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Razão e Sensibilidade: o Sujeito do Mundo na

Modernidade.
Resumo:
A modernidade não agraciou o homem com as delícias do Olimpo ao colocá-lo no
comando da própria razão. Na expectativa de torná-lo esclarecido (aufgeklärten) e
dispô-lo dos recursos para atingir tal esclarecimento (Aufklärung), o mundo moderno
ofertou-lhe os meios pelos quais atingir a independência e caucionar o eu nos
predicativos que melhor lhe convinham. O ser-no-mundo muito pouco parece
independente, porém; o domínio da natureza não lhe fez feliz, tampouco realizado; fê-
lo, isto sim, desfocado, estésico, abstraído, como se o mundo lhe atuasse à revelia, em
segredo. Este sujeito moderno sentiu a nostalgia dos românticos, todos os quais,
confrangidos pela burocratização e estatização do ser, recorreram à arte para
encontrarem-se consigo mesmo. No caso do neófito moderno, é diferente; este tem
seguido a esteira do progresso no ritmo trágico que o desinveste da razão e anula seu
potencial simbólico. Nosso trabalho é fazer a arqueologia deste ser inanimado e seu
mundo desencantado nos respectivos termos da destruição potencial que a modernidade
encerra quanto à sua dialética impressa.
Palavras-chave: Sensibilidade. Razão. Sujeito.
I
Discussões sobre modernidade têm um efeito quase mágico por explorarem
temáticas que fogem ao seu núcleo, ou melhor, não lhe competem diretamente. Ela
hipostasia-se na literatura, na arte, na poesia, nas ruas, nos palcos ou nos grandes
centros verticais, trazendo à baila indiscutivelmente a atividade do sujeito moderno e o
labor focalizado. O pensamento moderno imbuiu o homem de coragem para atingir o
esclarecimento (Aufklärung) e fazê-lo um austero ser-no-mundo, com tal potencial
imediatamente disposto à hora de assenhorear-se da experiência telúrica. À pergunta
“quando esta modernidade irá acabar?”, porém, o tom solene com que Marshall Berman
a responde já afiança seu domínio incombatível: quem quer lhe espere o fim, não achará
conforto. A medula da qual se ergueu a modernidade ainda carrega as chagas que a
soergueram; do paradigma revolucionário francês até hoje, a modernidade caminha a
passos rápidos numa constante sem-fim; duzentos anos sucedidos e o conceito de pós-
modernidade — como querem alguns autores — parece esterilizado pelas fortes
reminiscências históricas que permanecem da modernidade, qual seja, o problema do
sujeito moderno.
Não é possível superar um passado pelo simples vetor da consciência, o retorno
do recalcado está aí para prová-lo. Numa sociedade que projeta resultados pelo cálculo
dos danos, corpo e mente atuam em conjunto, subconvencionados dinamicamente pelo
símbolo-mãe do progresso. Convocando nesta empresa o homem, que, para imiscuir-se
no evento egrégio, fora forçado a atuar na totalidade de seus esforços, abstraindo todas
as suas dimensões, perdendo o fôlego galvanizado, alimentando o mundo e sendo por
ele alimentado, o mundo moderno age sob os escombros daquilo que construiu e ajudou
a demolir. Infiltrado e irreconhecível, o potencial de simbolização do homem se tornou
maquinal, rígido, os laços humanos ficaram à deriva, subjugados à monotonia, ao ócio
ou ao ódio. Quer dizer, os caminhos da angustiante e indeterminada pós-modernidade
não podem se abrir porquanto o homem continue a receber, pelo resultado de seus
esforços, exíguas migalhas de satisfação primitiva.
A moderna sociedade que hoje faz do homem hiperestésico, sobrevive como
passado reincidente, memória e símbolo a partir dos quais fora construída e diante dos
quais nos resguardamos. É a mundividência infatigável começada na Europa e
continuada por seus herdeiros. Como processo dialético transformativo, opera por um
ruído silencioso, mas nem por isso inexistente; Marx assim o propusera: “o mundo
sobre o qual estamos pesa uma tonelada — mas vocês o sentem?” 1. A modernidade foi
e é resultado de inúmeras operações levadas a cabo por seus sujeitos numa fome de
indeterminada precisão, em relação à qual superam e suportam seus componentes a
existência de si e do outro na esfera conjugada da vida pública e privada 2. Nas relações
afetivas, da amizade ao amor romântico às político-econômicas e comerciais, o adjetivo
“moderno” tem constituído uma plêiade de significantes, entre os quais aquele que
suplica pela ampliação do debate sobre subjetivação e emancipação do sujeito moderno,
visto que este sujeito encontra-se diante de sérias ameaças, misturado a consciências
que não são as dele. O que o homem goza hoje como razão é o fruto do ruminante
decurso do pensamento ocidental.
No pomo do iluminismo, com o sustentamento do racionalismo no combate às
ideias obscurantistas, como o absolutismo e o poder clerical e nobiliárquico dos tempos
pré-capitalistas, a razão se tornou o instrumento fulcral para o autoaperfeiçoamento. O
iluminismo francês, sob a égide de pensadores como Descartes, Voltaire, Montesquieu e
Diderot foi o primeiro movimento a alumiar a consciência dos cidadãos do mundo
europeu partindo de um modelo racionalista, técnico e programático pautado no
conhecimento científico e exploratório do homem frente à natureza, construindo uma
primeira divisão de saberes que marcava, entre outras coisas, a primazia da razão, da
liberdade e da individualidade (MELLO; DONATO, 2011). Do ponto de vista histórico,
o iluminismo rematou em fins do século XVIII na revolução francesa e no crescimento
do capitalismo em fins de fase de transição, no entanto, os critérios na busca pela
Aufklärung tornaram-se paradigmáticos, os quais se estendem até hoje. E, embora o
desenvolvimento do capitalismo fosse sentido, em germe, na lenta transição da
sociedade feudal pré-capitalista até sua consolidação enquanto sistema econômico, o
ponto de inserção e crítica foi a revolução burguesa, assinalando um segundo eixo da
modernidade, desdobrado a partir de então.
