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Vecchiatti, Paulo Roberto Iotti

Manual da homoafetividade : da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais
homoafetivos / Paulo Roberto Iotti Vecchiatti. - 2. ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro : Forense ; São Paulo : MÉTODO, 2012.

ISBN 978-85-309-4549-7

1. Casamento entre homossexuais. 2. Companheiros homossexuais - Estatuto legal, leis, etc. 3. União estável. 4. Adoção
por homossexuais. I. Título.

CDU: 347.61/.64
08-3358.
Dedico este trabalho à minha mãe, exemplo de amor, carinho e
compreensão, ao meu pai, símbolo de luta e perseverança, às minhas
tias maternas, sempre tão carinhosas e presentes em minha vida, enfim,
a toda minha família, pelo amor que sempre me dedicou e sem o qual
minha vida seria muito mais difícil.
“Época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar um preconceito do
que um átomo.” – Albert Einstein1.

1 EINSTEIN apud ALMEIDA, Aline Mignon de. As uniões homoafetivas como forma de constituir família. In: VIEIRA, Tereza
Rodrigues (org.). Bioética e sexualidade. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2004, p. 71.
AGRADECIMENTOS

Todo trabalho é feito por meio da colaboração de várias pessoas, que contribuem direta e
indiretamente à sua conclusão. O autor tem a ideia central e a desenvolve, mas sempre conta com a ajuda
de outros, por mais que, às vezes, não o perceba.
Dessa forma, agradeço, primeiro, à minha querida prima, Karina Iotti Angi, que me incentivou a
prestar vestibular para Direito e me ajudou ao longo de todo o curso. Agradeço, também, à minha querida
mãe, Mariangela Iotti, por todo o apoio na elaboração do presente trabalho.
Agradeço, ademais, ao Professor Edvaldo Pereira Brito, meu primeiro orientador (pois este livro é
uma evolução de meu Trabalho de Graduação Interdisciplinar), o qual me indicou uma bibliografia
fundamental para que eu pudesse ter a exata compreensão do tema objeto deste trabalho nos dias atuais, e
pudesse formular as proposições aqui desenvolvidas. Fiquei extremamente lisonjeado e agradecido
quando, em meados de 2007, o Professor Edvaldo Brito, em seu discurso de paraninfo de duas das
turmas formandas do Mackenzie/SP, publicamente elogiou este trabalho ao dizer que ele poderia ter
evitado um voto equivocado de um Ministro do Supremo Tribunal Federal (referindo-se à manifestação
monocrática do Ministro Eros Roberto Grau, no julgamento do RE 407.837/SP). Lamento, apenas, que a
incompatibilidade de nossos horários tenha se tornado um óbice para que ele pudesse continuar a me
orientar.
Por outro lado, se lamento a perda de meu primeiro orientador, tal foi o que me possibilitou
trabalhar com o Professor Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme, ao qual agradeço por toda a
atenção que me concedeu, por horas em seu escritório, onde pudemos debater todos os temas abordados
no presente trabalho.
Dedico um agradecimento especial à Ilustre Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, Dra. Maria Berenice Dias, que foi pioneira na defesa dos direitos dos casais homossexuais,
sendo, inclusive, quem cunhou hoje o consagrado termo homoafetivo. Sua obra como um todo, citada por
diversas vezes neste trabalho, é uma verdadeira ode contra o preconceito, inclusive e especialmente
aquele que infelizmente existe no Poder Judiciário, o qual deveria ser imparcial e neutro na análise dos
litígios. Agradeço também à atenção e simpatia que ela sempre me concedeu, nas diversas ocasiões em
que nos encontramos.
Fico extremamente honrado com as afirmações da autora no sentido de que: (i) este trabalho é um
verdadeiro coroamento de toda uma trajetória de avanços e conquistas no tema dos direitos dos casais
homoafetivos; (ii) que até agora não havia nenhum trabalho que abordasse o tema com todos os seus
desdobramentos; (iii) que o diferencial desta obra encontra-se no enfoque constitucional na análise do
tema; e que (iv) a identificação das técnicas de colmatação de lacunas demonstra a desnecessidade de
alteração legislativa para se garantir os direitos dos casais homoafetivos. Essas colocações, vindas de
Maria Berenice Dias, que é a vanguardista e o maior nome a respeito do tema, premiam todo o esforço e
dedicação empreendidos na elaboração do presente trabalho.
Agradeço também à minha amiga Deborah Gaudêncio Figueiredo, cuja amizade é uma bênção que
foi e continua sendo muito importante em minha vida.
Agradeço igualmente ao amigo e ex-chefe, Adriano César da Silva Álvares, pessoa de notável
saber jurídico que, por diversas vezes, se dispôs a debater o tema objeto deste trabalho e me ajudou,
assim, a entender todas as nuances relativas ao presente tema. Aprecio, também, o auxílio de Adriana
Coutinho Pinto, que me auxiliou enviando notícias com decisões judiciais sempre que tinha acesso a
elas e, especialmente, debatendo comigo a questão da teoria da inexistência do ato jurídico, o que foi
fundamental à minha percepção da diferença entre inexistência jurídica de atos que existiram no mundo
fático e inexistência jurídica de atos que não existiram no mundo fático.
Agradeço, ainda, a Kelen Carla Bertol, jurista paranaense que gentilmente encaminhou-me sua
ótima monografia sobre adoção homoafetiva2, com quem tive contato no início de 2006 e que me fez ver
a importância de se relatar todo o histórico de perseguições a homossexuais para que as pessoas
percebam as barbaridades cometidas contra eles ao longo dos tempos, o que me possibilitou, ainda,
demonstrar: (i) que a homossexualidade é tão antiga quanto a humanidade; e (ii) a origem do preconceito
homofóbico.
Um agradecimento também ao Curso de Especialização em Direito Constitucional (Pós-Graduação
Lato Sensu) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), em especial aos Professores
Luiz Guilherme Arcaro Conti, Roberto B. Dias da Silva e Derly Barreto Silva Filho (que me
acompanharam ao longo de toda a Especialização), tendo em vista que este trabalho foi profundamente
incrementado com base em meus estudos de Direito Constitucional.
Por fim, agradeço a toda a minha família e amigos, sem os quais minha vida não teria o menor
sentido.

2 BERTOL, Kelen Carla. Adoção homoafetiva, 2005, monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau
de bacharel em Direito na Universidade do Vale do Itajaí no 2.º semestre daquele ano, na qual, depois de uma precisa
síntese histórica sobre a origem e a evolução da família, sobre o instituto da adoção e sobre a forma como a
homossexualidade foi tratada ao longo dos tempos, a autora conclui que os princípios constitucionais da igualdade, da não
discriminação por orientação sexual, da dignidade humana e da integral proteção do menor demandam pelo
reconhecimento da possibilidade jurídica da adoção por casais homoafetivos, ante a ausência de provas de que a criação
de um menor por um casal homoafetivo traga prejuízos a esta criança (donde inconstitucional o entendimento em sentido
contrário, ainda que se interprete a literalidade da legislação como proibitiva da adoção homoafetiva, como a autora parece
fazer – razão pela qual ela se utiliza dos citados princípios constitucionais para embasar sua conclusão).
NOTA DO AUTOR À 2.ª EDIÇÃO3

Poucos dias depois da publicação da 1ª edição deste livro, em 26 de agosto de 2008, surgiu um
prenúncio de que dias melhores estavam por vir para o que Maria Berenice Dias chama de Direito
Homoafetivo4: no dia 2 de setembro de 2008 foi proferido o voto-desempate do Recurso Especial
820.475/RJ para, por 3 x 2, termos a primeira decisão do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo a
possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por analogia.
Trata-se de decisão paradigmática, na medida em que foi o primeiro caso, no âmbito do Direito das
Famílias, que obteve uma decisão favorável do STJ acerca do tema – dois julgados anteriores citaram o
cabimento da analogia para tal fim, mas em julgamentos relativos a temas previdenciários (REsp
238.715/RS e REsp 395.904/RS). Nesse sentido, considerando que o STJ reformou decisão que impedia
o processamento da ação sob o fundamento de impossibilidade jurídica do pedido, tem-se que a
afirmação da possibilidade jurídica do pedido de reconhecimento e dissolução de união estável entre
duas pessoas do mesmo sexo implica a afirmação de que a união estável é um regime jurídico que abarca
as uniões homoafetivas. O STJ não disse que aquela união específica era estável porque o recurso se
voltava contra o indeferimento da petição inicial, no qual não havia ocorrido a dilação probatória apta a
comprovar que o casal atendia aos requisitos legais do art. 1.723 do CC/2002, a saber, publicidade,
continuidade e durabilidade da união aliada ao intuito de constituir família, mas isso não apaga o fato de
que o STJ afirmou, naquele julgado, que, provados esses requisitos legais, deve ser aplicado o regime
jurídico da união estável às uniões homoafetivas, por analogia.
Posteriormente, tivemos outros julgados paradigmáticos do STJ favoráveis ao tema:

(i) o REsp 1.026.981/RJ, também reconhecendo o status jurídico-familiar das uniões


homoafetivas para estender o benefício de previdência privada a um companheiro homoafetivo, em
julgado que marcou a mudança de opinião da Ministra Nancy Andrighi, a qual, em julgado anterior
(REsp 773.136/RJ), havia negado a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva por
considerar a união homoafetiva “dessemelhante” à união heteroafetiva, embora não tenha explicado
o motivo dessa suposta “dessemelhança”. Considero isso excelente, por se tratar de uma Ministra
que pauta suas decisões na principiologia constitucional, em especial no princípio da dignidade da
pessoa humana, contrariando a descabida posição de muitos ministros do STJ (criticada já na
primeira edição deste livro) que se negam a analisar dispositivos constitucionais na interpretação
das leis;
(ii) o REsp 889.852/RS, no qual o STJ confirmou decisão do TJ/RS que deferiu a adoção
conjunta por um casal homoafetivo, o que foi uma grande vitória por ser a primeira decisão do STJ
acerca da adoção homoparental – e por unanimidade.

