... 203
Thaís Calazans

Ariano Suassuna, um intelectual polifônico: entre o erudito e o po-


pular no Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do
Sangue do Vai-e-Volta....................................................................... 217
Susana Cardoso Braga
APRESENTAÇÃO

O Grupo de Pesquisa História, Literatura e Memória, da Universidade


do Estado da Bahia apresenta a obra Dos fios às tramas: tecendo his-
tórias, memórias, biografias e ficção, que reúne artigos desenvolvidos por
pesquisadores de diferentes Programas de Pós-Graduação em História.
O volume compõe-se de textos apresentados no VI Seminário do Grupo
de Pesquisa, realizado entre os dias 12 e 13 de dezembro de 2017, nas
dependências do Campus II, da UNEB. Como o evento, a obra está
organizada por eixos temáticos e nos convida a uma reflexão acerca das
intersecções entre a história, a memória, a biografia e a ficção.
A primeira parte intitulada “História em jornais: escritos sobre o
tempo, intelectuais e política” está organizada em quatro textos. Em
Proust, Bergson e Halbwachs: diálogos sobre (com) o tempo, Carlos Nássaro
Araújo da Paixão se propõe a discutir a questão do tempo para a teoria
da história, considerando-o um substrato fundamental para a construção
e a concepção do conhecimento historiográfico. Para tanto, adentrou no
debate sobre as ciências sociais entre o final do Século XIX e as primeiras
décadas do Século XX, destacando a problemática temporal levantada
pela filosofia da Intuição de Henri Bergson, a sociologia da Memória de
Maurice Halbwachs e a literatura de Marcel Proust.
Eliana Evangelista Batista, no artigo As eleições de 1933 e 1934 na
Bahia e a inserção feminina na política partidária, demonstra como o
processo de reconstitucionalização do país, após a Revolução de 1930,
foi marcado na Bahia por uma intensa movimentação em torno da po-

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DOS FIOS ÀS TRAMAS
TECENDO HISTÓRIAS, MEMÓRIAS, BIOGRAFIAS E FICÇÃO

lítica partidária de velhas e novas agremiações. Destacam-se, no artigo,


as discussões em torno da inserção da mulher na política e o fato de ela
vir a tornar-se um “importante elemento” na organização de partidos e
arregimentação de eleitores e eleitoras no conturbado período que marcou
a primeira fase do governo Vargas no Brasil.
Em Clodualdo Cardoso: “o paladino dos trabalhadores” em Itajuípe, de
Igor Farias Góes, analisa-se as atividades do Partido Comunista do Brasil
(PCB) em Itajuípe, entre os anos de 1956 e 1964, à luz da trajetória
de Clodualdo Cardoso, principal liderança comunista da localidade, e
dos jornais que ele foi proprietário: O Paladino e o Tribuna de Itajuípe,
periódicos que circularam na cidade entre os anos de 1956 e 1962. No
artigo, reflete-se sobre uma campanha salarial em favor dos trabalhado-
res rurais, lançada pelo jornal O Paladino, no ano 1957, e a partir dela
revela-se o percurso itinerário do PCB naquele meio rural.
Ao final dessa da seção, Lise Marcelino Souza, no artigo O Observatório
Astronômico Antares: o relato de uma experiência moderna, lastreada em
densa pesquisa em jornais e romances, estuda a história dessa Institui-
ção, criada na cidade de Feira de Santana, Bahia, em 1971, buscando as
relações entre o processo de modernização e a implantação da entidade,
concebida dentro dos propósitos de modernidade almejados por seg-
mentos da sociedade local.
A segunda parte intitulada “História e Política em Memórias e (Auto)
biografias” compõe-se de quatro textos. Aline Najara da Silva Gonçalves,
em O poder político e a escrita sobre Alagoinhas nos pós abolição imediato,
analisa a obra de Américo Barreira e a partir dela reflete como o poder
público em Alagoinhas do pós-abolição elaborou e guardou, a seu modo,
a história local da segunda metade do século XIX, período que coincide
com a fase em que as leis emancipatórias davam sinais de degeneração
do regime escravista. Financiada pelo poder público, a obra de Américo
Barreira nos coloca diante de uma “história oficial” da cidade, escrita nos
moldes das produções encomendadas pelo IHGB e repleta de “preten-

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APRESENTAÇÃO

sões”, revelando os caminhos percorridos para o fazer de uma história


local que buscou apagar a presença negra e o escravismo da sua memória.
Notas sobre biografia a partir da tese “Um caminho brasileiro para o
socialismo. A trajetória política de Mário Alves (1923-1970)”, de Ede
Ricardo de Assis Soares, apresenta reflexões sobre o método biográfico,
a partir da pesquisa de doutorado de Gustavo Falcón, defendida pelo
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da
Bahia, no ano de 2007.
Trajetórias, memórias e revoluções: arte e política em Albertina Rodri-
gues, de Jonatas Pereira, analisa a trajetória de Albertina Rodrigues, uma
militante que em meados do século XX conformou a sua identidade entre
a arte e a militância política, participando, inclusive, de luta armada no
Rio de Janeiro, durante a Ditadura Militar, razão pela qual foi exilada.
Após o exílio e absolvição, Albertina dedicou-se às artes cênicas e às
plásticas, às questões ambientais e ao registro de suas memórias. O ma-
nuscrito deixado por ela é tomado por este autor como objeto de estudo
e, confrontado com documentos de arquivo, ilumina a resistência das
mulheres à Ditadura Militar no Brasil.
O artigo assinado por Rafael Rosa da Rocha, Eduardo Silva e Faustino
Ribeiro Júnior: a produção de vestígios autobiográficos e a popularização da
arte curativa da imposição das mãos, discute uma das estratégias de dois
curandeiros brancos e letrados para fazer frente às acusações de exercício
ilegal da medicina e para popularizar sua arte curativa. Eduardo Silva foi
um renomado curandeiro que atuou nos estados de São Paulo e Rio de
Janeiro, no final do século XIX. Além dele, Faustino Ribeiro Júnior, que
chegou a concorrer com o “dr. Silva”, percorreu vários estados realizan-
do suas “curas maravilhosas” e “celebrizando-se” entre as mais diversas
camadas sociais com seu poder curativo. Para atingir seus objetivos, eles
racionalizaram, selecionaram e sequenciaram eventos, histórias e memórias,
buscando se apresentar enquanto sujeitos de reputação ilibada, caridosos,
gentis e, portanto, alinhados com a concepção de civilidade da época.

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DOS FIOS ÀS TRAMAS
TECENDO HISTÓRIAS, MEMÓRIAS, BIOGRAFIAS E FICÇÃO

A terceira e última parte, intitulada “Os sentidos da literatura: história,


política e cultura nas obras de ficção” enfeixam mais quatro textos. A
política em prosa: representações comufeministas em A sombra do patriarca,
de Iracélli da Cruz Alves, analisa as representações comunofeministas no
romance A Sombra do Patriarca, de Alina Paim (1919-2011), publicado
em 1950 pela editora O Globo. O texto narra as experiências de Ra-
quel, uma jovem mulher de 25 anos que se deslocou da cidade para a
zona rural do interior de Sergipe para passar as férias na fazenda do seu
tio, um latifundiário, dono de uma usina de açúcar, que agia de forma
autoritária. A intenção é evidenciar como a autora, à época filiada ao
Partido Comunista, idealizou a liberdade feminina e, em que medida,
suas interpretações se relacionam tanto com os movimentos feministas
do período, quanto com leituras elaboradas pelo PCB. Através das janelas
abertas pelo romance evidencia-se parte do debate feminista travado no
tempo da escrita, final da década de 1940.
Albione Souza da Silva, no artigo Euclides Neto: apontamentos bio-
gráficos e literários, discute aspectos biográficos e literários em torno
da produção do escritor e político Euclides Neto (1925-2000), que
publicou, ao longo de sua vida, 13 obras (romances, crônicas, contos e
memórias) tratando das desigualdades sociais e tensões entre os “senhores
do cacau” e os trabalhadores rurais no sul da Bahia. Desse conjunto,
Albione da Silva toma os romances Os magros e O Patrão (1978) como
objeto de reflexão das representações desse antagonismo e os analisam à
luz das produções teóricas que tratam do intercâmbio entre a História,
a Literatura e o gênero biográfico.
Em A Invenção do pecado: a prostituta nas obras de Nelson Gallo e
Herberto Sales (1930-1960), de Thais Calazans, busca-se compreender a
prostituta a partir da leitura histórica das obras de Nelson Gallo (1960)
e Herberto Salles (1996). Além das narrativas ficcionais, dialoga-se com
a historiografia, a filosofia, a geografia e a sociologia, além de fotografias
e textos memorialísticos, com o objetivo de entender como a prostitui-
ção foi representada entre 1930 e 1960 no centro histórico de Salvador.

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APRESENTAÇÃO

Ariano Suassuna, um intelectual polifônico: entre o  erudito e o popular


no “Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”,
de Susana Cardoso Braga analisa a trajetória da produção intelectual
do escritor e dramaturgo Ariano Vilar Suassuna (1927-2014). O foco
da investigação recai sobre o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe
do Sangue do Vai-e-Volta. Discute-se, a partir dessa obra, a perspectiva
erudita da abordagem do autor ao tratar da cultura popular do Nordes-
te brasileiro. Sua criação literária, ao mesclar fatos históricos e práticas
cotidianas, expressa os resultados dessa combinação, que se revela em
sua prosa romanesca e em sua dramaturgia.
Destacando a diversidade de abordagens aqui enfeixadas, com suas
interfaces entre a história, a memória, a biografia, a ficção e a política, os
organizadores agradecem a colaboração de todos os autores, sem as quais
esta obra não seria concretizada. Na expectativa de que novos encontros
dessa natureza ocorram, oferecemos aos leitores os resultados do nosso
VI Encontro. Boa leitura!
Eliana Evangelista Batista
Paulo Santos Silva

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PARTE I
A Política em jornais: escritos sobre
o tempo, intelectuais e política
Proust, Bergson e Halbwachs:
diálogos sobre (com) o tempo

Carlos Nássaro Araújo da Paixão


Doutor em Memória: Linguagem e Sociedade (UESB)
carlos.hyst@gmail.com

N o livro O Tempo Redescoberto, último volume da obra Em Busca


do Tempo Perdido, de Marcel Proust, podemos buscar uma série
de reflexões sobre o tempo, que decorre, que dura, que age sobre os in-
divíduos e sobre a sociedade e que apresenta múltiplos ritmos e fluxos.
E apresenta as marcas do conflito em sua produção, na narrativa, nos
sentimentos flagrados e na própria temática.
O livro aparece como uma espécie de acerto de contas com o passado,
no qual o autor revisita diversos momentos de sua vida, de suas relações e
das pessoas que fizeram parte dela. E justamente neste ponto, o problema
do tempo se coloca de maneira indelével, pois este processo de revisita,
reconstrução, retorno, não pode ser operado sem que uma concepção de
tempo seja discutida, construída e principalmente praticada.
A própria narrativa é sintoma e método para se pensar um tempo
que se apresenta de maneira não cronológica, do tipo mecânico e con-
vencionado a partir da física e da astronomia. É sintoma, pois a primeira
característica que se destaca no texto é a descontinuidade. Não se deve

15
Carlos Nássaro Araújo da Paixão

procurar um “fio da meada”, uma pista que se desvela, uma narrativa


evolutiva com um desfecho característico dos romances realistas e natu-
ralistas. Método, pois para se tratar de outra temporalidade, a narrativa
tradicional com partes definidas e ordenadas em início, meio e fim não
responde e não contempla o problema proposto.
Portanto, a inovação estabelecida por Proust pode ser percebida tanto
em sua narrativa descontinua, como na própria concepção de tempo,
que é pensado na obra como duração e afetividade. Este é marcado pela
presença que suspende a mecânica do tempo homogêneo e partilhado
da cronologia e do evolucionismo. Voltado para um passado que se faz
presente, marcado de afeto, contra um tempo voltado somente para o
futuro do progresso positivista. É um tempo que nega o saber temporal
da história vigente no século XIX e nas primeiras décadas do século XX.
Tempo vazado que permite composições e recomposições, configurações
e reconfigurações, caleidoscópio que provoca tantas combinações quantas
vivências se experimenta.
A busca, na estrutura do texto, por uma sequência lógica se mostra
uma tarefa inútil, tanto porque não será encontrada, e principalmente,
porque não se terá o entendimento fundamental dos objetivos e dos pro-
blemas levantados pelo autor. A narrativa é dividida em três partes que
não tem necessária relação cronológica entre si. Para pensar e entender a
estrutura narrativa é preciso ter o entendimento da perspectiva temporal
proposta pelo narrador personagem. Pois, a partir de cada um desses
momentos, ele se desloca para outros, em um processo de rememoração
que é desencadeado pelos mais diversos dispositivos.
Na primeira parte, ele se encontra em Tansonville, em um momento
de repouso após problemas de saúde. Está na casa de seu amigo Robert de
Saint Loup e de seu antigo amor, Gilbertte. Do seu quarto, observando
a decoração das paredes e a paisagem verdejante que se desenhava pela
janela ele se vê envolvido por uma reminiscência e se percebe diante do
campanário da igreja de Combray, local onde passou sua infância:

16
Proust, Bergson e Halbwachs: diálogos sobre (com) o tempo

É bonito ter tanto verde na janela do meu quarto” até o mo-


mento em que, no vasto quadro verdejante, reconheci, pintado
ao contrário em azul-escuro, por estar mais longe o campanário
da igreja de Combray, não uma imagem desse campanário, mas
o próprio campanário, que pondo assim sob meus olhos a distância
dos olhos e dos anos, viera, em meio da luminosa verdura e com
um tom inteiramente outro, tão sombrio que parecia apenas
desenhado, inscrever-se no losango de minha janela.1
Um tempo que é intuído como duração subverte qualquer possi-
bilidade de rigor cronológico e pode estabelecer uma identidade entre
temporalidades distintas. O tempo de Proust e do seu protagonista dura, é
o que o permite, da janela de seu quarto, se colocar inteiramente em dois
momentos distintos, tornando o passado contemporâneo do presente,
rompendo qualquer barreira cronológica e espacial.2 Daí em diante, ele
entra em um caleidoscópio temporal. Retoma outro amor do passado,
Albertine, memória que permaneceu involuntária e que evocava a vida
que compartilharam em Paris.
Neste período caiu em suas mãos o diário dos Goncourt3, a partir
do qual ele passou a refletir sobre arte e principalmente sobre a função
da literatura. Intuindo uma superficialidade e ingenuidade do autor do
diário que se perdia em descrições e observações inúteis das pessoas da
alta sociedade, ao passo que, reconhecia sua própria capacidade de ver e
ouvir, salvo quando se punha a perscrutar a essência que se manifestava
nas coisas, aludindo que via, quando muito, uma espécie da radiografia
das coisas e das pessoas.4 Refletindo em tudo isso, para concluir sobre sua

1
PROUST, Marcel. O tempo tedescoberto. 10. ed., São Paulo: Globo, 1992. (Coleção
Em Busca do Tempo perdido. Vol. VII). p. 11. (Grifo nosso).
2
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaios sobre a relação do corpo com o
espírito. 2. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 175.
3
PROUST, Marcel. op. cit. p. 20-26.
4
Idem. p. 27-27.

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Carlos Nássaro Araújo da Paixão

própria incapacidade de possuir dons literários, muito por conta de sua


saúde debilitada que o obrigou a se internar em um sanatório. Uma vez
que o projeto do livro se apresenta como uma espécie de meta-narrativa
que cuida das possibilidades do fazer literário e em particular do seu
projeto artístico de escrever a obra da sua vida.5
A segunda parte do livro se ambienta inicialmente na Paris no decorrer
da Primeira Guerra Mundial, em 1916, logo após sua longa passagem por
um sanatório. Nesta seção, há uma discussão fundamental entre um tempo
vivido, sentido, experimentado, interior e o tempo socialmente conven-
cionado. É o momento em que o conflito mundial está muito presente na
narrativa e o protagonista se mostra muito interessado no desenrolar deste,
é inevitável a percepção da alteração no ritmo de vida, do comportamento
e das ideias e discursos dos personagens e da paisagem da cidade.
Numa das primeiras noites de minha estada em Paris em 1916,
desejoso de ouvir comentar a única coisa que então me interes-
sava, a guerra, saí depois do jantar para visitar a sra. Verdurin,
já que ela era, com a sra. Bontemps, uma das rainhas daquela
Paris da guerra, que lembrava a do Diretório6.
Essa Paris estava tomada por mulheres de turbantes e túnica, uma moda
de algum modo austera visando não ofender o olhar dos combatentes,
assim como os acessórios que remetiam ao militarismo, uma maneira de
levantar o moral da tropa e dar a contribuição de patriotismo e de civismo
das mulheres da sociedade.7 E esta discussão, aparentemente trivial, leva
o leitor a uma vertiginosa passagem por vários momentos da história da
França: o caso Dreyfus, o Diretório, O Segundo Império, a República.
Estes períodos, separados por um tempo mensurável e eivado de inter-
valos regulares, se interpunham na narrativa uns nos outros, marcando

5
Idem. p. 32.
6
Idem. p. 35.
7
Idem. Ibdem.

18
Proust, Bergson e Halbwachs: diálogos sobre (com) o tempo

continuidades, contemporaneidades e ao sabor de traços e evocações


que seguiam a um ritmo e a uma temporalidade interiormente vividas:
“Viam-se ainda, por vezes, em torno dela, estranhos remanescentes de um
mundo ignoto, aceitos, tão naturalmente, como restos de casca ao redor
de um pinto (...)”.8 A guerra e a presença dos destacamentos de diversas
tropas nas ruas de Paris evocavam outro tempo, o andar distraído sobre
ruas escuras de Paris fez atualizar um passado que não deixou de existir
e que se conservou em diversas imagens:
Fiz meia volta, mas ao deixar a ponte dos Inválidos vi que já
não era mais dia no céu, que já não havia luzes na cidade, e,
tropeçando aqui e ali nas latas de lixo, tomando um caminho
por outro, atravessando maquinalmente um dédalo de ruas
escuras, cheguei, sem saber como, aos bulevares. Renovou-se
logo a impressão do Oriente que já experimentara, e por
outro lado, à evocação da Paris do Diretório sucedeu a de
Paris de 1815. Como em 1815, havia um heterogêneo desfile
de uniformes das tropas aliadas; entre outros, os africanos de
largas calças vermelhas, franzidas como saias, e os hindus de
alvos turbantes me bastavam para transformar a Paris onde
passeava em imaginária capital exótica, de um orientalismo
minuciosamente exato no tocante às vestes e aos tons de pele,
arbitrariamente quimérico quanto ao cenário [...].9
Esta descrição se apresenta como uma miríade de texturas temporais
e espaciais. As vivências anteriores do protagonista vêm compor com o
presente uma percepção particular do atualmente vivido. Temporalidades
múltiplas e justapostas, passados distintos que, pela concepção de tempo da
história dita positivista e da física clássica newtoniana, já ficaram na esteira
do tempo decorrido, cada um separado pelos seus instantes particulares,
nesta narrativa compõe uma situação de coexistência, na qual, passados

PROUST, Marcel. op. cit. p. 39.


8

Idem. p. 64.
9

19
Carlos Nássaro Araújo da Paixão

distintos coexistem com o presente que já se esvai na continuidade da


duração. Cores, roupas e rostos exóticos evocaram o Oriente, que evo-
cou o período do Diretório, que evocou a Paris de 1815, mas esta não é
uma sequência cronológica, é puramente por uma questão de limitação
do tropo, que pode não ficar explícito o fato de que para Proust estes
diferentes períodos são como camadas de um mesmo instante.
Isto ocorre quando, concordando com Bergson10, intuímos o tempo,
ou seja, vivemos na duração, sair do tempo da representação, quando
fazemos isso vivemos o tempo como experiência imediata. O relógio, o
calendário e as grandes repartições da história especializam o tempo e
negam a apreensão interior deste. E o que seria duração para Bergson?
Ele responde com uma metáfora que dá conta do caráter interior e ex-
periencial que são a sua marca:
Escutem uma melodia, fechando os olhos, pensando apenas
nela, não justapondo mais sobre um papel ou sobre um teclado
imaginários as notas que vocês conservavam assim uma para a
outra, que aceitavam então tornar-se simultâneas e renunciavam
a sua continuidade de fluidez no tempo para se congelar no
espaço: encontrarão indivisa, indivisível, a melodia ou a porção
de melodia que terão recolocado na duração pura. Ora, nossa
duração interior, considerada do primeiro ao último momento
de nossa vida consciente, é algo parecido com essa melodia.11
A tentativa de mensurar, medir, contar e dividir, simplesmente em-
pobrece, “congela” no espaço a possibilidade de viver, experimentar o/no
tempo. Neste caso, o tempo vivido é diferente do tempo da história, a
experiência permite outra relação com o tempo, e os diferentes fluxos da
vida em sociedade possibilitam a permanência do passado no presente.

10
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 7-26.
11
BERGSON, Henri. Duração e simultaneidade: a propósito da teoria de Einstein. São
Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 57-58.

20
Proust, Bergson e Halbwachs: diálogos sobre (com) o tempo

Mantendo a noção de duração, mas deslocando-a para uma perspectiva


sociológica, temos Halbwachs que escreveu sobre as diferentes tempo-
ralidades produzidas pelos diferentes grupos sociais, e que pode dialogar
com Proust nos seguintes termos:
O passado deixou na sociedade de hoje muitos vestígios, às vezes
visíveis, e que também percebemos na expressão das imagens,
no aspecto dos lugares e até nos modos de pensar e de sentir,
inconscientemente conservados e reproduzidos por tais pessoas
e em tais ambientes. Em geral nem prestamos atenção nisso...
mas basta que a atenção se volte desse lado para notarmos que
os costumes modernos repousam sobre camadas antigas que
afloram em mais um lugar.12
O tempo se configura como um palimpsesto, em que, mesmo com a
sensação de ruptura e aceleração, rastros do passado ainda se materializam
em gestos, pessoas, lugares e hábitos que desafiam o tempo representado
e aprendido da história:
Existiu uma Paris de 1860, cuja imagem está estreitamente
ligada à sociedade e aos costumes contemporâneos. Para evo-
car, não basta procurar as placas que comemoram as casas em
que viveram e em que morreram alguns personagens famosos
dessa época, nem ler uma história das transformações de Paris.
É na cidade e na população de hoje que um observador nota
muitos traços de outrora [...].13
Os traços do ontem estão presentes nos detalhes considerados os
mais insignificantes. Foram eles que levaram o protagonista e se colocar
e se perceber atravessando as camadas dos diferentes tempos sem sair
do lugar.14 Proust continuou a relacionar o tempo social, da história

12
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. p. 87.
13
Idem. p. 88.
14
BERGSON, Henri. Matéria e memória... p. 171.

21
Carlos Nássaro Araújo da Paixão

com a presença marcante da guerra, as relações rompidas entre França e


Alemanha, entes tomados como imensos seres humanos em que os habi-
tantes de cada uma das nações eram como células e polígonos interiores
que juntas formariam o corpo humano e esse conjunto de pequenos
polígonos e células travavam uma luta gigantesca. Mediam-se em uma
luta semelhante à dos indivíduos em um ringue. Com questões muito
íntimas e pessoais de suas relações com Françoise e Albertine.15
O que fica marcado da relação da narrativa com o tempo é que estas
informações e muitas outras, apresentadas de maneira que acompanham o
devaneio, fruto de uma introspecção e reflexão interiores, aceleraram em
um fluxo que no relógio não seria maior do que um pequeno instante,
aquele em que se percebe o sr. de Charlus se esgueirando na noite para
entrar desapercebido no hotel de Jupien.16
A morte de seu amigo Robert de Saint Loup no campo de batalha
afetou de tal maneira o protagonista que retardou sua volta de Paris e o
abalou a ponto impossibilitar sua viajem. Na guerra, Robert encarnou de
maneira significativa o personagem que nutria e que participava de um
ódio coletivo contra um povo, os alemães. Mas isso, a partir do ponto
de vista do narrador, se devia muito à rivalidade entre ele e seu tio, barão
de Charlus, que era adepto do germanismo.17
Isso desencadeou novamente uma série de lembranças quando, por
conta dos esforços e das emoções experimentadas com a morte, o velório
e o funeral do amigo, ficou convalescendo em um quarto. Lembrava com
detalhes da chegada do amigo pela primeira vez em Balbec. Destacou
o fato de que se viram somente algumas poucas vezes, como se fossem
enquadramentos e tempos os mais diversos. Sua lembrança evocara a
memória de Albertine, para daí se materializar em seus pensamentos o

15
PROUST, Marcel. op. cit. p. 70-71.
16
Idem. p. 100.
17
Idem. p. 129.

22
Proust, Bergson e Halbwachs: diálogos sobre (com) o tempo

seu amor não correspondido pela princesa de Guermantes, e novamente


retornou a imagem de Albertine, que desta vez valia apenas para asso-
ciar-se a um raio de sol poente no mar. Esta associação aparentemente
desconexa de imagens e tempos diferentes foi sintetizada na metáfora
das lançadeiras que tecem os fios das lembranças: “as lançadeiras ágeis
do tempo tecem fios entre as lembranças que nos pareciam a princípio
mais independentes”.18
No momento de sua morte, seu passado nobiliárquico veio em so-
corro de seu presente, rompeu com o tempo decorrido, não se prendeu
aos livros e retomou sua dignidade,
tornara a ser militar seu torreão feudal. E este Guermantes
morreu mais ele mesmo, ou, melhor, mais de sua raça, exclu-
sivamente um Guermantes, como simbolicamente patenteou
o enterro, na igreja de Saint-Hilaire de Combray [...].19
O último capítulo do livro decorre das experiências e reflexões vividas
pelo personagem em uma recepção na casa da princesa de Guermantes. É
nesta seção que Proust lança suas maiores inquietações sobre a natureza
do tempo, sobre as concepções de arte defendidas e o momento, a partir
do qual, ele finalmente encontrou, ou resolveu seus problemas com o
tempo, definindo seu projeto literário.
Inicia-se com sua viagem novamente de volta à Paris, e as paisagens
do campo levam o protagonista a se dar conta de que não possui dons
literários. A confirmação de uma impressão que o acometera anterior-
mente em Guermantes e Tansonville, ou seja, a busca infrutífera por
um ideal nunca encontrado e a mentira da literatura.20 Sua narrativa
se apresenta da mesma maneira que em outras partes do livro, com o
detalhe de que, neste momento, há uma profundidade, uma densidade

18
PROUST, Marcel. op. cit. p. 130.
19
Idem. p. 132.
20
Idem. p. 139-141.

23
Carlos Nássaro Araújo da Paixão

que procura, a partir desta ferramenta, dar vazão a todas as reflexões


propostas pelo narrador personagem. Um instante faz com que se
reviva quase todos os momentos de sua vida, passando pela infância,
adolescência, a fase adulta, revê todos os seus antigos amores, e mais que
isso, reavalia todas as suas relações amorosas. Caracteriza, julga e põe
em perspectiva todos os membros de seu círculo de amizades. Põe em
suspenso seu projeto literário, avalia o universo da arte e da literatura,
separa o que é essencial do que é supérfluo e fútil e, principalmente,
acerta contas com o tempo, que é julgado, revivido, conceituado e,
finalmente, reencontrado.
Retomando a metáfora das lançadeiras do tempo, nas quais os fios
são trançados de maneira inesperada, a caminho da casa dos Guermantes
e refletindo sobre sua própria incapacidade de desenvolver seu projeto
literário, sentia algo em suspenso no ar, era um terreno familiar, mas
não mais se sentia penetrando o mesmo espaço que os demais tran-
seuntes, mas não era uma mudança física, material, os obstáculos não
eram mais sentidos, pois estas ruas retomavam a memória dos passeios
com Françoise, a memória fazia com que o próprio solo o levasse para
“as alturas silenciosas da memória”.21 As ruas percorridas faziam parte
de um “passado escorregadio, triste e doce. Sendo, aliás, composto de
tantos passados diferentes, era difícil saber a causa de minha melancolia,
sabe se se devia à espera de Gilberte e ao receio de que não viesse”22, ou
ainda se estava próximo “de certa casa onde me disseram que Albertine
fora com Andrée”.23
Percorrer ruas diferentes porque remetem a um passado composto
por passados diferentes. Um passado que fica, que permanece, volta
para o presente em multiplicidade, em múltiplas temporalidades. Este

21
PROUST, Marcel. op. cit. p. 142.
22
Idem. Ibidem.
23
Idem. Ibidem.

24
Proust, Bergson e Halbwachs: diálogos sobre (com) o tempo

presente, que, por conta de uma evocação muitas vezes involuntária, se


põe a conviver com muitos passados distintos. No qual, estes passados
que ficam, convivem com este presente. Bergson diz, para nos auxiliar
neste caso, que o tempo é duração, e como tal, permanência em multi-
plicidade, porque mudança, atualização, invenção e descoberta. 24
Ao adentrar no pátio da residência dos Guermantes, o tropeção
em uma pedra irregular provocou uma espécie de epifania. Imagens
que estavam no Tempo se atualizaram, passados em diferentes graus de
contração e distensão em contato com a matéria provocaram verdadeira
avalanche de lembranças. Toda a melancolia pelos dissabores amorosos e
toda dúvida quanto aos seus talentos literários se desvaneceram e cederam
lugar a memórias felizes de Balbec e Combray.25 A pedra trouxe a mesma
evocação, a mesma memória feliz que anteriormente havia sido evocada
pela Madeleine molhada na xícara de chá.
A felicidade que acabava de experimentar era, efetivamente,
a mesma que sentira ao comer a madeleine, e de cujas causas
profundas adiara até então a busca. A diferença, puramente
material, residia nas imagens evocadas26.
A Madeleine evocara anteriormente a infância feliz em Combray, na
convivência com sua mãe, cuja morte lhe trouxe profundo sofrimento, e
sentir-se novamente ao seu lado, sendo cuidado por ela, na representação
deste bolinho, trouxe um novo sopro de vida e alegria para ele. Assim
também, o tropeço na pedra despertou uma memória feliz de sua vivência
em Veneza. Pois lá, no batistério de São Marcos, dois azulejos irregulares
também o havia feito tropeçar. A pergunta que se faz, é o início de uma
resolução que o faz adentrar à casa e encontra a resposta: “Mas por que
me tinham, num como noutro momento, comunicado as imagens de

24
BERGSON, Henri. Duração e simultaneidade... p. 53-54.
25
PROUST, Marcel. op. cit. p. 148.
26
Idem. p. 149.

25
Carlos Nássaro Araújo da Paixão

Combray e de Veneza uma alegria semelhante à da certeza, para (...),


tornar-me indiferente a ideia da morte?”.27
E, ao entrar na casa, outra evocação despertou outra memória feliz.
O tilintar da colher em uma louça e o toque do lenço de tecido engo-
mado trouxeram a imagem de frescor de Balbec, a abertura de “uma
janela sobre a praia (...); o guardanapo onde limpara a boca, engomado
exatamente como a toalha que tivera tanta dificuldade em enxugar-me
defronte da janela no dia de minha chegada em Balbec, (...)”.28 A presença
simultânea de diferentes passados experimentados em tão pouco tempo
cronológico gerou alguma inquietação e “por isso procurava discernir
o mais claramente possível a natureza dos prazeres idênticos que, três
vezes em alguns minutos, acabava de experimentar, procurando em
seguida a lição a tirar daí”.29 Esta não era uma experiência mediada pela
inteligência, pela racionalidade que busca em tudo a representação, não
era uma impressão fictícia, era uma impressão real de quem se coloca
na intuição, era, pois, a experiência real de quem vive e não representa
e especializa o tempo.30
A diferença dos passados evocados, a partir dos signos mais diversos,
que vieram compor com o presente uma única sensação, somente pode
ser explicada pelo recurso à memória.
É certo que tais mudanças, nós a sofremos insensivelmente;
mas entre a lembrança surgida inopinadamente e nosso estado
atual, assim como duas reminiscências de datas, lugares, e
horas diversas, a distância é tal que, ainda deixando de lado a
originalidade específica, bastaria para tornar impossível qual-
quer comparação. (...) a recordação faz-nos respirar de repente

27
PROUST, Marcel. op. cit. p. 149.
28
Idem. p. 150.
29
Idem. p. 151.
30
BERGSON, Henri. Duração e simultaneidade... p. 57-59.

26
Proust, Bergson e Halbwachs: diálogos sobre (com) o tempo

um ar novo, precisamente um ar outrora respirado, o ar puro


que os poetas tentaram em vão fazer reinar no paraíso [...].31
A pergunta que se faz é: como estabelecer a equivalência onde não
há identidade? Esta questão, também posta por Deleuze (2003), tem
como uma possível resposta, o fato de que aqueles passados surgem como
presentes, e que são signos na medida em que são a presença em que se
interpreta uma ausência.32 Como signos, apenas atuam na duplicidade,
em réplica. Este presente que é passado, e que retorna, estabelece-se como
um simulacro de um presente-presente. É a memória que, convocada,
como um jogo com o qual as semelhanças se proliferem e se performa-
tizem em diferença.
O ruído da colher, a desigualdade das pedras, o sabor da Madeleine
são imagens evocativas que fazem o passado permear e se interpor no
presente, a ponto de fazer o protagonista hesitar sobre a sua condição e
localização no tempo, sem saber em qual dos dois está. Era um ser que
gozava desta impressão e desfrutava um conteúdo extratemporal, repar-
tido entre o antigo e o atual, um ser que surgia na identificação entre o
passado e o presente e só conseguia se situar fora do tempo.33 Esse ser
apenas pode se realizar longe dos esforços de uma memória que busca
e da inteligência
Tal nunca me aparecera, nunca se manifestara senão longe da
ação, da satisfação imediata, senão como o milagre de uma
analogia me permitia escapar ao presente. Só ele tinha o po-
der de me fazer recobrar os dias escoados o Tempo perdido,
ante o qual se haviam malogrado os esforços da memória e
da inteligência.34

31
PROUST, Marcel. op. cit. p. 151-152.
32
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
33
Idem. p. 152.
34
PROUST, Marcel. op. cit. p. 152-153.

27
Carlos Nássaro Araújo da Paixão

O protagonista percebeu que, agindo sempre pelo intelecto e pelo


esforço de memória, ele não conseguia atingir o que seria a vida em
plenitude no Tempo. A inteligência que age, as obrigações diárias, as
reuniões sociais são como barreiras que impedem a vivência que um
Tempo que é interior, que tem ritmo e cadência próprios. A obrigação
que ele se impunha de, a partir dos sentidos e da razão, captar a essência
das paisagens que se contemplava pela janela do trem a caminho de Paris
o impedia de senti-la. Intuir, vivenciar o fluxo contínuo do tempo, que
ao mesmo tempo retém as imagens na duração, sem a preocupação com
sua medição o permitiu experimentar sensações que se cintilam tanto no
passado quanto no presente, algo que nunca apreendera antes: “tempo
em estado puro”.35
Fica claro que “deperece na observação do presente, onde não lhe for-
neçam sentidos, na investigação de um passado ressecado pela inteligência,
na expectativa de um futuro que a vontade constrói com fragmentos do
presente e do passado”.36 Pensar este tempo que recorta passado e pre-
sentes em compartimentos separados e estanques, não muda o fato de
que, como salienta Bergson, ele, o Tempo, é uma peça única e indivisa.37
Neste caso faz-se necessário respeitar a especificidade deste tempo da
memória. Esta temporalidade está completamente marcada pela afetivi-
dade. Não sujeita às provas materiais, é um tempo não naturalizado, antes
sentido. Não é ordinário, é denso, dramático, tenso e completamente
ritualizado. Como duração ele é sempre presente, e trabalho fundamental
da memória é tornar os diferentes presentes cúmplices entre si.

35
Idem. p. 153.
36
PROUST, Marcel. op. cit. p. 153.
37
BERGSON, Henri. Duração e simultaneidade... p. 58.

28
Proust, Bergson e Halbwachs: diálogos sobre (com) o tempo

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra de Proust, Bergson e Halbwachs levantou problemas fun-
damentais, que incomodavam e que provocaram os historiadores a res-
ponderem às objeções e às reduções que colocavam em suas concepções
de história. Em geral, todos estes autores mostravam uma desconfiança,
quiçá uma descrença e relegavam a história a uma posição menor dentro
das humanidades e das artes em geral.
Esta concepção, no entanto, que estava em vias de construção era
muito próxima daquela que os pioneiros dos Annales estavam forjando.
É fundamental perceber que o processo de renovação da história se deu
pari passu com uma crise geral das ciências humanas e sociais e que
os debates, os questionamentos e o levantamento de novas questões
proporcionou um momento de riqueza intelectual que gerou alguns
dos paradigmas que foram fundamentais para o pensamento científico
a partir de então.
Proust, especificamente, construiu toda sua obra a partir das questões
ligadas ao tempo. Em que medida esta sua preocupação com a tempora-
lidade pode ser frutífera para pensarmos uma concepção do tempo para
a teoria da história? Indagação esta, já presente no título do presente
trabalho, que lançou o novelo para a tessitura desta narrativa. Pois bem, a
partir deste autor francês, não se pode mais negligenciar o caráter subjetivo
e mesmo afetivo das temporalidades. A concepção temporal, neste caso,
está decididamente, construída para além de uma perspectiva que leve
em conta apenas seu caráter mensurável, racionalizável e de exterioridade,
em uma palavra, convencionado, portanto, artificial.
Um tempo que é concebido em sua multiplicidade, em suas diferen-
tes texturas e camadas, que busca dar conta das diferentes experiências
pessoais e sociais, que não podem ser encerradas em uma perspectiva
temporal que uniformiza e despersonaliza através da sucessão de períodos
que não podem se repetir.

29
Carlos Nássaro Araújo da Paixão

Contrário a uma perspectiva de progresso, no qual o tempo é como


uma flecha em disparada em direção ao futuro, Proust propôs uma expe-
riência temporal mais em consonância com a figura de um caleidoscópio.
Rompe-se aqui com a percepção de continuidade e abre-se à possibilidade
de rupturas, aliadas a contínuos arranjos que dependem apenas das dife-
rentes vivências experimentadas pelos indivíduos – e, trazendo para uma
perspectiva social, à maneira de Halbwachs, das diferentes maneiras pelas
quais, os diferentes grupos sociais organizaram sua relação com o tempo.
Em Proust, este problema é o lugar privilegiado da subjetividade, na
qual se resolvem as questões pessoais e do conhecimento. Esta duração
e afetividade, não se coadunam com a cronologia mecânica do tempo
astronômico e que põe os homens e as sociedades em uma desigual com-
paração, que tem como medida de julgamento, justamente este tempo
decorrido. Ao invés de uma sucessão marcada pela passagem contínua
entre passado-presente-futuro, a proposta é a suspensão da espacialização
e a criação de uma cumplicidade afetiva entre o agora e o que ficou para
trás. Um tempo marcado pelo signo da memória.
O tempo que dura é granulado, onde os seus interstícios são preen-
chidos pela subjetividade e afetividade, responsáveis pela constituição de
outra temporalidade, radicalmente distinta daquela marcada pelo rigor
cronológico. Este tempo, marcado pela memória, é uma reminiscência,
que possui uma organização temporal que lhe é peculiar. O tempo que
Proust busca redescobrir é, então, o tempo destas reminiscências. Este
perpassa, de maneira perpendicular, o nosso tão conhecido tempo da
cronologia. Mas, diferente deste, não está sujeito às provas materiais,
posto que não é naturalizado, muito menos ordinário, antes, é sentido.
E o que vai ligar a convivência de dois passados, ou melhor, o que fará
o presente vivido, cúmplice do presente que já passou, é a memória,
elemento fundamental para se entender esta concepção temporal.
Deste modo, a contribuição de Proust a este debate é sua provocação
no sentido de desnaturalizar a questão do tempo. É destacar seu caráter

30
Proust, Bergson e Halbwachs: diálogos sobre (com) o tempo

artificial e separado da experiência e subjetividade humana e propor uma


perspectiva temporal que apreenda a densidade e a complexidade dos
seres humanos e suas relações. Perceber a forma dramática pela qual as
diferentes sociedades humanas se relacionam com as diferentes formas
de lidar com esta questão. Compreender que os homens ritualizam sua
forma de se relacionar com a passagem do tempo, dotando-a de signifi-
cados diferentes. E, por fim, se dar conta de que no presente se coagulam
diversos presentes, passados e futuros.

REFERÊNCIAS
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espírito. 2. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BERGSON, Henri. Duração e simultaneidade: a propósito da teoria de


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BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o ofício do historiador. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2003.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999.

BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. 2. ed., São Paulo: Perspectiva,


2005.

FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 7. ed., Rio de Janeiro: Forense


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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

31
Carlos Nássaro Araújo da Paixão

HALBWACHS, Maurice. Los marcos sociales de la memoria. Postfacio


de Gérard Namer. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; Concepcion:
Universidade de La Concepcion: Caracas: Universidade Central de
Venezuelas. 2004.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos


tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 9. ed., São Paulo:


Perspectiva, 2006.

PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. 10. ed., São Paulo: Globo, 1992.
(Coleção Em busca do Tempo Perdido, . V. 7)

RICOUER, Paul. A história, a memória, o esquecimento. Campinas: Editora


da Unicamp, 2007.

32
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção
feminina na política partidária

Eliana Evangelista Batista


Doutora em História Social – UFBA
eliana25d@hotmail.com

O CÓDIGO ELEITORAL DE 1932 E AS ELEIÇÕES DE 1933 NA BAHIA

O movimento pela reconstitucionalização do país depois da Revolução


de 1930 começou na Bahia ainda no ano de 1931, e foi intensificado
de dezembro daquele ano até a irrupção da Revolução Constitucionalista
de São Paulo, em julho de 1932.1 Entre julho e outubro de 1932, todas
as atenções estava voltadas para o estado do sudeste, mas tão logo o
governo de Getúlio Vargas dominou as forças paulistas, convocou uma
Comissão para elaborar o anteprojeto da nova Constituição do país, da
qual participou o jurista baiano João Mangabeira.
Assim, o ano de 1933 se iniciou na Bahia com uma intensa movi-
mentação em torno da política partidária de velhas e novas agremiações.
O alistamento eleitoral, por sua vez, ainda era lento em quase todo o

BATISTA, Eliana Evangelista. 1932: A Bahia e o movimento pela reconstituciona-


1

lização do Brasil. In: MEDICCI, Ana Paula. Veredas da História Política. Ana Paula
Medicci, Maria José Repassi Mascarenhas, Marcelo Pereira Lima (Orgs.). Salvador:
UFBA, 2017, p. 162-183.

