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autor: data do original:

Adolf Loos 1908


título:

Ornamento e Delito
tradução: revisão:

Anja Pratschke Fernando Atique


data da tradução: equipe:

2001-2002 Carlos Roberto Monteiro de Andrade


José Tavares Correia de Lira
Fernando Atique
Renata Campello Cabral
Giselle Rocha Zardini
Nora Cappello
www.eesc.sc.usp.br/babel

Ornamento e Delito

O embrião humano atravessa na barriga da mãe todas as fases evolutivas do


reino animal. Quando nasce o ser humano, suas impressões sensitivas são iguais
às de um cachorro recém-nascido. Sua infância atravessa todas as
transformações que correspondem à história da humanidade. Com dois anos
enxerga como um papua1, com quatro anos como um germânico, com seis anos
como socrates2, com oito anos como Voltaire. Quando faz oito anos, se torna
consciente do roxo, a cor que o século dezoito descobriu, porque antes as violetas
eram azuis e o caramujo púrpuro, vermelho. Hoje, o físico mostra cores no
espectro da luz que já tem nomes, mas seu reconhecimento fica reservado para
os homens futuros.
A criança é amoral. Para nós o papua é também. O papua estripa seus
inimigos e os come. Ele não é criminoso. Porém, quando o homem moderno
estripa alguém e o come é, então, um criminoso ou um degenerado. O papua
tatua sua pele, seu barco, seu remo, resumindo, tudo que está ao seu alcance. Ele
não é criminoso. O homem moderno que se tatua é um criminoso ou um
degenerado. Existem prisões onde oitenta por cento dos detidos possuem
tatuagens. Os tatuados que não estão na prisão, são criminosos latentes ou
aristocratas degenerados. Quando um tatuado morre em liberdade, é porque
precisamente morreu alguns anos antes de ter realizado um assassinato.
A vontade de ornamentar seu rosto e tudo que está ao alcance, é a origem
das artes plásticas. É o balbuciar da pintura. Toda arte é erótica.
O primeiro ornamento que nasceu, a cruz, tem origem erótica. A primeira
obra de arte, o primeiro ato que o primeiro artista pichava na parede, foi para se
livrar de seus excessos. Um risco horizontal: a mulher deitada. Um risco vertical: o
homem a atravessando. O homem que a criou, sentia o mesmo ímpeto criativo
como Beethoven; estava no mesmo céu, no qual Beethoven criou a nona.3
Mas o homem do nosso tempo, que picha as paredes com símbolos
eróticos, motivado por seu próprio ímpeto é um criminoso ou degenerado. É
evidente que tal ímpeto transparece com maior força em homens com esses
sintomas degenerados, nos banheiros públicos. Pode-se medir a cultura de um
país pelo grau de pichação das paredes dos banheiros públicos. Na criança esse
é um aspecto natural: sua primeira expressão artística é o rabiscar das paredes
com símbolos eróticos. Mas, o que é natural na criança ou no papua, é no homem
moderno um aspecto de degeneração. Encontrei a seguinte compreensão e
ofereci ao mundo: evolução da cultura é equivalente à retirada de ornamentos dos
objetos usuais. Acreditava, assim, trazer novas alegrias ao mundo; ele não me
agradeceu. A gente ficou triste e andava amuada. O que perturbava era a
compreensão de que não poderia mais ser produzido um novo ornamento. Como,
já que cada negro pode, já que todos os povos e todos os tempos sabiam fazer
antes de nós, somente nós, os homens do século dezenove, não poderíamos? O
que a humanidade conseguiu sem ornamentos em séculos anteriores, foi
descuidadamente rejeitado e abandonado para sua destruição. Não possuímos
bancadas de carpintaria do tempo dos carolíngios, mas cada nada, que
apresentava o mais ínfimo ornamento, foi colecionado e limpo, e para abrigá-lo
foram construídos palacetes pomposos. Tristes, então passeavam os homens
entre as vitrines e ficavam envergonhados de sua impotência. Cada época tinha
seu estilo e somente à nossa deve ser negado um estilo? Com estilo se queria
dizer ornamento. Cá, falava eu: não chorem. Olhem, é isso que faz a grandeza do
