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Por que (re)ler os manuais de redação e estilo?

Francisco Gonçalves da Conceição∗

Resumo Summary
Os manuais de redação e estilo, organiza- Summary: The writing and style handbooks,
dos e publicados pelos jornais Folha de S. organized and published by Folha de S.
Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo a par- Paulo, O Estado de S. Paulo and O Globo
tir dos anos 80 e 90, são, simultaneamente, newspapers, from the 80’s and 90’s on,
produtos e instrumentos de políticas discur- are products and instruments of discursive
sivas, da reestruturação do campo de signifi- politics, of the news’ signification field
cação das notícias e da disputa de um lu- reestruturation and of the dispute of a
gar de interlocução no mercado das notícias. interlocution place in the news market,
Com a produção e a aplicação dessas tec- simultaneously. With the production and
nologias discursivas, as instituições jornalís- application of these discursive technologies,
ticas não se limitam a disciplinar o trabalho the journalistic institutions don’t restrict
dos jornalistas, a definir a identidade edito- themselves to discipline the journalists
rial de cada publicação ou a ditar padrões work, to define the editorial identity of each
lingüísticos para a sociedade, mas visam publication or to determine linguistic pat-
também à relação entre as vozes que com- terns to the society, but they also aim at the
põem os espaços públicos midiatizados nos relations between the voices that compose
quais e pelos quais os agentes sociais con- the mediatized public spaces in which and
stroem identidades, vínculos sociais, con- through which the social agents construct
hecimentos e crenças. Ao regular essas re- identities, social chains, knowledgement and
lações, os manuais de redação ocupam um believes. While regulating these relations,
lugar estratégico na composição dos espaços the writing handbooks occupy a strategic
públicos. place at the publi c spaces composition.
Palavras-chave: Imprensa; manuais de
redação; políticas discursivas. Key-words: Press; Writing Handbooks;

Discursive Politics.
Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ,
professor do Departamento de Comunicação Social Em 1984, a Folha de S. Paulo publi-
da UFMA e coordenador do Núcleo de Estudos em cou, em meio a acirradas polêmicas dentro
Estratégias de Comunicação (NEEC). e fora dos ambientes dos jornais, a primeira
edição do Manual da redação. Dezessete
anos depois, a Folha lançou, com grande
destaque e uma série de debates abertos ao
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público nas principais capitais brasileiras, a vezes confinado e apreendê-lo no interior


quarta versão do manual. A diferença en- da movimentação histórica que posiciona os
tre um e outro evento,para Carlos Eduardo jornais em relação aos segredos do poder.
Lins da Silva (FOLHA, 2001, p.16), co- Nas disputas entre profissionais e gestores
ordenador da Comissão do Manual e se- pelo controle do processo de produção das
cretário de Redação quando da organização informações, os manuais foram muitas vezes
da primeira versão, reside no fato de as ideias denunciados como “receitas de bolo” e a in-
do Projeto Folha já terem sido assimiladas terpretação dos seus efeitos limitada a uma
pelos profissionais de jornalismo e pelos em- tentativa de controlar o trabalho dos jor-
presários de comunicação, e já não serem tão nalistas. A redução do papel dos manu-
controvertidas quanto nos anos 80. Naquela ais na reestruturação do campo de signifi-
época, houve forte reação de jornalistas que cação das notícias e a restrição do debate
temiam perder o controle da sua autonomia a profissionais de jornalismo e gestores de
profissional e discordavam da política edito- comunicação, embora justificados pelo con-
rial da empresa adotada no fim da ditadura texto da época, contribuíram para minimizar
militar. Mesmo com essas reações adversas, os efeitos da racionalização estratégica em-
que ganharam as páginas dos jornais e en- preendida pelas organizações jornalísticas.
volveram diferentes agentes sociais, o movi- Do mesmo modo, a apologia da técnica para
mento desencadeado pela Folha provocou o legitimar um lugar neutro e asséptico de pro-
aparecimento de outros manuais, a exemplo dução e revelação do mundo, e a confusão de
dos publicados pelo O Estado de S. Paulo, pesquisadores ao atribuírem à despolitização
em 1990, e pelo O Globo, em 1992. Nos das redações a abdicação de um lugar de in-
anos seguintes, essas publicações estiveram tervenção política na sociedade concorreram
nas listas dos livros mais vendidos, redefini- para projetar uma aparente dicotomia entre
ram algumas das referências do saber-fazer a técnica e a política no campo do jornal-
jornalístico no país, viraram fonte de con- ismo. A este respeito, Milton Santos (2001,
sulta para os interessados em escrever de p. 24) adverte que nunca houve na história
forma “objetiva”, “precisa” e “clara”, foram humana separação entre as duas coisas; uma
incorporados às bibliografias acadêmicas de não se materializa sem a mediação da outra.
forma crítica ou não e, sem dúvida, in- O que faz a história, explica o geógrafo, é
spiraram muitos dos manuais voltados para o fato de as técnicas serem oferecidas como
atender às novas demandas de profissional- um sistema e realizadas através do trabalho
ização das fontes noticiosas. Mas, longe de e das formas de escolha dos momentos e
encerrarem as controvérsias que acompan- dos lugares do seu uso. Em contraposição
haram os manuais nos anos 80, tais proces- às grades corporativas e dicotômicas, é pos-
sos de assimilação constituem motivos para sível fazer uma (re)leitura dos manuais que
outro debate sobre o jornalismo, a democra- leve em consideração as mudanças sociais e
cia e a vida pública no Brasil. as relações de força em que eles foram pro-
Para apreender esses motivos, porém, é duzidos e consumidos.
preciso renunciar às grades corporativas e •
dicotômicas em que esse debate foi muitas