Contudo, o que parecia apontar para a consolidação da união estável homoafetiva na jurisprudência
do STJ deparou-se com uma desagradável surpresa nos últimos dias de 2010 – no dia 26 de dezembro de
2010, sob a lavra do Desembargador convocado Vasco de La Giustina, deu-se provimento a dois
recursos especiais (REsp 633.713/RS e REsp 704.803/RS), nos quais se afirmou que a união
homoafetiva seria uma mera “sociedade de fato” e não uma família, contrariando as decisões mais
recentes do tribunal e pautando-se na simplória argumentação da literalidade normativa para negar o
regime jurídico da união estável para casais homoafetivos. Um flagrante retrocesso já naquele momento
histórico5. Um formalismo cego avalorativo perpetrado pelo relator, que não se ateve ao caráter
substantivo/teleológico das normas jurídicas para só reconhecer como juridicamente possível o que está
expressamente previsto na lei, contrariando a jurisprudência consolidada do STJ no sentido de que a
impossibilidade jurídica do pedido só existe quando há lei que expressamente proíba a situação ou que
limite a aplicação do regime jurídico em questão com palavras como “apenas”, “somente” e afins, o que
inexiste no presente caso. Uma decisão lamentável, ainda, por não ter citado os julgados supra-apontados
do próprio STJ, mas apenas os anteriores que negavam o direito à união estável homoafetiva (ao leitor
desavisado, parecia que o STJ jamais teria reconhecido dito direito, por analogia – se discordava de tais
precedentes, deveria tê-los citado e enfrentado seus fundamentos, ainda que sinteticamente; não parece
crível que referido julgador desconhecesse ditos julgados). Contudo, posteriormente, como demonstrado
no Capítulo 12, consolidou-se a jurisprudência do STJ pela possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva, por analogia.
Nesse sentido, enquanto se travava tal batalha na jurisprudência do STJ para ver qual posição
prevaleceria, o Supremo Tribunal Federal anunciou, no final de janeiro de 2011, que, em breve, julgaria
a ADPF 132 e a ADI 4.277, que requeriam a aplicação do regime jurídico da união estável a casais
homoafetivos, seja pela incidência direta dos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana,
da liberdade e da segurança jurídica, ou, alternativamente, por analogia. Tal anúncio, aliás, fez com que
fosse adiado o lançamento da segunda edição desta obra, que estava programado para ser feito nos dias
23 a 25 de março de 2011, quando da realização do I Congresso Nacional de Direito Homoafetivo, no
Rio de Janeiro, pois não faria sentido lançar a segunda edição antes (ao menos do início, caso houvesse
pedido de vistas) deste histórico julgamento cujo início era anunciado tido como iminente (adiamento
feito, inclusive, como forma de respeito ao leitor, para evitar que comprasse uma nova edição que teria
que ser em breve atualizada por conta do referido julgamento).
Pois bem: no julgamento do Supremo Tribunal Federal da ADPF 132 e da ADI 4.277, nos dias 4 e
5 de maio de 2011, nossa Suprema Corte reconheceu que a união homoafetiva é uma entidade familiar e,
portanto, merecedora de proteção do regime jurídico da união estável, na qual é reconhecida a
possibilidade jurídica da união estável homoafetiva (até porque as ações pediam a extensão do regime
jurídico da união estável às uniões homoafetivas que atendam os requisitos legais da publicidade,
continuidade, durabilidade e do intuito de constituir família). Com essa decisão, foi atribuída
interpretação, conforme a Constituição, ao art. 1.723 do CC/2002 “para dele excluir qualquer
significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo
sexo como entidade familiar, entendida como sinônimo perfeito de família. Reconhecimento que é de ser
feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”.6
Após essa paradigmática decisão do STF, não houve nenhum outro julgado, no STJ, que tenha negado
a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva – até porque a decisão do STF teve efeito
vinculante e eficácia erga omnes, ou seja, é de obediência obrigatória em todo o território nacional.
Pelo contrário, tivemos ainda um fantástico avanço: o reconhecimento da licitude do casamento civil
homoafetivo, no julgamento do REsp 1.183.348/RS, realizado nos dias 20 e 25 de outubro de 2011,
mediante o reconhecimento de que os dispositivos legais que regulamentam o casamento civil “não
vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo”, bem como que “não há como enxergar
vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da
igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre
planejamento familiar”. Utilizando a mesma lógica por ele empregada no julgamento do REsp
820.475/RJ, relativo à união estável homoafetiva, o relator, Ministro Luís Felipe Salomão, afirmou que o
legislador poderia, se quisesse, ter utilizado expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre
pessoas do mesmo sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal, o que não ocorreu. “Por
consequência, o mesmo raciocínio utilizado, tanto pelo STJ quanto pelo STF, para conceder aos pares
homoafetivos os direitos decorrentes da união estável, deve ser utilizado para lhes franquear a via do
casamento civil, mesmo porque é a própria Constituição Federal que determina a facilitação da
conversão da união estável em casamento”, concluiu o relator.7
Somente essas decisões do STJ e do STF já justificariam uma nova edição, mas há outras questões.
Primeiramente, a publicação de outros trabalhos defendendo a possibilidade jurídica do casamento civil
homoafetivo, algo que, em 2008, só existia em dois livros – neste e em um de autoria de Jorge Luiz
Ribeiro de Medeiros,8 livro de excelente qualidade, publicado apenas um mês antes do presente Manual
da Homoafetividade.
Infelizmente, a quantidade de livros defendendo a possibilidade jurídica do casamento civil
homoafetivo ainda é baixa. Aliás, algo extremamente paradoxal é o reconhecimento da união estável
homoafetiva e não do casamento civil homoafetivo, na medida em que a tese jurídica para ambos é
rigorosamente a mesma: reconhecendo-se a união homoafetiva como família conjugal, aplica-se a
interpretação extensiva ou a analogia para aplicar o regime jurídico da união estável à união
homoafetiva, mas não fazê-lo relativamente ao regime jurídico do casamento civil para reconhecer o
casamento civil homoafetivo é uma postura contraditória. Com efeito, tanto a união estável quanto o
casamento civil são regimes jurídicos voltados a proteger a família, e as redações dos dispositivos
respectivos são rigorosamente análogas – ambas citam a expressão “o homem e a mulher” sem
conjunções restritivas à heteroafetividade ou proibitivas da homoafetividade para tais regimes jurídicos.
Não há nenhum requisito imanente ao casamento civil que inexiste na união estável fora da excepcional
hipótese do art. 1.723, § 1.º, do CC/2002.9 Em razão disso, esta edição traz críticas a decisões do TJ/RS
que negaram o direito ao casamento civil homoafetivo mesmo anotando que reconhecem a união estável
homoafetiva.10
Quase todos os capítulos deste livro tiveram acréscimos substanciais, sendo que esta obra analisa
todas as decisões que reconheceram o direito ao casamento civil homoafetivo que este autor teve ciência
no Capítulo 6, o que se fez para mostrar a riqueza e variedade de argumentos aptos a reconhecer a
colmatar a lacuna normativa respectiva para garantir dito direito aos casais homoafetivos que o desejam.
Nos Capítulos 1 e 6 foi incluída a célebre História da Sexualidade, de Michel Foucault, em seus
três volumes. A obra de Foucault trouxe maiores detalhes à explicação da sexualidade no Mundo Antigo,
enriquecendo a compreensão do tema, embora sem alterar as conclusões constantes da 1ª edição
(Capítulo 1), bem como trouxe importantes considerações sobre a evolução histórica da compreensão
sobre o casamento (Capítulo 6).
No Capítulo 2, há maiores desenvolvimentos sobre os conceitos de orientação sexual e identidade de
gênero, assim como uma conceituação de gênero, fruto de reflexões desenvolvidas em minha dissertação
de mestrado em Direito Constitucional perante a Instituição Toledo de Ensino/Bauru.11 Desenvolvi,
ainda, o argumento em defesa dos termos homoafetividade/heteroafetividade, cunhado por Maria
Berenice Dias, que têm sido criticados pelo que considero um senso comum acrítico sobre a origem e o
fundamento de tais palavras.
Os Capítulos 3 e 4 tiveram acréscimos doutrinários e jurisprudenciais (STF, ADPF 132 e ADI
4.277).
O Capítulo 5 foi alvo de inclusões no tema do afeto como o principal (embora não o único) elemento
formador da família contemporânea, mediante a citação do entendimento de artigos jurídicos voltados ao
tema – tanto doutrinárias quanto jurisprudenciais (STF, ADPF 132 e ADI 4.277).
O Capítulo 6 teve o acréscimo de entendimentos de outros autores, citados nesta nota, sobre a
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo, assim como a inclusão de um tópico inicial que
traz as lições de Foucault sobre as razões que fizeram com que o casamento alcançasse o status de união
mais vangloriada nas sociedades ocidentais – o que permitiu algumas conclusões de minha parte sobre
possíveis motivos do heterossexismo social em termos de uniões conjugais.
O Capítulo 7, atinente à união estável, recebeu aportes relativos à decisão do STF na ADPF 132 e na
ADI 4.277, além de informações sobre a ADPF 178 (convertida na ADIn 4.277), ao amicus curiae e à
menção à sustentação oral que realizei no referido julgamento. A explicação dos votos dos ministros
neste paradigmático julgamento foi feita no Capítulo 11.
O Capítulo 8 recebeu aportes doutrinários consideráveis, inclusive com a demonstração da analogia
entre a situação da oposição ao casamento civil homoafetivo, hoje relativamente à antiga proibição ao
casamento inter-racial no passado (citando a decisão da Suprema Corte dos EUA no famoso caso Loving
vs. Virginia, que declarou a inconstitucionalidade da proibição do casamento inter-racial e demonstrando
como a sua ratio decidiendi é aplicável para reconhecer, também, o direito ao casamento civil
homoafetivo), bem como acréscimos do julgamento do STF da ADPF 132 e da ADI 4.277.
O Capítulo 9, sobre a interpretação conforme a Constituição, recebeu substanciais acréscimos,
pois foi esta a técnica utilizada pelo STF para julgar procedentes a ADPF 132 e a ADI 4.277, aplicando
interpretação conforme ao art. 1.723 do CC/2002 “para dele excluir qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar, entendida como sinônimo perfeito de família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as
mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”,12 oportunidade na qual
defendi o cabimento e a correção do uso dessa técnica decisória (ou, no mínimo, da técnica de
declaração de nulidade sem redução de texto) para o reconhecimento da união estável homoafetiva.
O Capítulo 10 recebeu alguns acréscimos com base na decisão do STF na ADPF 132 e na ADI
4.277.
O Capítulo 11, que traz minhas refutações às argumentações doutrinário-jurisprudenciais contrárias
ao casamento civil, à união estável e à adoção conjunta por casais homoafetivos, terá nesta segunda
edição apenas o que nos demais capítulos se refere à síntese conclusiva, sendo que o conteúdo na íntegra
será disponibilizado na internet no seguinte link: http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-
da-homoafetividade-segunda-edicao-capitulos-online/. Isso se fez necessário porque este capítulo já
sofreu acréscimos substanciais de mais de aproximadamente cem páginas, donde, para evitar o
encarecimento do livro por conta disso, optamos por sua disponibilização na internet.
O Capítulo 12 traz o desempate do julgamento do REsp 820.475/RJ em prol da união estável
homoafetiva (que estava empatado, em 2 x 2, quando da publicação da primeira edição), e dos demais
julgados supraexplicitados do STJ sobre o tema, bem como explica os argumentos que apresentei na
sustentação oral que realizei perante o STJ no julgamento do REsp n.º 1.183.378/RS, que reconheceu o
direito ao casamento civil homoafetivo direto, sem necessidade de prévia união estável13. Contudo, pela
mesma razão informada no parágrafo anterior relativamente ao Capítulo 11, considerando que este
capítulo teve um acréscimo substancial de páginas, sua íntegra será disponibilizada na internet no
seguinte link: http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-da-homoafetividade-segunda-edicao-
capitulos-online/.
O Capítulo 13 traz menção à manifestação de amicus curiae e à sustentação oral que apresentei no
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, além de explicação detalhada dos argumentos invocados pelos
ministros neste histórico julgamento, bem como a explicação de julgados posteriores, como aquele da
lavra do Ministro Celso de Mello (o qual me honrou com a citação deste livro em seu voto), que bem
sintetiza a postura de nossa Suprema Corte acerca do tema (RE 477.554/MG AgR).
Os Capítulos 14 e 15 tiveram os títulos e conteúdos adaptados à decisão do STF na ADPF 132 e na
ADI 4.277. Referidos capítulos foram nominados, na primeira edição, como “Solução Paliativa I:
Contratos de União Estável” e “Solução Paliativa II: Teoria das Sociedades de Fato”, respectivamente,
nos quais afirmamos que, enquanto não prevalecesse na jurisprudência a possibilidade jurídica da união
estável homoafetiva, então casais homoafetivos deveriam firmar contratos de união estável para ter algum
resguardo patrimonial, oriundo do Direito das Obrigações, ou, caso não o fizessem, invocassem a teoria
das sociedades de fato (criada para situações de concubinato), também para terem alguma proteção
jurídica. Contudo, com a citada decisão do STF, a união homoafetiva foi reconhecida como união estável,
em que os contratos de união estável por ela firmados não configuram mais “solução paliativa” de
Direito das Obrigações, mas contrato típico de Direito das Famílias. Nesse sentido, descabida a
invocação da “teoria das sociedades de fato”, pois, após a decisão do STF, é obrigatório reconhecer à
sociedade de afeto oriunda da família conjugal homoafetiva a proteção do Direito das Famílias. Logo, os
capítulos foram renomeados, respectivamente, para “Contratos de União Estável (Homoafetiva ou
Heteroafetiva)” e “O Concubinato e a Teoria das Sociedades de Fato. Histórico. Inadequação à Hipótese
de União Estável Homoafetiva. O Concubinato Homoafetivo”.
O Capítulo 16 traz alguns desenvolvimentos das teses nele já existentes, em especial sobre o
“argumento” que me foi apresentado algumas vezes por pessoas com quem debati informalmente, no
sentido de que deveria haver o consentimento de um adolescente (maior de 12 anos) para que fosse
deferida sua adoção a um casal homoafetivo, diante do preconceito que este poderia sofrer. Na verdade,
este “argumento” já foi enfrentado no item 3.3.1 do referido capítulo, quando apontei a
inconstitucionalidade de utilização do preconceito alheio como “justificativa” para se negar a adoção a
um casal homoafetivo. De qualquer forma, o tema foi tratado para se demonstrar a profunda
arbitrariedade desse “argumento”. Explicou-se aqui a paradigmática decisão da Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso Atalla y niñas vs. Chile, no qual a Corte reconheceu que o Estado não pode
tirar a guarda ou custódia de crianças e adolescentes de homossexuais por conta unicamente da
orientação sexual destes ou de presunções estereotipadas sobre a homossexualidade. É uma decisão
histórica no âmbito interamericano que reafirma a proibição da discriminação por orientação sexual
decorrente da correta interpretação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
O Capítulo 17 sofreu pequenos acréscimos bibliográficos.
Por fim, transcrevi e/ou citei trechos da decisão do STF ao longo dos capítulos desta obra e
mencionei, no índice, os tópicos nos quais a decisão foi citada ou mencionada.
Anote-se, ainda, que nesta obra não trabalho o tema da transexualidade por entender que ele merece
uma obra específica para tanto. De qualquer forma, considerando ser comum em obras que falam da
união homoafetiva trabalhar o tema, cabe mencionar brevemente que entendo cabível o direito à mudança
de prenome e sexo jurídico das pessoas travestis e transexuais – mudança de prenome pelo apelido
público notório (que nada mais é do que o nome social que referidas pessoas usam), consoante
autorizado pelo art. 58 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) e mudança de sexo jurídico pela
prevalência do sexo psicológico sobre o sexo biológico e a inexistência de prejuízos à sociedade nessas
adequações que pudessem “justificar” uma negativa insensível à adequação de seus documentos à sua
realidade psicológica e social (até porque nome e sexo devem representar a realidade social da pessoa,
não uma situação que não condiz com a vivência da mesma). Sobre o tema, remeto o leitor à
paradigmática decisão do TJRS na Apelação Cível 7003050407014, que bem explica o direito à mudança
de prenome e sexo independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização15: que justifico
aqui pelo fato de que o direito ao nome e à identidade pessoal e social (que inclui o sexo jurídico da
pessoa, entendido como aquele que consta de seus documentos) não pode ser vinculado a um invasivo
procedimento cirúrgico quando isso não for possível à pessoa transexual (por questões financeiras ou de
saúde, por exemplo) ou quando essa simplesmente não for a sua vontade (a despeito de algum conceito
médico estanque e insensível à realidade, transexual é quem se identifica com o sexo oposto,
independentemente de querer realizar ou não a cirurgia de transgenitalização – e não apenas quem deseja
realizar referida cirurgia, donde o direito à mudança de sexo jurídico não pode depender da realização
da referida cirurgia – desenvolvo o conceito de transexualidade e travestilidade no Capítulo 2 desta
segunda edição)16.
Estamos vivendo um momento histórico – o momento do gradativo reconhecimento da plena
cidadania dos casais homoafetivos pela jurisprudência brasileira – do qual tenho a maravilhosa
oportunidade de participar, em especial pelo amicus curiae e pela sustentação oral que apresentei no
julgamento do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277 (união estável homoafetiva), a sustentação oral que
proferi perante o STJ no histórico julgamento do REsp 1.183.348/RS, primeiro a reconhecer o direito ao
casamento civil homoafetivo no âmbito do STJ, bem como aquela que proferi perante o Conselho
Superior da Magistratura do TJSP no julgamento de 31 de maio de 2012, que reconheceu o direito de
casais homoafetivos converterem suas uniões estáveis homoafetivas em casamento civil, bem como ao
casamento civil homoafetivo direto, sem prévia união estável (TJSP, Apelação Cível 0034412-
55.2011.8.26.0071).
Claro, a luta judicial das minorias sexuais pela cidadania material ainda não se findou: a
jurisprudência precisa se consolidar acerca da possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo e
da adoção conjunta por casais homoafetivos, para ficar apenas nestes dois temas de Direito das Famílias.
Sem falar no fato de que o reconhecimento de direitos não apaga ainda o fato de que o Brasil precisa
combater de maneira eficiente a homofobia, criminalizando-a em igualdade de condições com a
criminalização do racismo17 (até porque a homofobia é espécie do gênero racismo, uma vez que racismo
é toda ideologia que prega a superioridade/inferioridade de um grupo relativamente a outro, consoante
reconhecido por Guilherme de Souza Nucci18 com base na decisão do STF no HC 82.424/RS – e o
heterossexismo social e a homofobia pregam a superioridade de heterossexuais sobre a população LGBT,
logo, são ideologias inerentemente racistas), e adotar políticas públicas eficientes de conscientização e
sensibilização da sociedade em geral (bem como capacitar servidores públicos em sentido amplo e do
comércio em geral) para bem atender a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais – bem como de intersexuais) – algo dificultado sobremaneira pelo recrudescimento do
fundamentalismo religioso que assola nosso Congresso Nacional em sua postura totalitária de negar
direitos à população LGBT por conta de seus arbitrários dogmas religiosos (ignorando que liberdade
religiosa significa, também, o direito de não ser discriminado pela religião alheia19). Logo, a despeito de
todos os avanços supranarrados em termos jurisprudenciais, percebe-se que ainda falta muito para o
Brasil ser um país que aceite de forma verdadeira e genuína o respeito à diversidade sexual, em toda a
sua rica pluralidade.

3 A presente nota tem a intenção de analisar a evolução da jurisprudência do STJ e do STF acerca do tema da união
homoafetiva, para, posteriormente, explicar as alterações sofridas por cada um dos capítulos desta obra.
4 Entender o Direito Homoafetivo como um novo ramo ou sub-ramo do Direito supõe apontar princípios específicos que o
justifiquem. A meu ver, pode-se falar no princípio da não discriminação por orientação sexual e identidade de gênero no
Direito das Famílias, ao passo que o Direito da Diversidade Sexual seria pautado pelo princípio da não discriminação por
orientação sexual e identidade de gênero no Direito como um todo, não apenas no Direito das Famílias. Em ambos os
casos, aplicando-se também o direito ao igual respeito e consideração relativamente àqueles dispensados às pessoas
heterossexuais cisgêneras (que se identificam com o gênero socialmente atribuído a seu sexo biológico). Contudo, não
cabem aqui maiores desenvolvimentos acerca do tema.
5 Destacando tal retrocesso, vide DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva não é apenas dividir economias. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2010-dez-24/stj-retrocede-considerar-uniao-homoafetiva-sociedade-fato> (matéria de 24.12.10;
último acesso: 26 dez. 2011).
6 Cf. voto do relator, Ministro Ayres Britto, p. 32 do acórdão.
7 Para notícia que sintetiza os argumentos do paradigmático voto do relator, vide
<http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=103594>. Notícia de 20 out. 2011; último
acesso em: 26 dez. 2011.
8 MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. A Constitucionalidade do Casamento Homossexual. São Paulo: LTr, 2008 – fruto da
dissertação de mestrado de seu autor.
9 Que reconhece a existência de união estável quando, apesar do casamento de uma ou de ambas as partes, estiver (em)
ela(s) separada(s) de fato de seu(s) cônjuge(s). Com a separação de fato, é reconhecida a união estável, a despeito da
ausência de divórcio. É a única hipótese da legislação que permite a existência de união estável não passível de conversão
em casamento civil – o que perdurará enquanto não houver o divórcio do(a) companheiro(a) em questão de seu cônjuge.
10 Tais críticas foram objeto de artigo de minha autoria: A Família Juridicamente Protegida, a Lei Maria da Penha e a Proteção
Constitucional da Família Homoafetiva – Equívocos dos Julgamentos do TJRS que Negaram o Direito ao Casamento Civil
Homoafetivo. Revista Brasileira do Direito das Famílias e Sucessões, ano XII, n.º 16, jun.-jul. 2010, pp. 93-117.
11 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. A Luta Judicial das Minorias Sexuais pela Cidadania Material. Dissertação de Mestrado,
apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito (Área de Concentração: Sistema Constitucional de
Garantia de Direitos), do Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino, para a obtenção do título de Mestre em
Direito, sob orientação da Profª. Eliana Franco Neme. Banca realizada no dia 04.12.2010. Aprovação com nota máxima.
12 Cf. voto do relator, Ministro Ayres Britto, p. 32 do acórdão.
13 Elaborei um relato explicando minha trajetória neste processo em http://pauloriv71.wordpress.com/2011/11/07/o-stj-e-o-
casamento-civil-homoafetivo-relato-n-%C2%BA-2/ – o relato do advogado que elaborou a ação e cuidou de quase todo o
processo (fiz apenas a sustentação oral perante o STJ) encontra-se em http://pauloriv71.wordpress.com/2011/11/07/o-stj-e-
o-casamento-civil-homoafetivo-relato-n-%C2%BA-1/ [para a íntegra de minha sustentação oral perante o Conselho Superior
da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento de 31.05.2012 (Recurso 0034412-55.2011.8.26.0071),
que reconheceu o direito de conversão de união estável homoafetiva em casamento civil e mesmo do casamento civil
direto, que é praticamente a mesma que fiz perante o STJ, vide http://pauloriv71.wordpress.com/2012/06/01/sustentacao-
oral-no-tjsp-em-prol-da-conversao-de-uniao-estavel-homoafetiva-em-casamento-civil/ (último acesso a tais links em
02.10.12)].
14 Disponível no site www.direitohomoafetivo.com.br, que traz diversas outras decisões sobre o tema.
15 Vide, ainda, VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O direito do transexual com filhos à cirurgia de transgenitalização. In: DIAS,
Maria Berenice (org.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: RT, 2011, pp. 445-460.
16 Paradigmática decisão do STJ desenvolve amplamente os fundamentos do direito à mudança de prenome e sexo jurídico
de transexuais, a saber: REsp 1.008.398/SP (decisão disponível no site do STJ – www.stj.jus.br – que versa sobre caso de
pessoa transexual que realizou cirurgia de transgenitalização, mas cujos fundamentos entendo se aplicarem perfeitamente
ao caso de pessoa transexual que não realizou a cirurgia (e, também, a travestis)). Com efeito, vejamos uma singela frase
de referida decisão: “Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira
identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto” –
como se vê, tal se aplica também a casos de transexuais que não realizaram a cirurgia de transgenitalização e, portanto,
também a travestis. Outra decisão do STJ que autorizou mudança de prenome e sexo jurídico de pessoa transexual
operada é a do REsp 737.993/RJ.
17 Sobre o tema, este autor elaborou o Mandado de Injunção 4.733 em nome da ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, distribuído em maio/2012 perante o Supremo Tribunal Federal e no qual se
requereu o reconhecimento do dever constitucional do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia e a transfobia.
Disponibilizei um artigo que resume as teses da referida ação, justifica seu cabimento e disponibiliza a íntegra de sua
petição inicial em http://pauloriv71.wordpress.com/2012/06/26/mandado-de-injuncao-e-criminalizacao-de-condutas-o-mi-n-
o-4733/ (último acesso em 2 out. 2012).
18 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5. ed. São Paulo: RT, 2010, pp. 300-306,
para quem: “Racismo: é o pensamento voltado à existência de divisão dentre seres humanos, constituindo alguns seres
superiores, por qualquer pretensa virtude ou qualidade, aleatoriamente eleita, a outros, cultivando-se um objetivo
segregacionista, apartando-se a sociedade em camadas e estratos, merecedores de vivência distinta. Racista pode ser
tanto o sujeito integrante da maioria de determinado grupo contra qualquer indivíduo componente da minoria componente
dessa comunidade, como o integrante da minoria, quando se defronta com alguém considerado da maioria. Se o racismo,
como acabamos de expor, é, basicamente, uma mentalidade segregacionista, ele é capaz de percorrer todos os lados dos
agrupamentos humanos”.
19 Nesse sentido: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição Portuguesa Anotada. 1. ed. brasileira, 4.
ed. portuguesa, 2007, São Paulo: RT e Coimbra: Coimbra Editora, p. 609. v. I. Segundo os autores: “(...) A liberdade de
religião é a liberdade de adoptar ou não uma religião, de escolher uma determinada religião, de fazer proselitismo num
sentido ou noutro, de não ser prejudicado por qualquer posição ou atitude religiosa ou antirreligiosa” (grifo nosso).
PREFÁCIO

