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Resumo Summary
Os manuais de redação e estilo, organiza- Summary: The writing and style handbooks,
dos e publicados pelos jornais Folha de S. organized and published by Folha de S.
Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo a par- Paulo, O Estado de S. Paulo and O Globo
tir dos anos 80 e 90, são, simultaneamente, newspapers, from the 80’s and 90’s on,
produtos e instrumentos de políticas discur- are products and instruments of discursive
sivas, da reestruturação do campo de signifi- politics, of the news’ signification field
cação das notícias e da disputa de um lu- reestruturation and of the dispute of a
gar de interlocução no mercado das notícias. interlocution place in the news market,
Com a produção e a aplicação dessas tec- simultaneously. With the production and
nologias discursivas, as instituições jornalís- application of these discursive technologies,
ticas não se limitam a disciplinar o trabalho the journalistic institutions don’t restrict
dos jornalistas, a definir a identidade edito- themselves to discipline the journalists
rial de cada publicação ou a ditar padrões work, to define the editorial identity of each
lingüísticos para a sociedade, mas visam publication or to determine linguistic pat-
também à relação entre as vozes que com- terns to the society, but they also aim at the
põem os espaços públicos midiatizados nos relations between the voices that compose
quais e pelos quais os agentes sociais con- the mediatized public spaces in which and
stroem identidades, vínculos sociais, con- through which the social agents construct
hecimentos e crenças. Ao regular essas re- identities, social chains, knowledgement and
lações, os manuais de redação ocupam um believes. While regulating these relations,
lugar estratégico na composição dos espaços the writing handbooks occupy a strategic
públicos. place at the publi c spaces composition.
Palavras-chave: Imprensa; manuais de
redação; políticas discursivas. Key-words: Press; Writing Handbooks;
∗
Discursive Politics.
Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ,
professor do Departamento de Comunicação Social Em 1984, a Folha de S. Paulo publi-
da UFMA e coordenador do Núcleo de Estudos em cou, em meio a acirradas polêmicas dentro
Estratégias de Comunicação (NEEC). e fora dos ambientes dos jornais, a primeira
edição do Manual da redação. Dezessete
anos depois, a Folha lançou, com grande
destaque e uma série de debates abertos ao
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meno jornalístico. Genro Filho adota a com- o conhecimento que orienta, nas sociedades
plicada metodologia da aproximação exclu- contemporâneas, muitas das nossas decisões
dente, tendo como parâmetro a dialética ma- cotidianas. O desconhecimento do jornal-
terialista. Embora grande parte da crítica ismo como prática discursiva, produzida e
feita aos princípios filosóficos subjacentes administrada no interior de um campo de-
às diversas escolas sociológicas seja justa, terminado, tem contribuído para minimizar
quando Genro Filho descartou as premissas os efeitos dos manuais e, pior, impedido a
da semiologia estruturalista abriu mão de um percepção mais espaçosa de seus determi-
instrumental decisivo para o conhecimento nantes sociais. O campo, definiu Bourdieu
do jornalismo: o jornalismo como uma (2004, p. 29), é um jogo, cujas regras de
prática simbólica e não apenas social. De- acesso, que são as propriedades que aí fun-
pois de propor a compreensão do jornalismo cionam como capital e dão poder sobre a
como uma forma singular de conhecimento, disputa e sobre os outros jogadores, estão,
Genro Filho deixa de aprofundar a discussão elas próprias, postas em jogo. Outro ponto
de como se produz a nova modalidade cog- de vista é esboçado por Foucault (1996, p.