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A leitura – crítica, comparada e contex- em cada formação social ou fechar os ol-


tualizada – dos manuais permite que se con- hos às particularidades que esse fenômeno
heçam nuanças e particularidades do jornal- ganha em cada sociedade, sobretudo porque
ismo praticado no Brasil e o modo como o desenvolvimento desigual do capitalismo
os jornais disputam a composição do campo permite a coexistência de vários processos
do jornalismo e a produção das notícias. de acumulação do capital e contribui para
Não obstante o lugar estratégico do jornal- a existência de diferentes formas de insti-
ismo na sociedade contemporânea, o es- tuições jornalísticas e diversos processos de
tudo das particularidades desse modo singu- produção de notícias. Sendo uma prática dis-
lar de produção de conhecimento permanece cursiva, o jornalismo deve ser efetivamente
pouco explorado na sociedade brasileira. pensado em seu contexto sócio-histórico, nas
Afonso Albuquerque (1998, p. 17-18) con- relações de força em que ele é gerado. No
sidera que isso se deve à tendência, entre entanto, para evitar sucumbir ao relativismo
os pesquisadores, de privilegiar uma abor- frouxo – cujos efeitos se assemelham aos
dagem genérica e, em muitos casos, nor- do essencialismo –, que universaliza o que
mativa. Os livros O segredo da pirâmide, é apenas particular a uma dada formação so-
de Adelmo Genro Filho (1987), O capi- cial, é necessário levar em conta, para efeito
tal da notícia, de Ciro Marcondes Filho da crítica, os contextos de produção daque-
(1986), e Notícia: um produto à venda, las pesquisas, os objetivos dos pesquisadores
de Cremilda Medina (1978), são exemplos e as teorias e metodologias adotadas. As
dessa tendência, segundo Albuquerque. Es- três pesquisas, que resultaram nos livros cita-
tas obras pressupõem a existência de invari- dos por Albuquerque, foram realizadas sob
antes que caracterizam essencialmente, se o impacto da subordinação da produção da
não o fenômeno jornalístico em geral, ao notícia à lógica do mercado, tendência que
menos a forma que ele assume na sociedade hoje atravessa várias formações sociais, pro-
capitalista moderna. Albuquerque advoga duzindo diferentes tipos de instituições jor-
que inexiste um jornalismo “em geral”, para nalísticas. Embora hegemônica, essa tendên-
além das suas formas particulares de mani- cia não é a única a organizar a produção das
festação. Como do seu ponto de vista esse notícias na contemporaneidade. Basta para
tipo de abordagem pode conduzir a análise isso comparar as diferentes práticas profis-
para a perigosa trilha do essencialismo e in- sionais e as diversas modalidades de organi-
viabilizar, assim, a compreensão das dimen- zação empresarial. Mas qual, então, o lim-
sões culturais e históricas do fazer jornalís- ite dessas pesquisas? Considerando a difer-
tico, ele considera mais prudente abordar o ença entre os autores e a complexidade das
jornalismo como um fenômeno cujo signifi- questões formuladas por eles, fiquemos com
cado é constantemente redefinido na prática um e outro aspecto da questão.
profissional dos jornalistas e no modo de or- A crítica de Elias Machado Gonçalves
ganização e atuação das empresas jornalísti- (1992, p. 4), para o que interessa nesta in-
cas. vestigação, aponta a contradição que parece
Sem dúvida, é um equívoco ignorar o fundamental na obra de Genro Filho e o im-
caráter histórico que o jornalismo assume pede de ampliar a sua percepção do fenô-

