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Teoria e prática do partido arquitetônico

Mario Biselli
Arquitextos, São Paulo, 12.134, Vitruvius, jul 2011.

Nam June Paik


Croquis de Mario Biselli

Muitos autores acadêmicos têm se debruçado recentemente sobre temas e termos correntes da arquitetura na
tentativa de compreender e explicar o processo de projetação. O aprofundamento recente destas pesquisas e
reflexões tem produzido noções sempre mais didáticas e esclarecedoras, tanto para estudantes e professores
como para arquitetos com interesses teóricos e mesmo para leigos e amantes da arquitetura.

A história é rica em exemplos do interesse em resumir o projeto a um processo linear, possuidor de uma
técnica de realização passo a passo, como montar uma máquina, como cultivar soja, primeiro isto, depois
aquilo e aquilo outro, e assim por diante numa sequência de procedimentos idêntica a tantas outras técnicas e
disciplinas inventadas pelo homem.

Escola Coreana
Croquis de Mario Biselli

Um aspecto interessante da atividade de projeto é justamente a quantidade de teorias, metodologias, manuais


de procedimentos e técnicas as mais diversas da qual foi objeto historicamente. Mais interessante ainda é
observar que, embora partes do processo de produção do projeto possam estar sujeitas a uma sequência de
procedimentos, o processo inteiro jamais poderá se enquadrar neste modelo, e, portanto, as metodologias não
se sustentam enquanto sistemas universais, embora seja obrigatório conhecê-las, pois a nenhum arquiteto é
permitida a ignorância sobre a experiência acumulada que compõe a história da arquitetura.

O termo projetação tem sido pouco usado no Brasil, mas é o termo que define a produção do projeto de

1
arquitetura como um processo. Este processo tem um momento crítico e imponderável que foge a qualquer
metodologia, mesmo quando a projetação estava sujeita às regras da composição clássica. Este momento
crítico é o momento que envolve as decisões relativas ao que conhecemos por partido arquitetônico, termo que
em outros lugares é também conhecido como estratégia ou conceito.

Bienal de Arte de SP
Croquis de Mario Biselli

Para efeito desta reflexão usarei o termo partido arquitetônico por ser o mais comum no Brasil e, creio, mais
específico do campo da arquitetura do que estratégia ou conceito, os quais são muito comuns em outras
áreas. Com base na experiência pode-se também dizer que “partido” é o termo comum à linguagem própria
dos arquitetos, o assunto central, senão único, entre arquitetos no âmbito da produção, do julgamento de
concursos de arquitetura, do ensino de projeto, das conversas informais. E não creio se tratar de um exagero
cogitar a exclusividade do assunto, dado que em “partido” se compreende a discussão de aspectos como
estratégia de implantação e distribuição do programa, estrutura e relações de espaço, todas elas questões
centrais para os arquitetos. Outros temas relativos às atividades criativas – como composição, estilo, estética
etc. – embora tenham sido objeto de interesse da teoria da arquitetura recentemente, são tratados no âmbito
da prática com pudor e desinteresse, senão como meros epifenômenos.

A definição de partido arquitetônico, portanto, e as reflexões sobre seu significado, dado o interesse geral, tem
sido tarefa de vários autores e todas elas contêm aspectos novos e esclarecedores. O exame destas definições
é um primeiro objeto de meu interesse.

Escola Cáritas
Croquis de Mario Biselli

Desde o período acadêmico até as primeiras definições modernas, o projeto de arquitetura tem sido descrito
como resultado de um raciocínio lógico. Em Teoria e projeto na primeira era da máquina, Banham compara
Guadet, para quem a composição era o tema perene, e Choisy, que enfatiza a construção, ambos teóricos da
2
composição arquitetural, para quem a natureza lógica da concepção constitui o tema mais destacado:

“a forma como consequência lógica da técnica – que torna a arte da arquitetura


sempre e em toda parte a mesma. [Para Choisy] a essência da arquitetura foi sempre
a construção, a função do arquiteto sempre foi esta: fazer uma avaliação correta do
problema com que se deparava, após a qual a forma do edifício seguir-se-ia
logicamente dos meios técnicos a seu dispor” (1).