nitiva. Para exemplificar as limitações da 9), segundo o qual em toda sociedade a pro-
abordagem de Genro Filho, Gonçalves in- dução do discurso é controlada, selecionada,
dica a forma como este autor critica o dis- organizada e redistribuída por certo número
curso da objetividade proposto pelos man- de procedimentos. Para disputar a hegemo-
uais de redação. Ancorado nos parâmetros nia do campo, no momento em que consol-
da filosofia da ciência, Genro Filho pref- idavam outra aliança com vistas a assegu-
ere simplesmente repetir que todo conhec- rar certa autonomia em relação ao campo da
imento é ideológico (o que é verdade), ao política, as instituições jornalísticas assumi-
invés de procurar, através das característi- ram, como questão estratégica, a racional-
cas peculiares da produção do discurso jor- ização de suas práticas discursivas. O pres-
nalístico, refutar o dogmatismo dos funda- suposto fundamental, portanto, que orienta
mentalistas. Embora entenda a comunicação este estudo é que os manuais são, assim
como instância da práxis, Gonçalves chega e simultaneamente, produtos e instrumentos
à conclusão de que o autor de O segredo das políticas discursivas das instituições jor-
da pirâmide quase sempre abdica da inves- nalísticas, que subordinam a ação dos profis-
tigação do fenômeno jornalístico, tomando sionais à disputa de um determinado lugar
como ponto de partida o discurso formu- de interlocução no mercado e na sociedade.
lado pela modalidade emergente do conhec- Os manuais são um sofisticado instrumental
imento. de legitimação de um campo intelectual, re-
Sem uma teoria do discurso, articulada a sponsável pela produção e disseminação de
uma teoria do poder e ao conhecimento das informações em larga escala, e portanto com
formações sociais, será precária a compreen- alta capacidade de influenciar o tecido social.
são do que é particular e o que é universal nas Muito mais que simples “receitas de bolo”,
práticas jornalísticas; ou mesmo acerca do os manuais estão no centro de relações so-
modo de os jornais e os jornalistas, em um ciais e de relações gnosiológicas, que ns so-
campo de forças determinado, produzirem ciedades contemporâneas são identificados,
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leitores à edição do dia. Pesquisas e investi- tidade pela qual o jornal possa ser recon-
gações têm servido para atualizar os manuais hecido como agente social.
e a forma dos jornais. •
A forma do jornal é fundamental para Os manuais de redação e estilo vão além
que a instituição jornalística mantenha a ca- da preocupação em apenas disciplinar o tra-
pacidade de produzir e capturar auditórios balho dos jornalistas e subordiná-los a certa
e de ser reconhecida como agente social. política editorial, definir o estilo de cada
Na luta pela hegemonia, pela construção da jornal ou ditar padrões linguísticos para a
liderança intelectual e moral, como postula sociedade, pois visam, também, à relação
Gramsci (1978), na luta pelo poder sim- entre as vozes que constituem os espaços
bólico, pelos modos de fazer ver e fazer crer, públicos, mediados pela presença das insti-
como propõe Bourdieu (1989), os indivíduos tuições jornalísticas. O espaço público não
e as instituições disputam o poder de se con- é um lugar físico, como a metáfora espacial
stituir agentes sociais e participar da con- parece sugerir, mas instância de interação so-
strução histórica do presente. Pela racional- cial, na qual e pela qual os agentes soci-
ização de suas práticas discursivas, os jor- ais se constituem em sujeitos e constituem
nais disputam uma esfera de poder; em out- o mundo em significado. A organização
ras palavras, “disputam a prevalência do seu do jornalismo como um campo autônomo
modo de perceber e classificar as coisas do funda e legitima relações estratégicas que ul-
mundo e de produzir a realidade e de inter- trapassam a fronteira das redações e atrav-
vir sobre essa realidade” (ARAÚJO, 2000, p. essam a sociedade. Esse espaço relativa-
1). Mas como a eficácia de tal disputa pela mente autônomo, esse microcosmo dotado
primazia depende da forma como os jornais de leis próprias (BOURDIEU, 2004, p. 20)
se apresentam para o outro, a luta pelo poder estabelece fluxos estratégicos entre jornais,
está intimamente relacionada à produção das fontes e leitores, que disputam entre si o pri-
subjetividades. É Gramsci que chama a mado de impor suas categorias de percepção