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meno jornalístico. Genro Filho adota a com- o conhecimento que orienta, nas sociedades
plicada metodologia da aproximação exclu- contemporâneas, muitas das nossas decisões
dente, tendo como parâmetro a dialética ma- cotidianas. O desconhecimento do jornal-
terialista. Embora grande parte da crítica ismo como prática discursiva, produzida e
feita aos princípios filosóficos subjacentes administrada no interior de um campo de-
às diversas escolas sociológicas seja justa, terminado, tem contribuído para minimizar
quando Genro Filho descartou as premissas os efeitos dos manuais e, pior, impedido a
da semiologia estruturalista abriu mão de um percepção mais espaçosa de seus determi-
instrumental decisivo para o conhecimento nantes sociais. O campo, definiu Bourdieu
do jornalismo: o jornalismo como uma (2004, p. 29), é um jogo, cujas regras de
prática simbólica e não apenas social. De- acesso, que são as propriedades que aí fun-
pois de propor a compreensão do jornalismo cionam como capital e dão poder sobre a
como uma forma singular de conhecimento, disputa e sobre os outros jogadores, estão,
Genro Filho deixa de aprofundar a discussão elas próprias, postas em jogo. Outro ponto
de como se produz a nova modalidade cog- de vista é esboçado por Foucault (1996, p.
nitiva. Para exemplificar as limitações da 9), segundo o qual em toda sociedade a pro-
abordagem de Genro Filho, Gonçalves in- dução do discurso é controlada, selecionada,
dica a forma como este autor critica o dis- organizada e redistribuída por certo número
curso da objetividade proposto pelos man- de procedimentos. Para disputar a hegemo-
uais de redação. Ancorado nos parâmetros nia do campo, no momento em que consol-
da filosofia da ciência, Genro Filho pref- idavam outra aliança com vistas a assegu-
ere simplesmente repetir que todo conhec- rar certa autonomia em relação ao campo da
imento é ideológico (o que é verdade), ao política, as instituições jornalísticas assumi-
invés de procurar, através das característi- ram, como questão estratégica, a racional-
cas peculiares da produção do discurso jor- ização de suas práticas discursivas. O pres-
nalístico, refutar o dogmatismo dos funda- suposto fundamental, portanto, que orienta
mentalistas. Embora entenda a comunicação este estudo é que os manuais são, assim
como instância da práxis, Gonçalves chega e simultaneamente, produtos e instrumentos
à conclusão de que o autor de O segredo das políticas discursivas das instituições jor-
da pirâmide quase sempre abdica da inves- nalísticas, que subordinam a ação dos profis-
tigação do fenômeno jornalístico, tomando sionais à disputa de um determinado lugar
como ponto de partida o discurso formu- de interlocução no mercado e na sociedade.
lado pela modalidade emergente do conhec- Os manuais são um sofisticado instrumental
imento. de legitimação de um campo intelectual, re-
Sem uma teoria do discurso, articulada a sponsável pela produção e disseminação de
uma teoria do poder e ao conhecimento das informações em larga escala, e portanto com
formações sociais, será precária a compreen- alta capacidade de influenciar o tecido social.
são do que é particular e o que é universal nas Muito mais que simples “receitas de bolo”,
práticas jornalísticas; ou mesmo acerca do os manuais estão no centro de relações so-
modo de os jornais e os jornalistas, em um ciais e de relações gnosiológicas, que ns so-
campo de forças determinado, produzirem ciedades contemporâneas são identificados,