33
Eliana Evangelista Batista

interior do estado como de resto parecia ser em todo o Brasil. De parte do


governo, embora não houvesse nenhum informe em torno de um possível
adiamento das eleições que estavam marcadas para maio de 1933, era quase
certo para a maioria dos baianos que elas não ocorreriam, pois o número
de eleitores que buscavam alistar-se era diminuto. Apesar das suspeitas e
reticências, as eleições foram mantidas, levando às urnas de todo o estado
da Bahia cerca de 80 mil eleitores, dos quais a maioria era do interior.
Realizada com base no Código Eleitoral de 1932 e suas atualizações,
as eleições de maio de 1933 constituíram-se em marco de ruptura do
processo eleitoral adotado durante a Primeira República.2 Segundo Cris-
tina Buarque de Holanda, quando da elaboração do Código, o objetivo
de Assis Brasil teria sido o de “aproximar os quadros parlamentares das
opiniões e dos grupos políticos realmente existentes na sociedade”.3 O

2
Os historiadores divergem quanto a esta assertiva. Para Jairo Nicolau, as mudanças
fundamentais trazidas pelo Código Eleitoral foram o voto feminino e a obrigatorie-
dade do voto. Cristina Buarque de Holanda acrescenta a conquista do voto secreto
e a inclusão do magistrado nos processo de alistamento, voto e apuração, lembrando
ainda da representação proporcional como principal desdobramento da arquitetura
eleitoral do liberalismo no século XIX. Consuelo Sampaio, em análise da aplicação do
Código Eleitoral nas primeiras eleições dos anos trinta, afirma que a justiça eleitoral
foi a maior inovação do período, mas os decretos que lhe sucederam, ao menos no que
diz respeito à Bahia, constituíram-se num retorno ao passado. Ver: NICOLAU. Jairo
Marconi. Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais. Rio de Janeiro. Zahar, 2012;
HOLLANDA, Cristina Buarque de. Modos de representação política: o experimento
da primeira República Brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro:
IUPERJ, 2009; SAMPAIO, Consuelo Novais. Poder e representação: o legislativo na
Bahia na segunda república, 1930-1937. Salvador: Assembleia Legislativa. Assessoria
de Comunicação Social, 1992.
3
Para a autora, a contribuição de Assis Brasil ao Código Eleitoral de 1932 foi uma
versão de sua obra Democracia representativa: do voto e do modo de votar (1893)
que basicamente orientou toda a atuação parlamentar de cunho liberal do jurista.
A defesa do sufrágio universal, do proporcionalismo do voto e de outros temas da
política liberal do século XIX, completa a autora, ilumina, mas não esgota o perfil
político do jurista, que na sua concepção se explica muito mais em termos de modelo

34
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

Estado precisava “criar” e “moldar” o povo e para isso, as práticas eleitorais


precisavam ser renovadas. Assim, foram incorporados no Código eleitoral
e consolidados na Constituição de 1934 temas como o voto feminino,
o voto secreto, a justiça eleitoral, o voto proporcional e a representação
profissional, alguns dos quais defendidos pela Aliança Liberal no ano
de 1930, caracterizando aquele momento político como renovador na
história das eleições do Brasil.
Os revolucionários de 1930 punham no vício eleitoral da Primeira
República grande parte do fracasso do regime representativo no Brasil.
Sanear o processo eleitoral era ponto da agenda revolucionária que di-
vidia opinião. Seja pela discussão em torno do voto direto ou indireto,
em torno de quem deveria ou não votar ou ainda, em torno da própria
realização de uma eleição quando o governo provisório demonstrava não
ter encontrado meios de impor o seu programa a toda nação, o quesito
votar tornou-se um imperativo para a “Nova República”.
Conforme afirmou Cristina Buarque de Holanda, após a Revolução
de 1930, “[...] em larga medida, a possibilidade de superação dos erros do
passado baseava-se na expectativa de que uma nova forma eleitoral pudesse
habilitar um novo modo de existência política”.4 Era preciso superar os
vícios que levaram às instituições democráticas à falência e isso se daria a
partir da elaboração de uma nova lei, vista por determinados grupos da
época como o verdadeiro significado sociológico da Revolução de 1930.5

eleitoral pós 1930, à luz da aproximação tensa do político com o positivismo e o


realismo, cuja hibridez revela-se na elaboração do Código, que não obstante o viés
liberal foi marcado da concepção hobbesiana e da concepção política de Burke. Ver:
HOLLANDA, Cristina Buarque de. Modos de representação política: o experimento
da primeira República Brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro:
IUPERJ, 2009. p. 224-225.
4
HOLLANDA, Cristina Buarque de. Modos de representação política: o experimento
da primeira República Brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro:
IUPERJ, 2009, p. 240.
5
Idem, p. 241

35
Eliana Evangelista Batista

Assim como ocorreu durante a Primeira República, no processo


de retomada do regime constitucional depois de 1930, o voto femini-
no, o voto secreto, a proporcionalidade do voto, a representação das
minorias, a justiça eleitoral e a organização partidária eram temas que
motivavam calorosos e intermináveis debates. Na Bahia, discussões a
esse respeito já ocupavam as páginas dos jornais desde 1931, quando
políticos como Muniz Sodré e J. J. Seabra afastaram-se do governo.
No ano de 1932, a discussão foi conduzida pelos acadêmicos, a partir,
principalmente, da criação da Liga de Ação Política que abraçou a
causa da reconstitucionalização do país. A ala jovem do PRB (Partido
Republicano da Bahia) e os estudantes e acadêmicos do Ginásio da
Bahia e das Faculdades de Medicina e de Direito, que apoiaram o mo-
vimento armado de São Paulo, agitaram a capital e o interior do estado
da Bahia, tratando dessas temáticas através da confecção de boletins e
da atuação na Rádio Sociedade.
Em 1933, por sua vez, essa discussão estava posta a todos os eleitores,
partidos políticos e candidatos. Não era mais possível fugir ao debate
mesmo que fosse forte a descrença em torno da realização das eleições
naquele semestre.
O processo de alistamento ocorreu na Bahia de forma lenta, confusa
e controversa. No final de 1932, apenas dez sessões haviam recebido
material para alistar, e em grande parte do interior do estado, aonde
esse material chegou com atraso considerável, o alistamento e emissão
de títulos eleitorais dependiam ainda, do trabalho e esforço pessoal de
muitas lideranças locais, visto que o Estado impunha a exigência do alis-
tamento e da obtenção de títulos aos maiores de 21 anos que cumprissem
os requisitos definidos no Código, mas não dava condições para que esse
processo se realizasse de forma simples, barata e célere.
Nesse conjunto de novidades, a imprensa constituiu-se em grande
aliada. Seja por parte do governo que aproveitava o momento para atacar
o regime deposto ou dos opositores que colocavam a reconstitucionali-

36
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

zação do país como correção de uma “revolução fracassada”, os editoriais


dos jornais tanto da capital quando dos municípios debateram o tema
exaustivamente.
A primeira dúvida colocada pelos eleitores e candidatos era quanto
a própria realização das eleições a 3 de maio de 1933. Posto em prática,
o código eleitoral exigiu correções imediatas e não se sabia ao certo se o
número de alistados seria suficiente para dar continuidade ao pleito. A
campanha pelo alistamento era constante nos jornais da Bahia, mas por
diversas vezes foi publicada a notícia de que as eleições seriam adiadas
para julho.
Quando o alistamento foi encerrado, a 45 dias da realização do pleito
eleitoral, não se sabia ainda quem eram os candidatos que de fato con-
correriam a deputado constituinte. Salvo um ou outro nome avulso, não
se tinha pleno esclarecimento acerca do voto secreto e não se sabia como
proceder para a votação de candidatos em primeiro e segundo turno.
O jornal A Ordem, de Cachoeira, por exemplo, deu lugar às matérias
sobre o alistamento desde que ele foi autorizado. A partir de janeiro
de 1933 passou a enfatizar que sem o cumprimento das obrigações
eleitorais era impossível concorrer a cargos públicos. Enxergava o voto
secreto, principalmente o feminino, como uma das maiores conquistas
liberais, mas fez duras críticas em relação à forma como seria adotado.
Esse jornal, a partir de março de 1933, estava em franca campanha em
favor da oposição ao governo Vargas na Bahia, à época, representado pelo
interventor federal Juraci Magalhães. Portanto, dava lugar às matérias
sobre a Liga de Ação Social e Política – LASP, que ocupou as suas páginas
por mais de uma vez.6

6
A Liga de Ação Social e Política foi criada nos meses finais de 1932. Reunia a oposição
ao governo de Juraci Magalhães na Bahia. Em sua maioria era formada por membros
remanescentes do Partido Republicano da Bahia – PRB deposto em outubro de 1930,
mas, ainda no início de 1933, recebeu o apoio de J.J. Seabra, que lhe deu impulso
para concorrer às primeiras eleições daquela década.

37
Eliana Evangelista Batista

Em março, os articulistas do A Ordem dividiam com os leitores


uma preocupação acerca do voto secreto. Tratava-se dos envelopes ou
sobrecartas que cada um receberia para colocar a sua chapa na cabine
eleitoral. O fato de esses envelopes serem nomeados de 1 a 9 geravam
dúvida quanto à identificação do eleitor e os oposicionistas temiam que
o PSD (Partido Social Democrático), que representava o governo, fosse
beneficiado com isso.7
Na matéria “Duas válvulas perigosas”, publicada a 22 de abril de
1933, é possível perceber como a questão foi tratada. Assinada pelo
articulista de nome Robes Pierre, o texto argumentava que a lei eleitoral
era um documento do qual pouco se havia compreendido no Brasil,
pois, embora determinasse que o voto fosse secreto, permitia “a chefotes
e chefetes da política conduzir às urnas eleitores sem consciência do que
iam fazer”. Se estes teriam que levar nos bolsos as chapas datilografadas
com os respectivos candidatos somente para colocá-las na sobrecarta
enumerada que receberiam nas seções eleitorais, tanto era possível que
levassem o que a liderança política lhes obrigasse quanto poderiam temer
a uma identificação se votassem em candidato diferente.8
Nem todos os eleitores dispunham de máquina de datilografia para
elaborar as suas chapas em sigilo, logo, ao buscarem nos diretórios de
partidos a chapa de seu interesse, automaticamente estariam revelando
a sua preferência partidária, o que para a maioria do eleitorado do in-
terior significava transferências de repartições, demissões, perseguições
etc. Portanto, na opinião do articulista, o código falhava na proteção do

7
O PSD, Partido Social Democrático, era o Partido da Situação. Fundado em janeiro
de 1933, ele reunia, além do primeiro escalão do governo provisório, um significativo
número de coronéis e produtores do interior do estado. A organização desse partido,
cabe destacar, se iniciou no interior da Bahia, sendo o primeiro a apresentar esta
característica no estado.
8
BPEB. PIERRE. Robes. Duas válvulas. Jornal A Ordem, Cachoeira, BA, 22 de abril
de 1933.

38
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

eleitor. Apesar disso, reconhecia que era significativo o alistamento na


região, inclusive para o “sexo frágil”, que tanto em Cachoeira quanto em
Santo Estevão, se movimentava não apenas no suporte ao alistamento,
como também para se pronunciar pelas urnas na escolha dos dirigentes.9
A exigência de fotografia no novo título também era um grande em-
pecilho aos eleitores com renda reduzida e gerava compromisso eleitoral
com aqueles que auxiliavam na sua aquisição. Muitas vezes, foi o próprio
poder público quem custeou essa despesa, a exemplo do que ocorreu no
município de Alagoinhas, conforme nota publicada no jornal Correio de
Távora.10 Também nessa cidade, o jornal O Popular que apoiava o governo
constituído, informava que em todo o estado esperava-se que o serviço de
alistamento fosse adiado, pois em muitos municípios da Bahia quase não
se tinha feito nada. Em boa parte das zonas eleitorais esperava-se ainda
o fotógrafo, isso no início de março daquele ano, sendo que a 22 estava
marcada a data para o término da qualificação. Alagoinhas comportava,
até a data da matéria, 2.500 pessoas qualificadas, deste total, apenas 1.700
com títulos, em função da demora do processo e por falta de fotografia.11
Em Canavieiras o alistamento ocorreu de semelhante maneira. Na-
quele município, a prefeitura precisou abrir crédito especial de 5:000$000
(cinco contos de reis) para custear as despesas de alistamento e emissão
de títulos eleitorais.12 Trabalhou também no sentido de explicar o ca-
ráter secreto do voto, sanando dúvidas acerca da confecção das cédulas

9
BPEB. Mobilização eleitoral. Jornal A Ordem, Cachoeira/BA, 11 de fevereiro de
1933.
10
Na edição de 11 de fevereiro de 1933, o Correio de Távora, da cidade de Alagoinhas,
publicou a seguinte nota: “Prefeitura de Alagoinhas convoca eleitores que queiram
adquirir a fotografia para alistamento sem custos a se dirigirem a Prefeitura para
pegar a senha que daria acesso a foto no ateliê indicado”. BPEB. Correio de Távora,
Alagoinhas/BA, 11 de fevereiro de 1933.
11
O Popular, Alagoinhas/BA, 4 de março de 1933.
12
Ato de nº 106, de 14 de abril de 1933; Serviço para alistamento eleitoral. Jornal
Oficial, Canavieiras/BA, 29 de abril de 1933.

39
Eliana Evangelista Batista

eleitorais e explicando que, de acordo com decreto do governo federal,


elas poderiam ser mimeografadas. A novidade foi bem-vinda em outros
locais, conforme pudemos constatar pelo material pesquisado.
Em Itabuna também havia interesse em dirimir as dúvidas em torno
das eleições por parte da imprensa oficial. Além da imprensa, os partidos
recorreram às diferentes formas de propaganda para esclarecer as dúvidas
dos eleitores. Segundo o Jornal Oficial do município: “operou-se, mercê
da propaganda desenvolvida, sobretudo pelos próceres do PSD, em nu-
merosos cartazes, boletins e pessoalmente, por comissões prestigiosas dos
mais fortes elementos locais, uma verdadeira reação cívica”, que levou às
urnas mais de 80% do eleitorado qualificado.13 Ainda assim, depreen-
de-se que as dificuldades não foram poucas, pois a 5ª seção eleitoral da
cidade não se reuniu a 3 de maio de 1933 por falta de material, tendo,
para isso, que se deslocar para votar na sede.
Parte desses jornais oficiais atribuía a lentidão do alistamento não
à falta de material ou medo do povo, mas ao fato de este encontrar-se
satisfeito com o governo vigente. Em Santo Amaro, as lideranças gover-
nistas locais argumentavam que Getúlio Vargas havia se iludido ao criar
tribunais eleitorais para dar andamento às eleições, pois eleições “não se
faz[ia] sem eleitores”. A proximidade do pleito e o número reduzido de
votantes só poderiam ser resolvidos de duas formas: ou suspendiam as
eleições ou dariam um Golpe de Estado, prorrogando a ditadura varguista.
Mas, para o jornal, isso não seria culpa do governo que demandou todos
os esforços para cumprir os prazos prometidos. A observação do cenário
político, afirmavam, levava a conclusão de que
[...] O povo, a falta de instrução que ainda não possui tem
o que se chama: “o seu grosso bom senso” para norteá-lo; e,
enquanto meia dúzia de políticos letrados num baralhamento
de ideias que faz lembrar a legendária babel, discute a melhor

13
Jornal Oficial, Itabuna/BA, 6 de maio de 1933.

40
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

forma de governá-lo, estudando todos os sistemas de governo


já experimentados por outros povos, o povo, dizemos, vai se
retraindo a indicar claramente que está bem como está e não
quer sair daí. Não o quer correr novas aventuras, ensaiando
sistemas já falidos ou incompatíveis com as suas tendências.

Pela circunstância mesma de sua falta de instrução, o povo


brasileiro compreende que necessita de tutela e quando en-
contra um mentor benévolo e camarada cai-lhe nos braços e
não quer sair deles.14
Ao comparar o período vigente à monarquia e aos primeiros anos da
República nos quais, segundo o jornal, os governos eram tutelares, os
articulistas de O Município, classificaram o governo provisório de Getúlio
Vargas como uma “ditadura branca”, razão pela qual o povo queria a sua
permanência. Reconhece, porém, que
[...] A verdade é que os últimos acontecimentos que deram
em resultado a revolta paulista alteraram profundamente a
opinião pública nacional. Se a constituinte houvesse sido
convocada dois ou três meses após a revolução, o governo
teria feito eleger, sem compressão, 95% talvez dos deputados
que a formassem e com esta esmagadora maioria faria votar a
Constituição as novas reformas que tivesse em mente. Não o
fez, pensamos nós por um falso sentimento de lealdade. Quis
consultar os que a cercaram e defenderam, esquecidos de
que só os partidos arregimentados em ideias homogêneas e a
protelação decorrente desta falta de acordo, trouxe, como era
fatal, os dissídios com o Rio Grande, com as frentes únicas e
afinal a guerra dos 90 dias!...15

14
BPEB. Pela força das circunstâncias. Jornal O Município. Santo Amaro/BA. 2 de
fevereiro de 1933.
15
Idem.

41
Eliana Evangelista Batista

Enxerga, assim, a força do movimento constitucionalista e o quanto


o governo provisório perdeu em estabilidade depois dele, destacando,
inclusive, o impacto da propaganda exercida pelo movimento e seus
desdobramentos no interior do estado da Bahia.16
Ainda assim, cada candidato fazia a campanha como podia. Com o
impedimento de realizar comícios em praças públicas, o que foi liberado
apenas no dia primeiro de maio, sob condição de comunicação prévia
à polícia, restava aos candidatos a publicação em jornais, o rádio e os
contatos pessoais, e, principalmente, o esforço particular de antigas lide-
ranças políticas, que além do alistamento precisavam garantir transporte,
estadia e alimentação aos eleitores.
O arquivo de Juraci Magalhães, depositado no CPDOC/FGV,
comporta centenas de cartas que davam conhecimento ao interventor
desses esforços empreendidos por coronéis e outras lideranças políticas
municipais. Em estudo sobre o protagonismo político de Juraci Maga-
lhães na Bahia, Ana Araújo Pinho analisou alguns desses documentos.
No que se refere ao ano de 1933, a autora transcreveu fragmentos de
três correspondências que explicitam o papel exercido por prefeitos e
coronéis do interior no processo eleitoral daquele ano.
Na missiva endereçada a Juraci Magalhães pelo prefeito Aprígio Duarte
Filho, do município de Juazeiro, ele alega que as despesas com o serviço
eleitoral já havia ultrapassado a casa dos dez contos de réis, considerando
que restava ainda um mês para o término do alistamento, o que dificul-

16
Segundo Martinho Guedes dos Santos Neto, a vitória de Vargas sobre São Paulo teve
um papel determinante a favor do seu governo, pois deixou São Paulo isolado e sem
força política, saindo o seu projeto nacionalista vencedor da guerra e do discurso.
SANTOS NETO. A desterritorialidade do poder simbólico e a construção do dis-
curso factual de poder de Getúlio Vargas pós-1930. In: História Política: interfaces
e diálogos. Altemar da Costa Muniz; Luis Carlos dos Passos Martins (Orgs.). Porto
Alegre: EDIPUCRS; Ceará: EDUECE 2016. p. 289.

42
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

tava, e muito, o alistamento de um grande número de eleitores, mesmo


quando os correligionários abriam cartórios eleitorais. 17
Clemente Marianni, candidato a deputado constituinte pelo PSD,
também recebeu numerosas cartas de amigos do interior do estado. O
prefeito de Geremoabo, por exemplo, além de denunciar a atuação do
padre José Magalhães que vinha levantando a população contra o gover-
no e a favor da oposição discorreu sobre as dificuldades de se alistar no
município. A população sofria de diferentes maneiras, além do legado da
seca que muito tinha empobrecido a população, havia a dificuldade de
transporte e a falta geral de recurso para atender às exigências eleitorais.18
Pela legenda “A Bahia ainda é a Bahia” as despesas eleitorais muito
contribuíram para diminuir o número de alistados. Em primeiro de
abril de 1933, Dantas Bião, liderança política de Alagoinhas que fazia
oposição ao governo constituído, já havia gasto mais de dez contos com
a campanha e eleitores no município. Além da dificuldade financeira, o
governo tratava e transferir os funcionários públicos que podiam colabo-
rar com a oposição. Conforme destacou Euvaldo Pinho, em carta para
Otávio Mangabeira, à época no exílio, em Alagoinhas, “dois amigos do
dr. Bião, maquinistas e necessários a ele ali, foram removidos, um para
Bahia-Minas, outro para a Central da Bahia”.19

17
JM ig Municípios Juazeiro II. Arquivo Juracy Magalhães. CPDOC, FGV; JM cig
Municípios Ilhéus III. Arquivo Juracy Magalhães. CPDOC, FGV; carta de 16 de
fevereiro de 1933. Apud. ARAÚJO, Ana Luiza Caribe de. De forasteiro à unanimidade:
a interventoria de Juraci Magalhães na Bahia (1931-1943). Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. CPDOC, 2010,
p. 103-104.
18
CPDOC-FGV. CMa.def1 c 1933.04.20.
19
Carta de Euvaldo Pinho a Otávio Mangabeira. In: Octávio Mangabeira. Cartas do
exílio (1930-1934). Org.: Consuelo Novais Sampaio. Salvador: Fundação Pedro
Calmon, 2012. v. 2, p. 131.

43
Eliana Evangelista Batista

O funcionalismo público muito colaborou para a atuação da oposição


a Juraci Magalhães na Bahia.20 Em carta endereçada a Vargas ele fez esse
registro. No que se refere ao pleito eleitoral de 1933, os juízes eleitorais
foram os grandes protagonistas dessa reclamação para ambos os lados.
Se havia juízes que demonstravam favorecimento ao partido do governo
havia também, aqueles que trabalhavam para a oposição. Findada a elei-
ção, muitos foram as denúncias de parcialidade no exercício das funções
pelos juízes no interior do estado. Assim se expressou um correligionário
a Juraci Magalhães:
Teríamos feito muito mais se Cotegipe tivesse juiz eleitoral
e se o juiz de Barreiras não fosse partidário tão apaixonado
da oposição, como é. (...) No alistamento retardava os alis-
tandos nossos correligionários do interior do município dez
até quinze dias obrigando-me a hospedá-los, e muitos nem
assim puderam esperar dado o prejuízo nos seus serviços de
campo. Passei alguns desconhecidos com facilidade mandando
que se dissessem oposicionistas, de sorte que o meu juiz teve
a impressão de que havia triunfado e me deixou em paz até
que tivemos o resultado da apuração; conhecido este voltou
a agir com intensidade; (...). A Comarca de Barreiras pode
fornecer um corpo eleitoral ao Partido superior a 3.000, para
realizá-lo basta que tenhamos juiz imparcial que não retarde os
alistamentos. Por outro lado, a retirada deste deixará a oposição
local sem orientador e alguns elementos se unirão conosco.21

20
Isso porque a demissão de funcionários públicos estava na pauta dos revolucionários
e no ano de 1931 várias demissões foram realizadas na Bahia com vistas a reduzir
as despesas para o erário público. Moniz Sodré e J.J. Seabra colocaram-se a favor
do funcionalismo o que, em parte, explica o apoio recebido por eles no período de
eleições. Registre-se também que juízes e professores do interior do estado ficaram
com salários atrasados por quase todo o primeiro ano da vitória revolucionária.
21
CPDOC. FGV. Abílio Wolney . JM cig Municípios Barreiras III. Arquivo Juracy
Magalhães. CPDOC, FGV. Apud. PINHO, op. cit. p. 104.

44
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

O caso de Barreiras foi informado a Clemente Marianni pelo pre-


feito local. Ao felicitá-lo pela vitória, o prefeito estende a felicitação a si
próprio, justificando o comentário pelo esforço demandado por ele nos
meses que antecederam a eleição:
Esse meu concurso valeu menos pela maioria obtida que por
haver barrado a oposição, que servida por um juiz parcialíssimo
triunfaria por certo se não tivesse eu me decidido a arcar com
enorme despesa de hospedagem de eleitores até vencer. Agora
que meu amigo iniciou sua carreira política não descuide de
facilitar o trabalho aos seus correligionários... promovendo a
substituição do juiz apaixonado que nos entrava e que respei-
tamos pelo dever que temos de respeitar ao poder judiciário;
removido esse obstáculo nas próximas eleições o nosso contin-
gente será apreciável. [...] Muitos deixaram de se alistar, pois
não tinham “certidão de idade”.22
Além dos problemas elencados como dificuldade financeira, de
transporte e de comunicação, Consuelo Sampaio atribui o baixo índice
de alistamento, também, à apatia da população pelo pleito eleitoral,
por conta da prisão e banimento de chefes políticos locais, somados à
grande dificuldade daqueles que foram reabilitados pela política de fazer
cumprir as exigências legais do Código Eleitoral como o recolhimento
das impressões digitais, a fotografia, o comparecimento do eleitor à sede
municipal etc., o que implicava gastos ao candidato ou seu representante
e prejuízos ao homem do campo em face de um processo que “para ele,
não tinha sentido maior”.23

22
CPDOC-FGV. CMa.def1 c 1933.04.20. Carta do prefeito de Barreiras a Clemente
Mariani, 8 de julho de 1933. Consuelo Sampaio analisa o papel dos juízes e dos
coletores nos diferentes municípios baiano durante a eleição do período e conclui que
em geral, os juízes demonstravam intenção de exercer suas funções com imparciali-
dade, mas não raro esse desejo colidia com os planos e a maneira de agir de chefes
políticos locais. Ver: Consuelo Sampaio. Poder e Representação... op. cit. p. 138.
23
SAMPAIO. Consuelo Novais. Poder e representação: o Legislativo da Bahia na Segunda

45
Eliana Evangelista Batista

Assim, se pela legislação o interesse do governo era sanear o processo


político e superar as recorrentes fraudes da Primeira República, na prática,
no interior do estado, os coronéis continuaram a exercer o protagonis-
mo na arregimentação dos eleitores na Bahia, que no total somaram
pouco mais de noventa mil naquele ano. Um número inexpressivo para
a população que poderia votar, mas visto como uma vitória diante das
dificuldades encontradas no processo de alistamento.

A INSERÇÃO FEMININA NA POLÍTICA PARTIDÁRIA DA BAHIA


Um percentual do total de eleitores que afluíram às urnas em maio
de 1933 era de mulheres que conquistaram o sufrágio pelo Código
Eleitoral de 1932. Conforme mencionamos, além do alistamento e
do voto secreto, a admissão do voto feminino pela legislação eleitoral
constituiu-se em pauta largamente discutida, sobretudo na imprensa. E
o tema encontrou diferentes questionamentos tanto da parte do governo
quanto da oposição.
Desde o início da República discutia-se no Brasil se “o belo sexo” era
dotado de autonomia necessária exigida a um corpo eleitoral. Quando da
elaboração do anteprojeto optou-se por facultar o voto apenas às mulheres
emancipadas economicamente. No percurso dos debates, essa ideia foi
perdendo força, e a redação final do projeto definia como eleitor todo e
qualquer cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo.24

República, 1930-1937. Salvador: Assembleia Legislativa. Assessoria de Comunicação


Social, 1992, p. 135-136.
24
A obrigatoriedade indistinta desse momento foi modificada pela Constituição de 1934
“que arbitrou-se o voto facultativo às mulheres que não exercessem função pública
remunerada”. HOLLANDA, Cristina Buarque de. Modos de representação política:
o experimento da primeira República Brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG,
Rio de Janeiro: IUPERJ, 2009, p. 243; MUNOZ, Pedro Soares. Código eleitoral
e justiça eleitoral. Revista Dir. Adm. Rio de Janeiro out./dez. 1983; SILVA, Thiago;
SILVA, Estevão. Eleições no Brasil antes da Democracia: o código eleitoral de 1932
e os pleitos de 1933 e 1934. Rev. Soc. E Política, v. 23. n. 56. p. 75-106. Dez. 2015;

46
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

Mas as determinações do Código encontravam resistência na po-


pulação, e ainda que na capital da Bahia mulheres como Edith Gama
e Abreu ou Lili Tosta pudessem contar com espaço na imprensa para
defender os direitos femininos, no interior, raro era a matéria assinada
por mulheres que não fosse referente a poesia, curso de corte e costura
ou outro assunto correlato. Em sua maioria, eram os homens quem
expunham as suas opiniões acerca do assunto. 25
No jornal A Ordem, de Cachoeira, mesmo depois da publicação de
algumas matérias elogiando o movimento feminino em prol das eleições
e da divulgação de uma nota da Liga Eleitoral Católica falando espe-
cialmente às mulheres, orientando-as a não deixarem de votar, pois de
seus novos deveres dependiam também a manutenção de determinadas
práticas cristãs, Robes Pierre, o mesmo que criticou o código eleitoral
em relação ao voto secreto, expôs as suas concepções acerca do voto
feminino e do divórcio.26
Ao tratar da discussão que vinha sendo feita pela comissão da Cons-
tituinte acerca do divórcio e da mulher na política, o articulista revelou
diferentes posicionamentos. Em relação ao divórcio mostrou-se favorável
e criticou, inclusive, a postura da igreja “em querer meter-se com assunto
que não lhe é competente: o casamento civil”. Quando a questão era
o voto feminino a longa citação esclarece o pensamento esboçado pelo
articulista:

BAHIA. Tribunal Regional Eleitoral: 80 anos. Tribunal Regional Eleitoral, 2012.


25
O jornal Diário da Bahia desde 1931 abriu espaço para o debate sobre o feminismo.
Muitas dessas matérias eram assinadas por Moniz Sodré, o diretor, cuja esposa era
integrante do movimento no estado. Em dezembro de 1931, o jornal lançou uma
pesquisa sobre possíveis nomes de mulheres baianas que poderiam vir a compor a
Assembleia Constituinte representando o estado.
26
Os novos deveres eleitorais católicos. Nota da Igreja católica aos eleitores. A Ordem,
Cachoeira/BA, 21 de janeiro de 1933.

47
Eliana Evangelista Batista

[...] quanto ao segundo assunto, a que acima nos referimos, a


mulher no gozo pleno de todos os direitos políticos conferidos
ao homem julgamo-lo um desastre para a família. É o pomo da
discórdia lançado nos lares, onde explodirá como um petardo,
lançando pelas janelas a paz e a concórdia antes existentes.
Suponhamos uma profunda divergência política entre os mem-
bros de um casal que vivia em plena paz. Cada qual quererá fazer
valer sua opinião. Surgirão necessariamente as discussões cujo
grau poderá atingir a escala de efervescência. Então adeus paz
adeus tranquilidade. Os laços de afeição recíproca de logo se
afrouxarão e o desaguisado começará a imperar desassombrado.
Entre as partes litigantes surgirá o fantasma da desunião e do
desamor.
Igualdade de direitos implicará o direito de cada qual usar dos
meios que lhe parecem mais promissores da vitória. Será um
nunca mais acabar de dissensões e controvérsias.
O quanto dissemos e pensamos não é uma objugatória à mulher
brasileira. É antes, sua defesa, porque, se a política lhe produz a
fascinação, após esta, lhe virão os desgostos e as ilusões, pois que
entre nós, se diz com muita verdade que ela não tem entranhas.
Desejamos vê-la não somente como uma mãe de família ou como
preceptora; mas no exercício de cargos públicos mesmo elevados,
em que seu zelo, suas aptidões, seus esforços e sua inteligência
superarão serviços semelhantes ou idênticos desempenhados pelo
sexo oposto. Os exemplos por aí já pululam a nos darem razão
ao nosso pensamento. Fuja o sexo oposto desta megera, que se
chama política, que, aliás, é uma beleza, quando é a demonstração
da verdadeira forma, porque é definida. A negação do divórcio e
a política feminina são dois desastres para a família brasileira.27

27
BPEB. PIERRE. Robes. Questão palpitante. A Ordem, Cachoeira/BA, 18 de feve-
reiro de 1933. Semelhando argumento de dissolução da família foi utilizado pelos

48
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

Os protestos contra a inserção da mulher na política partidária repe-


tiam-se por outros municípios, mas não impediu que a mulher viesse a se
tornar um “importante elemento” de todo o processo de organização de
partidos e arregimentação de eleitores. Cláudia Andrade Vieira, em análise
do movimento feminista fundado na Bahia na década de 1930, afirma
que ele surgiu em meio à acirrada disputa entre interventores e oposição.
No ano de 1931, quando o Código eleitoral estava em fase de ela-
boração, elas já se projetavam como um importante apoio político que
não poderia ser dispensado por nenhuma das partes em litígio na po-
lítica do estado. Pela capacidade de articulação e empreendimento que
elas demonstraram em 1933, o apoio político da Federação Baiana Pelo
Progresso Feminino se mostrava crucial para o enfrentamento eleitoral.
Ainda que algumas mulheres do interior não fossem filiadas à causa ou
até mesmo discordassem delas, é possível pensar que esse ajuntamento
de mulheres impactou de imediato na conduta feminina da época.28 O
feminismo foi assunto de todos os jornais analisados que circularam no
interior à época.
Desse modo, a participação da mulher no alistamento ocorreu desde
janeiro de 1933, e antes disso, nos lugares onde o material já havia che-
gado. Em cidades como Alagoinhas, na qual o próprio prefeito entregou
o cargo ao interventor federal no estado, em reconhecimento da inca-
pacidade política de vencer a oposição, a participação de Áurea Cravo,
mãe do prefeito Mário Cravo, tornou-se lendária, passando a figurar nos
livros de memória local tamanho o esforço demandado pela matriarca
para garantir a vitória do PSD no pleito eleitoral de 1933.

parlamentares para discutir a possibilidade de conferir o direito ao voto ao estudante.


Ver: BATISTA, Eliana Evangelista. A Bahia para os baianos: acomodação e reação
política ao governo de Getúlio Vargas na Bahia (1930-1937). Tese de Doutorado.
UFBA, 2018.
28
VIEIRA, Claudia Andrade. História das mulheres, feminismo e política na Bahia.
Simões Filho: kalango, 2015, p. 80-81.

49
Eliana Evangelista Batista

Nas crônicas Alecrim do tabuleiro, a escritora alagoinhense Maria


Feijó lembrou o envolvimento de Áurea Cravo no processo eleitoral da
época da seguinte maneira:
D. Áurea Cravo, senhora de alta projeção e grande biografia
nessa terra, principalmente no tocante à Assistência Social
VOLUNTÁRIA. Era a maior colaboradora do seu filho, Mário
Cravo, forte concorrente às eleições para prefeito no ano em
que mamãe “entrou na política”.29
Mesmo com o franco apoio de mulheres, o PSD da capital não abrigou
representação feminina na chapa daquele ano, e por conta disso, perdeu o
apoio da Federação Baiana pelo Progresso Feminino, antes dividido com
a LASP, que indicou o nome de Edith Gama e Abreu como candidata
à constituinte. Apesar disso, os diretórios locais do partido de Juraci
Magalhães cuidaram de buscar essa representação. Em Canavieiras, por
exemplo, o PSD local “manteve no diretório uma representante do sexo
feminino, Maria Nina Galrão de Pinho”. 30

29
SOUZA, Maria Feijó de. Recordando eleições passadas. Alecrim do tabuleiro. Rio de
Janeiro: Editora Max, 1972. Sobre a atuação das mulheres de Alagoinhas na política
do período ver: BATISTA. Eliana Evangelista. A normalista como interseção: escola,
literatura, imprensa e estratégias políticas no Estado Novo (Alagoinhas, 1937/1945).
Dissertação de Mestrado. PPGHIS-UNEB – Campus V. 2012; BATISTA, Eliana
Evangelista. Atuação feminina na UDN e a oposição ao governo Vargas em Alagoi-
nhas, Bahia. In: ____. Alagoinhas: histórias e historiografia / Eliana Evangelista Batista.
(Org.) – Alagoinhas (BA): Quarteto / FIGAM, 2015.
30
Jornal Oficial, Canavieiras, BA, 21 de janeiro de 1933. A primeira mulher a ser
efetivamente indicada para candidata por um partido no estado da Bahia foi Bertha
Luz que constou na lista de candidatos divulgada pela LASP. Ela declinou da indica-
ção. No interior da FBPPF, Lili Tosta propôs, segundo Claudia Andrade, o nome de
Maria Luiza Bittencourt, mas a sua candidatura não chegou a ser efetivada. Tendo em
vista a indicação do nome de Edith Gama e Abreu, presidente da Federação Baiana
Pelo Progresso Feminino, para concorrer a uma vaga na Assembleia Constituinte
pela LASP, os membros da referida Associação optaram pelo apoio à chapa A Bahia
ainda é a Bahia, em reunião realizada em 26 de abril de 1933.

50
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

Sabe-se que a maior parte dessas mulheres pertencia às mesmas famí-


lias que dominavam a situação política e econômica desses municípios,
muitas das quais atuavam no serviço social e de amparo aos pobres, como
as professoras e normalistas ou exerciam cargos públicos como datiló-
grafas e secretárias. Portanto, eram mulheres que pertenciam às classes
dominantes e ocupavam espaços onde podiam construir significativas
redes de sociabilidade e influência.31
Apesar disso, tiveram de enfrentar as opiniões contrárias, e o exercício
do primeiro voto feminino mereceu o registro de toda a imprensa baiana.
Em Feira de Santana, ele foi assim descrito:
[...] A primeira eleitora que exerceu o direito de sufragar repre-
sentantes da Bahia à Assembleia Constituinte, na 1ª seção, foi
a senhorinha Patrícia Gerolina Falcão. Em 2ª seção, ao chegar
a vez de votar a senhorinha professora Úrsula Martins, regente
da cadeira de matemática da Escola Normal desta cidade, que
foi a primeira eleitora chamada, o Sr. dr. Eduardo Fróes da
Mota, presidente da respectiva Mesa receptora, proferiu ex-
pressivo discurso congratulando-se com a Mulher Brasileira,
representada na distinta sufragista pela conquista do inesti-
mável direito de intervir diretamente na vida política do país,
respondendo a senhorinha votante em feliz e bela alocução.
A assistência aplaudiu com entusiasmo o inesperado sucesso,
revelador de civismo veraz.32
O Jornal Diário de Notícias assim resumiu a participação das mulheres
nas eleições:
Esteve ativo o feminismo. Estreou bem, dando um aspecto
menos fastidioso às seções o nosso incipiente feminismo. D.

31
BATISTA. Eliana Evangelista. A normalista como interseção: escola, literatura, im-
prensa e estratégias políticas no Estado Novo (Alagoinhas, 1937/1945). Dissertação de
Mestrado. PPGHIS-UNEB – Campus V. 2012.
32
Jornal Folha do Norte, Feira de Santana/BA, 6 de maio de 1933.

51
Eliana Evangelista Batista

Edtih da Gama Abreu, por exemplo, candidata única das


eleitoras baianas, esteve sempre cercada, ontem, onde quer
que aparecesse, como candidata fiscalizante de seus votos, por
senhoras e senhorinhas. Em Brotas, vimos muitas mocinhas
cabalando, aliás, para a chapa do Partido Social Democrata.
E conseguiram o voto de muito barbado que ainda estava
indeciso....”33
No geral, a expectativa era de que a entrada da mulher na política
partidária, ainda que não agradasse a maioria dos homens, pudesse
favorecer e melhorar algumas práticas, a exemplo da corrupção.34 Po-
rém, as mulheres não atuaram de forma isolada, e como parte de uma
elite que queria, por um lado, a permanência no poder e, por outro,
a retomada dele, elas passaram a fazer parte de um jogo político que
atestaria ou não a força do governo provisório e da oposição a esse
governo na Bahia.
Diferenças sensíveis seriam notadas em pouco mais de um ano quando
o país finalmente retomou o regime constitucional. Se em 1933 discu-
tiam-se a validade e o perigo do voto feminino na Bahia, as eleições de
1934 viriam revelar o protagonismo de muitas mulheres na escolha dos
nomes para a Assembleia do Estado. O PSD, por exemplo, abrigou em
sua chapa a advogada Maria Luísa Bittencourt, que passou a viajar em
comitiva para todos os municípios junto ao interventor.35 No município
de Alagoinhas, Maria Luísa Bittencourt foi homenageada por Norma
Paiva, correligionária política de Áurea Cravo, mãe do interventor no

33
Diário de Notícias, Salvador/BA, 4 de maio de 1933.
34
As mulheres e a política. A Tarde, 22 de abril de 1933.
35
As caravanas constitucionalistas, como foram divulgadas, começaram a percorrer
o interior a partir de 28 de setembro de 1934, data em que também se iniciaria
a campanha pelo rádio. As caravanas foram chefiadas por Altamirando Requião,
Alfredo Mascarenhas, Manoel Novaes e Juraci Magalhães. Diário de Notícias, 26 de
setembro de 1934.

52
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

município, Mário Cravo, a quem Juraci Magalhães fez um brinde


quando de sua hospedagem na casa da família.36
Com participação na política assegurada pela Constituição de julho
daquele ano, a mulher, mais uma vez, protagonizou a política do estado.
Dois exemplos podem ser tomados do município de Alagoinhas tanto
para elucidar a sua participação no PSD quanto na Concentração Au-
tonomista.37
Em Alagoinhas, Juraci Magalhães tinha uma forte aliada política. Da
análise de algumas dezenas de cartas enviadas ao interventor baiano pela
mãe do então prefeito Mário Cravo, pode-se fazer uma demonstração de
como se deu a participação das mulheres na arregimentação de eleitores
no interior do estado. Entre as táticas, são recorrentes os pedidos de
nomeações de parentes e amigos, transferências de inimigos políticos e
concessão dos diferentes favores.
Nem sempre os pedidos eram atendidos ou as cartas respondidas
pelo interventor, o que levava Áurea Cravo a expor frequentemente a

36
Maria Luiza Bittencourt nasceu em Paripe, subúrbio de Salvador e diplomou-se em
direito pela Faculdade do Rio de Janeiro. Aos vinte anos ingressou na Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino onde manteve contato com Bertha Lutz. Foi
uma das fundadoras da Associação Brasileira de Mulheres Universitárias. Quando
regressou à Bahia, Maria Luiza incorporou-se ao movimento feminista local e foi eleita
a primeira deputada baiana pelo Partido Social Democrático. Participou ativamente
da “Comissão dos Nove” que redigiu a carta constitucional da Bahia e foi a última
parlamentar a se pronunciar na Assembleia antes do golpe de 1937. Ver: COSTA,
Ana Alice Alcântara. As donas do poder. Mulher e política na Bahia. Salvador: NEIM/
UFBA – Assembleia Legislativa da Bahia. 1998. p. 98.
37
A Concentração Autonomista foi uma agremiação partidária fundada em 1934 que
reuniu na Bahia toda a oposição ao governo de Juraci Magalhães. Com o lema “de-
volver a Bahia a posse de si mesma”, a agremiação era formada por antigos membros
do Partido Republicano, membros do Partido Democrático, integrantes da LASP,
Partido Liberal de Cachoeira, representante da Associação Comercial da Bahia e
demais ajuntamentos que pretendiam retirar do governo do estado o cearense Juraci
Magalhães que estava à frente do governo da Bahia desde setembro de 1931.

53
Eliana Evangelista Batista

suas decepções. Segundo ela, a soma dos pedidos feitos ao interventor


só se justificava pelo interesse em atender os amigos que iriam elegê-lo:
“como mostrar a minha gratidão e o meu reconhecimento aos amigos
que nos acompanharão sinceros e inabaláveis na ocasião das eleições?
[...] servindo aos mesmos [...] se não for assim não teremos quem nos
auxilie, não é verdade?”38
Em outra ocasião, Áurea Cravo solicitou a atenção do candidato a
governador para o pedido de nomeação de uma amiga para uma vaga
de datilógrafa. Lembrava a Juraci Magalhães que a solicitante havia sido
alistada e votaria no PSD e que “com jeito, irei arranjando outras para
a futura eleição, já tenho tomado nota dos nomes de umas 50 e penso
que arranjarei umas 100 até nova qualificação.39
Com a proximidade do pleito eleitoral e a chegada de Otávio Man-
gabeira do exílio o trabalho da oposição foi intensificado. Também
por cartas, Áurea Cravo informava a Juraci Magalhães acerca das ações
desenvolvidas pela oposição no município de Alagoinhas. Segundo ela,
a partir de agosto de 1934, a oposição tornara-se assombrosa, disposta a
gastar muito dinheiro e soprando vitória aos quatro ventos. Seu trabalho
em favor do interventor permanecia, mas na missiva Áurea Cravo apro-
veitou para ressaltar a importância que tinha no papel de correligionária
e reclamar dos pedidos não atendidos pelo governo:
Tenho me desdobrado para trabalhar este ano com todo gosto
e afinco, só o que está me entristecendo e aborrecendo é esta
corrente que se acha descontente, pois do meu núcleo eleitoral
que atinge 400 eleitores não desejaria que discrepasse um só
elemento para a minha satisfação ser completa, enfim, a vida

38
CPDOC/FGV. Arquivo Particular de Juraci Magalhães. Carta de Áurea Cravo,
Alagoinhas, 21 de março de 1934.
39
CPDOC/FGV. Arquivo Particular de Juraci Magalhães. Carta de Áurea Cravo,
Alagoinhas, 20 de abril de 1934.

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As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

é esta, quem não trabalha é sempre quem tem os louros, me


conformarei [...] já me sinto acanhada em tanto lhe incomodar,
mas se assim o faço é obrigada pelos amigos que julgam eu
ter força e prestígio para com o distinto amigo quando é uma
ilusão da parte deles.40
Conforme afirmamos, a atuação de Áurea Cravo na política ficou
largamente conhecida em Alagoinhas. Ao contrário do filho que receava
não garantir a vitória pelo PSD, tendo, por duas vezes, entregado o cargo
de prefeito ao interventor federal, Áurea Cravo mostrava-se disposta a
conseguir o maior número de eleitores e, principalmente, eleitoras no
município de Alagoinhas. Porém, em 1934, a disputa seria mais árdua.
Além da campanha aberta pelo jornal A Tarde em combate ao prefeito
de Alagoinhas que era seu filho, a família não dispunha de dinheiro
para investir no alistamento, conforme assinalou Mário Cravo em
carta datada de 14 de novembro de 1934, e na qual, mais uma vez, pe-
dia demissão do cargo ao interventor Magalhães, quando os resultados
eleitorais já apontavam para a vitória da oposição no município. Resta
claro, pelo material analisado, que foi a força política e o papel que teve
a sua matriarca os fatores responsáveis pela redução do número de votos
que marcou a vitória da oposição na região de Alagoinhas.41

40
CPDOC/FGV. Arquivo Particular de Juraci Magalhães. Carta de Áurea Cravo,
Alagoinhas, 11 de agosto de 1934. O descontentamento de um grupo de eleitores
teria ocorrido porque, a pedido de Áurea Cravo, Oscar Rabelo deveria ser incluído
na chapa como candidato a deputado estadual, o que não se verificou. O grupo que
lançou a candidatura, num almoço que contava com mais de 30 pessoas pediu a
Áurea Cravo que intermediasse a indicação, solicitando ao interventor para intervir
no caso. Áurea Cravo se desincumbiu da tarefa em carta datada de 4 de agosto de
1934, mas seu pedido não foi atendido.
41
O jornal A Tarde investiu numa campanha contra o prefeito Mário Cravo acusando-o
de simular falência de empresa Cravo & Cia para tirar vantagens. O objetivo era
claramente atingir o interventor no município, considerado maior reduto eleitoral
de Otávio Mangabeira. Em resposta, Mário Cravo encaminhou alguns artigos ao
Diário de Notícias, mas não conseguiu garantir a vitória para o PSD em Alagoinhas,

55
Eliana Evangelista Batista

Muitas mulheres também se colocaram em favor da oposição na


Bahia. Ainda na cidade de Alagoinhas, quando da fundação do diretó-
rio municipal da Concentração Autonomista, somavam-se vinte e uma
mulheres signatárias da Agremiação e a quem coube a organização, a
divulgação, a impressão e a distribuição na “gare” do programa de re-
cepção a Otávio Mangabeira.42 Também em Valença, quando o prefeito
mandou suspender a iluminação pública durante a passagem da caravana
autonomista foram as mulheres que se encarregaram da “iluminação das
ruas, com velas e lanternas.”43
Naquele cenário de acirrada disputa pelas cadeiras da Assembleia
estadual, não era prudente deixar à margem dos partidos o novo corpo
do eleitorado, àquele ano acrescido dos estudantes universitários e dos
praças de pré. A imagem seguinte é uma demonstração da participação
dessas mulheres nos comícios públicos:

com exceção da sede. Em seu livro de memórias, Mário Cravo afirmou: “eu, de mim
apoiava-me na figura extraordinária de minha querida mãe Áurea Ribeiro Cravo, já
falecida, a qual chegou a efetuar o alistamento de mais de duas mil eleitoras.” Ver:
CPDOC/FGV. Arquivo Particular de Juraci Magalhães. Carta de Áurea Cravo,
Alagoinhas, 21 de março de 1934; CRAVO, Mário. Memórias de um homem de boa
fé, p. 61.
42
Foram elas: Maria Caroline de Souza, Adalgiza Bião Lima, Leonídia Argelo Dórea,
Cecília Pereira, Alves Eponímia Bastos, Izabel Paranhos Leal Costa, Maria Magdalena
Paranhos de Azevedo, Júlia Feijó de Souza, Maria Ribeiro Sacramento, Theresinha
Santos Silva, Atella Agrippino Seixas, Letícia Bastos, Floricea Vianna, Gildeth Castro,
Zuleika Carvalho, Arlinda Leal Dantas, professora Gecenita Carvalho, Zami Brito,
Carmosina Marques Pereira, Totinha Goes e Professora Risoleta Carvalho. Ver:
BATISTA, Eliana Evangelista. A “Revolução de 30” no interior da Bahia: da queda
da última barreira legalista à formação dos primeiros partidos políticos (Alagoinhas,
1930-1934). Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História. Lugares dos historiadores:
velhos e novos desafios, 27 a 31 de julho de 2015, Florianópolis, Santa Catarina,
2015.
43
O Pleito na Bahia. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1934. Ver
também: A campanha autonomista. A Tarde, Salvador, 10 de outubro de 1934.
Segundo essa matéria, os eleitores acompanharam o comício com tochas e velas.