atenção (1978, p. 327-331), referindo-se à e classificação do mundo. Mas estas re-
racionalização da produção e do trabalho, lações mantêm abertas as fronteiras para out-
nos Estados Unidos, para o fato de que um ros agentes, já porque a contextura de tais re-
novo tipo de trabalho exige um novo tipo de lações depende da presença especializada ou
homem. Estendendo a observação para out- não de outros sujeitos, como os jornais pelos
ros campos sociais e para outras atividades, jornalistas (repórteres, editores, fotógrafos
pode-se afirmar que um dos aspectos da luta etc.), as fontes pelos assessores de comuni-
pelo poder diz respeito à reestruturação das cação (jornalistas, relações públicas, public-
subjetividades ou das identidades. As políti- itários etc.) e os leitores pelas instituições
cas discursivas dos jornais, das quais os man- às quais estão ligados de forma permanente
uais são produtos e instrumentos, parecem ou eventual (família, escola, partido, igreja
se integrar perfeitamente a esse escopo. A etc.). O movimento de diferentes agentes so-
padronização e a normatização dos proced- ciais muda as formas de interpelação e mod-
imentos estilísticos, linguísticos e editoriais ifica a composição dos espaços sociais de
estão voltadas para a produção de uma iden-
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acordo com aquilo que seus processos de in- públicos. Elas não só orientam o que pode
terpelação desencadearam. ser dito, o como pode ser dito e as circun-
O conhecimento e a identidade não são stâncias em que pode ser dito, mas deter-
entidades abstratas constituídas a priori ou minam, também, quem tem o direito ou a
independentes de relações objetivas. A so- autoridade de se pronunciar sobre determi-
ciedade, como define Marx (apud MEY, nado assunto. Elas representam alguns dos
2001, p. 20), longe de ser um grupo qual- recursos simbólicos de que os jornalistas po-
quer de indivíduos, é um conjunto de laços e dem lançar mão para efetuar a textualização
relações sociais por meio dos quais os indi- da realidade. Esses procedimentos são peri-
víduos estão ligados. A produção das notí- odicamente revistos para acompanhar as mu-
cias será sempre muito mais que a ação iso- danças da sociedade e do perfil do leitor. At-
lada do jornalista, ou resultado do automa- ualmente, todos os grandes jornais do eixo
tismo dos procedimentos editoriais. Ao se Rio-São Paulo fazem pesquisas para acom-
referir ao dialogismo na pesquisa científica, panhar as transformações sociais e a per-
Marília Amorim (2001, p. 16) faz uma con- cepção do leitor do produto jornal. A re-
statação que pode, sem maiores problemas, união dessas informações ajuda o gestor a re-
ser aplicada à reportagem e à redação das orientar a produção jornalística e os próprios
notícias. O trabalho de campo visa ao encon- manuais. Na linha de Verón (1985, p. 3),
tro com o outro, na busca de um interlocu- o sucesso de um suporte de imprensa escrita
tor, assim como é impossível existir escrita se mede por sua capacidade de propor um
de pesquisa sem que se considere o prob- contrato que se articule às expectativas, às
lema do lugar da palavra do outro no texto. motivações, aos interesses, aos conteúdos do
O outro, para Amorim, é o interlocutor do imaginário dos leitores, como também por
pesquisador (o leitor); aquele a quem ele se sua habilidade em modificar seus disposi-
dirige em situação de campo e de quem ele tivos de interação social, se assim a situ-
fala em seu texto (a fonte). Em acréscimo, ação concorrencial exigir. Esta questão vi-
Authier-Revuz (1998, p. 122) destaca que rou, desde os anos 80, prática sistemática nos
“nossas” palavras jamais são neutras ou in- principais jornais. Em 1984, a Folha lançou
tactas, mas “habitadas pela voz dos outros”, a primeira versão do manual. Em 1987, 1992
que falam, inevitavelmente, por nossas bo- e 2001, novas versões vieram a público. O
cas. O nosso interlocutor, uma vez estab- Estado e o Globo, respectivamente, editaram
elecida a relação de interlocução, é um co- duas versões, sendo a segunda apenas uma
enunciador incorporado à produção do enun- versão revista e ampliada da primeira. No
ciado. O jornalista, por exemplo, fala sem- essencial, permanece a mesma. Com mais
pre com um (a fonte) na intenção de outro rapidez, a mudança nos contratos aparece na
(o leitor). A notícia é, assim, produto dessas reforma das feições gráficas dos jornais.