No freio da revolução, as reinvindicações populares da burguesia consolidaram
uma nova hegemonia política, marcando o fim do iluminismo e o início do capitalismo,
ao qual se lhe seguiu o avanço permanente da modernidade industrial, a ascensão do
liberalismo econômico e do mercado mundial, os projetos de dominação extraterritoriais

1
Retirado de: “Speech at the Anniversary of The People's Paper (1856). Disponível em:
https://www.marxists.org/archive/marx/works/1856/04/14.htm
2
No manifesto, Marx reconheceu esse aspecto “neutro” da modernidade ao dizer que os homens são
agora cúmplices deles mesmos, sóbrios diante de outros homens e de suas posições sociais.
e nacionalistas e o surgimento de um novo sujeito, que, cego do entusiasmo, viveria às
expensas de um horizonte amplo porém falacioso. É assim que, no cenáculo
desencorajado, desencantado e, segundo Marx (2010), afogado pelo cálculo egoísta, a
racionalização e o vínculo sob os quais estavam alicerçadas as leis de instrução do
mundo moderno ampliaram seu universo de forma permanente, com uma dialética de
construção própria. Proporcionalmente à ampliação do campo de ação indireto do
sujeito, o ato diretivo e proprioceptivo em representar-se na realidade, isto é, sua ação
direta enquanto sujeito, reduzia-se à esfera microbiológica de atividade. Não havia
responsabilidade pelo diálogo transversal com o mundo. Muito embora o sujeito
moderno fosse o ator principal no comando de suas vontades, a articulação destas com a
matéria natural e a substância sucediam-se sob forte rigor legislativo, em respeito ao
qual, leis normativas orientavam ambições cegas e fomentavam complacência aos
“imperativos da universalidade homogeneizadora” (SHINN, 2008, p.47).
As leis de produção, no mundo capitalista organizado, passaram a regulamentar
também as relações de produção, gerando intercâmbios comerciais cada vez mais fortes
e abastecendo o comércio em sua infinita platitude mercantil. Nas cada vez mais estritas
relações com a mercadoria, valor de uso e valor de troca extrapolavam o campo
subjetivo do sujeito ao torná-lo ele mesmo uma mercadoria. Todo conjunto moderno
crescia e o homem se retirava; o enamoramento deste com o produto e, ao passar do
tempo, sua postura claudicante diante do magistrado capitalista e industrial, e mais
recentemente, da economia de serviços, fizeram dele um ser semi-inválido, posto a
sobreviver ao “turbilhão da modernidade” na obrigatoriedade de dá-la forma e
continuidade. Esquematizada para sequenciar toda dinâmica prévia de aperfeiçoamento,
a modernidade inaugurou a ideia de progresso científico e tecnológico sob o baluarte
superlativo da razão e da horizontalidade. Alocando fronteiras cada vez mais
expansíveis entre si, a modernidade produz, pela manufaturação do intelecto humano,
recursos subsumidos teleologicamente nos limites do alcance da sua produção.
Fazendo do prisma de alcance limitado um campo plural e sistêmico de nem
sempre seguras possibilidades, o mundo moderno foi paulatinamente interpolando o
papel do sujeito. Por investi-lo de uma apócrifa prestimosidade, que, tão logo iniciada a
preamar, mostrá-lo-ia como um parasita virtualizado, um estorvilho para o Estado, a
imagem do homem feliz, tal como representada pelo slogan da American Way of Life,
esvanece com o medo de perder o próprio nome (ADORNO; HORKHEIMER, 2006).
Com o recenseamento de ideias uníssonas, cujo encadeamento desse
prosseguimento à empresa moderna, tornaram-se múltiplos os usos da razão; para citar
um exemplo, a ampliação do horizonte tecnológico aparece para Shinn (2008) como
forte fonte de insatisfação e angústia, visto que o futuro pode ser tão vacilante quanto à
impossibilidade de involução ao mundo pretérito. A impressionante progressão à qual se
adiantou a modernidade fomentou faltas de perspectiva, fracassos e desesperanças
cumulativas, tornando o homem um “ser-no-mundo-desencantado”. A razão
despreconcebida que havia sucedido as luzes tornava-se cada vez mais refém de
imperativos universais e homogêneos, fincando raízes num mundo que não prestava
desagravos ao seu sujeito. Foi assim que o uso discricionário da razão ampliou os
horizontes científicos, práticos e tecnológicos: estreitando a liberdade (SHINN, 2008).
Aqui temos um primeiro sinal de como a modernidade transformou as relações humanas
em relações de produção e de como o sujeito moderno reproduz o desespero dos
românticos ao sentir, desguarnecido, um mundo que prejudica os laços humanos e
dificulta a simbolização do afeto (LÖWY E SAYRE, 2015).