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As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

Aspecto da passagem da caravana autonomista em Santo Antônio de Jesus/BA. Jornal A Tarde,


4 de outubro de 1934.

A participação da mulher baiana na política naquele ano pareceu


surpreender não apenas os conterrâneos. Sobre elas, o jornal carioca
Diário de Notícias destacou:

A mulher baiana do sertão, sempre à frente da população


manifesta-se eloquentemente em favor das correntes políticas
em luta, participando, pessoalmente, dos comícios, onde os
oradores fazem a propaganda de seus partidos.44

Aspectos da campanha eleitoral na Bahia. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 27


44

de setembro de 1934. As hostes integralistas também já vinham organizando os


seus núcleos femininos. Assim ficou composta a Comissão Coordenadora da Seção
Feminina da capital, nomeada a 3 de agosto de 1934: Nilda de Azevedo França,
Almerinda Nascimento e Dória Correa. Diário de Notícias, Salvador, 3 de agosto

57
Eliana Evangelista Batista

Assim, quando a 14 de fevereiro de 1935, o Tribunal Regional


Eleitoral proclamou o resultado das eleições de 1934 na Bahia, Maria
Luísa Bittencourt, candidata pelo PSD, constava na relação de suplente
daquele partido, tomando posse na Assembleia Constituinte a 7 de maio,
quando em função da desistência de colegas do partido. A importante
contribuição da deputada na elaboração para a carta constitucional da
Bahia foi registrada por toda a imprensa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo diante desse quadro de participação feminina nas eleições de
1933 e 1934 não é possível afirmar que o número de mulheres cresceu
em relação aos quadros eletivos na Bahia. Até os dias recentes, confor-
me observou Ana Alice Alcântara Costa, há uma aparente disparidade
entre o número de mulheres eleitoras e postulantes a cargos eletivos no
legislativo e no executivo. 45
Segundo a autora, essa disparidade acontece porque a mudança de
leis não é suficiente para promover uma mudança nos comportamentos
e na estrutura social. Para Ana Alice Costa, “mesmo após o sufrágio
universal as mulheres permaneceram submetidas à estrutura patriarcal
da sociedade”. A cidadania conquistada por elas estava subordinada a
uma imagem masculina e para adaptar-se às novidades eram necessárias
“mudanças mais profundas na realidade cotidiana”.46
Sob esta ótica é possível pensar que a atuação dessas primeiras mulheres
obedecia à estrutura dominante do aparelho de Estado e os “condiciona-

de 1934. Quando da realização da eleição, a primeira mulher na Bahia nomeada à


mesária foi Lindaura Nair de Campos. Também seria uma mulher, Elzedir Maria
Cerqueira, a fiscal do candidato Cosme de Farias, conhecido à época como Ruy
Barbosa dos pobres. Diário de Notícias, Salvador, 13 de outubro de 1934.
45
COSTA Ana Alice Alcântara. As donas do poder. Mulher e política na Bahia. Salvador:
NEIM/UFBA – Assembleia Legislativa da Bahia. 1998.
46
Idem. p. 82-83.

58
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

mentos ideológicos patriarcais ainda existentes” na sociedade da época.47


Assim, são os municípios os primeiros espaços nos quais as mulheres se
destacaram na política partidária, tendo em vista que são esses locais onde
A mulher encontra (facilidades) para conciliar sua atividade
política com as responsabilidades e afazeres domésticos, já que
as mulheres ao atuarem na esfera pública (seja na produção
social ou na política formal e/ou informal), não conseguem
livrar-se de seus labores domésticos. Para elas, muitas vezes, a
atividade política vem a constituir-se em uma jornada a mais
de trabalho além das duas que já têm.
Para Ana Alice Costa, assumir um cargo eletivo na esfera estadual
ou federal, que exige deslocamentos constantes, ainda não estava no
horizonte político daquelas mulheres. Segundo destacou, a atividade
política no município fundamenta-se nas suas realidades sociais mais
imediatas e concretas, pois fica circunscrita a um nível menor de poder
onde os interesses partidários, muitas vezes, são diluídos pelas relações
familiares, de compadrio e de dominação patriarcal.48
Na Bahia isso seria verificado no ano de 1935, quando algumas
mulheres se lançaram candidatas a vereadoras tanto pelo PSD quanto
pela Concentração Autonomista, entre elas Áurea Cravo, de Alagoinhas,
o que demonstra que
O município, na estrutura político administrativa de um país,
tem, para as mulheres, o mesmo sentido que o bairro, isto
é, uma espécie de prolongamento do lar, onde as atividades
ali realizadas e as lutas travadas se refletem nas condições de
funcionamento do seu lar e no bem-estar de sua família. 49
Apesar disso, não se pode perder de vista os avanços destas mulheres.

47
Idem. Ibidem.
48
Idem, p. 88.
49
Idem. Ibidem.

59
Eliana Evangelista Batista

Cada uma contribuiu ao seu modo para a inserção “do elemento femi-
nino” na política partidária. O golpe de Estado em 1937 viria a cessar
momentaneamente essa atuação, mas não a retirou do espaço público.
Conforme sabemos, o Estado Novo impôs uma série de novas tarefas
às mulheres, muitas das quais voltadas para o campo da educação seja
ela formal ou não formal. Essas atividades mantiveram-nas em constante
contato com homens públicos e instâncias de decisões de poder. A partir
de 1945, quando esse regime de governo chegou ao fim, as mulheres,
repetidamente, afluíram às campanhas eleitorais e, mais uma vez, toma-
ram o município como lugar de partida para reivindicar o seu lugar na
política partidária do Brasil.

FONTES
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Jornal Oficial, Canavieiras/BA, 29.4.1933

Jornal Oficial, Itabuna/BA, 6.5. 1933

Jornal A Ordem, Cachoeira/BA, 11.2.1933

Jornal A Ordem, Cachoeira, BA, 22.4.1933

Correio de Távora, Alagoinhas/BA, 11.2.1933

O Popular, Alagoinhas/BA, 04.3.1933.

Jornal O Município. Santo Amaro/BA. 2.2.1933

Jornal Folha do Norte, Feira de Santana/BA, 6.5.1933

Diário de Notícias, Salvador/BA, 4 .5.1933

60
As eleições de 1933 e 1934 na Bahia e a inserção feminina na política partidária

CPDOC. FGV. Abílio Wolney. JM cig Municípios Barreiras III. Arquivo


Juracy

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CPDOC/FGV. Arquivo Particular de Juraci Magalhães. Carta de Áurea


Cravo, Alagoinhas, 21.3.1934

CPDOC/FGV. Arquivo Particular de Juraci Magalhães. Carta de Áurea


Cravo, Alagoinhas, 20.4.1934

CPDOC/FGV. Arquivo Particular de Juraci Magalhães. Carta de Áurea


Cravo, Alagoinhas, 11.8.1934

JM ig Municípios Juazeiro II. Arquivo Juracy Magalhães. CPDOC, FGV;

JM cig Municípios Ilhéus III. Arquivo Juracy Magalhães. CPDOC, FGV;

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Programa de Pós – Graduação em História, Política e Bens Culturais.
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2012.

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BATISTA, Eliana Evangelista. Atuação feminina na UDN e a oposição


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SOUZA, Maria Feijó de. Recordando eleições passadas. Alecrim do tabuleiro.


Rio de Janeiro: Editora Max, 1972.

62
Clodualdo Cardoso:
“O paladino dos trabalhadores” em Itajuípe

Igor Farias Góes


Mestre (PPGHCPS) UNEB/CAMPUS-II
igorfgoes@gmail.com

CLODUALDO CARDOSO

C lodualdo Cardoso nasceu em 24 de novembro de 1904, em Cana-


vieiras, cidade do extremo sul da Bahia. Filho do pescador Manuel
Mathias Cardoso e da dona de casa Maria Dias Cardoso. Aos 8 anos,
após a família se mudar para Ilhéus, começou a ajudar o pai na pesca,
atividade que praticou até os 16 anos de idade, quando foi para Itabuna
trabalhar nas fazendas de cacau como trabalhador rural.
Mais tarde, Clodualdo se mudou para a antiga vila de Itapira (atual
cidade de Ubaitaba) onde trabalhou como pedreiro. Em seguida, por
volta da primeira metade dos anos de 1920, se estabeleceu em Pirangi,
lugar onde constituiu família e trabalhou como cabeleireiro, alfaiate,
feirante e comerciante. Atuou ainda na vida pública como membro de
organizações de cunho social, “jornalista” e político. Registrou em sua
trajetória, participações em movimentos de defesa pela emancipação de
Pirangi e de Itajuípe, uma candidatura a prefeito nas eleições de 1958,
e um mandato de vereador em 1962, interrompido em razão do golpe
de 1964.

63
Igor Farias Góes

O povoado onde Clodualdo se fixou chamava-se Pirangi até 1943.


Após essa data passou a Itajuípe. Uma área que compunha uma extensa
faixa de terra, a princípio conhecida pelo nome de Sequeiro de Espinho.
Povoada nos fins do século XIX, por migrantes e imigrantes idos ao sul
da Bahia em busca do êxito econômico na lavoura cacaueira, e afamada
por ter em seu histórico registros de sangrentas batalhas envoltas no ca-
cau, Pirangi vivenciou os conflitos que serviram de inspiração para obras
literárias como Terras do Sem Fim (1943), de Jorge Amado; e Léguas da
Promissão (1968), de Adonias Filho.
Um lugar que tem sua história marcada por transformações e movi-
mentações causadas por fatores econômicos e sociais, começando pelas
modificações geográficas e pelo desenvolvimento rural e urbano, seguida
da formação de organizações de caráter classista e de cunho político-parti-
dário. Algumas delas, inclusive, tinham entre os participantes Clodualdo
Cardoso, personagem analisado neste artigo.
Clodualdo, durante sua vida se manteve como colaborador das cam-
panhas da Igreja Católica local, compôs o quadro de sócios da sociedade
beneficente mantenedora do Hospital Pirangi, do Ginásio 7 de Setembro
(atualmente Escola Municipal Diógenes Vinhaes) e da sociedade de auxílio
mútuo Aliança dos Artistas e Operários de Pirangi – AAOP, fundada em
1930. Além disso, colaborou para a fundação de clubes de futebol, entre
eles: Santa Cruz, Copacabana e Estrela Vermelha.1
Sua primeira participação no campo político ocorreu nos anos de
1925, como um dos componentes dos primeiros movimentos eman-
cipatórios de Pirangi.2 Após isso, seu nome apareceu vinculado a um
núcleo partidário no ano de 1945. Outra vez ligado a um movimento
emancipacionista nos anos de 1950, como um dos membros do comitê

1
Manuscrito encontrado entre um dos seus jornais durante a pesquisa, autor e ano
desconhecidos.
2
Correio de Pirangi, Pirangi (Ilhéus). 18 de abril de 1925, p. 2.

64
Clodualdo Cardoso: “O paladino dos trabalhadores” em Itajuípe

que conquistou junto ao então governador da Bahia, Régis Pacheco, a


emancipação de Itajuípe, em dezembro de 1952. Seguido de filiações
ao Partido Social Trabalhista – PST, em 1958, e ao Partido Trabalhista
Brasileiro – PTB, nos anos de 1960.
A ligação entre Clodualdo Cardoso e um partido político em 1945,
refere-se ao Partido Comunista e registra um período compreendido como
democrático, em que os partidos políticos passaram a ter configurações
de alcance nacional. A essa época, o PCB, em um dos seus momentos
de legalidade, instalou diretórios por todo o país, incluindo as cidades
de Ilhéus e Itabuna e os povoados de Uruçuca e Itajuípe.3
Em Itajuípe (ex-Pirangi), o diretório local do PCB foi instalado em
agosto de 1945, numa reunião ocorrida nas dependências da AAOP,
que contou com a presença de lideranças políticas locais e comunistas
regionais, incluindo Nelson Schaun, representante do comitê estadual.
Ficou assim constituído: José Lourenço de Araújo, como secretário geral,
Antônio Salomão, Raimundo Rodrigo, Anísio Leão de Argolo, Boanerges
Morais de Oliveira, Manoel de Souza Filho e Clodualdo Cardoso.

AÇÕES COMUNISTAS NO MEIO RURAL DE PIRANGI/ITAJUÍPE


Embora este seja o primeiro registro, até então, que indique uma
ligação entre Clodualdo e o PCB, vale salientar que esta não foi a primeira
atividade do Partido em terras itajuipenses. Há indícios de movimen-
tações comunistas na área desde os anos de 1930, período em que, na
região cacaueira da Bahia, a atuação comunista ocorreu em “[...] dois
eixos centrais: na luta antiintegralista e na organização dos trabalhadores
rurais e camponeses.”4

3
Diário da Tarde, Ilhéus. Agosto de 1945.
4
LINS, Marcelo da Silva. Os vermelhos nas terras do cacau: a presença comunista no sul
da Bahia (1935-1936). Dissertação de Mestrado. PPG em História Social. Salvador:
UFBA, 2007. p. 131.

65
Igor Farias Góes

Entre os anos de 1934 e 1937, identificam-se atividades nos dois eixos


citados. A resistência ao Integralismo, através da formação do “Comitê
Popular de Pirangi, de Luta Contra o Integralismo”5 e de uma frente cha-
mada “Frente Única contra o Integralismo”. Esta, inclusive, numa ocasião
conseguiu impedir a realização de um comício Integralista no povoado.6
Havia ainda a organização dos trabalhadores assalariados rurais e campo-
neses, por meio do Sindicato dos Empregados Agrícolas de Ilhéus, fundado
em 1934 e sediado em Pirangi – SEA/Pirangi, órgão que tinha entre as
suas lideranças Joaquim Cunha Filho, um ativista sindical que, segundo
Marcelo da Silva Lins, se inseriu no movimento em defesa do trabalhador
rural após “contato com o movimento sindical, leis trabalhistas e o PCB”.7
O SEA/Pirangi foi uma organização de caráter classista que tinha
entre as principais pautas de reinvindicações, a jornada de oito horas de
trabalho e o fim do sistema que obrigava os trabalhadores a comprarem
alimentos dentro das fazendas onde trabalhavam por preços exorbitantes
– conhecido como barracão. Suas atividades foram mantidas entre os anos
de 1934 e 1936, período de diversos conflitos envolvendo fazendeiros,
trabalhadores e sindicalistas, incluindo a greve que resultou na denúncia
que associou Joaquim Cunha Filho ao comunismo.
Nesses anos, antecedentes ao Estado Novo, associar alguma organiza-
ção social a Prestes, àquela altura preso, a Aliança Nacional Libertadora
– ANL ou ao PCB, seria alusivo ao levante comunista de 1935 e, por-
tanto, sinônimo de repressão. O resultado foi a prisão e a condenação de
Joaquim Cunha e de outras lideranças, em 1937. E, a partir desta data,
praticamente o desaparecimento das atividades do Sindicato.8

5
Panfleto do Comitê Popular de Pirangi de Luta contra o Integralismo. Processo 171
do Tribunal de Segurança Nacional. Arquivo Nacional. 1935.
6
CAMPOS, João da Silva. Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus. 3. ed. Ilhéus:
Editus, 2006.
7
LINS, Marcelo da Silva. Os vermelhos nas terras do cacau. p. 135.
8
NAVARRO, Z. Movimentos Sociais em áreas rurais do Sudeste da Bahia: lutas sindi-

66
Clodualdo Cardoso: “O paladino dos trabalhadores” em Itajuípe

Entre o fim da década de 1930 e a segunda metade dos anos de 1940,


militantes pecebistas foram presos em todo o território nacional. Ainda
assim, a Bahia aparece como um dos estados brasileiros onde se registravam
ações do Partido mesmo após prisão dos seus líderes. Entre as cidades do
interior onde se verificou movimentação comunista, estavam Feira de
Santana, Alagoinhas, Catu, Ipirá, Irará, Itabuna e Ilhéus, com atividades
em “núcleos de juventude e/ou influência no movimento sindical e de
trabalhadores rurais”.9
Contudo, embora haja indicativos de que o Partido se manteve atu-
ante na região do cacau durante esse período, a escassez de registros sobre
a Itajuípe nos anos de 1940, nos impede (pelo menos até o momento) de
ir além do já registrado – que foi a instalação do diretório partidário local,
em 1945. Acontecimento considerado crucial às atividades comunistas
no município nos anos posteriores por registrar a ligação entre Clodualdo
Cardoso e o PCB.
Nos anos de 1950, a intensificação nas mobilizações no campo, sobre-
tudo nos estados da Paraíba e de Pernambuco com as Ligas Camponesas,
aparece como um marco para história dos movimentos sociais camponeses
no país. Mesmo momento que se registra ações envolvendo comunistas
e os trabalhadores do meio rural do sul da Bahia, mas sob outras táticas.
Nesse período, a região vivenciava transformações urbanas, cresci-
mento populacional, elevação de povoados ao posto de cidades, crise
econômica e um acirramento nos conflitos interclassistas no campo e nas
cidades. Isso em um cenário dividido entre a urbanização, motivada pela
modernização, e as práticas rurais de uma sociedade majoritariamente
sustentada pela produção e comercialização do cacau.

cais do período 1955/1964. In: José Vicente Tavares dos Santos. (Org.). Revoluções
Camponesas na América Latina. São Paulo: ???? 1985. p. 247.
9
SENA JR. Carlos Zacarias de. Os impasses da estratégia: os comunistas, o antifascismo
e a revolução burguesa no Brasil (1936-1948). Tese de Doutorado. PPG em História.
Recife: UFPE, 2007. p. 124.

67
Igor Farias Góes

Itabuna, entre os anos de 1950 e 1960, pode nos servir de termôme-


tro para uma avaliação da sociedade cacaueira. Uma cidade que refletia
um momento de instabilidade onde as classes dominantes, na tentativa
de reafirmar configurações preexistentes de poder, passaram a usar me-
canismos de repressão para com os componentes que apareciam como
dissonantes na sociedade que buscava se tornar centro regional. Eram os
pobres, mendigos, adeptos de religião de matriz africana e os comunistas.10
É nesse contexto que as atividades dos comunistas no sul da Bahia são
reiniciadas. Aparece como um marco do regresso da atuação comunista
junto ao movimento sindical rural e aos trabalhadores rurais da região
cacaueira da Bahia, desde a interrupção das atividades do SEA/Pirangi,
em 1937, a fundação o Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas de Ilhéus
e Itabuna – STA/Ilhéus-Itabuna, em 1952.11
O novo Sindicato, em 1954, aderiu à União dos Lavradores e Traba-
lhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), organização criada com o apoio
do PCB no ano em que a questão agrária foi incorporada ao programa
do partido e quando, oficialmente, os comunistas passaram a reconhe-
cer a pauta dos trabalhadores rurais e a levantar a bandeira em favor da
reforma agrária, luta por melhores condições de trabalho, habitação e
pelo pagamento do salário mínimo.

10
SOUZA, Erahsto Felício. Subalternos nos caminhos da modernidade: marginais, poli-
tização do cotidiano e ameaças à dominação numa sociedade subordinadora do sul
da Bahia (Itabuna – Década de 1950). Dissertação de Mestrado. PPG em História
Social. Salvador: UFBA, 2010; RIBEIRO, Danilo Ornelas. A cidade cinquentenária:
entre os manuseios de memórias e os sonhos de futuro (Itabuna, BA, décadas de
1950 e 1960) Dissertação de Mestrado. PPG em História Social. Salvador: UFBA,
2014.
11
LUCE, F. O domínio da lei na região do cacau: a Justiça do Trabalho e o Estatuto do
Trabalhador Rural. In: GOMES, A. C.; SILVA, F. T. (Org.). A Justiça do Trabalho e
sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp,
2013. p. 363.

68
Clodualdo Cardoso: “O paladino dos trabalhadores” em Itajuípe

No entanto, o impacto mundial causado pelas denúncias dos crimes


de Stalin, em 1956, fez com que a região sul baiana também sofresse um
desequilíbrio. Um dos sintomas foi a interrupção do movimento sindical,
ocorrido em 1957, e a cisão que levou grande parte dos militantes ligados
ao PCB a aderirem ao Movimento Trabalhista Renovador – MTR, mo-
vimento anticomunista ligado a União Democrática Nacional – UDN.12
Acontecimento que, obviamente, acabou enfraquecendo as atividades
comunistas na região.
O comitê regional sul baiano, praticamente em sua totalidade, declarou
rompimento com o Partido. Em uma nota publicada no jornal A Tarde,
em julho de 1957, diversos membros, entre eles Nelson Schaun – talvez
o maior expoente do comunismo no sul da Bahia – explicaram as razões
que os levaram a tal decisão. Entre elas haviam as que se relacionavam
diretamente com as estratégias revolucionárias adotadas pelo PCB para o
meio agrário, que, segundo os militantes, desprezavam as reivindicações
imediatas dos trabalhadores e consideravam reformismo o que não se
encaixava com o programa do partido.13

O PALADINO E O SALÁRIO MÍNIMO PARA OS TRABALHADORES RURAIS


Em paralelo a esses acontecimentos ressurge Clodualdo Cardo-
so. Nas palavras do escritor Marcos Santarrita, sergipano radicado em
Itajuípe: “[...] praticamente sozinho o Partido Comunista em Itajuípe,
e também dono do único jornalzinho [...] nos tempos heróicos daquela
imprensa manual”, Clodualdo, entre outras atividades, “vendia assinaturas
e distribuía o jornal nacional do PCB, O Momento”.14
O “jornalzinho” que Santarrita se refere é O Paladino. O periódico que
12
LUCE, F. O domínio da lei na região do cacau: a Justiça do Trabalho e o Estatuto do
Trabalhador Rural. p. 350.
13
A Tarde, Salvador. 25 de julho de 1957, p. 4. In: SCHAUN, Maria (org.). Nelson
Schaun merece um livro... Ilhéus: Editus, 2001. p. 66-68.
14
SANTARRITA, Marcos. O que tinha de ser. Salvador: Imago, 2000. p. 28-29.

69
Igor Farias Góes

circulou entre os anos de 1956 e 1959, geralmente com 4 (quatro) páginas


e que durante a maior parte do tempo em que esteve em circulação, se
apresentou como “Independente, Noticioso e a Serviço do Povo”, com
a finalidade de “[...] agitar os problemas e indicar as soluções: problemas
econômicos, problemas políticos, e problemas sociais”.15
Surgido na Itajuípe da segunda metade dos anos de 1950, onde não se
via quase nenhuma mudança efetiva em comparação aos anos de distrito,
o jornal apresentava-se como divulgador e porta-voz das necessidades e
reclames da população. Em suas publicações trazia desde as queixas da
área urbana como a falta de saneamento que colocava em risco a saúde
da população, em função dos desmandos da administração pública, até
as que envolviam o cacau, a lavoura e os trabalhadores rurais.
Publicado semanalmente, O Paladino alcançou o número de 173
edições de maneira ininterrupta. No entanto, a mais incisiva das suas
denúncias talvez tenha sido a campanha em favor do pagamento do
salário mínimo para os trabalhadores rurais, lançada em 1957.
Nesse ano, uma crise financeira atingiu o país, ocasionou uma queda
no financiamento do programa de desenvolvimento do governo Juscelino
Kubitschek e levou o então ministro da fazenda, José Maria Alkmin, à
renúncia.16 Muito embora a região cacaueira já se encontrasse em clima
de instabilidade desde o ano anterior, em 1957, na impressa regional,
diversas matérias faziam referência ao baixo preço do cacau, à necessidade
de distribuição de crédito rural, às mobilizações de fazendeiros junto ao
governo e às medidas em favor da lavoura, com considerações sobre a
situação vivida pela região e destaque para a impossibilidade de a lavoura
cacaueira adotar o salário mínimo para o trabalhador rural, em razão do
baixo preço do fruto.17
15
O Paladino, Itajuípe. 14 de junho de 1956, p. 1.
16
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64); tradução de Berilo
Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 213.
17
O Intransigente, Itabuna. 21 de agosto de 1956. p. 1

70
Clodualdo Cardoso: “O paladino dos trabalhadores” em Itajuípe

A pauta do pagamento do salário mínimo, no entanto, que seria usada


pelos cacauicultores como escudo para o alcance de benefícios junto ao
governo federal, surgiu após um acordo firmado na II Conferência dos
Lavradores e Trabalhadores, ocorrida em Itabuna, em agosto de 1956.
Após diversas discussões sobre a situação enfrentada pela região ca-
caueira, foi aprovada uma resolução que indicava a solicitação, junto ao
governo federal, pelo estabelecimento do preço mínimo e pelo comércio
livre do principal produto regional. No entanto, após muitas tentativas,
apenas nos fins de maio de 1957, a proposta levada em comissão e en-
tregue ao presidente foi aprovada.18
Quando os benefícios solicitados foram conquistados e os resultados
pareciam próximos a chegar na região, as tais necessidades gerais passa-
ram a ser substituídas pela segurança financeira dos cacauicultores, pela
produção e comercialização do cacau, sendo deixada de lado a pauta do
pagamento do salário mínimo. Por essa razão, ainda em junho do mesmo
ano, O Paladino passou a levantar questionamentos quanto ao descum-
primento do acordado, apontando para importância dos trabalhadores
rurais e da pauta do salário mínimo durante o processo.
Em seguida, foi lançada a campanha em favor do pagamento do
salário mínimo para os trabalhadores rurais, ocorrida entre os meses
de julho e outubro de 1957. Durante a campanha, diversos textos e
informes anunciavam o descumprimento do pagamento dos salários
por parte dos fazendeiros e denunciavam as situações enfrentadas pelos
trabalhadores rurais.
Essa campanha atingiu o ápice quando, além de textos em apoio ao
pagamento salarial, O Paladino passou a divulgar quais as propriedades
não pagavam o salário mínimo, com os nomes das fazendas, dos seus
respectivos donos, onde se situavam e quanto pagavam (destacando o
preço abaixo do mínimo). E junto a isso, cartas supostamente enviadas

18
O Paladino, Itajuípe. 01 de junho de 1957, p. 5.

71
Igor Farias Góes

ao diretor d’O Paladino por trabalhadores que eram leitores do seu jornal.
Salvaguardada a veracidade das correspondências, elas, colocadas em
análise, oferecem indicativos do perfil desses trabalhadores alcançados
pelo jornal e das condições em que viviam no interior das roças de ca-
cau. Além disso, permite inferir os meios pelos quais acessava ao jornal
e, sobretudo, o entendimento que tinham quanto a função do SEA/
Ilhéus-Itabuna e do posto de fiscalização do ministério do trabalho que
funcionava em Ilhéus.
A campanha do salário mínimo, lançada pelo O Paladino, teve al-
cance regional e chamou a atenção para as irregularidades da questão
salarial, a ponto de mobilizar o fiscal do trabalho destinado a atuar na
região a verificar os fatos, o que levou alguns fazendeiros locais, mesmo
não equiparando ao salário defendido pelo jornal, a aumentar os valores
dos pagamentos.
A mobilização do agente do Ministério do Trabalho alocado em Ilhéus
foi mostrada pelo jornal Diário da Tarde, que noticiou as atividades de
inspeção e a solicitação feita por Sagisfredo Silva na Delegacia do Trabalho
para o envio de auxiliares com o intuito de fiscalizar o descumprimento
do pagamento do salário mínimo no setor rural.19
A adequação salarial, por sua vez, adotada por alguns fazendeiros,
foi demonstrada pelo O Paladino. Numa matéria intitulada “Fazendas
que pagam o salário mínimo”, o jornal apontou o acréscimo no valor.
Talvez a demonstração mais eficaz do grau de intervenção da campanha
salarial, que, mesmo não tendo chegado ao valor de C$63,00 (sessenta
e três cruzeiros), como pretendido pela campanha, fixou-se em C$56,00
(cinquenta e seis cruzeiros), sendo registrada uma elevação em relação
aos números anteriores, que era de C$46,00 (quarenta e seis cruzeiros).20

Diário da Tarde, Ilhéus. 14 de outubro de 1957, p. 1.


19

O Paladino, Itajuípe. 01 de novembro de 1957, p. 3.


20

72
Clodualdo Cardoso: “O paladino dos trabalhadores” em Itajuípe

Nessa matéria, O Paladino apresentou uma lista com nomes de donos


de fazendas que readequaram seus valores de pagamento. Seguia-se ao
texto, um aviso de que na semana seguinte haveria uma nova coleta de
nomes apesar das dificuldades, tendo em vista que a maioria das fazendas
ainda não estavam respeitando o salário mínimo.
Nas edições seguintes, porém, não houve mais publicações de listas de
fazendas que pagavam o salário mínimo, nem cartas ou listas de fazendas
que não pagavam. Ao invés disso, foi publicada uma proposta como
solução para o fim do clima de insatisfação existente entre lavradores
e trabalhadores. Essa alternativa incluía o restabelecimento do diálogo
entre os lavradores e trabalhadores rurais, intermediado pelo Ministério
do Trabalho. Uma proposta que tomou três edições de O Paladino com
o título “Somente uma convenção do trabalho resolveria”.
Uma convenção onde, segundo proposto, se discutiria as diferenças
entre os valores salariais pagos no entorno das cidades de Ilhéus e Ita-
buna, sob a alegação de que as condições econômicas da região que se
encontravam no mesmo patamar não permitiam diferenças de valores
entre as cidades. Além disso, combatia a taxa de aluguel que era cobrada
aos trabalhadores nas fazendas e que equivalia a 30% do ordenado.
Na convenção seriam tomadas resoluções que ficariam sob a fisca-
lização do Ministério do Trabalho, que atuaria não só na aplicação de
multas, mas também na promoção de espaços propícios para debates
sobre a luta dos trabalhadores rurais.

“NOVA FASE”
Com o fim do ano de 1957, as notícias n’O Paladino referente ao
salário mínimo, condições enfrentadas pelos trabalhadores rurais no
interior das fazendas de cacau ou ao abuso de poder dos fazendeiros que
cobravam um valor exorbitante pela moradia – comumente improvisadas,
algumas embaixo de barcaças de secagem de cacau –, gradativamente

73
Igor Farias Góes

foram ocupando menor espaço e sendo substituídas por publicações de


cunho político-partidário.
Uma das principais razões foi o fato de Clodualdo Cardoso ter se lan-
çado candidato a prefeito de Itajuípe, pelo PST, em 1958, acompanhado
do seu genro, o poeta e comunista Hélio Nunes da Silva e da sua filha
Valquíria Cardoso, como candidatos a vereadores. Por isso, predominou
nas páginas d’O Paladino campanhas e propagandas eleitorais, além das
querelas do jogo político local.
O fim do período eleitoral coincidiu com o encerramento da trajetória
de Clodualdo Cardoso à frente d’O Paladino. A partir de novembro de
1958, quem assumiu a direção do periódico foi Joaquim Cunha Filho,
colocando o jornal em uma “Nova Fase”.21
Sob a liderança do ex-líder sindical dos anos de 1930, as referências
aos trabalhadores, condições de vida nas fazendas de cacau e/ou a questão
salarial desapareceram por completo. No ano seguinte, é próprio jornal
que deixa de circular. Após a morte de Joaquim Cunha Filho, ocorrida
em agosto de 1959, O Paladino teve apenas outras 14 edições, tendo sido
a última, em novembro do mesmo ano.
No entanto, no mês seguinte Clodualdo Cardoso reapareceria à frente de
outro jornal, o Tribuna de Itajuípe, periódico que circulou entre os anos de
1959 e 1962, e que se apresentou como “[...] jornal modesto, sem grandes
ambições financeiras, colocado ao dispor do seu povo, [...] uma tribuna
de reivindicações coletivas e dos que tem algo a reclamar com a justiça.”22
O segundo veículo de imprensa de propriedade do militante, que,
embora não tenha seguido o mesmo afinco na defesa dos trabalhadores
rurais, como O Paladino, possui sua importância por ter consigo infor-
mações sobre a trajetória da vida e da militância de Clodualdo Cardoso
na política itajuipense.

O Paladino, Itajuípe. 22 de novembro de 1958, p. 1.


21

Tribuna de Itajuípe, Itajuípe. 1ª quinzena de dezembro de 1959, p. 1.


22

74
Clodualdo Cardoso: “O paladino dos trabalhadores” em Itajuípe

As páginas deste jornal, junto às atas da Câmara Municipal de Ve-


readores dos anos de 1963 e 1964 possuem registros da candidatura,
campanha e do mandato de vereador de Clodualdo, violentamente
interrompido após acusações de comunismo. Um marco na interrupção
da trajetória política e, em certa medida, no fim da vida do militante que
foi por um período, conforme afirmou Santarrita, “o Partido Comunista
em Itajuípe”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A narrativa apresentada neste artigo traz informações sobre as ativi-
dades do PCB em Itajuípe, a sua atuação junto aos trabalhadores rurais,
a trajetória de um dos seus membros, das estratégias e mecanismos de
aproximação dos trabalhadores, e dos resultados alcançados, como os da
campanha salarial lançada através do jornal O Paladino. Perpassa pela
compreensão de que a história de um partido não se reduz às ações da
sua cúpula, mas sim, se estende às suas múltiplas seções, considerando
suas atividades, relações com seus adversários, aliados e com a própria
sociedade no qual o segmento se insere.
Desse modo, consideramos esse registro da militância de Clodual-
do Cardoso e a campanha salarial em favor do pagamento do salário
mínimo, lançada por um dos seus jornais, como parte da trajetória do
Partido Comunista no território itajuipense. Mas, antes de tudo, como
um capítulo do PCB na região cacaueira da Bahia e da sua atuação junto
aos trabalhadores rurais que é, por assim dizer, também parte da história
da cidade de Itajuípe.

FONTES
Correio de Pirangi, Pirangi (Ilhéus). 1925.

Diário da Tarde, Ilhéus. 1945 e 1957.

75
Igor Farias Góes

O Intransigente, Itabuna. 1956.

O Paladino, Itajuípe. 1956, 1957 e 1958.

Tribuna de Itajuípe, Itajuípe. 1959.

Manuscrito encontrado entre um dos seus jornais durante a pesquisa, Autor


e ano desconhecidos.

Panfleto do Comitê Popular de Pirangi de Luta Contra o Integralismo.


Processo 171 do Tribunal de Segurança Nacional. Arquivo Nacional. 1935.

REFERÊNCIAS
CAMPOS, João da Silva. Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus. 3. ed.,
Ilhéus: Editus, 2006.

LINS, Marcelo da Silva. Os vermelhos nas terras do cacau: a presença


comunista no sul da Bahia (1935-1936). 255 f. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em História Social. UFBA. Salvador. 2007.

LUCE, F. O domínio da lei na região do cacau: a Justiça do Trabalho e o


Estatuto do Trabalhador Rural. In: GOMES, A. C.; SILVA, F. T. (Org.).
A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil.
Campinas: Editora da Unicamp, 2013. p. 349-398.

NAVARRO, Z. Movimentos Sociais em áreas rurais do Sudeste da Bahia: lutas


sindicais do período 1955/1964. In: SANTOS, José Vicente Tavares dos.
(Org.). Revoluções Camponesas na América Latina. São Paulo: ???? 1985. p.
243-262.

RIBEIRO, Danilo Ornelas. A cidade cinquentenária: entre os manuseios de


memórias e os sonhos de futuro (Itabuna, BA, décadas de 1950 e 1960).142 f.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História Social.
UFBA. Salvador. 2014.

76
Clodualdo Cardoso: “O paladino dos trabalhadores” em Itajuípe

SANTARRITA, Marcos. O que tinha de ser. Salvador: Imago, 2000.

SCHAUN, Maria (org.). Nelson Schaun merece um livro... Ilhéus: Editus,


2001.

SENA JR. Carlos Zacarias de. Os impasses da estratégia: os comunistas, o


antifascismo e a revolução burguesa no Brasil (1936-1948). 465 f. Tese de
Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História. UFPE. Recife, 2007.

SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64); tradução


Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SOUZA, Erahsto Felício. Subalternos nos caminhos da modernidade:


marginais, politização do cotidiano e ameaças à dominação numa sociedade
subordinadora do sul da Bahia (Itabuna – Década de 1950). 288f. Dissertação
de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História Social. UFBA.
Salvador. 2010.

77
O Observatório Astronômico Antares:
o relato de uma experiência moderna

Lise Marcelino Neto


Mestra em História (UNEB)
lise.observatorioantares@gmail.com

O presente trabalho tem como objeto de estudo o Observatório As-


tronômico Antares, entidade criada na cidade de Feira de Santana,
Bahia, em 1971. Por meio de três obras literárias, se estabelece aqui uma
relação entre as semelhanças existentes no processo de modernização e a
implantação daquela entidade. Ela foi concebida dentro dos propósitos
de modernidade almejados por segmentos da sociedade local. Embora
não exista qualquer referência ao Antares nas obras ficcionais, nelas
predominam a ideia do progresso. E o Antares foi isso para a sua época,
um símbolo do progresso.
A trama de dois desses romances, Setembro na Feira, de Juarez Bahia,
publicado em 1986, e O bicho que chegou a Feira de 1991, escrito por
Moniz Sodré, ocorrem na cidade de Feira de Santana, Bahia, durante o
século XX, enquanto o outro, O fruto do vosso ventre, de Herberto Sales,
do ano de 1984, se passa em uma ilha imaginada pelo autor.
Há passagens das obras que nos elucidam acerca da ideia de moder-
nidade. Essa, por sua vez, encontra-se definida por Marshall Bermanda
seguinte maneira:

79
Lise Marcelino Neto

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete


aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e
transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo
ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo
o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula
todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionali-
dade, religião e ideologia: nesse sentindo, pode-se dizer que a
modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade
paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos
num turbilhão de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer
parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que
é sólido desmancha no ar”1
Nas três obras literárias, encontramos sinais dessa definição de Berman.
Nelas, ver-se, por exemplo, ambientes sociais em constante transformação,
como também, a existência do paradoxal, indo desde posições políticas
até o próprio sentimento humano. Em um deles, ver-se a seguinte fala “A
inauguração dos Currais Modelo estimula novidades, até destrói alguns
tabus. As mulheres da rua do Meio, livre, disponíveis, fazem trottoir nos
largos passeios dos Currais.”2
A formulação de Berman está presente no mundo contemporâneo
nas práticas sociais e nos diferentes modos de expressão. A prosa de
ficção tem se mostrado um dos meios mais fecundos e recorrentemente
empregados para dar conta de como as sociedades lidam com as ex-
periências da modernização. Nas três obras em questão, são narrados
episódios que revelam as contradições e conflitos que marcaram aqueles
anos de “desenvolvimento” levado a efeito com vistas à construção de
uma sociedade “moderna”.

1
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade:
tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Loriatti. São Paulo. Companhia das
Letras, 1986. p.15
2
BAHIA, Juarez. Setembro na Feira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.35

80
O Observatório Astronômico Antares: o relato de uma experiência moderna

O Antares foi concebido dentro dos propósitos da modernidade alme-


jados por setores da sociedade, em particular, dos segmentos vinculados
à imprensa local e estadual. Embora não exista qualquer referência a essa
organização nas obras ficcionais, predomina nelas a reflexão crítica da
ideia do progresso. O Antares, na condição de símbolo do progresso, na
perspectiva de seus idealizadores, tornou-se alvo direto ou indireto da
crítica presente nos textos literários indicados.
Nessa medida, o mundo real e a ficção aproximam-se e ­confrontam-se
conforme o ponto vista da interpretação literária. Os romancistas, nas
obras aqui empregadas, exprimem-se de forma crítica em relação às so-
luções sugeridas por outras formas de discurso empenhadas em fazer a
defesa acrítica do processo de modernização. Basta comparar os discursos
veiculados na imprensa local e os textos literários para se perceber as mar-
gens de divergência de pontos de vista acerca da presença de elementos
“modernizantes”. A análise comparativa do discurso dos periódicos locais
com o que se encontra nos textos dos romances indica que enquanto os
artigos jornalísticos tentam induzir a aceitação das novas tecnologias e
avanços científicos, a tessitura literária denuncia os usos e abusos desses
novos recursos e dos valores que eles trazem.
Os jornais, tanto para o estudo do Antares quanto para as obras ficcio-
nais, tornaram-se referências importantes. “Se a leitura do jornal diário é
a reza do homem moderno [...]”, conforme frisou Bruno Latour, há que
se considerar os periódicos como expressão da modernidade que patro-
cinam outras iniciativas modernas, como pretendia ser o Observatório e
os demais empreendimentos vistos nos romances.3Ainda segundo Latour,
“A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores ou
jornalistas” (grifo nosso).4 Destaca-se a palavra jornalista em razão do
papel que eles tiveram na implantação do Antares.

3
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São
Paulo: Editora 34, 2013, p.8.
4
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. p.15, grifo nosso.

81
Lise Marcelino Neto

Na imprensa local encontramos muitas matérias que associam o


surgimento de novas ferramentas como necessidade do progresso. O
próprio jornal Feira Hoje foi criado com a função de ser um órgão capaz
de estar à altura da cidade que estava rumo ao avanço, como é possível
ver a partir do seguinte fragmento:
Todos nós sabemos que a Feira de Santana cresce em todas as
dimensões e em todos os sentidos. A sua posição, hoje, não é,
apenas, a de uma cidade comum que arrancou para o futuro.
É a de líder inconteste de uma região. E aí reside a sua grande
responsabilidade e a de todos que aqui trabalham. Faltava,
entretanto, um órgão de divulgação que assumisse a vanguarda
das reivindicações maiores do povo da Feira de Santana e da
região. Um jornal que levasse uma mensagem de esperança,
de fé, de confiança no porvir. Foi isso que nos propomos há
um ano, quando lançamos nas ruas o primeiro número do
FEIRA HOJE. Com consciência de nossa missão e certos das
dificuldades que encontraríamos para que a terra de todos nós
tivesse um jornal à altura do desenvolvimento.5
Nessa mesma perspectiva, podemos ver a implantação do Observatório
Antares. Em uma matéria publicada no jornal Folha do Norte, é noticiado
o surgimento da entidade. Com título “Feira terá um Observatório”, a
matéria informa, por exemplo, que o objetivo principal da entidade era
difundir a ciência astronômica no estado, que até aquele momento estava
alijada do cenário regional. Segundo a reportagem, com o Antares, os
cidadãos feirenses poderiam se orgulhar, pois o município se tornaria
“satélite do desenvolvimento científico do estado”.
Nos romances por sua vez, vemos também a imprensa funcionando
enquanto propagandista do crescimento. Em Setembro na Feira, ela se
faz presente por meio do Correio Feirense, Folha do Norte e pelo Serviço

5
Jornal Feira Hoje, Feira de Santana, 4 set. 1971, p.2.

82
O Observatório Astronômico Antares: o relato de uma experiência moderna

Feirense de Alto – falantes. Há na trama, um fragmento em que esse


último, estava com uma programação especial devido à inauguração dos
Currais Modelo, como vemos a seguir:
É um dia memorável. O Serviço Feirense de Alto – falantes
repica o hino à Feira em cada intervalo como um sino de in-
cessante a badalar. O povo concentra-se admirado e atento em
frente aos aparelhos, funis gigantes, de amplificação do som,
uma curiosidade tão grande quanto os currais novos com suas
cercas padronizadas [...] 6
No O bicho que chegou a Feira, deu-se lugar ao Jornal da Bahia. Na
trama, ele traz em uma manhã de sexta-feira, duas notícias sobre Feira de
Santana. Uma, na verdade era pequena nota informando acerca de uma
fuga com troca de tiros, e a outra se tratava de uma grande reportagem
que falava sobre o pólo industrial que se planejava instalar na cidade. 7
Já no romance O fruto do vosso ventre, a imprensa aparece enquanto
criação do próprio governo, sob alegação de que povo deveria ser segura-
mente informado com notícias exatas, sem desencontros. Para isso, havia
na ilha três jornais; O Jornaltec, A Tecnocracia e o Estado Tecnocrático, além
de duas estações de rádio, um canal de televisão e um órgão criado pelo
governo, o Cenint (Complexo Estatal da Notícia Integrada).8
O que nos chama duplamente a atenção, é que os três romances foram
produzidos por baianos do interior e que tiveram atuação profissional na
imprensa. Com o Antares, não foi muito diferente. Dos 14 dirigentes
eleitos para compor a diretoria da entidade, seguramente 7 deles, atuavam
na imprensa local e regional, inclusive, o diretor e fundador Augusto
César Orrico. Ele possuía colunas em dois periódicos da cidade.

6
BAHIA, Juarez. Setembro na Feira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.34.
7
SODRE, Muniz. O bicho que chegou a Feira. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves,
1991.p.147.
8
SALES, Herberto. O Fruto do Vosso Ventre.Rio de Janeiro: Livraria José Olimpio
Editora, 1984. p.16.

