Você está na página 1de 23

Teoria das ciências humanas III: o capitalismo segundo a teoria crítica

Texto para uso interno da turma, não divulgar


Prof. Luiz Repa
7ª Aula: Pollock - capitalismo monopolista e colapso

I – Introdução

Com a aula dedicada ao conceito de Friedrich Pollock sobre o capitalismo de


Estado, teremos o início da segunda fase do curso que agrupa agora, de fato, alguns
autores da própria teoria crítica. A bem da verdade, trata-se ainda de uma introdução à
segunda fase, na medida em que, menos do que a teoria pollockiana sobre o
desenvolvimento do capitalismo nas primeiras décadas do século XX, a aula inicial
desta fase se volta para a intrincada discussão que tomou o marxismo, principalmente
no âmbito da Segunda Internacional, a respeito das transformações por que passava o
capitalismo, em que os monopólios industriais e financeiros, a par da presença cada vez
mais volumosa do Estado, colocam na ordem do dia a atualidade da crítica marxiana da
economia política e as possibilidades do projeto socialista.

As razões para enfrentar algumas das principais posições nesse vastíssimo


tabuleiro teórico e político vão ser explicitadas logo a seguir. Primeiramente, vale
recordar que a primeira fase tentou apenas delinear algumas ideias fundamentais das
duas principais referências para o desenvolvimento da teoria crítica quanto à natureza
do quadro econômico que emerge na era moderna: os conceitos marxiano e weberiano
de capitalismo, em especial o fetichismo do capital, do lado de Marx, e o espírito e o
racionalismo do capitalismo, do lado de Weber.

Essa observação me permite lembrar também um aspecto decisivo na categoria


de teoria crítica que até agora mais pressupus do que realmente determinei. Eu digo da
“própria teoria crítica” devido a uma distinção historiográfica relevante. Embora Marx
seja considerado por Horkheimer como aquele que primeiramente criou uma concepção
de teoria que pode ser verdadeiramente chamada de “crítica” -- ou, dito de maneira

1
melhor: embora Horkheimer considere que a crítica marxiana da economia política
contém em si um gênero de teoria que se diferencia radicalmente de todas as formas
tradicionais de produzir e organizar o saber e o conhecimento, independentemente da
escola epistemológica em questão, se racionalista, empirista ou fenomenológica, a
expressão “teoria crítica” engloba uma acepção mais específica e estrita, que toma
fôlego nesse momento autorreflexivo em que Horkheimer discerne em Marx as
características essenciais da teoria crítica.

Assim, é sempre nesse sentido mais estrito que utilizo o termo “teoria crítica”,
ou seja, um sentido elementarmente determinado por Horkheimer. Como tem insistido
John Abromeit nos EUA ou Marcos Nobre no Brasil, esse sentido mal se dissocia da
própria figura de Horkheimer, enquanto diretor do Instituto de Pesquisa Social de
Frankfurt, enquanto idealizador do materialismo interdisciplinar como forma de
integração de pesquisa em diversos segmentos das ciências sociais, e, finalmente, como
principal editor da revista do instituto, a Zeitschrift für Sozialforschung, que publicava
as dezenas de pesquisas conduzidas então.

Eu vou voltar a isso quando passarmos à discussão do próprio Horkheimer. O


que me interessa por ora é destacar que passamos então a lidar com figuras da teoria
crítica propriamente dita, e mais especificamente em torno de um debate que se
encontra no centro das preocupações do curso, que é justamente sobre o diagnóstico das
transformações do capitalismo na primeira metade do século XX. Dessa maneira, nesta
fase, será preciso abordar as elaborações de Pollock, Neumann e Horkheimer sobre a
natureza e a dinâmica do capitalismo. Essa escolha se dá em função do tratamento
direto de uma problematização igualmente direta sobre a natureza do capitalismo como
tal, no caso de Pollock e Neumann, e em função da junção do conceito pollockiano de
capitalismo com a crítica da razão em Horkheimer. Enfatizo isso para explicar um
pouco mais por que autores da máxima relevância, como Walter Benjamin, Siegfried
Kracauer, Erich Fromm e Leo Lowenthal não entram aqui como objeto de discussão,
apesar do peso que tiveram no período.

Além disso, tal observação sobre o sentido do termo “teoria crítica” em


Horkheimer chama a atenção para a circunstância de que há uma relação própria entre o
nascimento da teoria crítica e as transformações do capitalismo na primeira metade do
século XX. A autorreflexividade por meio do qual a teoria crítica emerge como conceito

2
de teoria, em contraposição à teoria tradicional, tendo como referência principal a crítica
da economia política conduzida por Marx, coincide com um afastamento de premissas
relevantes dessa mesma crítica. A teoria crítica ganha vulto em um momento que a
crítica marxiana parecia perder a atualidade, em que o capitalismo passava por
transformações que trariam, na expressão de Horkheimer, “modificações na estrutura da
teoria crítica”.

De um modo ou de outro, essas transformações se referem, se seguimos o texto


de Horkheimer sobre teoria tradicional e teoria crítica, mas também inúmeros outros
trabalhos da época, à passagem de uma fase dita “liberal” do capitalismo para uma fase
dita “monopolista”. Ou seja, a passagem de um período do capitalismo, que teria
atingido o auge durante o século XIX, no qual o mercado é a instituição econômica
fundamental que faz as mediações entre as relações de produção e as de troca, entre a
obtenção de todo tipo de insumo e a distribuição de mercadorias e serviços, para uma
fase do capitalismo em que a livre concorrência instaurada pela economia de mercado
passaria a ser mitigada por grandes trustes, carteis e sindicatos patronais, criando
possibilidades de monopólio em enormes áreas da economia, principalmente no setor
industrial mais desenvolvido, geralmente em combinação com interferências ativas do
Estado nacional.