Autores modernos, como Carlos Lemos, também propõem definições fazendo uso dos termos “consequência” e
“resultado”, nos quais uma ideia de lógica permanece implícita:

“A mencionada definição é a seguinte: Arquitetura seria, então, toda e qualquer


intervenção no meio ambiente criando novos espaços, quase sempre com
determinada intenção plástica, para atender a necessidades imediatas ou a
expectativas programadas, e caracterizada por aquilo que chamamos de partido.
Partido seria uma consequência formal derivada de uma série de condicionantes ou
de determinantes; seria o resultado físico da intervenção sugerida. Os principais
determinantes, ou condicionadores, do partido seriam:

a. a técnica construtiva, segundo os recursos locais, tanto humanos, como materiais,


que inclui aquela intenção plástica, às vezes, subordinada aos estilos arquitetônicos.

b. o clima.

c. As condições físicas e topográficas do sítio onde se intervém.

d. o programa das necessidades, segundo os usos, costumes populares ou


conveniências do empreendedor.

e. as condições financeiras do empreendedor dentro do quadro econômico da


sociedade.

f. a legislação regulamentadora e/ou as normas sociais e/ou as regras da


funcionalidade” (2).

É certo que todo arquiteto defende seu projeto como um produto da aplicação da lógica face aos dados
fornecidos para sua elaboração. Mas, em arquitetura parece que temos uma lógica para cada projetista, pois
se dependêssemos meramente da lógica, o processo seria universal e já não caberia qualquer preocupação
sobre o assunto. Talvez, neste caso, a ação de projetar e construir já teriam sido integralmente resolvidos pela
indústria, através de seus computadores e máquinas.

E o que se vê é justamente o contrário, há um claro incômodo a respeito – “Esa incómoda situación del
partido”, afirma Corona-Martinez (3) –, sempre surgem novas explicações e teorias, como se sempre mais
estivéssemos interessados em desvendar um mistério, perscrutar as mentes criadoras para pôr às claras algo
nebuloso, abrir uma “caixa preta”:

“Le Corbusier enfatizou ainda mais o uso da lógica matemática de Descartes ao dizer
que o início do processo de criação é a definição da planta arquitetônica, que por sua
vez é a representação do programa arquitetônico (função da edificação). Assim, a
3
projeção vertical da planta resultaria, segundo ele, nas paredes que por sua vez se
tornariam volumes: linhas que se transformam em planos que se transformam em
volumes; é a sequência linear e crescente do raciocínio cartesiano. Embora se saiba
que Descartes ainda é apreciado nas escolas de arquitetura do Brasil para o ensino-
aprendizagem do projeto arquitetônico, sabe-se também que em algum momento do
processo de criação surge algo estranho que parece não caber na lógica cartesiana: é
a caixa preta; um conceito usualmente utilizado pelos arquitetos para significar o
momento em que a subjetividade psicológica do arquiteto define, por meio de um
rabisco (croqui) o partido do projeto. Apesar dos arquitetos conhecerem esse
processo, ninguém até hoje explicou o que acontece dentro dessa caixa preta, dizem
que é inexplicável” (4).

Duas publicações recentes abordam estes temas, suas reflexões são a base para uma compreensão e críticas
contemporâneas desta problemática. São elas Adoção do partido em arquitetura, de Laert Pedreira Neves e
Composição, partido e programa – uma revisão de conceitos em mutação, de Anna Paula Canez e Cairo
Albuquerque da Silva, este último se tratando de uma coletânea de ensaios de vários autores.