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respectivamente, pelos denominativos de es- sionalização das fontes e a diversificação dos


paço público e atualidade. leitores.
• A partir da teoria de Gramsci, segundo
Em direta relação com os interesses do a qual o poder nas sociedades capitalis-
campo, os jornais adotam a racionalização tas modernas se caracteriza pela hegemonia,
das práticas discursivas para tentar orientar Fairclough (1997, p. 77) desenvolve a tese
e controlar o curso das principais mudanças de que a hegemonia e a luta hegemônica se
(sociais, culturais, políticas, tecnológicas, formam, em grande medida, nas práticas dis-
econômicas) que afetam o campo do jor- cursivas das instituições: o próprio discurso
nalismo na sociedade brasileira. Ao longo é uma esfera indispensável do esforço pela
das últimas décadas, a democratização da hegemonia, e a hegemonia de uma classe ou
política, a globalização dos mercados e a grupo sobre toda a sociedade, ou sobre de-
digitalização das redes sociais desestrutu- terminadas seções dela, depende, em parte,
raram as relações que organizavam o campo da sua capacidade de moldar práticas discur-
de significação das notícias e exigiram dos sivas e ordens de discurso. A intervenção
gestores das empresas jornalísticas a adoção dos gestores das notícias nas práticas dis-
de políticas que lhes permitissem redefinir a cursivas dos profissionais das empresas e na
sua posição no mercado e na sociedade. A forma dos jornais visava, entre outras coisas,
presença de outros agentes sociais, até en- (r)estabelecer a hegemonia sobre a ação in-
tão ignorados ou silenciados, nos espaços stitucional. Aí reside toda a diferença en-
públicos e as novas possibilidades de inter- tre os manuais dos anos 80 e 90 e os man-
ação social puseram em xeque os modos de uais dos anos 50 e 60. Os atuais manuais
dizer e as estratégias de legitimidade dos jor- não se limitam mais a prescrever questões es-
nais. Para atender, assim, às necessidades tilísticas e operacionais; ultrapassam o uni-
sociais de informação e preservar/ampliar verso gramatical ou lingüístico, para as-
o seu leitorado, agora cada vez mais het- sumir posição estratégica. Eles conformam
erogêneo e disperso, os jornais tiveram que uma identidade jornalística e enunciam uma
rever e atualizar as suas convenções discur- política editorial (Melo, 1984, p.47). E a
sivas e reestruturar as suas alianças. É nesse importância estratégica disso para os jornais
contexto que a racionalidade econômica – pode ser conferida pelas medidas que procu-
manifesta na inserção da notícia na lógica raram assegurar que os manuais fossem pos-
do mercado e na construção da autonomia tos em prática e incorporados ao dia-a-dia
editorial – ganha importância estratégica na das redações e à ação dos profissionais das
(re)organização das empresas jornalísticas, empresas. À investigação e reformulação
que até os anos 70 mantinham alguns dos das práticas discursivas dos profissionais e
comportamentos típicos dos anos 50. Não da forma dos jornais somaram-se a formação
se trata de reduzir a expansão da imprensa dos profissionais com base nas políticas dis-
a imperativos estritamente econômicos, mas cursivas elaboradas pelos gestores das em-
em identificar tendências e estratégias, em presas, o mapeamento e o acompanhamento,
um espaço social em disputa com a profis- a partir de pesquisas de opinião, das transfor-
mações no perfil do leitorado e da reação dos