O fim da livre concorrência em favor de monopólios não teria efeitos apenas


econômicos. Para Horkheimer, estariam dadas juntamente com isso as condições
econômicas que sustentam um controle ideológico “a partir de cima” sobre a massa da
população. “A partir de cima” significaria então, por um lado, a partir das grandes
burocracias das empresas capitalistas gigantescas, com um grau altíssimo de
concentração de capital, sob a administração profissional que aposentou o burguês
tradicional para dar lugar ao manager, e, por outro lado, a partir das grandes burocracias
estatais, interessadas na integração social e política da população (O que Weber temeu
uma vez no socialismo, a fusão entre as burocracias privada e estatal, começava a ter
lugar no solo do próprio capitalismo). É nesse contexto, vale lembrar, que começam as
primeiras formulações sobre a indústria cultural como mecanismo de produção
ideológica. Além disso, as ações econômicas, mais conscientes de suas consequências
sobre um todo a partir desses centros privados e públicos, permitiriam integrar uma
grande massa de proletarizados como consumidores dos bens industriais produzidos em
larga escala. De outro lado, os governos e os partidos, incluindo aqueles de inspiração

3
marxista, faziam da integração do proletariado ao sistema capitalista uma forma de
conquistar a adesão eleitoral em um período de relativa democratização. Por fim,
parcelas significativas da classe trabalhadora e das camadas médias em países centrais
aderiam ao fascismo. A soma de todos esses fatores representava para Horkheimer, no
ensaio sobre “Teoria tradicional e Teoria Crítica” (1937) um desmantelamento das
forças emancipatórias e um isolamento dos intelectuais que então tinha que fugir às
pressas da perseguição fascista.

Assim, de maneira bastante geral, despontava no horizonte da vida econômica,


se não no coração dela, uma configuração que dificilmente se poderia chamar de
“econômica” no estilo antigo, como interação de interesses privados por meio do
mercado, pois tanto as burocracias privadas quanto as burocracias públicas, tanto as
sociedades empresariais quanto as organizações operárias, rumavam para dar contornos
políticos ao capitalismo. Essas percepções mais ou menos disseminadas sobre o
crescimento da participação da política nos núcleos reprodutivos do sistema capitalista
acompanham assim aqueles diagnósticos, bastante diversos em termos metodológicos e
políticos, sobre a passagem do capitalismo liberal para o monopolista.

Em si mesmo, esse diagnóstico sobre as modificações nas estruturas e


organizações “liberais” da economia de mercado, a debilitação da livre-concorrência em
favor do monopólio já tinha uma certa idade, assim como o debate em torno do colapso
econômico do capitalismo que essas modificações suscitaram. A rigor, quando Friedrich
Pollock, e antes dele Henryk Grossmann, desenvolvem discussões no Instituto em torno
da questão sobre as possibilidades de um colapso do capitalismo, eles não estavam
inovando absolutamente, mas dando novos contornos a uma discussão que já se nutria
de mais de três décadas de existência e que envolveu figuras máximas do movimento
marxista, além de uma série de outros autores hoje esquecidos.

O contexto da República de Weimar, um período da história alemã tão instigante


quanto assustador, imprimia também cores próprias a esse debate. A divisão do
movimento socialista em orientações reformistas e revolucionárias, a crise econômica
de 1929 com a quebra das bolsas, o alastramento cada vez mais acentuado do fascismo,
que também propunha um primado do político sobre o econômico (como vocês podem
conferir no ensaio de Kracauer sobre a “Rebelião dos estratos médios”, a respeito da

4
intelectualidade alemã de extrema direita nos anos 1920) – tudo isso fazia da
controvérsia sobre o capitalismo o trampolim para outros desenvolvimentos intelectuais.

Esta aula pretende então recuperar um pouco do desenrolamento teórico dessas


duas noções que aparecem quase interligadas naquele contexto: a de capitalismo
monopolista e de colapso econômico. Ou seja, eu gostaria de recuperar algumas das
formulações mais consagradas que se deram a respeito dessa noção no interior do
marxismo, para obtermos então um quadro de referências para medir os
desenvolvimentos de Pollock, Neumann e Horkheimer.

Isso por uma série de razões. Em primeiro lugar, é digno de nota que Pollock
passa do conceito de capitalismo monopolista, ainda determinante em suas análises dos
anos 1930, para o conceito de capitalismo de Estado no início dos 1940. Em segundo
lugar, a reação de Neumann, a defesa de uma concepção de capitalismo monopolista
totalitário -- para designar os mesmos fenômenos sublinhados por Pollock, a economia
sob a dominação nazista – se deixa mais facilmente distinguir do que se entendia
geralmente por capitalismo monopolista antes. Em terceiro lugar, o uso de Horkheimer
do capitalismo de Estado como Estado autoritário nos permite ver dois novos traços de
pensamento sobre o conceito de capitalismo em geral: sua fusão com a razão – portanto
uma recuperação da teoria weberiana – e formas intrínsecas de dominação social, vale
dizer: a insistência em uma alteridade sempre ameaçadora, como no antissemitismo.

Além disso, é preciso sublinhar que Pollock descarta a possibilidade de um


colapso econômico do capitalismo, no que aparentemente (mas só aparentemente) ele
estaria retomando a posição chave de Eduard Bernstein, o qual disparou no final do
século XIX a querela sobre o colapso. O que pretendo fazer então nessa série de vídeos
é um resgate do debate suscitado por Bernstein para depois compreendermos a
especificidade do debate levado por Pollock e Neumann. No entanto, a posição de
Pollock não era consensual no interior do Instituto de Frankfurt não só por conta da
reação de Neumann. Pollock contrastava abertamente com a produção teórica de um de
seus pesquisadores mais antigos: Henryk Grossmann, quem pode ser visto com o último
grande defensor da teoria do colapso.

5
II) Engels e o “capitalista total ideal”

O termo “capitalismo monopolista” só vai ter um uso consolidado a partir do


século XX. No entanto, não é difícil remontá-lo a Engels, já ele havia feito, no final da
década 70 e começos dos 80 do século XIX, o registro de muitas das tendências para a
criação de monopólios em um de seus ensaios mais famosos, dedicado à história do
socialismo (“Do socialismo utópico ao socialismo científico”), assim como no chamado
Anti-Dühring, obra muitas vezes criticada por favorecer uma imagem determinista do
desenvolvimento dialético, e mesmo por oferecer as bases de uma dialética da natureza
(uma reação a isso vocês podem verificar na obra de Lukács sobre a reificação e a
consciência do proletariado).