No Fausto, por exemplo, são apreciadas inúmeras possibilidades de
experienciação da vida moderna, do pacto à taberna de Auerbach, da cozinha da bruxa
às furnas montanhosas no fim da segunda parte, todas rebatizando a barganha fáustica
em termos únicos: da venda do quinhão da subjetividade à exultação dos panegíricos
criativos modernos, da destruição à construção e, não menos importante, da força de
algo externo para desencadear a imanência da catástrofe. Fausto é um exemplo ao qual
se pode retornar para refletir sobre as consequências de uma época senão esclarecida
(aufgeklärten), em esclarecimento (Aufklärung). Na emblemática cena Hexenküche, que
abre as possibilidades do pequeno e grande mundo moderno, está inculcada a atmosfera
de promessas e incertezas oriundas da revolução francesa, bem como as diatribes de
Goethe (2004) ao movimento, ao qual atribuía o signo da “desrazão”. A fragilidade do
mundo diante do zeitgeist sibilar e inconstante da França, representada pela “roda da
fortuna”, e a mágica aporética da qual surge a poção misteriosa e da qual Fausto teme
acreditar, esconjurada pela bruxa a roer-lhe “trinta anos da carcaça rota” evidenciam um
mundo frágil em erupção.
A sobreposição do signo mágico delirante sobre a razão e a promessa de
rejuvenescimento como tratado normativo aos novos tempos não contesta o caráter
histórico que, segundo Jaeger (2007), medra a consciência fáustico-mefistofélica de
negação da realidade e estímulo ao progresso revolucionário, tampouco nega suas
consequências na vida de Gretchen e na destruição de Filemon e Baucis. Os
desdobramentos da escrita do Fausto assumiram, naquela primeira parte, alusões
inequívocas à revolução francesa, e naquela outra, referências patentes à modernização
do maquinário industrial e a expansão do projeto civilizatório, ambas correlatas à
crônica do tempo de escrita do Fausto, compreendida entre 1772 a 1832. A crítica
composional de Goethe sugere que a modernidade surgiu da “superação do passado” a
custos humanos nada modestos, mas que tampouco seria possível descaracterizá-la,
visto que o mundo “velocífero” de transformações constantes aninha-se no âmago da
vida moderna. A tragédia de Fausto se figura, assim, como a própria tragédia moderna:
de um espírito indene e confrangido atingido por outro alguém e sua proposta
orgulhosa.
Mefistófeles é este outro que confabula com a figura do monopolista moderno,
marmorizando em seu comportamento a ânsia cínica e venal de desbravamento e
progresso absoluto. Ele pode ser visto como metáfora para a inconfundível dialética
destrutiva que excita o mundo moderno ao rompimento com as tradições enquanto
Filemon e Baucis representam o “velho e débil mundo”, o qual se encontra sujeito aos
desígnios proteiformes da modernidade. No dialogal encontro dos anciões com o
peregrino no quinto ato, contempla-se a dialética do progresso em sua pujança histórica,
da criação da máquina a vapor a seu uso aberto na expansão e criação do novo mundo,
de diques e barreiras a canais e palácios. Filemon e Baucis residem na partitura terrestre
inexplorada por Fausto, o colonizador, que decide em seu projeto de vida espremer a
longitude do “mar áqueo” e subjugá-lo aos limites terrestres (Cf. Goethe, 2007). Para
isso, precisa que o casal idoso se retire e lhes oferece outra porção de terra pelo espaço
privilegiado sobre o qual se encontram. O casal recusa a permuta e Mefistófeles e seus
capangas “resolvem” o impasse, o qual termina na morte e na queima da choupana de
Filemon e Baucis, junto aos sinos e tílias que a adornavam3.
O casal de velhos constitui a parcela incapaz de abandonar a tradição da qual
pertencem, ameaçados por uma energia benquista e sem-termo capaz dos piores
excessos. Eles simbolizam a ruptura do passado na construção de um novo potencial
energético capaz de ligar todos seus esforços num símbolo dialético único, que vê em
qualquer forma de destruição um hiato possível de preenchimento, um novo espaço para
erigir novos símbolos, negá-los e vergá-los subalternos ao esforço dialético que lhes
preenche. Nesse sentido, é com vistas ao novo que se nega qualquer estado
3
“O velho brado repercuta:/Rende obediência à força bruta!/E se lhe obstares a investida,/Arrisca o teto,
os bens e a vida” (GOETHE, 2007, p.941).
circunstanciado pelo real (JAEGER, 2007). Ao admitir-se expectativas planificadas que,
uma vez alcançadas, promovem e descartam novas planificações numa dialética
singular de adição e exclusão, anabolismo e catabolismo, esta se torna, por excelência, a
“dialética da modernização” (BERMAN, 2019). Cada ideal atingido desaparece na
sobreposição de um substituto. Num circunlóquio entorpecente, a busca pelo infinito na
negação da realidade aparece como matéria-prima da ideia de progresso; o sonho de
dominação e consumo arma-se no plano imaginário aguardando qualquer egrégio
movimento que lhe conceda motilidade suficiente para pô-lo em prática e, quando
muito, levá-lo a efeito na mais catastrófica macromania produtivista.
O infinito opera como abstração das limitações do homem, que o investe da
roupagem fáustica arquetípica para dominar o que quer que apresente-se-lhe à vista,
sem mensurar as potencialidades, sequer os predicados daquilo que persegue.
Perpetuando a barbárie nos cálculos infinitesimais cotidianos, a problemática da
modernidade reafirma-se no domínio da razão e sua inesgotabilidade, de sua perícia
crítica a seu ethos hiperestésico.4
II
Nos termos que a esclarecem, ser racional equivale ao encarecimento da
liberdade e autonomia humanas, ao direito de ir-e-vir, servir-se do próprio juízo e ter o
direito de conclamá-lo e tê-lo repetido em eco, qual seja, ser ouvido. Escapa ao homem
humano, porém, certa intervenção maior que Freud (2011/1930) chamaria de destino.
Sem o destacamento deste último, incorremos no erro de acreditar que a razão
pressupõe liberdade, esquecendo-se da tutela pela qual andamos confinados ao mundo.