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leitores à edição do dia. Pesquisas e investi- tidade pela qual o jornal possa ser recon-
gações têm servido para atualizar os manuais hecido como agente social.
e a forma dos jornais. •
A forma do jornal é fundamental para Os manuais de redação e estilo vão além
que a instituição jornalística mantenha a ca- da preocupação em apenas disciplinar o tra-
pacidade de produzir e capturar auditórios balho dos jornalistas e subordiná-los a certa
e de ser reconhecida como agente social. política editorial, definir o estilo de cada
Na luta pela hegemonia, pela construção da jornal ou ditar padrões linguísticos para a
liderança intelectual e moral, como postula sociedade, pois visam, também, à relação
Gramsci (1978), na luta pelo poder sim- entre as vozes que constituem os espaços
bólico, pelos modos de fazer ver e fazer crer, públicos, mediados pela presença das insti-
como propõe Bourdieu (1989), os indivíduos tuições jornalísticas. O espaço público não
e as instituições disputam o poder de se con- é um lugar físico, como a metáfora espacial
stituir agentes sociais e participar da con- parece sugerir, mas instância de interação so-
strução histórica do presente. Pela racional- cial, na qual e pela qual os agentes soci-
ização de suas práticas discursivas, os jor- ais se constituem em sujeitos e constituem
nais disputam uma esfera de poder; em out- o mundo em significado. A organização
ras palavras, “disputam a prevalência do seu do jornalismo como um campo autônomo
modo de perceber e classificar as coisas do funda e legitima relações estratégicas que ul-
mundo e de produzir a realidade e de inter- trapassam a fronteira das redações e atrav-
vir sobre essa realidade” (ARAÚJO, 2000, p. essam a sociedade. Esse espaço relativa-
1). Mas como a eficácia de tal disputa pela mente autônomo, esse microcosmo dotado
primazia depende da forma como os jornais de leis próprias (BOURDIEU, 2004, p. 20)
se apresentam para o outro, a luta pelo poder estabelece fluxos estratégicos entre jornais,
está intimamente relacionada à produção das fontes e leitores, que disputam entre si o pri-
subjetividades. É Gramsci que chama a mado de impor suas categorias de percepção
atenção (1978, p. 327-331), referindo-se à e classificação do mundo. Mas estas re-
racionalização da produção e do trabalho, lações mantêm abertas as fronteiras para out-
nos Estados Unidos, para o fato de que um ros agentes, já porque a contextura de tais re-
novo tipo de trabalho exige um novo tipo de lações depende da presença especializada ou
homem. Estendendo a observação para out- não de outros sujeitos, como os jornais pelos
ros campos sociais e para outras atividades, jornalistas (repórteres, editores, fotógrafos
pode-se afirmar que um dos aspectos da luta etc.), as fontes pelos assessores de comuni-
pelo poder diz respeito à reestruturação das cação (jornalistas, relações públicas, public-
subjetividades ou das identidades. As políti- itários etc.) e os leitores pelas instituições
cas discursivas dos jornais, das quais os man- às quais estão ligados de forma permanente
uais são produtos e instrumentos, parecem ou eventual (família, escola, partido, igreja
se integrar perfeitamente a esse escopo. A etc.). O movimento de diferentes agentes so-
padronização e a normatização dos proced- ciais muda as formas de interpelação e mod-
imentos estilísticos, linguísticos e editoriais ifica a composição dos espaços sociais de
estão voltadas para a produção de uma iden-