Seja como for, nesses escritos Engels constata a tendência do capitalismo


industrial para o domínio monopolista de grandes trustes, os quais têm início com a
formação de diferentes categorias de sociedades anônimas. Com as crises periódicas de
“superabundância”, provocadas por um elevado grau de produtividade técnica, sem
possibilidade de escoar a massa de mercadorias, se desperta a tendência de planificar as
atividades industriais e comerciais a partir de acordos entre as empresas, seja na forma
de carteis, seja na forma de trustes. As seguintes passagens do ensaio sobre o socialismo
científico contem traços determinantes do que será entendido mais tarde como fase
monopolista do capitalismo:

Em um certo grau de desenvolvimento, essa forma [de grandes empresas]


tampouco basta; os produtores nacionais de um e mesmo ramo industrial
se unificam em um truste, em uma unificação para a finalidade de regular
a produção; eles determinam a quantidade total a ser produzida,
distribuem entre si essa quantidade e forçam o preço de venda,
estabelecido de antemão.

(...) Nos trustes, a livre concorrência se converte em monopólio, a


produção sem plano da sociedade capitalista capitula perante a produção
planificada própria da sociedade socialista que começa a irromper.
Contudo, de início, apenas para o uso e benefício dos capitalistas.

6
(...) De um modo ou de outro, com ou sem trustes, o representante oficial
da sociedade capitalista, o Estado, precisa finalmente assumir a direção
da produção. Essa necessidade da transformação em propriedade do
Estado desponta primeiramente nos grandes institutos de comunicação e
transporte: o correio, o telégrafo e as ferrovias.

(...) Mas nem a transformação em sociedades anônimas e em trustes, nem


em propriedade do Estado, suspende a propriedade de capital das forças
produtivas. Nas sociedades anônimas e nos trustes, isso é palpável. E o
Estado moderno é novamente apenas a organização que a sociedade
burguesa se dá para preservar as condições externas gerais do modo de
produção capitalista, contra as incursões tanto dos trabalhadores quanto
dos capitalistas individuais. O Estado moderno, seja qual for sua forma, é
uma máquina essencialmente capitalista, o Estado dos capitalistas, o
capitalista total ideal [der ideelle Gesamtkapitalist]. (Engels, F. Die
Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft. In: Marx-
Engels Werke, v. 19, pp. 220-222; trad. inglês: p. 120-123).

O termo “ideal” é aqui significativo. Ele se refere à idealidade do pensamento


menos do que um desiderato abstrato, uma idealização: o que Engels quer dizer com
isso é que está dada a condição com a qual o Estado pensa o capitalismo enquanto
capitalista defensor do todo do capitalismo.

Ora, a primeira coisa a se observar nessas considerações de Engels é o fato de


que, em si mesma, uma fase “monopolista” do capitalismo não é algo estranho ao
marxismo. E em mais de uma vez Engels se vale de diversas análises de Marx sobre o
processo de concentração de capital e centralização dos meios de produção, o que por si
só já conduz a um processo acentuado de socialização da produção com base na
propriedade privada. Não obstante, Engels ajunta à compreensão da fase “monopolista”
-- como um fenômeno essencial de concentração de capital, formação de trustes e
cartéis, enfim a constituição de monopólios em setores inteiros da economia nacional --
o papel do Estado como uma força organizadora ativa da produção e distribuição,
interferindo diretamente, além disso, nas relações de trabalho e, com isso, nos conflitos
sociais de origem econômica. O Estado passa a ter um papel de configuração nas lutas

7
de classe que marcaram de ponta a ponta a história do século XIX. É esse elemento que
parece diferir do esquema clássico do materialismo histórico em que ao Estado estava
reservado um papel de superestrutura e guardião das relações de propriedade privada.

A partir do momento em que se cristaliza no interior do marxismo, e isso por


mediação de sua principal figura viva depois do falecimento de Marx em 1883, a
percepção de que o capitalismo passava por transformações econômicas e políticas não
inteiramente previstas na teoria, o que se deslocava para o centro do debate, em diversos
âmbitos, era o grau dessas transformações. E uma questão em particular começaria a
atiçar os ânimos entre os marxistas no contexto da Segunda Internacional: aquela de
saber até que ponto se poderia contar ainda com um colapso econômico do capitalismo
em razão de suas leis imanentes. As observações de Engels sobre a formação de trustes
e a ação do Estado como capitalista total ideal permitiam pôr em questão o agravamento
das crises econômicas a ponto de o sistema por inteiro desmoronar? Este é o ponto.

Em princípio, a atenuação da livre-concorrência e a atuação do Estado como um


“capitalista total ideal” pareciam trazer consigo a possibilidade real, até então
impensável no marxismo, de eliminar ou ao menos estreitar as veias que conduziriam às
crises -- cuja periodicidade se tornara evidente durante o século XIX – e mesmo um
colapso de dimensões catastróficas. Contudo, Engels estava oficialmente longe de
acreditar nessa possibilidade, como revela as linhas finais da citação feita. Muito pelo
contrário, ele enxergava antes na socialização da economia feita pelo Estado burguês,
seguindo o raciocínio de Marx sobre a socialização da produção que a centralização e
concentração de capital permitiam, uma condição para a socialização verdadeira,
socialista, que seria motivada ao final das contas pela proletarização crescente que os
grandes trustes e o Estado promovem de qualquer forma. Mesmo as sociedades
anônimas seriam vias de socialização da produção na medida em que as decisões sobre
investimentos e produção estariam saindo das mãos do burguês individual e
coletivizadas. Mais ainda, a cooperação entre trabalhadores no interior da grande
indústria estabelecida com base em monopólios representava um fator de socialização
da produção que contrastava com as relações privadas de produção.

Dessa maneira, as contradições do capitalismo não seriam verdadeiramente


atingidas no interior do capitalismo monopolista. Engels insiste na contradição essencial
entre uma produção social que alcançou níveis inéditos de produtividade e a apropriação

8
capitalista, a contradição entre o modo de produção e o modo de distribuição. A
expressão dessa contradição essencial seriam as sucessivas crises de superabundância e
falta de mercado para escoar a produção. Por sua vez, condicionada pelo grau elevado
de produtividade, intensificam-se as tendências de pauperização e aumento no grau de
exploração do operariado, ou seja, se intensificam as contradições sociais do
capitalismo e, com elas, as lutas de classe. Como representante oficial da burguesia, o
Estado não consegue e não pode superar a anarquia da produção sem eliminar os
próprios fundamentos capitalistas e, portanto, quanto mais participa da vida econômica
mais conduz para além do próprio capitalismo. Ao lidar com as crises, o Estado leva
ainda mais adiante a socialização da produção que contradiz as relações de produção
capitalista, sob o fundo de uma massificação e empobrecimento crescente do
proletariado, sob o fundo de uma contradição inteiramente visível entre produção e
mercado. O capitalismo monopolista, em sua primeira apreensão, não parecia assim
anular as expectativas defendidas no Manifesto Comunista: o capitalismo cria a sua
própria negação, seja ao fazer avançar as forças produtivas, seja ao formar uma massa
de proletários educados e socializados por essas forças produtivas mas também cada vez
mais pauperizados.