nosso século, pois ela não é capaz de produzir um novo ornamento. Vencemos o
ornamento, decidimos nos desprender dos ornamentos. Olhem, o tempo está
perto, a concretização nos espera. Logo, brilharão as ruas das cidades como
muros brancos. Como Sião, a cidade sagrada, a capital do céu. Assim, chega a
concretização.
Mas existem maus espíritos que não queriam permitir isso. A humanidade
deveria continuar ofegante na escravidão do ornamento. Os homens estavam
suficientemente longe para que o ornamento não trouxesse mais sentimentos de
prazer, suficientemente longe, para que a face tatuada, como era o caso com os
papuas, não aumentasse a sensibilidade estética, mas a reduzisse.
Suficientemente longe para sentir alegria com uma lisa caixa de cigarros,
enquanto uma ornamentada, ainda que com o mesmo preço, não fosse comprada.
Estavam felizes em suas roupas e contentes de não precisar flanar, como
macacos de feiras, com calças de cetim vermelho com cordões dourados.4 E eu
dizia: olhem, o quarto onde morreu Goethe é mais magnífico que toda pompa do
renascimento, e um móvel liso é mais bonito que qualquer peça de museu
marchetada ou entalhada. A língua de Goethe é mais bonita que todos os
ornamentos dos pastores de ovelhas de pegnitz.5
Isso os maus espíritos ouviam com desagrado, e o estado, cuja tarefa é
deter os povos nos seus desenvolvimentos culturais, fazia a questão do
desenvolvimento e da retomada do ornamento, como sua. Pobre do estado, cujas
revoluções são realizados pelos conselheiros da corte. Logo se viu no museu de
artes decorativas de Viena um aparador que se chamava "a rica pesca"; logo
havia armários que carregavam o nome "a princesa desaparecida" ou qualquer
coisa semelhante, que se referia ao ornamento, com o qual esse móvel infeliz foi
coberto. O estado austríaco leva tão a sério sua tarefa que se preocupa que as
polainas de pano não desapareçam das fronteiras da monarquia austro-húngara.
Obriga cada homem culto de vinte anos, usar durante três anos, polainas no lugar
de calçados eficientes. Porque, finalmente, cada estado parte da suposição que
um povo de nível inferior é mais fácil de governar.
Pois é, a epidemia do ornamento é reconhecida nacionalmente e é
subvencionada com dinheiro da nação. Mas, vejo nisso um retrocesso. Não
admito o argumento de que o ornamento aumenta a alegria de viver de um
homem culto, não admito o argumento que se traveste nas palavras: “mas se o
ornamento é bonito...!”. Para mim e para todos os homens cultos o ornamento não
aumenta a alegria de viver. Quando quero comer um pfefferkuchen6, escolho um
que é completamente liso e não uma peça que quer representar um coração, ou
um bebê enfaixado, ou um cavaleiro que é completamente coberto por
ornamentos. O homem do século quinze não vai me entender. Mas todos os
homens modernos vão. O representante do ornamento acredita que meu ímpeto
para a simplicidade se iguala a uma flagelação. Não, prezado senhor professor da
escola de artes decorativas, eu não me flagelo. Para mim, é mais saboroso assim.
Os pratos pomposos de séculos passados, que apresentam todos os ornamentos
para fazer parecer os pavões, os faisões e as lagostas mais saborosos, produzem
em mim o efeito contrário. Com horror, atravesso uma exposição de arte culinária,
quando eu penso que deveria comer esses cadáveres de animais recheados. Eu
como roastbeaf.
O imenso dano e as destruições que a ressurreição do ornamento ocasiona
no desenvolvimento estético, poderiam ser facilmente suportados, porque
ninguém, nem nenhum poder supremo pode deter a evolução da humanidade.
Somente pode ser retardada. Podemos esperar. Mas é um crime para a
economia, pois por causa disso o trabalho humano, o dinheiro e a matéria são
arruinados. Esse dano, o tempo não poderia reequilibrar.
O ritmo do desenvolvimento cultural sofre por causa dos atrasados. Eu
talvez viva no ano de 1908, mas meu vizinho vive por volta de 1900, e aquele lá,
vive no ano de 1880. É uma tragédia para um estado, quando a cultura de seus