83
Lise Marcelino Neto

Dentre os 7, cabe aqui destacar um deles, Helder Alencar. Esse, além


de ser atuante na imprensa, foi autor de várias colunas dos periódicos
locais, inclusive, uma anticomunista. 9 Quando se dedicou a divulgar a
imagem do Antares, produziu textos elogiando o empreendimento e o
engajamento de Augusto César Orrico.
Na coluna “Pois é”, no dia 29 de maio de 1971, do jornal Feira
Hoje, ele parabenizou, engrandeceu e apoiou os feitos de Orrico.10Ao
fim da matéria, o colunista tornou público o apoio que a imprensa local
estava dando as suas iniciativas, fator que se confirmou nos meses e anos
seguintes.
César Orrico divulgava o conhecimento astronômico nos jornais à
semelhança de astrônomos do Rio de Janeiro, com objetivo de populari-
zar o campo de conhecimento e apresentar-se como alguém qualificado
na área. Era uma forma de legitimar-se como astrônomo, mesmo que
realizasse essas atividades na condição de amador. Ao publicar suas co-
lunas, Orrico procedia da mesma forma, por exemplo, que astrônomo
Ronaldo Mourão, no Jornal do Brasil.
Retomando as obras ficcionais, ao falarmos de cada uma delas, po-
deríamos seguir a ordem de publicação deles. No entanto, para fins de
melhor compreensão, faremos de acordo com a linha temporal que os
autores situaram a escrita e as diferentes abordagens sobre a chegada da
modernidade.
Sendo assim, começaremos por Setembro na Feira, que se passa após
os anos de 1930 e aborda questões como: o enfraquecimento da primeira
ideia que se tem de coronelismo; da implantação dos Currais Modelo
em Feira de Santana e da construção de rodovias federais que começam
a passar pela cidade, trazendo novidades e o encurtando a distância entre
norte e sul do país.

9
Feira Hoje, Feira de Santana, 31 mar. 1972, p.1.
10
Feira Hoje, Feira de Santana, 29 maio 1971, p.5.

84
O Observatório Astronômico Antares: o relato de uma experiência moderna

Em segundo, está O bicho que chegou a Feira. A trama ocorre durante


os primeiros anos do regime militar de 1964. Segundo o autor, para fins
de funcionamento do novo sistema político, chega à cidade, um “padre
– armado”. Na maioria dos feirenses, é despertado o sentimento de estra-
nhamento, em outros, os grandes homens do município ver-se a partir
dele, a possibilidade de mudança e uma maneira de se manter no poder.
Já O fruto do Vosso ventre, ocorre em uma ilha bem adiante dos nossos
dias. É segundo o apresentador Octávio de Faria “[...] um grito contra a
tecnocracia, os excessos da técnica e dos tecnocratas, os disparates a que
ela é levada pelo próprio desenvolvimento de sua implacável lógica”. 11
Setembro na Feira nos mostra que as modificações em uma cidade,
são constantes. Essas, por sua vez, são sinalizadas em fragmentos como
esses: “Quando menos o Campo do Gado sentir, Feira de Santana já
cresceu ao seu redor, amando boi, os cavalos, os carneiros e os porcos do
Campo do Gado, curtindo o couro nos velhos curtumes, porém criando
e recriando outros valores para competir com o progresso.”12
Nessa trama, o gado deixa de ser comercializado nas ruas da cidade e
passa a ser negociado dentro dos limites estabelecidos pelo que era visto
como moderno. A partir dali, os animais teriam um local cercado, deno-
minado Currais Modelo, no bairro da Queimadinha, para ser comprado,
vendido e até cortado. Segundo o personagem Coronel Farinha, um
dos responsáveis pela despesa da nova construção, havia poucos currais
daquele no mundo e de acordo com o romance:
A feira com os Currais se transforma, passando de um centro
de pequenos negócios, de pequenos serviços, de intercâmbios
artesanais a um enorme entreposto com seu mercado de pro-
dutos agrícolas e pastoris, seu grande comércio e sua nascente
indústria com os estabelecimentos de beneficiamento do

11
Ibidem p. xi
12
BAHIA, Juarez. Setembro na Feira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.57.

85
Lise Marcelino Neto

fumo, do algodão, do couro. O gado descortina essa nova era


comercial e industrial, os Currais Modelo dão a cidade aspecto
de uma província do ouro que para chegar ao ápice só espera
o fim da rodagem para o Sul.13
Assim como tantas outras aglomerações urbanas, a Feira de
Santana, não parou no tempo.
Sabe que aristocracia rural tornou-se decadente e que isto
coincide com estes últimos anos quarenta, que a terra deixou
de ser a unidade de medida da representação social e que
a Feira a classe dos fazendeiros, com suas prerrogativas de
barões feudais, teve de ceder lugar a outras categorias, aos
comerciantes, os liberais, a novos líderes, aos intelectuais, aos
artífices, aos trabalhadores, aos construtores da Rio – Bahia.14
No livro O bicho que chegou a Feira, essa mudança de categoria dos
que detêm o poder nada mais é do que um “[...] modo permanente de
governo dos que se achavam escolhidos pelo destino para mandar no
mundo”.15 Nessa obra, o grande fazendeiro era o personagem Lulu do
Boi. Ele, além de apoiar os milicos, mudou seu comércio. Deixou o gado,
para em suas terras, instalar um grande pólo industrial.
Nesse romance, todo modernizador é visto como um golpista visce-
ral. Para identificá-lo era necessário observar, ou melhor, como disse um
velho senhor da trama, apreciar. Só assim, veríamos que o golpe vinha
das mais distintas direções, além daquelas evidentes como Lulu Boi.
Vinha dos letrados, dos diplomados, dos bancos, que sempre estiveram
a favor do novo sistema.

13
Ibidem. p.36
14
Ibidem. p. 44
15
SODRE, Muniz. O bicho que chegou a Feira. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves,
1991.p.146.

86
O Observatório Astronômico Antares: o relato de uma experiência moderna

Sinais de desconforto diante das novas exigências comportamentais


ficam evidentes durante o enredo. O autor constrói o personagem An-
tão como o protagonista, que percebe a nova dinâmica e a metaforiza
como a chegada de um bicho, sendo o grande causador das mudanças.
Uma espécie de cobra, que sinalizava a permanência dos mesmos no
poder da cidade, mas que trocava de pele a fim de atender as exigências
e demandas externas.
A fim de colocá-lo em prática, os velhos do poder deram voz a um
“padre-armado”. Ele seria responsável por reger os novos costumes a serem
incorporados. No entanto, o tal padre, também chamado de capelão, foi
visto pelos demais feirenses como algo “estrangeiro”, que ameaçava ao
ritmo da vida local. Ele era “(...) um padre polonês, incorporado com
patente de capitão à Polícia Militar do Estado e agora designado para
fazer serviço em Feira. Dizia-se que vinha respaldado pelo Alto Co-
mando das Forças Armadas na Bahia, preocupado com uma presumida
disseminação de almas comunistas na cidade que era porta obrigatória
do sertão”.16O capelão “(...) apresenta-se, assim, como um missionário
da modernização, empenhado em salvar almas da ameaça comunista e
acabar com os anacronismos que entravavam o progresso.”17
Dentre as medidas tomadas pelo Padre-armado, estava cortar os
longos cabelos dos jovens rapazes, afirmando que a modernidade que o
país necessitava era outra. Exigiu também novos comportamentos dos
feirantes para “(...) carregar as galinhas de cabeça para cima, sob alegação
de que era a forma civilizada e moderna.”18
Eram medidas, à primeira vista, um tanto quanto absurdas, que
deixavam muitos dos feirenses indignados ao ponto de não se alertar
para o principal: A chegada dos novos tempos em que as pessoas seriam

16
Ibidem, p. 23.
17
Ibidem, p. 58.
18
Ibidem, p. 74.

87
Lise Marcelino Neto

reprimidas e apenas deveriam seguir ordens. Tempos de ditadura. A ci-


dade de Feira de Santana cresceu muito, ela acabou se tornando ponto
de encontro baiano entre o sertão e o litoral. Sendo assim, não havia
lugar melhor para impedir o avanço comunista e disseminar os ares do
progresso. Segundo um dos personagens, essa terra não precisa nem se
quer de poesia, mas sim bater continência a ordem e ao progresso.19
Reforçando essa ideia, aparece o comentário de um jovem proprietário
de terra, Justo Filho, afirmando que havia uma revolução em marcha,
e que este país tinha que ser modernizado a qualquer custo, para que
todos pudessem comer, principalmente no campo. Segundo ele, as ban-
deiras contra a miséria e a favor de reforma agrária levantadas por ligas
camponesas os atrasavam muito e felizmente estavam sendo varridas
da história. Justo Filho ainda disse que o negócio da vez era a tal pro-
dutividade, e para isso tinha-se que acabar com anacronismos. Tirando
da terra tudo que ela poderia dar, a fazenda teria que ser administrada
racionalmente, como uma grande empresa, sem romantismos. Para ele,
isso era progresso, um novo Brasil.
A perspectiva da técnica e da racionalidade é melhor compreendida
durante a leitura do Fruto de Vosso Ventre. Há no livro, situações em que
os governantes deliberam suas ações sem qualquer consulta à comunidade.
Eles justificam suas iniciativas alegando que estavam amparados por um
conhecimento técnico que deveria ser inquestionável.
A primeira tomada de decisão foi o extermínio dos coelhos da ilha. A
população desses roedores estava tão alta, que superava a dos humanos.
Esse aumento acarretou a necessidade de mais alimentos, e os coelhos
estavam comendo quase a totalidade das hortaliças da ilha. Por esse motivo,
os técnicos decidiram atraí-los para uma parte da ilha e bombardeá-la,
causando a extinção dos animais.

Ibidem, p.70
19

88
O Observatório Astronômico Antares: o relato de uma experiência moderna

Em seguida, outro problema surge: “(...) os homens começaram a


procriar quase tanto quanto os coelhos. E no fim de algum tempo, do
mesmo modo que os coelhos tinham sido uma ameaça à sobrevivência
dos homens, os homens passaram a ser ameaça à sobrevivência de si
próprios, pois havia homens demais para comer”.20 No entanto, eles não
poderiam fazer com os humanos o que fizeram com os coelhos. “Afinal,
um homem era um homem, e um coelho era um coelho.”21
A solução então encontrada pelos técnicos foi criar um depar-
tamento de controle de natalidade. Dentre as deliberações desse órgão
estava exigir que todas as mulheres grávidas passassem por uma avalia-
ção de especialistas, os quais julgariam se a gestação deveria ou não ser
interrompida. O que dizia se o aborto seria feito era o tempo. Caso já
estivessem passados três meses, o processo natural daria seguimento, caso
negativo, o feto seria retirado.
Além dessa, outras decisões foram tomadas pelos tecnocratas.
Tornaram obrigatório o cadastramento de todas as mulheres da ilha, as
quais poderiam ser classificadas por cores diferentes de fichas: casadas
declaradas, amasiadas, divorciadas, viúvas e solteiras.
O uso do poder, nesse caso, estava respaldado pelo conhecimento da
técnica. Só quem a possuía seria capaz de resolver os problemas. No que
diz respeito ao contexto social do Antares, a tecnologia e consequente-
mente, a técnica também tinha seu lugar. Tornou-se quase que um con-
senso. Ao consultarmos os periódicos da década de 1970, encontramos
matérias como essa, que tem o seguinte título: “Problemas Educativos:
Solução Tecnológica”22. De acordo com ela, o Departamento de Assuntos
Educacionais da Organização dos Estados Americanos afirmou que os

20
SALES, Herberto. O Fruto do Vosso Ventre. Rio de Janeiro: Livraria José Olimpio
Editora, 1984, p.7.
21
Ibidem, p.7
22
Jornal Folha do Norte. Feira de Santana, 09 jan. 1971, p.1.

89
Lise Marcelino Neto

problemas educacionais da América Latina deveriam ter uma solução


tecnológica. Para eles, a moderna tecnologia permitiria usar com mais
eficiência os recursos em função da educação. Cada país possuiria seus
próprios recursos e suas metas educacionais.
Essas soluções podem ser entendidas como “a voz que denuncia a
vida moderna”, definida por Marshall Berman, quando ele diz que “[...] a
própria modernidade criou, na esperança – não raro desesperançada – de
que as modernidades do amanhã e do dia depois de amanhã possam curar
os ferimentos que afligem o homem e a mulher modernos de hoje.”23
Ao trazermos essas reflexões para o contexto da criação do Observa-
tório Antares, percebemos o quanto as narrativas ficcionais, nos ajudam
a compreender os diversos sintomas da modernidade. Não nos interessa
nesse momento a veracidade dos episódios descritos nas obras, mas sim
perceber o(s) imaginários que elas procuram expressar.
O fruto do vosso ventre, nesse sentindo, é fundamental para falar da
questão. Pois se trata de um enredo que ocorre em uma ilha, essa por sua
vez, não tem nome, é chamada apenas de ilha. Nela, existe a soberania
do governo pautado na técnica. Levando essa ideia para o ambiente em
que o Antares foi implantado, há uma grande semelhança, pois o governo
militar dos anos de 1960 era seguramente tecnocrático. O seu projeto
passava pela seguinte tríade: ciência, tecnologia e educação.
De acordo com Francisco Carlos Teixeira da Silva, era uma espécie
de “modernização autoritária”. Nessa época, ocorreram investimentos
por meio da FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), sob alegação
de ser uma estratégia, em prol a segurança nacional e de interesse das
comunidades científicas.24

23
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade,
p. 22-23.
24
CLEMENTE, José. “A ciência durante a ditadura militar: a criação da pós-graduação
na universidade federal da Bahia e o caso da geofísica (1964-1985). In: ZACHA-

90
O Observatório Astronômico Antares: o relato de uma experiência moderna

Os periódicos locais nos mostram que o incentivo dos milicos para


a implantação do Antares não chegou por meio de uma agência finan-
ciadora como o FINEP, pois, apesar de se tratar de um Observatório
Astronômico, não havia em seu corpo principal, astrônomos formados,
e sim amadores. A ajuda foi mais pessoal do que se imagina. Ao tomar
conhecimento da ideia, o governador Antonio Carlos Magalhães, além
de fazer repasses consecutivos para a construção, estava com frequência
presente em eventos da entidade.
Dessa maneira, podemos finalizar dizendo que o Antares é um exemplo
de uma experiência de modernização. Ele é um símbolo da chegada do
progresso nos anos de 1970. Assim como os Currais Modelo do livro
Setembro na Feira foram para os anos de 1940, o Antares é fruto do
progresso que o “bicho” do romance o Bicho que chegou a Feira trouxe.
Pois aquela cidade que vivia do comércio, aprendia, então, a conviver
com um Observatório Astronômico e tantas outras “modernagens”. Até
uma Universidade foi criada. E quem fez isso tudo? Os tecnocratas que
estavam no poder, muito parecidos com os que estão representados na
obra de Herberto Sales, O fruto do vosso ventre.

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Bassanezi (org). Fontes Históricas. 3ªed. São Paulo: Editora Contexto, 2015.

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93
Lise Marcelino Neto

94
O Observatório Astronômico Antares: o relato de uma experiência moderna

PARTE II
História e Política em Memórias
e (auto)biografias

95
O poder político e a escrita sobre Alagoinhas
nos pós-abolição imediato

Aline Najara da Silva Gonçalves1*


(Doutoranda em História Social – UFRRJ. Bolsista FAPERJ)
alinasigo@gmail.com

Entender a dinâmica da escravidão em Alagoinhas (BA), especialmente


na segunda metade do século XIX, bem como a autonomia escrava no
que diz respeito à conquista da liberdade e da vivência no pós-abolição
imediato, foram as principais inquietações que levaram a pensar e elaborar
a pesquisa que desenvolvo atualmente no doutorado. Assim, analisar a
política da escravidão em Alagoinhas parte da intenção de investigar de
que modo o poder local, representado por proprietários de terras e de
escravos, buscou estratégias para a sustentação do escravismo, apesar das
pressões exercidas pelas leis emancipacionistas e pelo poder provincial,
especialmente no período pós 1871.2 Considerando que, no caso da

O título provisório da minha pesquisa é Poder político, trabalho escravo e os caminhos


2

para a liberdade: a política da escravidão e a memória do pós-abolição imediato em


Alagoinhas (1871-1902). O período proposto se enquadra no que Dale Tomich
denominou “segunda escravidão”. Segundo ele, a escravidão moderna não manteve
o mesmo perfil do século XVI ao XIX, e as principais mudanças aconteceram com
o advento do capitalismo, que levou a uma “formação e reformulação das relações
escravistas dentro dos processos históricos da economia capitalista mundial”. Nesse
sentido, Tomich aponta que a segunda metade do século XIX foi o apogeu da explo-

97
Aline Najara da Silva Gonçalves*

Vila de Santo Antônio de Alagoinhas, a câmara municipal era composta


basicamente por “genuínos escravistas” — que, nas palavras de Américo
Barreira, tentaram a todo custo manter a escravidão na cidade —, analisar os
desdobramentos da relação estabelecida entre proprietários e representantes
da política local é o ponto de partida para a qualificação deste debate. 3
Como os maiores escravistas eram também os principais representantes
do poder político da localidade, conforme pontuado, a relação entre po-
lítica e economia leva a supor que a política alagoinhense, especialmente
após o fim do tráfico negreiro e em virtude do iminente fim do regime
escravista, vislumbrado pelas leis emancipatórias (o que fica evidente a
partir das leituras dos relatórios do conselho interino de governo), se ar-
ticulou no sentido de buscar estratégias para a sustentação do escravismo,
garantindo, inclusive, o desenvolvimento de ações que possibilitassem
a manutenção do poder e controle sobre os libertos após a obtenção da
alforria, como pode ser verificado, principalmente, a partir das cartas de
liberdade assinadas após 1871, que, contrariando a determinação da Lei
do Ventre Livre de limitar o tempo de cumprimento de condições a sete
anos, por exemplo, trazem muitos registros com prazos que se estendem
até a morte dos proprietários.4

ração escravista no Novo Mundo, que determinou, tanto a política quanto as possíveis
ações que conduzissem à liberdade do trabalhador escravizado, principalmente por
conta da relação intrínseca entre o poder político das câmaras municipais e o poder
econômico, representado pelos proprietários de terras e escravos. Cf. TOMICH,
Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo:
EdUSP, 2011.
3
BARREIRA, Américo. Alagoinhas e seu município. Notas e apontamentos para futuro.
Alagoinhas: Typografia do Popular, 1902.
4
Cf.: GONÇALVES, Aline Najara da Silva. Do escravo que negocia ao liberto imper-
feito: breve painel sobre alforrias na Vila de Santo Antônio de Alagoinhas (1872‐74).
In: Anais do XXIX Simpósio Nacional de História – Contra os preconceitos: história e
democracia. UNB, Brasília, 2017. Disponível no site: www.snh2017.anpuh.org/
resources/anais/54/1502673409_ARQUIVO_DOESCRAVOQUENEGOCIAAO-
LIBERTOIMPERFEITO-AlineNajara.pdf

98
O poder político e a escrita sobre Alagoinhasnos pós-abolição imediato

Neste artigo, a intenção é analisar se a produção de uma história local


encomendada foi uma estratégia de forjar uma memória de exaltação
para esses políticos e seus feitos e é neste ponto que o olhar se volta à
escrita de Américo Barreira, em especial, à sua obra Alagoinhas e seu
município (Figura 1).
Figura 1 – Capa do livro Alagoinhas e seu município

(Fonte: Arquivo pessoal da autora)

A leitura desse livro já rendeu alguns apontamentos desde quando


iniciei a coleta de fontes acerca da escravidão em Alagoinhas. O que trago
aqui são anotações de uma reflexão em andamento, que tem dado novos
contornos à análise que proponho. Me deparei com o livro escrito por
Américo Barreira em 2015 e naquele momento, a escassez de informações
e dados referentes à história da escravidão em Alagoinhas naquela obra,
repleta de “pretensões”, foi o que impulsionou a curiosidade e o desejo de

99
Aline Najara da Silva Gonçalves*

investigação, que resultou no artigo apresentado no Simpósio Nacional da


ANPUH daquele ano e intitulado Uma cidade sem escravos(?): Memória,
História e silêncio em Alagoinhas (BA), no qual questionei o apagamento
significativo acerca da escravidão e do pós-abolição na narrativa.5
Retomando a análise feita anteriormente, vejo a obra do Américo
Barreira como uma estratégia do poder público alagoinhense para forjar
uma memória condizente com os ideais da elite local, buscando ressaltar
as glórias e grandes feitos dos homens bons que controlavam o poder
político municipal e ocultar referências mais diretas à escravidão.
Em 19 de setembro de 1902, a Câmara Municipal sancionou a lei
de nº 185 (Figura 2), que determinava:
Art. 1º – É concedido ao Dr. Américo Barreira o auxílio de
R$. 500.000 para a publicação de sua obra — Alagoinhas e
seu município —, sendo obrigado a fornecer ao município
200 exemplares da referida obra.

Art. 2º – Fica aberto para o fim do art. 1º desta lei o crédito


respectivo. 6
Assim, após ser financiado pelo governo municipal de 1902, Américo
Barreira elaborou e guardou em Alagoinhas e seu município a história de
uma Alagoinhas próspera, desenvolvida, cosmopolita e voltada ao pro-
gresso, painel que se configura desde a fundação da cidade, em fins do
século XVIII, até os anos imediatamente posteriores ao fim do regime
escravista. Neste sentido, a análise da obra de Américo Barreira perpassa

5
Cf.: GONÇALVES, Aline Najara da Silva. UMA CIDADE SEM ESCRAVOS(?): Me-
mória, História e silêncio em Alagoinhas (BA). In: Anais do XXVIII Simpósio Nacional de
História – Lugares dos Historiadores: Velhos e Novos Desafios. UFSC, Florianópolis, 2015.
Disponível no site: http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1439213417_
ARQUIVO_Alagoinhas-umacidadesemescravos-ANPUH2015.pdf
6
Cf. Registros de Leis e Resoluções do Conselho de Alagoinhas, 1898-1902. Livro n° 03.
Arquivo da Câmara Municipal de Alagoinhas.

100
O poder político e a escrita sobre Alagoinhasnos pós-abolição imediato

pela ideia de refletir sobre os caminhos que o poder público alagoinhense


percorreu para elaborar e guardar uma história local que buscou apagar a
presença negra e o escravismo da sua memória, garantindo a cristalização
de uma “história oficial” da cidade escrita nos moldes das produções en-
comendadas pelo Instituto Historico e Geographico Brasileiro (IHGB).
P á g i n a | 133
Figura 2 – Lei 185 de 19 de setembro de 1902

Fonte: Registros de Leis e Resoluções do Conselho de Alagoinhas, 1898-1902. Livro n° 03.


Arquivo da Câmara Municipal de Alagoinhas.

Em O Espetáculo das Raças, Lília Schwarcz analisa a relevância e a


utilização das teorias racialistas no Brasil entre 1870 e 1930 e, para isso,
apresenta reflexões a respeito do modo como a intectualidade brasileira da
época lidou com a questão racial, enfocando, principalmente, os espaços
oficiais de construção e legitimação da história.7 Assim, problematiza a
fundação dos Museus Etnográficos, Institutos Históricos e Geográficos

7
SCHWARCZ, Lília Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

101
Aline Najara da Silva Gonçalves*

e das Faculdades de Direito (no Recife e em São Paulo) e de Medicina


(na Bahia).
A respeito da fundação do IHGB em 1839, Schwarcz destaca sua
função de “guardião da história oficial”, cujo papel, além de construir
a história da nação, era de recriar um passado e solidificar mitos, orde-
nando os fatos memoráveis, principalmente aqueles que exaltassem as
elites intelectuais e econômicas.8 Assim, “além do desejo de fundar uma
historiografia nacional e original, havia a intenção de não só ensinar e
divulgar conhecimentos, como formular uma história que se dedicasse
à exaltação e glória da pátria”.9
A criação da Revista do Instituto (RIHBG) responde a essa intenção,
conforme ressaltou Lília Schwarcz. A revista apresentava-se dividida em
três partes distintas: a primeira fazia referência a eventos históricos e
limites geográficos, a segunda a biografias de brasileiros “distintos por
letras, armas e virtudes” e a terceira parte “trazia extratos das atas das
sessões que reproduziam o cotidiano do IHGB.10
A semelhança entre a estrutura da obra de Américo Barreira e a da
Revista do IHGB é evidente. Dividida em quatro partes, o destaque
inicial em Alagoinhas e seu município é dado à geografia do município
e suas características físicas e organizacionais. Assim, Barreira revela ao
leitor os limites espaciais, a divisão territorial, aspectos topográficos e oro-
gráficos, bem como a hidrografia, clima, religião, rendas públicas, meios
de comunicação e imprensa.11 Tratando da Revista do IHGB, Schwarcz
afirmou que os textos de geografia perfazem 18% do total e cumprem um
papel bastante específico, sendo boa parte deles relacionados a questões
territoriais e de limites. No caso do livro de Américo Barreira não foi

8
Idem, p. 99.
9
Idem, p. 102.
10
Idem, p. 109.
11
BARREIRA, op.cit, p. 9-26.

102
O poder político e a escrita sobre Alagoinhasnos pós-abolição imediato

diferente. A primeira parte corresponde a pouco mais de 10% da obra


e é apresentada como um painel informativo acerca da cidade e região.
Como ressaltou a Lília Schwarcz, “fazer história da pátria era antes
de tudo um exercício de exaltação”. Lembrar era o ponto de partida
para “comemorar, documentar e para bem festejar”.12 Assim, a prática
de biografar grandes vultos da história da pátria, garantindo legitimi-
dade a seus pares, bem característica da estrutura interna da Revista do
IHGB, também se destaca no registo sobre Alagoinhas. Naquela revista,
a apresentação de perfis dos sócios do IHGB não foi aleatória, sendo a
maioria deles políticos e proprietários de terra.
A segunda parte da obra de Américo Barreira, além de trazer um pa-
norama histórico e político acompanhando a evolução local de freguesia a
vila e, depois, a cidade, traz em suas “Notas Biográphicas”, o destaque dado
a homens que compunham o cenário político alagoinhense ou exerciam
cargos policiais, conforme ressaltou.13 Ali, são apresentados 144 nomes
de “grandes homens”, protagonistas de “grandes feitos”, dos quais, parte
significativa deles eram também políticos e proprietários de terras, como
era o caso do coronel José Joaquim Leal, o primeiro presidente da câmara
municipal, um escravocrata de grandes posses e abastado proprietário de
dois engenhos e onze fazendas na região. Em nota explicativa, Barreira
justificou-se, desculpando-se pela pequena quantidade de nomes lembra-
dos: “a exiguidade do tempo de que pude dispor para a confecção deste
livro não me permitiu colecionar todos os apontamentos que desejava
para fazer tão completa quanto possível esta parte, aliás interessantíssima,
do meu trabalho”.14 Conforme destacado por Phillipe Levillain, “curtas
notícias biográficas podiam entrar na História. Mas a História não podia
caber inteira numa biografia”, ainda que direcionada ao panegírico, como

12
SCHWARCZ, op. cit., p. 104.
13
BARREIRA, op.cit, p. 103-149.
14
BARREIRA, op.cit, p. 103.

103
Aline Najara da Silva Gonçalves*

parece ter sido uma das pretensões de Américo Barreira.15 Levando em


conta a justificativa apresentada e o fato de o recurso para a publicação ter
sido liberado em setembro de 1902, vê-se que poucos meses se passaram
entre sua encomenda e a confecção do livro, no qual o autor afirmou ter
dito “a verdade sem propósito de ser agradável a indivíduos, mas firme
na intenção de ser útil à coletividade”.16
Relacionando aqui a “coletividade” aos contratantes dos serviços
do médico e jornalista, não é de se espantar que ao longo da narrativa,
embora esta se desenrole de fins do século XVIII até os anos iniciais do
século XX, a presença negra seja tímida e incômoda. Vale salientar que,
como afirmou Schwarczs, a questão racial foi também um incômodo
no IHGB. Com relação à população negra, vigorava ali uma visão de-
terminista. Nos artigos do IHGB, os negros representavam uma espécie
de grupo incivilizável, cujas populações vivem no estado mais baixo da
civilização humana — “Não há dúvida de que o Brasil teria tido uma
evolução muito diferente sem a introdução dos míseros escravos negros”,
afirmou Karl Friedrich Philipp von Martius num artigo publicado em
1844.17
Aldo José Morais Silva lembrou que a Bahia foi a primeira província a
abraçar o exemplo dado pela criação do IHGB, criando também, em 03
de maio de 1856, o seu instituto, que durou até 1877 e foi reinaugurado
em 1894, a partir da iniciativa de integrantes da elite local.18 Caberia ao
Instituto baiano,

15
LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas da biografia. In: René Rémond. Por uma
história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.p. 145. Disponível no site <https://
docslide.com.br/documents/remond-rene-por-uma-historia-politica.html>
16
BARREIRA, op.cit, p. 149.
17
SCHWARCZ, op. cit., p. 112.
18
SILVA, Aldo José Morais. Instituto Geográfico e Histórico da Bahia: Origem e estratégias
de Consolidação Institucional, 1894-1930. (Tese de Doutorado em História), UFBA,
Salvador, BA. 2006.

104
O poder político e a escrita sobre Alagoinhasnos pós-abolição imediato

[...] produzir a biografia dos homens célebres da Província;


formar biblioteca; adquirir, organizar e arquivar documentos
de interesse histórico e geográfico, quer para a Província ou
para o Império, auxiliando assim o Instituto do Rio de Janeiro;
publicar o seu periódico e discutir temas de interesse da insti-
tuição, numa clara alusão aos objetivos do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro.19
Cabe sinalizar que, dentre os trinta sócios do IHB em sua reinau-
guração, “havia um marquês, dois barões, senadores e conselheiros pro-
vinciais, oficiais militares e clérigos, além de professores da Faculdade
de Medicina da Bahia”, possivelmente colegas de trabalho do “ilustrado
professor” Américo Barreira, que estudou e lecionou naquela faculdade
e se referia a Nina Rodrigues como seu amado mestre. Assim como no
IHGB, a questão racial é referencial ao se mencionar a Faculdade de
Medicina da Bahia. Naquela instituição, o “cruzamento de raças” era
fator determinante para explicar criminalidade, loucura e degeneração.
Numa das poucas passagens em que se refere à gente negra, Barreira
descreve e classifica as doenças que assolavam o município. Neste mo-
mento, chama atenção à má conduta de “certa classe de indivíduos”.20 Ao
transcrever o relatório que apresentou à Inspectoria Geral de Hygiene do
Estado da Bahia, em 30 de janeiro de 1898, onde registrou a vacinação de
crioulos adultos e crianças, reforçou não só a presença de descendentes de
africanos na cidade, como implicitamente, os relacionou às pessoas sem
senso de higiene e má educação, que segundo o referido doutor, seriam
propensos a uma conduta negativa que poderia ser a causadora da epidemia
de varíola que devastava Alagoinhas e maculava sua imagem progressista.
Como já mencionado, a referência a datas, fatos e dados históricos é
marcante na escrita de Barreira. Os grandes acontecimentos da história

19
SILVA, op. cit. p. 85.
20
BARREIRA, op.cit, p. 152.

105
Aline Najara da Silva Gonçalves*

da cidade e os grandes homens são o foco da narrativa. Cabe aqui uma


observação para encerrar a análise de hoje: após referir-se à elevação de
Alagoinhas à categoria de cidade, Américo Barreira dá um salto de nove
anos e silencia o período que se estende entre 1880 a 1889, dando seg-
mento a seu texto sob o subtítulo de ALAGOINHAS REPUBLICANA.
A respeito da lacuna de nove anos, afirma não ter se dado qualquer fato
político digno de referência especial.21 Assim, fica mais uma vez evi-
dente a pretensão de silenciar acerca do processo político que resultou
na abolição legal da escravidão. Como bem lembrou Michael Pollack,
“a memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registra-
do”.22 A atenção foi dada à exaltação do regime republicano e à “análise
completa dos males que a este país havia causado o antigo regime”. A
respeito do olhar dos homens das Letras acerca da escravidão na Bahia,
Marcelo Souza Oliveira destacou:
Na Bahia da Primeira República, os homens de letras eram,
em sua maioria, membros das famílias tradicionais da época do
Império, sendo assim a escrita sobre o passado escravista privi-
legiava uma interpretação cujo ponto de vista dos senhores era
claramente demarcado. A abolição na Bahia ocorreu de forma
traumática para uma elite agrária que esperava manter as relações
de dominação mesmo depois do fim do “elemento servil”, mas
que teve que conviver com diversas demonstrações de “rebeldia”
de muitos libertos desde a década de 1870 até os anos subse-
quentes ao pós-abolição. Essa experiência legou a construção
de uma memória que procurava negar o protagonismo desses
indivíduos e mesmo de seus colaboradores, os abolicionistas.23

21
BARREIRA, op. cit., p.49.
22
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, jul. 1992. p. 203. Disponível em: <http://bibliote-
cadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941/1080>.
23
OLIVEIRA, Marcelo Souza. Xavier Marques entre os intérpretes do Brasil: raça e nação
na Primeira República. Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade

106
O poder político e a escrita sobre Alagoinhasnos pós-abolição imediato

Diante do exposto, percebe-se que para Américo Barreira e o grupo


que representava, tratar do declínio do Império e do processo de aboli-
ção do regime escravista no Brasil, por exemplo, era certamente um fato
indigno de ser lembrado. Pollack ressaltou que “a vontade de esquecer
os traumatismos do passado frequentemente surge em resposta à come-
moração de acontecimentos dilaceradores”.24 Talvez, “traumatismos do
passado”, que deveriam ser esquecidos pelos homens bons alagoinhen-
ses, tenham sido, justamente, o passado escravista e os movimentos
emancipacionistas — símbolos do império, do atraso e da degeneração
populacional, que em nada se assimilava ao contexto de prosperidade que
Alagoinhas exalava —, frente ao “acontecimento dilacerador” que foi a
abolição, marco da derrota dos senhores frente às tentativas de manter a
escravidão e o controle sobre os indivíduos escravizados e libertos.
A propósito, a população escrava é praticamente invisível neste escri-
to. A impressão é que Alagoinhas era uma cidade sem escravos! A única
referência direta a um escravo na obra de Américo Barreira é feita quando
menciona uma lenda sobre um negro que é alforriado após fazer uma
promessa, num ato de fé e súplica. Alguns pontos merecem ser conside-
rados. Em primeiro lugar, percebe-se que o único escravo que surge na
narrativa como personagem, o faz como um mito; alguém que, de fato,
não existiu. É a figura do escravo anônimo, em meio a tantos senhores
com nome e sobrenome, e aparece muito mais para ilustrar uma história
cristã, carregada de fé e benevolência do que para sinalizar a existência
de uma população escravizada em Alagoinhas.25
Conforme sinalizou Hebe Mattos, a política municipal era um aspecto
importante da vida política da Primeira República e o coronel republicano,

de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador, 2013.


24
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, jun. 1989.p. 13. Disponível em: <http://bibliotecadi-
gital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417>.
25
BARREIRA, op. cit., p. 97.

107
Aline Najara da Silva Gonçalves*

enfraquecido com a perda da autoridade senhorial após a abolição, precisava


agora do poder de administrar as benesses e o poder repressivo do Estado.26
Neste sentido, a obra do Américo Barreira se faz um reflexo da tentativa
de manutenção da autoridade e legitimação do discurso desses coronéis,
senhores do pós-abolição imediato em Alagoinhas. Retomando Pollack,
vale lembrar que “a memória é um fenômeno construído”, especialmente
a memória que se pretende oficial, vinculada a propósitos políticos, como
esta que ora analisamos. As preocupações do momento constituem um
elemento de estruturação da memória, e quando se trata de uma memória
coletiva sua estruturação tende a ser fortemente influenciada pelo ponto
de vista político e se constitui num objeto de disputa constante.27
Conforme sinalizado por Barreira, “tem pretensões este livro”28, e a
intencionalidade da escrita revela que aquele “documento não é inocente”.
Como bem lembrou Jcques Le Goff, “o documento é produzido, consciente
ou inconscientemente pelas sociedades do passado, tanto para impor uma
imagem desse passado, quanto para dizer ‘a verdade’”.29 Ao analisar o que
denomina “os materiais da memória coletiva e da história”, Jacques Le
Goff concebe a história como a “forma científica da memória” e afirma:
De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu
no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que
operam no desenvolvimento temporal do mundo e da huma-
nidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do
tempo que passa, os historiadores.30

26
MATTOS, Hebe. Trabalho, voto e guerra civil: algumas considerações interpretativas
sobre pós-abolição e coronelismo. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História
– ANPUH. São Paulo, julho de 2011.
27
POLLAK, Memória e identidade social, p. 204.
28
BARREIRA, op. cit., p. 7.
29
LE GOFF, Jacques. A Nova História. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 1990. p. 54.
30
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. História e Memória. 4.ed. Campinas:
Editora da Unicamp, 1996. p. 535.

108
O poder político e a escrita sobre Alagoinhasnos pós-abolição imediato

Cabe aqui a apropriação de uma questão levantada por Le Goff:


“Quem detinha, numa sociedade do passado, a produção dos testemu-
nhos que, voluntária ou involuntariamente, tornaram-se os documentos
da história?”31 O olhar sobre Alagoinhas e seu município encontra neste
questionamento e na relação entre a História e a memória coletiva
apresentada por Le Goff o terreno fecundo para entender a intenção
da obra de Barreira e o que Pollak conceituou como um “trabalho de
enquadramento da memória”, um trabalho que, segundo ele, é parcial-
mente realizado por historiadores orgânicos e se constitui na tarefa de
enquadrar a memória visando a formação de uma história nacional.32
Ao analisar a produção realizada por intelectuais da Arcádia Iguassu-
ana entre 1955 e 1970 — período contemporâneo à escrita de Salomão
de Barros —, Maria Lúcia Alexandre destacou que ali se elaborou uma
narrativa que estava a serviço de uma ordem social em mudança e o
“fazer história” iguaçuano era, antes de tudo, uma técnica, “por isso,
a investigação está pautada em “valores tradicionais” e “personagens
pretéritos” das narrativas”. Vale ressaltar que, segundo a autora, dentre
os escritores que analisou, todos fizeram parte de instituições como o
Instituto Histórico e Geográfico de Nova Iguaçu (IHGNI), reforçando
o lugar de guardiões da memória vinculado aos IHG, principalmente
em função do papel desempenhado pela arcádia para a construção de
uma memória sobre a cidade.33
Considerando a seletividade peculiar à memória, bem como o seu
papel enquanto um elemento constitutivo da identidade individual e
coletiva, é possível compreender que a seleção feita por Barreira forjou

31
LE GOFF, Jacques. A Nova História, p.54.
32
POLLAK, Memória e identidade social, p. 206.
33
ALEXANDRE, Maria Lúcia Bezerra da Silva. Um cenáculo de letrados: sociabilidade,
imprensa e intelectuais a partir da Arcádia Iguassuana de Letras (AIL) (Nova Iguaçu, –
1955-1970). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Programa de Pós-Graduação em História. 2015. 203 f

109
Aline Najara da Silva Gonçalves*

uma memória a partir do campo de interesses e identificações de um


grupo específico, que, naqueles anos, controlava a política, a economia
e as relações de poder. Jaques Le Goff afirmou que o documento,
[...] é antes de mais nada, o resultado de uma montagem,
consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade
que o produziram, mas também das épocas sucessivas, durante
as quais continuou a viver [...] continuou a ser manipulado,
ainda que pelo silêncio.
Le Goff lembra, ainda, que em fins do século XIX e início do sécu-
lo XX — época que coincide com a escrita do livro em questão —, o
documento escrito, ainda que resultasse da decisão de um historiador,
apresentava-se por si mesmo como uma prova histórica e sua legitimi-
dade era inquestionável. Vê-se então, que tomada como um documento,
a memória escrita por Barreira foi incorporada como uma referência e
passou a influenciar as gerações futuras. Cabe aqui retomar as consi-
derações de Pollack sobre a relação entre o trabalho do historiador e o
“enquadramento da memória”, o que para ele acaba se configurando
como um investimento, uma vez que além de enquadrar esta memória
construída, ela passa a operar por si mesma. “Cada vez que uma memória
está relativamente constituída, ela efetua um trabalho de manutenção,
de coerência, de unidade, de continuidade, da organização”.34
Isso pode ser verificado quando é analisada a escrita de Salomão Barros.
Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas (Figura 3) foi publicado em
1979, portanto, setenta e sete anos após a publicação de Alagoinhas e seu
Município. É evidente ali a influência exercida pelo escrito de Barreira,
que segundo Barros, foi seu “guia e incentivo”.35

34
Ibidem.
35
BARROS, Salomão. Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas. Salvador: Artes Grá-
ficas, 1979.

110
O poder político e a escrita sobre Alagoinhasnos pós-abolição imediato

Figura 3 – Capa do livro Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas

(Fonte: Arquivo pessoal da autora)

Salomão Barros nasceu em 27 de junho de 1899. Foi também


editor do “O Popular”, na segunda fase do jornal. Além disso, foi pro-
motor público da Comarca de Alagoinhas entre 1931 e 1942 e atuou
muito tempo como tesoureiro, escriturário e gerente de agências da Caixa
Econômica Federal em Alagoinhas e na capital. Assim como Alagoinhas e
seu município, Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas traz constantes
referências a Alagoinhas como uma “cidade de tanta gente significante e
boa. [...] nobremente servida por famílias de sobrenome”, como sinalizou
Osvaldo Devay de Sousa, na apresentação do livro.36

36
A julgar pelo sobrenome incomum na região, é possível que Osvaldo Devay de
Sousa seja descendente materno de Pedro José Devay, presidente do Conselho Mu-
nicipal Republicano em 1890 e um dos principais nomes referentes ao movimento
republicano em Alagoinhas. Desse modo, percebe-se a perpetuação do interesse de
membros da elite local na manutenção da memória de exaltação dos “homens bons”
alagoinhenses. Natural de Alagoinhas, Osvaldo Devay era filho de José Hermenegildo
de Sousa. Médico e Bacharel em Direito, era também escritor e “incentivador da boa

111
Aline Najara da Silva Gonçalves*

Determinado aprofundar o escrito de Américo Barreira, Salomão Bar-


ros retomou o “mito” da fundação da cidade apresentado anteriormente
a partir da chegada de um padre português em fins do século XVIII —
um “homem inteligente e de família nobre” —, cuja identidade era até
então desconhecida. Barros o identificou como João Augusto Machado
e afirmou ter sido informado por intermédio de um [suposto] descen-
dente do vigário. Diz-se que a ocultação do seu nome se deu devido à
descendência que o seguia, algo impróprio para um sacerdote católico.
No prefácio do livro de Salomão Barros, Thales de Azevedo afirmou
que escritos como os de Américo Barreira e de Salomão Barros são
concebidos como “monografias municipais”, um gênero que, apesar de
se aproximar mais das memórias pessoais, não se desliga dos arquivos.
Cabe aqui a problematização de duas questões que persistem no que diz
respeito à escrita da História: por um lado, a perpetuação do silêncio que
se abate sobre as populações negras, sua agência e seu protagonismo em
determinados escritos e, por outro, a forma como alguns historiadores,
em especial pesquisadores locais, ainda se apropriam das narrativas de
Américo Barreira e Salomão Barros como referências, não como fontes
a serem interrogadas e questionadas.
À luz de Halbwachs, Pollack entendeu que um dos elementos cons-
titutivos da memória são os “acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa se sente pertencer”, bem como por pessoas,
personagens e lugares. Ao que parece, tratar da trajetória e da memória
histórica das populações negras ainda é um desafio. Como assinalou Ana
Rios e Hebe Mattos, “com a abolição do cativeiro, os escravos pareciam
ter saído das senzalas e da história”.37 O “paradigma da ausência” relacio-
nado aos trabalhadores escravizados é o ponto central da crítica feita por

norma familiar”. Cf. BARROS, op. cit., p. 290.


37
RIOS, Ana Maria e MATTOS, Hebe. O pós-abolição como problema histórico:
balanços e perspectivas. Topoi, v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004, p. 170-198.

112
O poder político e a escrita sobre Alagoinhasnos pós-abolição imediato

Álvaro Nascimento, que discutiu o silenciamento acerca do trabalhador


negro nas últimas décadas do século XIX e no pós-abolição, em especial,
pela historiografia que se destina a investigar os “mundos do trabalho”,
uma historiografia que, segundo ele, se recusa a enegrecer e reforça o
embranquecimento. “Que dificuldades citam os historiadores para não
incluir essa urgente discussão em suas pesquisas?”, questionou. A leitura
do seu texto permite considerar que um dos caminhos apontados por
Nascimento para quebrar este paradigma diz respeito à problematização
do que a história “diz” sobre o negro e sobre o que “deveria dizer”, em
especial a crítica das fontes, principalmente no que tange aos quesitos
cor/raça/classe.
A propósito da análise documental, é oportuna a crítica relacionada
às apropriações dos escritos acerca dos vultos e feitos de Alagoinhas e seu
município. Ao serem tomados como referências em pesquisas e investi-
gações históricas que têm como propósito o fazer historiográfico sobre
a cidade de Alagoinhas, o historiador deve atentar para não incorrer no
equívoco de tomá-las como verdades incontestáveis, desconsiderando,
conforme pontuou Pierre Nora, que “há tantas memórias quantos grupos
existem”, de modo que nenhuma fonte deve ser utilizada sem que seja
problematizada e em certa medida, questionada.38 É a crítica à fonte que
nos permite “explicar as lacunas da história e assentá-la tanto sobre esses
vazios quanto sobre os cheios que sobreviveram”, sendo assim, é tempo
de desenquadrar memórias que silenciam e ocultam personagens, pessoas
e lugares. É tempo de (re)escritas e (re)descobertas; tempo de desarqui-
vamento de narrativas e (re)conhecimento de sujeitos e experiências
invisibilizados pela história... Tempo de revelar as memórias ocultadas
em favor daquelas que deveriam se guardar.