Escola Cáritas
Croquis de Mario Biselli

Destes textos emergem duas ideias principais. Em primeiro lugar, a de que o partido é a ideia inicial de um
projeto e em segundo, que esta ideia é uma criação autoral e inventiva, e artística na medida em que faz uso
da composição. Vemos em Neves as definições nesta sequência. Em primeiro lugar:

“Denomina-se Partido Arquitetônico a ideia preliminar do edifício projetado. Idealizar


um projeto requer, pelo menos, dois procedimentos: um em que o projetista toma a
resolução de escolha dentre inúmeras alternativas, de uma ideia que deverá servir de
base ao projeto do edifício do tema proposto; e outro em que a ideia escolhida é
desenvolvida para resultar no projeto. É do primeiro procedimento, o da escolha da
idéia, que resulta o partido, a concepção inicial do projeto do edifício, a feitura do seu
esboço” (5).

Antes, no texto introdutório:

“É importante ressaltar que projetar um edifício é, na essência, o ato de criação que


nasce na mente do projetista. É fruto da imaginação criadora, da sensibilidade do
autor, de sua percepção e intuição próprias. É resultado do trabalho do pensamento.
Sendo assim, constitui-se em algo de difícil controle, interferência e ordenamento”
(6).

4
Em Composição, partido e programa – uma revisão de conceitos em mutação, o texto de Rogério de Castro
Oliveira faz uso de uma linguagem mais complexa, mas de conteúdo similar e complementar. Primeiramente
uma argumentação genérica:

“Em suma, no projeto de arquitetura, a concepção do partido arquitetônico


pressupõe a proposição de configurações que descobrem, ou inventam, relações
espaciais e programáticas a partir de uma dispersão inicial, indeterminada, de
possibilidades projetuais. A coerência de tais construções deriva, antes, de um
progressivo fechamento interno do que de determinação externa. O partido é, por
hipótese, uma prefiguração do objeto, que o projetista elege como ponto de partida e
fio condutor: cabe à investigação epistemológica construir contextos de explicitação
das razões que asseguram pertinência e validade a essas arquiteturas projetadas” (7).

Escola Cáritas
Croquis de Mario Biselli

Ainda no mesmo texto, quando se dedica a uma comparação entre os projetos de Le Corbusier e Lúcio Costa
para a Cidade Universitária do Rio de Janeiro em 1939:

“Para Lúcio Costa... ao contrário, tomar partido implica dar início a um percurso
inventivo que se traça sobre um campo de relações em constante formação e
renovação, ainda que aos tateios e sujeito a inúmeros e imprevisíveis retornos e
desvios. Tais relações simultaneamente externas e internas ao objeto projetado
implicam a construção de correspondências entre formas e conteúdos, organizando-
se progressivamente em esquemas que conectam partes antes separadas. Este
dinamismo atribui à construção do partido um sentido eminentemente operativo,
antecipador das configurações compositivas que conduzirão à finalização do projeto”
(8).

Todas estas definições, desde as mais simples como as de Neves, às mais sofisticadas, como as de Rogério de
Castro Oliveira, procuram sempre mais elucidar, ilustrar e compreender o projeto de arquitetura e o momento
de adoção do partido arquitetônico. Nota-se que no âmbito da experiência prática no Brasil, e em face da
maneira como o tema tem sido abordado tradicionalmente, que cada autor, cada arquiteto poderia igualmente
descrever a projetação de maneira muito similar, alterando a ênfase neste ou naquele aspecto, simplificando
ou elaborando mais e mais o texto, mantendo, contudo a sua essência.

Deste modo pode-se concluir, a partir destes teóricos brasileiros, que o Partido Arquitetônico é a idéia inicial de
um projeto, que a sua formulação é uma criação autoral e inventiva com base na coerência e na lógica
5
funcional, e que, o partido, sendo uma prefiguração do projeto, faz da projetação um processo que vai do todo
em direção à parte.