habitantes se divide em um espaço de tempo tão grande. O camponês de kalser7
vive no século doze. E na procissão da festa do jubileu havia um populacho que
mesmo durante a migração dos povos8 seriam sentidos como atrasados. Feliz o
país que não tem tais atrasados e aproveitadores. Feliz América! Aqui mesmo nas
cidades existem tais homens antiquados, atrasados do século dezoito, que se
horrorizam com uma pintura com sombras roxas, porque não enxergam ainda o
roxo. Para eles é mais saboroso o faisão, no qual o cozinheiro trabalhou vários
dias, e gostam mais da caixa de cigarros com ornamentos renascentistas do que
da lisa. E como é no campo? Roupas e coisas de casa pertencem absolutamente
a séculos passados. O agricultor não é cristão, é ainda pagão.
Os atrasados retardam o desenvolvimento cultural dos povos e da
humanidade, porque o ornamento não é somente produzido por criminosos, mas
ele comete um crime, danificando bastante a saúde do homem, o patrimônio
nacional e como resultado, seu desenvolvimento cultural. Quando duas pessoas
moram lado ao lado com as mesmas necessidades, as mesmas reivindicações
para a vida e o mesmo rendimento, mas pertencem a culturas diferentes, pode ser
observado, do ponto de vista econômico, o seguinte processo: o homem do século
vinte fica mais e mais rico e o homem do século dezoito fica mais e mais pobre.
Eu suponho que os dois vivem seguindo suas inclinações. O homem do século
vinte pode cobrir suas necessidades com um capital bem menor e por isso fazer
economia. O legume que ele saboreia é simplesmente cozido na água e regado
com um pouco de manteiga. Para o outro homem somente é igualmente saboroso
quando tem mel e nozes juntos, e quando um homem cozinhou horas a fio. Pratos
ornamentados são muito caros, enquanto louça branca, na qual o homem
moderno saboreia, é barata. Um faz economia, o outro faz dívidas. Assim é com a
nação inteira. Pobre do povo, que fica atrás no desenvolvimento cultural. Os
ingleses ficam mais ricos e nós mais pobres...
Maior ainda é o estrago que o povo produtivo sofre através do ornamento.
Como o ornamento não é mais um produto natural de nossa cultura, assim
representando ou um atraso ou uma degeneração, o trabalho do ornamentista não
é mais devidamente pago.
As condições nos estabelecimentos de escultores de madeira ou de
torneiros, os preços criminosamente baixos que são pagos para as bordadeiras e
as que realizam bilro, são conhecidos. O ornamentista tem que trabalhar vinte
horas para alcançar o rendimento de um trabalhador moderno, que trabalha oito
horas. O ornamento encarece geralmente o objeto, mesmo assim acontece que
um objeto ornamentado, com o mesmo preço de material e de tempo de trabalho
comprovadamente três vezes maior, é oferecido pela metade do preço de um
objeto liso. A ausência do ornamento tem como resultado a diminuição do tempo
de trabalho e um aumento de rendimento. O entalhador chinês trabalha dezesseis
horas, o americano trabalha oito. Quando eu pago por uma caixa lisa tanto quanto
por uma ornamentada, a diferença do tempo de trabalho pertence ao trabalhador.
E se não existisse nenhum ornamento, - algo que talvez acontece em milênios - o
homem precisaria trabalhar ao invés de oito horas somente quatro, porque a
metade do trabalho cabe hoje ainda ao ornamento.
Ornamento é força de trabalho desperdiçado e assim saúde desperdiçada.
Foi sempre assim. Mas hoje também significa material desperdiçado e ambos
significam capital desperdiçado.
Como o ornamento não está mais relacionado organicamente com a nossa
cultura, ele não é mais também a expressão da nossa cultura. O ornamento que é
criado hoje, não tem nenhuma relação conosco, não tem de modo nenhum uma
relação humana, nenhuma relação com a ordem mundial. Não é suscetível ao
desenvolvimento. O que aconteceu com a ornamentik de Otto Eckmann, o que
acontece com a de Van de Velde? Sempre o artista cheio de força e saúde estava