38
NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Projeto His-
tória, São Paulo, n. 10, dez. 1993. P.7-28. Disponível no site http://revistas.pucsp.
br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763.

113
Aline Najara da Silva Gonçalves*

FONTES
BARREIRA, Américo. Alagoinhas e seu município. Notas e apontamentos
para futuro. Alagoinhas: Typografia do Popular, 1902.

BARROS, Salomão. Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas. Salvador:


Artes Gráficas, 1979.

Registros de Leis e Resoluções do Conselho de Alagoinhas, 1898-1902. Livro n°


03. Arquivo da Câmara Municipal de Alagoinhas.

REFERÊNCIAS
GONÇALVES, Aline Najara da Silva. Do escravo que negocia ao liberto
imperfeito: breve painel sobre alforrias na Vila de Santo Antônio de
Alagoinhas (1872‐74). In: Anais do XXIX Simpósio Nacional de História –
Contra os preconceitos: história e democracia. UNB, Brasília, 2017. Disponível
no site: www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1502673409_
ARQUIVO_DOESCRAVOQUENEGOCIAAOLIBERTOIMPERFEITO-
AlineNajara.pdf.

. Uma cidade sem escravos(?): Memória, História e silêncio


em Alagoinhas (BA). In: Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História
– Lugares dos Historiadores: Velhos e Novos Desafios. UFSC, Florianópolis,
2015. Disponível no site: http://www.snh2015.anpuh.org/resources/
anais/39/1439213417_ARQUIVO_Alagoinhas-umacidadesemescravos-
ANPUH2015.pdf.

LE GOFF, Jacques. A Nova História. Tradução de Eduardo Brandão. São


Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 54.

.  Documento/Monumento. História e Memória. 4.ed. Campinas:


Editora da Unicamp, 1996. p. 535.

LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas da biografia. In: René Rémond.

114
O poder político e a escrita sobre Alagoinhasnos pós-abolição imediato

Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.p. 145. Disponível no
site <https://docslide.com.br/documents/remond-rene-por-uma-historia-
politica.html>

MATTOS, Hebe. Trabalho, voto e guerra civil: algumas considerações


interpretativas sobre pós-abolição e coronelismo. In: Anais do XXVI Simpósio
Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho de 2011.

NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares.


Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993. P.7-28. Disponível no site
http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763.

OLIVEIRA, Marcelo Souza. Xavier Marques entre os intérpretes do Brasil: raça


e nação na Primeira República. Tese (doutorado) – Universidade Federal da
Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador, 2013.

POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos,


Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, jul. 1992. p. 203. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941/1080>.

. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos,


Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, jun. 1989.p. 13. Disponível em: <http://
bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417>.

RIOS, Ana Maria e MATTOS, Hebe. O pós-abolição como problema


histórico: balanços e perspectivas. Topoi, v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004, p. 170-
198.

SCHWARCZ, Lília Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições


e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras,
1993.

SILVA, Aldo José Morais. Instituto Geográfico e Histórico da Bahia: Origem e


estratégias de Consolidação Institucional, 1894-1930. (Tese de Doutorado em
História), UFBA, Salvador, BA. 2006.

115
Aline Najara da Silva Gonçalves*

TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia


mundial. São Paulo: EdUSP, 2011.

116
Notas sobre biografia a partir da tese um caminho
brasileiro para o socialismo. A trajetória política de
Mário Alves (1923 – 1970)

Ede Ricardo de Assis Soares


Doutorando em História (UFBA)
Email: ede.soares@gmail.com

INTRODUÇÃO

A escrita da história é o passo final de um processo caótico. Durante o


processo criador, o historiador é perpassado por influências diversas,
cabendo-lhe, então, a busca pelo equilíbrio necessário à legitimidade de
seu trabalho no campo da história.
Em ensaio oriundo das conferências em homenagem ao historiador
inglês George Macaulay Trevelyan, realizadas no ano de 1961, Edward
Hallet Carr, buscou uma alegoria para representar o trabalho dos historia-
dores e sua relação com a sociedade. Carr evocou a imagem que apresenta
os historiadores como membros de uma procissão em movimento. Desse
modo, o que é produzido no campo da história depende dos caminhos
escolhidos pelo referido cortejo e da posição que cada historiador ocupa
neste processo. Em outras palavras, assim como acontece com todos os
seres humanos em suas vidas, as posições e escolhas dos historiadores
sofrem influência direta da sociedade. Não por acaso, essa reflexão está

117
Ede Ricardo de Assis Soares

registrada no primeiro capítulo do livro Que é História, intitulado So-


ciedade e Indivíduo.1
De algum modo, a imagem é análoga à reflexão marxiana sobre a
condição humana e a história, onde os homens fazem a história, mas não
a fazem do modo que desejam. A humanidade, segundo Karl Marx, atua
sob as limitações oriundas das condições relegadas pelo passado. Aliás,
foi sob essa orientação que ele escreveu “O Dezoito Brumário de Louis
Bonaparte”, onde ele analisa como o sobrinho de Napoleão Bonaparte
chegou ao poder na França, em meados do XIX. Homem que segundo
Marx, possuía um “cérebro de toucinho”.2
Se a visão da história de cada historiador é determinada por sua
posição na procissão, o mesmo se dá com a biografia. Considerada um
gênero compósito, híbrido e controverso, esta forma de escrever história
obteve legitimidade entre os intelectuais e tem crescido dentro e fora dos
círculos acadêmicos.
A biografia tem crescido com o interesse da sociedade pela vida privada.
O mercado editorial tem alimentado a avidez com a qual as pessoas querem
saber os detalhes íntimos de personalidades públicas ou mesmo de anôni-
mos que muitas se tornam ilustres após a publicação de seus hábitos ditos
cotidianos. Entre estes, tornou-se possível incluir desde os antecedentes
familiares e educação moral, aos seus gostos e fantasias sexuais. Entre alguns
autores, a temporada de caça foi aberta e cada um busca escolher aquele
biografado que mais convém, seja por opção ideológica ou política, ou
mesmo pelas altas cifras por vezes oferecidas pelo mercado editorial. Aliás,
alguns buscam aliar ambos os interesses, camuflando a comercialização
da produção científica, a exemplo das biografias encomendadas a alguns
historiadores e historiadoras por grandes editoras.

1
CARR, Edward Hallet. Que é história? Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 3ª Edição,
1982. 7ª reimpressão, 1996.
2
MARX, Karl. O Dezoito brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2006.

118
Notas sobre biografia a partir da tese um caminho brasileiro para o socialismo.
A trajetória política de Mário Alves (1923 – 1970)

Para Sabrina Loriga, a redescoberta da biografia está ligada principal-


mente a experimentos no campo da história que remetem ao cotidiano
e a outras “subjetividades”, como a história oral, a cultura popular, ou
a história das mulheres, por exemplo. O objetivo de colocar em cena
os excluídos, estendendo a envergadura dos estudos históricos, colocou
novamente o valor do método biográfico em evidência. Este contexto
foi marcado por defensores e críticos da biografia: uns viram-na como
uma capitulação, por entender que o método colocava de lado a histó-
ria-problema; seus defensores argumentaram que a biografia superava as
análises estruturais, estendendo e aprofundando a noção de indivíduo. 3
Entendemos que o termo “biografia” é plural, visto que evoca diversas
formas de escrita de uma vida. No que diz respeito às especificidades
da escrita biografia de historiadores e de jornalistas, concordamos com
Benito Schmitd quando este afirma que existem especificidades que
“[...] só os historiadores vêem”, em contraposição ao entendimento de
Fernando Morais, que escreveu uma biografia sobre Assis Chateaubriand
e afirmou que não queria concorrer com a produção acadêmica, mas
a que existem “[...] minúcias que só o jornalista vê”.4 Elementos que
retomaremos à frente.
Nesse ensaio, deter-nos-emos na “Biografia histórica”, que tem se
tornado uma alternativa cada vez mais comum aos pesquisadores aca-
dêmicos na escrita de suas dissertações e teses de pós-graduação. Essa
escolha encontra explicação na obra que analisaremos a seguir, intitulada
“Um caminho brasileiro para o socialismo. A trajetória política de Má-
rio Alves (1923-1970)”, de autoria de Gustavo Falcón e apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História, PPGH, da UFBA, no ano de
2007. Tese de doutorado que foi publicada pela Edufba, no ano seguinte,

3
LORIGA, Sabrina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (org.) Jogos de
escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro, FGV, 1998, p. 225-26.
4
SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias... historiadores e jornalistas: aproxi-
mações e afastamentos. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 10, nº 19, p.5.

119
Ede Ricardo de Assis Soares

sob o título: Do Reformismo à luta armada. A Trajetória política de Mário


Alves (1923-1970).5
A impressão é de que o autor optou por combinar os estilos dos
historiadores e dos jornalistas na obra. Sabe-se que em ambos, há uma
reconhecida influência da literatura, o que significa a inserção da ficção
e o uso de determinadas técnicas narrativas.
No caso da biografia de Mário Alves, o autor se furtou a relacionar
mais detidamente a vida do militante comunista aos problemas internos do
Partido Comunista Brasileiro, PCB, e deste com a vida política brasileira.
Afinal, dentre outras coisas, o Partido Comunista acabou responsabilizado
pelo advento do golpe civil-militar de 1964, tanto pela direita quanto
por parte da esquerda brasileira. E Mario Alves era membro do Comitê
Central, além de ser um dos mais importantes formuladores da política
do PCB, especialmente a partir da formulação da “Declaração de Março
de 1958”, que é considerado a refundação do PCB.6
Giovanni Levi afirma que a biografia tem sugerido as mais relevantes
questões sobre o passado.7 No caso de uma biografia sobre Mário Alves,
considerando sua relevância enquanto destacado homem do Partido,
espera-se que o trabalho elucide algumas questões e sugira outras, como
bem sugere Levi, enriquecendo o conhecimento histórico sobre as ações
do PCB, considerando que existem minúcias que só o historiador vê,
fazendo a crítica interna e externa das fontes, por exemplo.
A partir de ensaios publicados no final da década de 1950, o autor
optou por ressaltar a capacidade intelectual de Mário Alves a partir de

5
Falcón, GUSTAVO. Do Reformismo à luta armada. A trajetória política de Mário
Alves (1923-1970). Salvador: EDUFBA, 2008.
6
Ver: SEGATTO, José Antonio. Reforma e revolução. As vicissitudes políticas do PCB
(1954-1964).
7
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO,
Janaína (org.) Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1996.

120
Notas sobre biografia a partir da tese um caminho brasileiro para o socialismo.
A trajetória política de Mário Alves (1923 – 1970)

ensaios publicados em jornais partidários. Centrando em seu biografado


os elogios e às vezes colocando-o em oposição ao seu partido, o que não
suscitou respostas a questões ainda em aberto pelas macro-investigações.
É possível que o ímpeto de denunciar o fim trágico de Mário Alves,
assassinado brutalmente pelos agentes da ditadura no ano de 1970, tenha
ofuscado inconscientemente as contradições, erros e conflitos vividos pelo
biografado. Observamos a ausência de um problema de pesquisa mais
bem delineado acabou conduzindo a uma tênue frágil ligação da perso-
nagem aos palpitantes problemas políticos do contexto, ou seja, reflexões
sobre a relação entre indivíduo e sociedade, e entre reforma e revolução.
Nesse ponto, o trabalho de Gustavo Falcón se assemelha às biografias
jornalísticas, que não tem como elemento central a crítica interna e ex-
terna das fontes e a reflexão a partir de um problema de pesquisa, apesar
de a obra não se utilizar da invenção, como fazem deliberadamente os
jornalistas.8

BIÓGRAFO E BIOGRAFADO: CRIADOR E CRIATURA


Em 2010, Gustavo Falcón relançou o livro “Os Coronéis do Cacau”.
Obra que é o resultado do estudo de sua dissertação de mestrado em
Sociologia, com ampla divulgação pelas editoras Solisluna e LDM, como
ainda é possível verificar no blog “Jeito baiano”, do jornal A Tarde.9
Segundo o blog, o sociólogo, doutor em História e professor da Uni-
versidade Federal da Bahia, UFBA, Gustavo Falcón nasceu em Salvador
e foi dirigente do comitê secundarista da organização Revolucionária
Marxista Política Operária – POLOP, durante a ditadura. Elemento que
o autor fez questão de ressaltar em entrevista aos repórteres do blog “Jeito

8
SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias... historiadores e jornalistas: aproxi-
mações e afastamentos. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 10, nº 19, p. 7-8.
9
Ver: http://jeitobaiano.atarde.uol.com.br/?tag=gustavo-falcon. Acesso em 28 de
novembro de 2017.

121
Ede Ricardo de Assis Soares

baiano”. Segundo Falcón, suas pesquisas são resultado de sua formação


e atuação na POLOP, onde, segundo o articulista, a então Presidente
Dilma Roussef havia militado.10
Vê-se que a motivação do autor em escrever sobre Mário Alves é
resultado de seu posicionamento político no campo da esquerda, o que
de modo algum penaliza o intento do autor. Aliás, é importante ressaltar
que a obra aborda um período extenso da vida política brasileira, tendo
como elemento balizador a vida de Mário Alves, sendo que o autor não
se furta em buscar em seus antecessores elementos para explicar as mo-
tivações pessoais e políticas do líder comunista.
O Capítulo I da tese, intitulado: Seqüestro, prisão, tortura, assassinato
e ocultação de cadáver. Desaparecimento político no Brasil dos anos 70 tem
início com uma análise do contexto que antecedeu o golpe de 1964,
apresentando ao leitor personagens importantes e o contexto social e
político até o putsch. Em seguida, Falcón analisa as condições da esquer-
da brasileira em sua luta contra a ditadura, apresentando o processo de
criação do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, o PCBR, onde
Mário Alves teve um papel fundamental.
A prisão e a tortura de Mário Alves são apresentadas no tópico Oito
horas de suplício, no qual Falcón busca reconstituir os momentos finais
da vida de seu biografado, detalhando ao máximo todo o processo: afo-
gamento, espancamento com cassetete que arrancavam pedaços da pele,
esfolamento com escovas de aço, até o assassinato por empalamento,
levado a cabo pelos agentes da ditadura brasileira. Aliás, esse recurso re-
trospectivo é bastante eficaz para convencer o leitor a tentar entender os
motivos daquele fim trágico. Afinal, quem foi aquele revolucionário que
mesmo frente à dor excruciante, nada revelou aos seus algozes? Questão

10
FALCÓN, Frederico. Um caminho brasileiro para o socialismo. A trajetória política
de Mário Alves (1923 – 1970). Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em
História (PPGH), da Universidade Federal da Bahia, 2007, p.13.

122
Notas sobre biografia a partir da tese um caminho brasileiro para o socialismo.
A trajetória política de Mário Alves (1923 – 1970)

que só poderia ser respondida através de uma biografia, como é o caso


do trabalho de Falcón.11
No Capítulo II, intitulado: De Sento-Sé a Salvador: das origens serta-
nejas à luta anti-fascista ( 1923-1947 ), o autor dá inicio a uma narrativa
cronológica, partindo do século XIX, em Sento-Sé, às margens do Rio
São Francisco, onde o bisavô do biografado, o Coronel José Nunes Sen-
to-Sé, é apresentado como um respeitado chefe político da localidade
e patriarca da família. Falecido em 1888, o Coronel teve duas filhas:
Amélia Clara e Basília Clara. Segundo o autor, Amélia Clara teve nove
filhos com o médico Juvêncio Alves. Dentre estes, nascera Julieta, mãe
de Mário Alves.12
Gustavo Falcón afirma que Juvêncio, avô de Mário Alves, foi deputado
diversas vezes, chegando a ser convidado à presidência da província de
Alagoas, convite que ele declinou, elegendo-se, em 1901, para o senado
estadual.
O autor não deixa claro qual o sentido desses antecedentes e segue
imediatamente afirmando que Mário Alves é fruto do segundo casamento
de sua mãe, dessa vez com Romualdo Leal Vieira. Fica implícita a ideia
de que a política era uma tradição familiar, visto que seu bisavô e avô
exerciam cargos públicos e de liderança, o que de alguma forma ajudaria
a explicar a futura adesão à política do biografado.
Nascido em 14 de junho de 1923, Mário Alves e a sua família des-
locam-se por diversas cidades até estabelecer residência em Salvador.
Em1927, a família Souza Vieira sai de Sento sé e vai para o Rio de Ja-
neiro. Romualdo, pai de Mário Alves, sustenta a família trabalhando na
imprensa carioca. Eles ficam no Rio até 1932 quando decidem vir para

11
FALCÓN, Frederico. Um caminho brasileiro para o socialismo. A trajetória política
de Mário Alves (1923 – 1970). Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em
História (PPGH), da Universidade Federal da Bahia, 2007, p.32.
12
Idem, p.48.

123
Ede Ricardo de Assis Soares

Uruçuca, no sul da Bahia. Quatro meses depois se mudam para Vitória,


no Espírito Santo, onde passaram oito meses. No ano de 1933, seguem
para Salvador, onde Romualdo foi trabalhar como agente administrativo
da Air France Brasil.
Nesse momento, Raul Alves, então patriarca da família e padrinho
de Mário Alves, havia acabado de ser nomeado Procurador Regional
da República. Segundo o autor, Getúlio Vargas chegou a lhe oferecer
a chance de governar a Bahia por conta de sua simpatia junto ao líder
do então governo provisório, pós Revolução de 1930. Raul declinou do
convite e pediu um cargo mais condizente com a sua formação.
Segundo Falcón, Raul Alves era um intelectual que tinha inclinação
para a literatura, tendo publicado dois romances: “O Canastra e Toto
Frazão” e “O Sociólogo Matuto”, onde explora a cultura da região do
Médio São Francisco. Foi ele que identificou o talento de Mário Alves,
depositando suas esperanças intelectuais e políticas.
Não por acaso, o autor entende que Romualdo exerceu grande in-
fluência intelectual ao seu filho quando passou a integrar a equipe do
recém inaugurado jornal soteropolitano “Estado da Bahia”. No entanto,
a ênfase de Falcón é na influência de Raul junto a Mário Alves, a despeito
de Romualdo ter também passado a integrar a elite intelectual baiana
quando tornou-se secretário da redação. 13
Apesar de o autor não se desenvolver e defender uma tese sobre o
processo de formação intelectual de Mário Alves, ele aponta indícios
ao demonstrar a influência de seu pai e de seu padrinho, ambos ligados
à Bahia intelectual da década de 1930. Para nós, importa o conjunto
dessas relações. Certamente que esses homens influenciaram-no. Afinal,
todo indivíduo é membro de uma sociedade e desde os primeiros anos é

13
FALCÓN, Frederico. Um caminho brasileiro para o socialismo. A trajetória política
de Mário Alves (1923 – 1970). Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em
História (PPGH), da Universidade Federal da Bahia, 2007, p.60.

124
Notas sobre biografia a partir da tese um caminho brasileiro para o socialismo.
A trajetória política de Mário Alves (1923 – 1970)

moldado por ela. Nascer numa família de origens oligárquicas e possui-


dora de capital intelectual e político foram elementos importantes para
a formação de Mário Alves.
Falcón afirma que próximo à fase adulta, Mário Alves começou a ter
contato com boemia e com a vida política da cidade de Salvador, par-
ticipando dos movimentos contra o fascismo e ao advento da Segunda
Guerra.
Em 1939, com 16 anos, ele ingressa no Comitê Regional, CR-BA, do
Partido Comunista, em meio à mobilização contra a Guerra. Em 1942,
Mário Alves já figura entre os oradores da comemoração do aniversário
de Getúlio Vargas, representando a União dos Estudantes da Bahia, a
UEL. Ainda em 1942, Mário Alves estreou na carreira jornalística, como
repórter de setor de O Estado da Bahia, jornal onde seu pai trabalhava
e onde possuía amigos influentes, apesar de o autor não fazer menção a
esse fato nesse momento.14
O autor avança nos fatos, lembrando que em 1945, Mário Alves
terminou o curso de Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras, em Salvador. O autor não problematiza se essas e outras ações
de Mário Alves são fruto da orientação do CR-Ba ou do PCB, depois da
chamada “Conferência da Mantiqueira”, realizada em 1943 no Rio de
Janeiro, onde ele esteve presente quase que por acaso. Como mencionamos,
essas são algumas das melhores contribuições de um estudo biográfico: a
possibilidade de compreendermos a organização e o funcionamento dos
agrupamentos e instituições a partir da trajetória individual.
É importante lembrar que Mário Alves foi da primeira turma do
curso de Ciências Sociais da Faculdade de filosofia, iniciado em 1943,
juntamente com João Batista de Lima e Silva e Alberto Vita, também
membros do Partido. Por quais motivos esses militantes optaram pelo
curso de Ciências Sociais? Teria alguma relação com o estudo do marxismo

14
Idem, p. 65-6.

125
Ede Ricardo de Assis Soares

promovido pelo PCB? Vale lembrar que o curso era para a formação de
professores, mas quais as implicações deste fato?
Em 1945, o autor assinala que Mário Alves deixa “O Estado da
Bahia” e passa à direção de “O Momento”. Dia em que foi cooptado
para a direção do CR-BA. Segundo o autor, a partir de então Mário
Alves passou a estar na direção da maior parte das ações dos comunistas
e afirma “[…] na frente partidária, foi dos mais destacados nomes do
PCB de sua geração”.15
Talvez uma dos elementos mais interessantes seja o fato de a direção
nacional do PCB ter programado a ida de Mário Alves para o Rio de
Janeiro para o ano de 1947. Cooptação que para o autor se explica pelo
interesse da direção partidária de reorganizar a sua imprensa.
Por outro lado, pergunta-se: de que modo aquele jovem de 22 anos
conseguiu alçar à direção partidária em tão pouco tempo? Teria sido fruto
de uma simples coincidência a aparição de Mário Alves na Conferência
da Mantiqueira, em 1943, como representante não oficial do CR-BA?
Teria sido sua formação em ciências sociais? Quais eram as relações de
Mário Alves com os membros da CNOP que reorganizaram e dirigiam
o Partido? Certamente que o remendo nesses fios soltos da trama abrirá
um novo horizonte para a compreensão da atuação do PC e dos comu-
nistas durante aqueles anos.
No capítulo III, intitulado: Elites e contra-elites e vanguarda num
contexto provinciano, Salvador, 1930/1950, Falcón faz uma ampla revi-
são bibliográfica sobre o conceito de elite, chegando à conclusão de que
Mário Alves optou por fazer parte de uma contra-elite ideológica, não se
distanciando, tanto quanto parece, das aspirações de suas origens de classe.
Sobre ser membro de uma contra-elite, não podemos deixar de
lembrar que Mário Alves vinha de uma família tradicional que possuía

15
Idem, p. 76.

126
Notas sobre biografia a partir da tese um caminho brasileiro para o socialismo.
A trajetória política de Mário Alves (1923 – 1970)

fortes ligações políticas. Fato que o ajudavam em sua militância, ainda


que esta fosse desempenhada num partido de esquerda, como o PCB.
Situação semelhante ocorreu com João Falcão, que na obra: O Partido
Comunista que eu conheci: 20 anos de clandestinidade, por diversas vezes
admite que sua condição social o ajudasse a realizar tarefas do Partido e
até para livrá-lo da cárcere estadonovista.16
Cabe lembrar que todos os indivíduos vivem numa rede de depen-
dência, não bastando a vontade para rompê-la, como afirma Norbert
Elias. Neste caso, a adesão de Mário Alves ao comunismo não o retira do
tecido social, apesar de o PCB representar um inimigo perigoso para a
classe dominante e para o Estado. Assim como João Falcão, Mário Alves
soube administrar esse conflito de pertencer a uma classe, mas tornar-se
um militante defensor da classe operária. Talvez essa seja a origem do seu
prestígio no PCB: boa formação intelectual, posse de recursos financeiros,
bons contatos na sociedade, trânsito em diversos espaços e prestígio na
Bahia e no Rio de Janeiro.
Norbert Elias considera, inclusive, que cada indivíduo move-se dentro
de um limite estabelecido pela própria estrutura de dependências e “[...]
vive num tecido de relações móveis que a essa altura já se precipitaram
nela como seu caráter pessoal”.17 No caso de Mário Alves, havia os limites
estabelecidos por sua classe social que ele soube gerenciar em prol de sua
carreira de revolucionário profissional.
O autor avança pelo capítulo refletindo sobre o cenário baiano,
classificando-o de atrasado, se comparado com outros centros urbanos
do país, como São Paulo e Rio de Janeiro.
Daí em diante, o autor apresenta os passos de Mário Alves dentro do
PCB, especialmente sua posição nos cursos de formação política, reali-

16
FALCÃO, João. O Partido Comunista que eu conheci: 20 anos de clandestinidade.
Salvador, Contexto e Arte editorial, 2ª edição, 2000.
17
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Zahar, 1995. p. 22.

127
Ede Ricardo de Assis Soares

zados na União Soviética e no Brasil. Cursos onde o comunista amplia


ainda mais seu prestígio por conta de seu crescente reconhecimento no
campo intelectual.
O autor destaca a crise provocada pelas denúncias contidas no Rela-
tório Secreto, apresentado pelo Secretário Geral do Partido Comunista
da União Soviética, Nikita Kruschev, em 1956. Durante esse processo,
a direção do partido passou a ser duramente atacada por seus métodos
“stalinistas” e seus membros acabaram afastados. Após longa luta interna,
um novo Comitê Central foi eleito, momento em que os baianos Gio-
condo Dias e Mário Alves ascendem à Comissão Executiva do Partido.
Segundo o autor, foram os baianos os articuladores da saída para a crise.
Ao final, esse grupo escreveu o texto justificando as alterações realizadas
e, após esse processo, foram secretamente incumbidos de pelo Secretário
Geral do PCB, Luis Carlos Prestes, a produzirem um documento que
norteasse a política do Partido. Desse processo, nasce a Declaração de
Março de 1958.
O autor aponta que Mário Alves foi adquirindo cada vez mais poder
e cargos diretivos. No entanto, Falcón não dá detalhes sobre este proces-
so. Desse modo, fica implícita a ideia de que Mario Alves foi escolhido
para ocupar tais cargos por conta de sua capacidade intelectual e de
articulação interna.
No capítulo V, intitulado: Na alta hierarquia comunista: dirigente e
formulador, Falcón emprega as publicações de Mário Alves para demons-
trar a sua capacidade de ensaísta e formulador, especialmente as matérias
do jornal pecebista “Novos Rumos”. Segundo o autor, já nesses textos,
Mário Alves demonstrava simpatia à luta armada. Aproximação que
divide os membros do Comitê Central do PCB em duas facções: uma
encabeçada por Luis Carlos Prestes e Giocondo Dias, então chamados
de “Janguistas”; e a outra porção, então chamada de “Facção Cubana” ou
“Facção Fidelista”, defensora de métodos radicais para chegar ao poder,
ao estilo da Revolução Cubana, que tinha a efetiva liderança de Mário

128
Notas sobre biografia a partir da tese um caminho brasileiro para o socialismo.
A trajetória política de Mário Alves (1923 – 1970)

Alves e Carlos Marighella. Situação interna que se agravou após o golpe


de 1964, com a imediata busca por culpados dentro do Partido.18
Falcón afirma que Mario Alves foi visitou Cuba, juntamente com
Roberto Morena, em 1961, a convite das Ligas Camponesas. Assim,
tornou-se o primeiro membro da direção do PCB a fazê-lo. Aliás, o autor
aponta para um posicionamento mais à esquerda de Mário Alves desde
o inicio do governo de João Goulart, o que se configura numa ilação
bastante sugestiva, bem ao estilo do potencial das análises biográficas.
Se por um lado, essa posição mais à esquerda criou uma disputa
interna e explicaria a saída de Mário Alves do PCB e a sua adesão à luta
armada, com a criação do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário;
por outro oferece uma importante pista sobre os bastidores da política
interna do partido. Pistas que precisam ser investigadas.
Para o autor, Mario Alves era “Franco, preciso, insubmisso, lúcido,
racional e destemido. Quando o assunto ou o momento exigiam, o bom
combate era travado”.19 Segundo Falcón, já nesse período, Mário Alves
já estava alerta quanto ao “reboquismo” de Prestes e do PCB frente ao
presidente João Goulart.
No capítulo VI, intitulado: A desilusão com o reformismo e a formação
da Corrente Revolucionária do PCB (1964-1967), Mário Alves pratica-
mente desaparece da narrativa, soterrado pelo contexto.
A reflexão gira em torno dos momentos que antecederam o golpe de
1964 e Falcón apresenta as facções que se formaram dentro do CC do
PCB. De um lado Luis Carlos Prestes e Giocondo Dias, de outro Mário
Alves e Carlos Marighella. Durante este processo, o autor afirma que
Mário Alves já era “ideólogo por excelência”, que tinha amadurecido

18
FALCÓN, Frederico. Um caminho brasileiro para o socialismo. A trajetória política
de Mário Alves (1923 – 1970). Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em
História (PPGH), da Universidade Federal da Bahia, 2007, p. 174-75
19
Idem, p. 146

129
Ede Ricardo de Assis Soares

sua leitura crítica do caráter da Revolução, levando esse debate para o


CC, sempre que possível. Nesse contexto, Mário Alves é apresentado
como um dirigente capaz de antever os problemas vindouros, bem ao
estilo dos personagens de Thomas Carlyle, como podemos observar nas
palavras de Sabrina Loriga:
Enquanto o grande indivíduo histórico-universal de Hegel
(César ou Napoleão, imortalizado no campo de batalha de Iena)
realizava inconscientemente um objetivo geral, os personagens
de (Thomas) Carlyle se distinguiam todos por uma intensa
capacidade de discernimento: não eram simples mensageiros
de uma idéia universal, mas os profetas da realidade, seres
conscientes das relações de força e de sua culpa (como nas
tragédias de Ésquilo).20
Talvez seja esse o grande desafio, equilibrar-se na análise biográfica.
Como elogiar um personagem sem parecer escorregar no excesso de
simpatia ou mesmo na ilusão biográfica?21 Como reconhecer a capa-
cidade e as vitórias dos biografados e, ao mesmo tempo, devolver-lhes
as incertezas do futuro? O Mário Alves de Falcón está sempre à frente
de seus companheiros, seja como orientador, instrutor, professor ou
dirigente. Acreditamos que uma reconstituição do tecido social que
envolvia o PCB – como amizades, alianças, inimizade e agrupamentos
aos quais Mário Alves foi ligado – ajudaria a delinear melhor a atuação
do dirigente comunista.
Em 1968, Falcón aponta que Mário Alves funda o Partido Comunista
Brasileiro Revolucionário, o PCBR, na Serra da Mantiqueira. O autor
não aponta maiores ações desse agrupamento de luta armada, aponta

20
LORIGA, Sabrina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (org.) Jogos de
escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro, FGV, 1998, p. 236.
21
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: Usos e abusos da história oral. FERREIRA,
Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (org.) Rio de Janeiro. FGV, 1996.

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Notas sobre biografia a partir da tese um caminho brasileiro para o socialismo.
A trajetória política de Mário Alves (1923 – 1970)

somente a prisão de Mário Alves e sua execução, sem maiores detalhes.


Ao final, Falcón tece diversos elogios ao biografado, afirmando este
ser um gênio desde cedo e havia encarnado “[…] no mais alto estilo as
melhores qualidades de um dirigente revolucionário: estudioso, coerente,
disciplinado, combativo, audaz, destemido, humilde, responsável”.22 Em
seguida afirma que o brilho intelectual de Mário Alves foi embotado pelo
enquadramento na vida partidária, o que guarda bastante sentido. Por
outro lado, teria Mário Alves tamanho crescimento intelectual e político
sem o Partido? Aqui, voltamos mais uma vez à relação conflituosa encer-
rada na relação entre sociedade e indivíduo, determinismo e liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Escrever uma biografia não é uma tarefa fácil e a obra de Gustavo
Falcón demonstra a crueza dessa verdade. Apesar de o autor definir seu
trabalho no campo da biografia histórica, por diversas vezes o trabalho se
apresenta como uma biografia jornalística, especialmente na ausência da
crítica interna e externa das fontes. Até porque as fronteiras entre ambas
podem ser tênues e bastantes escorregadias.
Não seria exagero afirmar que a biografia recoloca Mário Alves e
todas as problemáticas a ele relacionadas de volta à sociedade. Apresenta
a realidade dos horrores vividos pelos militantes de esquerda torturados
pela ditadura, traz à tona a discussão sobre a atuação do PCB frente ao
golpe de 1964 e à ditadura e apresenta as vicissitudes e as virtudes da
militância comunista. Afinal, a micro-análise é um olhar mais aproximado
do objeto, realçando aspectos das relações sociais que são imperceptíveis
à distância. Assim, a biografia oferece ao pesquisador a possibilidade de
acessar aspectos preciosos do tecido social, cabendo ao pesquisador fazer

22
FALCÓN, Frederico. Um caminho brasileiro para o socialismo. A trajetória política
de Mário Alves (1923 – 1970). Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em
História (PPGH), da Universidade Federal da Bahia, 2007, p. 194.

131
Ede Ricardo de Assis Soares

bom uso dessas informações, sem cair nas diversas armadilhas inerentes às
análises biográficas, como a redenção do biografado ou a ilusão biográfica.

REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: Usos e abusos da história oral.
Rio de Janeiro. FGV, 1996.

CARR, Edward Hallet. Que é história? Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 3ª
Edição, 1982. 7ª reimpressão, 1996.

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Zahar, 1995

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132
Notas sobre biografia a partir da tese um caminho brasileiro para o socialismo.
A trajetória política de Mário Alves (1923 – 1970)

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133
Trajetórias, memórias e revoluções:
arte e política em Albertina Rodrigues

Jonatas Pereira
Mestre em História (UFBA)
jamespaullistano@hotmail.com

INTRODUÇÃO

C onhecer o passado pelos olhos de outrem é percorrer pelas estradas


de suas memórias as vivências de um tempo em suas reconfigurações.
Entre permanências e rupturas, ao longo da exposição das palavras, sejam
elas ditas ou escritas, a memória seleciona, direciona, deforma, conforma,
exigindo um “manuseio” aprimorado no entrelace do frescor das fontes
e do olhar analítico ensejando o bom uso do ofício histórico.
Analisar a trajetória de um indivíduo requer um olhar atencioso às
nuanças dos relatos, àquilo que parece escapar do discurso “ensaiado”,
no preenchimento das lacunas de um “esquema” pré-elaborado, no jogo
entre o lembrar e o esquecer, por vezes perpassado pelo silenciamento, que
vai aos poucos consolidando uma memória pessoal e/ou coletiva. Nesse
ínterim, é preciso localizar o lugar de fala, os componentes desse sujeito, o
contexto experienciado, bem como as razões e consequências das escolhas
e da publicização do rememorado. Deste modo apresentamos a figura de
uma mulher que após ter vivenciado um contexto de repressão, escreveu
acerca de suas memórias, reflexões, autocríticas, deixando as marcas de

135
Jonatas Pereira

suas ações no manuscrito Fel e mel no cálice da vida: rumo à verdadeira


revolução, o que nos propicia questionar: por que não, Albertina?
Albertina Rodrigues Costa, nascida a 20 de abril de 1940, em
Salvador, capital da Bahia, era filha da Srª. Auta Augusta Rodrigues
Costa e do Sr. Alberto Costa. Iniciou sua militância ao ingressar, no
ano de 1967, na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Durante seus estudos,
ingressou no Movimento Estudantil e, no mesmo ano, ocupou o cargo
de Tesoureira Geral do Diretório Acadêmico (D. A.) da instituição.
Em 1968, período que marca um acirramento das práticas repressivas,
legitimadas pelo Estado com a imposição o Ato Institucional nº 5 (AI-
5), Albertina Rodrigues, “quando Tesoureira do Diretório da Escola
de Belas Artes, foi suspensa pelo diretor por três (3) anos, em virtude
de sua atuação no “MLE” (Movimento de Luta Estudantil), dentro e
fora da Escola.1 Em 31 de agosto de 19692, Albertina foi autuada pelo
Estado brasileiro: “Antiga militante comunista, tendo tomado parte em
vários movimentos estudantis, motivo pelo qual foi desligada da Escola
de Belas Artes de acôrdo com o Decreto-Lei nº 477/69.3” Em 1970,
recebeu um convite para fazer parte da Frente de Libertação Nacional
(FLN), ingressando, pouco depois, na organização, na qual faria sua
“primeira ação de expropriação ao capitalismo”.4 Esta, diz respeito a
uma ação conjunta com seus companheiros, na qual

1
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – Assessoria Jurídica. Setor Prontuário
GB, folha 3.950.
2
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – Assessoria Jurídica. Informações,
pasta 124, folha 317.
3
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – Assessoria Jurídica. Distrito, pasta
15, folha 5.
4
RODRIGUES, Albertina. Fel e mel no cálice da vida: rumo à verdadeira revolução.
Versão digitalizada disponível em: https://pt.slideshare.net/albertinarodrigues/fel-e-
-mel-no-clice-da-vida, 2013, p. 331.

136
Trajetórias, memórias e revoluções: arte e política em Albertina Rodrigues

na manhã do dia 21 de novembro de 1969, assaltaram os


Escritórios da Firma Construtora Presidente S/A., sita à Rua
Mayrink Veiga nº 11 – sala 504, e roubaram a importância
de Cr$ 17.352,51 (Dezessete mil, trezentos e cinquenta e dois
cruzeiros e cinquenta e um centavo) e ao saírem, deixaram afi-
xada em um arquivo de cartolina, com dizeres: “RENDA DO
PATRÃO PARA A REVOLUÇÃO – VIVA MARIGHELA.5
Antes, porém, em seu primeiro contato como Estado repressor, Al-
bertina foi levada para ser interrogada no Quartel General no bairro da
Mouraria, em Salvador, imediatamente após o golpe de 1964. Segundo
o manuscrito autobiográfico, os militares levaram-na por causa de sua
relação conjugal com o presidente da Sociedade Cultural Brasil-Cuba,
Nelson Soares Pires, que possuía uma trajetória ligada à luta política.
Albertina, ainda na década de 1960, residia em Salvador e era casada
como ator e engenheiro eletromecânico, Mário Saraiva. Envolveu-se com
Nelson Pires, coronel-médico, professor-psiquiatra na Escola de Medicina
da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que conheceu numa consulta.6
Considerado comunista e “subversivo”, Nelson Pires seria cassado e con-
denado a dois anos de reclusão, sendo obrigado a se exilar no Uruguai.7
Antes, porém, retornou à sua cidade natal, o Rio de Janeiro, de onde enviou
uma carta à Albertina solicitando que o encontrasse. Separada do filho,
em retaliação à sua traição, como também por ter contraído tuberculose,
Albertina recuperou-se e partiu ao encontro de Nelson.
Após envolver-se na militância política foi interrogada, presa, tortura-
da, até ser concedida uma liberdade condicional. Porém, ainda procurada

5
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – Assessoria Jurídica. Distrito, pasta
15, folha 1.
6
A consulta foi motivada pela resistência que Albertina tinha ao casamento o qual
fazia somente para atender a um pedido da família paterna.
7
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – Assessoria Jurídica. Informações,
pasta 124, folha 316.

137
Jonatas Pereira

pela polícia do Rio de Janeiro seguiu para São Paulo, depois para o Rio
Grande do Sul e, em seguida, passando pela Argentina, chegou ao Chile,
onde se autoexilou, ao lado do seu então companheiro, Nelson Pires, por
conta das ações realizadas na luta armada. Posteriormente, continuaram
o exílio pela Europa.
A produção de uma autobiografia feminina, a partir da experiência
de militância e luta armada durante a ditadura civil-militar no Brasil, nos
insere no âmbito tanto do dever da história, quanto no direito à memória.
Assim, na perspectiva de um artesão intelectual buscamos compreender
essa narrativa na interrelação saber-poder e suas implicações nos campos
da memória, do esquecimento e do silêncio. Do mesmo modo, ao retratar
Albertina Rodrigues percebemos o vigor de sua escrita confrontando-se
à condição de mulher submissa, cujo universo, historicamente determi-
nado por uma sociedade patriarcal, engendrou um discurso de exclusão
social e política.
Se retornarmos ao período relatado, no qual Albertina encontrava-se
às voltas com um casamento indesejado, nos finais dos anos 1950, po-
demos perceber que o discurso da loucura se impõe diante de práticas
de “desvios” de conduta de mulheres que não hesitavam em confrontar
a subordinação, como forma de deslegitimar a fala e/ou comportamento
que extrapolasse os padrões das marcações patriarcais. Logo, sabendo que
Toda história é uma construção [...]. A dita ‘loucura’[...] pa-
rece ligada claramente à chamada questão de gênero [...]. Em
geral vozes femininas, mas também masculinas falam sobre
a condição da mulher, exprimindo diferentes atitudes, numa
variedade que deixa claro que a Nova Mulher de há um século
é tão difícil de ser caracterizada.8

8
BORGES, Vavy Pacheco. Desafios da memória e da biografia: Gabrielli Brune-Sieler,
Uma vida (1874-1940). IN: BRESCIANI, Stella e NAXARA, Márcia (Orgs.) Me-
mória e (re)sentimento: indagação sobre uma questão sensível. Campinas: UNICAMP,

138
Trajetórias, memórias e revoluções: arte e política em Albertina Rodrigues

A não compreensão/não aceitação das posturas e discursos eman-


cipatórios dessa “nova mulher”, poderia enquadrá-la como perturbada
mentalmente sendo indicada aos “conselhos psiquiátricos” como alterna-
tiva para o reenquadramento. A década de 1960 revelava um mundo em
ebulição, os novos movimentos sociais ganhavam mais adeptos, maior
representatividade, e o comportamento passou a ser ressignificado. Várias
mulheres passaram a se impor e dividir o espaço público, outrora ocupado
apenas pelos homens. Esse engajamento político fortaleceu o movimento
feminista e as mulheres ganhavam voz e falavam de si. Sabia-se, então,
das mulheres pelas próprias mulheres.
A busca por espaço nos ambientes públicos e de poder transparece
a falta de equidade, no que se refere à questão de gênero no Brasil. A
delimitação do campo de atuação e a indisponibilidade da liderança
desvela a comumente e estratégica prática de silenciamento das vozes
e da dominação sobre o corpo feminino. É inegável a participação das
mulheres nos embates políticos e ideológicos, e a urgência de se fazer
escutar e garantir os espaços a elas com o objetivo de emancipá-las do
patriarcalismo e reconhecer o seu devido lugar na historiografia.
Em se tratando de um período em que às mulheres era reservado o
espaço privado, desviar-se desse era contrariar todos os preceitos que a
sanidade permitia. A partir de 1970, surgiu uma nova categoria social e
um novo sujeito coletivo. No entanto, mesmo involuntariamente, “pode
ter sido o feminismo que promoveu, em grande parte, esta homogenei-
zação ao ‘criar’ a condição feminina”.9
A mídia, por sua vez, dava cobertura às manifestações, bem como às
questões da luta feminina. Porém, em determinadas publicações, apresentava

2004, p. 296 – 299.


CUNHA, Maria Clementina Pereira. De historiadoras, brasileiras e escandinavas:
9

loucuras, folias e relações de gênero no Brasil (século XIX e início do século XX).
Disponível em: http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg5-9.pdf. Acesso
em Nov. 2016 , p. 26.

139
Jonatas Pereira

um discurso patriarcal historicamente construído que buscava se legitimar


fundamentando-se na generalização e dominação de uma suposta “condi-
ção feminina” assentindo com o diagnóstico de insanidade, seguido por
um internamento compulsório devido ao ‘desvio’ de comportamento de
mulheres que não se enquadravam no perfil social vigente. Essa “loucura”
feminina ganhava contornos próprios e bastava a figura de um pai ou esposo
insatisfeito junto a um profissional psiquiatra, e, mediante pagamento, se
acertava o internamento, mesmo não havendo motivações precisas.
A noção de “loucura” era representada pela criação de um ‘distúrbio’,
oriundo de uma ‘situação’ inerente ao privado, rompendo com a linha do
particular e alcançando o espaço público no qual se solidifica e busca a
atestação de um coletivo social com vistas à ‘normalização’, a renegação e
o aceite aos antigos padrões sociais. Parece-nos óbvio que não se tratava
de ‘recuperar’ as perdas pelo “asilamento científico”, mas de uma tentativa
de readequação/readaptação ao ‘social’.
Dessa forma poderemos ter noção dos alcances dessas perpetrações
na reprodução dos comportamentos sociais nos mais longínquos anos de
resistência feminina. A “inferioridade” incrustada às mulheres buscava
reservar-lhes aptidão a apenas um local possível para desempenhar o seu
papel social, registre-se, de submissão à família, como esposas, mães e
filhas. Não por acaso, é neste mesmo ambiente privado que elas têm a
presença marcante da dominação, sobretudo nas questões relativas ao
corpo e à família.
É nesse ínterim que a “loucura” se torna ‘plausível’ e é perseguida.
Sendo assim, nenhuma dessas “mulheres que, podendo viver de acordo
com as normas, se furtaram ao seu papel “natural”, que insistiram em viver
suas escolhas, que não se conformaram ao papel que lhes era socialmente
destinado, [...] poderia escapar ao rótulo da degeneração”.10

CUNHA, Maria Clementina Pereira. De historiadoras, brasileiras e escandinavas:


10

loucuras, folias e relações de gênero no Brasil (século XIX e início do século XX).