Aeroporto de Florianópolis
Croquis de Mario Biselli

Este conceito de Partido Arquitetônico parece ser um dos traços mais característicos da herança corbusiana no
Brasil:

“Le Corbusier abordava o programa de arquitetura partindo de princípios de ordem


geral, adaptando-os em seguida à situação real. O projeto era definido pelo partido
que se organizava do geral para o particular. [...] A casa Baeta projetada por Vilanova
Artigas em 1956, segundo o conceito de partido de Le Corbusier, define-se pelas
empenas das fachadas da frente e dos fundos e pelas aberturas das fachadas laterais,
é organizada em meios níveis” (9).

Também empiricamente, em cada situação específica baseada na prática de concursos e avaliações no âmbito
universitário, é possível identificar a preponderância deste conceito nas discussões entre arquitetos,
professores e membros das comissões julgadoras, sendo esta a característica fundamental que acaba por se
estabelecer como um invariante, uma estrutura de pensamento que, pode-se supor, continua válida como
aspecto central da teoria de projeto e da projetação no Brasil, teoria tributária também dos princípios
acadêmicos e modernos herdados pelos grandes mestres modernos brasileiros tanto cariocas quando
paulistas, em face do seu carisma e de sua longevidade, para além dos fatores conjunturais históricos,
resumidos por Futagawa desta maneira:

"Durante os períodos antes e depois da Segunda Guerra Mundial, a arquitetura


brasileira passou por desenvolvimento específico através das obras criativas dos
arquitetos pioneiros como Lucio Costa, Afonso Reidy, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas
e Lina Bo Bardi. Os princípios do modernismo foram aplicados e adaptados às
condições locais do contexto brasileiro, como se a ideia do modernismo simpatizasse
com o clima tropical do Brasil e da cultura das pessoas que lá vivem. Mais tarde, veio
à luz uma forma única e original de arquitetura, que só existe no Brasil, e que vai
além do movimento modernista original.

O regime militar instalado no Brasil em 1964 provocou vinte anos de estagnação


cultural, mas, ao mesmo tempo, também isolou a área de arquitetura do movimento
pós-moderno que envolvia todo o mundo naquela época. Portanto, o Brasil se tornou
um dos raros países que conta com sucessores legítimos do movimento modernista,
e esse pano de fundo influencia fortemente a produção dos jovens arquitetos atuais,
seguindo o princípio do modernismo entre as novas gerações" (10).

Quero propor a seguir algumas reflexões sobre estes temas acima citados em busca dos novos significados e
usos destas terminologias, bem como uma compreensão contemporânea a respeito destes mesmos processos.

6
Ginásio Barueri
Croquis de Mario Biselli

Em primeiro lugar, sobre o que é partido arquitetônico.

Quando se usa a expressão “adoção do partido”, deve-se observar o fato de que esta afirmação pode
pressupor uma biblioteca de partidos adotáveis, como se estivessem todas as possibilidades já dadas e
catalogadas. Convenhamos, analogamente, que adotar um filho é muito diferente de conceber um filho.

A afirmação de que o partido é a ideia preliminar do edifício a ser construído, ou uma prefiguração do objeto,
que o projetista elege como ponto de partida e fio condutor, não abrange a totalidade dos modos de projetar,
portanto não é universal, como também não o é o movimento do todo em direção à parte. Um claro exemplo
disto são os projetos que envolvem tecnologias de pré fabricação de componentes para aplicação em série,
invertendo, portanto, o raciocínio, a parte precede o todo (projetos de James Stirling, tais como para o Andrew
Melville Hall, 1968, e University of St. Andrews Student Residence, 1967).

Proponho aqui pensar sob o pressuposto de que o modo como cada arquiteto projeta é menos relevante do
que o resultado final do seu trabalho. A sua metodologia, que é sempre particular, tem um interesse menor
neste momento.