Maria Berenice Dias


Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Vice-Presidente do IBDFAM – Instituto de Brasileiro de
Direito de Família.
<www.mariaberenice.com.br>

O só compulsar este trabalho duas coisas me agradam de imediato.


As suas primeiras palavras: manual e afetividade.
Nem sei se o termo manual está usado em sua acepção técnica.
Se é que tem ela outro significado além do tomar às mãos, manusear, portar sempre consigo.
Ao menos, há que significar que foi feito de forma artesanal, com as mãos.
E, como sempre digo, tudo o que é feito de forma manual tem muito de quem faz.
Com o feito vai o afeto do fazer.
Também a palavra homoafetividade tem um significado muito especial.
Ao cunhar este neologismo – e isso nos idos de 2000 –, busquei escancarar uma realidade que o
preconceito sempre encobriu. As uniões entre pessoas, independente de sua identidade sexual, é uma
união de afetos e como tal precisam ser identificadas.
À época surpreendeu-me a absoluta ausência não só de trabalhos, estudos, artigos tratando das
relações homossexuais no âmbito jurídico.
Talvez o mais chocante foi constatar que a omissão gerava um efeito perverso: a absoluta
invisibilidade a que eram condenados os vínculos afetivos, cujo único diferencial era o fato de serem
constituídos por pessoas de igual sexo.
Não há maior afronta do que o não ver, pois leva a negar a existência do que existe.
Ao deparar-me com as nefastas consequências desta postura omissiva, não medi esforços para
reverter tão triste realidade.
É por isso que vejo o presente Manual da Homoafetividade: Da possibilidade jurídica do
casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos como um verdadeiro
coroamento de toda uma trajetória de avanços e conquistas.
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, este jovem advogado que, desde a graduação no Mackenzie/SP, vem
se debruçando sobre este tema (agora na qualidade de Especialista em Direito Constitucional pela
PUC/SP), brinda a comunidade jurídica com este minucioso e atento trabalho. Sob a orientação inicial de
ninguém menos do que Edvaldo Pereira Brito, só podia produzir uma obra de tamanha envergadura.
O preconceito contra os homossexuais é histórico e não se pode dizer que é tão antigo como o
homem, porque durante milênios a homossexualidade – esta sim, é que sempre existiu – não era alvo de
discriminação.
Foi a religião que, ao consagrar o casamento como um sacramento com fins procriativos, excluiu as
uniões inférteis.Os homossexuais tornaram-se alvo de repúdio por suas uniões deixarem transparecer o
prazer sexual que os une.O comprometimento mútuo desnuda a afetividade como razão mesma de seus
relacionamentos. Talvez sejam estas constatações que atrapalhem tanto. Claro que se defrontar com esta
realidade só pode gerar reações de quem valoriza a virilidade como a maior qualidade masculina e
relega a mulher à condição inferior, impondo-lhe absoluta subserviência e submissão.
Mas as lutas emancipatórias, o florescer dos direitos humanos e a laicização do estado estão
forjando a construção de uma nova sociedade.
É preciso resgatar os estragos que acabaram jogando para fora do âmbito da tutela jurídica
significativa parcela da população. Cidadãos como outros quaisquer, que pagam impostos e muito
contribuem para o desenvolvimento social, não mais podem ser marginalizados por lhes ser imputado o
pecado de deixarem transparecer que amam quem os atrai.
De há muito o mundo civilizado já acordou, transformando em realidade o que proclama todas as
revoluções: o direito à liberdade e à igualdade.
No Brasil, ainda não faz uma década que a homossexualidade vem despertando a atenção e,
certamente, não há debate que gere discussões mais acaloradas no mundo acadêmico. Proliferam
trabalhos de conclusão sobre esta temática. Livros, ensaios, artigos surgem a cada dia. Virou tema de
novela e entretém reiterados debates na mídia. Parece que há pressa em corrigir uma grande injustiça.
Apesar do número de publicações que vem surgindo, até agora não havia nenhum trabalho que
abordasse o tema com todos os seus desdobramentos, de modo a evidenciar o surgimento de um novo
ramo do direito: Direito homoafetivo.
Nesta tão bem elaborada e minuciosa obra, Paulo Roberto Iotti Vecchiatti traça um amplo panorama
sob os mais diversos aspectos.
Não se limita a fazer um passeio histórico a evidenciar a difícil trajetória de quem não copia o
modelo do igual.
Entra nos meandros da medicina e da psicologia para evidenciar que nada há de patológico ou
doentio em direcionar afeto a pessoa do mesmo ou do diverso sexo.
Mostra com subsídios científicos como a convivência de crianças em lares formados por pessoas de
igual identidade sexual em nada compromete seu desenvolvimento e sua perfeita inserção social.
A análise do tema sob o âmbito constitucional marca o diferencial desta obra. O estudo dos
princípios fundamentais e a perfeita identificação dos meios de colmatar as lacunas deixadas pelo
legislador dão um norte seguro a evidenciar que sequer são necessárias mudanças legais para inserir as
uniões homoafetivas no âmbito de proteção do direito das famílias e direito sucessório.
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti vai além.
Acompanhar a forma de como o tema vem sendo enfrentado pelos tribunais em muito ilustra a
trajetória que já vem sendo trilhada, deixando entrever que a Justiça anda a passos largos.
Manusear este belo trabalho não permite chegar-se a nenhuma outra saída que não seja a da
responsabilidade.
Responsabilidade de encarar a realidade como ela é.
Responsabilidade de fazer Justiça e não punir alguém pelo só fato de reivindicar, como todos os
demais, o direito de ser feliz.
PREFÁCIO

Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme


Advogado, Mestre pela PUC-SP. Professor de Graduação e
Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e da Escola Paulista de Magistratura
(EPM).

O presente trabalho é fruto do esforço do jovem autor, Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, meu amigo, ex-
aluno e ex-orientando na graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
atualmente Especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP, o qual jamais se abalou por qualquer
obstáculo que tenha sido necessário superar para a boa elaboração da presente tese, dedicando-se
sempre ao aprimoramento desta.
Neste manual, torna-se clara a atual tendência da jurisprudência que progride no caminho de
modificação da legislação vigente, baseando-se no princípio da dignidade que decorre dos seres
humanos, sendo que sua exclusão jurídica é inconstitucional.
O tema aqui tratado é polêmico e provoca os leitores à reflexão sobre o que vale mais, o respeito à
isonomia, pilar do estado democrático de direito, ou os velhos preconceitos arraigados em nossa
sociedade.
Por se tratar de um tema novo e que ainda sofre muito preconceito, o presente trabalho mostra-se
pioneiro e de suma importância para o direito, uma vez que comprova indubitavelmente a existência de
bases jurídicas para o reconhecimento das relações homoafetivas pelo Estado, que possui a obrigação de
regulá-las, visto que assumiu para si o encargo jurisdicional.
Acompanhar a carreira e sonhos deste jovem, desde os bancos acadêmicos, tem sido para mim
motivo de muita satisfação.