140
Trajetórias, memórias e revoluções: arte e política em Albertina Rodrigues

Ter participado de momentos tão importantes para a história do


Brasil, a saber, o enfrentamento à ditadura civil-militar no Brasil, por
certo conferiu a Albertina uma rica, mas não menos árdua experiência,
o que, também, nos possibilita compreender que toda essa engrenagem
pode ter contribuído para uma desestruturação psíquica.
Na condição de uma mulher de classe média, inserida no movimento
estudantil e das lutas armadas, Albertina conviveu com as incertezas e
tentativas de adaptação ao exílio, pois estava condenada a doze anos de
reclusão, longe da família, amigos e principalmente do seu filho. Seu
romance com Nelson, desde o Brasil, apesar de dar sinais de desgastes,
não foi rompido de imediato. Presa na Espanha por crime comum, ao
encenar um assalto ao apartamento em que moravam para conseguir levar
o filho ao seu encontro, Albertina foi afastada de Nelson, a companhia
mais próxima de seu país de origem.
Para além desses acontecimentos, após ter vivido uma experiência
que denominou despertar, Albertina foi considerada por seu companheiro
como esquizofrênica, sendo depois internada num hospício na França.
Seu despertar, pode ser compreendido como uma auto-descoberta, um
reencontro consigo, no qual a voz da autocrítica nos parece soar nas en-
trelinhas de suas narrativas, ao ser questionada por antigos companheiros
de luta, como afirma a seguir:
[...] Para começar Albertina morreu, não tenho pátria, não
pertenço a nenhuma classe social e muito menos a movimentos
revolucionários; só existe a humanidade, eu sou ela, sou da
Terra e nada mais. Agora eu sou um indivíduo e vocês ainda
estão individualizados com identidades separadas, apenas uni-
dos pela ambição através de ideologias. É tudo muito simples:
libertei-me desta estrutura social na qual estava presa com toda

Disponível em: http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg5-9.pdf. Acesso


em Nov. 2016 , p.15.

141
Jonatas Pereira

sua monstruosa tirania. A civilização perdeu-me! É menos um


monstro pertencente a ela, portanto enfraqueceu-se!

[...] Aconteceu em mim a verdadeira revolução e esta só o amor


faz. Estava hipnotizada, como vocês ainda estão, pensando
em fazer uma revolução através de idéias escritas por outros
julgando serem os donos da “verdade”. Estava a criar mais
desordens no mundo porque a mente não faz revoluções, ela
se revoluciona extinguindo-se. Agora, amo de verdade, ou
melhor, sou o próprio amor assim como vocês são e ainda
não se descobriram.11
Essa experiência se tornaria, anos depois, em matéria-prima para a
realização do seu reencontro com as artes, quando, após ser presa em Ala-
goinhas, interior da Bahia, em 1977, e ter sido mantida presa em Salvador,
retornou à cidade, dedicando-se ao teatro. Suas peças quando não autorais
eram adaptações de clássicos com provocações à reflexão sobre a vida, a
morte, a descoberta de si, críticas à moral ético-religiosa, à “evolução”.
Suas experiências e vivências foram molas propulsoras e fundamenta-
ram suas inquietações em suas produções artísticas, a exemplo da cena “A
descoberta do Eu”, na qual acreditava estar cumprindo seu compromisso de
levar ao teatro as sementes do “despertar”, acreditando que essa revolução
pessoal era acessível a todos.
Como uma mulher de revoluções, segundo Albertina, ela buscou
cumprir as revoluções que acreditava. A revolução dos homens, no enfren-
tamento à ditadura civil-militar, a revolução pessoal, com o seu despertar
que a teria descondicionado do aprisionamento psicológico, ético-moral
impostos à humanidade, a social, junto à sua mãe e sobrinhas, e também,

11
RODRIGUES, Albertina. Fel e mel no cálice da vida: rumo à verdadeira revolução.
Versão digitalizada disponível em: https://pt.slideshare.net/albertinarodrigues/fel-e-
-mel-no-clice-da-vida, 2013, p. 409.

142
Trajetórias, memórias e revoluções: arte e política em Albertina Rodrigues

à revolução dos animais, quando se dedicou às questões do trato com os


seres indefesos e abandonados, retirando-os das ruas e levando para o seu
pensionato em Alagoinhas.
Não podemos, também, deixar de destacar sua militância cultural na
produção das artes plásticas e cênicas que expunha suas leituras de mundo.
Nelas, impregnou suas falas, seja nas esculturas e quadros, seja nas peças
em que foi autora, diretora e atriz junto a grupos que contribuíram para a
formação e agitação cultural numa cidade que não soube, ainda, aproveitar
a oportunidade de mergulhar a arte revolucionária a que se dedicou Alber-
tina Rodrigues. Seus discursos e posturas, por vezes foram enquadrados
no âmbito da loucura, quiçá pela não possibilidade de compreensão ou
mesmo relutância em aceitar uma mulher que optou por não se encaixar
nos papéis secundários reservados à mulher, na esfera familiar, cumprindo
as obrigatoriedades dos personagens de esposas, mães e “donas” de casa.
Sua resistência aos padrões ético-morais, sócio-religiosos, não a co-
locaram como “uma mulher à frente do seu tempo”, mas uma mulher
que, em seu próprio tempo, ousou desafiar as normas de uma sociedade
patriarcal, que se utilizava, e, ainda utiliza, do “diagnóstico” de loucura
para tentar deslegitimar as lutas, os discursos e posturas emancipatórias,
que não aceitam a equidade entre gêneros, o protagonismo feminino, por
um desejo equivocado de dominação.
Seu discurso engajado, falando e exercendo a liberdade, marcou a so-
ciedade alagoinhense entre o final da década de 1980 e início da década de
2000. Um desses momentos ficou registrado no palco do Centro de Cultura,
no qual Albertina vestiu-se de nua e coberta de argila, na comentada cena
“A Estátua”, finalizava uma de suas peças com um texto forte e profundo:
“Pela primeira vez, num palco desta cidade de Alagoinhas e, também no
Taizé alguém ficou despida como nasceu; entramos pelos novos tempos!”.12

12
RODRIGUES, Albertina. Fel e mel no cálice da vida: rumo à verdadeira revolução.
Versão digitalizada disponível em: https://pt.slideshare.net/albertinarodrigues/fel-e-

143
Jonatas Pereira

Dessa forma, Albertina Rodrigues desvela sua pluralidade artística e nos


aponta para a ressignificação e resiliência da militância. Sua autobiografia
Fel e mel no cálice da vida: rumo à verdadeira revolução, nos deu acesso ao
seu ser político e artístico e nos propiciou uma imersão pelos caminhos da
história, na busca de compreender o atual contexto histórico do Brasil e as
disputas de memórias de uma democracia ainda inconclusa.
Ao analisar a contribuição de Albertina como militante de esquerda
no cenário político brasileiro, por sua vez imerso numa lógica mundial,
pensamos contribuir com os estudos históricos e historiográficos apre-
sentando-a em duas perspectivas contextuais e temporais: na militância
política, estudantil e armada, entre as décadas 1960 e 1970, bem como
na militância artístico-cultural, e não menos política, entre as décadas de
1980 e 2000.
As continuidades da resistência revolucionária na confecção de artes
plásticas e cênicas nos demonstram as possibilidades de ressignificações
das estratégias de enfrentamento aos problemas de memória que rea-
quecem os debates, haja vista, as divergentes versões acerca do Golpe de
1964. Assim, considerando o processo das disputas pela memória, como
apontado por Lucileide Cardoso:
O nosso propósito é pensar o lugar do Golpe de 64 na história
do Brasil, discutindo a memória como ato político, consideran-
do rupturas e continuidades. A relação entre história e memória
se espelha na posição ideológica dos autores, na trajetória in-
dividual ou do grupo do qual fez parte. A experiência política
é o lugar privilegiado de reconstrução do passado, marcando
críticas, autocríticas que circundam seus escritos no presente.
Em suma, a história do período é caracterizada por memórias
em disputa que lutam contra o esquecimento.13

-mel-no-clice-da-vida, 2013, p. 488.


CARDOSO, Lucileide. C. 40 anos de Golpe de 1964: Reconstruções memorialís-
13

144
Trajetórias, memórias e revoluções: arte e política em Albertina Rodrigues

A história do Brasil contemporâneo se torna objeto de interesse de


estudiosos, sobretudo, se colocados em pauta períodos em que os incon-
clusos processos e argumentações ideológicas carecem de sofisticação em
seus debates. A ditadura civil-militar, ocorrida no Brasil durante longos
vinte e um anos de repressão por parte do Estado aos seus cidadãos, é
uma dessas passagens que reclamam um aprofundamento dos estudos e
percepções. Destarte, assentindo com Pierre Nora, ao abordar os lugares
de memória, asseveramos que
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse
sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética
da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas defor-
mações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações,
susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações.
A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta
do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre
atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma re-
presentação do passado 14
Tendo em vista a inquestionável relevância da memória para a
História e para a humanidade, temos na produção de Albertina Rodri-
gues elementos para análise de sua trajetória, assim como de suas pro-
duções artísticas que apontam para uma militância que não se resumiu
apenas a arena ideológica. Sua militância se faz presente nas reflexões
e considerações da sua escrita, assim como no ensejo de propagar uma

ticas e luta contra o esquecimento. In: VII Encontro Regional de História, 2004,
Campinas. Anais do XII Encontro Regional de História: O Lugar da História. Londrina:
Editorial Mídia, 2004, p.01.
14
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História.
Revista do Programa de Estudos Pós-Graduandos em História e do Departamento de
História da PUC-SP, nº 10, São Paulo, 1993. Disponível em: http://revistas.pucsp.
br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763. Acesso em Nov. 2016, p. 09.

145
Jonatas Pereira

revolução não apenas no plano político, mas também pessoal. Talvez,


a revolução pessoal que experimentou representou o alcance que seus
sonhos almejaram e fez disso sua nova missão.
Portanto, ao ter contato com a escrita de si de Albertina Rodrigues,
temos contato com um mundo que permeou suas ideias e imaginação.
Podemos, também, ter a dimensão da sua militância que extrapola o
campo da militância tradicional, “apenas” política, alcançando as di-
mensões culturais, com produções plásticas e cênicas, sempre em busca
de atingir o sentido humano. Essa militância “não-clássica” carrega em
si, também, um componente artístico que remete à transgressão/irre-
verência característica da “geração 68” e, talvez por isso, também, seja
interessante mergulhar nesse lugar pouco visitado. Os estudos da nova
história política nos propiciam acessar esses aspectos que se localizaram
fora da agenda das esquerdas, ao pensar o indivíduo para além dos fins
pró-revolucionários, com seus traumas do efeito repressivo.
Embora seja prematuro, há quem possa afirmar a existência de
um desencantamento com a luta armada, com os rumos que o Brasil
tomou após o chamado período de redemocratização, com as agre-
miações partidárias e instituições acadêmicas. O que acertadamente
pode-se afirmar é que Albertina Rodrigues se reinventou, assim como
as formas de manter-se firme na militância contra as opressões, seja ela
do Estado, das instituições, do patriarcalismo, da desumanidade e pôs
seu testemunho e experiência à prova com suas produções. A liberdade,
só alcançada através do amor, pode ter sido o combustível para seu
engajamento e despretensão durante o tempo que esteve entre nós.
Pensar a trajetória de Albertina é buscar resgatar suas impressões
acerca do contexto experimentado durante suas militâncias, é conside-
rar a escrita de si, o registro memorialístico de quem acredita ter algo
a dizer, como se apresentam as representações do real, é estar atento
à voz feminina, ainda incipiente no que tange a sua potencialidade,
considerando sua atuação revolucionária nos campos de ação demar-

146
Trajetórias, memórias e revoluções: arte e política em Albertina Rodrigues

cadamente patriarcalista, é considerar a autocrítica e ressignificações


de si e de sua luta.
Os estudos em torno das experiências femininas têm se mostrado
em evidência nos últimos tempos. Isso decorre da auto-inserção das
mulheres nos espaços de luta e afirmação nos diversos âmbitos de in-
terseccionalidade. A resistência contra-hegemônica tem sido a tônica
para a desconstrução de espaços historicamente definidos, desvelando
as categorias identitárias ao mesmo tempo em que (re) insere estes
sujeitos e essas identidades historicamente excluídos dos espaços de
poder. Assim, podemos entender que as relações sociais e os espaços
sociais também são culturalmente construídos e, deste modo, revelam
os marcadores das diferenças sexuais nos espaços das representações.
As vivências dessas mulheres vêm conquistando espaços que lhe
foram e ainda são negligenciados, quer seja pela desqualificação, quer
seja pelo olhar estereotipado. As mulheres têm se inscrito na história
desde sua atuação em conflitos, guerras, contra a tirania, pela sua
emancipação até mesmo na sua militância em periódicos ou mesmo
nos registros históricos e memorialísticos.
Toda essa luta e resistência se ampararam na busca pela igualdade
e responsabilidade legal, na conquista e garantia dos seus direitos nos
mais variados espaços de militância, como agremiações partidárias,
associativas, levantes revolucionários e guerrilha armada colocando-as,
também, sob a ótica da suspeição, clandestinidade, prisão, tortura e
exílio.
O registro das experiências femininas seja na imprensa ou na au-
toria de produção literária contribuíram, e ainda contribuem, para a
ampliação de suas pautas em suas múltiplas perspectivas e críticas, assim
como na consolidação de sua profissionalização que, de algum modo,
desafiaram os parâmetros de dominação, demarcando sua presença nos
debates teóricos, nos espaços sociais e na conquista de políticas públicas.

147
Jonatas Pereira

Parece-nos que o discurso emancipatório de Albertina Rodrigues


encaminha para uma visão mais distante dos mecanismos maniqueístas
da luta do bem contra o mal, cultivado na disputas de memórias acerca
dos preceitos ideológicos que nos guiaram e ainda nos guiam. Quiçá,
seu desejo de liberdade trilhou concomitantemente com seu amor revo-
lucionário e nos permitiu perceber as possibilidades e interfaces de luta
em tempos de saudosismo autoritário e conservador. Transitando entre
a militância política e cultural de Albertina Rodrigues faz-se emergir a
voz ainda vibrante deste sujeito que se lançou na “aventura” contestatória
a um regime ditatorial que parece não ter concluído por completo sua
transição democrática.
Assim, refletir sobre os alcances e consequências do regime ditatorial
no Brasil se trata de um exercício na construção de representações sobre o
passado. Acessar esse passado, ainda muito presente na nossa contempo-
raneidade, é revisitar as memórias dos agentes históricos em seu período
póstumo de experiência e sujeito às consonâncias de um tempo não mais
possível, somente acessível pelas lembranças.
A elaboração da memória é um processo complexo em que con-
sistem muitas questões, sobretudo no campo histórico. Acessamos ao
passado com várias finalidades. Por vezes, se torna uma alternativa “[...]
lembrar o passado para que [se] possa seguir em frente [...]”.15 Sempre
com muita vontade de expor e alertar ao público sobre o estado em que
se encontram nossas mentes, o que fez em suas peças de teatro, falando
sobre estar condicionado e descerrando sobre o medo, o amor, a morte,
o tempo e muitas outras coisas de importância vital para todos nós, seu
artivismo se tornou mais uma evidência de que, ainda, Albertina vive!

15
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História.
Revista do Programa de Estudos Pós-Graduandos em História e do Departamento de

148
Trajetórias, memórias e revoluções: arte e política em Albertina Rodrigues

FONTES
RODRIGUES, Albertina. Fel e mel no cálice da vida: rumo à verdadeira
revolução. Versão digitalizada disponível em: https://pt.slideshare.net/
albertinarodrigues/fel-e-mel-no-clice-da-vida, 2013.

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – Assessoria Jurídica.


Informações, pasta 124, folha 316.

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – Assessoria Jurídica. Distrito,


pasta 15, folha 1.

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – Assessoria Jurídica. Distrito,


pasta 15, folha 5.

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – Assessoria Jurídica.


Informações, pasta 124, folha 317.

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – Assessoria Jurídica. Setor


Prontuário GB, folha 3.950.

REFERÊNCIAS
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Brune-Sieler, Uma vida (1874-1940). IN: BRESCIANI, Stella e NAXARA,
Márcia (Orgs.) Memória e (re)sentimento: indagação sobre uma questão
sensível. Campinas: UNICAMP, 2004.

CARDOSO, Lucileide. C. 40 anos de Golpe de 1964: Reconstruções


memorialísticas e luta contra o esquecimento. In: VII Encontro Regional
de História, 2004, Campinas. Anais do XII Encontro Regional de História: O
Lugar da História. Londrina: Editorial Mídia, 2004.

História da PUC-SP, nº 10, São Paulo, 1993. Disponível em: http://revistas.pucsp.


br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763. Acesso em Nov. 2016, p. 09).

149
Jonatas Pereira

CARR, Edward Hallet. A sociedade e o indivíduo. In: Que é história? Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1978.

CUNHA, Maria Clementina Pereira. De historiadoras, brasileiras e


escandinavas: loucuras, folias e relações de gênero no Brasil (século XIX e início
do século XX). Disponível em: http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_
livres/artg5-9.pdf. Acesso em Nov. 2016.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história, testemunho. In: Lembrar


esquecer escrever. São Paulo: Ed. 34, 2014.

MACIEL, Suellen N. P. Disputas da memória: uma reflexão inicial sobre


a Lei de criação da Comissão Nacional da Verdade. In: História do tempo
presente. Editora FGV, Rio de Janeiro, 2014.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto


História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduandos em História e do
Departamento de História da PUC-SP, nº 10, São Paulo, 1993. Disponível
em: http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763.
Acesso em Nov. 2016.

150
Eduardo Silva e Faustino Ribeiro Júnior:
a produção de vestígios autobiográficos e a
popularização da arte curativa da imposição das mãos

Rafael Rosa da Rocha


Doutorando (UFBA)
rafael.rocha@ifbaiano.edu.br

C orria o ano de 1898 e os jornais, da cidade do Rio de Janeiro, alarde-


avam os poderes maravilhosos do até então desconhecido Eduardo
Silva, um engenheiro inglês, radicado em São Paulo, nascido em 1843,
cuja atividade havia abandonado para realizar “fantásticas” curas com a
imposição das mãos.1 No final do século, outro “célebre” curador apareceu.
Faustino Ribeiro Júnior (1870-193?) era um renomado professor de São
Paulo e também abandonou suas atividades profissionais para atuar na sua
“missão” de salvar enfermos desenganados com a imposição das mãos.2
Além disso, eles tinham em comum algumas características: a cor da pele,
afinal, eles eram brancos; a classe social, pois ambos ou vinham de família
abastada ou exerciam profissão de privilégio; além de serem letrados, o que
permitiu que se posicionassem diante dos “contratempos” que tiveram com
a justiça, com os órgãos de higiene e com setores religiosos.

1
A NOTÍCIA, Rio de Janeiro. 1 fev 1898. p. 1-2.
2
ASSOMBROSO! Forças desconhecidas. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 29 set. 1899.
p. 1.

151
Rafael Rosa da Rocha

Muito embora privilegiados, esses curandeiros enfrentaram diver-


sos problemas para exercer seu “poder curativo” no contexto em que o
Código Penal de 1890 criminalizava práticas religiosas e culturais como
exercício ilegal da medicina.3 Para driblar as investidas desses setores da
sociedade, contra sua prática curativa, eles mobilizaram recursos como
a produção de vestígios autobiográficos que os apresentavam enquanto
sujeitos de reputação ilibada, alinhados aos hábitos e costumes da ci-
vilização e, portanto, da “modernidade” e do “progresso”.4 Este texto
pretende analisar a produção de escritos autobiográficos enquanto uma
das estratégias desses dois curandeiros para fazer frente às acusações de
exercício ilegal da medicina e para popularizar sua arte curativa.
O que nas autobiografias aparece como problema, para Eduardo Silva
e Faustino Ribeiro são mobilizados enquanto solução para enfrentar as

3
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura. As diferentes medicinas no Rio
de Janeiro Imperial. Campinas: Editora Unicamp, 2001.
4
O processo de modernização, que tinha por objetivo levar o Brasil à civilização e ao
progresso tem um marco importante no período Joanino com a chegada da família
real ao Brasil. No plano material as transformações foram muitas: aterros a pânta-
nos, abertura de avenidas, sofisticação arquitetônica, criação de estradas. No plano
cultural, com a vinda da Missão Francesa para o Brasil, estimulando a produção
artística: Museu Real, Biblioteca Real, Escola Real de Artes e Observatório Astro-
nômico e a Imprensa Régia. Igualmente, durante o Segundo Reinado, D. Pedro II,
o “mecenas brasileiro”, financiou a cultura e a ciência criando ou aprimorando uma
série de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Faculdades
de Direito e Medicina ganharam corpo e aderência. Além disso, esse é o período em
que Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, busca capitais estrangeiros e faz
intensos investimentos na infraestrutura do país. Queremos dizer, que a noção de
modernização e progresso levada a cabo no começo da República foi operacionalizada
por seus idealizadores para romper com o passado monarquista, que fincava o país no
atraso que precisava ser superado. Era a marca e o discurso inaugural da República.
BARRA, Sergio. Entre a Corte e a Cidade: o Rio de Janeiro no tempo do Rei (1808-
1821). Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008; SCHWARCZ, Lilia Moritz. As
barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2016.

152
Eduardo Silva e Faustino Ribeiro Júnior: a produção de vestígios autobiográficos
e a popularização da arte curativa da imposição das mãos

questões de seu tempo. Eles selecionaram eventos do passado que eram


importantes para o presente e para o futuro, ou seja, para garantir a li-
berdade e ampliar seu raio de atuação com a divulgação de seus trabalhos
curativos. Eles queriam ser reconhecidos como sujeitos excepcionais, de
coração puro, caridosos e apelavam para suas qualidades de homens ilus-
tres, alinhados com os princípios da civilização e do progresso da época.
Lançaram mão, portanto, da produção de vestígios autobiográficos. Esses
vestígios – entrevistas e excertos de histórias de vida –, é o que Phillipe
Lejeune denominou relatos autobiográficos. Eles são definidos por um “pac-
to”, que se materializa na “verdade” estabelecida entre narrador e ouvinte.
Em outras palavras, constituída pelo presente, a autobiografia advêm da
expectativa dos seus autores pela recepção e pelo alcance do público.5 Os
curandeiros utilizavam o que Jean Starobskin chamou de “método genéti-
co”, que significa seguir a cronologia do desenvolvimento da consciência,
“recompor o traçado de seu progresso, percorrer a sequência natural das
ideias e dos sentimentos, reviver pela memória o encadeamento das causas
e dos efeitos que determinam seu caráter e seu destino”.6
Nesse tipo de produção, Eduardo e Faustino racionalizaram toda sua
trajetória, com o fim de reafirmar uma postura ilibada diante daqueles que
buscavam seu processo curativo e daqueles que os acusavam de estimular
a “superstição”. Isso fica perceptível nas entrevistas que eles concederam
aos diversos periódicos e nos excertos biográficos que foram publicados
contando suas histórias. A Notícia informou, em 1 de fevereiro de 1898,
a biografia de Eduardo Silva.
O Dr. Eduardo Silva é súbdito inglês, natural de Gibraltar,
onde nasceu a 12 de dezembro de 1843. Engenheiro de minas

5
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. NORONHA,
Jovita Maria Gerheim (Org.). 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
6
STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.

153
Rafael Rosa da Rocha

e fortificações [...] no Império de Marrocos, cujo sultão, em


atenção aos seus relevantes serviços, conferiu-lhe o título de
Kaid, que equivale entre nós ao posto de coronel. [...] Em [...]
Portugal, e [...] na Espanha, deixou traços de uma passagem
como engenheiro de minas. Vindo para o Brasil em 1891,
trouxe cartas de apresentação a vários cavalheiros conhecidos
[...]. Em S. Paulo trabalhou por algum tempo como engenheiro
da companhia de Minas Lavras e Metalurgia. Quando o dr.
Eduardo Silva era ainda muito moço, notava sua família que
qualquer curativo que se tivesse de fazer em casa por meio de
fricções ou fomentações era muito mais pronto feito por ele do
que por qualquer outra pessoa e essa notícia foi se propagando
constantemente – até que se tornou uma verdade a influência
especial e inexplicável, que até hoje perdura, tendo-se desen-
volvido consideravelmente. Em 1894, por insistência de vários
amigos, começou o dr. Eduardo Silva a exercitar sua força
curativa publicamente, tendo em seu consultório para garantia
de seus trabalhos a princípio o ilustre facultativo dr. Orencio
Vidigal, e hoje o distinto clínico dr. Monteiro de Barros, os
quais têm presenciado e atestam curas admiráveis obtidas por
esse homem excepcional.7
Essas informações biográficas foram enviadas ao periódico A Notícia
pelo “Sr. Dr. Matheus da Silva Chaves Júnior”, um advogado de São
Paulo. A ênfase recai no prestígio internacional de alguém que estabele-
ceu relação com o sultão Mulley-Hassan; recai também no profissional
de sucesso, com experiência internacional e bem relacionado. Nota-se aí
uma tentativa de construir uma imagem que correspondesse com o perfil
moral da época. Em outras palavras, um sujeito justo e honesto, sensível
e caridoso que tinha uma trajetória profissional consolidada e abriu mão
dela, não por decisão própria, mas por incentivo de amigos e conhecidos

A NOTÍCIA, Rio de Janeiro. 1 fev 1898. p. 1-2.


7

154
Eduardo Silva e Faustino Ribeiro Júnior: a produção de vestígios autobiográficos
e a popularização da arte curativa da imposição das mãos

que perceberam a “potência” de seus “poderes curativos”. Além disso,


uma marca que aparece nesse e em outros textos que contam a biogra-
fia dos curandeiros é a racionalização de sua história que se concretiza
através da origem da prática curativa. No texto narrado pelo advogado,
percebe-se essa tentativa quando Eduardo era apresentado como o mais
hábil da família para fazer curativos com “fricções ou fomentações”. Tal
notícia se espalhou constantemente, ao passo que se tornou uma verdade
a “influência especial” e “inexplicável”, se desenvolvendo consideravel-
mente. Tal excerto biográfico tenta sintetizar a personalidade, o carisma,
a caridade e a eficácia da prática curativa de Eduardo Silva, pois além
de tudo, afirmava que distintos médicos como o dr. Orêncio Vidigal e
o dr. Monteiro de Barros presenciaram e atestavam as curas. Por fim,
vale salientar que o advogado afirma que Eduardo Silva não anunciava
as curas, mas tais notícias eram publicadas espontaneamente por aqueles
que usufruíam de seu lenitivo.
Segundo o repórter da Gazeta da Tarde, em 1898, Eduardo Silva
tinha 56 anos, era um homem forte e musculoso, de “aparência simpá-
tica, fisionomia franca”, com um olhar vívido. A descrição do jornalista
prossegue: “nos seus cabelos negros, descobre-se um outro fio branco.
Veste habitualmente de preto, com severa simplicidade”. Eduardo Silva
era “delicado e atencioso para todos que o procuraram, impõe-se logo
pela amenidade do seu trato, sem pretensões exageradas, sem estes ridí-
culos reclames do charlatanismo, que a tudo promete dar remédio na
segurança de uma cura rápida e decisiva”.8
Muito embora o jornalista acreditasse mais na “singularíssima” e mais
“aceitável” versão do advogado Matheus da Silva Chaves Júnior acerca
do início do poder curativo de Eduardo Silva, cuja tônica residia em um
procedimento mais empírico no qual as “boas mãos” do curador eram
hábeis para fricções, ele deu outra versão mesmo sendo “unicamente como

GAZETA DA TARDE, Rio de Janeiro. 11 abr 1898. p. 2.


8

155
Rafael Rosa da Rocha

lenda”, pois ainda não havia sido publicada. Segundo o jornalista, essa
versão tinha mais aderência por aqueles que julgavam milagrosas as curas
de Eduardo Silva e, portanto, tinham no sobrenatural seu alento. Para
ele, segundo a lenda, a história tinha começado no Marrocos, quando,
em certa ocasião, caminhando pelo campo na lida com os trabalhos da
engenharia, Eduardo havia escutado ao longe “uma voz que lhe acon-
selhou que abandonasse aquele mister, porque outra era a sua missão
na terra – minorar os sofrimentos da humanidade – sem que pudesse
descobrir de onde partira o estranho aviso. Seguiu-o, entretanto, e o
tempo evidenciou como fez bem assim proceder”.9 Essa narrativa deixa
explícita uma tensão entre empiria e sobrenatural, ou ciência e magia,
que marca todo o período republicano.10 Mas o que precisamos anotar
é que mesmo a explicação mais racional, qual seja, a das fricções, estava
envolvida pela atmosfera do sobrenatural das “curas maravilhosas” reali-
zadas pelo engenheiro, de modo que a tensão passa a ser operacionalizada
internamente no campo da magia. Ou seja, entre o “maravilhoso”, re-
vestido de um aspecto positivo e o “supersticioso”, carregado de estigma
sobretudo relacionado às populações afrodescendentes, que era utilizado
para deslegitimar a prática curativa de Eduardo Silva.
Mas voltemos aos dados biográficos do curador. O Jornal do Brasil
era um dos periódicos mais interessados em dar notícia do curandeiro,
pois enviou repórteres do Rio de Janeiro à ladeira da rua Nothman, em
São Paulo, para entrevistar o engenheiro. Lá chegando, num tumultuado
espaço cheio de gente buscando os serviços “milagrosos” do dr. Eduardo,
era quase impossível, aos repórteres, atravessar o vão e chegar a entrada

9
GAZETA DA TARDE, Rio de Janeiro. 12 abr 1898. p. 2.
10
Uma discussão sobre a relação entre ciência e magia pode ser encontrada em: WE-
BER, Beatriz Teixeira. As Artes de Curar: Medicina, religião, magia e positivismo na
República Rio-grandense – 1889/1928. Santa Maria: EDUSC, 1999 e DARNTON,
Robert. O lado oculto da Revolução: Mesmer e o final do Iluminismo na França. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.

156
Eduardo Silva e Faustino Ribeiro Júnior: a produção de vestígios autobiográficos
e a popularização da arte curativa da imposição das mãos

da casa onde ele atendia. Depois de muita espera e de terem com o dr.
Monteiro de Barros, finalmente, conseguiram a atenção do engenheiro,
curador, “dr. Eduardo Silva”. Os repórteres do Jornal do Brasil iniciaram
a entrevista questionando se os maiores feitos do curador haviam sido
realizados no Marrocos.
Dr. Eduardo Silva – No desempenho de tão perigosa incum-
bência, internei-me pelo continente africano até ao deserto
de Saara [...]. Pois nesta expedição passaram-se comigo fatos
verdadeiramente sobrenaturais que mais me avigoraram a fé
na Providência Divina, que tudo dirige e tudo pode.

Repórter – E dar-me-á o prazer de narrar alguns?

Dr. E. Silva – Com todo o gosto. Como sabe, o caráter trai-


çoeiro dos mouros expõe a quem viaja por aquelas regiões a
perigo incessantes, de modo que eu e meus companheiros de
comissão estávamos a cada momento expostos ao ferro assas-
sino. Pois bem; todas as noites, quando me recolhia à minha
barraca de companhias, erguia [...] preces ao Altíssimo para
que me protegesse com a sua infinita misericórdia. Uma noite
deitara-me mais tarde, e depois de tomar as últimas notas
de viagem, apagara a vela e adormecera profundamente. De
repente, porém, ouço uma voz chamar-me insistentemente:
– Eduardo! Eduardo! Despertei sobressaltado; e qual não foi
o meu espanto ao despertar acesa a vela que havia apagado
momentos antes! E ainda não tinha me erguido quando vejo
correr-se a cortina da barraca e surgir em frente um mouro de
adaga alçada para ferir-me. Lancei então mão do meu revolver,
e aos tiros que disparei sobre o malfeitor, que depois confessou
que vinha matar-me para roubar.11

11
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro. 29 maio 1898. p. 5. [Grifos nossos]

157
Rafael Rosa da Rocha

No caso em tela, não parece haver uma “ilusão biográfica”12 no que


Eduardo Silva diz sobre si. Parece mesmo intencional a construção de
um personagem de ilibada reputação, como o fez Faustino Ribeiro Jú-
nior, como mostraremos em breve. Ao ser questionado, ele afirma que
a atividade no Marrocos era bastante perigosa “pelo continente africano
até ao deserto do Saara”, local em que passou por provações que fortifi-
caram sua fé “na Providência divina”. Aí se inicia a narrativa do perigo
que tem por ápice a fabricação do herói que reagiu corajosamente ao
caráter traiçoeiro dos mouros. Lembremos que o tal caráter dos árabes
foi aplacado também por conta de suas preces ao “Altíssimo”. Nessa nar-
rativa, Eduardo Silva é o engenheiro competente, corajoso, protegido de
Deus e “poderia prová-lo, se o quisesse”. Além disso, a descrição de sua
reação heroica, diante do mouro que se prostrou em sua frente com a
adaga em riste, deixa ver uma posição de superioridade, enquanto inglês,
em relação ao Marrocos, parte do continente africano, como uma região
exposta a constante perigo, justamente por conta de seus habitantes: os
mouros. Destaquemos que nesse período o discurso das elites brasileiras,
era um discurso de inserção do Brasil nos caminhos da civilização e do
progresso, de acordo com os moldes europeus. Sua narrativa heroica
continua contando os casos da corte do sultão. Indagou o jornalista:
Repórter – E na corte do sultão fez algumas de suas curas
admiráveis?

Dr. E. Silva – Muitas, e alguns que causaram grande assombro


[...]. Entretanto, regressei à Inglaterra, voltando mais tarde,
em 1890; mas nessa ocasião como emissário da casa Arms-
trong para a venda de canhões e outros apetrechos bélicos ao
governo marroquino. Nessa ocasião, porém, se deu um fato

12
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica.” In: FERREIRA, Marieta de M. e AMADO,
Janaína (orgs). Usos & Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1996. p. 183.

158
Eduardo Silva e Faustino Ribeiro Júnior: a produção de vestígios autobiográficos
e a popularização da arte curativa da imposição das mãos

extraordinário, que me encheu de consternação e de dor que


ainda sinto por julgar-me dele o provocador inconsciente.
Quer ouvi-lo?

Repórter – De certo.

Dr. E. Silva – Eu tinha grande interesse em fazer essa ne-


gociação com o sultão; mas encontrei para a sua realização
os mais inesperados obstáculos. Entre estes, o maior era-me
criado pelo ministro inglês Grewn, embaixador em Marrocos.
Não sei porque motivo esse meu compatriota, que até então
tinha-se mostrado meu amigo, opôs-se à venda desse arma-
mento, [...] em vez de proteger-me, havia de destruir toda
essa minha proteção. Ferido então no meu amor próprio,
exasperado com a iniquidade daquele inexplicável proceder,
encolerizei-me então e disse-lhe imprudentemente: – Sr. Grewn,
o senhor está-me perseguindo cruelmente. Mas olhe: Deus
está nos ouvindo. Eu, o ano passado, recebi-o aqui mesmo
ao som do hino nacional, mas este ano o receberei na volta
com a marcha fúnebre. O ministro desdenhou. Eu mesmo
arrependi-me logo em seguida de tão levianas palavras. [...]
Pois, meu amigo, dias depois, chegava da capital marroquina
o corpo do meu gratuito inimigo. O ministro Grewn morrera
em viagem, de repente. E o que é mais extraordinário: [...] da
minha residência, executava à sua passagem a marcha fúnebre
que inconscientemente lhe profetizara.13
Não é sempre que um curandeiro conta sua história e discorre
sobre sua trajetória e seus feitos. Por isso, aí estão as longas citações de sua
entrevista ao repórter do Jornal do Brasil. Continua presente na narrativa
a grande atuação do engenheiro para o governo marroquino, mas outro
elemento interessante aparece: um fato extraordinário que mexeu com as

13
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro. 29 maio 1898. p. 5. [Grifos nossos]

159
Rafael Rosa da Rocha

emoções do curador. Para além de ser um protegido do “Altíssimo”, sua


narrativa dá a entender também que ele tinha o poder da profecia, para
prescrever, quiçá punir, aqueles que se interpusessem em seu caminho.
Foi assim que ele resolveu sua querela com o ministro Grewn ao proferir
palavras – que “chegaram ao ouvido de Deus” – que deram cabo da vida
do ministro.14 De certo, ele não convenceu o jornalista, mas é possível
que perspicácia também fosse um dos atributos daquela construção au-
tobiográfica, de modo que o dr. Silva continua sua narrativa contando
seus grandes feitos.
Assim como Eduardo Silva, Faustino Ribeiro Júnior também
lançou mão do uso dos vestígios autobiográficos. Nascido enquanto
curador no mesmo contexto de Eduardo Silva, chegando a “rivalizar”15
com ele, Faustino Ribeiro Júnior, mais conhecido como Professor Faus-
tino, também lançou mão desse recurso. Esse curandeiro peregrinou por
vários estados do país celebrizando-se pelas suas “curas maravilhosas”,
sendo apresentado pelos periódicos da época inclusive como o “novo
Eduardo Silva”16. Faustino era formado professor pela Escola Normal de

14
Se os feiticeiros africanos e afro-brasileiros e as populações que a eles recorriam
operacionalizam uma cosmologia para resolver seus mais diversos conflitos e foram
constantemente perseguidos e sofreram o estigma da superstição além da represália
policial e judicial, Eduardo Silva lançou mão também da sua cosmologia para resolver
seus conflitos nas terras do norte da África. Mas tal cosmologia era aceita abertamente
por boa parte das elites e das instituições brasileiras. Daí a pompa e a curiosidade em
torno dos poderes curativos dele, daí o cuidado das inspeções de higiene e da polícia
em averiguar cuidadosamente seus procedimentos, mesmo que o curador fosse astuto
e perspicaz como mostra sua entrevista e as notas biográficas do advogado Matheus
da Silva Chaves Júnior.
15
Não obstante serem dois personagens que viveram na mesma época, transitaram pelos
mesmos espaços, utilizaram os mesmos mecanismos de cura, não é perceptível nas
fontes se existiu algum nível de interlocução entre Faustino e Eduardo Silva. Quero
dizer que é bastante provável que tenham tido conhecimento da existência um do
outro, mas não avançamos em saber se eles estabeleceram algum tipo de diálogo.
16
DIÁRIO DA TARDE, Curitiba. 26 set 1899. p. 1; GAZETA DE MINAS, Cidade

160
Eduardo Silva e Faustino Ribeiro Júnior: a produção de vestígios autobiográficos
e a popularização da arte curativa da imposição das mãos

São Paulo e iniciou suas atividades curativas no ano de 1898 transitando


entre os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.17 Nos anos
seguintes começou a peregrinar rumo ao norte do país, passando pela
Bahia, por Pernambuco e pelo Pará.18 Em algumas das localidades por
onde passou, ele produziu narrativas biográficas de modo a construir uma
imagem aceitável pelos mais diversos setores da sociedade. Em Recife,
por exemplo, numa entrevista concedida ao Jornal Pequeno ficaram evi-
dentes as características da personalidade de Faustino. Em 13 de julho
de 1904, depois de algumas tentativas para entrevistar o professor, os
repórteres conseguiram encontrá-lo disponível na pensão Derby, onde
se hospedara, e, às 18:30, quando Faustino jantava, foi abordado pelos
jornalistas. A resposta foi cordial:
– Com todo prazer, disse o professor Faustino.

E íamos nos sentar a uma das mesas que lhe estavam visinhas,
quando s. s., erguendo-se, gentilmente instou para que nos
sentássemos à sua própria mesa.

– Assim poderemos conversar melhor, disse.

Acedemos, penhorados, à delicadeza que s. s. deixava transpirar


da palavra e dos gestos.

Expondo nossa curiosidade ao professor Faustino, este, depois


de referir-se muito elogiosamente à imprensa, a quem confessa
dever o grande apoio prestado à sua pessoa.19

de Oliveira. 1 out 1899. p. 1.


17
ROCHA, R. R. Professor Faustino, o “doutor bota-mão”: um “curandeiro” na Bahia
do limiar do século XX. 2015. 140f. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Universidade Federal da Bahia, UFBA, 2015.
18
DIÁRIO DE PERNAMBUCO, Recife. 12 jul 1904.p.1; JORNAL DO COMER-
CIO, Manaus. 4 jan 1905. p. 1.
19
JORNAL PEQUENO, Recife, 13 jul 1904. p. 1. [Grifos nossos]

161
Rafael Rosa da Rocha

Gentileza e delicadeza são algumas marcas atribuídas a Faustino,


mas se tornaram recorrentes desde quando ele começou a peregrinar
realizando suas curas em 1898. Tais marcas estavam vinculadas à ho-
nestidade, retidão e caridade, todas elaboradas nos textos publicado nos
periódicos com o pseudônimo Epaminondas20, ou em textos publicados
para se defender dos órgãos de higiene. Daí a referência elogiosa à im-
prensa, muito prestativa aos objetivos do curador. Através dela, Faustino
pôde construir e reafirmar seus atributos de um homem respeitável nos
padrões da época. Entre outras coisas, essa construção servia como uma
tática para popularizar sua arte curativa.
Os repórteres continuaram fornecendo, através de seus questio-
namentos, elementos para que Faustino construísse racionalmente sua
trajetória enquanto curador. Perguntaram quais eram as bases de seu
processo curativo e quando ele começou a realizar suas curas. O diálogo
prosseguiu da seguinte maneira:
– Como começou a curar?

– Estávamos em uma visita de família em São Vicente, São


Paulo, quando uma criança queixava-se de horrível dor de
dentes. Impulsionado por uma força que não sei descrever,
continua o professor Faustino, ergui-me da cadeira em que
estava e, tomando o rosto da criança entre minhas mãos, as-
sim o deixei por alguns momentos. Quando do rostinho do
menino retirei as mãos, ele disse que a dor havia desaparecido
e a reunião aplaudiu entusiasmada o fato.

– Antes disso nada havia praticado relativamente ao assunto?

– Nada... dizem pessoas de minha família que, quando eu era


criança, chamavam-me muitas vezes para que eu desse, com

20
A PROVÍNCIA, Recife. 6 ago 1904. p. 2.

162
Eduardo Silva e Faustino Ribeiro Júnior: a produção de vestígios autobiográficos
e a popularização da arte curativa da imposição das mãos

a minha própria mão, aos doentes de casa os remédios que os


médicos houvessem receitado. Esses remédios dizem meus pa-
rentes, produziam melhor efeito quando eram dados por mim.

– O sr. tinha, então, o que o vulgo chama – uma boa mão.

– Perfeitamente isso, respondeu, sorrindo, o entrevistado.21


O elemento a ser destacado nesse trecho é certa racionalização da
construção do seu processo curativo. Remeter mesmo que indiretamente
para infância seu dom curativo, não obstante ser uma tática para dar le-
gitimidade a sua forma de curar, significava fugir do charlatanismo, mas,
além disso, o Professor induziu – direta ou indiretamente – os entrevis-
tadores a caírem no que Pierre Bourdieu chamou de “ilusão biográfica”,
pois um relato, biográfico ou autobiográfico, “como o do investigado
que ‘se entrega’ a um investigador”, propõe que acontecimentos tendem
ou pretendem organizar sequências “ordenadas segundo relações inte-
ligíveis”. Para Bourdieu, “o sujeito e o objeto da biografia têm de certa
forma o mesmo interesse em aceitar o postulado do sentido da existência
narrada.”22 Ademais, notemos um importante elemento utilizado tanto
por Faustino quanto por Eduardo Silva ao narrarem as suas trajetórias nas
entrevistas: as respostas fornecidas aos questionamentos dos repórteres
tinham como objetivo guiar sua escrita, sobretudo quando manifesta
gentileza, cordialidade e perspicácia com os jornalistas – quando eles
mesmos apontam essas características. Em outras palavras, tais atribu-
tos são tanto características as quais eles gostariam de verem pintadas e
divulgadas, bem como um artifício de captação de simpatia. No caso
desses curandeiros, dar entrevista era, também, escrever a sua própria
história e divulgar sua arte curativa.