III) Bernstein e o abandono da tese do colapso

Contudo, uma figura muito próxima de Engels no contexto da Segunda


Internacional, Eduard Bernstein, iria dizer justamente o contrário. Em artigos na
principal revista do Partido Socialdemocrata Alemão, Die Neue Zeit, e no livro Os
pressupostos do socialismo e as tarefas da socialdemocracia, Bernstein daria origem,
nos últimos anos do século XIX, ao movimento revisionista no interior do marxismo ao
defender que não havia mais, com as novas condições do capitalismo da época, a
possibilidade de um colapso econômico como condição da revolução proletária.

Em vez de uma concentração acentuada do capital e de uma proletarização do


todo da população, Bernstein discernia uma série de fatores que, acompanhando o
capitalismo monopolista, apontavam em direção oposta. Em primeiro lugar, em virtude
da criação de sociedades anônimas, tem início uma propagação do número de
acionistas. A concentração de meios de produção em grandes empresas não seria

9
seguida de uma mera concentração de capital. De modo geral, as estatísticas mostrariam
um crescimento do número de pequenos proprietários, um aumento no número de
capitalistas de diversos graus, não uma redução, tanto em termos absolutos como
relativos. Juntamente com isso, em segundo lugar, o sistema bancário se aperfeiçoa e
forma um sistema de crédito capaz de aliviar crises de investimento. A “elasticidade” do
sistema de crédito permitiria então uma adaptação do sistema às mais diversas
circunstâncias, atenuando as crises. Em terceiro lugar, o surgimento de novas camadas
médias tanto por conta das sociedades acionárias quanto pela diferenciação crescente da
indústria em ramos os mais diversos, a ascensão social de trabalhadores – tudo isso
criava uma diferenciação na população que destoava das teses sobre a proletarização
crescente da população e sua pauperização. Por fim, a efetivação de organizações
patronais que evitariam crises geradas por concorrência sem controle. Essas
organizações “influenciam a relação entre a atividade produtiva e as condições de
mercado, de tal maneira que o risco de crise é diminuído”. A socialização da produção
que Engels enxergara nessa fase do capitalismo servia a Bernstein para tirar do
horizonte o colapso do sistema econômico.

Em suma, para Bernstein, o sistema capitalista demonstraria uma inédita


capacidade de adaptação e controle sobre as causas de crises, de par com uma
diversificação crescente da indústria fortalecendo posições médias e a ascensão social.
Com inúmeras estatísticas nesse sentido, ele propõe uma modificação a fundo do papel
da crise econômica e sua função para a criação de uma sociedade socialista.

Nós vimos nas aulas sobre o fetichismo que Marx havia visto uma contradição
fundamental na autovalorização do capital, que ele explicitava nos termos de uma
dialética de trabalho morto e trabalho vivo, cuja expressão conceitual mais penetrante
em termos de teoria da crise foi a lei da queda tendencial da taxa de lucro. O trabalho
morto, objetificado nos meios de produção, tende a crescer enormemente em virtude da
exploração da força de trabalho enquanto trabalho vivo, atual. O trabalho vivo transfere
o valor incrustado nos meios de produção, condição indispensável para a formação de
valor, e adiciona o mais-valor, condição fundamental para a valorização e o lucro, cuja
verdadeira fonte é, no conjunto dos valores investidos, a diferença não paga em relação
ao próprio valor da força de trabalho, que é determinado pela soma dos produtos
necessários em média para a reprodução dessa força.

10
Marx via aí uma contradição fundamental porque a fonte de mais-valor era
reduzida à medida que o capitalista buscava, com mais forças produtivas, com mais
maquinaria, aumentar a extração de mais-valor: no volume do capital total, o trabalho
vivo decresce em relação ao trabalho morto. Porém, Marx também se voltava para os
movimentos de escape, para as tendências contrárias, como a busca contínua de saídas
para essa contradição, por exemplo: a elevação do grau de exploração por
prolongamento e intensificação da jornada de trabalho, a redução do salário abaixo do
seu valor, condições favoráveis do comércio exterior etc. De modo geral, Marx explicita
a contradição da valorização como uma crise estrutural, mas não se pronuncia
definitivamente sobre o colapso do sistema como tal.

Da mesma maneira, Bernstein entendeu que a teoria da crise tem de assumir o


sentido de um enunciado sobre o colapso do sistema como um todo, com o acréscimo
decisivo de que tal colapso estaria fora do horizonte no contexto do final do século XIX.
“Se a crise geral é uma lei imanente da produção capitalista”, escreve Bernstein em seu
livro, “então ela tem de se estabelecer como verdadeira agora ou em um futuro próximo,
caso contrário, a prova de sua inevitabilidade paira no ar da especulação abstrata”. Na
realidade, a própria teoria do valor se baseava, de acordo com Bernstein, mais em
abstrações e em hipóteses do que em exposições de processos reais. Isso não é um
demérito. Como hipótese, no entanto, é preciso uma confirmação ou refutação empírica.
Daí que as estatísticas sobre a diversificação do capital e a diferenciação social nos
países centrais possuem um valor sistemático na argumentação de Bernstein em favor
da revisão da teoria marxiana:

Se a sociedade fosse constituída ou se ela tivesse se desenvolvido da


maneira como a teoria socialista tem suposto até agora, então, de fato,
teria havido somente um curto período de tempo antes de o colapso da
economia ocorrer. Mas, como podemos ver, não é este o caso
precisamente. Longe de a articulação social ter se simplificado em
comparação com épocas anteriores, ela se tornou em alto grau escalonada
e diferenciada a respeito tanto da renda quanto do trabalho.