São Paulo (SP), 10 de junho de 2008.
APRESENTAÇÃO

Neste livro visa-se demonstrar que o atual ordenamento jurídico brasileiro, em sua interpretação
sistemática (como deve ser feita qualquer interpretação do Direito), exige o reconhecimento da
possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. Em
outras palavras, tem-se o intuito de fornecer bases técnico-jurídicas para que o Judiciário possa
reconhecer o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas, que merecem o mesmo tratamento jurídico
conferido às uniões heteroafetivas, o que só pode ser alcançado atualmente pelo reconhecimento de seu
direito ao casamento civil, à união estável e à adoção conjunta, únicos regimes jurídicos disponíveis no
ordenamento para tanto.
Este trabalho foi escrito de forma eminentemente positivista (mediante aplicação dos textos
normativos vigentes em nosso país), o que ocorreu por ter ouvido, no passado, uma crítica aos trabalhos
envolvendo a homoafetividade, no sentido de que seriam eles baseados em valores abstratos de justiça
sem, contudo, apresentarem uma fundamentação puramente jurídica que justificasse a igualdade de
tratamento. Pois bem, foi isso que pretendi apresentar: uma solução puramente jurídica ao tema, o que
não me impediu de realizar a análise multidisciplinar absolutamente necessária para a sua correta
compreensão.
Os focos centrais foram os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, direitos
humanos fundamentais expressamente previstos na Constituição Federal e que se trata de normas
constitucionais de eficácia plena (art. 5.º, inc. I, da CF/1988). Isso porque o princípio da isonomia
determina que uma diferenciação somente será juridicamente válida se for baseada em uma
fundamentação lógico​-racional que a justifique quando levado em conta o critério diferenciador erigido,
o que inexiste na concessão de menos direitos às uniões homoafetivas em relação àqueles conferidos às
uniões heteroafetivas. Por outro lado, o princípio da dignidade da pessoa humana estabelece que todos os
seres humanos são merecedores da mesma dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas, só
sendo admitida a relativização da dignidade de uns em relação a outros por meio do aspecto material da
isonomia, ou seja, da existência de fundamentação lógico-racional para tanto.
O leitor notará que, em muitas oportunidades, foi feita uma abordagem em forma de “contestação”,
no sentido de que foram colacionados entendimentos doutrinários e jurisprudenciais contrários à tese
aqui defendida para contrapor seus argumentos e, assim, demonstrar seu descabimento. Deve ficar claro
que em nenhum momento se teve a intenção de desrespeitar aqueles cujos posicionamentos foram
contestados: tanto que sempre se utilizou o termo preconceito em sua definição técnica, por diversas
vezes citado na obra, a saber: juízo de valor dezarrazoado, irracional, no sentido de que o entendimento
contestado não atende ao critério material da isonomia, que exige fundamentações lógico-racionais para
que uma discriminação seja juridicamente válida. Assim, espero que os autores e julgadores cujos
entendimentos foram contestados nesta obra aceitem minhas palavras como críticas construtivas e que se
manifestem sobre ditas colocações, para que seja realizado um debate sobre este tema, tão atual no
ordenamento jurídico nacional e internacional.
Nesse sentido, deve-se ressaltar que esta obra é uma tentativa de diálogo com a doutrina e a
jurisprudência, para que o tema das uniões homoafetivas seja enfrentado da maneira como deve, ou seja,
sob o enfoque da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Minha maior crítica a muitos opositores da
possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos é o fato
de não justificarem a discriminação por eles defendida perante a isonomia e a dignidade humana,
apegando-se apenas à questão da letra fria da lei (argumento superável pela interpretação extensiva ou
analogia, caso existente na situação não citada pela norma o mesmo valor protegido por esta), muito
embora sejam eles, por defenderem uma diferenciação jurídica, aqueles com o ônus de justificação da
pertinência lógico-racional desta, por força do aspecto material da isonomia. Espero que, com o
histórico julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277 pelo STF, que reconheceu a possibilidade jurídica da
união estável homoafetiva com igualdade de direitos relativamente à união estável heteroafetiva, quem
eventualmente se oponha à tese se digne a enfrentar os argumentos apresentados, sem se limitar ao
simplório argumento acerca da literalidade do art. 226, § 3.º, da CF/1988, pois, como bem declarado
pelo Ministro Gilmar Mendes naquele julgamento, o fato de a Constituição proteger a união estável entre
o homem e a mulher não significa negativa de proteção à união civil ou estável entre pessoas do mesmo
sexo. Logo, é preciso uma análise teleológica, e não meramente literal, acerca do tema.
Ademais, o leitor notará que foram colacionadas algumas decisões do Direito Comparado que se
manifestaram pela inconstitucionalidade da proibição ao casamento civil homoafetivo. Destaque-se que o
fato de pertencerem a países cujo sistema jurídico é o do common law (diferente, portanto, do nosso civil
law) é irrelevante para o tema aqui discutido, tendo em vista que ditas decisões se pautaram pelos
princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, presentes em nosso ordenamento jurídico-
constitucional e que constituem o fundamento central desta obra, razão pela qual as peculiaridades
daquele sistema jurídico não tiveram nenhuma relevância para o caso aqui debatido, donde ditos julgados
são válidos para mostrar ao leitor que é possível o Judiciário Brasileiro proferir decisão similar.
Outrossim, cumpre tecer alguns esclarecimentos sobre ter-se nominado esta obra como Manual. Este
livro é um Manual porque, embora busque se aprofundar nas questões relativas ao casamento civil, à
união estável e à adoção por casais homoafetivos, cada um de seus capítulos poderia ensejar um livro
próprio – sobre a história do tratamento humano à homossexualidade (capítulo 1) e a homossexualidade
em si (capítulo 2); sobre os princípios constitucionais invocados (capítulos 3 e 4, além de outros citados
ao longo da obra); sobre as origens e desenvolvimentos de casamento civil, da união estável e da adoção
(capítulos 6 a 8 e 16); sobre a questão relativa aos contratos de união estável (capítulo 14); sobre a
evolução da teoria das sociedades de fato nas uniões concubinárias (capítulo 15). Fora outros temas
citados ao longo da obra. Foi essa a linha de pensamento que me fez manter o termo Manual (em
contraposição ao termo Curso, usado tecnicamente para casos em que há um aprofundamento maior sobre
todos os temas) – muito embora as ponderações de Maria Berenice Dias em seu prefácio a esta obra
sejam, como de costume, precisas, esclarecedoras e válidas.
Passo agora a fazer uma apresentação sintética dos temas trabalhados ao longo dos capítulos desta
obra. O livro foi dividido em duas partes: na primeira, introduziu-se ao leitor o tema da
homossexualidade e, em seguida, visou-se mostrar os conceitos jurídicos genéricos que ensejaram as
conclusões deste trabalho para, na segunda, efetivamente serem aplicados tais conceitos ao tema desta
obra.
No primeiro capítulo, foram tecidas breves considerações acerca do tratamento que a
homossexualidade tem recebido ao longo da história, com o intuito de desmistificar preconceitos
existentes na mentalidade social e demonstrar, ainda, o fator que ensejou a institucionalização do
preconceito homofóbico (até então inexistente neste nível) na sociedade. No segundo, foram feitas
considerações acerca da homossexualidade, conceituando-a e apontando o atual entendimento médico-
psicológico acerca do tema, além de ter-se discorrido brevemente sobre a interpretação histórico​-crítica
da Bíblia, que demonstra inexistir efetiva condenação cristã à homoafetividade – embora se tenha
apontado que, ainda que assim não se entenda, motivações religiosas não podem justificar discriminações
jurídicas em função do princípio do Estado Laico constitucionalmente consagrado. Fiz, nesta segunda
edição, a defesa da pertinência da terminologia homoafetividade/heteroafetividade, ratificada pelo STF
no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, em síntese, pelos termos se referirem à família conjugal e
pela família conjugal contemporânea ser pautada, primordialmente, pelo afeto como seu elemento
constitutivo.
No terceiro capítulo, explicitou-se o conteúdo jurídico dos princípios da igualdade, que veda
discriminações arbitrárias/irracionais, e da proporcionalidade, que só admite a validade de normas
adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito. O mesmo foi feito no quarto capítulo no que
tange aos princípios da dignidade da pessoa humana, que garantem a todos o direito à felicidade e só
admitem a relativização da dignidade de uns em relação à de outros por meio do aspecto material da
isonomia, e da interpretação conforme a Constituição, método de controle de constitucionalidade que
determina uma interpretação sistemática do Direito à luz dos valores constitucionalmente consagrados.
No quinto capítulo, demonstrou-se a visão que o atual ordenamento jurídico tem da homoafetividade,
demonstrando que ela tem recebido o mesmo tratamento dispensado ao concubinato heteroafetivo (teoria
das sociedades de fato) – por outro lado, demonstrou-se a mudança de paradigma da família
contemporânea, que deixou de ser formada meramente pela formalidade do casamento civil para sê-lo
por meio do amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura, visto ser ele o elemento formador da família contemporânea constituída por
casais (o amor familiar), razão pela qual se mostram competentes as varas de família para o julgamento
das causas envolvendo as uniões homoafetivas, justamente por constituírem famílias juridicamente
protegidas.
No sexto e no sétimo capítulos, demonstrou-se a possibilidade jurídica do casamento civil e da
união estável entre casais homoafetivos, por meio do princípio da isonomia e dos institutos da
interpretação extensiva ou da analogia, decorrentes da isonomia, visto que a interpretação teleológica das
leis do casamento civil e da união estável demonstra que ditos regimes jurídicos visam proteger o amor
romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, e não a mera heterossexualidade do par. O mesmo foi feito no oitavo capítulo, sob o enfoque
do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista o grau inequivocamente maior de dignidade
conferido ao casamento civil em relação a qualquer outra forma de união civil, assim como à união
estável quando comparada ao concubinato (teoria das sociedades de fato).
Nos capítulos nove e dez, demonstrou-se que os princípios da interpretação conforme a
Constituição e da proporcionalidade, respectivamente, demandam pelo reconhecimento da possibilidade
jurídica do casamento civil e da união estável por casais homoafetivos. Quanto à interpretação
conforme, que se caracteriza como método de controle de constitucionalidade, ela demanda pela
interpretação da legislação infraconstitucional e das próprias normas constitucionais de uma forma
sistemática, que respeite os valores constitucionalmente consagrados e, em especial, os princípios da
igualdade e da dignidade da pessoa humana, que devem ser as bases de interpretação do Direito pátrio
(assim como os demais direitos fundamentais). Quanto à proporcionalidade, demonstrou-se que ela não
justifica o não reconhecimento de tais direitos ao mesmo tempo em que determina que eles sejam
reconhecidos.
No capítulo onze, demonstrou-se o descabimento das justificações atualmente suscitadas pela
doutrina jurídica para a exclusão das uniões homoafetivas do âmbito do Direito das Famílias, em
contestações analíticas. Tive a audaciosa pretensão de completude, de enfrentar a todas as justificações
apresentadas pela doutrina, o que provavelmente não terá ocorrido pela impossibilidade de se conhecer
absolutamente todas as posições doutrinárias a respeito de qualquer tema – disso o leitor deve extrair
que, se algum argumento não foi enfrentado, é porque não tive ciência dele. Quando tiver, manifestar-me-
ei, em edição seguinte. Nesta segunda edição consta apenas o que nos demais capítulos equivale à síntese
conclusiva, com breve explicação de seus fundamentos, constando a análise integral no seguinte link:
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-da-homoafetividade-segunda-edicao-capitulos-
online/.
No capítulo doze, apontou-se para o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça a respeito do
tema, oportunidade na qual foi feita uma análise detida de diversas decisões e contestamos a posição
adotada nos diversos julgados que não reconheceram a união estável homoafetiva, mas apenas uma
sociedade de fato entre os companheiros – embora alguns julgados mais recentes tenham afirmado que a
união homoafetiva é análoga à união estável heteroafetiva, bem como aplaudimos a viragem de
jurisprudência do STJ, que, a partir do REsp 820.475/RJ e, especialmente, do REsp 1.026.981/RJ,
consagrou a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva. Nesta segunda edição consta apenas o
que nos demais capítulos equivale à síntese conclusiva, com breve explicação de seus fundamentos,
constando a análise integral no seguinte link: http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-da-
homoafetividade-segunda-edicao-capitulos-online/.
No capítulo treze, teceram-se comentários sobre o posicionamento do Supremo Tribunal Federal,
com forte ênfase no histórico julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, nas quais o Tribunal reconheceu
a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva.
Nos capítulos catorze e quinze, tratou-se dos contratos de união estável homoafetiva e da teoria
das sociedades de fato, a eles atualmente aplicada. Se, na primeira edição desta obra, falou-se que essas
eram “soluções paliativas” até o reconhecimento jurídico da família conjugal homoafetiva, com a decisão
do STF na ADPF 132 e da ADI 4.277, de efeito vinculante e eficácia erga omnes (ou seja, de
cumprimento obrigatório no país inteiro), tem-se que o contrato de união estável homoafetiva deve ter,
obrigatoriamente, o mesmo valor do contrato de união estável heteroafetiva, ao passo que a teoria das
sociedades de fato se mostra inaplicável a uniões estáveis homoafetivas que não tenham incidentes
nenhum dos taxativos impedimentos matrimoniais do art. 1.521 do CC/2002. Por essa razão, alteramos o
título de tais capítulos, adaptando-os ao decidido pelo STF no citado julgamento.
No capítulo dezesseis, discorreu-se sobre o tema da possibilidade jurídica da adoção por
homossexuais solteiros e por casais homoafetivos, demonstrando inicialmente a existência de um direito
fundamental à parentalidade por parte das pessoas adultas e de um direito fundamental de ser adotado por
parte dos menores que não possam ser criados por seus pais biológicos, direitos estes decorrentes do
princípio da dignidade da pessoa humana, que, como dito, garante a todos o direito à felicidade.
Ademais, demonstrou-se que inexiste qualquer prejuízo ao menor na sua criação em um lar homoafetivo
e, ao contrário, que o princípio da integral proteção a crianças e adolescentes é afrontado pela negativa
de adoção por homossexuais solteiros e casais homoafetivos – além de tal recusa afrontar os direitos de
igualdade e dignidade destes.
No capítulo dezessete, fez-se uma breve análise do tratamento recebido pelas uniões homoafetivas
no Direito Comparado, adotando a classificação de Maria Berenice Dias, que dividiu o mundo entre os
“países de extrema repressão”, de “modelo intermediário” (entre os quais o Brasil atual), transcrevendo-
se um importante relato acerca de diversas decisões judiciais ao redor do mundo que reconheceram a
possibilidade jurídica do casamento civil ou, pelo menos, da união estável entre casais homoafetivos
para, por fim, os de “modelo avançado”, que aprovaram leis de união civil e, em alguns casos, alteraram
a legislação para permitir expressamente o casamento civil homoafetivo.
Nesta segunda edição, transcrevi trechos dos acórdãos da ADPF 132 e da ADI 4.277 em diversas
partes da obra, o que foi possível praticamente sem a criação/adaptação dos tópicos de cada capítulo.
Foi com alegria que percebi que o livro e a referida decisão se retroalimentam, no sentido de que muito
do que foi tratado neste livro foi igualmente trabalhado pelo STF no citado julgamento.
Ante o exposto, concluiu-se que aqueles que ainda não reconhecem o status jurídico-familiar das
uniões homoafetivas o fazem por preconceito, ou seja, juízo de valor dezarrazoado, irracional, que não
possui uma fundamentação lógico-racional que a justifique com base no critério diferenciador erigido
(que é a homogeneidade ou diversidade de sexos do casal e, em suma, a orientação sexual do par), em
flagrante afronta à isonomia. Apontou-se que, por se tratar de situações idênticas, ou, no mínimo,
idênticas no essencial (tendo em vista serem uniões amorosas entre pessoas do mesmo sexo baseadas no
mesmo amor familiar que funda as uniões amorosas entre pessoas de sexos diversos), as uniões
homoafetivas devem receber o mesmo tratamento jurídico dispensado às uniões heteroafetivas, em
virtude da interpretação extensiva (situações idênticas) ou, no mínimo, da analogia (situações idênticas
no essencial), visto serem estas técnicas de interpretação jurídica que visam a suprir as lacunas
existentes na lei (pois a lei pode ter lacunas, mas o Direito não), técnicas estas previstas expressamente
pela legislação (arts. 4.º da LINDB e 126 do CPC), que, justamente por isso, não afrontam o princípio da
separação dos poderes, em especial por terem sido previstas pelo próprio Poder Legislativo para os
casos de lacunas legislativas e, especialmente, por serem uma decorrência lógica do princípio da
isonomia, no sentido de tratar igualmente os iguais e os fundamentalmente iguais.
Assim, para sintetizar em poucas palavras, este trabalho defende a tese segundo a qual inexiste
fundamento lógico-racional que justifique a concessão de menos direitos aos casais homoafetivos do que
aqueles concedidos aos casais heteroafetivos, razão pela qual é inconstitucional a referida
discriminação. Consequentemente, deve ser reconhecido àqueles o direito ao casamento civil e à união
estável, visto serem os únicos regimes jurídicos que concedem às uniões amorosas a proteção do Direito
de Família, além do direito à adoção conjunta, justamente pela arbitrariedade do entendimento que
atualmente não a reconhece, o que pode ser feito pela interpretação extensiva ou pela analogia, que não
afrontam o princípio da separação dos poderes por serem técnicas hermenêuticas de colmatação de
lacunas, expressamente previstas pela legislação.


O Autor
GLOSSÁRIO

AC – Apelação Cível
ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADInO – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
AgR – Agravo Regimental
Art. – artigo
CC/1916 – Código Civil de 1916
CC/2002 – Código Civil de 2002
Constituição Federal de 1967, com a Emenda Constitucional 1, de 1969 (geralmente
CF/1967-
– considerada, tal emenda, como uma nova Constituição por ter substituído a redação da
1969
Constituição de 1967)
CF/1988 – Constituição Federal de 1988
CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos
Código de Processo Civil de 1973 (destaca-se o ano porque está em discussão no
CPC/1973 – Congresso Nacional projeto de lei que visa instituir um novo Código de Processo
Civil)
CPP – Código de Processo Penal
DJ – Diário da Justiça
DJe – Diário da Justiça Eletrônico
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
EUA – Estados Unidos da América
g.n. – grifo(s) nosso(s)
HC – Habeas Corpus
Inc. – inciso
LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
LICC – Lei de Introdução ao Código Civil
LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (atual denominação da LICC)
MI – Mandado de Injunção
MP – Ministério Público
MS – Mandado de Segurança
Pet. – Petição
RE – Recurso Extraordinário
Rectius – retificação
REsp – Recurso Especial
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TJ/BA – Tribunal de Justiça da Bahia
TJ/MG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais
TJ/PR – Tribunal de Justiça do Paraná
TJ/RJ – Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
TJ/RS – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
TJ/SC – Tribunal de Justiça de Santa Catarina
TJ/SP – Tribunal de Justiça de São Paulo
TRF – Tribunal Regional Federal
TRT – Tribunal Regional do Trabalho
§ – parágrafo
(...) – trecho omitido da transcrição em questão
afirmações entre colchetes durante transcrições constituem observações/acréscimos
(...) –
deste autor
Nota da Editora: o Acordo Ortográfico foi aplicado integralmente nesta obra.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

Primeira parte
BASES NECESSÁRIAS ÀS TESES PROPRIAMENTE DITAS

1. A HOMOSSEXUALIDADE NA HISTÓRIA
1. Considerações preliminares
2. A história e a homossexualidade
2.1 A sexualidade no mundo antigo
2.1.1 Foucault e a história da sexualidade na Antiguidade Clássica
2.2 As instituições religiosas e o início da pregação homofóbica
2.3 A idade média e o nascimento do estado homofóbico
2.4 Os humanistas, os puritanos, os capitalistas e os iluministas: visões distintas, preconceito
idêntico
2.5 O século XIX e a patologização da homossexualidade
2.5.1 Foucault e a história da sexualidade após o século XVIII
2.6 O século XX: o Relatório Kinsey e a atual visão da ciência médica sobre a
homossexualidade
2.7 A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade
3. Síntese conclusiva do capítulo
2. DA HOMOSSEXUALIDADE E DA HOMOAFETIVIDADE
1. Conceituação
1.1 Homoafetividade/heteroafetividade. Pertinência terminológica
2. A Bíblia e a Homossexualidade
2.1 O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade?
3. “Homossexualismo” x Homossexualidade: Entendimento médico-psicológico acerca da
homoafetividade
3.1 Critérios para a definição de uma doença e a homossexualidade
3.2 Entendimento da ciência médica quanto à origem da homoafetividade
3.3 “Opção” x orientação sexual: correta colocação do tema
3.4 Conceito de homofobia
3.5 As minorias sexuais. conceituação de orientação sexual, gênero e identidade de gênero
4. Síntese conclusiva do capítulo
3. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA E DA PROPORCIONALIDADE
1. O princípio da igualdade – nota introdutória
1.1 Aspecto formal – conteúdo e histórico
1.2 Aspecto material – conteúdo
1.3 A teoria tridimensional do Direito e o objeto de proteção das normas. O Direito como
ciência valorativa
1.3.1 Caracterização da lacuna normativa
1.3.2 Interpretação extensiva ou analogia para reconhecimento do casamento civil, da
união estável e da adoção por casais homoafetivos. Despsicologização do conceito
de interpretação extensiva. Esclarecimentos
1.4 O princípio do Estado Laico e a proibição da utilização de fundamentações religiosas para
justificar discriminações jurídicas
1.4.1 Conteúdo jurídico do princípio do Estado Laico
2. Os Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade – conteúdo jurídico
3. Síntese conclusiva do capítulo: da discriminação juridicamente válida (isonômica e
proporcionalmente)
4. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA
INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
1. O princípio da dignidade da pessoa humana
1.1 Considerações preliminares
1.2 O princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à busca da felicidade
1.3 As classificações insular e da nova ética. A posição de Antônio Junqueira de Azevedo
1.4 Dignidade da pessoa humana como dimensão simultaneamente defensiva e prestacional. A
posição de Ingo Wolfgang Sarlet e de Luís Roberto Barroso
1.5 Posição pessoal. Dignidade da pessoa humana e o direito à felicidade. ADPF 132 e ADI
4.277
1.5.1 Do direito fundamental ao respeito (implícito ao princípio da dignidade da pessoa
humana)
2. O Princípio da Interpretação conforme a Constituição
2.1 A interpretação conforme a Constituição no ordenamento jurídico brasileiro: natureza
jurídica
2.2 Requisitos da interpretação conforme a Constituição
2.3 Limites da interpretação conforme a Constituição. ADPF 132 e ADI 4.277
2.4 Da diferença entre a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de
nulidade sem redução de texto de lei
3. Síntese conclusiva do capítulo
5. A FAMÍLIA JURIDICAMENTE PROTEGIDA E A HOMOAFETIVIDADE NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
1. O vazio legislativo quanto às uniões homoafetivas. Da ausência de proibição legal
1.1 Soluções ao vazio legislativo: a analogia, a interpretação extensiva e os princípios gerais
do Direito
1.2 A função do legislador
2. A questão da família
2.1 A importância da família na história da humanidade
2.2 A família brasileira – breves considerações históricas
2.2.1 A família na sociedade rural e o “modelo institucional” do Código Civil de 1916
2.2.2 A família na sociedade urbana – a mulher no mercado de trabalho
2.3 As soluções encontradas pela Jurisprudência para as uniões não regulamentadas
2.3.1 Analogia com o Direito do Trabalho – Indenização pelos serviços prestados.
Julgados contemporâneos do STJ
2.3.2 Analogia com o Direito Comercial – Teoria das sociedades de Fato
2.4 A evolução histórica do conceito de família
2.4.1 O amor familiar como o elemento formador da família contemporânea. STF, ADPF
132 e ADI 4.277
2.5 A família e a Constituição Federal de 1988
2.5.1 Dos dispositivos constitucionais que tratam da família. Da ausência de proibição às
famílias homoafetivas ou de dispositivo que não as reconheça. A interpretação do
Ministro Ayres Britto no julgamento da ADPF 132 e na ADI 4.277
2.5.2 Do objeto de proteção do Direito das Famílias
2.5.3 O afeto como princípio jurídico-constitucional. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2.6 A família homoafetiva. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2.6.1 As Gerações/Dimensões de Direitos. STF, ADPF 132 e ADI 4277
2.6.2 O reconhecimento legal do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas – arts.
2.º e 5.º, parágrafo único, da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006)
2.6.3 Da competência das varas de família para julgamento das causas envolvendo uniões
homoafetivas
3. Síntese conclusiva do capítulo