Considerando, portanto, o cenário contemporâneo de grande diversidade arquitetônica, o partido arquitetônico


é compreendido como a ideia que subjaz ao projeto, aquela identificada como ideia principal ou central,
quando o projeto já se apresenta concluído, não importando quando esta ideia surgiu. É a ideia que o projeto é
capaz de veicular ou expressar, o conteúdo intelectual de um edifício ou projeto enquanto manifestação,
mediada por uma linguagem. É da avaliação destas ideias que se ocupam as comissões julgadoras em
concursos, professores em avaliação etc.

Igreja Tamboré
Croquis de Mario Biselli

De fato, a ideia central de um projeto pode nascer no início do processo ou durante o processo - tal como
7
descrito nos textos anteriormente citados – ou pode mesmo anteceder ao processo, como é o caso dos
arquitetos teóricos, cujas reflexões oportunamente se aplicarão na prática. Analisemos alguns exemplos de
definições enunciadas por arquitetos que questionaram a teoria do projeto, revisando as tradicionais
concepções da coerência e lógica, funcional e construtiva, do modernismo. É possível observar também que
em seus projetos há sempre uma ideia central, não obstante a diferença de abordagem.

Robert Venturi propõe o abrigo decorado, um caixa funcional inexpressiva acrescida de uma fachada
bidimensional ornamentada e comunicativa segundo a natureza do edifício.

"Venturi prefere os abrigos decorados, porque ele afirma que a sua comunicação é
mais eficaz, embora os arquitetos modernos tenham se dedicado durante muito
tempo a projetar 'patos'. O pato é, em termos semióticos, um signo icônico, porque o
significante (forma) tem certos aspectos em comum com o significado (conteúdo). O
abrigo decorado depende de outros significados – a escrita ou a decoração – que são
signos simbólicos" (11).

Aldo Rossi propõe: a forma fica, a função muda. Por que então a função deve determinar a forma? A forma
deve ser determinada pelo ‘lugar’.

“A primeira grande crítica de Rossi foi ao que denominou de funcionalismo ingênuo


do movimento moderno, que ao priorizar a explicação da cidade apenas pela função,
deixava de entendê-la pelo que tinha mais significativo: o conhecimento da
arquitetura pelo mundo de suas formas. A função era de uma circunstância que fazia
uso da forma como um ato social. Ela nunca ia além de seu tempo, enquanto a forma
permanecia” (12).

Peter Eisenman sobrepõe à realidade do projeto – função, programa, lugar, topografia – disciplinas ou
conceitos sobre os quais explorar ou deconstruir a forma, tal como assim se define:

“Os conceitos, nos quatro projetos, transitam, se justapõe, interagem em ato. Malhas,
escalas, rastros e dobras são frequentemente concomitantes. Na exposição foram
pensados como detonadores de pensamento, como balizas para a percepção e
inteligibilidade da obra de Peter Eisenman. Mas a concomitância entre inteligibilidade
e percepção, este movimento duplo parece ser recorrente e indissociável na reflexão
e produção da arte” (13).

Igreja Tamboré
Croquis de Mario Biselli
8
Mais recentemente Herzog e de Meuron adotam modelos de exploração e geração de forma, caracterizado
como um processo contínuo com auxílio do computador e sem final determinado, como no projeto para o
Pavilhão Jinhua Structure II – Vertical Basilea (ver AV Proyectos 007 2005, p. 40).

E numa postura contemporânea mais radical, no sentido de uma autonomia da forma, sobrepujando tudo o
mais, destaca-se os projetos de Frank Owen Gehry (Guggenheim Bilbao, 1997, e Walt Disney Concert Hall,
2003) e Zaha Hadid (tais como Contemporary Arts Center, 2003, em Cincinatti e MAXXI Museo, 2010, em
Roma).