(...) Com efeito, os meios capitalistas de defesa contra crises carregam


consigo as sementes de um cativeiro novo e mais oneroso para a classe

11
trabalhadora, assim como as sementes de privilégios de produção que são
a forma mais aguda dos antigos privilégios de guildas. Do ponto de vista
dos trabalhadores, parece-me ser muito mais importante no momento
manter em mente as potencialidades dos cartéis e dos trustes do que a
profecia sobre sua ‘impotência’. A questão de saber se eles são capazes, a
longo prazo, de alcançar seu objetivo primeiro, a prevenção de crises, é
em si mesma uma questão menor para a classe trabalhadora. Mas se torna
um questão muito significativa tão logo as expectativas de que qualquer
espécie a respeito do movimento para a libertação da classe trabalhadora
são vinculada à crise geral. Pois então a ideia de que os carteis não
podem fazer nada para prevenir crises pode ser a causa de um descuido
fatal.

(...) Nós podemos estabelecer somente quais elementos na economia


moderna promovem crises e quais forças as evitam. É impossível decidir
a priori a relação última dessas forças entre si ou seu desenvolvimento. A
menos que eventos externos imprevisto produzam uma crise geral – e,
como dissemos, isso pode acontecer a qualquer hora – não há nenhuma
razão cogente para concluir, por razões puramente econômicas, que uma
tal crise é iminente. (Bernstein, E. The Preconditions of Socialism.
Cambridge (Mass.): Cambridge University Press, 1993, p. 62, p. 96-97).

Por essas linhas, é possível verificar que Bernstein emprestava à teoria marxiana
das crises capitalista uma formulação enfática: as crises econômicas são interpretadas
em virtude de sua eventual relação com o colapso sistêmico. Como nota Fernando
Rugitsky, essa associação entre crise e colapso não é evidente em Marx, mas se prestava
perfeitamente às finalidades teórico-políticas de Bernstein.

Isso porque o socialismo não seria mais o resultado um colapso ou o teria como
precondição necessária, mas nasceria de uma atuação política consciente e pacífica no
âmbito de regimes democráticos. Os sindicatos, as cooperativas e os partidos
socialdemocratas legalmente reconhecidos seriam mais efetivos para a finalidade da
construção da sociedade socialista do que os grupos revolucionários mais radicais.
Feitas as contas, é evidente que Bernstein expressava em teoria a prática do Partido

12
Socialdemocrata Alemão, a principal organização partidária de orientação marxista na
época, que depois de um período de ilegalidade passava a aumentar cada vez sua
extensão no parlamento e na administração pública. Porém, apesar dessa prática
reformista, o partido mantinha frequentemente posições teóricas ortodoxas até estourar
a discussão sobre o revisionismo, e, com ela, a teoria do colapso.

Com isso, Bernstein deu origem assim ao debate propriamente dito sobre o tema,
que envolveu expoentes do movimento socialista de diversas orientações, da
envergadura de Kautsky, Rosa Luxemburgo e Lênin, e encontrou no interior do próprio
Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt ao menos aquelas três posições mencionadas
anteriormente: a de Grossmann, firme defensor do colapso, a de Pollock, que recusa já
nos anos 30 a ideia de colapso após as políticas do New Deal, e a de Neumann, que
rebate a posição de Pollock.

IV – Kautsky: colapso como revolução

Embora relutante inicialmente por motivos pessoais e políticos a tomar uma


posição, Kautsky acabou rejeitando boa parte das premissas de Bernstein. Mais tarde ele
mesmo vai abandonar a linha de defesa do colapso, considerando que Bernstein inseriu
em Marx uma concepção inexistente. Em todo caso, de início, ele considera que o
diagnóstico de Bernstein derivaria sua força unicamente de um período de prosperidade
momentâneo, que se deu na última década do século XIX.

Em termos sociais, Kautsky trata de provar que as estatísticas de Bernstein sobre


o crescimento das camadas médias eram equivocadas. As novas camadas médias não
resultariam de uma diversificação do capital. Elas de fato incorporavam trabalhadores
com funções mais intelectuais, de jornalistas a cientistas, de professores a advogados, à
medida que o modo de produção industrializado demandava e promovia pelo sistema
educacional. Porém, como essas camadas não detinham a propriedade privada dos
meios de produção, não tinham importância maior para o desenvolvimento econômico e
eram vulneráveis ao processo de concentração, o qual relançava esses estratos médios
para o proletariado. Assim, a intelectualização dos trabalhadores também era
acompanhada frequentemente de proletarização, fazendo com que essa camada social se

13
situasse sempre em um campo de tensão, ora pendendo para burguesia, ora pendendo
para o proletariado, mas incapaz de uma ação política coerente e organizada. A
intelectualização dos trabalhadores que conduzia para cima era sempre acompanhada de
uma proletarização que empurrava as camadas médias para baixo.

É importante notar que Kautsky insiste muito mais nos aspectos sociais do que
os propriamente econômicos. Isso supõe um sutil deslocamento na argumentação de
Bernstein. Bernstein argumentava que a recomposição social dos trabalhadores provava
que a teoria econômica de Marx precisava de uma revisão. O colapso econômico era
uma condição para o socialismo. Kautsky pega a coisa por um outro canto: o colapso
não é estritamente econômico, ele deriva da própria organização e maturidade do
proletariado. Como disse, Kautsky acaba abandonando abertamente, por fim, uma
concepção econômica do colapso, chamando a atenção para as melhoras sociais nas
condições de vida do proletariado, obtidas democraticamente pelos partidos socialistas,
ou seja, em um sentido muito mais próximo de Bernstein.

V – Rosa Luxemburgo: revolução antes do colapso

Rosa Luxemburgo é muito mais aguda na crítica a Bernstein na medida em que


recusa a posição revisionista por inteiro. Em seu escrito dedicado a Bernstein, ela rejeita
primeiramente as consequências políticas embutidas na posição geral de Bernstein, uma
suposta oposição entre reforma social e revolução. Para ela, a reforma social é um meio
de conquistar o fim: a revolução, ao passo que a ênfase de Bernstein na política
reformista tende a minimizar o fim. Bernstein costumava dizer que o essencial era o
movimento, não o fim. Para Rosa isso se traduzia justamente em abandonar a finalidade
da revolução ela mesma.