Segunda parte
DAS TESES PROPRIAMENTE DITAS

6. UNIÕES HOMOAFETIVAS E ISONOMIA: CASAMENTO CIVIL


1. Considerações preliminares
1.1 Evolução histórica do conceito de casamento. Da patrimonialização do afeto à concepção
eudemonista de casamento
1.1.1 Conceito contemporâneo de casamento
2. Preliminarmente: Da Efetiva Discriminação sofrida pelos Casais Homoafetivos em decorrência
da negativa ao reconhecimento de seu status jurídico-familiar
2.1 Da necessidade da nomenclatura “casamento civil” e “união estável” para a garantia da
isonomia jurídica entre as uniões homoafetivas quando comparadas às heteroafetivas nos
dias de hoje
3. A interpretação extensiva, a analogia e a possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo
3.1 Uma inconstitucionalidade por omissão. Inexistência de “ativismo judicial” no
reconhecimento do casamento civil, da união estável e da adoção por casais
homoafetivos. Alternativamente: constitucionalidade de supressão de lacunas
inconstitucionais mediante “práticas de ativismo judicial” concretizadoras dos princípios
constitucionais (cf. Ministro Celso de Mello). STF, ADPF 132 e ADI 4.277
3.2 Mesmo instituições milenares, quando inseridas em um ordenamento jurídico, devem
respeitar os princípios e a sistemática que o regem
3.2.1 Casamento civil x Casamento religioso. Diferença entre ambos
4. Alternativamente: da inconstitucionalidade da suposta “proibição implícita” ao casamento civil
homoafetivo
4.1 Da ação judicial necessária ao casamento civil homoafetivo
5. Da união homoafetiva como uma “sociedade de afeto”, muito mais similar à união heteroafetiva
do que a uma “sociedade de fato”
6. Da possibilidade jurídica do pedido de casamento civil homoafetivo
7. Da ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal pleiteando pelo reconhecimento
do casamento civil homoafetivo
8. Sentença gaúcha afirmando serem o casamento e a união estável aplicáveis aos casais
homoafetivos
9. Decisões judiciais que reconheceram o direito ao casamento civil homoafetivo após a decisão do
STF na ADPF 132 e na ADI 4.277
10. Síntese conclusiva do capítulo
7. UNIÕES HOMOAFETIVAS E ISONOMIA: UNIÃO ESTÁVEL
1. Considerações preliminares acerca da união estável. introdução ao tema da união estável
homoafetiva
2. Da união estável homoafetiva
2.1 Da incompatibilidade do art. 226, § 3.º, com a isonomia e a dignidade humana em caso de
negação da união estável homoafetiva. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2.1.1 A ADPF 132 e a ADI 4.277
2.1.2 Inexistência de limites semânticos no texto do art. 226, § 3.º, da CF/1988
impeditivos do reconhecimento da união estável homoafetiva, por interpretação
extensiva ou analogia. Possibilidade jurídica do pedido de união estável homoafetiva
2.2 Alternativamente: da inconstitucionalidade do art. 226, § 3.º, da CF/1988 por afronta aos
princípios fundamentais da Constituição Federal
3. Síntese conclusiva do capítulo
8. UNIÕES HOMOAFETIVAS E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CASAMENTO CIVIL E
UNIÃO ESTÁVEL
1. Da dignidade humana e as uniões homoafetivas. Afronta à dignidade humana de homossexuais
pelo não reconhecimento do casamento civil homoafetivo e da união estável homoafetiva. STF,
ADPF 132 e ADI 4.277
2. Da importância do termo “casamento”
2.1 Do casamento civil como um direito fundamental implícito
2.2 Da insuficiência de uma “Lei de União Civil” para a proteção da dignidade humana de
homossexuais
3. Síntese conclusiva do capítulo
9. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO E UNIÕES HOMOAFETIVAS
1. A interpretação conforme a Constituição realizada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 132
e na ADI 4.277. Considerações preliminares ao capítulo
2. Da necessidade de uma interpretação conforme a Constituição em todas as hipóteses
3. Da interpretação das leis do casamento civil e da união estável em conformidade com a
Constituição
3.1 Não caracterização do art. 1.723 do Código Civil como norma de mera repetição do art.
226, § 3.º, da Constituição. Possibilidade de interpretação conforme. A posição do STF
na ADPF 132 e na ADI 4.277
3.1.1 Seria o caso de declaração de nulidade parcial sem redução de texto e não de
interpretação conforme? Irrelevância da discussão
4. Síntese conclusiva do capítulo
10. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E OS DIREITOS DOS CASAIS
HOMOAFETIVOS
1. Da ausência de relação racional entre a finalidade de se proteger a procriação com a proibição
do casamento civil homoafetivo e a discriminação (subprincípios da adequação e da
necessidade)
2. Da adequação e da necessidade do reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil
homoafetivo para o resguardo da isonomia e da dignidade humana dos casais homoafetivos
3. Da ausência de direito de heterossexuais e casais heteroafetivos prejudicado pela possibilidade
jurídica do casamento civil e da união estável entre casais homoafetivos – subprincípio da
proporcionalidade em sentido estrito. STF, ADPF 132 E ADI 4.277
4. Síntese conclusiva do capítulo
11. DA INCOERÊNCIA DAS JUSTIFICAÇÕES DA DOUTRINA PARA O NÃO
RECONHECIMENTO DA FAMÍLIA/ENTIDADE FAMILIAR HOMOAFETIVA
12. A POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
13. A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
1. Considerações preliminares
2. O Recurso Extraordinário 406.837/SP (Relator Ministro Eros Grau)
3. A Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.300/DF (Relator Ministro Celso de Mello) E A
PETição 1.984/rs (Relator Ministro Marco Aurélio)
4. Recurso Especial Eleitoral 24.564 (Relator Ministro Gilmar Ferreira Mendes)
5. RE 615.261/PR. Adoção por casal homoafetivo
6. ADPF 132 e ADI 4.277. O histórico reconhecimento do status jurídico-familiar da união
homoafetiva
7. RE 477.554 AgR/MG, RE 615.941/RJ e outras decisões monocráticas pós ADPF 132 e ADI
4.277
8. Síntese conclusiva do capítulo
14. CONTRATOS DE UNIÃO ESTÁVEL (HOMOAFETIVA OU HETEROAFETIVA)
1. Considerações preliminares
2. Contrato de união estável homoafetiva
2.1 Justificativa do nomen juris. Cláusulas
3. Síntese conclusiva do capítulo
15. O CONCUBINATO E A TEORIA DAS SOCIEDADES DE FATO. HISTÓRICO.
INADEQUAÇÃO À HIPÓTESE DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. O
CONCUBINATO HOMOAFETIVO
1. Considerações preliminares. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2. Concubinato: evolução histórica, conceito e espécies. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2.1 Concubinato homoafetivo?
3. Síntese conclusiva do capítulo
16. DA ADOÇÃO POR HOMOSSEXUAIS EM CONJUNTO OU ISOLADAMENTE
1. O direito fundamental à parentalidade
2. Do direito dos menores a serem adotados
3. A adoção por homossexuais e a inexistência de prejuízos ao menor por ser criado em um lar
homoafetivo
3.1 A omissão legal e os princípios da isonomia e da proteção integral do menor: adoção por
homossexuais e por casais homoafetivos. STJ, REsp 889.852/RS
3.2 A omissão legal e os princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção integral do
menor: a adoção por homossexuais e por casais homoafetivos. STF, ADPF 132 e ADI
4.277
3.3 Da afronta ao princípio da proteção integral ao menor decorrente da proibição da adoção
por casais homoafetivos
3.3.1 Da inconstitucionalidade da utilização do preconceito alheio como “justificativa”
para a proibição da adoção por casais homoafetivos
3.3.2 Da possibilidade jurídica do registro civil de um(a) menor como filho(a) de um
casal homoafetivo. STJ, REsp 889.852/RS (e TJRS, AC 70013801592)
3.4 A Jurisprudência sobre o tema
3.5 A posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Atala Riffo y niñas vs.
Chile
4. Inexistência de vantagem de um Casal Heteroafetivo em relação a um Casal Homoafetivo em
razão da mera diversidade de sexos do primeiro
5. Síntese conclusiva do capítulo
17. DO DIREITO COMPARADO
1. Considerações preliminares
1.1 Países de extrema repressão às uniões homoafetivas
1.2 Do bloco intermediário
1.3 Países de modelo expandido
2. Síntese conclusiva do capítulo

CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO

A homossexualidade tem sido objeto de exacerbado preconceito ao longo da história humana. De


comportamento absolutamente tolerado (e por vezes normalmente aceito, por ser considerada tão normal
quanto a heterossexualidade) nos primórdios da civilização, e inclusive amplamente vangloriada dentro
de determinados contextos, em civilizações como a da Grécia Clássica – berço da civilização ocidental
–, passou ela a ser alvo de inúmeros preconceitos por parte da sociedade. Em especial a partir da Idade
Média, quando a Igreja Católica Apostólica Romana dominou politicamente por aproximadamente mil
anos o cenário ocidental, a conduta homoafetiva passou a ser objeto de represálias, uma vez que
contrariava os dogmas impostos pela dita instituição religiosa.
Mesmo após o término da Idade Média, o preconceito contra a homossexualidade continuou a existir,
certamente influenciado pelos mais de mil anos em que a Igreja pregou (como ainda hoje prega) que seria
um “pecado”, um comportamento considerado errado por Deus (argumento este que será contraposto
neste trabalho no momento oportuno).
Toda essa história de preconceito acabou arraigando uma pré-compreensão na sociedade em geral
de que a homossexualidade não seria “natural”, ou seja, de que se trataria de um pecado ou, mais adiante
na história, de uma doença, desvio ou perversão psicológica. Mas o que mais impressiona é que tal foi
sempre presumido sem qualquer prova – ou seja, em vez de se ter uma base científica cabal contrária à
homossexualidade, utilizou-se do sentido inverso: como não havia prova de que era um comportamento
“natural”, “normal”, simplesmente a condenaram. Por outras palavras, em não havendo provas de sua
normalidade, julgaram-na como doença, pecado e/ou perversão, pelo mero fato de a maioria da
população ser heterossexual. Como não houve resistência ante tais colocações, passaram elas a ser
consideradas verdadeiras. Tais colocações prescindem de estudo aprofundado acerca do tema: basta ver
que, desde o início da condenação à homossexualidade, nunca houve uma prova cabal de que seria ela
algo “errado”, um pecado ou uma doença; apenas se passou a alegar isso, e como não houve resistência
contra essas colocações, passou-se a considerá-las como verdadeiras. Todavia, o fato de se repetir
indefinidamente uma mentira não a torna verdade, servindo, portanto, este trabalho para contestar toda
essa retórica homofóbica.
Como o Direito, por mais que demore, sempre acompanha o fato social, todo esse preconceito
ocasionou uma arbitrária discriminação jurídica, uma vez que, ainda hoje, se garantem às uniões
heteroafetivas todos os direitos existentes no campo do Direito de Família20, enquanto às uniões
homoafetivas não se confere direito algum, com o claro e preconceituoso intuito de relegá-las à margem
da sociedade.
Entretanto, como não há nem nunca houve nenhuma prova de que a homossexualidade constitui
doença, desvio psicológico, perversão ou algo do gênero, essa situação é incoerente com o nosso atual
ordenamento jurídico. E, considerando que as relações homoafetivas sempre existiram, mesmo nos
momentos de maior repressão, é inaceitável a sua não regulamentação, uma vez que corresponde à
realidade de significativa parcela da sociedade, ainda que minoritária. Esta discussão será
pormenorizadamente analisada quando forem examinados os princípios da igualdade e da dignidade da
pessoa humana em relação à homoafetividade.
Desta feita, considerando não haver justificação lógico-racional para a discriminação das relações
homoafetivas em relação às heteroafetivas, visa este trabalho demonstrar que merecem as uniões
amorosas entre pessoas do mesmo sexo o mesmo tratamento jurídico ofertado às uniões amorosas entre
pessoas de sexo diverso, sendo inconstitucional a discriminação hoje existente em relação àquelas.
É, aliás, o que o Supremo Tribunal Federal garantiu, relativamente ao regime jurídico da união
estável, por intermédio da decisão proferida na ADPF 132 e da ADI 4277 (de efeito vinculante e eficácia
erga omnes), na qual reconheceu a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva ao aplicar
interpretação conforme à Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil, “para excluir do dispositivo em
causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre
pessoas do mesmo sexo como família”, em “Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas
regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva” – ora, tendo tal dispositivo
regulamentado a união estável, é evidente que dita decisão reconheceu a família conjugal homoafetiva
como “união estável” quando atendidos os requisitos ali disciplinados (“convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com objetivo de constituição de família”)21 e não apenas como “entidade
familiar autônoma” distinta da união estável, como pretendeu o Ministro Lewandowski (que
evidentemente resta vencido neste ponto). Até porque, ao falar em “união estável heteroafetiva”,
evidentemente o STF também reconheceu a existência da “união estável homoafetiva”, ao passo que
“união contínua, pública e duradoura” com intuito de constituir família é como o referido dispositivo
legal define a união estável. O capítulo 13 traz todos os fundamentos da referida decisão.

20 Atualmente, melhor denominado como Direito das Famílias, justamente devido à inexistência de um único modelo familiar
correto e aceitável.
21 No mesmo sentido, cite-se, v.g., a lição de BRANDELLI, Leonardo. Nome Civil da pessoa natural, 1ª Edição, São Paulo:
Editora Saraiva, 2012, p. 190, segundo o qual “Entendeu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ação direta de
inconstitucionalidade n. 4277 e da argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 132, pela possibilidade jurídica
da união estável homoafetiva diante da impossibilidade constitucional de discriminação ou desigualação em razão do sexo,
na qual implicaria uma interpretação de que o art. 226 da Carta Maior somente permite a união estável entre homem e
mulher”.
PRIMEIRA PARTE

BASES NECESSÁRIAS ÀS TESES PROPRIAMENTE DITAS
Capítulo 1

A HOMOSSEXUALIDADE NA HISTÓRIA

“Em minha opinião, a homossexualidade não deveria ser explicada, ela apenas existe. O que
precisa ser investigado é a opinião que as várias sociedades sempre tiveram sobre ela.” –
Colin Spencer1, historiador.