na frente da humanidade. Mas o ornamentista moderno é um atrasado ou um
fenômeno patológico. Já depois de três anos seus produtos são negados por ele
mesmo. Para homens cultos eles são imediatamente insuportáveis, para outros
essa insuportabilidade só se torna consciente depois alguns anos. Onde estão
hoje os trabalhos de Otto Eckmann? Onde estarão os trabalhos de Olbrich depois
de dez anos? O ornamento moderno não tem nenhum pai e nenhum descendente,
não tem nenhum passado e nenhum futuro. É saudado com alegria e logo depois
negado por homens não-cultos, para os quais o tamanho do nosso é com um livro
fechado a sete chaves.
A humanidade está mais saudável do que nunca, doentes são apenas
alguns. Mas esses poucos tiranizam o trabalhador, que é tão saudável, que não
pode inventar nenhum ornamento. Obrigam-no a realizar nos mais diversos
materiais os ornamentos inventados por eles.
A troca do ornamento tem com resultado uma desvalorização precoce do
produto de trabalho. O tempo do trabalhador, o material utilizado são capitais que
são desperdiçados. Estabeleci uma frase: a forma de um objeto dura tanto, isso
quer dizer, ela é tão suportável tanto quanto o objeto dura fisicamente. Eu vou
tentar explicar isso: um traje vai mudar sua forma mais que um casaco de pele
precioso. O traje de baile de uma mulher, destinada somente por uma noite, vai
mudar mais depressa sua forma que uma escrivaninha. Que penúria ter de
modificar a escrivaninha tão depressa quanto ao traje de baile, porque a sua forma
antiga se tornou insuportável, assim se perdeu o dinheiro usado para a
escrivaninha.
Pois isso é bem conhecido do ornamentista e os ornamentistas austríacos
tentam tirar dessa falha o melhor proveito. Dizem: preferimos um consumidor que
tem uma mobília, que depois de dez anos se torna insuportável para ele e, que é,
por causa disso, obrigado a cada dez anos comprar mobílias novamente, a um
que somente compra um objeto novo quando o velho é gasto. A indústria ordena
isso. Milhões são ocupados por causa da mudança rápida. Parece que isso é o
segredo da economia nacional austríaca; quantas vezes se ouve depois de um
incêndio: "Graças a Deus, agora as pessoas tem, de novo, algo para fazer." Lá eu
conheço um bom recurso! Incendeia-se uma cidade, incendeia-se um império e
tudo nada em dinheiro e prosperidade. Fabricam-se móveis que são queimados
para aquecimento depois de três anos, ferraduras, que são depois de quatro anos
fundidas, porque mesmo no leilão público não se consegue nem a décima parte
do custo do trabalho e do material, e ficaremos mais e mais ricos. O prejuízo não
atinge somente o consumidor, mas atinge principalmente o fabricante. Hoje, o
ornamento, naquelas coisas que, graça aos desenvolvimentos, foram privadas de
serem ornamentadas, significa força de trabalho desperdiçado e material
profanado. Se todos os objetos durassem esteticamente o tanto quanto duram
fisicamente, o consumidor poderia estabelecer para eles um preço, que
possibilitaria para o trabalhador ganhar mais dinheiro e trabalhar menos tempo.
Para um objeto que eu tenho certeza que vou aproveitar e usar completamente,
pago voluntariamente quatro vezes mais, do que por um, cuja forma e material são
inferiores. Pago com bom grado quarenta coroas por minhas botas, embora,
poderia conseguir em outra loja botas por dez coroas. Mas, em tais carreiras que
definharam sob a tirania dos ornamentistas, não se avalia trabalho bom ou ruim.
O trabalho sofre, porque ninguém é disposto a pagar seu valor verdadeiro.
E isso é bom assim, porque essas coisas ornamentadas somente parecem
suportáveis na sua realização mais sórdida. Eu consigo agüentar mais facilmente
um incêndio, quando eu fico sabendo que, somente futilidades foram queimadas.
Posso ser feliz com o lixo na casa dos artistas, sabendo, sim, que será montado
em poucos dias, demolido em um dia. Mas o atirar de moedas de ouro no lugar de
cascalho, o acender de um cigarro com uma nota de dinheiro, a pulverização e o