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acordo com aquilo que seus processos de in- públicos. Elas não só orientam o que pode
terpelação desencadearam. ser dito, o como pode ser dito e as circun-
O conhecimento e a identidade não são stâncias em que pode ser dito, mas deter-
entidades abstratas constituídas a priori ou minam, também, quem tem o direito ou a
independentes de relações objetivas. A so- autoridade de se pronunciar sobre determi-
ciedade, como define Marx (apud MEY, nado assunto. Elas representam alguns dos
2001, p. 20), longe de ser um grupo qual- recursos simbólicos de que os jornalistas po-
quer de indivíduos, é um conjunto de laços e dem lançar mão para efetuar a textualização
relações sociais por meio dos quais os indi- da realidade. Esses procedimentos são peri-
víduos estão ligados. A produção das notí- odicamente revistos para acompanhar as mu-
cias será sempre muito mais que a ação iso- danças da sociedade e do perfil do leitor. At-
lada do jornalista, ou resultado do automa- ualmente, todos os grandes jornais do eixo
tismo dos procedimentos editoriais. Ao se Rio-São Paulo fazem pesquisas para acom-
referir ao dialogismo na pesquisa científica, panhar as transformações sociais e a per-
Marília Amorim (2001, p. 16) faz uma con- cepção do leitor do produto jornal. A re-
statação que pode, sem maiores problemas, união dessas informações ajuda o gestor a re-
ser aplicada à reportagem e à redação das orientar a produção jornalística e os próprios
notícias. O trabalho de campo visa ao encon- manuais. Na linha de Verón (1985, p. 3),
tro com o outro, na busca de um interlocu- o sucesso de um suporte de imprensa escrita
tor, assim como é impossível existir escrita se mede por sua capacidade de propor um
de pesquisa sem que se considere o prob- contrato que se articule às expectativas, às
lema do lugar da palavra do outro no texto. motivações, aos interesses, aos conteúdos do
O outro, para Amorim, é o interlocutor do imaginário dos leitores, como também por
pesquisador (o leitor); aquele a quem ele se sua habilidade em modificar seus disposi-
dirige em situação de campo e de quem ele tivos de interação social, se assim a situ-
fala em seu texto (a fonte). Em acréscimo, ação concorrencial exigir. Esta questão vi-
Authier-Revuz (1998, p. 122) destaca que rou, desde os anos 80, prática sistemática nos
“nossas” palavras jamais são neutras ou in- principais jornais. Em 1984, a Folha lançou
tactas, mas “habitadas pela voz dos outros”, a primeira versão do manual. Em 1987, 1992
que falam, inevitavelmente, por nossas bo- e 2001, novas versões vieram a público. O
cas. O nosso interlocutor, uma vez estab- Estado e o Globo, respectivamente, editaram
elecida a relação de interlocução, é um co- duas versões, sendo a segunda apenas uma
enunciador incorporado à produção do enun- versão revista e ampliada da primeira. No
ciado. O jornalista, por exemplo, fala sem- essencial, permanece a mesma. Com mais
pre com um (a fonte) na intenção de outro rapidez, a mudança nos contratos aparece na
(o leitor). A notícia é, assim, produto dessas reforma das feições gráficas dos jornais.
relações. Pelo acompanhamento das transfor-
As convenções jornalísticas, fortemente mações do leitorado e das mudanças nos
representadas pelos manuais, ocupam, deste jornais e nos manuais, as instituições jor-
modo, posição-chave na compreensão da or- nalísticas procuram conferir materialidade
dem social e na configuração dos espaços à relação de confiança. A credibilidade

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é o capital simbólico que está em disputa A maioria das medidas tomadas em matéria
aí, já que só ele é capaz de sedimentar deontológica é motivada por razões estratég-
as relações estratégicas que dão forma ao icas, a fim de pôr termo à crise de confi-
campo. A credibilidade – peça fundamental ança entre as mídias e o público, sem, no en-
na constituição dos campos sociais, e, em tanto, responder concretamente ao que está
especial no do jornalismo – é continuamente em jogo nessas crises. A auto-regulação não
testada, por meio de pesquisas, junto aos regula nada quanto aos problemas estrutu-
leitores (BERGER, 1996, p. 190). Isto rais em matéria de exercício da profissão e
explica porque os manuais não se limitam da ética da informação, a exemplo da co-
mais apenas às questões estilísticas e porque decisão entre jornalistas e empresários. Se-
a questão ética e os procedimentos de apu- gundo, a auto-regulação, como equilíbrio en-
ração e edição ganharam espaço crescente tre liberdade e responsabilidade também não
nos manuais, mesmo que gerem dúvidas é suficiente de um ponto de vista teórico. Os
e questionamentos. Embora tais questões princípios da auto-regulamentação remetem
apareçam, hoje, no debate público, como a um modelo historicamente ultrapassado: o
forma de relacionamento com os clientes, e caráter arcaico da concepção da liberdade de
a ética e a responsabilidade social tenham imprensa herdada das Luzes para interpre-
virado estratégia de mercado, de agregação tar o estatuto atual das mídias e dos jornal-
de valor social e político ao produto, no caso istas. A atual organização das mídias e a sua
específico do jornalismo, elas envolvem o inserção social e econômica não encontram
direito à informação. Em relação a isso, paralelo nas condições históricas do Ilumin-
Eugênio Bucci (2000, p. 47) defende que o ismo, em que a condição do editor era insep-
direito de ser informado inclui os direitos de arável da condição do jornalista e o centro
saber como se é informado, de opinar sobre da luta deste residia no direito de publicar.
os métodos e de optar, com base nisso, entre Terceiro, o mercado é estruturalmente inca-
um veículo e outro. Exceção no meio dos paz de instituir e de manter por si próprio as
profissionais e dos gestores, ele reconhece condições da intersubjetividade que estão no
que o cidadão tem preparo suficiente para âmago da liberdade de comunicação. O mer-
tomar partido em relação a dilemas éticos e cado, à semelhança da modernidade, ainda
também técnicos do jornalismo. As regras segundo Libois, é construído na base de uma
que definem o jogo da notícia, sejam elas concepção negativa da liberdade individual,
de origem pública ou privada, precisam ser uma des-subjetivação das relações humanas.
objeto de discussão e avaliação públicas. Tudo se passa como se as informações e as
• opiniões circulassem estando sempre já con-
Os manuais constituem uma forma de stituídas e fechadas sobre si próprias, con-
auto-regulação. De modo geral, os em- vencidas a priori da sua infalibilidade e da
presários reagem contra qualquer outra sua completude.
forma de regulação. Contra esse monopólio, A auto-regulação caracteriza-se, portanto,
Boris Libois (1996) apresenta três argumen- por um único elemento decisivo. O exercí-
tos. Primeiro, a auto-regulação não é sufi- cio da regulação em matéria de informação é
ciente de um duplo ponto de vista empírico. deixado de maneira discricionária apenas aos