Daí é um passo: como confiar o palco do mundo a atores universais, sabendo que a
autonomia não é garantia de liberdade, tampouco o sujeito se reduz a algo mais que a
função de instrumento? (MAYOS, 2004). Um breve recuo à história pós-revolução
francesa é suficiente para rastrear essas nuanças, do século XIX ao XX com a
prosopopeia da mercadoria e a elisão do desejo no homem moderno, até a
antropomorfização da bestialidade e a cláusula negativa da razão, a qual facilmente
perde-se em seus esforços.

4
Fausto é cegado, em fins da vida, pelo bafejo da apreensão (sorge). A sensível experiência de conquista
e a bem-intuída vontade de coligar novas vidas em seu projeto civilizatório efetivou a tragédia na vida de
figuras adoradas, como Gretchen, Filemon e Baucis, e consequentemente na própria vida. Assim lhe
responde a figura: “A vida inteira os homens cegos são,/Tu, Fausto, fica-o, pois, no fim!”
Quando associamos a razão à experiência moderna derivada das luzes, tende-se a
afogar os resultados negativos pelo recrudescimento do gênio moderno antepositivo,
para o qual foi recompensado o gozo do sujeito; é certo que a razão administra as
criações humanas e alimenta o mundo moderno pela ilimitada intervenção daquele que
nela se fez, no entanto, confusamente esquece-se que a razão compensa o esforço de
alguns em detrimento de outros e nisso parece residir o contrapelo da vida moderna. A
modernidade, até agora, foi compreendida pela experienciação do novo e superação do
antigo, além, é claro, de mostrar a síntese das realizações humanas excitadas pela razão
— mesmo que para isso tenha condenado algumas tradições e ofuscado o papel do
homem no processo —. Numa crítica fina e contemporânea, Berman (2019) atinou
sobre a modernidade enquanto época ou período diante do qual “tudo que é sólido
desmancha no ar”. Seu exórdio parece difícil de delimitar; menos difícil talvez seja
ausentar a modernidade de uma localidade temporal específica e a partir de agora
colocá-la cada vez mais próxima das condições abstratas nas quais ela se faz sentir.
Está claro que o ponto fulminante dela foi a revolução francesa, mas o que se
seguiu a ela foi pura hiperestasia, vontade e realização. Foi o período de rasgar as
burcas, colocar o homem e a mulher, ambos sóbrios, na relação real que os apetece,
rompendo bruscamente com qualquer ilusão, fantasia ou mito. Disso surgiu, aliás, a
nostalgia dos românticos, em busca da qual eles partiram a fim de consolarem-se de
certos ditames insuportáveis da sufocante vida telúrica. Esses mesmos românticos,
segundo Löwy e Sayre (2015), partiram na busca de um sujeito perdido, despojado, do
qual a modernidade se apropriou nas respectivas condições de exploração potencial. O
sujeito, que é objeto dele próprio, viu-se cada vez mais cindido na expectativa de ser ele
para ele ou para o mundo, e conjugando os dois, gozou do mal-estar que hoje o
enriquece. Respondendo àquelas expectativas com a submissão aos trilhos do progresso
e a busca pela felicidade, cada alternativa tornava-se cada vez mais alcançável, embora
fosse uma contracorrente estranha para a própria modernidade, um empecilho, talvez,
para sua realização plena: “parece que a criação de uma grande comunidade humana
teria êxito maior se não fosse preciso preocupar-se com a felicidade do indivíduo”
(FREUD, 2011/1930, p.88).
Longe de ser impossível, a felicidade se tornou uma dificuldade, relegada a
segundo plano pelo clímax volátil da modernidade. Sabendo disso, que a tendência
natural do ser humano sempre foi a satisfação e a busca pelo prazer nos contornos ao
desprazer, pode-se imaginar o quão infeliz possa ser a experiência alocada à frustração
no imaginário do homem moderno. Talvez resida nisso a perplexa afirmativa de Camus
sobre a qual apresenta o dever do filósofo e da filosofia, ou de Goethe no signo fáustico
de bargain5, muito maior que uma mera formalidade entre o homem e o diabo. A
modernidade, na medida em que deu ao homem o pleno direito de exercer seu poder
sobre o mundo a fim de transformá-lo, tornou-o insensível, doloso, venal e
incompassível. A mesma modernidade que “criou maravilhas maiores que as pirâmides
do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas” (MARX, 2010, p.43) agora se
semelha ao cadafalso em cima do qual se encontram ameaçadas milhares de Filemons e
Baucis que experimentaram com pia expectativa o encilhamento da própria autonomia.
Freud (2011/1930) apresentou em seu ensaio sobre o mal-estar uma dialética
intersubjetiva da modernidade. Dissecando as raízes da insatisfação, Freud desenvolve o
papel do homem de modo a torná-lo ausente de suas vontades; convence-se de que algo
falta ao homem moderno, algo do qual ele próprio desconhece, mas sente como mal-
estar e angústia, algo patente a ele mesmo, que exerce pressão no mundo externo, mas
exime-se de causa. Aquilo de que fala Freud (2011/1930, p.81) é sobre a “perda de
felicidade pelo acréscimo do sentimento de culpa”, e aquilo de que sente o homem é a
perda do amor. Torna-se inconcebível para o plenipotenciário moderno viver o mundo
desemparado, distante da figura paterna que o protegia ou da mãe que o apaziguava; é
daí que as prestidigitações da vida quotidiana liquidam com o desamparo a partir de
delusões, que não convencidas de sua verdadeira natureza, tornam-se veiculares na
superposição do juízo por qualquer tipo de crença falível, abstrata ou absoluta; é daí,
também, que surgem os deuses, de cujo extrato, pouco a pouco, o homem moderno se
apodera.