beber de uma pérola, parece antiestético.
Verdadeiramente as coisas ornamentadas parecem antiestéticas só quando
são executadas com o melhor material, com o maior cuidado e requerendo muito
tempo de trabalho. Não posso me absolver de ter primeiro almejado trabalho de
qualidade, mas, é evidente que não para coisas deste tipo.
O homem moderno que preserva o ornamento como signo de um excesso
artístico de épocas passadas como sagrado, reconhece de imediato o
atormentado, o penoso e o doentio do ornamento moderno. Nenhum ornamento
pode nascer hoje de alguém, que vive no nosso nível cultural.
É diferente com as pessoas e com os povos que ainda não alcançaram
esse nível.
Prego aos aristocratas, quero dizer, às pessoas que estão acima da
humanidade e que tem a mais alta compreensão das vontades e da miséria dos
que estão abaixo. O cafre,9 que entretece ornamentos nos tecidos num certo ritmo
que somente aparecem quando são descosturados; o persa, que ata seu tapete; a
agricultora eslovena, que borda sua renda; a senhora idosa, que faz do croché
coisas maravilhosas em pérolas de vidro, desses ele entende bem. O aristocrata
lhes deixa fazer, sabe que para eles, as horas de trabalho são suas horas
sagradas. O revolucionário iria lá e falaria: "É tudo tolice". Como ele também
arrancaria a mulherzinha idosa do altar e diria: "não existe nenhum deus". Mas o
ateísta entre os aristocratas levanta o chapéu, quando passa ao lado de uma
igreja.
Meus sapatos são completamente cobertos por ornamentos constituídos de
pontas e furos. Trabalho que o sapateiro realizou, que não lhe foi pago. Vou ao
sapateiro e lhe digo:" Você pede por um par de sapatos trinta coroas. Eu vou
pagar quarenta coroas." Com isso eu levei esse homem a seu estado anímico de
felicidade, que ele vai me agradecer através de trabalho e de material, que de tão
bom não tem nenhuma relação com o excedente. Ele é feliz. Raramente entra na
sua casa a felicidade. Aqui está um homem defronte a ele, que o entende, que
aprecia seu trabalho e que não duvida da sua honestidade. Pensativo já avista os
sapatos acabados em frente dele. Sabe onde encontrar atualmente o melhor
couro, sabe a qual trabalhador confiar os sapatos e os sapatos vão ter pontas e
furos, tantos, que só caberiam em cima de um sapato elegante. E então eu disse:
"Mas ponho uma condição. O sapato tem que ser completamente liso”. Aí o atirei
de seu maior estado anímico de felicidade para o Tártaro.10 Ele tem menos
trabalho mas eu tomei todo o seu prazer.
Prego aos aristocratas. Suporto ornamentos no próprio corpo, se fazem a
alegria dos meus próximos. Assim eles se tornam também a minha alegria.
Suporto os ornamentos dos cafres, dos persas, da agricultora eslovena, os
ornamentos do meu sapateiro porque eles todos não tem nenhum outro meio para
chegar ao auge de suas existências. Nós temos a arte que substituiu o ornamento.
Depois do esforço do dia nós vamos ao encontro de Beethoven ou de Tristão. Isso
meu sapateiro não pode. Não posso tomar seu prazer, porque não tenho outro
para lhe dar. Mas quem vai para a nona sinfonia e, depois senta para desenhar
um padrão de tapeçaria, ou é um vigarista, ou um degenerado.
A falta do ornamento levantou as demais artes para uma altura inesperada.
As sinfonias de Beethoven nunca teriam sido escritas por um homem, que deveria
andar com seda, cetim e renda. Quem passeia hoje com paletó de cetim, não é
nenhum artista, mas um palhaço ou um pintor de paredes. Tornamo-nos mais
refinados, mas sutis. Os homens que andavam em trupes precisavam se distinguir
através de cores diferentes, o homem moderno precisa de sua roupa como
máscara. Tão exacerbadamente forte é sua individualidade, que não se deixa
mais expressar em peças de roupa. O não ornamentar é um signo de força
mental. O homem moderno usa dos ornamentos de culturas anteriores e
estranhos segundo seus critérios. Suas próprias invenções ele concentra para
outras coisas.