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cuidados dos gestores das instituições jor- 1 Referências bibliográficas


nalísticas. Sobre isso, Ribeiro (1999, p. 32) é
ALBUQUERQUE, Afonso. Manipulação
taxativo: “a auto-regulação é, por definição,
editorial e produção da notícia: dois
corporativa”. Para efeito da crítica, ele en-
paradigmas da análise da cobertura jor-
tende a corporação como a prevalência de
nalística da política. In: RUBIM, An-
interesses privados, ainda que unidos num
tônio Albino C.; BENTZ, Ione Maria
grupo de particulares, sobre os interesses
G.; e PINTO, Milton José (Orgs.). Pro-
públicos. Já a regulação supõe, por seu lado,
dução e recepção dos sentidos midiáti-
que a iniciativa e as formas de intervenção
cos. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 9-27.
sejam abertas a pessoas que não pertençam à
profissão ou à gestão das empresas. Deste AGUIAR, Sônia. O discurso normativo da
ponto de vista, o direito a informação não imprensa diária: por uma leitura crítica
deve incluir apenas o direito de ser infor- dos manuais de redação. Pauta Geral,
mado, mas também o direito de participar da Salvador, n. 1, p.31-38, ago.1993.
regulação de uma atividade que incide dire-
tamente sobre a vida de cada um de nós. Por _______. Sobre o discurso jornalístico: ver-
isso, a auto-regulação não pode se dar à custa dade, legitimidade e identidade. Dis-
da renúncia do poder público à regulação ou sertação (Mestrado em Comunicação
à renúncia dos mais diversos agentes soci- e Cultura) – Escola de Comunicação,
ais em participar de forma ativa e consciente Universidade Federal do Rio de Janeiro,
desse processo. Isto significa que a democra- 1990.
tização do país não se restringe às estruturas
do Estado. Em relação à democratização da ARÁUJO, Inesita. Mediações e poder.
sociedade e não apenas do Estado, Ribeiro Niterói, [s.n], 2000.
(1999, p. 32) propõe e defende a heteror- ARISTÓTELES. Arte retórica e arte
regulação. Só que, neste debate, não cabem poética. Rio de Janeiro: Ediouro, 1990.
posições angelicais, ingênuas. A defesa da
heterorregulação não pode dar guarida, em AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Palavras
nome de negar o seu potencial democrático, incertas: as não coincidências do
a fórmulas que venham a restringir ações dizer. Campinas: Editora da UNI-
para resguardar interesses corporativos ou CAMP, 1998.
prescrições moralistas de interesse apenas de
grupos particulares. Do mesmo modo, a het- BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV).
erorregulação não se confunde com censura, Marxismo e filosofia da linguagem.
como empresários e profissionais de jornal- São Paulo: Hucitec, 1997.
ismo, diante de qualquer tentativa de regu- BERGER, Christa. Em torno do discurso
lação do setor, tentam fazer crer. jornalístico. In: FAUSTO NETO, An-
tônio; PINTO, Milton José. O indivíduo
e as mídias. Rio de Janeiro: Diadorim,
1996, p. 188-193.

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10 Francisco Gonçalves da Conceição

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