A ideia central (ou Partido) pode ser identificada mesmo em situações onde a configuração funcional é um
dado, uma condicionante ou determinante, fato comum quando em projetos para estádios, ginásios esportivos,
teatros e em alguns casos, aeroportos. Via de regra configurações funcionais rígidas por tradição ou quando o
próprio cliente é a autoridade no que tange às funções, muito comum no ramo das indústrias. Em todos esses
casos, a despeito dos limites, o arquiteto encontrará espaço para introduzir uma ideia, ora migrando da forma
para a matéria (Herzog & de Meuron, Estádio Allianz Arena, 2005, na Alemanha, e Estádio Nacional "Ninho do
Pássaro", 2008, na China), ora enfocando radicalmente o design (como em Massimiliano Fuksas, no projeto do
Aeroporto Internacional Shenzhen na China, ver AV proyectos 026 2008, p. 46) ou a tecnologia construtiva
(Renzo Piano, Estadio de Bari, 1990, na Itália, e Richard Rogers, Aeroporto de Barajas, 2006, Espanha), etc.

Em segundo lugar, cabe indagar, o que é a “caixa preta”?

O que ainda pode ser dito sobre a adoção/ invenção/ formulação do Partido Arquitetônico, o momento crítico
imponderável, a caixa preta?

Igreja Tamboré
Croquis de Mario Biselli

Vamos admitir que os arquitetos fazem projetos e isto é um fato; portanto, em algum momento um
determinado conjunto de informações se torna uma ideia para um edifício. O campo das ideias em arquitetura
implica em um vasto campo de estudo da teoria e da história, mas este não é o espaço para desenvolver esse
tipo de exercício intelectual e acadêmico. Vamos apenas considerar, de maneira mais simples, que este fato se
relaciona com um fenômeno humano de grande interesse das ciências humanas, por um lado, e da filosofia,
passando no século XX pelo estruturalismo, semiologia e semiótica: o fenômeno da linguagem, compreendida
como manifestação e processo intrínsecos às diversas mediações sígnicas. A capacidade humana de inventar
linguagens, a possibilidade de inventar distintas linguagens – verbais e não verbais – e transitar e fazer
9
transposições entre estas (transtextualidade) são os mecanismos do intelecto típicos da arte e da arquitetura.
Compreendida em maior ou menor grau como linguagem, a arquitetura é uma atividade desta mesma natureza
de mediação e manifestação da ideia (14).

Assim procedem os artistas, um poeta descreve uma paisagem (transposição do ícone para o texto), um
escritor descreve um personagem (ícone para texto), um desenhista produzindo um retrato falado (ícone para
texto e de novo para ícone), e tantas outras atividades do homem, um artista pintando um retrato (ícone para
ícone), um ator em cena (texto para texto mais imagem), sempre pressupondo interpretação de um conteúdo
numa linguagem seguido de uma expressão em outra.

O partido arquitetônico, neste contexto, se dá no momento em que o texto, compreendido como articulação
semântica – pensamento e ideia - expressa na linguagem verbal, se transforma em ícone, transposição da
linguagem verbal para a linguagem não verbal, ou de maneira mais precisa, a operação que faz o arquiteto é
de texto e ícone para ícone, pois o programa é texto e o lugar é ícone.

Casa LPVM, Guaecá


Croquis de Mario Biselli

As transposições entre linguagens podem inicialmente sugerir a ideia de tradução, mas as tentativas
empreendidas no sentido de estudar a arquitetura - tanto como história como prática projetual - a partir das
estruturas da língua de forma automática – como tradução literal - apenas exacerbaram as diferenças
estruturais entre estas linguagens, diferenças que implicam, para a arquitetura, num grau superior de liberdade
no nível da expressão, dada a ausência de vínculos com as regras e convenções a que está sujeita a linguagem
fala/texto:

“O que se deve evitar nessa análise é a aplicação mecânica do modelo da linguagem à


arquitetura, como fizeram diversos estudos semióticos. A aplicação mecânica de um
modelo especificamente desenvolvido para a linguagem em outros sistemas
semióticos, como a arquitetura, apenas permite reconhecer o que é semelhante à
linguagem no nível da ideologia, mas não define as diferenças de estrutura interna
entre a linguagem e, outros sistemas semióticos. Mesmo que seja possível conceber a
linguagem como um sistema complexo de regras subjacentes, e, portanto, que seja
viável compará-la com os sistemas explícitos e implícitos de regras da arquitetura, as
regras arquitetônicas são definidas por uma determinada facção de uma determinada
classe social, ao passo que a língua não é propriedade de ninguém, nem em geral
nem em particular.. Os sistemas de regras arquitetônicas não exibem nenhuma das
10
propriedades da langue – não são finitos, não tem uma organização simples nem
determinam a manifestação do sistema. Ademais, as regras arquitetônicas estão em
constante fluxo e mudam radicalmente.