21
JORNAL PEQUENO, Recife, 13 jul 1904. p. 1.
22
BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., 1996. p. 183.

163
Rafael Rosa da Rocha

Além de se apropriar de valores como “gentileza” e “delicadeza”, de


tentar guiar a escrita do outro sobre si, de ordenar inteligivelmente sua
história, Faustino lançou mão de artifícios morais para engrandecer sua
figura, solidificar seu séquito – pessoas que faziam parte de sua rede de
relacionamentos e que recorriam a sua cura – e apresentar uma reputação
ilibada diante da sociedade. Foi isso que aconteceu quando o próprio
Faustino, sob o pseudônimo de Epaminondas, saiu em defesa própria
contra os ataques que recebia da imprensa, mais especificamente do
Diário de Notícias. A crítica a uma imprensa incoerente era o alvo de
Epaminondas. O Jornal de Notícias, a partir do qual Epaminondas escrevia,
colocava-se de frente com o Diário, afirmando ser este um órgão que não
se interessava pela coletividade social, nem auxiliava os cidadãos no exer-
cício de seus direitos e que não fiscalizava os poderes públicos contra os
abusos em suas funções. Mas talvez não fosse a falta de convicção política
e orientação filosófica que fez com que o Diário se posicionasse de tal
modo em relação a Faustino, instigando a Higiene à sua “caça”. A busca
por uma defesa pública nos jornais, mesmo que de forma velada, através
do pseudônimo, é uma forma de dar manutenção a sua reputação que
estava sendo maculada pelas investidas de uma “imprensa incoerente”.
Após desferir seus golpes contra a incoerência jornalística,
Epaminondas passou a elencar as características positivas de Faustino,
o que constituía uma resposta ao órgão da imprensa que atuava contra
ele. Epaminondas prosseguiu sua análise enfatizando suas características
morais, afirmando que:
O professor Faustino não é homem vulgar; dotado de um espí-
rito superior, de uma vontade enérgica, de um caráter intransi-
gível [sic], de uma alma equilibrada, é o tipo verdadeiramente
moral. Forte e procurando atingir à maior perfeição moral,
não se deixa corromper na corrente de ódios e indignação dos
fracos. No íntimo, podemos jurar que o professor já perdoou as
ofensas que lhe foram lançadas. Conhecido em S. Paulo, como

164
Eduardo Silva e Faustino Ribeiro Júnior: a produção de vestígios autobiográficos
e a popularização da arte curativa da imposição das mãos

jornalista vigoroso e robusto manejador [sic] da língua, sabemos


que o ilustre professor pode defender-se vantajosamente em
qualquer conjectura. Entretanto, na ocasião em que diversos
amigos o aconselhavam a rebater as agressões da imprensa,
ouvimos de s. s. as seguintes palavras, que nos parecem de um
alcance extraordinário: “Deposito a minha confiança em Deus
e apoio-me na calma da minha consciência”23
O enaltecimento das características morais do curador foi uma das
armas discursivas utilizadas pelo periódico para a sua defesa pública. Para
Epaminondas, Faustino era aquele de “alma equilibrada”, de “perfeição
moral”, aquele que perdoava e que confiava em Deus para acalmar sua
consciência. Afirmar a crença em Deus era uma tentativa de aproximá-lo
dos católicos, dos protestantes emergentes e, ainda mais, garantir que estes
não se voltassem contra suas práticas curativas. Mas, além disso, figurava
enquanto afirmação de atributos valorativos de sua personalidade: “alma
equilibrada”, “perfeição moral” de quem tinha “confiança em Deus”.
Mas por que Faustino escrevia na terceira pessoa? As fontes não dizem
explicitamente nada sobre isso, entretanto, se autoafirmar alegando ter as
características acima descritas, poderia soar de forma arrogante e pouco
modesta vindo de alguém que desejava se apresentar como caridoso e
humilde. É possível que escrever em terceira pessoa reforçava ainda mais
a tática adotada por ele.
Eduardo Silva e Faustino Ribeiro Júnior mobilizaram narrativas para
apresentar sua imagem ao público. Do primeiro, tivemos acesso apenas a
entrevistas e excertos biográficos encomendados. De Faustino, entretanto,
talvez pelo período mais prolongado de atuação e pelos embates mais
robustos que travou com diversos setores da sociedade, acabou por escrever
textos em jornais e se posicionar, mesmo que através de pseudônimo.
De todo modo, as entrevistas podem ser encaradas como importantes

23
JORNAL de Notícias, Salvador. 11 ago 1903. p. 2.

165
Rafael Rosa da Rocha

registros autobiográficos, como mostramos. Outro dado importante


a anotar é que ambos recorreram ao seio familiar como elemento de
construção autobiográfica, como forma de racionalizar sua história e de
se apresentar enquanto sujeitos alinhados aos valores morais da época.
Enfim, a autobiografia enquanto forma de inscrever no presente
caminhos para a liberdade de atuação foi utilizada tanto por Faustino
Ribeiro Júnior, quanto por Eduardo Silva. Ambos a empregaram para
apresentarem a linearidade de suas histórias, buscando a sequência de
eventos, revivendo memórias como forma de se apresentarem enquanto
sujeitos de reputação ilibada. Destoavam, portanto, de sujeitos como
Domingos Sodré, o Alufá Rufino, Juca Rosa e tantos outros curandeiros
ou praticantes de religiões afrobrasileiras, que povoaram o século XIX,
encarados como sinônimos do atraso e do retrocesso, numa sociedade
que buscava a modernização, a civilização e o progresso.24

FONTES – (Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)


A NOTÍCIA, Rio de Janeiro. 1 fev 1898. p. 1-2.

A PROVÍNCIA, Recife. 6 ago 1904. p. 2.

ASSOMBROSO! Forças desconhecidas. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 29


set. 1899. p. 1.

DIÁRIO DA TARDE, Curitiba. 26 set 1899. p. 1;

DIÁRIO DE PERNAMBUCO, Recife. 12 jul 1904.p.1;

REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e can-
24

domblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008; REIS, João
José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus Joaquim de. O Alufá Rufino
– tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro. Campinas: Companhia das Letras,
2010; SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa: um pai-de-santo na Corte Imperial.

166
Eduardo Silva e Faustino Ribeiro Júnior: a produção de vestígios autobiográficos
e a popularização da arte curativa da imposição das mãos

GAZETA DA TARDE, Rio de Janeiro. 12 abr 1898. p. 2.

GAZETA DE MINAS, Cidade de Oliveira. 1 out 1899. p. 1.

JORNAL de Notícias, Salvador. 11 ago 1903. p. 2.

JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro. 11 abr 1898. p. 1.

JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro. 29 maio 1898. p. 5.

JORNAL DO COMERCIO, Manaus. 4 jan 1905. p. 1.

JORNAL PEQUENO, Recife, 13 jul 1904. p. 1.

REFERÊNCIAS
BARRA, Sergio. Entre a Corte e a Cidade: o Rio de Janeiro no tempo do Rei
(1808-1821). Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008.

BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica.” In: FERREIRA, Marieta de M.


e AMADO, Janaína (orgs). Usos & Abusos da História Oral. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1996.

DARNTON, Robert. O lado oculto da Revolução: Mesmer e o final do


Iluminismo na França. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet.


NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). 2. ed. Belo Horizonte: UFMG,
2014.

REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade


e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.

167
Rafael Rosa da Rocha

REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus


Joaquim de. O Alufá Rufino – tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico
Negro. Campinas: Companhia das Letras, 2010.

ROCHA, R. R. Professor Faustino, o “doutor bota-mão”: um “curandeiro”


na Bahia do limiar do século XX. 2015. 140f. Dissertação (Mestrado em
História Social) – Universidade Federal da Bahia, UFBA, 2015.

SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa: um pai-de-santo na Corte Imperial.


Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.

. Nas trincheiras da cura. As diferentes medicinas no Rio de Janeiro


Imperial. Campinas: Editora Unicamp, 2001.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca


nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo.


São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

WEBER, Beatriz Teixeira. As Artes de Curar: Medicina, religião, magia e


positivismo na República Rio-grandense – 1889/1928. Santa Maria: EDUSC,
1999.

168
PARTE III
Os sentidos da literatura: história,
política e cultura nas obras de ficção
A política em prosa: representações comunofeministas
em A sombra do patriarca

Iracélli da Cruz Alves


Doutoranda em História (UFF)
iracelli_alves@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO

N atural de Estância, interior de Sergipe, Alina Andrade Leite – mais


tarde Alina Leite Paim – nasceu em 1919 e ficou órfã de mãe aos
sete anos de idade. Como seu pai trabalhava viajando, com a morte da
mãe passou a morar com a família materna (avós e tias) na cidade de
Simão Dias, também localizada no interior de Sergipe, onde fez os estudos
preliminares na Escola Menino Jesus e no Grupo Escolar Fausto Cardoso,
ambos de orientação católica. Aos 12 anos se mudou para Salvador para
estudar, como aluna interna, no Colégio Nossa Senhora da Soledade,
instituição de freiras de onde saiu formada professora primária em 1937.1
Além do magistério, se dedicou à política e à literatura, imbricando-
-as. Filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1945; no ano

1
ALVES, Iracélli da Cruz. A política no feminino: uma história das mulheres no Partido
Comunista do Brasil – seção Bahia (1942-1949). 2015. 238 f. Dissertação (Mestra-
do em História) – Departamento de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade
Estadual de Feira de Santana. Feira de Santana, 2015. p. 164-166.

171
Iracélli da Cruz Alves

seguinte foi homenageada pelo partido, recebendo o Carnet de membro


do PCB.2 Ao longo de sua carreira literária publicou dez romances. A
maioria teve como protagonistas mulheres que questionavam as normas
sociais estabelecidas. Dois deles circularam internacionalmente – A Hora
próxima3, publicado na Rússia em 1957 e na China em 1959, e Sol do Meio
Dia4, lançado na Bulgária em 1963 e na Alemanha em 1968. A autora
foi duas vezes premiada. Em 1961 recebeu o prêmio Manoel Antônio de
Almeida da Associação Brasileira do Livro, pelo romance Sol do Meio Dia;
e em 1965 a trilogia de Catarina, composta pelos livros: O sino e a Rosa,
A chave do mundo e O Círculo,5 foi agraciada com o Especial Walmap.
Apesar da proeminência que teve no passado, seu nome não figura
nos livros de memória publicados posteriormente por ex-militantes do
partido. Este esquecimento – ou silêncio?6 – perpassam a historiografia, o
que nos leva a refletir sobre como a produção historiográfica está passível
de incorporar as subjetividades de suas fontes, especialmente quando
ratifica acriticamente os dados contidos nelas. Este pode ter sido um
dos motivos que explica a ausência do nome de Alina Paim dos anais
da História. Sua carreira político-literária é um forte indício de que este
apagamento não se deve a uma atuação tímida.7
Arte e política se entrecruzam em sua militância. Os seus espaços de
experiência – família, maternidade, escola, religião e militância política –
se tornaram cenários para as suas invenções. Característica que já aparece

2
HOMENAGEM do Partido Comunista do Brasil aos seus escritores e artistas. Tri-
buna Popular, 21 abr. 1946. p. 1.
3
PAIM, Alina. A hora próxima. Rio de Janeiro: Vitória, 1955.
4
PAIM, Alina. Sol do meio dia. Rio de Janeiro: ABL, 1961.
5
PAIM, Alina. O Sino e a rosa. Rio de Janeiro: Lidador, 1965; ______. A chave do
mundo. Rio de Janeiro: Lidador, 1965; ______. O círculo. Rio de Janeiro: Lidador,
1965.
6
Silêncio e esquecimento não têm o mesmo significado. Nem sempre o que não é
dito atesta esquecimento, podendo indicar um silenciamento deliberado.
7
Cf. ALVES, 2015, p. 164-171

172
A política em prosa: representações comunofeministas
em A sombra do patriarca

eu seu primeiro romance, Estrada da Liberdade, publicado em 1944.8 O


enredo se desenvolve em um colégio interno de freiras e Marina, perso-
nagem principal, se opõe fortemente aos valores da educação religiosa
e reivindica um mundo em que as mulheres tivessem mais liberdade. A
trama do seu segundo romance, Simão Dias (1949)9, também acontece
em um espaço bastante conhecido pela autora, a cidade de Simão Dias,
onde Alina viveu grande parte de sua infância. Duas personagens femininas
se destacam: Maria do Carmo – uma criança, e Luiza – mulher adulta;
ambas insatisfeitas com o lugar tradicionalmente reservado às mulheres.
A Sombra do Patriarca10, escrito antes de Simão Dias, mas publicado um
ano depois, também revela um ambiente familiar para a autora. Alina,
assim como a personagem principal, era sobrinha de um latifundiário
sergipano. A mesma regra é seguida em Sol do Meio Dia, que narra as
experiências de uma jovem comunista nordestina que, morando em uma
pensão no Rio de Janeiro, vive os dilemas daquela realidade, além de
se ver às voltas com o Partido Comunista quando defendia a liberdade
feminina. Os romances que compõem a trilogia de Catarina seguem o
roteiro, ao falar, entre outras coisas, do drama de uma mulher que após
o casamento esperou nove anos para realizar o sonho da maternidade – o
mesmo tempo esperado pela romancista.
Neste sentido, em seus textos de ficção, ao menos em parte deles,
Alina Paim realizou uma “escrita de si”. O exercício se constitui em uma
prática de liberdade em que, em algum grau, rompe-se com as práticas
disciplinares. Na “escrita de si” há um trabalho de construção subjetiva na
experiência da escrita. Neste processo, abre-se a possibilidade do devir, de

8
PAIM, Alina. Estrada da Liberdade. Rio de Janeiro: Leitura, 1944.
9
PAIM, Alina. Simão Dias. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do
Brasil, 1949.
10
PAIM, Alina. A sombra do patriarca. Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo: Globo,
1950.

173
Iracélli da Cruz Alves

ser outro.11 A literatura torna-se uma forma privilegiada para este exercício,
já que é um tipo de escrita onde as autoras, através das suas personagens,
podem experimentar a liberdade de ser outra. Assim, nos interessa perceber
a concreção desse experimento em A Sombra do Patriarca.

ITINERÁRIO DO ROMANCE
Em 1950 a Editora Globo lançou A sombra do Patriarca, de Alina
Paim. A autora dedicou o livro a Graciliano Ramos, provavelmente em
sinal de gratidão pelos diálogos que estabeleceram quando ela escrevia
seu primeiro romance: Estrada da Liberdade. O manuscrito, escrito por
volta de 1943, foi revisado pelo já então famoso romancista, que lhe deu
algumas aulas sobre técnica literária. O livro foi elogiado por seus pares.
Valdemar Cavalcanti comentou na orelha do romance A Correnteza que o
texto surpreendeu os críticos e os “leitores de bom gosto, com a maneira
segura de seu comportamento literário, a demonstrar que bem conhecia o
chão em que pisava”.12 Antes, Jorge Amado já havia observado que Alina
Paim impôs sua presença com o primeiro romance e “soube construir seu
caminho e crescer de livro para livro”.13 Graciliano Ramos se antecipou
aos elogios, quando escreveu na orelha de Simão Dias:
Alina Paim chegou aqui [no Rio de Janeiro] há quatro anos,
tímida, novinha, com jeito de freira à paisana. O romance que
nos deu pouco depois não revelava nenhuma timidez e, logo
nas primeiras folhas, desmentia a aparência religiosa. Exibia
até muita coragem, dava às coisas o nome verdadeiro, sem
respeito exagerado às conveniências. A estreia, recebida com
louvores, jogou a moça na Literatura.14

11
RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções de
subjetividade. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. p. 50-55.
12
PAIM, Alina. A correnteza. Rio de Janeiro: Record, 1979. Orelha.
13
AMADO, Jorge. Prefácio. In: PAIM, 1961. p. 7.
14
PAIM, 1949. Orelha.

174
A política em prosa: representações comunofeministas
em A sombra do patriarca

Jogada na literatura, em 1950, Alina Paim publicou seu terceiro


romance: A Sombra do Patriarca, que narra as experiências de Raquel,
uma jovem mulher de 25 anos que se deslocou da cidade para a zona
rural do interior de Sergipe para passar as férias na fazenda do seu tio
Ramiro, um latifundiário, dono de uma usina de açúcar e de toda a co-
munidade que lhe cercava. O patriarca era um homem rico, autoritário
e rude, que controlava tudo e todos, deixando um rastro de destruição
por onde passava. Seu lema era: “o dinheiro é a alavanca do mundo”15 e
assim ele agia, dando valor às coisas e não às pessoas. Todos que viviam
sob sua rédea, inclusive sua família, perdiam o direito de governar suas
próprias vidas. “O poder do tio Ramiro se estendia até muito longe, e
sua sombra, como a sombra de um patriarca, abrangia muitas vidas”16;
“descia como um manto de opressão sobre os homens”17, “alongando-se
pelas terras, extinguindo a felicidade em volta dele, porque seu dinheiro
onde passava ia semeando maldição”.18 Assim, “uma vítima juntava-se
a outra, e o grupo silencioso marchava à sombra desse homem, [...] o
coronel Ramiro da Usina Fortaleza – o patriarca”.19
A história contada por Alina Paim reflete, com todas as distorções que
o reflexo pode produzir, as misérias vividas pelos trabalhadores pobres do
interior do Nordeste, submetidos ao poder dos grandes latifundiários,
que na narrativa são denominados de patriarcas. Além disso, denuncia
o sistema cultural de sujeição das mulheres que limitava seus espaços
de sociabilidade, restringindo-o às esferas do lar; e a herança de uma
escravidão recentemente abolida, que gerava distinções racistas. Além
dessas representações, a narrativa nos aproxima da leitura de mundo e das
expectativas de uma mulher comunista, especialmente quando ressalta
o lugar de subalternidade relegado ao feminino.

15
PAIM, 1950, p. 95.
16
Ibid., p. 15.
17
Ibid., p. 32.
18
Ibid., p. 16.
19
Ibid., p. 175.

175
Iracélli da Cruz Alves

O romance é narrado em primeira pessoa. É Raquel que nos conta


o que viu e ouviu nos meses em que passou nas propriedades do tio.
O enredo é simples, como se alguém tivesse falando livremente sobre
as lembranças de uma viagem marcante. Há um movimento pendular,
fatos aparecem soltos, depois, seguindo os rumos de uma conversa, são
retomados para explicações. O tempo transita entre o passado recente,
centrado apenas nas experiências da narradora nas propriedades do tio,
e o futuro, quando Raquel revela seus sonhos e expectativas.
A narradora nos apresenta uma realidade profundamente desigual do
interior do Nordeste, onde uns poucos usufruem de riqueza, conforto
e poder, enquanto uma maioria trabalha e vive de forma miserável para
manter os privilégios dos poderosos. Ela se opõe de forma contundente
a este modelo de sociedade, e apresenta o seu mundo ideal, onde não
existiria nenhum tipo de opressão. A trama tem um tom maniqueísta.
Os personagens são divididos em dois grupos impermeáveis: os maus,
ligados ao patriarca, representando a classe dominante; e os bons, ligados
ao ideário comunista, com predisposição para se unirem na luta por um
mundo em que as pessoas pudessem desfrutar de liberdade e felicidade.
O comunismo aparece como o único meio capaz de destruir as desi-
gualdades sociais; contudo essa luta não seria orquestrada por homens,
mas por mulheres. A classe trabalhadora conheceria dias de felicidade,
mas o comando da luta imaginada por Alina Paim era feminino. As
protagonistas, Raquel e Leonor, não eram da classe trabalhadora, mas
suficientemente instruídas dentro do princípio comunista, capazes de
juntas, com o apoio da juventude, “destruir os patriarcas e reduzir sua
sombra a poucos palmos de seus pés”20. “Leonor e eu éramos aliadas,
tínhamos da unir-nos a vontade de escapar da sombra do patriarca, o
desejo de quebrar essa sequência de orgulho e de submissão”.21

PAIM, 1950, p. 56.


20

Ibid., p. 70.
21

176
A política em prosa: representações comunofeministas
em A sombra do patriarca

Mas o enredo não se desenvolve no sentido da revolução social. O


objetivo das protagonistas é, em longo prazo, destruir o poder de tio
Ramiro. Metaforicamente, esta destruição simboliza a destruição do
regime semi-feudal, tal qual o PCB enxergava a sociedade brasileira no
tempo da escrita. No romance, Raquel chega a indicar a necessidade de
levar o progresso para a região, leia-se, desenvolver as forças produtivas
burguesas (industrialização e urbanização), para depois começar a im-
plantar o mundo comunista no interior do Nordeste.
Embora as reflexões sobre o projeto socialista sejam constantes, no
desenrolar da trama a intriga é se as protagonistas conseguirão salvar
Oliveira, o pai de Leonor; homem de 42 anos de idade que passou
grande parte de sua vida submetido à esposa e ao sogro, o patriarca.
Oliveira tinha consciência do seu lugar de subserviência, mas lhe faltava
coragem para romper com a lógica que lhe dominava. Sua filha Leonor
encontrou em Raquel, que se apaixonou por Oliveira, a companheira
ideal para salvá-lo. “Se Leonor estava disposta a arrebatar o pai das garras
do tio Ramiro, precisava levar coragem em dose dupla, ao menos para
sustentá-lo nos primeiros tempos”.22
Ao construir um personagem masculino frágil e subserviente, a autora
desconstrói subliminarmente a ideia de uma masculinidade naturalmente
forte e corajosa. Quando coloca este homem submetido a uma mulher
autoritária como pai – “Era da raça de tio Ramiro, em suas veias corria
o sangue do patriarca”23 – indica que o patriarca deformava a vida de
homens e mulheres submetidos a ele. Sua sombra “além de dominar a
família e as centenas de pessoas que lhe povoavam as terras [...] se estendia
sobre a justiça e a religião”.24
No romance, o patriarcado é representado como um sistema de
opressão de classe, não de gênero. Tanto é assim que as duas personagens

22
PAIM, 1950, p. 60.
23
Ibid., p. 112.
24
Ibid, p. 258

177
Iracélli da Cruz Alves

que assumem a linha de comando do sistema opressor é um homem –


tio Ramiro, e uma mulher – sua filha Teresa. O patriarcado de Alina
Paim se aproxima do que hoje chamamos de coronelismo. Tio Ramiro,
tendo a filha como braço direito, encarna a figura do coronel: grande
proprietário rural que controla as instituições – família, religião e po-
lítica – para manutenção do seu poder econômico e político. A partir
da década de 1970, no entanto, o conceito de patriarcado passou a ser
“quase sinônimo de ‘dominação masculina’ ou de opressão das mulhe-
res”.25 Seu uso é dotado de um caráter totalizador. Remete, em geral, a
um sentido fixo, uma estrutura fixa de dominação, empobrecendo os
sentidos contraditórios das transformações.26
Mas é preciso ir além do paradigma do patriarcalismo que conformou
a matriz de dominação masculina. Esta perspectiva limita às oposições
entre os sexos masculinos e femininos, restringindo os significados políticos
de outras relações sociais; quando precisamos compreender a dimensão
política dos poderes femininos e sistemas de poder e de subordinação
inscritos em outras relações – de classes, de raças-etnias, de gerações.27
Desse modo, para pensar as hierarquias sexuais e suas transformações
históricas é mais apropriado falar em relações de gênero, que não define
a priori os sentidos das mudanças, permitindo construir metodologica-
mente uma rede de sentidos divergentes, convergentes ou contraditórios.28

25
DELPH, Christine. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA, Helena et aliae. Dicionário
crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 173.
26
MACHADO, Lia Zanotta. Perspectivas em confronto: relações de gênero ou patriar-
cado contemporâneo? In: Sociedade Brasileira de Sociologia (Ed.) Simpósio Relações
de Gênero ou Patriarcado Contemporâneo, 52ª Reunião Brasileira para o Progresso da
Ciência. Brasília: SBP, 2000, passim.
27
COSTA, Suely Gomes. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde
reprodutiva. Estudos Feministas. Santa Catarina, v. 10, n. 2, p. 301-322. Jul.-dez,
2002. p. 303.
28
Como observou Joan Scott (1995), o conceito de gênero se refere ao caráter fundante

178
A política em prosa: representações comunofeministas
em A sombra do patriarca

O FEMINISMO NA NARRATIVA DE UMA MULHER COMUNISTA


Além do conceito de patriarcado, caro aos debates feministas atuais,
Alina Paim traz outros elementos para pensarmos como ela incorporou
o debate feminista em seu romance, nos permitindo repensar verdades
cristalizadas sobre a ausência de uma prática feminista entre as mulheres
do PCB antes da década de 1970. O romance analisado, entre outras
fontes, parece comprovar a hipótese de que, ao contrário do que frequen-
temente aparece na historiografia, as pecebistas estavam comprometidas
com o feminismo, embora não se apropriassem desse nome.
Em A sombra do patriarca o feminismo não aparece enquanto uma
elaboração conceitual, como a autora o faz, de forma indireta, com o
conceito de patriarcado. Isso tem a ver com as leituras elaboradas sobre
o movimento que circulava à época e com a posição assumida pelo par-
tido.29 Embora o PCB, em alguma medida, defendesse a luta feminina

da construção cultural das diferenças sexuais hierarquizadas. Neste sentido, Maria Rita
Kehl salienta que estas construções têm sido concebidas em termos de dominação
e de controle das mulheres e dos homens que desviam do padrão de masculinidade
hegemônico. Cf. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica.
Educação & Realidade: Porto Alegre, v. 20, p. 71-99, jul. – dez. 1995, passim; KEHL,
Maria Rita. Deslocamentos do feminino. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 2008, p. 27-29.
29
Sérgio Buarque de Holanda destacou que a preocupação excessiva dos historiadores
com o uso adequado das palavras, fechando os termos em si mesmos, como se eles
não sofressem alterações, empobrecem as análises historiográficas. Ao chamar a
atenção para isso não quis desconsiderar a necessidade de precisar a terminologia,
mas esta precisão requer uma historicização da palavra ou do conceito, observando
como as palavras adquirem sentidos distintos em diferentes épocas. Ao que parece,
o autor se inspira em Reinart Koselleck que, antes dele, já havia afirmado que os
conceitos têm uma história e falam sobre as conjunturas em que foram produzidos,
reproduzidos e modificados. As palavras podem até permanecer as mesmas, mas não
indicam necessariamente a permanência do mesmo conteúdo ou significado por ela
designado. As alterações de sentido pelas quais passam ao longo da história refletem
os conflitos sociais e políticos. Portanto, seu uso e suas mudanças devem ser aten-
tamente acompanhados por historiadoras. Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque. Sobre
uma doença infantil da historiografia. In: Costa, Marcos (Org). Escritos Coligidos –

179
Iracélli da Cruz Alves

por emancipação, entendia que esta luta não deveria ser feminista. A ideia
hegemônica dentro do partido era que o feminismo era um movimento
pequeno burguês de mulheres contra homens, interpretação relacionada
às concepções gerais correntes no contexto.
Apesar de hoje entendermos o feminismo como todas práticas sociais,
culturais, políticas e linguísticas que atuam com o objetivo de liberar as
mulheres de uma cultura misógina e da imposição de um modo de ser
construído pela lógica masculina nos marcos da heterossexualidade;30
até a segunda metade do século XX o termo designava o movimento
organizado por mulheres de tendências liberais de classe média que
geralmente não aprofundaram na discussão acerca das estruturas sociais
responsáveis pelas hierarquias de gênero.31
A recusa das pecebistas em se assumirem feministas também tem
relação com o sentimento de pertença a um partido comunista. Antes
da década de 1970, especialmente antes do golpe de 1964, as mulheres
do PCB compartilhavam os valores defendidos pelo partido. Existia uma
espécie de cultura comunista que, na definição de Pandolfi, significa “uma
determinada visão de mundo, compartilhada por todos aqueles vinculados
a uma tradição que se consolidou com a vitória da Revolução Russa de
1917 e se identificou com o modelo de sociedade que foi implantado na
URSS”32. Desse modo, embora algumas pecebistas tenham se dedicado à
luta pela emancipação e/ou libertação feminina, elas tiveram dificuldades
em assumir outra identidade, que não a comunista. Portanto, a ausên-

Livro II, 1950-1979. São Paulo: Editora Unespe; Editora Fundação Perseu Abramo,
2011. p. 419-435; KOSELLECK, Reinhart. História dos conceitos e história social.
In: ______. Futuro Passado: Contribuições à semântica dos tempos históricos. Rio
de Janeiro: Contraponto, 2006. p. 97-118.
30
RAGO, 2013, p. 28.
31
RAGO, Margareth. Entre a História e a liberdade: Luce Fabri e o anarquismo con-
temporâneo. São Paulo: UNESP, 2001. p. 219.
32
PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros: História e memória do PCB. Rio
de Janeiro: Relume-Dumará: Fundação Roberto Marinho, 1995. p. 35.

180
A política em prosa: representações comunofeministas
em A sombra do patriarca

cia do termo no romance só pode ser entendida quando a narrativa e o


conceito são pensados de maneira contextualizada. O fato da expressão
não compor o texto não significa que não possamos identificar nele
representações feministas.
Em A sombra do patriarca Alina Paim traz personagens que enfati-
zam a necessidade de libertação do gênero, mesmo demarcando que o
comunismo seria a única possibilidade para este fim. No enredo fica evi-
dente que as mulheres orientariam os jovens a construir um mundo sem
desigualdades. Nenhuma figura masculina aparece como protagonista,
nem como alguém responsável pela orientação, cabendo ao feminino
esta responsabilidade.
No percurso a mulher precisaria não temer “privações nem traba-
lhos para viver sempre de cabeça erguida”.33 Era preciso defender “sua
independência para conservar o direito de dizer o que pensava”.34 Era
fundamental que tivessem personalidade e que não se apagassem diante
do marido. A narradora também se opõe, de forma explícita, às concep-
ções de que as mulheres são naturalmente frágeis e incapazes para deter-
minadas atividades, além de evidenciar como a educação atrofiava suas
potencialidades. “A mulher pode competir com o homem e vencer em
qualquer coisa para que tenha vocação. Pode ser médica, advogada e até
engenheira, apesar das dúvidas de muitos homens sobre suas aptidões”;35
[...] tem possibilidades iguais às do homem, a educação é
que a atrofia, dando um valor exagerado a seus sentimentos
e neutralizando suas energias intelectuais. Repete-lhe a todo
instante que é a mais fraca e que sem uma vontade masculina
ao seu lado, nada poderá fazer.36

33
PAIM, 1950, p. 256.
34
PAIM, 1950, p. 256.
35
PAIM, op. cit., p. 46.
36
Ibid., p. 40.

181
Iracélli da Cruz Alves

As representações de Alina Paim, em parte, estão em sintonia com o


debate feminista de meados da década de 1940. No período, as mulheres
viviam mudanças sociais importantes, apesar da resistência de uma ampla
parcela da sociedade. Naquele contexto já havia um forte movimento
de mulheres por emancipação, organizado em diversos grupos. Parte
destes se reconhecia feminista, a exemplo da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino (FBPF), organização cujo estudo pioneiro coube a
Rachel Soihet.37 Outra parte, apesar de reivindicar mais liberdade para
as mulheres não se assumia feminista, como foi o caso das mulheres
comunistas.
Essa situação contribuiu para que se forjassem leituras historiográficas
que ora sentenciam que o movimento feminista no Brasil teve início
na década de 1970, ora dividem a história do movimento em fases que
parecem não dialogar. Nesta leitura, a primeira onda feminista brasileira
teria começado na década de 1920, durando até, aproximadamente, a
década de 1940, enquanto a segunda teria se iniciado na década de 1970.
Seus respectivos marcos finais são imprecisos, demonstrando que estas
análises possuem pontos cegos.
Há ainda quem divida o movimento político em dois grupos: “mo-
vimento feminista” e “movimento de mulheres” (ou femininos), inter-
pretação que também tem suas temeridades. Como observou Elisabeth
Souza Lobo, na década de 1980 as pesquisas sobre os “movimentos de
mulheres” e os “movimentos feministas” enfrentavam dificuldades.38 A
primeira delas relacionava-se ao próprio recorte que os separava, proble-
ma ainda recorrente. A segunda está no fato de que os estudos sobre os

37
SOIHET, Rachel. Bertha Lutz e a ascensão social da mulher (1919-1937). 1974. 88f.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de História, Universidade Federal
Fluminense. Nitetói, 1974.
38
LOBO, Elisabeth Souza. Movimento e mulheres e representação política no Brasil
(1980-1990): o gênero da representação. In: ______. A classe operária tem dois sexos:
trabalho, dominação e resistência. São Paulo, Perseu Abramo, 2011. p. 263-275.

182
A política em prosa: representações comunofeministas
em A sombra do patriarca

movimentos populares, embora amplos, frequentemente não se preocu-


pavam em estabelecer recortes de gênero. Outro problema diz respeito à
ausência de uma investigação acerca das relações entre os “movimentos
populares de mulheres” e o “movimento feminista”. O problema também
carece de solução39.
Os romances de Alina Paim revelam como parte das mulheres do
PCB estava comprometida com a causa feminista. Não por acaso, em A
Sombra do Patriarca são as mulheres que comandarão a revolução social
comunista. No romance, a compreensão do comunismo não era para
todos, apenas para aqueles que quase naturalmente apresentassem uma
insatisfação social, ainda que não fossem da classe trabalhadora, como
era o caso de Raquel e Leonor. Mas ainda que apresente um brado femi-
nista, sendo povoado por mulheres que destoam dos padrões do tempo
da escrita, a narrativa reforça os valores culturais da época. A narrativa
ficcional herda da vida suas ambiguidades.
Neste sentido, uma das suas personagens, Alzira, irmã do patriarca,
é apresentada como uma mulher triste e deprimida por não ter casado;
e não casou porque seu irmão proibiu o enlace pelo fato do noivo ser
“filho de mulata”40. Ao mesmo tempo, a narradora, no auge dos seus 25
anos se incomodava por ter chegado àquela idade sem ter namorado. O
casamento está em seu horizonte de expectativas como uma necessidade
inexorável. Mas para ela, diferente do casamento tradicional em que as
mulheres deviam se submeter às vontades do marido, o matrimônio de-
veria se constituir em um “laço de camaradagem cimentado na união”41.
A ideia da união matrimonial como uma necessidade fundamental para
a mulher será reafirmada em outros romances, inclusive em Simão Dias

39
Cf. ALVES, Iracélli da Cruz. Os movimentos feminista e comunista no Brasil: história
e historiografia. Tempos Históricos. v. 21, p. 107-140. Jun-dez, 2017, p. 112-118.
40
PAIM, 1950, p. 216.
41
Ibid., p. 39.

183
Iracélli da Cruz Alves

cuja heroína, livre da “escravidão afetiva”42, sonha em encontrar alguém


com quem possa construir o verdadeiro enlace. “Em seu projeto de feli-
cidade havia lugar para o homem, desejo de um companheiro”43, mesmo
sabendo que não seria fácil encontrar alguém “que andasse lado a lado
com ela, sem a tentação de adiantar-se no caminho para ser seguido [...]
– na igualdade real entre homem e mulher”.44
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, para botar um ponto final em um debate que não se encerra
nestas linhas, aqui nosso objetivo foi perceber como o romance A Sombra
do Patriarca abre janelas que apresentam parte do debate feminista do
período. Em suas páginas podemos encontrar um feminismo interligado
ao comunismo. Neste sentido, as mulheres só alcançariam a real liberda-
de quando a sociedade comunista fosse construída. No entanto, apesar
dos limites, era possível adquirir algum tipo de autonomia dentro do
“patriarcado”, que na narrativa aparece como um sistema de opressão de
classe, onde os coronéis detinham total controle sobre a vida daqueles
que lhe cercavam, até aparecer as comunistas, que romperiam, junto com
a juventude, com a “sequência de submissão”.
Pensar as conexões entre a ficção e a realidade, neste caso entre o
romance e as práticas feministas, envolve, entre outras coisas, não es-
quecer que a vida da ficção organiza uma vida, a partir de uma ordem
inalcançável para a vida, duas realidades anímicas que nunca podem ser
reais ao mesmo tempo. Assim, em linhas gerais, a análise dos romances
de Alina Paim tem nos aproximado das experiências, mas principalmente
das aspirações e idealizações, de uma mulher comunofeminista que viveu
grande parte de sua militância antes da década de 1970, consagrada como
a “década do feminismo”.

42
PAIM, 1949, p. 182.
43
Ibid., p. 206.
44
Ibid.

184
A política em prosa: representações comunofeministas
em A sombra do patriarca

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HOMENAGEM do Partido Comunista do Brasil aos seus escritores e
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Universidade Federal Fluminense. Nitetói, 1974.

187
Euclides Neto:
apontamentos biográficos e literários

Albione Souza Silva


Mestrando (UNEB).
albione@bol.com.br

E m sua produção literária, Euclides Neto (1925-2000) publicou 13


obras (romances, crônicas, contos e memórias), tratando das desi-
gualdades sociais entre os “senhores do cacau” e os trabalhadores rurais.
Sobre a produção literária de Euclides Neto, o jornalista e poeta Elieser
César, em seu livro o Romance dos excluídos: Terra e política em Euclides
Neto, afirma:
Em toda obra de Euclides Neto [...] há essa clara intenção
pedagógica, fruto da escolha ideológica do autor pelos pobres,
perseguidos e humilhados: denunciar as mazelas do capitalis-
mo (emblematizado no campo pelo latifúndio), numa crítica
radical ao sistema econômico que provoca a degradação do
ser humano e a exclusão social, através de uma economia de
mercado que visa apenas o lucro de uma minoria e condena à
fome, impondo como única saída a mais absoluta das privações,
a venda da força de trabalho a preço vil.1

CESAR, Elieser. O Romance dos Excluídos: Terra e política em Euclides Neto. Ilhéus:
1

Editus, 2003. p.47-48.

189
Albione Souza Silva

Na fase atual da pesquisa, busca-se aprofundar os estudos tomando


como referências as produções teóricas que tratam do intercâmbio entre
a História e a Literatura, bem como dos estudos historiográficos tratando
do gênero biográfico. Tais discussões contribuirão para a problematização
dos traços biográficos do escrito, bem como da sua produção romanesca,
externada mediante tensões e contradições sociais, representadas através
das personagens ambientadas no Sul da Bahia.
Em seu artigo A sociedade e os indivíduos, Edward Carr afirma: “ne-
nhuma sociedade é completamente homogênea. Toda sociedade é uma
arena de conflitos sociais e aqueles indivíduos que se enfileiram contra
a autoridade existente não são menos produtos e reflexos da sociedade
do que aqueles que a sustentam”.2
Por significar a principal forma de expressão ao longo de sua vida,
a literatura de Euclides Neto, considerada de caráter social e engajada,
constitui-se fonte de análise fundamental para a realização deste traba-
lho. A pesquisa que nos propomos envolve a consulta e análise de fontes
jornalísticas, iconográficas, orais e, sobretudo, literárias.
Em grande medida, os estudos historiográficos atuais são corolários
da “Nouvele Histoire” (Nova História) francesa, surgida no final da década
de 1960, influenciada pelos movimentos contestatórios que cobravam
novos paradigmas culturais, intelectuais e políticos. Essa renovação
historiográfica contribuiu para a ampliação do campo de atuação do
historiador e para o fortalecimento das suas relações interdisciplinares
e transdisciplinares, buscando abordagens que dessem protagonismo
a grupos e sujeitos sociais silenciados pela “historiografia tradicional”.
Tratando do surgimento da História Social, Eric Hobsbawm afirma:
“O termo história social sempre foi difícil de definir, e até recentemente
não havia nenhuma premência em defini-lo, já que não se havia formado

2
CARR, Edward Hallet. “A sociedade e os Indivíduos”. In: CARR, Edward Hallet.
O que é História? Rio de Janeiro: |Paz e terra, 1982, p.87.

190
Euclides Neto: apontamentos biográficos e literários

os interesses institucionais e profissionais que normalmente insistem em


demarcações precisas”. 3
As tradições literárias dos cânones greco-romanos, ou mesmo dos
medievalistas, seguiam um modelo baseado em narrativas lendária,
mitológicas, bíblicas ou históricas, agasalhadas como repertório das
experiências humanas em suas cosmogonias. Na obra A ascensão do
Romance, Ian Watt discorre sobre o ocaso desta tradição literária,
hegemônica até o século XIX, que gradativamente perderia seu lugar
para o gênero romanesco:
Esse ponto de vista persistiu até o século XIX; os adversários
de Balzac, por exemplo, utilizaram-no para ridicularizar sua
preocupação com a realidade contemporânea e – achavam eles
– efêmera. Ao tempo, contudo, desde o Renascimento havia
uma tendência crescente a substituir a tradição coletiva pela
experiência individual como arbítrio decisivo da realidade; e
essa transição constituiria uma parte importante do panorama
cultural em que surgiu o romance 4
Do ponto vista do estudo dos aspectos biográficos, este trabalho
não pretende centrar-se apenas em Euclides Neto, buscar-se-á abordar o
contexto político, cultural e social na inter-relação dos indivíduos com a
sociedade. Pois, o tensionamento entre o sujeito e a sociedade não ocorre
em mão única, ao contrário, dá-se de maneira recíproca, produzindo
interações dialéticas.
Na antiguidade greco-romana as escritas biográficas pretendiam
revelar personagens idealizados, colocando-os como modelos, “homens
iluminados”, líderes guias, alguns deles, considerados predestinados a

3
HOBSBAWN, Eric . “Da História Social à História da Sociedade”. In:__ Sobre
história (ensaios). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 83.
4
WATT, Iann. A Ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.
Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras. 2010, p.14.

191
Albione Souza Silva

serem heróis ou santos, influenciadores das gerações futuras. Nessa pers-


pectiva, Sabina Loriga, em O pequeno X: da biografia à história, afirma:
A antiguidade grega e romana contou com importantes
biógrafos, assim como a Idade Média e a Renascença. Mas
ainda não se chamava assim. O termo “biografia” só aparece
ao longo do século XVII, para designar uma obra verídica,
fundada numa descrição realista, por oposição a outras formas
antigas de escritura de si que idealizavam personagens e as
circunstâncias de sua vida (tais como o panegírico, o elogio,
a oração fúnebre e a hagiografia)”. 5
Tomando como referência o pensamento de Karl Marx acerca do
lugar do indivíduo na história, a partir do seu O 18 Brumário de Luís
Bonaparte, percebe-se que o fato da obra está centrado em Luís Bonapar-
te, sobrinho de Napoleão, não a limitou a uma narrativa apologética,
priorizando o lugar de destaque e protagonismo do “líder político” diante
das forças sociais.
Ao contrário, na referida obra, Marx expôs uma síntese do seu mate-
rialismo histórico dialético pontuando o equilíbrio de forças entre a ação
humana e as influências das estruturas sociais, relativizando o peso do
indivíduo nas transformações sociais: “Os homens fazem a sua própria
história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não
são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas
estas lhes foram transmitidas assim como se encontram”6.
A ampliação dos horizontes historiográficos levou o historiador a
buscar novas fontes, agregando em suas análises uma pluralidade de
signos, despertando o interesse pelas imagens, palavras, símbolos, coisas

5
LORIGA, Sabina. “O limiar Biográfico”. In: LORIGA, Sabina. O pequeno X: da
biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 17.
6
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução e notas Nélio Schneider.
Prólogo Herbert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011, p.25.

192
Euclides Neto: apontamentos biográficos e literários

e gestos; consequentemente, alargando-se o leque de possibilidades no


rol das pesquisas.
Em 1961, Euclides Neto publicou o romance intitulado Os magros.
Nesta obra o autor apresenta o antagonismo entre a numerosa família
de João, trabalhador rural e a família do fazendeiro, Dr. Jorge. A pri-
meira é marcada pela miséria. A segunda, em outro extremo, ostenta
suntuosidade e a opulência. Em cada capítulo do romance emerge
como contraponto a discrepância exacerbada entre as famílias dos
trabalhadores rurais, vivendo na pobreza, e do abastado proprietário
de grandes fazendas de cacau.
Na referida obra é pulsante em sua narrativa a denúncia das estrati-
ficações e desigualdades sociais, fruto do modelo econômico ancorado
na monocultura. Para além de ser um mecânico romance panfletário,
sua literatura se revela como minucioso instrumento de denúncia das
injustiças sociais do sistema fundiário; ambiente marcado pelas precárias
condições de vida, bem como por toda sorte de exploração e desrespeito à
dignidade da pessoa humana, conforme expressa os personagens da trama.
O romance Os magros teve sua primeira edição 1961, dois anos an-
tes de Euclides Neto ter iniciado sua gestão como prefeito de Ipiaú. Ao
longo da obra, nos diálogos, percebe-se a influência marxista do autor.
Na conversa entre dois trabalhadores rurais é explícita a discussão em
torno da exploração da força de trabalho, através da “mais-valia”, nas
faustas fazendas de cacau:
– Lá no sul encontrei um sujeito que veio de São Paulo.
Conversa uma porção de ciência. Sabia ler e escrever como
um tabelião.

– E era alugado?

– Trabalhava no meio da gente. Reunia a turma no terreiro e


lá vai prosa. Dizia que os ricos roubam o trabalho do pobre.

193
Albione Souza Silva

Que, se nós estendêssemos, poderíamos também apanhar


cacau e vender.

– Bem pensado... Quem rouba de ladrão tem cem anos de


perdão.

– Que, se nosso serviço vale cinquenta cruzeiros, o patrão só


paga vinte e cinco. Portanto roubou vinte e cinco. Então a gente
podia apanhar esses vinte e cinco que o patrão nos roubou.

– É...

– Isso não é roubo. É defesa. Mário era o nome dele. Ainda


dizia que se o rico tem o direito de roubar da gente, nós tam-
bém podíamos fazer o mesmo com ele.7
Como prefeito, em 1963, no inicio de seu governo, desapropriou
fazenda de aproximadamente 158 hectares, que foi partilhada entre 77
famílias de trabalhadores rurais desempregados. Posteriormente, essa
área rural seria batizada pelos próprios trabalhadores com o nome de
“Fazenda do Povo”.8
Em livro de memórias sobre a sua gestão, Euclides Neto explicou a
motivação para a criação da “Fazenda do Povo” 9:
[a Fazenda do Povo] Nasceu da vontade de fazer uma experi-
ência socialista, sem ficar somente na proveta do laboratório de
sociologia e política. (...) Com as secas e as fazendas despejando

7
TEIXEIRA NETO, Euclides. Os Magros. 2. ed. São Paulo, Guena & Bussius, 1992,
pp.109-110.
8
SILVA, Albione Souza. O caráter socialista da Gestão de Euclides Neto no município
de Ipiaú (1963-1967). Monografia de conclusão da Graduação em História, 2003.
UESC.
9
A desapropriação que originou a Fazenda do Povo ocorreu através do decreto lei
municipal nº 965 de 8 de junho de 1963. Dessa forma, marcando a primeira expe-
riência de reforma agrária do Brasil, por iniciativa de um prefeito.

194
Euclides Neto: apontamentos biográficos e literários

gente, quem mais sofria era o pai de família numerosa, o velho


de braços flácidos, o homem de pereba na perna, a mulher
abandonada que descaroça cacau e oferenda amor, mais chega
ao ponto de não ter mais carne, porque a fome transformou-a
em bagaço seco: sem forma nem gosto. Era o que chamamos
de sucata de gente. 10
Euclides Neto (chapéu branco) com posseiros erguendo o cruzeiro
do cemitério da Faz. do Povo (1963).

Fonte – Acervo da família de Euclides Neto.

Com essa iniciativa pioneira de reforma agrária realizada por um


prefeito, converteu-se uma propriedade privada dos meios de produção
em propriedade social. Em consequência, grupos políticos conservadores,

TEIXEIRA NETO, Euclides José. 64: Um prefeito, a revolução e os jumentos – A


10

Fábula do presidente Salém. Salvador: Fator, 1983. p. 92.