Este neófito viu-se às voltas com uma instância superior, seu correligionário,
líder e instrutor, o Super-eu. Tendo que admitir o turbilhão anímico do progresso
civilizacional, que o sentia não apenas fora, mas dentro de si, o homem teve que lidar
com exigências internas e externas simultaneamente, vendo-se anulado, no píncaro do
conflito, irmanado, a título da causa moderna, ao sistema metodista e rigoroso que
emasculava suas vontades. A grande soma dos adventos modernos de que hoje goza o
homem tiveram em comum o enxugamento do tempo e a facilitação do contato humano.
Para Freud parece, no entanto, que o progresso cultural não fez dos homens muita coisa

5
Fausto encerra uma pluralidade de sintomas, uma delas cabe à reflexão: a ideia de uma barganha ou
permuta, feita a qual colidiriam propostas ingentes e maviosas, frequentemente resultam num mau
negócio com resultados catastróficos. Este é, naturalmente, uma das grandes contradições modernas.
senão um dos inúmeros módulos visuais e auriculares que serviram para religar toda
energia morta do passado às novas políticas revolucionárias do futuro. Não o fez feliz,
tampouco realizado. Pode tê-lo colocado à frente de infinitas possibilidades, mas o
afastou de cada íntima realização do espírito anímico. Não muitos anos depois de Freud,
Adorno e Horkheimer (2006) escreveriam que o gozo é alienado, e genuinamente
limitado.
O Super-eu instituiu-lhe leis e a civilização moderna o desacelerou na pujança
mesma com que as leis de tráfego o impediram de aceder ao limite irrefreável de sua
vontade. Cada impasse frente ao qual o sujeito era colocado, confrontado pela ética do
mundo, acabava por torná-lo hiperestésico, sensível e apoquentado, a maior ameaça à
civilização que, impassível, mobilizava esforços cada vez mais tênues para fazê-lo ainda
mais descontente. É dessa forma que o sujeito moderno vive sua angústia no mundo.
Enlaçado pelo recorte horizontal que lhe coloca a par do projeto civilizatório, o segue a
passos rápidos com rigor metódico, ambicionando seus desejos no maior espírito de
incontaminação possível. Vê-se forçado a suspender suas forças originárias e adentrar o
fluxo moderno, mesmo que não o queira. Eros, nos caminhos da necessidade (Ananke)
orienta esse projeto no fim único de tornar o homem uno com o mundo, suprimindo
qualquer força destrutiva que se lhe apresente como contrafactual. Foge, porém, à
belíssima proposta de congraçar seus componentes uma natureza antiga, primitiva, cuja
mola encontra-se nas relações primordiais da horda e no assassínio do pai primevo.
Freud retomará as ideias apresentadas em além do princípio do prazer
(2010/1920) para esclarecer o desenvolvimento cultural como uma abstração da ordem
do sujeito. Enquanto Eros e pulsão de morte fenecem eternamente na disputa entre dar
continuidade à vida ou reduzi-la à inércia, a civilização toma o mesmo caminho, desta
vez defendendo-se das pulsões de destruição que constituem o âmago primordial do
homem desde a pré-história. A dialética da modernidade em Freud (2011/1930) sugere
que do tabu do incesto e institucionalização da lei, oferecida como punição pelo
assassínio do pai nos primórdios, os laços modernos foram atualizando-se de modo a
reproduzirem eles mesmos aquelas relações antigas, que hoje regem os vínculos
intersubjetivos entre os homens. A cena primordial do parricídio nos parece
fundamentar a dívida interna e externa que o eu guarda com seus superiores, seja o
mundo ou a lei. Como a relação primordial e a instauração do tabu do incesto foram o
molde para todas as outras, é nela que percebemos o sentimento de culpa como pulsão
destrutiva levada a efeito pelo assassínio do pai e institucionalização do Super-eu
paterno.
Da mesma forma que o homem colheu os frutos da realização das suas vontades
no período primevo, hoje se rende ao jugo das exigências éticas que a cultura lhe impõe.
Como a moderna civilização obedece a Eros e Ananke, tendo sua meta no princípio
unificador, de acordo com Freud (2011/1930, p.79) “ela só pode alcançar esse fim
mediante um fortalecimento cada vez maior do sentimento de culpa” na reatualização
dos laços humanos entre os homens. É assim que ao procurar ampliar a comunidade na
qual está inserido, “o mesmo conflito prossegue em formas dependentes do passado”.
Portanto, é na modernidade mesma que o homem parece crescer em grau; para este ser
bem dotado de razão, “o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto
sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão” (FREUD,
2011, p.57). E a fórmula é autoevidente: tanto mais culpa, mais sofrimento.
Da horda à massa, da família à estrutura da modernidade-social, o Super-eu
mantém-se vigilante para que as leis não se descumpram novamente; sendo ele o mito
apologético que circunda as periferias do homem, é provável que a culpa e o mal-estar
lembrem o eu do discurso imperativo da felicidade e suas consequências. A partir do
Super-eu, toda expectativa de consumação do ato equivale ao ato consumado, pois o
desejo é a ação no plano imaginário, e, como sua não efetivação no plano do real não
pode ser garantida, aparece como culpa. É assim que o imperativo moral da consciência
confisca a liberdade de seu sujeito: pela incomplacência, conclamando obediência e
renúncia pulsional; o colateral apresenta-se na fórmula mesma: “exigindo mais
[renúncia] produzimos no indivíduo rebelião ou neurose, ou o tornamos infeliz”
(FREUD, 2011/1930, p.91). Percebemos com pouca dificuldade, portanto, a ironia que
marca o paradoxo da modernidade: “Que poderoso obstáculo à cultura deve ser a
agressividade, se a defesa contra ela pode tornar tão infeliz quanto ela mesma!”