A aplicação mecânica do modelo da língua/fala à arquitetura ocidental fortalece a


ideologia arquitetônica, porque nega as diferenças entre a arquitetura e a língua e
ignora o lugar da linguagem natural na arquitetura. Além disso, o fato mais
importante talvez seja que essa aplicação automática nega a presença de “algo” que
define uma importante diferença entre a arquitetura e a linguagem – o aspecto
criativo da arquitetura. Na língua, o indivíduo pode usar, mas não modificar o sistema
da linguagem (langue). O arquiteto, ao contrário, pode e faz modificações no sistema,
que é inventado a partir de um sistema de convenções” (15).

Teatro de Natal
Croquis de Mario Biselli

E mesmo o referido sistema de convenções, ou contrato social, compreendido como base da linguagem,
constitui um elemento limitador para a expressão em arquitetura:

“Não havia nenhuma razão especial para que os ingleses designassem um animal de
Bull, os franceses o chamassem de boeuf e os alemães de Ochs. [...] Mas porque a
relação entre significante e significado era arbitrária, devia ser respeitada por todos.
Ninguém pode mudar isso unilateralmente; há um contrato social entre todas as
pessoas que falam inglês de que elas devem usar a palavra bull toda a vez que
quiserem se referir a esse animal específico. Se alguém usar outra palavra, ou
inventar uma nova palavra para esse fim, ninguém o compreenderá; ele terá quebrado
o contrato social. Note-se de passagem que, com poucas exceções, não existe um
contrato social para o significado da arquitetura, e esta é uma diferença fundamental
entre a arquitetura e a linguagem” (16).

O homem de início pensou sobre as coisas, depois começou a pensar sobre o próprio pensamento,
principalmente depois de Descartes, que levou tudo para dentro do intelecto (“je pense, donc je suis” –
Discours de la Méthode, 1637). Com os arquitetos não haveria de ser diferente. Em meio a dificuldades de
solução para um projeto o arquiteto frequentemente se interroga sobre seu pensamento, seu método (que em
projetos anteriores funcionara tão bem!).

Mas o projeto de arquitetura, embora circundado de problemas técnicos e profundamente vinculado ao uso, é

11
por natureza um processo criativo avesso a enquadramentos, formatações, metodologias ou fórmulas.
Permanece, portanto, e como desde sempre, aberto à infinita inovação, ao espírito dos tempos, à antecipação
de tendências, à revisão de paradigmas, e, no pólo oposto, a novas visitas e itinerários interpretativos pelas
tradições do passado.

Torres Empresariais na Rua Afonso Brás


Croquis de Mario Biselli

NOTAS
1
BANHAM, Reyner. Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 40.

2
LEMOS, Carlos. O que é arquitetura. São Paulo, Brasiliense, 2003, p. 40-41.

3
Alfonso Corona Martinez. Prefacio. In: CANEZ, Ana Paula; SILVA, Cairo Albuquerque (org). Composição,
partido e programa – uma revisão de conceitos em mutação. Porto Alegre, Ritter dos Reis, 2010, p. 35.

4
AMARAL, Cláudio Silveira. Descartes e a caixa preta no ensino-aprendizagem da arquitetura. Arquitextos, São
Paulo, n. 08.090, Vitruvius, nov. 2007 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.090/194>.