195
Albione Souza Silva

após o golpe civil-militar de 1964, acusaram Euclides Neto de “subversivo


e comunista”, submetido a Inquérito Policial Militar (IPM) de abril de
1964 a dezembro de 1965.11
Em livro de memórias, Euclides Neto comenta sobre seu ingresso
no Partido Comunista do Brasil (PCB), ainda estudante de direito em
Salvador:
Deglutimos de um tudo: Lênin e Gandhi. De René Fullop
Miller a um mundo só de Wendel Wilkie. (...) Estávamos em
cio intelectual, quando cai a semente: O Capital de um sujeito
barbudo, judeu alemão, vivido na Inglaterra. (...) E, num dia
primaveril, sol tarrafeando na Bahia de todos os Jorge Amados,
depois dos competentes testes de obediência, coragem, decisão,
conhecimento, sou recebido num casarão, ali pela ladeira de São
Bento, lado esquerdo. Lugar de morar cristão fugido. Quem
receberá meu juramento? Havia os monstros sagrados: Mário
Alves, Giocondo Dias. Novos novinhos, meninos. O primeiro
amarelo, magro, asceta como todo bom revolucionário. O
segundo, aloirado, bigode de cotia, ativo. Carlos Mariguella já
se considerava em esfera mais superior, andava Rio, São Paulo
(...) Milton Tavares tomou meu juramento, batizou-me. 12
Sobre o ingresso de Euclides Neto no Partido Comunista, Milton
Tavares Comenta:
Eu conheci Euclides Neto na Faculdade de Direito, hoje Facul-
dade de Direito da Universidade Federal da Bahia, que não era
ainda a UFBA, pois a Faculdade data de 1946. Ele era 2 anos
mais atrasado que eu, mas tínhamos bons relacionamentos e
participávamos ambos da idéias mais progressistas da época.

11
FERREIRA, Muniz. A guinada na Bahia, com o golpe de 1964. Revista História
Viva. São Paulo, ano 3, n.26, p. 89, dez.2005.
12
TEIXEIRA NETO, Euclides José. 64: Um prefeito, a revolução e os jumentos – A
Fábula do presidente Salém. Salvador: Fator, 1983. pp.161-162.

196
Euclides Neto: apontamentos biográficos e literários

Quando em 1945 o partido comunista veio a ser legalizado,


eu a ele me filiei, e fui escolhido para ser o secretário geral,
que era a denominação do dirigente, secretário geral da célula
que se constituiu na Faculdade de Direito. Nesta célula, Eu-
clides pediu e obteve ingresso, por meu intermédio, e militou
dentro dela. 13
Tratando da presença do jovem acadêmico e escritor Euclides Neto
na célula do PCB na Faculdade de Direito, Luís Contreiras (ex-dirigente
comunista) afirma:
Em 1945 o Partido Comunista veio à legalidade, nessa época
então é que eu conheço Euclides Neto. Me lembro que a sede
do partido ficava ali na Ladeira de São Bento, me lembro dos
estudantes, que eram um número muito grande da Escola de
Direito, foram lá para se filiar ao partido. Ai então eu tive um
conhecimento político com ele (Euclides Neto.) [...] Então ele
ingressou no partido na célula da Escola de Direito onde fica
até 1949 quando se forma e vai para Ipiaú. [...] Eu fui preso
em 1975, já na época do governo Geisel e ele (Euclides Neto)
foi me visitar na casa de detenção ali no Santo Antônio. Ele
mostrou que era um homem que tinha coragem, que em plena
ditadura ele teve a sua coragem e a hombridade, com todos os
riscos, de me visitar na casa de detenção. 14
Na obra Rastros Biográficos: estudos de trajetórias,15 Paulo Silva refle-
tindo sobre os conflitos individuais e coletivos, diante das complexas
tramas sociais, afirma: “O ponto de convergência parece que tende a
se situar na possibilidade de apanhar a trajetória dos indivíduos na

13
Depoimento cedido por Milton Tavares (advogado e ex militante do PCB da Bahia),
em 9 de agosto de 2005, para Albione Souza Silva.
14
Depoimento cedido por Luis Contreiras (ex-dirigente do PCB da Bahia), em 9 de
agosto de 2005, para Albione Souza Silva.
15
SILVA, Paulo Santos. O biógrafo como narrador: a concepção de biografia em Luiz

197
Albione Souza Silva

complexa trama social, interpelando suas contradições e conflitos


individuais e coletivos”.
Ao traçarmos alguns aspectos biográficos do político e escritor Eucli-
des Neto, busca-se compreender as motivações ideológicas expressas, em
boa parte, em suas produções literárias e atuações políticas. Desta forma,
deseja-se identificar as influencias que forjaram as concepções políticas e
literárias trilhadas por Euclides Neto ao longo de sua vida.
Publicado por Euclides Neto em 1978, O Patrão trata do drama so-
cial do vaqueiro Tomás e da sua numerosa família formada por seus dez
filhos e sua esposa Lindaura. Neste romance novela, emergem as agruras
e desditas dos trabalhadores rurais numa fazenda de 4 mil hectares – com
produção de cacau e criação de gado, em Ipiaú – no sul da Bahia.
Na referida obra, o fazendeiro, seu Cassemiro, mesmo à distancia,
pois reside na capital baiana, descobre que seu vaqueiro Tomás se apro-
priou de uma vaca que lhe pertencia. A partir desta relação tensa entre
o patrão e o trabalhador, inicia-se o enredo da trama que levaria ao fa-
tídico desfecho desta produção romanesca. Para se livrar da vergonha e
humilhação em ser preso, o vaqueiro Tomás, resoluto, numa emboscada,
tira a vida do seu patrão.
Buscando salientar na narrativa as idiossincrasias dos trabalhadores
rurais, Euclides Neto apresenta em sua obra o olhar dos silenciados e
excluídos da história tradicional, volta-se para os trabalhadores que, com
seu sangue, suor e lágrimas, geravam a riqueza dos grandes cacauicultores
baianos. Na literatura euclidiana não há exaltação aos ditos “vitoriosos
desbravadores”, que colonizaram as matas, tornaram-se os donos do fruto
do ouro, e ostentavam a riqueza como troféu.
Em O Patrão a narrativa segue um caminho inverso, pois, neste enredo,
o fazendeiro é o coadjuvante à sombra do trabalhador. Portanto, nesse

Viana Filho In: LEMOS, Maria Elisa e SILVA, Paulo Santos. Rastros Biográficos:
estudos e trajetórias. Salvador. ADUNEB, 2014, p. 47.

198
Euclides Neto: apontamentos biográficos e literários

prisma, com muito viço, entram em cena os subalternos trabalhadores


rurais anônimos vivendo nos ranchos de taipas, cobertos de indaiás, no
meio do mato.
Na referida obra, em seu terceiro capítulo, Felipe, o trabalhador rural
politizado alerta aos colegas de trabalho que o lucro do patrão é fruto
da exploração dos trabalhadores. A partir deste episódio, o vaqueiro
Tomás decide vender uma vaca doente do patrão para suprir as precárias
condições de vida dele e de sua numerosa família:
– Pegar no alheio, não. Deus não há de me dar fome para que
eu precise roubar.

– Mas, senhor Eufrásio, não é roubar não. É receber o nosso,


aquilo que o patrão mete no buraco-do-alfaiate e nem satis-
fação dá aos fracos.

Tomás foi relutando para aceitar os ditos de Felipe, até que um


dia o Eusébio da bodega chamou-o na vista de todo mundo
e alarmou:

– Quero o meu, seu Tomás. De velhacaria Basta. Você é em-


pregado de gente rica e pode me pagar. Eusébio tinha razão.
Há mais de dois anos devia uma carne, dois quilos de açúcar,
meio litro de queirosene, três quartos de cachaça. O caçula ia
fazer três anos e a nota havia sido para o resguardo de Lindau-
ra. Ela deu à luz numa sexta-feira. Não tinha nada em casa.16
Tomando as obras literárias e os traços biográficos de Euclides Neto
como objeto de estudo, neste trabalho, busca-se dialogar com os refe-
renciais teórico-metodológicos que auxiliem efetivamente no tratamento
das fontes para a pesquisa. O estudo em curso pretende desenvolver uma

16
NETO, Euclides. O patrão. 2.ed. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Littera Criações
Ltda, 2013, p.31.

199
Albione Souza Silva

dissertação, tendo como foco o uso das obras romanescas euclidianas,


abordando os cruzamentos e distanciamentos entre a história, a literatura
e o gênero biográfico.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
CARR, Edward Hallet. A sociedade e os Indivíduos. In: CARR, Edward
Hallet. O que é História? Rio de Janeiro: |Paz e terra, 1982. p.67-90.

CESAR, Elieser. O Romance dos Excluídos: Terra e política em Euclides Neto.


Ilhéus: Editus, 2003.

FERREIRA, Muniz. A guinada na Bahia, com o golpe de 1964. Revista


História Viva. São Paulo, ano 3, n.26, p.89, dez.2005.

HOBSBAWN, Eric . DA História Social à História da Sociedade. In:__


Sobre história (ensaios). São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 83-105.

LORIGA, Sabina. O limiar Biográfico. In: LORIGA, Sabina. O pequeno X:


da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 17-47.

MARX, Karl, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução e notas Nélio


Schneider. Prólogo Herbert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011.

NETO, Euclides José. 64: Um prefeito, a revolução e os jumentos – A Fábula


do presidente Salém. Salvador: Fator, 1983.

NETO, Euclides. Os Magros. 2. ed. São Paulo, Guena & Bussius, 1992.

NETO, Euclides. O patrão. 2.ed. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Littera


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município de Ipiaú (1963-1967). Monografia de Conclusão da Graduação
em História, 2003. UESC.

200
Euclides Neto: apontamentos biográficos e literários

SILVA, Paulo Santos. O biógrafo como narrador: a concepção de biografia


em Luiz Viana Filho In: LEMOS, Maria Elisa e SILVA, Paulo Santos. Rastros
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WATT, Iann. A Ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e


Fielding. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras. 2010.

201
A Invenção do pecado: a prostituta nas obras de Nelson
Gallo e Herberto Sales (1930-1960)

Thaís Calazans
Mestranda em História (UNEB)
thaisgcalazans@hotmail.com

A prostituição suscitou interesse de médicos, criminologistas, jornalistas,


historiadores e também dos literatos. É recorrente nas obras ficcionais
a imagem da prostituta como vítima de estigmas sociais, assim como os
prostíbulos,considerados espaços moralmente segregados. A meretriz,
na maioria das vezes, emerge nas narrativas como sinônimo de pecado
e perversão da mulher, afinal, ela não pertence a nenhum homem, por
ter independência financeira, salvo em casos de exploração de gigolôs e
cafetões. Já as «moças de família», pertecendo ao pai, e depois ao marido,
adquirem certo respaldo social e representam, sob essa perspectiva, um
protótipo da mulher ideal.
Dessa maneira, esse trabalho busca enfrentar as representações e mi-
tologias que constituem o imaginário desse submundo através das obras
de dois literatos baianos: Herberto Sales, A Prostituta (1995) e Nelson
Gallo, O Pecado Viaja de Trem (1960).1

HERBERTO, Salles. A Prostituta. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1996 e


1

GALLO, Nelson. O Pecado Viaja de Trem. Edições O livreiro Ltda: 1960.

203
Thaís Calazans

Nos seus livros, os lugares são bem demarcados (a cidade de Sal-


vador), as explicações prontas (a mulher fatal e a vítima) e as imagens
são projetadas através de suas personagens: Maria Corumba, Edna,
Celeste, Ivone, Detinha, entre outras.Na literatura, a imagem da mu-
lher que se prostitui é frequentemente evocada. Dentre bibliografias de
literatos brasileiros, podemos citar uma lista de títulos, do cânone, ou
não. No romance Lucíola (1862), por exemplo, José de Alencar conta a
história de Lúcia, outrora Maria da Glória, impelida a se prostituir por
problemas familiares e econômicos. Na literatura baiana, a meretriz é
constantemente anunciada, haja vista a extensa obra de Jorge Amado, e
também dos dois escritores analisados: Herberto Sales, e Nelson Gallo.
Heberto Sales escreveu sua obra na década de 1990, mas ambienta a
história na década de 1930, quando ainda existiam os bordéis de luxo, e
um fluxo de atividades noturnas, envolvendo toda uma rede de solida-
riedades e conflitos entre cafetões, pessoas da alta sociedade, músicos e
prostitutas. O autor, integrante da Academia Brasileira de Letras, além de
romancista, era jornalista, contista e memorialista, nasceu em Andaraí,
em 1917, no interior da Bahia, e morreu na mesma década que publicou
o romance, no ano de 1999.
O livro que reúne as crônicas de Nelson Gallo foi publicado no ano
de 1960. Em algumas histórias, o autor, faz referência ao passado para
discorrer sobre a realidade dos seus personagens, noutras, em perspectiva
memorialista, o escritor discorre com nostalgia sobre um Pelourinho que
já passou. Todavia, não estava no cânone dos romancistas brasileiros e, por
isso, não encontramos quase nada sobre a sua biografia, até o momento.
 Sem dúvida, a literatura tem dado mostras de que as meretrizes po-
voam o imaginário masculino e se encontram presentes nas narrativas
de diferentes autores, em distintas épocas, marcadas por todo um sistema
de signos sobrepostos ao mundo em que vivem. Tendo em vista essas
questões, indaguei: De que maneira eram representadas as “mulheres
públicas” e as práticas das “sexualidades insubmissas” na metade do século

204
A Invenção do pecado: a prostituta nas obras de Nelson Gallo e Herberto Sales (1930-1960)

XX? Como os lugares onde circulavam essas mulheres foram imaginados


na prosa ficcional dos dois autores escolhidos?
O comércio do corpo feminino é uma atividade econômica inteira-
mente diferenciada, haja vista as interdições impostas sobre a sexualidade
humana, com a prescrição de um modelo exato para o “uso dos prazeres”:
dentro do casal legítimo, heterossexual. Michel Foucault, em História
da Sexualidade: a vontade de saber, realiza uma análise filosófica sobre os
discursos difundidos pelo puritanismo moderno, de tendências cristãs,
sobre os seus conjuntos de esforços, os discursos e as práticas, que repri-
miram, mas, ao mesmo tempo, foram “forçadas a algumas concessões.”2
Essas concessões teriam a função de manter o bom funcionamento
da ordem estabelecida. Ao passo que foram impostos interditos sobre
as práticas sexuais, havia a presença de um homem viril, que, por sua
vez, deveria respeitar as “mulheres de família”. A prostituição seria uma
maneira dessas “moças” permaneceram virgens.
A meretriz, nessa lógica, cumpre uma função social, todavia, é
desvalorizada. Georges Bataille (1957), em O Erotismo, afirma que a
Igreja “[...] queimou as bruxas e deixou as baixas prostitutas viverem.
Mas afirmou a decadência moral da prostituição, servindo-se dela para
sublinhar o caráter do pecado.”3
Havia um dualismo que marcava a imagem da mulher que se pros-
titui, na primeira metade do século XX, deslocando-se entre a “vítima”
e a “mulher fatal”. De um lado, a meretriz vitimizada pelas condições
econômicas adversas, ou por um destino implacável; de outro, a mulher
fatal (femme fatale) que, “embora não seja originalmente prostituta, é
fequentemente associada a ela para designar a cortesã poderosa e cruel.”4

2
FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade: a vontade de saber. 3ª ed. São Paulo:
Paz e Terra, 2015
3
BATAILLE, Geoges. O Erotismo. .1ª ed.1.reimp. Autêntica: Belo Horizonte, 2014,
p. 153.
4
RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina
em São Paulo (1890-1930). 2ª ed.rev.e ampl. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

205
Thaís Calazans

Essas mulheres que se prostituem, eram subscritas em um mundo


marcado pelo eros, emanando beleza e poder, mas também como objeto
sexual masculino, coexistindo contraditoriamente com o seu antônimo:
entre imagens “demoníacas” (mulher fatal) e “divinas” (vítima). Assim a
“mulher pública” foi descrita nas obras de Nelson Gallo e Herberto Sales.
Dentre as representações dessas mulheres que comercializam seus
corpos, a imagem da vítima encontra um lugar privilegiado nas narra-
tivas. Isso fica evidente quando se expõe o modo de ingresso delas no
mundo da prosituição, relacionado, quase sempre, a uma “desgraça”
que aconteceu em sua vida, ocasionada por diversos movivos: a falta de
acesso a um trabalho “digno”, ausência do apoio da família, geralmente
do pai; perda da virgindade,iludida sempre por um homem; gravidez,
ou mesmo por desejo de vigança contra a opressão masculina.
Maragereth Rago afirma que essa visão “romantizada” da prostituição,
na literatura, delimita o debate acerca dos motivos que levam a mulher
a se prostituir, afinal, essa perspectiva suprime:
[...] o erótico desse microcosmo, enquanto que as práticas li-
cenciosas são completamente dessexualizadas. Pois, se a mulher
se prostitui puramente por motivos financeiros, comete um
“sacrifício”, termo de forte conotação religiosa recorrente na
literatura sobre o tema.5
As mulheres tratadas como vítimas da prostiuição contavam sempre
com a interferência de um homem em sua vida. As práticas dos cafetãos,
por exemplo, sempre acusavam o homem, como aqueles que exploravam e
induziam as mulheres para o mundo do comércio do corpo. Na imprensa
baiana, à meretriz era delegada um status de vítima, na medida em que
autoridades da época, se preocupavam com as práticas de lenocínio,
dizendo que essas mulheres eram enganadas; não cedendo espaço para
se pensar na escolha do meretrício por conta própria.

5
RAGO, op. cit., 2008, p. 24.

206
A Invenção do pecado: a prostituta nas obras de Nelson Gallo e Herberto Sales (1930-1960)

Se por um lado, elas eram vítimas das fatalidades de um mundo cruel,


e nada poderiam fazer, onde eram exaltadas suas qualidades, como por
exemplo, a preocupação com o espírito, por outro, elas também eram
agressivas com os homens, na medida em que impunham sua beleza e
utilizavam de sua condição de “objeto de desejo” da procura masculina
para manipular as situações ou ganhar alguma vantagem. Assim, era a
“mulher fatal”, noturna, nas definições de Georges Bataille: o avesso do
“corpo, subordinado e servil”.6
A representação da efígie feminina foi sujeitada a estereótipos que a
caracterizaram como uma personalidade selvagem, má, dotada de um
apetite sexual indomável e bela. Assim se caracteriza a “mulher fatal”: fatal
para os homens!Essas imagens são relacionadas aos discursos “psicologi-
zantes de caso patológico ligadas quase sempre a um trauma de infância,
‘complexos edipianos mal resolvidos’, ou a uma sexualidade exuberante.
Essa representação, sempre negativa, é:“focalizada como resposta a uma
situação de miséria econômica, quanto como transgressão a uma ordem
moral acentuadamente rígida e castradora.”7
Tanto Sales quanto Gallo recorreram à personagem da Femme Fa-
tale, ao figurar a meretrizem suas narrativas. Embora a “mulher fatal” e
a prostituta se difereciem em muitos aspectos, afinal, a primeira não é
obrigada a comercializar o corpo, é na imaginação erótica que esses dois
protótipos de mulher se personificam em uma só.
A mulher pública acaba se deslocando para o campo do imaginário,
vivendo para a transgressão dos códigos morais, distinguindo-se das
“mulheres de família”, atravésda roupa ou da maquiagem transbordan-
te; ou mesmo pela boa dança que, por vezes, levava “homens de bem”
à perda do controle, ao delírio. Como na descrição de Ivone, uma das
personagens da obra de Nelson Gallo:

BATAILLE. Ibid, loc. cit


6

RAGO, op. cit., 2008, p.23.


7

207
Thaís Calazans

A mulher era loura e bonita, escandalosamente loura e escan-


dalosamente bonita, e vestia um escandaloso vestido vermelho
que punha à mostra tôdas as curvas de seu corpo. Nasceu em
mim uma suspeita que se transformou em certeza, à propor-
ção que o trem avançava: entre a pele branda da mulher e a
fazenda vermelha do vestido não havia mais nada. E tudo, – os
meneios do corpo, o riso, a voz arrastada e levemente rouca,
a maneira de sentar, de acender o cigarro, de levar a mão aos
cabelos, atirando-o para trás, de olhar e sorrir para os homens
– gritava: ESCÂNDALO. Se algum dia eu desejasse pintar a
lúxuria, aquela mulher seria o modelo.8
Nelson Gallo evocou a imagem da “mulher fatal” de maneira mais
evidente em sua obra. Primeiramente, no que diz respeito ao título: O
Pecado Viaja de Trem. De modo geral, ele relata os movimentos de jovens
mulheres, que saríam de seus lugares de origem e chegaram em Salva-
dor. De trem elas, em sua grande maioria, chagavam na capital para se
estabelecer no comércio do corpo feminino.
Essas fêmeas, diabólicas, pecadoras, tinham em contrapartida amantes,
sucumbidos ao movimento do desejo. Elas se prostituíam para fugir da
monotonia do casamento, da vida privada do lar, “rebeldes e heróicas”,
desafiavam as imposições morais dominantes. Por outro lado, os homens
eram, por vezes, descritos como redentores no momento em que se
casavam, retirando a “moça” das ruas, ou até mesmo quando propro-
pocionam ajuda financeira: eram esses os homens que se relacionavam
com as vítimas da prostituição.
A efetivação de um comércio especializado na realização dos prazeres
sexuais está ligadaa um complexo sistema de trocas proporcionado pela
ordem social dominante. Dessa forma, a territorialização das práticas
sexuais “ilícitas” em certas áreas da cidade, bem como a domesticação

GALLO, op. cit. 1960, p.73.


8

208
A Invenção do pecado: a prostituta nas obras de Nelson Gallo e Herberto Sales (1930-1960)

do “uso dos prazeres”, construídos historicamente, proporcionaram uma


imagem negativa da prostituição, como um fenômeno que interfere no
processo social que a gerou e a mantém.
O comércio do corpo feminino é uma derivação do ato sexual
“legitimado”, transformado em fonte de lucro. Para que haja meretrí-
cio,basicamente, é necessário a participação de quem vende e de quem
consome, aquele que realiza a compra e adquire o direito de usar, por
determinado momento. Nesse sistema social estabelecido, que privilegia
o casamento monogâmico heterossexual, a fidelidade, a castidade e a
virgindade feminina, ao lado das limitações relativas a conduta sexual
livre, colocam a prostituta num plano social inferior, em relação aqueles
que se encaixam na ordem moral vigente.
Na literatura, a imagem do mundo da prostituição aparece, quase
sempre, com o propósito de alívio das tensões sexuais. Segundo Margareth
Rago, esse seria o efeito da construção no imaginário social do espaço
como “representação do desejo como energia caótica e um estado bruto” e
essa relação “implica a construção imaginária do mundo do prazer como
campo noturno da desordem das paixões e da erupção de forças animais
satânicas, contrárias aos princípios da civilização.”9
Esse lugar, distensão dos desejos proibidos (noturno) é narrado no
romance de Herberto Sales, A Prostituta, ao descrever, sobre a ação de
um dos clientes atendidos pela protagonista, Maria Corumba:
Ah, Edite, quando apaguei a luz, o homem caiu de boca em
cima de minhas coxas, enfiou a cara pelo meu entrepernas, e
começou a me lamber, a me chupar. Foi horrível. Eu até me
assustei. Que diabo era aquilo? Empurrei a cabeça dele, fechei
as pernas, mas o desgraçado ficou me pedindo, implorando,
como se fosse um mendigo, um necessitado. Não, não, não
feche assim as pernas (ele pedia), abra bem as coxas, eu quero

RAGO, op. cit., 2008, p. 196.


9

209
Thaís Calazans

chupar essa buceta gostosa. E o homem fuçava de um jeito,


que mais parecia um porco. Cheguei a ter medo. Pra evitar
o escândalo, pra não ter que chamar a polícia e botar ele pra
fora do meu quarto, acabei cedendo. E ele ficou um tempão
me chupando. Foi uma coisa muito chata, Edite. Não gostei
nada daquela chupaçãoporca.10
Nesse relato o autor faz referência a uma das representações recor-
rentes nos códigos subterrâneos da prostituição: só com as mulheres da
rua seria possível dar vazão aos desejos mais proibidos, incorporando
nas ações práticas eróticas que não se faziam com a esposa, noiva ou
namorada: “Dizem que aqui em Salvador chuparino não bebe água em
casa de família.”11
O meretríciose encaixa num sistema de códigos, leis e práticas, que a
configuram uma cultura diferenciada, com uma geografia demarcada e
seus modos específicos de funcionamento: “Por toda a máquina que essa
instituição promove, trazendo altos lucros ilegalmente, a prostituição está
muito próxima do mundo do crime, abrigando marginais: vagabundos,
gigolôs, delinquentes, ex-presidiários, alcoólatras, viciados.”12
O comércio erótico atendia a várias necessidades, além da perso-
nificação de um desejo proibido, da extensão dos prazeres; a do lucro,
envolvendo todos os que estavam comprometidos com o comércio, direta
ou indiretamente. O dividendo também estratificava a atividade em
níveis socioeconômicos de cada uma das organizações prostitucionais,
forçando a marginalização de algumas mulheres para áreas limitadas da
cidade e, com elas, “os diversos grupos de transgressores e criminosos,
criando uma zona onde tudo é permitido.”13

10
SALES, op. cit., 1996, p. 203.
11
SALES, op. cit., 1996, p.. 204.
12
RAGO, op. cit., 2008, p. 259.
13
ESPINHEIRA, Gey. Divergência e Prostituição: uma análise sociológica da Comuni-

210
A Invenção do pecado: a prostituta nas obras de Nelson Gallo e Herberto Sales (1930-1960)

Dentro desse complexo sistema, que é o comércio do corpo feminino,


surgem diversas práticas de efetivação, através de organizações ligadas ao
lazer e à cultura. As práticas que constituíam o mundo da prostituição
podem ser descritas através dos lugares e espaços urbanos em que elas
se dão e do tipo de consumidor que é atendido, considerando o valor
pago pelo programa.
Gerando uma teia de mistério em torno das práticas silenciosas, que
eram distribuídas pelas noites da cidade, no meio pobre, adquiria um
caráter de “animalidade”, visto na “alta sociedade” pela “repulsa obsessiva
diante da negritude, da depravação sexual imaginada e da aglomeração
indistinta dos corpos quentes”. Contrapondo-se ao comércio que acontecia
no interior dos bordéis, higienizado, branco, cumpria a função social de
“satisfazer as necessidades libidinais dos homens das classes dominantes.”
Na primeira metade do século XX, em Salvador, uma onda de ur-
banização, de caráter moralista e sanitarista, cujo o objetivo era a livre
circulação das famílias no centro da cidade, restringiu os lugares de atuação
das meretrizes. No entanto, elas eram aceitas em espaços pré-determi-
nados. Paralelamente, com a “modernização dos hábitos”, a urgência da
criação de espaços de sociabilidades, ampliaram-se os espaços nos quais
a prostituição seria permitida. Em torno das práticas sexuais ilícitas
foram constituídos territórios ligados ao lazer e à cultura, a exemplo do
Cassino dos Tabaris, localizado na Praça Castro Alves, frequentado pelos
personagens de Nelson Gallo e Herberto Sales.
As mulheres que caiam na prostituição chegavam do interior da Bahia,
ou de cidades de todo o Nordeste do Brasil até Salvador, mais precisamen-
te, até o centro da cidade, para se estabelecer nas zonas de prostituição.
A capital baiana foi lugar de intensa circulação dessas mulheres. Tanto
Nelson Gallo, em O Pecado Viaja de Trem, quanto Herberto Sales, em
A Prostituta, relatam histórias dessas mulheres.

dade Prostitucional do Maciel. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Salvador: Fundação


Cultural do Estado da Bahia, 1984. p, 74.

211
Thaís Calazans

Originárias, muitas vezes, de cidades do sertão devastado pela miséria.


Para essas mulheres prostituir-se era a única saída financeira: “[...] o único
que não escasseava, chovesse ou fizesse sol. Ao contrário de tudo o mais
que o sertão produzia, era “mercadoria” que aumentava a produção que
a seca dizimava o resto: homens, animais, plantações.”14
A expansão da vida noturna em Salvador estava diretamente rela-
cionada com a urbanização das ruas e a sofisticação dos hábitos. Nesses
espaços a prostituta cumpria uma função socializadora ao “[...] agrupar
os indivíduos por meio de redes subterrâneas de convivência e solidarie-
dade. Apresentava-se como um território que viabilizava a experiência de
relacionamentos multifacetados, plurais, num contexto de distensão.”15
Com o processo de urbanização da cidade, quando o governo do
estado adotou medidas de caráter moral e sanitarista, a prostituição
passou a ser problematizada com mais frequência na esfera pública,
sendo reprimida nos lugares onde as prostitutas conseguiam clientes.
Essas deliberações, tomadas pelo governo, tinham como objetivo limitar
o espaço de atuação das meretrizes para livre circulação das famílias na
maior zona de prostituição, que era o Pelourinho.
As constantes interferências do Estado no centro e, consequente-
mente, nos lugares onde era recorrente o fluxo de prostitutas, alteraram
a paisagem e as relações sociais e culturais ali existentes. O resultado foi
uma organização do cotidiano baseado nos interditos impostos pelas
constantes intervenções do governo no espaço urbano e o malogro dessas
tentativas, decorrente da insubmissão daqueles que violavam os valores
morais impostos sobre a sexualidade.
A reorganização proposta pelo Estado da Bahia, em 1932, não
sanou os problemas e continuaram constantes as reclamações da atuação
das meretrizes em “áreas de família”.Mesmo tentando restringir a presença

Galo, op. cit., 2008,p. 169.


14

RAGO. op. cit., 2008, p.196.


15

212
A Invenção do pecado: a prostituta nas obras de Nelson Gallo e Herberto Sales (1930-1960)

da prostituta nas ruas da cidade, o governo não conseguiu estrangular


totalmente os lugares onde elas atuavam. Muito pelo contrário, esse
processo aglutinou as mulheres que eram produto da “prostituição de
mangue”, em comunidades marginalizadas. Como no Maciel, por exem-
plo, que não foi retratado por nenhum dos dois literatos.
No que tange às representações construídas em torno da mulher
que se prostitui nas narrativas ficcionais tanto de Nelson Gallo, quanto
de Heberto Sales, ambos do sexo masculino, podemos concluir que a
meretriz, assim como a geografia da prostituição, foi reduzida ao olhar
do “outro”.
Levando em consideração as correspondências de poder persistentes
nas relações de gênero, a prostituta foi silenciada, marcada por interditos
sobre a sexualidade e o “erotismo”. Assim, a comercialização do corpo
inscreve-se no campo do trabalho, mas não daquele dócil, servil e “diur-
no”, e sim daquele que envolve a escória da sociedade, as sexualidades
insubmissas e “noturnas”.
E assim foram representadas as prostitutas nas obras de Nelson Gallo e
Herberto Sales, seguindo as prescrições das imagens normativas vigentes,
os dois autores, estabelecem algumas congruências, mesmo tendo escrito
suas obras em períodos diferentes, reforçandoos estereótipos do imagi-
nário social. Apesar de que, particularmente na obra de Nelson Gallo,
as imagens da mulher, em geral e da notívaga, em particular, aparecem
como figuras do pecado encarnado.

FONTES

OBRAS LITERÁRIAS, MEMORIALÍSTICAS


GALLO, Nelson. O Pecado Viaja de Trem. Edições O livreiro Ltda: 1960.

HERBERTO, Salles. A Prostituta. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro,


1996.

213
Thaís Calazans

REFERÊNCIAS
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215
Ariano Suassuna, um intelectual polifônico: entre o
erudito e o popular no Romance
d’A Pedra do Reino e O Príncipe do
Sangue do Vai-e-Volta

Susana Cardoso Braga


Mestranda em História (UNEB)
su_cbraga@yahoo.com.br

O objetivo desta apresentação é analisar a trajetória da produção


intelectual do escritor e dramaturgo Ariano Vilar Suassuna (1927-
2014). O foco desta investigação é o Romance d’A Pedra do Reino e O
Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Discute-se, a partir dessa obra, a
perspectiva erudita da abordagem do autor ao tratar da cultura popular
do Nordeste brasileiro. Sua criação literária, ao mesclar fatos históricos
e práticas cotidianas, expressa os resultados dessa combinação, que se
revela em sua prosa romanesca e em sua dramaturgia.
O estudo da obra do autor, enquanto intelectual polifônico, revela em
seu trabalho uma junção de influências que transitam entre o particular
e o universal, adentrando em um desdobramento de diversas histórias
que tendem a se repetir no arcabouço da literatura humana.
Este parecer, apesar do vasto trabalho do escritor, se objetiva na
produção já mencionada, tamanha é a sua representatividade na vida de
seu autor, além disso, A Pedra do Reino é também a tentativa de Ariano
na busca de uma fusão que aglomere, em alguma medida, toda a sua

217
Susana Cardoso Braga

bibliografia acoplando ali os diversos caminhos que compõem a sua


arte, onde todas ganham voz: teatro, romance, poesia, artes plásticas e a
arte inspirada na musicalidade e poesia do Romanceiro Popular. Como
o próprio autor declara, O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do
Sangue do Vai-e-Volta, é a interpretação e a obra maior de toda a sua vida.
Segundo, porque é nesse trabalho que Ariano procura expiação de
seus fantasmas e angústias relacionados à perda prematura do pai, pois
ali são inseridas grandes referências que ligam a vida de Ariano ao da
personagem central Quaderna.
Por último, externamente a obra obteve uma aclamada e generosa
receptividade da crítica, tanto nacional quanto internacionalmente,
sendo considerada por muitos como um marco inigualável na Literatura
Brasileira.
Em pouco mais de 700 páginas, o livro em questão retrata as aven-
turas (ou desventuras) do personagem Pedro Diniz Quaderna, em que
críticos reconhecem influências e semelhanças, em sua construção, com
acontecimentos presentes na vida do autor. Ariano utiliza-se da força da
literatura e da liberdade que esta lhe possibilita, usando a imaginação
para relacionar ficção e realidade.
Para Antônio Cândido, a escrita permite ao autor a transfiguração da
sua realidade, e dos que nela habitam, para o mundo da imaginação, em
um processo de busca por uma verossimilhança da arte com o real, de
modo a estampar a complexidade da existência no universo imaginário,
tanto no plano físico quanto psicológico. Nesse processo, a memória do
autor se torna peça fundamental, aliada à imaginação, no ato de criação.1
É perceptível que a busca do pai torna-se para Ariano, a busca de
sua própria identidade. As tragédias familiares de sangue, que descreve
em suas primeiras peças, a melancolia de sua poesia, prosseguem com

CÂNDIDO, Antônio et al. A Personagem de Ficção. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva,


1

2010.

218
Ariano Suassuna, um intelectual polifônico: entre o erudito e o popular no
Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta

ímpeto na Pedra do Reino e a vida de diversos personagens caracterizaria


em alguma medida uma realidade própria.
Segundo Le Goff, a memória estaria não somente ligada as lembranças
acumuladas, mas estas se entrelaçariam ao processo de reconstrução por
meio da releitura de vestígios através do meio social em que o individuo
se desenvolve.
Ariano transforma a Pedra do Reino em uma arte autobiográfica,
um diário que tem por objetivo retratar a necessidade em contar a sua
história, expressar as memórias guardadas, a ótica dos vencidos, onde
Ariano e suas ascendência possam se transformar em vencedores. Reflete
nesse processo uma recontagem, que vai além de si, refletindo a história
do Nordeste e do país.
Como argumenta Edward Carr, torna-se indissolúvel e sem sentido
a separação entre os acontecimentos que regem a vida do individuo e
aqueles que acarretam o cotidiano e as transformações da sociedade.2
A despeito disso, Ariano esclarece não ser seu romance uma vingança,
mas “(...) uma tentativa de recuperação. Por isso eu acho o nome Pedra
muito importante é como se eu encaixasse uma pedra angular para erguer
um monumento ao meu pai”.3
De acordo com Le Goff, monumento é “(...) um sinal do passado
(...) é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação”4,
o autor ainda chama a atenção para a incorporação de significados da
ideia de monumento que desde a Antiguidade, tende a se especializar em
dois sentidos, sendo um deles “(...) um monumento funerário destinado

2
CARR, Edward Hallet. A Sociedade e O Individuo. In: O Que é História?. Trad.:
Lúcia Mauricio de Alverga. Rio de Janeiro, RJ. Editora Paz & Terra, 3ª ed., 1982.
3
SUASSUNA, Ariano Vilar. Ao Sol da Prosa Brasileira. [Outubro/ 2000]. São Paulo:
Caderno de Literatura Brasileira. Ano II, nº 10, p. 22 – 51.
4
LE GOFF, Jacques. Documento/ Monumento. In: História & Memória. Trad.: Bernardo
Leitão... [et al.] – Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 1990, p. 535. (Coleção
Repertórios).

219
Susana Cardoso Braga

a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória


é particularmente valorizada: a morte”5.
Com a premissa de que o conhecimento histórico se baseia nos vestígios
dos registros do homem feitos pelo próprio homem em suas experiências
no tempo, seja ele disso consciente ou não, como nos adverte Marc Blo-
ch, esses registros, ao serem examinados historiograficamente, tornam-se
não o passado, mas uma representação deste na contemporaneidade.
Portanto, entende-se que, no terreno da verossimilhança, a literatura é
capaz de representar uma dada realidade com coerência.
Declara a historiadora Sandra Pesavento, importante referência
nacional nos estudos dessa modalidade, a relevância da literatura para
o historiador, pois, trata-se de um discurso privilegiado por representar
o acesso ao pensamento de diferentes épocas com base em personagens
que habitam o campo das possibilidades do real, preenchendo-se, assim,
lacunas acerca das experiências vividas.6
O historiador passa a ver na literatura uma alternativa fecunda de
pesquisa. Para a História, existe um novo caminho a trilhar, o de adentrar
no mundo das representações presentes no universo da ficção e extrair
dele o “real”. A história passa a se utilizar então de recursos presentes na
literatura, dentre eles a narrativa e a subjetiva do indivíduo, que nesse
momento ganham destaque e se tornam mesmo indispensáveis ao pro-
cesso de escrita da história.7
Vários historiadores têm explorado esse campo de investigação. Sidney
Chalhoub, reconhecido na historiografia nacional e estrangeira, tem em
sua trajetória, como referencia, Machado de Assis, Historiador, em que

5
Ibidem, 535.
6
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & Literatura: Uma Velha Nova História. Nuevo
Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Débats, mis en ligne le 28 janvier 2006, consulté
le 18 octobre 2016. URL : http://nuevomundo.revues.org/1560;DOI:10.4000/
nuevomundo.1560(p. 03 – 04). Acesso 02 de outubro de 2016.
7
Ibidem.

220
Ariano Suassuna, um intelectual polifônico: entre o erudito e o popular no
Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta

analisa o Brasil do século XIX a partir das obras Machadianas. Nicolau


Sevcenko, por sua vez, toma a literatura como objeto da história em Li-
teratura como Missão. Sevcenko investiga o período da belle époque, com
foco na vida intelectual do Rio de Janeiro, tendo como figuras centrais
os escritores Lima Barreto e Euclides da Cunha.
Partindo de tal concepção da literatura enquanto fonte, e sua impor-
tância para o historiador, o romance d’A Pedra do Reino, torna-se campo
fértil para a compreensão das representações que o autor constrói de um
panorama da história política nacional e do popular no Nordeste brasileiro
e como este transpõe de uma esfera local ao universal, pois guarda em
si vestígios do passado, conservados em uma memória distante, de um
cenário europeu medieval, com elementos do Oriente e da Antiguidade
Clássica, uma mescla de vozes.
O processo em que a reinvenção de símbolos e manifestações ocorre
é algo maleável dentro do universo popular. É possível enxergar novos
cenários dentro de tradições já consagradas em que o povo se torna “guar-
dião” de cada elemento que compõe as reminiscências da memória ao
longo do tempo, através de costumes, da oralidade, das transformações
de elementos clássicos, que não possuíam mais espaços na sociedade
moderna.
Enxergamos dentro dos escritos de Ariano um processo de troca,
exemplificando aquilo que Ginzburg denomina de “circularidade cultu-
ral” entre a grande e a pequena cultura, conforme Bakhtin. Suassuna é,
portanto um intercessor que figura essa mediação em sua pedra de toque
e mais amplamente por vias do Movimento Armorial na década de 1970
e seus posteriores frutos.
A literatura de ficção é um campo ainda em expansão na historio-
grafia o que faz com que muitos escritores e suas obras sejam relegados
exclusivamente à área da literatura. Ariano Suassuna, autor consagrado
desde a crítica especializada até ao campo das massas, permanece obscuro
ao trabalho dos historiadores.

221
Susana Cardoso Braga

Exemplo de tal circunstância é ser seu maior estudioso no país o Dou-


tor em Letras, professor da UFPE, Carlos Newton Júnior, e internacio-
nalmente pela Doutora também em Letras, a professora francesa Idelette
Muzart,atualmente professora titular na Université Paris Ouest Nanterre
La Défense, após ter ensinado dentre outras universidade brasileiras, na
Universidade Federal da Bahia, na posição de professora visitante.
O livro tem como foco a região Nordeste do país, mais especifica-
mente o Sertão, sendo este moldado pela perspectiva de Suassuna, que
o enxerga pedregoso, árido, áspero, porém poético e que sobrevive por
meio da resistência de um povo que encontra na poesia o significado da
luta diária.
Esse sertão abrange, especialmente, os estados de Pernambuco, Paraíba
e Rio Grande do Norte. Trata-se de um recorte geograficamente reduzido
e transfigurado. A redução traz consigo uma densa carga de afetividade,
pois a esse espaço ligam-se as origens e as vivências do autor.8
Este ambiente é classificado por Quaderna, como o “coração do Nor-
deste”, as “duas províncias mais sagradas do Império do Brasil, a Paraíba e
Pernambuco, às quais somente o Rio Grande do Norte pode ser ajuntado em
absoluto pé de igualdade”. Com essa visão, o personagem, que em diversos
momentos se faz tão próximo da personalidade e vida de Ariano, interliga
essas três regiões à história e à vida dos demais personagens, tornando-as
de fundamental importância.
A obra transporta o leitor ao universo suassuniano, permitindo-o
caminhar pelas encruzilhadas do Sertão, sob o sol escaldante, diante da
complexidade das muitas histórias que se entrelaçam como uma colcha
de retalhos, uma mistura de cordel (já que a estrutura do romance se
divide em folhetos, tal qual o Romanceiro Popular Nordestino, além das
xilogravuras que ilustram a obra), uma novela de cavalaria, em que Qua-

8
NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Pai, O Exílio e o Reino: A Poesia Armorial de Ariano
Suassuna. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1999.

222
Ariano Suassuna, um intelectual polifônico: entre o erudito e o popular no
Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta

derna, tal qual o sonhador Dom Quixote de Cervantes, trava uma luta
em um mundo imaginário, para alcançar seu objetivo.
É por meio dos delírios e imaginários de Quaderna que o leitor verá
a ótica de Suassuna na interpretação que este faz da cultura do povo,
somando de maneira importante à cultura popular e a erudita, premissa
que leva a essência do Movimento Armorial, que tendo em Suassuna seu
maior “teórico”, busca uma cultura que se pretenda erudita e genuina-
mente brasileira, e que busque sua essência em matrizes populares, que
é por definição:
A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço co-
mum principal a ligação com o espírito mágico dos “folhetos”
do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel),
com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus
“cantares”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim
como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares
com esse mesmo Romanceiro relacionados.9
Um cavaleiro às avessas, pois é o mundo de Suassuna transfigurado,
onde o grotesco e o burlesco ganham espaço. Trata-se de um misto de
novela de cavalaria e romance picaresco, articulando o desproporcional
e o ridículo na perspectiva do universo carnavalesco.10
A Pedra do Reino é um grande palco de circo em que o Universal se
transporta ao local, no qual Ariano se faz de bobo e palhaço e nele recria
um mosaico de personagens, nessa sua “Idade Média” e em sua obra
“flamengo-ibérico-mouro-negro-tapuia”.
Quem assassinou o Rei Degolado? É o jovem rapaz do cavalo-bran-
co, o verdadeiro herdeiro do coronel morto e última esperança ao povo

Ibidem, p. 97.
9

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A Cultura Popular na Idade Média e no Re-


10

nascimento: O Contexto de François Rebelais. São Paulo: HUCITEC – Editora da


Universidade de Brasília, 1987.

223
Susana Cardoso Braga

sertanejo ou se trata de um atentado comunista? A charada permanece


não decifrada, pois como um todo, é A Pedra do Reino uma obra aberta.
A busca de Ariano faz com que em uma mesma obra seja possível
encontrar diversas linguagens artísticas: romance, poesia, pintura, teatro,
lendas, contos... um baile não linear, orquestrado com tamanha organiza-
ção, é uma obra resumidamente grandiosa em sua complexa totalidade,
em síntese é um romance armorial.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: O Contexto de François Rebelais. São Paulo: HUCITEC –
Editora da Universidade de Brasília, 1987.

CÂNDIDO, Antônio et al. A Personagem de Ficção. 9ª ed. São Paulo:


Perspectiva, 2010.

CARR, Edward Hallet. A Sociedade e O Individuo. In: O Que é História?.


Trad.: Lúcia Mauricio de Alverga. Rio de Janeiro, RJ. Editora Paz & Terra,
3ª ed., 1982.

SUASSUNA, Ariano Vilar. Ao Sol da Prosa Brasileira. [Outubro/ 2000]. São


Paulo: Caderno de Literatura Brasileira. Ano II, nº 10, p. 22 – 51.

LE GOFF, Jacques. Documento/ Monumento. In: História & Memória.


Trad.: Bernardo Leitão... [et al.] – Campinas, SP. Editora da UNICAMP,
1990, p. 535. (Coleção Repertórios).

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & Literatura: Uma Velha Nova


História. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Débats, mis en ligne le
28 janvier 2006, consulté le 18 octobre 2016. URL : http://nuevomundo.
revues.org/1560;DOI:10.4000/nuevomundo.1560(p. 03 – 04). Acesso 02
de outubro de 2016.

NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Pai, O Exílio e o Reino: A Poesia Armorial


de Ariano Suassuna. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1999.

224

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