(FREUD, 2011/1930, p.91).
Como o homem, segundo Freud, não pode “amar por amar” seu semelhante, o
mandamento “amarás o próximo como a ti mesmo”, que é o apanágio da civilização
moderna, equivale a “amai o seu inimigo”. Nenhuma delas é sincera com o que almeja o
homem moderno, ambas atuam na contramão dos seus desejos; daí as leis que orientam
a modernidade para a destruição: à destruição da destruição, que se encarna como um
corpo indigesto à organicidade ética e moral da civilização. Em última instância, o
sujeito “amarás o próximo como a ti mesmo. Pois cada um é o próximo de si mesmo”
(KRAUS, 2010). Freud parece apresentar a felicidade como um projeto angustiante e de
difícil acesso, o qual decuplicou em força no tratamento ao homem moderno, afinal, “o
homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança”, e nessa
permuta reside a contradição que o malfaz. Entre desejar e sobreviver ao seio moderno,
o homem sentiu o impasse entre desejo e cultura e assim parece ter-se recolhido
(FREUD, 2011/1930).
III
As infinitas excisões que o homem moderno têm sofrido da cultura parecem tê-
la reduzido a um mundo sofrível por excelência e seus autores esclarecidos
(aufgeklärten) a déspotas exploradores. Apesar de lhe ser atribuída, por pensadores
marxistas em sua maioria, fortes indícios de desencantamento do mundo, exploração
desigual, estesia, prosopopeia da mercadoria e expansionismo permanente, o século das
luzes e o conseguinte industrialismo foi um período de respostas e esclarecimentos,
onde se formularam as bases do pensamento prático, científico e tecnológico que hoje
constitui o cerne da recém-apostrofada modernidade. Um marco histórico, sem dúvidas,
que Freud viria a expandir ao enunciar o contrajogo da vida moderna no virtualizado
sujeito do inconsciente.
No cênico himeneu do homem com o desejo, a psicanálise encarna um papel
reconciliatório por reaver as fronteiras daquele primeiro e esclarecê-lo pelo que Freud
(2014/1927) chama de “educação para a realidade”, um método educacional a partir do
qual o sujeito poderia encontrar o defluxo racional represado, enfrentando os mitos e os
deuses na intrepidez que lhe compete. Está claro que a tarefa é desaliená-lo, restituí-lo à
razão que em dado momento encontrava-se fora do corpo, prefigurado em consciências
internas e externas que lhe exercem régia dominação, mas não está claro como ele fará
isso. A partir daí, a psicanálise exerceria seu papel antialienante e, daqui, o desamparo
psíquico assumiria um ônus especial no edifício psicanalítico, pois é ele a fonte da qual
ressurgem os mitos individuais e as ilusões frente as quais a psicanálise adianta-se em
desfazer.
Na insuficiência do método ou na fraqueza do espírito, uma instituição social,
um aparato midiático ou um Estado totalitário, até mesmo democrático, como aventa
Carvalho (1999), pode exercer o papel do outro a quem se deva amor e a quem se
recorra no desamparo. Não parece novo, então, o fato de o sujeito estar dentro de um
mundo infinito pautado tanto na isonomia como na anomia, sendo sua relação com a lei
e a ordem o que definirá seu partido e elegerá suas relações sociais. Isso pode se
estender da arregimentação tecnológica e burocrática até o poder das massas
organizadas, que fazem da enunciação da linguagem em grupo a vantagem ética para
reinvindicação de seus direitos. A modernidade, assim, encontra seu termo na luta entre
antinomias, entre Eros e pulsão de morte, entre o princípio que coliga e o que corrói,
entre aqueles que se estabilizam em sua temperatura ou rebelam-se contra o termostato.
Isso parece explicar por que grupos menores, geralmente ausentes do conhecimento
comum, acham tão fáceis saídas para o discurso de ódio. São nessas pequenas
impressões que a subjetividade parece se esconder; menos pelas ilusões que as distraem,
do que pela própria função moderna.
Algo parece ter recrutado as forças humanas sob uma única direção e assim
excluído o vínculo alteritário que reconhece as diferenças. O homem moderno tem
continuado a reafirmar-se nos lugares-comuns da sociedade, no antro do qual pertence
infalivelmente, político, religioso, universitário, midiático e mais recentemente virtual.
Nestes espaços, têm sido operada a excisão do outro e a exclusão dos vínculos
alteritários; parafraseando Birman (1997, p.230), o sujeito faz uso da “glorificação do
eu e a estetização da existência” para admitir formas de vida que lhe são conhecidas e
anatemizar o desencaixado, fora dos laços que lhes unem. Mais do que nunca, o sujeito
encontra-se estésico, galvanizado por qualquer ação que mova um interesse particular
ou grupal, tornando-se assim artífice ou vítima da exclusão em qualquer campo possível
de atuação; a estética parece fundamentar a criação de vínculos ao dirigir os afetos pelo
amor ao belo e ódio ao estranho.
O mal-estar para o qual Freud aponta, enfim, é a “desalocação” ou desamparo
desse sujeito frente ao imperativo estetizante da felicidade e ao excesso pulsional que
glorifica sua individualidade, mas lhe impõe restrições difíceis de serem suportadas. O
apelo às massas tornou-se a mais comum das soluções ao desamparo, mas também a
mais séria e intransigente, não obstante ofereça ainda alguma luz. Os horizontes
altissonantes que ascenderam como factíveis da proposta iluminista de desenvolvimento
intelectual e científico viram-se encorajados pelas respostas do homem a elas, afinal, a
modernidade é uma conquista e não deve ser rebaixada por aqueles que a compõe, no
entanto, com fronteiras cada vez mais amplas e nítidas, o homem deu-se conta da
impossibilidade de satisfazer-se de suas pulsões, que, diante do ethos restritivo
moderno, só fazia alimentar seu conflito. A ideia de progresso jamais esteve tão
imbricada à destruição quanto hoje; sobreviver ao “turbilhão da modernidade” passou a
implicar a defesa da própria subjetividade diante dos pesadelares e inimagináveis pontos
de inflexão que qualquer civilização à luz dos predecessores iluministas não hesitaria
em tomar. A análise de Berman é extraordinariamente pertinente nesse sentido;
enquanto o sólido se desmancha no ar, a substância vive ameaçada.