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Antes mesmo de se conceituar a homossexualidade, é preciso entender como o amor por pessoas do
mesmo sexo tem sido visto e qual o tratamento a ele dispensado ao longo da história humana. Isso se faz
necessário porque mudou drasticamente, no final do século XIX, a visão do mundo no que tange à
identidade homossexual. Note-se: não é o conceito de homossexualidade que mudou, mas o de
identidade homossexual, o qual não era nem mesmo concebido nas civilizações do mundo antigo.
Ademais, o estudo do tratamento dispensado pelas sociedades, ao longo dos tempos, às pessoas que
amam outras do mesmo sexo ajuda-nos a compreender quais foram os reais motivos que ensejaram o
início da perseguição e da violência contra homossexuais. Não era o simples fato de amar uma pessoa do
mesmo sexo que ensejava a perseguição: outros motivos, incidentalmente relacionados à
homossexualidade por erros conceituais, é que desencadearam o início do preconceito homofóbico.
Essa questão é importante porque, hoje, os homofóbicos pregam que a homossexualidade per si seria
algo condenável, o que não corresponde à verdade, quando se consideram os motivos que ensejaram o
início da perseguição aos homossexuais, como se passa a demonstrar.

2. A HISTÓRIA E A HOMOSSEXUALIDADE
A homossexualidade é tão antiga como a heterossexualidade (assertiva repetidamente atribuída a
Goethe). Acompanha a história da humanidade e, se nunca foi aceita, sempre foi tolerada. É uma
realidade que sempre existiu, e em toda parte, desde as origens da história humana. É diversamente
interpretada e explicada, mas, apesar de não a admitir, nenhuma sociedade jamais a ignorou.2
A afirmação supratranscrita sintetiza bem a questão da homossexualidade ao longo da história
humana. Ela sempre existiu, sendo a única variação o tratamento dispensado pelas diferentes culturas. No
início dos tempos, o comportamento homoafetivo não era tido como “estranho” ou “anormal”, justamente
por ser considerado tão normal quanto o heteroafetivo. Determinadas culturas passaram a valorizá-lo, ao
passo que outras passaram a desprezá-lo, até que, num dado momento histórico, a parcela que dominava
o poder político do mundo ocidental passou a condenar ferozmente a homossexualidade, criando assim
todo um estigma e preconceito contra as pessoas homossexuais.

2.1 A sexualidade no mundo antigo


Nas sociedades primitivas, o amor entre homens era prática constante e aceita, encontrando-se
institucionalizada na cultura, na forma de uma relação entre um homem mais velho e um adolescente, em
que aquele seria necessariamente o sexualmente ativo e este, o passivo3. As práticas sexuais entre um
homem mais velho e outro mais jovem estavam comumente relacionadas aos mitos e às lendas das tribos
em questão – como praticamente tudo nas sociedades humanas não científicas da época. As culturas
primitivas viam nesse tipo de relacionamento a forma pela qual o menino alcançaria a masculinidade, por
meio da exclusão do contato dele com a mãe (e das mulheres em geral) para que aprendesse os costumes
masculinos de seu povo. Algumas dessas práticas ritualizadas baseavam-se, inclusive, na crença de que
somente com a sua realização é que os jovens alcançariam a fertilidade necessária a uma futura
procriação4.
Contudo, por mais que a cultura dessas tribos estimulasse, como se percebe, uma
pseudobissexualidade5 ritual de seus membros, no sentido da iniciação masculina dos menores, para que,
em obtendo a fertilidade, pudessem futuramente procriar (o que se repetirá mais adiante na história, em
especial na Grécia Clássica e em Roma), existiam muitos que, efetivamente, eram homossexuais, ou seja,
sentiam-se atraídos exclusivamente por pessoas do mesmo sexo, embora tivessem que manter alguma
espécie de relacionamento com pessoas do sexo oposto para fins de procriação6.
Já sob a ótica de uma das civilizações clássicas do mundo antigo, é oportuno citar o caso da
Babilônia, cujos cidadãos não davam importância à sexualidade (se homo, hétero ou bissexual), mas ao
status social das pessoas com quem o cidadão se relacionava, além do papel sexual deste (se ativo ou
passivo)7.
Fica claro que o amor entre homens era amplamente aceito entre os povos antigos, sendo, contudo,
valorizado apenas o “polo ativo” da relação. Isso se explica porque o machismo, já naquela época,
vislumbrava o ato sexual ativo como a postura masculina, sendo o ato sexual passivo tido como uma
postura feminina. Em outras palavras, não era analisado o sexo biológico da pessoa para a qual o
homem direcionava seu amor, mas o papel sexual que ele desempenhava8. Ou seja, um homem que
mantivesse uma relação sexual passiva era colocado no mesmo patamar que uma mulher, que era
socialmente desprezada pela camada dominante da população, composta por homens. Dita passividade
somente era aceitável em meninos adolescentes, justamente por ser vista como a forma de eles
alcançarem a masculinidade. Mesmo no Egito Antigo, onde ainda há dúvidas se eram contrários ou
favoráveis às relações amorosas entre homens, a homoafetividade era frequente, ainda que sob a forma
pseudobissexual, tradicional no mundo antigo.
Ressalte-se, portanto, que o conceito atual de identidade homossexual é diverso daquele que existia
nas épocas aqui narradas. Em verdade, naquela época as pessoas nem sequer se preocupavam com isso:
tudo fazia parte do mesmo patamar de sexualidade9.
O leitor pode estranhar o fato da referência apenas ao amor entre homens, nada tendo sido citado em
relação ao amor entre mulheres. Isso decorre do fato de existirem poucas referências históricas relativas
ao amor lésbico, o que, por sua vez, foi ocasionado pelo entendimento dominante entre os homens da
época de que não se poderia falar em relação sexual sem a presença de um homem. A sexualidade das
mulheres era completamente ignorada em virtude de o preconceito da época pregar que a sexualidade
delas dependia necessariamente de um homem. Assim, tudo o que ocorria “entre quatro paredes” entre
duas mulheres era, na maioria das vezes, ignorado, o que ensejou pouca formalização escrita desses
relacionamentos. Não obstante, o amor entre mulheres sempre existiu, assim como o amor masculino10.
Feitas estas considerações, torna-se claro que o amor por pessoas do mesmo sexo já existia e era
amplamente aceito por outros povos que não apenas os da Grécia Clássica e de Roma, civilizações vistas
pela atual sociedade como as mais tolerantes em relação à homoafetividade. Realmente foi sobre elas
que os historiadores mais se debruçaram para estudar as origens históricas da homossexualidade, o que
se explica por formarem elas (especialmente a primeira) o berço do mundo ocidental11.
Na Grécia, a cultura da pederastia institucionalizada seguiu o modelo existente nas tribos primitivas
anteriores à sua época, tal como, aparentemente, boa parte dos outros povos contemporâneos. Contudo, a
peculiaridade grega encontra-se no fato de ter ganhado ênfase o conceito de transmissão de conhecimento
oriundo do ato sexual de um homem mais velho com outro mais novo, além de ter sido consagrada em sua
célebre mitologia (no que foi seguida, posteriormente, pelos romanos, na mitologia greco-romana), na
qual diversos deuses a praticavam12. Assim, era comum na cidade-estado de Atenas, notória pelo seu alto
grau de desenvolvimento cultural, que os efebos (adolescentes-aprendizes) prestassem favores sexuais
aos preceptores (tutores) em busca de sabedoria e conhecimento13.
Já na cidade-estado de Esparta, cuja sociedade dava mais ênfase ao desenvolvimento militar do que
ao cultural, a visão do amor entre homens tinha um enfoque um pouco diferenciado. Era ela estimulada
dentro do exército espartano, para torná-lo ainda mais eficiente. Isso se explica por um simples fato: com
a existência constante de relacionamentos homoafetivos dentro do exército, quando este ia para a guerra,
o soldado estaria lutando não apenas por sua cidade-estado, mas igualmente para proteger a vida de seu
amado, o que, obviamente, aumentaria o grau de dedicação e empenho do combatente14. A notória
eficiência do exército espartano torna, no mínimo, curioso o preconceito contemporâneo contra a
presença de homossexuais nas Forças Armadas, como se não fossem capazes de exercer a função militar
tão bem quanto os heterossexuais.
A sexualidade em Roma manteve, a princípio, o mesmo modelo “bissexual” anterior, no sentido de
ser comum o amor de homens mais velhos por rapazes​-adolescentes, mas com uma diferença, ao mesmo
tempo sutil e perceptível: o extremo valor dado pelos romanos à virilidade masculina e àquilo que
entendiam eles por virilidade. O macho romano se via como um dominador agressivo e acreditava que,
quando forçava outros a se submeterem, estava lhes proporcionando prazer15.
Aqui há uma diferença fundamental entre gregos e romanos: os homens gregos cortejavam os rapazes
de seu interesse, com agrados que visavam persuadi-los a reconhecer sua honra e suas boas intenções;
entre os romanos o amor por rapazes livres era proibido, uma vez que a sexualidade desse povo estava
intimamente ligada à dominação. Assim, era-lhes permitido apenas o amor por rapazes escravos. Essa
visão foi bem representada pela frase de Sêneca, o Velho, segundo a qual “serviços sexuais constituem
um crime para os nascidos livres, uma necessidade para os escravos e um dever para os libertos”.16
Com a conquista da Grécia Antiga pelo Império Romano e a formação da cultura helênica, passou
este último a ter suavizada aquela ideia de virilidade baseada na dominação, tornando-se prática comum
(embora legalmente vedada) o amor por rapazes baseados na corte, na conquista dos tempos da Grécia
Clássica. O desprezo mantinha-se, tal como nesta, apenas com relação ao homem adulto que
permanecesse como passivo na relação sexual: novamente, não se condenava o amor masculino, apenas
a sexualidade passiva. Nunca é demais relembrar que esta era tida como uma conduta feminina, e o
homem que assim agisse era visto como alguém que abria mão de sua masculinidade, sendo assim
equiparado às mulheres como um “cidadão de segunda classe”. Não era relevante se alguém se
relacionava com meninos ou meninas, mas o que alguém fazia sexualmente era altamente significativo17.
Contudo, essa visão do sexualmente passivo provou-se relativa no Império Romano, quando o
homem em questão tinha outras atitudes vistas como eminentemente masculinas, a exemplo da arte da
guerra. Verifica-se que a passividade sexual era “compensada” pela eficiência em outras atividades
consideradas masculinas18.
Como se pode ver, a Grécia Clássica e o Império Romano valorizavam aquilo que se entendia como
sexualidade masculina, que era aquela relacionada ao parceiro sexual ativo. A conduta do homem
passivo era repudiada, por ser vista como uma conduta feminina e não como um desprestígio ao amor
homoafetivo. Como a mulher era tida como “cidadã de segunda classe”, o machismo existente na época
equiparava os homens adultos que se mantinham passivos na relação sexual a elas, no que tange a
direitos, sendo apenas isto o que se pode dizer da sexualidade desse período da história humana. Ou seja,
o machismo é a origem remota da homofobia19, ou seja, do preconceito e da discriminação contra
homossexuais. Mas, se o homem passivo era amplamente respeitado por outras atitudes suas (como Júlio
César, nos campos de batalha), então se fazia vista grossa quanto à questão da sua sexualidade.
Uma observação importante: que não venham os preconceituosos de plantão invocar esse modelo de
pederastia institucionalizada como forma de condenar homossexuais ou de, descabidamente, generalizar
a todos os homossexuais a pederastia (que é a pedofilia entre homens). Afinal, é notório que homens
heterossexuais também praticaram uma pedofilia institucionalizada ao se casarem com mulheres
adolescentes ao longo da história humana, com meninas adolescentes contraindo casamento com homens
adultos (e, consequentemente, mantendo com eles relacionamentos sexuais) – como ainda hoje ocorre em
países islâmicos20. Isso só vem demonstrar que a pedofilia foi algo aceito por questões culturais de
algumas épocas, não sendo em nada relacionada, unicamente, à homossexualidade.
De tudo isto se verifica, assim, o caráter relativo dos conceitos de “masculinidade” e
“feminilidade”. O que se entende como um e como outro é algo que varia conforme a história e a cultura
de cada sociedade humana, não podendo ser visto como algo imutável. Um exemplo banal dessa
colocação é o relativo aos kilts escoceses. Essas “saias”, ainda que usadas apenas em determinados
eventos festivos, são tidas como roupas masculinas pelo povo escocês, que não questiona a sexualidade
de um homem pelo simples fato de estar usando um kilt. No entanto, se um homem o usasse no Brasil,
certamente seria tachado de homossexual, por estar usando uma peça de roupa tida por nosso povo como
feminina, em uma descabida equiparação de homossexualidade com feminilidade. Masculinidade e
feminilidade são conceitos eminentemente relativos, que variam ao longo da história e de cultura para
cultura21.
Assim, adotando a conclusão de Colin Spencer22 no que tange à Antiguidade:

Contrariamente ao que estava para acontecer, o mundo antigo parecia ter aceitado a
sexualidade de maneira descontraída. A legislação existente favorecia os homens, em grande parte
por causa da propriedade e da herança, mas nenhuma única crença ética tinha selecionado ou
favorecido uma expressão da sexualidade em relação à outra. Nem havia um conceito do que é
‘natural’ ou ‘antinatural’ em formulação. Tudo isso iria mudar a partir de 600 a.C.