Além disso, ela contesta a tendência do capitalismo para um controle econômico


que daria cabo de sua anarquia essencial. Os meios de adaptação do sistema econômico
previstos por Bernstein não levariam a uma anulação do colapso, antes encaminhariam
para ele. No ensaio sobre reforma ou revolução, ela pensa primeiramente o colapso nos
termos de forma de uma superprodução causada pela expansão da produção e limitação
do consumo, e, portanto, uma falta de mercado para a produção. O sistema de crédito,

14
que para Bernstein seria uma forma de aliviar crises momentâneas, impele à
produtividade e com isso à produção desenfreada, mas encolhe ao primeiro sinal de
crise, e com isso diminui a capacidade de absorção pelo mercado, sem contar os efeitos
especulativos que o inchaço do crédito provoca em geral.

De outro lado, os trustes e os carteis não poderiam ter um efeito regulativo sobre
o todo da economia, já que o controle sobre um ramo da indústria se daria em
detrimento dos interesses de outro ramo -- um exemplo citado já por Kautsky seria o
embate entre mineradoras e as siderúrgicas --, sem contar a concorrência acirrada entre
as economias nacionais no mercado mundial por meio de guerras alfandegárias. A
fragilidade da orquestração exigida pelos trustes acaba levando à fragmentação dos
capitais privados e de novo à livre-concorrência.

De modo geral, todos os argumentos desenvolvidos por Bernstein poderiam ser


invertidos no seu contrário, de acordo com Rosa Luxemburgo. O colapso do capitalismo
é, assim, necessário segundo a lógica da acumulação do capital, mas isso não significa
dizer que estão dadas desde já todas as condições para tal colapso. As crises periódicas
do século XIX não demonstrariam ainda o amadurecimento inteiro das contradições
capitalistas. Soma-se a isso que as crises devem ser consideradas não como obstáculos
mas como propulsores do desenvolvimento capitalista, a possibilidade de novas
formações de capital, capitais que possibilitam novos desenvolvimentos técnicos e
novos processos de acumulação e concentração de capital e assim por diante. De modo
geral, o capitalismo adia o colapso expandindo-se em novos mercados, até topar com os
limites territoriais dessa expansão. O importante para ela é que o proletariado estivesse
maduro para a conquista do poder político antes que se chegue ao colapso econômico.
Para isso, a democracia seria uma condição indispensável, absolutamente necessária, ao
passo que ela se torna obstáculo para a própria dominação burguesa.

VI – Lênin: imperialismo e agonia do capitalismo

Tanto quanto Rosa Luxemburgo, em que pese suas diferenças políticas


acentuadas, Lênin recusa a aceitar que os trustes e os monopólios possam eliminar as
crises profundas, a pauperização do proletariado, e, assim apaziguar as lutas do

15
proletariado contra a dominação burguesa. Como Rosa Luxemburgo e Kautsky, Lênin
considera que Bernstein se prendeu a um período de prosperidade que não tardou em
dar lugar a crises na primeira década do século XX. (“Marxism and Revisionism”, in:
vol 15). Os cartéis e os trustes teriam agravado a anarquia da produção e a opressão
sobre o proletariado, instigando ainda mais os antagonismos de classe.

No entanto, é somente em sua obra sobre o imperialismo, em 1916, que Lênin


desenvolve com mais precisão o lugar possível das crises no capitalismo monopolista,
embora o ponto de interesse esteja menos nisso do que no arranjo político do
capitalismo em nível internacional. Em “Imperialismo, estágio superior do capitalismo”,
Lênin se contrapõe novamente ao diagnóstico de que a agonia do capitalismo estaria
fora do horizonte. Ele vai insistir em que o capitalismo da livre concorrência deu lugar
de fato a um novo capitalismo, o capitalismo monopolista que é sustentado no
desenvolvimento do capital financeiro como principal forma do capital em geral.

O conceito é tirado de uma outra obra que iria marcar a discussão marxista sobre
o capitalismo nas primeiras décadas do século XX, o livro de Rudolf Hilferding sobre o
capital financeiro, ainda que o próprio Hilferding tivesse tirado consequências de
política econômica no sentido oposto ao Lenin, isto é no sentido do reformismo. O
conceito de capital financeiro é remetido a uma junção, seja por fusão, seja por
interpenetração, entre capital bancário e capital industrial. O capitalismo encontra de
fato um período de monopólios, o poder de trustes, cartéis e sindicatos patronais (sendo
esta uma das suas primeiras características) mas, menos importantes que os trustes e os
carteis industriais propriamente ditos, são os consórcios monopolizadores que sustentam
o capital financeiro. Esses monopólios financeiros orquestrados por poucos bancos
centralizam sob si praticamente quase a totalidade do capital em dinheiro das economias
nacionais e das operações financeiras, incluindo os empréstimos aos governos, e
ganham o comando direto ou indireto das grandes indústrias. Com isso, surge de um
lado o poder vultoso de oligarquias financeiras, de outro lado, a possibilidade de
atuação de um capitalista coletivo capaz de subordinar sob si as “operações comerciais e
industriais da sociedade capitalista como um todo”, controlando os capitalistas
individuais. Em suma, o “domínio do capital financeiro substitui o domínio do capital
em geral”, e o imperialismo se constitui como dominação do capital financeiro.

16
Além disso, a dominação do capital financeiro sinaliza para um deslocamento na
natureza das transações internacionais, caracterizadas cada vez mais pela exportação de
capitais e não tanto, como na fase concorrencial, pela exportação de mercadorias,
embora nas condições imperialistas os capitais investidos no exterior tenham como
exigência o monopólio da exportação de mercadorias, muitas delas insumos justamente
para a produção buscada com o empréstimo (exemplo das ferrovias no Brasil). Por
outro lado, sendo o capital financeiro parasitário por nascença, o imperialismo consiste
também na exploração financeira dos Estados credores sobre os Estados devedores, o
que se expressa internamente no aumento do lucro da camada rentista sobre a camada
industrial e comercial da burguesia.

O que é propriamente “imperialista” nesse processo tem a ver com a divisão do


mundo inteiro por parte dos enormes monopólios defendidos e protegidos pelos
governos dos países mais avançados, os quais por sua vez também criam empresas para
estabelecer monopólios, surgindo assim uma interpenetração de monopólios privados e
de Estado. Formam-se então carteis internacionais nos mais diversos ramos da indústria
e do comércio.