Razão e individualidade tornaram-se uma e confluíram para o interesse de filhos
diletos da modernidade; o valor da moeda passou a abastecer-se da intelecção e cada
vez mais “políticas do mal” (CARVALHO, 1999) se viram reinscritas no seio hodierno,
causando a excisão dos “menores” e a “arqueologização” do ânimo humano. A fim de
colaborar com o abastecimento do mundo moderno, o homem esgota-se dia a dia para
alcançar uma felicidade que obedece às exigências ético-políticas de outro alguém ou
outra coisa, obedecendo a males que bem mais gostaria de enfrentar. Nesse espectro,
mistura-se a um mar infinito e coercitivo de consciências que lhe impõem os ditames
aos quais deve obedecer, assim eximindo-se da própria vontade. No entanto, a
verdadeira tragédia se lhe impõe quando, enunciadas as regras e princípios normativos,
o sujeito presta contas com a submissão inerte, abandonando a responsividade e
instrumentalizando os movimentos em uma fúria cega e distraída. Este parece ser o pior
uso possível para a razão, pois deixa de obedecer a seu portador (Cf. Freud, 2011;
Adorno e Horkheimer, 2006).
O mesmo esclarecimento (Aufklärung) que concedeu ao homem os sedimentos
para estruturar a modernidade, fez do homem uma “constante inconstante”, entre os
letárgicos e estésicos que proclamam seu amor cego à progressão do mundo aos diletos
e incompassíveis que os assenhoram e emitem suas leis. Ela, no entanto, também criou
aqueles que não se renderam facilmente a seus enigmas. Marx, Freud e a farândola da
teoria crítica da escola de Frankfurt questionaram a sensibilidade do mundo moderno e
o papel do homem. Os dois primeiros, principalmente, pois questionaram suas raízes e
também a posição de seu sujeito, exortando uma postura a partir da qual estes pudessem
fazer-se verdadeiramente autores da realidade, diante da qual pudessem revesti-la das
próprias vontades sem reduzirem-se a equívocos pretensiosos demais. Ambos tiveram
sua prospectiva de trabalho e puseram, nos meios do trabalho intelectual, signos aos
quais se dedicaram a enfrentar: como a propriedade privada e o irracionalismo, nos
respectivos pensamentos de Marx e Freud.
A propriedade privada defendida pelo liberalismo econômico, a soberania
popular, ou o irracionalismo singelo defendido pelos proselitistas religiosos tornaram-se
símbolos pelos quais era possível lutar em defesa apaixonada ou enfrentamento
virtuoso. No entanto, não pode nem deve haver qualquer forma de unilateralidade nestes
símbolos, cada ideia compete a seu núcleo. Nos movimentos de luta modernos, uma
figura, uma ideia ou discurso puderam facilmente tornar-se modelos ideativos sob os
quais o sujeito endireitava-se na busca daquilo que não pôde concretizar, no espaço no
qual não o pôde desenvolver. Em tais ambientes fica bastante claro como o Super-eu
reconhece seus fiéis e estes àquele, como um protetor, alguém junto ao qual se pode
confiar o amor e os desejos na expectativa de por ele ser recompensado em igual
medida. São nessas relações que o laço alteritário se atualiza, desde a perda do amor do
Super-eu à reprodução do desamparo primordial. Nesses espaços, o sujeito pode
facilmente perder sua subjetividade, bem como encontrá-la no outro. Trata-se, a bem da
verdade, de mensurar as próprias expectativas.
Ali, os sábios de hoje podem tornar-se esclarecidos (aufgekälrten). Podemos
compreender este trabalho das massas como uma mímese à fundamentação da clínica,
porque, como resposta aos problemas humanos ocasionados pela falta de perspectiva,
pela diminuição da capacidade de simbolização, pela letargia e pelo ritmo cantochão do
homem em meio ao mundo, as massas podem oferecer igual apoio ao sujeito
desamparado. A possibilidade de quatro paredes, dentro das quais o solilóquio do
homem, que lhe respondia tão somente em signos formulaicos, pudesse ecoar-lhe nas
proporções subjetivas que lhe são devidas foi uma conquista do cálculo humano para
além da racionalidade egoísta. Essa tarefa encontrou forma na psicanálise por meio da
educação, colocando o sujeito na linha de frente ao enfrentamento da falta e do
desamparo, buscando conduzi-lo à figura autossuficiente que enfrenta o mundo e
dispensa os escorchantes custos que se lhe impõem perder um amor. Assim, um “outro
cultural”, sob cujo seio se pode ficar descansado, fora da guarda vigilante e onerosa da
cultura, não parece de todo negativo, embora careça de segurança.