2.1.1 Foucault e a história da sexualidade na Antiguidade Clássica


Vale citar o pensamento de Foucault sobre a história da sexualidade.
O autor inicia o volume II de sua obra (nominada “o uso dos prazeres”) explicitando que seu
interesse foi realizar um trabalho histórico-crítico da experiência da sexualidade desde a hermenêutica
do desejo (a hermenêutica de si) existente durante a Antiguidade Clássica, sem o qual não seria possível
compreender a experiência da sexualidade cuja tradição se iniciou a partir do século XVIII e que funda o
pensamento contemporâneo23 para, com isso entender o motivo pelo qual o comportamento sexual e os
prazeres a ele relacionados são objeto de uma preocupação moral – o que fez a partir da análise de um
conjunto de práticas relativas às então chamadas artes da existência24 (tecnologias de si) para mostrar
de que maneira, na Antiguidade, a atividade e os prazeres sexuais foram problematizados através de
práticas de si e de uma estética da existência, fazendo-o por meio da análise de textos prescritivos, que
são aqueles que estabelecem regras de conduta25. Parte da noção corrente no pensamento grego clássico
de uso dos prazeres (chrèsis aphrodision) para distinguir os modos de subjetivação aos quais esta moral
se refere: substância ética, tipos de sujeição, formas de elaboração de si e de teleologia moral26.
Aponta que o pensamento antigo era pautado por uma reflexão moral baseada na austeridade sexual
em torno e a propósito da vida do corpo, da instituição do casamento, das relações entre homens e da
existência da sabedoria, que constituem os eixos temáticos dos quatro capítulos finais da obra. Por outro
lado, destaca que apesar das mulheres terem sido adstritas a obrigações extremamente estritas, não era a
elas que a moral grega era endereçada, por se tratar de uma moral de homens livres, pensada, escrita,
ensinada por homens livres para homens livres27.
Explica que os gregos não tinham uma noção semelhante à nossa de sexualidade, entendida como
uma entidade única que permite agrupar fenômenos diversos como sensações, imagens, desejos, instintos
e paixões; eles utilizam um adjetivo substantivado: ta aphrodisia (em latim: venerea), entendido por
vezes como coisas, prazeres do amor, relações sexuais, atos da carne e volúpias, mas sem uma noção
equivalente em seu idioma [o francês]. Assim, pretende se ocupar com a forma geral de preocupação dos
gregos a propósito dos aphrodisia como campo de cuidado moral através da Dietética (cuidado com o
corpo), da Econômica (relativa ao casamento), da Erótica (a propósito dos rapazes no que tange ao
amor masculino) e da Filosofia (quanto à verdade). Mas, antes disso, pretende explicar as noções de
aphrodisia (substância ética do comportamento sexual), de uso de chresis (sujeição à qual a prática dos
prazeres deveria submeter-se para ser moralmente valorizada), de enkrateia (respeito de si mesmo como
sujeito moral) e de sophrosune (temperança e sabedoria do sujeito moral em sua realização)28.
Foucault afirma que essa preocupação grega com a temperança no ato sexual decorre da reflexão
médica e filosófica que o via como capaz de ameaçar, por sua violência, o controle e o domínio de si,
além de minar a força do indivíduo pelo esgotamento que provoca, em razão de pensarem os gregos que a
perda do sêmen durante o ato sexual privaria o homem de elementos de grande valia para a sua
existência, donde a temperança sexual serviria para garantir o homem contra os males de sua prática
excessiva29. Visava, assim, uma formação ética do sujeito, que deve se caracterizar por sua capacidade
de dominar as forças que nele se desencadeiam, de guardar a livre disposição de sua energia e de fazer
sua vida uma obra que sobreviverá sua existência passageira (pela filiação)30.
A Dietética era a arte cotidiana do indivíduo com o próprio corpo31, uma questão de regime, visando
regular uma atividade reconhecida como importante para a saúde32, reconhecida como válida pelos
efeitos benéficos que traz aos indivíduos. A ‘dieta’ (o regime) era vista como uma categoria fundamental
através da qual se pode pensar a conduta humana, caracterizando-se pela maneira de se conduzir a
própria existência e fixar um conjunto de regras de conduta, sendo o regime toda uma arte de viver,
relativamente a exercícios, alimentos, bebidas, sonos e relações sexuais; o regime se define nesse duplo
registro de boa saúde e de bom estado da alma33. Contudo, mesmo o regime não pode ser excessivo, pois
a dieta não tem por finalidade tornar a vida mais longeva nem melhorar seu desempenho, mas torná-la útil
e feliz nos limites que lhe foram fixados, possibilitando aos indivíduos enfrentar diversas situações34.
Foucault afirma que essa preocupação grega com a temperança no ato sexual decorre da reflexão
médica e filosófica que o via como capaz de ameaçar, por sua violência, o controle e o domínio de si,
além de minar a força do indivíduo pelo esgotamento que provoca, em razão de pensarem os gregos que a
perda do sêmen durante o ato sexual privaria o homem de elementos de grande valia para a sua
existência, donde a temperança sexual serviria para garantir o homem contra os males de sua prática
excessiva35. Visava, assim, uma formação ética do sujeito, que deve se caracterizar por sua capacidade
de dominar as forças que nele se desencadeiam, de guardar a livre disposição de sua energia e de fazer
sua vida uma obra que sobreviverá sua existência passageira (pela filiação)36.
A Econômica era a arte da conduta do homem como chefe de família [no casamento heteroafetivo]37.
Toma como ponto de partida a chamada fórmula Contra Nera, segundo a qual “As cortesãs, nós a temos
para o prazer; as concubinas, para os cuidados de todo o dia; as esposas, para ter uma descendência
legítima e uma fiel guardiã do lar” – mas, segundo Foucault, embora essa fórmula deixasse claro que o
homem não tinha um dever legal de fidelidade sexual para com a sua esposa (podendo manter relações
com rapazes e outras mulheres), a fórmula não pode ser retirada de seu contexto: não significava que o
homem devia buscar o prazer com pessoa diversa de sua esposa legítima, mas que uma descendência
legítima não poderia ser obtida senão com a própria esposa38. De qualquer forma, enquanto a esposa
tinha o dever de fidelidade sexual e de administração do lar, o homem tinha como único dever manter a
esposa legítima na sua condição de esposa legítima, garantindo-lhe o status social que esta posição lhe
acarretava39 (desde que ela cumprisse com suas obrigações maritais40), sem dever legal de fidelidade
(embora este fosse visto como uma virtude de sua parte)41. Ou melhor, considerando que a mulher
casava-se muito jovem, cabia ao marido um trabalho de formação e direção da esposa, ensinando a ela as
virtudes necessárias para que pudesse dominar a arte doméstica, ou seja, a arte de governar a casa com
os bens adquiridos pelo homem com seu labor externo – pois se entendia que ao homem cabia o mundo
externo e à mulher o mundo interno de seu lar conjugal42. Apesar deste contexto, no seu livro Leis (parte
final de sua vida), Platão defendeu com vigor a necessidade da fidelidade sexual de ambos os cônjuges,
como forma de se ter uma cidade, para se propiciar uma raça sem bastardos (sic), reiterando a questão
do domínio de si como condição moral para dirigir os outros43; no que é seguido por Aristóteles, na
Ética a Nicômaco e na Política, nas quais aponta que a finalidade do vínculo que liga o homem e a
mulher decorreria da necessidade da procriação e, ainda, do bem-estar, donde seria uma injustiça para
com a mulher que o homem continuasse a manter suas convivências ilegítimas (thruraze sunousai)44.
De qualquer forma, reitere-se que essa exposição de Foucault mostra que tais posições de Platão e
Aristóteles constituíam regras puramente morais, não legais: o homem não estava obrigado a manter o
dever de fidelidade sexual à mulher – isso era considerado como uma virtude, não uma obrigação
jurídica.
A Erótica era a arte da conduta recíproca entre o homem e o rapaz na relação de amor45. Inicia
Foucault esclarecendo que não seria adequado utilizarmos a noção de homossexualidade para nos
referirmos à Grécia Clássica porque os gregos não opunham, como excludentes, dois tipos de
comportamentos diferentes relativamente ao amor ao seu próprio sexo se comparado ao amor pelo sexo
oposto, não se estabelecendo assim uma distinção entre um amor heterossexual e um amor homossexual –
importavam-se os gregos apenas com a temperança do amor praticado, fosse com mulheres ou rapazes,
sem que este último fosse mais grave que o outro46. Aponta ainda que não cabe falar sequer em
“tolerância”, pois o amor por rapazes, além de permitido, era admitido pela opinião pública. Dito isso,
aponta que o amor por rapazes era uma questão moral investida por valores, imperativos, exigências,
regras, conselhos e exortações cujo ponto essencial seria uma relação privilegiada entre parceiros com
uma diferença de idade e, relativamente a esta, uma diferença de status (ainda que próximos em idade),
não se interessando (os gregos) pelas relações entre dois homens já amadurecidos, embora houvesse
reprovação a tal relação. As relações objeto de preocupação eram aquelas entre um homem mais velho
que terminou sua formação (“erasta”) – do qual se supõe o papel social, moral e sexualmente ativo – e
um homem mais jovem (“eromeno”), que não atingiu seu status e que tem necessidade de ajuda,
conselhos e apoio para chegar a tanto (diferença esta que tornava válida e pensável essa relação)47.
As preocupações morais referidas fixavam os papéis de erasta e eromeno: do primeiro espera-se
uma moderada iniciativa de corte, dando presentes e prestando serviços que lhe permitissem esperar a
justa recompensa do amado; deste, por sua vez, esperava-se que não cedesse com facilidade, não
aceitasse favores às cegas e apenas por dinheiro e que manifestasse seu reconhecimento pelo que o
amante fez por ele (dava-se muita ênfase à questão da honra do rapaz, que dependia da maneira como
ele se conduzia pela cidade nesta sua idade de transição entre a adolescência e a vida adulta,
relativamente à postura do corpo, seus olhares, sua forma de falar, a qualidade das pessoas que
frequentava e, evidentemente, sua conduta sexual48). De qualquer forma, o rapaz era um homem livre para
decidir o que aceitava ou recusava e sobre quem não se detinha nenhum poder estatutário, donde para
obter dele o que sempre tinha direito de não conceder era preciso ser capaz de convencê-lo. Contudo,
ao final, quando o rapaz ultrapassava a idade máxima tida como admissível para tal relação, esperava-se
que deixasse de se relacionar sexualmente com o erasta e com ele mantivesse uma mera relação de
amizade (philia), tida como a única relação verdadeiramente duradoura49.
Por outro lado, segundo Foucault, ainda que tido como natural o amor por rapazes, havia uma
dificuldade moral relativamente à sexualidade passiva que o rapaz precisava assumir, pois apesar de
inferior ao homem adulto, ainda assim não se admitia que ele se assumisse de bom grado como objeto do
erastes (pois a passividade implicava uma situação de dominação), porque sua juventude deveria lhe
levar à condição de homem. Inclusive, não se admitia que o rapaz (necessariamente passivo na relação
sexual) sentisse prazer por ela, por esta questão de masculinidade viril tão valorizada pelos gregos,
donde, sem ter uma postura fria, deveria ter uma postura de reconhecimento, admiração ou afeição, mas
nunca sentir prazer por isso, sob pena de repreensão moral50-51.
Em suma, esperava-se que a relação do homem adulto com o rapaz terminasse quando este atingisse
a fase adulta e, a partir de então, manter com ele uma relação de amizade (philia), a durar pelo resto de
suas vidas. Ou seja, segundo Platão, quando o rapaz atingia a fase adulta, esperava-se que ele
desenvolvesse uma mera relação de amizade (philia) com seu amante, sem nenhum cunho sexual, o que é
representado por Sócrates quando fala que o mestre deve ensinar ao amado a maneira de triunfar sobre
seus desejos e tornar-se mais forte do que a si próprio, sendo que o mestre, pelo domínio completo que
exerce sobre si próprio, transforma os papéis para estabelecer uma renúncia aos aphrodisia e ser o
objeto de amor dos jovens ávidos de verdade (inversão de papéis porque, normalmente, eram os jovens
os objetos de amor dos mestres), para que eles sejam levados apenas ao tesouro de sua sabedoria52.
Foucault inicia o volume III de sua História da Sexualidade analisando um texto de Artemidoro
sobre a onirocricia, a arte de interpretar os próprios sonhos, por considerar que é o único texto
disponível da época que trata de uma literatura que foi abundante na Antiguidade53. Sobre o tema,
destacarei apenas as conclusões desta análise, segundo a qual, no tema dos sonhos sexuais, entendia-se
que se é um homem que sonha com outro homem, o que se leva em conta é a posição do sonhador no ato
sexual: se ele é ativo ou passivo, pois se sonha ser possuído por outro homem, o elemento de
discriminação que permite distinguir o valor favorável ou desfavorável do sonho depende do status
relativo dos dois parceiros – o sonho é bom se o sujeito for possuído por outro mais velho e mais rico do
que ele (e isso anuncia presentes), mas é mau se o parceiro ativo é mais jovem e mais pobre, ou
simplesmente mais pobre, por isto configurar signo de gastos54. Já as relações entre mulheres são tidas
sempre como contrárias à natureza, tendo em vista que Artemidoro considera que a mulher que, por meio
de um artifício qualquer, efetua a penetração em outra estaria a usurpar o papel do homem, ao passo que,
entre dois homens, o ato viril por excelência (penetração) não é em si mesmo uma transgressão da
natureza (ainda que se o considere vergonhoso ou inconveniente para o homem sexualmente passivo)55.
Os sonhos sexuais entre homens são considerados relativamente à utilidade que tais relações podem
gerar ao homem sonhador: Artemidoro analisa apenas os traços sociais do sonhador, a saber, sua idade,
se faz ou não negócios, se possui responsabilidades políticas, se está ameaçado de ruína ou de
hostilidade por seus próximos etc. – ou seja, analisam-se apenas os perfis sociais das pessoas do
sonho56. Nesse sentido, a penetração tem atenção de destaque, indagando-se o onirocrítico sobre os polos
de atividade e de passividade da relação sexual (quem penetra quem), tendo em vista que Artemidoro vê
no ato sexual um jogo de superioridade e inferioridade: a penetração coloca os dois parceiros numa
relação de dominação e de submissão, consubstanciando a vitória de um lado e a derrota de outro, assim
como um jogo econômico entre despesa e lucro: o prazer que se tem, as sensações agradáveis que se
experimenta em contraposição às despesas, à energia necessária para o ato, o desperdício de sêmen e a
fadiga que se segue. Esses são os elementos classificadores da penetração como um jogo estratégico de
dominação-submissão e como um jogo econômico de despesa-benefício considerados por Artemidoro
em sua análise num plano de relações sociais de superioridade​-inferioridade e de despesa-lucro57.
Assim, os sonhos sexuais são analisados no contexto de um valor favorável ou desfavorável para o
sujeito sonhador, parecendo que o que confere valor a um ato sexual sonhado é a relação que estabelece
entre o papel sexual e o papel social do sonhador58. Ou seja, o sujeito que sonha deve ocupar, na
atividade sexual, uma posição conforme aquela que ocupa na realidade com esse mesmo parceiro (ou
parceiro do mesmo tipo) – por exemplo, ser ativo com seu escravo, com um prostituto (ou prostituta),
com um rapaz, ou ainda ser passivo com alguém ao mesmo tempo mais velho e mais rico59.
Contudo, Foucault relata que já nos dois primeiros séculos de nossa era houve uma progressiva
desconfiança face aos prazeres, insistência sobre os efeitos de seu abuso para o corpo e a alma, uma
valorização do casamento e das obrigações conjugais e uma desafeição às significações espirituais
atribuídas ao amor pelos rapazes, embora raramente tenha se encontrado nos pensamentos filosóficos de
então uma legislação coercitiva e geral de comportamentos sexuais, mas apenas a incitação da
austeridade nestas práticas, para um maior cuidado de si e respeito para consigo mesmo enquanto ser
racional, controlador de seus próprios atos60. Incentivou-se ainda mais a cultura de si, entendida como
uma arte da existência pautada pelos cuidados consigo mesmo, para poder governar a si próprio – o
princípio do cuidado de si adquiriu alcance bastante geral, pelo qual ocupar-se consigo mesmo é um
imperativo que deve reger as atitudes das pessoas61, pois é na medida em que o homem é livre e racional
que ele foi encarregado de cuidar de si próprio, nunca sendo demasiado cedo ou demasiado tarde para
ocupar-se com a própria alma, conforme dizia Epicuro, complementado por Sêneca no sentido de que se
deve transformar a existência num exercício permanente de cuidado de si62. Tal compreensão assumiu
tamanha importância que era exigida (moralmente) dos próprios governantes: evidencia-se que a arte de
governar a si próprio se torna um fator político determinante, dando-se importância ao problema da
virtude dos imperadores (virtudes pessoas de homem racional), de sua vida privada e da maneira pela
qual eles sabem dominar suas paixões, pois, via-se aí, a garantia de que eles saberiam colocar por si
mesmos um limite ao exercício do seu próprio poder político, o que se garantiria por exercícios de
temperança e pelo cultivo das relações de amizade sem inconstância nem paixão, em uma arte de bastar-
se a si próprio sem perder a serenidade63 – estabelecia-se, portanto, uma problematização mais geral,
que dizia respeito à maneira pela qual o sujeito devia se constituir enquanto sujeito moral no conjunto das
atividades sociais, cívicas e políticas64.
Nesse sentido, o cuidado de si se correlaciona estreitamente com o pensamento e a prática médica,
ligando-se medicina e filosofia em um mesmo campo (Plutarco), relativamente ao conceito de “patos”,
aplicado tanto para as paixões quanto para as doenças físicas, perturbações do corpo e movimentos
involuntários da alma, referindo​-se em todos os casos a um estado de passividade que, para o corpo,
toma a forma de uma afecção que perturba o equilíbrio entre corpo e alma65. Sêneca chegou a incitar seus
discípulos a não se considerarem escolares que buscam conhecimentos, mas como doentes que buscam
cuidar de si mesmos66, de sorte à pessoa tornar-se capaz de abster-se do supérfluo através de uma
soberania sobre si67, propondo inclusive um exame de consciência à noite, antes de dormir, em uma
espécie de encenação judiciária pela qual se comparecesse diante do juiz, instaurando um processo
contra seus próprios costumes e acusar-se ou advogar sua própria causa, tudo no intuito de analisar se as
tarefas e obrigações do dia foram cumpridas a contento68.
Assim, sob a forma de Dietética, a medicina passou a ser concebida não apenas como uma técnica de
intervenção em casos de doenças para empregar remédios e operações, mas também como um corpus de
saber e de regras definidores de uma maneira de viver consigo mesmo, com o próprio corpo, com os
alimentos, com a vigília, com o sono, com as diferentes atividades e com o meio, donde a medicina
passou a ser vista como responsável por propor, sob a forma de um regime, uma estrutura voluntária e
racional de conduta, por entender-se que uma existência racional não poderia desenrolar-se sem uma
prática de saúde (hugieine pragmateia ou techne)69 – o que ensejou o surgimento de críticas sobre a
maneira pela qual os médicos passaram a se apoderar da existência de seus pacientes, para regê-la nos
mínimos detalhes, inclusive na questão dos prazeres sexuais, relativamente à sua natureza, o seu
mecanismo, o seu valor positivo ou negativo para o organismo e ao regime a que conviria submetê-los70.
Note-se, ainda, que este regime era também direcionado à alma racional, que deveria prestar atenção
apenas ao necessário ao corpo [combatendo os excessos], mediante práticas de economia estrita contra o
desregramento, um domínio rigoroso dos desejos, luta contra imagens tentadoras e uma anulação do
prazer como fim das relações sexuais71.
Sobre o tema, há uma ambivalência nos textos médicos dos dois primeiros séculos da era cristã
relativamente aos prazeres sexuais, por apresentarem um entrecruzamento de suas valorações antitéticas:
valorações positivas, vendo no sêmen o que haveria de mais potente na vida e valorizando-se a
procriação como algo indispensável à espécie humana; e valorações negativas, por se entender que,
quando o sêmen se produz, ele seria, intrinsecamente, perigoso, pois o seu desperdício faria escapar toda
a força de vida que o sêmen teria concentrado – o que ensejou um paradoxo dos prazeres sexuais, ante a
alta função que a natureza lhes confiou e o valor da substância que eles teriam de transmitir e, portanto,
perder, de sorte a se fazerem analogias entre o exercício inadequado da sexualidade com determinadas
doenças, especialmente quando o homem tinha uma relação sexual julgada como ensejadora do mero
desperdício do sêmen (Galeno chega a fazer uma analogia entre o ato sexual e a convulsão e chega a
destacar o caráter fatigante do ato sexual para o peito, o pulmão, a cabeça e os nervos, o que parece ter
sido feito para justificar a temperança nos atos sexuais)72. Destaca Foucault que a abstenção sexual não
era considerada como um dever, nem o ato sexual representado como um mal, mas que tais temas
ganharam maior atenção no pensamento médico e filosófico de então73, com recomendações diversas
sobre o momento adequado do ato sexual para a procriação para se obter uma descendência de melhor
qualidade74, sobre a idade do praticante do ato sexual75, o momento adequado76 e até as temperaturas
individuais adequadas77.
Foucault destaca que, diferentemente da futura moral da pastoral cristã, não se tratava de interrogar-
se sobre a origem profunda das ideias que surgem para tentar decifrar um sentido oculto sob a
representação aparente, mas aferir a relação entre si mesmo e o que é representado, a fim de só aceitar na
relação consigo aquilo que pode depender da escolha livre e racional do sujeito, em uma ética do
domínio, como em uma relação jurídica de posse: pertencer a si, ser seu, no sentido de domínio de si
mesmo78 [sem ser escravo daquilo que lhe dá prazer]. Por se destacar cada vez mais a fraqueza do
indivíduo, a moral sexual de então exigia que ele se sujeite a uma certa arte de viver que defina critérios
estéticos e éticos da existência, mediante exercícios de abstinência e de domínio de si, para o indivíduo
atingir a plena soberania sobre si próprio. Cabe notar, contudo, que esta Dietética de abstinência sexual
dava menor atenção às mulheres, por serem elas consideradas como social e fisiologicamente destinadas
ao casamento e à procriação79.