5
NEVES, Laert Pedreira. Adoção do partido na arquitetura. Salvador, Edufba, 1998, p. 15.

6
Idem, ibidem, p. 9.

7
OLIVEIRA, Rogério Castro de. Construção, composição, proposição: o projeto como campo de investigação
epistemológica. In: CANEZ, Ana Paula; SILVA, Cairo Albuquerque (org). Op. cit., p. 35.

8
Idem, ibidem, p. 16.

9
ACAYABA, Marlene Milan. Brutalismo caboclo e as residências paulistas. Projeto, São Paulo, n. 73, 1985.

10
FUTAGAWA, Yukio. Modernism Architecture of Brazil. GA Houses, Tóquio, n. 106, p. 8. No original em inglês:

12
“Throughout the periods before and after the World War II, Brazilian architecture went through some unique
development conducted by the creative works of those pioneering architects such as Lucio Costa, Alfonso
Reidy, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas, Lina Bo Bardi. The principle of the modernism was fostered and
adapted to the unique, local conditions and contexts of Brazil, as if the idea of the modernism sympathized
with Brazil´s tropical climate and the culture of the people who reside there. Later on, a unique and original
form of the architecture only found in Brazil has brought to light, which goes beyond the original modernism
movement.
The military regime founded in 1964 brought a 20 years of cultural stagnancy to Brazil, but at the same time
that also caused their architecture field to be isoladed from the postmodernism movement that had involved
all over the world at that time. Consequently Brazil has become one of the rarest countries that remain with
the legitimate successors of the modernism movement, and this background strongly affected to produce
today´s young architects following the modernism priciple among new generations”.

11
JENCKS, Charles. The Language of Post-modern Architecture. Nova York, Rizzoli, 1977, p. 45. No original em
inglês:
“Venturi would prefer more decorated sheds, because he contends, they communicate effectively, and modern
architects have for too long only designed ‘ducks’. The duck is, in semiotic terms, an iconic sign, because the
signifier (form) has certain aspects in common with the signified (content). The decorated shed depends on
learned meanings – writing or decoration – which are symbolic signs.”.

12
SPADONI, Francisco. Rossi: figura, memória e razão. In: Informe arqlab (boletim informativo do Laboratório
de Arquitetura do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Belas Artes), São Paulo, n. 1, fev. 1998, p.
3.

13
SUMNER, Anne Marie. Prefácio. In: Gridings, Scalings, Tracings and Foldings in the work of Peter Eisenman.
Catálogo de exposição. São Paulo, Masp, 1993.

14
Abordagens acerca do mesmo fenômeno, ver:
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites I (1980). In: NESBIT, Kate (org.). Uma nova agenda para a
arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 172-177.
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites II (1981). In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 177-182.
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites III (1981). In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 183-188.
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites III (1981). In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 183-188.
TSCHUMI, Bernard. Introdução: notas para uma teoria da disjunção arquitetônica (1988). In: NESBIT, Kate
(org.). Op. cit., p. 188-191.
EISENMAN, Peter. Diagram Diaries. Londres, Thames & Hudson, 1999.
ABASCAL, Eunice Helena S.; ABASCAL BILBAO, Carlos . Arquitetura e ciência. Reflexões para a constituição do
campo de saber arquitetônico. Arquitextos, São Paulo, n. 11.127, Vitruvius, dez. 2010
<www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.127/3688>.

15
AGREST, Diana; GANDELSONAS, Mario. Semiótica e arquitetura: consumo ideológico ou trabalho teórico. In
NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 137-138.

16
BROADBENT, Geoffrey. Um guia pessoal descomplicado da teoria dos signos na arquitetura. In NESBIT, Kate
(org.). Op. cit., p. 153.

SOBRE O AUTOR:
Mario Biselli é arquiteto formado pela FAU Mackenzie, mestre em Arquitetura e Urbanismos pela mesmo
instituição. É sócio do escritório Biselli & Katchborian arquitetura e professor do Departamento de Projeto da
FAU Mackenzie.

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