relações. Pelo acompanhamento das transfor-
As convenções jornalísticas, fortemente mações do leitorado e das mudanças nos
representadas pelos manuais, ocupam, deste jornais e nos manuais, as instituições jor-
modo, posição-chave na compreensão da or- nalísticas procuram conferir materialidade
dem social e na configuração dos espaços à relação de confiança. A credibilidade
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é o capital simbólico que está em disputa A maioria das medidas tomadas em matéria
aí, já que só ele é capaz de sedimentar deontológica é motivada por razões estratég-
as relações estratégicas que dão forma ao icas, a fim de pôr termo à crise de confi-
campo. A credibilidade – peça fundamental ança entre as mídias e o público, sem, no en-
na constituição dos campos sociais, e, em tanto, responder concretamente ao que está
especial no do jornalismo – é continuamente em jogo nessas crises. A auto-regulação não
testada, por meio de pesquisas, junto aos regula nada quanto aos problemas estrutu-
leitores (BERGER, 1996, p. 190). Isto rais em matéria de exercício da profissão e
explica porque os manuais não se limitam da ética da informação, a exemplo da co-
mais apenas às questões estilísticas e porque decisão entre jornalistas e empresários. Se-
a questão ética e os procedimentos de apu- gundo, a auto-regulação, como equilíbrio en-
ração e edição ganharam espaço crescente tre liberdade e responsabilidade também não
nos manuais, mesmo que gerem dúvidas é suficiente de um ponto de vista teórico. Os
e questionamentos. Embora tais questões princípios da auto-regulamentação remetem
apareçam, hoje, no debate público, como a um modelo historicamente ultrapassado: o
forma de relacionamento com os clientes, e caráter arcaico da concepção da liberdade de
a ética e a responsabilidade social tenham imprensa herdada das Luzes para interpre-
virado estratégia de mercado, de agregação tar o estatuto atual das mídias e dos jornal-
de valor social e político ao produto, no caso istas. A atual organização das mídias e a sua
específico do jornalismo, elas envolvem o inserção social e econômica não encontram
direito à informação. Em relação a isso, paralelo nas condições históricas do Ilumin-
Eugênio Bucci (2000, p. 47) defende que o ismo, em que a condição do editor era insep-
direito de ser informado inclui os direitos de arável da condição do jornalista e o centro
saber como se é informado, de opinar sobre da luta deste residia no direito de publicar.
os métodos e de optar, com base nisso, entre Terceiro, o mercado é estruturalmente inca-
um veículo e outro. Exceção no meio dos paz de instituir e de manter por si próprio as
profissionais e dos gestores, ele reconhece condições da intersubjetividade que estão no
que o cidadão tem preparo suficiente para âmago da liberdade de comunicação. O mer-
tomar partido em relação a dilemas éticos e cado, à semelhança da modernidade, ainda
também técnicos do jornalismo. As regras segundo Libois, é construído na base de uma
que definem o jogo da notícia, sejam elas concepção negativa da liberdade individual,
de origem pública ou privada, precisam ser uma des-subjetivação das relações humanas.
objeto de discussão e avaliação públicas. Tudo se passa como se as informações e as
• opiniões circulassem estando sempre já con-
Os manuais constituem uma forma de stituídas e fechadas sobre si próprias, con-
auto-regulação. De modo geral, os em- vencidas a priori da sua infalibilidade e da
presários reagem contra qualquer outra sua completude.
forma de regulação. Contra esse monopólio, A auto-regulação caracteriza-se, portanto,
Boris Libois (1996) apresenta três argumen- por um único elemento decisivo. O exercí-
tos. Primeiro, a auto-regulação não é sufi- cio da regulação em matéria de informação é
ciente de um duplo ponto de vista empírico. deixado de maneira discricionária apenas aos
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_______. Razões práticas. Campinas: Pa- GARCIA, Luiz (Org.). Manual de redação e
pirus, 2001. estilo. 26. ed. São Paulo: Globo, 1999.
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