A disputa desses monopólios e das potências a que se ligam dá início então a


uma sucessão de conflitos e guerras envolvendo países regionalmente distantes. Como o
mundo já estava inteiramente dividido entre as grandes potências no século XIX, o
ponto crucial passava a ser a possibilidade de novas divisões, a transferência de
territórios inteiros de nações de uma potência à outra. Passa a ser vital para as grandes
potências garantir às suas indústrias tanto matéria prima quanto mercado consumidor
externo, até mesmo como fontes e mercados futuros, a ser criados por novas técnicas.
Por outro lado, ao contrário do que afirmavam os reformistas, o fim do mercado livre, o
domínio de monopólios nacional e internacionalmente não representa a melhoria das
condições da população em geral, já que esses monopólios imprimem altas taxas de
lucro, sob o pressuposto de salários baixos.

Apesar da concentração e da ação direta dos Estados no modo de reprodução do


capital, necessária como tal para a fase imperialista, Lenin não afasta a possibilidade de
crises e do colapso. Antes, ele considera que o capitalismo monopolista intensifica as
contradições do capitalismo e agrava o “caos inerente ao conjunto da produção
capitalista”. Uma das principais razões disso se deve ao fato de que o capitalismo

17
monopolista se desenvolve a partir do capitalismo concorrencial, mas não elimina
propriamente a livre-concorrência. A supremacia dos trustes, cartéis, sindicatos e do
capital financeiro de modo geral não se dá na forma de uma supressão da livre-
concorrência. Esta continua ao seu lado, como condição marginal e em oposição à
tendência monopolista, “implicando contradições, fricções, conflitos agudos e
violentos”. Os trustes e os carteis embatem-se assim contra a indústria não cartelizada.

Em segundo lugar, o desenvolvimento monopolista exacerba a desigualdade seja


interna seja externa entre os diversos componentes da produção. Se o setor industrial se
expande, o agrícola permanece retardatário. Se a indústria pesada concentra meios de
produção e capital, outros setores da indústria se mostram ainda mais caóticos. É típica
do desenvolvimento capitalista a desigualdade de níveis tanto interna como
exteriormente, geralmente com desequilíbrios e inversões nas posições a cada vez que
uma posição subordinada é superada.

Em terceiro lugar, o imperialismo representa um confronto permanente entre as


grandes potências, com a possibilidade de guerras com alto poder destrutivo sobre as
economias. Nesse âmbito, todo o sistema de exportação de capital, componente vital do
capital financeiro no contexto do capitalismo monopolista, é suscetível a crises de
naturezas as mais diversas.

Em quarto lugar, o capitalismo monopolista, embora tenha acelerado o progresso


das técnicas industriais, pode ter o efeito inverso com a consolidação do domínio
monopolista em certos setores, levando à estagnação. As duas coisas em uma: um
elevado grau de tecnologia que elimina a concorrência pode dar lugar a uma estagnação
técnica justamente porque não há mais concorrência, para o que as políticas
imperialistas dos Estados contribuem igualmente.

Em quinto lugar, o parasitismo dos Estados rentistas também trazem riscos para
a indústria nacional das próprias potências imperialistas e aguça por outro lado o
conflito entre as nações dependentes e as nações imperialistas.

Assim, ainda que entreteça política e economia no âmbito dos Estados nacionais
avançados e militarizados que lutam pela supremacia e pelo controle de outras nações
subdesenvolvidas, Lenin não vê a possibilidade de afastar crises devastadoras no

18
sistema capitalista monopolista, agora intrinsecamente fundido com a política
imperialista.

***

É interessante observar nisso tudo que, em primeiro lugar, embora afastem as


premissas e as conclusões de Bernstein a respeito do colapso, Kautsky, Rosa
Luxemburgo e Lênin não estabelecem sua iminência por uma razão ou outra; ele é
projetado de maneira geral como um futuro não imediato, embora certas causas tenham
efeitos atuais. Além disso, em segundo lugar, todos esses teóricos, incluindo Bernstein
não foram apenas teóricos do capitalismo, eles foram figuras de proa do movimento
socialista, liderando suas vertentes mais representativas.

Quando Grossmann, Pollock e, de uma maneira indireta, Neumann, dão


prosseguimento o debate, essa associação entre crítica da economia política e política
socialista já é bastante rarefeita, ainda que o contexto geral fosse da máxima urgência.

VII – Grossmann: o colapso como imanência da acumulação

Quando Henryk Grossmann publica seu livro sobre a lei de acumulação e de


colapso do sistema capitalista, em 1929, estoura a maior crise financeira desse sistema
até então. Esse quadro histórico não poderia ser mais favorável para uma tentativa de
reconstruir a teoria das crises que coloca no centro a ideia de colapso sem, no entanto,
se apoiar em dados empíricos.

A crise de 29 parecia ser então a ilustração de uma reconstrução lógica


deliberada. Em vez de uma análise empiricamente sustentada, que muitas vezes levaria
apenas a uma descrição enganosa dos desenvolvimentos estruturais do capitalismo,
Grossmann busca reconstruir a lógica do conceito de acumulação para derivar a
tendência ao colapso como imanente ao processo de acumulação. A chave da crítica ao
capitalismo se encontra no método, na contradição lógica e estrutural do processo de

19
acumulação, que muitas vezes é ignorado por aqueles que recusam o colapso ou o
atenuam suas causas de alguma maneira, geralmente partindo de descrições factuais do
capitalismo da época.

Desse modo, Grossmann rejeita a objeção de que o colapso foi uma adição
indevida de Bernstein às análises de Marx sobre a acumulação. Bernstein não estava em
erro ao atribuir esse conceito à teoria desenvolvida no Capital. Pelo contrário, ele
defende que a leitura correta da teoria do valor de Marx tem de ser de tal forma
constituída que a tendência ao colapso é imanente ao capitalismo, ao próprio processo
de acumulação de capital, e as diversas crises são antes desvios em relação ao colapso.
Para isso, ele se vale dos elementos fundamentais da teoria da acumulação e da lei da
queda tendencial da taxa de lucro que havíamos abordado como contradição
fundamental entre trabalho morto e trabalho vivo.