Inúmeras causas políticas, midiáticas ou populistas propuseram encontros que
extrapolaram qualquer ilação de Eros, subjugando não o ódio, mas o homem. O amor
nacionalista hitleriano parece responder por si só todas as outras séries de acasos
históricos. E isso nos leva a questionar a fidelidade da proposta iluminista quando a
vemos desaguar no presente; um balanço geral provará que a civilização detém um
saldo negativo na proporção de realizações humanas indenes e aquelas outras que
tiveram custos não muito bem avaliados para sua realização. Certas figuras-líderes, do
termo que Freud utiliza, não fizeram muito da cultura senão o claustro sobre o qual
atuavam suas próprias vontades; não sem propósito o psicanalista cita o ódio soviético à
burguesia e o amor nacionalista de Hitler para ilustrar algumas delas. Do século XIX ao
XX, a razão parece ter obedecido a interesses e privilégios muito mais do que a
qualquer bem comum; daí o sujeito ter se perdido e saudar com nostalgia algo que lhe
escapa diariamente.
As massas, nesse sentido, provocaram ao longo da história uma atitude ou
revolucionária ou condescendente e estatizante, mostrando-se como um rendez-vous no
qual cada indivíduo pôde alinhar-se com aquilo que julgava ser a cosmovisão mais
coerente a seus interesses, seja o nazismo ou o zen-budismo. Também provocaram, num
passado recente, certa perplexidade nos círculos literários e intelectuais. Devido ao
temor que circundava o uso público da razão na fácil confusão com ideias comunistas e
perturbadoras da ordem civilizacional, a razão em muito se assemelha àquele jurista
venal que defende a lei a seus próprios interesses e julga como inverdade e inanidade
tudo o que o condena6; isso nos parece mais claro à medida que voltamos o olhar para
os romances de Erico Verissimo e Jorge Amado. Deu também, é claro, a oportunidade
de sujeitos afirmarem-se no uso da própria razão ao compartilharem seus interesses e
divergências em espaços menores, onde podiam fazer-se livres e tecer comentários
livres de censura. A expressão mais icástica destes encontros formadores se encontra no
conto O espelho, de Machado de Assis, no qual um cômodo fechado e pouco alumiado
pôde transparecer um debate intelectual potente e uma reflexão ainda mais séria sobre
alteridade e laço social.
Dessa forma, como as massas possam produzir um símile puramente negativo,
non liquet. Os eventos plangentes que perfizeram os últimos dois séculos colocaram em
xeque os ideais iluministas de felicidade e estabeleceram de forma espiral uma
parecença que cada século posterior ao último admitia como inegável: o mundo de
Goethe certamente não foi o mesmo de Freud, mas, embora diferentes, o mundo deste
último só deu continuidade, de forma mais rígida, àquele. E no que nos alcança até os
dias de hoje, o homem manteve-se preso entre Estados e políticas; entre querer ser algo
para ele mesmo e para o outro, vendo-se, neste processo, cada vez mais ameaçado e
menos livre em seu potencial. Talvez seja no oposto da singularidade, na união
descompromissada e exonerada de obrigações, que se amplie os espaços para
construção da subjetividade e dê-se ao homem a possibilidade de um encontro consigo
mesmo; de sensibilizar-se com a sensibilidade do outro, encontrar-se si no outro, ligar-
se, como Freud deixa escapar, ao outro pela agressividade, pelo reconhecimento do
ódio, pela assunção da culpa e pelo entrelaçamento do vínculo. Freud, no entanto, não é
6
No Brasil, a “lei de segurança nacional” de 1935 parece ser o melhor exemplo.
tão otimista e certamente nós também não devemos ser, visto que, em relação à
imanência do sofrimento, o homem adota-o mais do que o questiona.
A respeito de homens sem perspectiva, caminhando no ritmo da tragédia à mira
de um súbito assalto aos componentes sublimes de seu ser, podemos extrair algo dos
românticos e consequentemente da psicanálise. Enquanto a responsabilidade do mundo
pairar no homem, que tem feito suas escolhas muito antes de ter consciência delas, a
sanação dos problemas só poderá depender dele próprio. O encontro em pequenos
grupos poderá satisfazer certas exigências, como os discursos de ódio têm feito, ou até
mesmo reparar a indisponibilidade do sujeito em dirigir-se a um consultório clínico,
porquanto o grupo lhe agrade mais, no entanto, jamais poderá assumir a
responsabilidade individual sobre aquilo que o sujeito pensa ou faz. O prognóstico
parece visceral: o sujeito moderno está menos preocupado em confrontar seu mal-estar
do que prossegui-lo na busca pelo infalível; cada passo é seminal, esperançoso, um
novo meio encorajado por um fim, cujo horizonte vê sua medida na produtividade
fâmula, no hic et nunc cego e acachapante que o esclarecimento desafia e continua na
apreciação a ídolos cegos e no falso cânon fraternal e acolhedor que engolfa os contos
de fada, recalca as fábulas e põe ritmo à admiração mouca e súbita ao princípio formal e
cegamente ignorado e defenestrado do progresso.
Conclusão
É interessante notar que Freud não soluciona o enigma da cultura, tampouco
Berman, mas ambos parecem deixar que o sujeito moderno responda por ela. Mas como
admiti-la sob uma miríade de leis, todas as quais sustentando a mesma cultura que
malfaz seu sujeito? Ou líderes e instrutores apresentando-se-lhes como porta-vozes do
futuro, arautos do progresso, potenciais pseudofáusticos? A questão que se coloca é se o
homem moderno, nos limites do agora, será capaz de simbolizar seu sofrimento e
insatisfação de forma a aliviá-lo sem que se precise recorrer a formações reativas. Dessa
forma, poderíamos viver a modernidade tal qual ela se nos apresenta, em sua dialética
destrutiva e desagregadora. Berman nos diz que estar à luz da modernidade é enfrentá-la
nas sombras do submundo que a rodeia e ter coragem para investir-se de fôlego e vivê-
la ao máximo. É dessa coragem, talvez, que o homem se ausente em valer-se de toda
sua pujança para assumir seu lugar no mundo e criticá-lo devidamente.
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