1
NT – Segundo a nova versão do Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, publicada em
1999, papua é um “[do mal. puwa puwa.] Indivíduo dos papuas, povo negro da Oceania que habita
a Nova Guiné, Novas Hébridas, Fiji, etc.” Os papua são pessoas que têm nos desenhos uma forma
de comunicação importante, por isso eles estão presentes em vários elementos da vida cotidiana,
inclusive em seu próprio corpo.
2
NT – Com este texto, Adolf Loos parece demonstrar sua vinculação a um movimento austríaco,
de finais do século XIX, que propunha uma manifestação quase política frente à sociedade da
época, através da escrita. Tal postura é a que melhor explica a grafia diferenciada de várias
palavras ao longo do texto, como, por exemplo, a grafia de substantivos e nomes próprios com
letras minúsculas, o rechaço à estruturação gramatical de frases – principalmente ao uso de artigos
definidos – e à pontuação. Tal texto, assim, pretendia-se capaz de chocar não apenas por seu
conteúdo ideológico, mas, também por sua própria forma de escrita. Ressalta-se que alguns
nomes, - talvez os que Loos considerava mais importantes e dignos, mas também, aos que ele
queria demarcar seu rechaço -, preservam sua grafia tradicional, com letras maiúsculas, como, por
exemplo, respectivamente, Beethoven e Otto Eckmann. O texto de Loos apresenta, ainda,
referências diversas à região norte da Europa, quer na forma de grafia arcaica de palavras, quer
nas citações de tradições e de lugares. A tradução procurou, sempre que possível, utilizar-se de
palavras do mesmo período de tempo, existentes na Língua Portuguesa.
3
NT - Nona Sinfonia. Loos refere-se à obra sinfônica de Ludwig van Beethoven, escrita entre 1817
e 1823 e apresentada, pela primeira vez, em Viena, em 1824.
4
NT - A expressão utilizada no original tem uma conotação popular que pode ser considerada
equivalente à expressão brasileira “macaco de auditório”, ou seja, designa a pessoa que se faz
presente em toda e qualquer aglomeração pública.
5
NT – Designa a região banhada pelo rio homônimo, na Alemanha, ao sul de Nuremberg.
6
NT - Biscoito doce comido no Natal, feito com um pouco de pimenta e outras especiarias. Não há
uma palavra próxima ao significado original em português.
7
NT - habitantes da cidade de Kals am Grossgloeckner, situado no Tirol Leste, Áustria.
8
NT – A expressão “migração dos povos antigos” faz referência à época em que os povos
nórdicos, tradicionalmente denominados ‘bárbaros’ deixaram suas regiões originais e rumaram em
encontro da civilização romana, no período que demarca o fim do Império Romano e o início do
feudalismo na Europa, ou seja, por volta dos séculos IV aC a V da era cristã.
9
NT - Segundo a nova versão do Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, publicada em
1999, a palavra cafre pode ser entendida como: “[do ár. Kafr ou Kufr, ‘infiel’.] 1. Nome dado pelos
islamitas aos gentios e idólatras, e por ext., aos negros pagãos da África oriental; aplica-se,
sobretudo, às populações bantas de Moçambique, da África do Sul e dos demais países do
sudeste da África.” Loos usa a palavra para tentar expressar uma espécie de produção de
artesanal típica deste povo.
10
NT - Tártaro: palavra que se origina do grego tártaro e que, em latim, era tartaru. Exprime a parte
mais profunda do inferno e se opõe à noção de céu para os cristãos.

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