De acordo com Grossmann, é preciso enfatizar que o colapso só se apresenta,


sem nenhuma contratendência que o transforme em uma crise temporária, se a massa de
lucro e o que significa dizer: a massa de mais-valor cai, em comparação com o capital
total investindo, no processo mesmo de acumulação acelerada. Assim, o sistema
inevitavelmente colapsa devido ao declínio relativo na massa de lucro, fenômeno que se
expressa na queda na taxa de lucro.

O colapso se relaciona diretamente com os elementos da teoria da queda


tendencial da taxa de lucro, que por sua vez só é compreensível na lógica da teoria do
valor em geral. No entanto, Grossmann enfatiza que a lei da queda tendencial deve ser
lida de maneira correta, enfatizando antes a queda da massa de lucro do que a queda na
taxa de lucro.

Apesar de todas as interrupções periódicas e debilitações da tendência de


colapso, o mecanismo inteiro vai necessariamente, cada vez mais, com os
progressos da acumulação do capital, em direção a seu fim, visto que,
com o crescimento absoluto da acumulação de capital, a valorização
desse capital crescente se torna progressivamente mais difícil. Se essas
contratendências são enfraquecidas ou paralisadas (...), a tendência ao

20
colapso ganha a supremacia e se impõe como a ‘crise final’ em sua
validade absoluta.

(...) o colapso do sistema sucede por causa da queda relativa da massa de


lucro, mesmo que ela possa crescer em termos absolutos e, apesar disso,
ela cresça. A queda da taxa de lucro é assim apenas o índice que mostra a
queda relativa da massa de lucro. A queda da taxa de lucro é também
importante para Marx apenas porque ela é idêntica à redução relativa da
massa de mais-valor. (...). Apenas nesse sentido pode ser dito que a
queda da taxa de lucro faz o sistema colapsar, pois a taxa de lucro cai
porque a massa de lucro se reduz relativamente. (...) A partir de um
determinado limite de acumulação, o mais-valor não é suficiente para a
valorização normal do capital sempre em aumento. (Grossmann, H., Das
Akkumulations- und Zusammenbruchsgesetz des kapitalistischen Systems
(Zugleich eine Krisentheorie). Leipzig: Hirsdifeld, 1929, p. 140, pp. 197-
198.

O fundamental dessa explicação já foi abordado por nós de uma maneira ou de


outra. Ao buscar sua acumulação por meio da valorização de si mesmo, o capital
aumenta tudo aquilo que cai sob a rubrica de trabalho morto, o capital constante,
chamado assim porque o valor objetificado nos produtos empregados na produção não
altera seu valor durante o processo de produção (ou seja, o capital constante se refere
aos meios de produção como matéria prima e maquinaria, com finalidade de elevar a
produtividade e aumentar assim a taxa de mais valor relativo). A longo prazo, isso se dá
em detrimento do trabalho vivo, isto é, o capital variável convertido em força de
trabalho – lembrando que o termo “variável” se deve ao fato justamente de que a força
de trabalho altera seu valor, cria o valor equivalente a ele mesmo e mais valor essencial
para a valorização do capital investido. Na composição orgânica do capital, isto é, a
proporção entre capital constante e capital variável, o capital constante (o trabalho
morto) tende aumentar cada vez mais a expensas do capital variável (o trabalho vivo). A
consequência já havíamos traçado nas aulas sobre Marx: a fonte de mais valor diminui
por força de todo o movimento direcionado para o seu aumento. Para Grossmann,
resulta daí a impossibilidade de valorização: o capitalismo colapsa.

21
Essa tendência não pode ser enfraquecida a longo termo por regulações do
capitalismo monopolista, que no geral buscam aumentar preços e lucros estagnando o
desenvolvimento das forças produtivas. Ou seja, os monopólios e imperialismo em geral
visam inutilmente evitar ou eliminar a tendência ao colapso que se vincula
intrinsecamente à acumulação de capital. O parasitismo diagnosticado por Lenin se
torna uma maneira de atenuar essa crise de valorização, mas não pode evitá-la. Além
disso, Grossmann não vê nenhuma possibilidade de regularizar o processo de
acumulação e evitar o colapso ou as crises temporais, questão que estava sempre no
horizonte do conceito de capitalismo monopolista.

***

Por uma série de fatores, a posição de Grossmann, talvez a mais sistemática e


organizada reconstrução da teoria da crise em Marx, foi marginalizada no Instituto de
Pesquisa Social. Ele fazia parte de uma primeira geração, estreitamente ligado ao diretor
Carl Grünberg, que iria ser sucedido por Horkheimer. Seu caráter muito mais lógico e
conceitual do que empírico foi sempre apontado também com uma das razões de
marginalização no contexto do materialismo interdisciplinar, sedento por pesquisas
empíricas e aliando diversas áreas, não concentrada apenas na economia política.
Pollock, por sua vez, era muito próximo de Horkheimer e passou a representar o núcleo
do Instituto no início dos anos 1930.

Contudo, essas circunstâncias podem ter tido um peso bem menor do que a
história do ocidente nos anos 1930. Se a crise de 29 jogava água no moinho daqueles
que ainda defendiam resolutamente o colapso, o New Deal, a planificação da economia
na União Soviética e a ascensão do fascismo alterava consideravelmente o ambiente.
Pollock podia mais facilmente defender que a política iria desarmar as causas da crise.
A tese de Bernstein podia ser defendida novamente, mas em um contexto que estava
muito longe de favorecer as políticas socialdemocratas previstas por ele. Junto com o
capitalismo de Estado, o socialismo, seja pela via democrático-reformista à la
Bernstein/Kautsky ou pela via democrático-revolucionária à la Rosa Luxemburgo, se
despedia da cena. E o socialismo alcançado pela via revolucionária da ditadura do

22
proletariado à la Lênin já mostrava, com Stalin, um rosto quase tão assustador quanto o
primado fascista da política. De um modo ou de outro, o capitalismo deixava de ser,
para Pollock, um mero sistema econômico. Assim, caberia dizer que, em suas mãos, o
capitalismo dependia sobretudo da política, o que pode nos propiciar elementos para um
outro enunciado: com o capitalismo de Estado, o capitalismo se torna, no essencial,
política.

23

Você também pode gostar