2.2 As instituições religiosas e o início da pregação homofóbica


A partir de alguns séculos anteriores a Cristo, história e religião passaram a se entrelaçar (o que
perdurou até o final do século XIX), dada a inegável influência das religiões na vida humana, em
especial as crenças judaica e cristã no que tange ao mundo ocidental.
Quanto à crença judaica, que ensejou a compilação de textos que originaram o Antigo Testamento
bíblico, as instituições da época anterior a Cristo já manifestavam uma certa condenação ao que se
entendia por homossexualidade, mas isto precisa ser contextualizado para ser corretamente
compreendido.
Os judeus, que se consideram o povo escolhido por Deus, sempre tiveram um forte sentimento de
identidade cultural, no sentido de lutar ao máximo pela manutenção de seus usos e costumes e pela
repulsa àqueles outros povos. Aquele modelo de pederastia institucionalizada, comum entre os mais
diversos povos do mundo antigo, não fazia parte da tradição judaica, donde, em decorrência daquele
sentimento de promoção de sua identidade, rechaçavam qualquer tipo de amor masculino (assim como
entre mulheres, embora o amor feminino em geral não fosse levado a sério no mundo antigo).
Uma questão relacionada a isso é o fato de os judeus (assim como os cristãos posteriormente) terem
passado a se opor contra a libertinagem sexual do período – afinal, como os homens tinham, até aquele
momento, liberdade absoluta para manterem relações sexuais fora do casamento (fosse com meninos,
fosse homens mais velhos ou mulheres, com as peculiaridades culturais de cada povo), houve certamente
uma banalização das relações sexuais, o que notoriamente é rechaçado pela religião judaica (assim como
pela cristã). Isso fez com que fosse criada a concepção de que somente seria admitida a relação sexual
realizada dentro do casamento para fins exclusivamente procriativos, sendo as uniões extramatrimoniais
(mesmo as estáveis) vistas como depravação dos indivíduos contra a moralidade que começava a surgir.
Ou seja, qualquer ato sexual praticado fora do casamento e, ainda que nele, sem o intuito da procriação,
passou a ser condenado por essas religiões, fosse esse ato homo ou heteroafetivo – condenava-se a
libertinagem, mas não determinado tipo de amor, sendo que se considerava como libertina qualquer
atividade sexual que não visasse unicamente à procriação. Assim, no que tange à classificação judaica, o
ato sexual realizado fora do casamento, fosse ou não libertino, passou a ser visto como uma “impureza”,
que por isso deveria ser combatida.
Já quanto à condenação do amor entre pessoas do mesmo sexo, o que os homofóbicos já pregavam
na época (e ainda hoje pregam) é que essa postura decorreria da condenação da homoafetividade per si,
ou seja, afirmavam que a religião judaica seria contra o amor entre pessoas do mesmo sexo. Contudo,
essa concepção é equivocada, uma vez que a condenação original, como demonstrado, era contra a
libertinagem, que podia ser tanto hétero ou homossexual. Mas, em decorrência da pregação no sentido de
que a relação sexual só podia ser tida dentro do casamento, e considerando que já naquela época não era
reconhecido o direito ao matrimônio entre pessoas do mesmo sexo na maioria dos povos (embora alguns
o celebrassem), alguns religiosos passaram a afirmar que a homossexualidade seria contrária à vontade
de Deus, em uma absurda distorção dos textos bíblicos quando levado em conta o seu sentido histórico-
crítico (ou seja, quando analisado o contexto em que foram escritos, tema este trabalhado no próximo
capítulo).
É nesse sentido que devem ser lidos os textos bíblicos que são comumente usados na condenação à
homossexualidade. Mesmo a notória abominação80 do Levítico deve ser assim entendida: apesar da
literalidade do texto, a sua compreensão histórico-crítica81 demonstra claramente que o que se condena
ali é, como exposto, a libertinagem sexual, tida como uma “impureza” e assim entendida como todo ato
sexual realizado fora do casamento, nada mais. A abominação ali tratada é a da traição da identidade
judaica, e não uma condenação à homoafetividade isoladamente considerada.
Com o advento da religião cristã, que teve uma inequívoca influência da religião judaica, muitos dos
preceitos dessa crença foram tomados como paradigma para o desenvolvimento da fé de Cristo. Os
apóstolos tinham como base muitas das determinações do “Código Sagrado do Levítico”, repetindo,
assim, a maioria de suas disposições e, consequentemente, de suas condenações. Nesse sentido, a
Epístola de Paulo aos Romanos82, também comumente usada pelos homofóbicos para difundirem o
preconceito contra homossexuais, supõe o conhecimento das regras do Levítico, donde a condenação ali
existente tem o mesmo conteúdo daquela do Antigo Testamento. Quando Paulo fala da suposta “luxúria”
do amor entre mulheres e do fato de entender ser “inconcebível” o amor entre homens, está imbuído da
crença de que a homoafetividade não poderia ser baseada no sentimento sublime do amor, mas sim na
mera paixão carnal libertina, em um claro equívoco ensejado pelos preconceitos da época. Contudo, hoje
é inquestionável racionalmente o fato de que o amor existente entre pessoas do mesmo sexo é o mesmo
que existe entre pessoas de sexos diversos, donde se percebe claramente o equívoco da posição de Paulo
e de todos os religiosos que pregavam (e ainda hoje pregam) no sentido de uma suposta imoralidade da
homoafetividade.
As considerações até aqui expostas neste tópico visam contextualizar o leitor com as pregações que,
timidamente, começaram a ganhar força ao longo dos séculos até que se chegasse à postura altamente
preconceituosa e discriminatória de instituições religiosas como a Igreja Católica Apostólica Romana
contra a homoafetividade nos dias de hoje. Contudo, como se pode imaginar, para sociedades que tinham
uma cultura consolidada no modelo da pederastia institucionalizada (para a “masculinização” dos
adolescentes) e que não viam no amor homoafetivo per si algo condenável (o que ocorria apenas com a
sexualidade passiva dos homens, por tida como típica das mulheres), aquelas colocações homofóbicas
foram, inicialmente, ignoradas. Afinal, não é da noite para o dia que se muda a mentalidade das pessoas,
que na época não viam nada de extraordinário na homoafetividade.
Mesmo a Epístola de Paulo aos Romanos não foi, a princípio, levada a sério pelo povo destinatário,
ignorando, por óbvio, aqueles que já tinham preconceito contra a homoafetividade. O que ocorreu, em
verdade, foi uma gradativa mudança do pensamento social em decorrência da repetição, por séculos, da
pregação homofóbica. Afinal, se é difícil mudar o pensamento de pessoas adultas, já contextualizadas em
determinada cultura, é inversamente proporcional a facilidade no convencimento de pessoas que crescem
ouvindo a mesma pregação, especialmente considerando que isso foi feito ao longo de séculos, ou seja,
através de várias gerações.
Por outro lado, outra questão importantíssima é a atinente à condenação do ato sexual estéril, outra
das fortes causas ensejadoras da pregação contrária à homoafetividade, ante a lógica de que a relação de
amor homoafetiva não tem como gerar filhos biológicos. Isso porque era visto como “impuro” todo ato
sexual realizado fora do casamento e sem finalidade reprodutiva83.
A contínua pregação religiosa no sentido de que o Messias voltaria à Terra a qualquer momento e
que somente aqueles tidos como “bons” iriam para o reino de Deus fez que os cristãos em geral
passassem a obter valiosos aliados, temerosos de não conseguirem chegar ao Paraíso: os
reis/imperadores. Isso fez que diversos monarcas, quando convertidos, passassem a editar leis contrárias
às práticas homoafetivas, sob a deturpada interpretação bíblica que as condenava.
Com o passar do tempo, houve um significativo aumento da legislação que criminalizava a
homoafetividade, mas, como dito, a condenação inicial (mesmo legislativa) não incomodou efetivamente
àqueles que amavam pessoas do mesmo sexo. Contudo, embora não tenham conseguido impedir a
existência de homossexuais (afinal, sexualidade independe de “opção”, conforme explicitado no próximo
capítulo), com o passar do tempo, as leis contrárias à homossexualidade levaram os homossexuais à
clandestinidade, no sentido de que a intimidade homoafetiva passou a ser mascarada (para se evitar a
punição estatal), embora fosse continuamente praticada84-85. Contudo, em decorrência da legislação
homofóbica, houve um aumento da violência dos Estados Cristãos contra a homossexualidade. Nesse
sentido, é esclarecedora a história de dois bispos que foram condenados à morte pelo Imperador Romano
Constantino no ano de 521 d.C.:

O processo desses criminosos foi feito da maneira mais irregular possível, desde a pena
imposta, quando não havia acusador, com a prevalência da palavra de um único homem ou rapaz,
mesmo sendo ele um escravo forçado a fornecer a prova, contra a sua vontade, contra seu senhor, e
ela foi aceita como prova. Os homens assim condenados foram castrados e expostos à execração
pública [Procópio, A história secreta].
Uma morte dolorosa lhes foi imposta, pela amputação do instrumento de pecado e pela
inserção de finos palitos nos poros e tubos da mais fina sensibilidade. E Justiniano defendeu a
justiça da execução, uma vez que criminosos deveriam perder as mãos, tendo eles sido condenados
por sacrilégio. Nesse estado de desgraça e agonia, os dois bispos (...) foram arrastados pelas ruas
de Constantinopla, enquanto seus irmãos eram advertidos aos gritos para que observassem a terrível
lição e não poluíssem a santidade de seu caráter. Talvez os prelados fossem inocentes. Uma
sentença de morte e infâmia era muitas vezes fundamentada com a mais leve e suspeita afirmação
de uma criança ou de um servo (...) e a pederastia se tornou o crime daqueles a quem não se
podia imputar nenhum crime [Gibbons]86.

Como se percebe, os imperadores cristãos homofóbicos da época queriam a todo custo aplicar
penas bárbaras contra aqueles que afrontavam seus conceitos de certo e errado, usando tais casos como
“exemplos” para que outros não tomassem atitudes similares. A descrição de Procópio demonstra,
inclusive, como ignoravam os próprios conceitos de sua época para conseguir “fundamentos” para tais
condenações: ora, a condenação dos bispos em questão com base na palavra de um escravo, que não era
sujeito de direitos e cuja palavra não tinha nenhuma valia para a sociedade de então, escravo este que
ainda por cima depôs contra a sua vontade, demonstra que o que se pretendia era a difusão do
preconceito contra o amor entre pessoas do mesmo sexo a qualquer custo, e não a obtenção da Justiça
(vê-se, inclusive, como nossos conceitos atuais de ampla defesa, contraditório e, em suma, devido
processo legal realmente não eram respeitados na época).
Por outro lado, outro dos principais motivos históricos para a condenação da homossexualidade foi
a baixa expectativa de vida da população do então mundo conhecido (Europa Ocidental) durante a
ascensão da fé cristã. Em Roma, isso se caracterizou pelo constante estado beligerante de seu Império, o
que causava muitas mortes, donde “cada mulher precisava gerar cinco filhos, em média”87 para se manter
a estabilidade da população romana. Isso, aliado à peste bubônica, que dizimou aproximadamente um
terço da população europeia da época, tornaram a heterossexualidade, acima de tudo, necessária. Assim,
por mais que a deturpação das religiões já estivesse em curso anteriormente, este motivo certamente foi
determinante na edição de leis homofóbicas por parte de Justiniano (um dos imperadores que mais se
opuseram ao amor homoafetivo). Faz sentido, assim, que Justiniano tenha baixado duas leis anti-
homossexuais, uma antes e outra depois de ter havido, no ano de 542, uma epidemia de peste bubônica88.
Diante dessa contínua pregação homofóbica ao longo dos séculos, a população que cresceu ouvindo-
a passou, gradativamente, a superar a cultura da pederastia institucionalizada e da aceitação do amor por
pessoas do mesmo sexo como algo tão normal quanto o amor por pessoas de sexo diverso, o que deu
início ao desenvolvimento do atual quadro de preconceito social contra homossexuais. Esse foi o
contexto que originou a futura criação dos Estados Homofóbicos, ou seja, aqueles que efetivamente
institucionalizaram legislações que criminalizavam o comportamento homoafetivo e embutiram no
pensamento de suas sociedades a errônea ideia de que a homossexualidade seria um “pecado”, algo
“errado”, e assim por diante. Tratar-se-á, agora, da consolidação desses Estados.

2.3 A Idade Média e o nascimento do estado homofóbico


Por tudo o que se demonstrou até aqui, fica claro que a sociedade antiga tinha como regra
culturalmente imposta uma pseudobissexualidade masculina, pela qual durante a adolescência o homem
deveria prestar favores sexuais no papel passivo e, atingida a maturidade, deveria assumir o papel ativo,
quando serviria como tutor de um rapaz, assim como aquele homem mais velho havia feito com ele. No
entanto, após séculos de pregação religiosa condenando o amor entre pessoas do mesmo sexo, a
mentalidade social começou a se consolidar no sentido de uma moral homofóbica. Na verdade, como a
Igreja Católica Apostólica Romana só vê o ato sexual realizado dentro do casamento e com o único
intuito da procriação como moralmente aceitável, passou a condenar toda e qualquer prática sexual que
não se enquadrasse nesse conceito – apesar de sempre ter sido mais tolerante em suas condenações
quando o ato em discussão era realizado entre um homem e uma mulher.
Esse novo pensamento social consolidado na Idade Média, em vez de expurgar a expressão do amor
entre pessoas do mesmo sexo, acabou, como dito, fazendo que ele fosse realizado às escondidas. Em
verdade, o mesmo modelo pseudobissexual continuou a existir, só que agora tinha que ser disfarçado,
feito com discrição, para que não fossem os homens em questão punidos criminalmente pelo Estado, cada
vez mais influenciado pelas religiões. Contudo, a condenação homofóbica continuou cada vez com mais
força89. A suposta ligação entre a homossexualidade e a feitiçaria e o demonismo fez que os
heterossexuais em geral passassem a ter cada vez menos tolerância contra aqueles que amavam pessoas
do mesmo sexo. Essas afirmações ganharam força considerável entre os anos de 1348-1350, nos quais a
Peste Negra devastou a Europa, dizimando aproximadamente um terço da população. Isso porque os
chefes de Estado da época, influenciados por ministros religiosos, ligaram ditos desastres às condutas
sexuais tidas por imorais (todas aquelas fora do casamento e sem intuito procriativo), aumentando ainda
mais o ódio contra os homossexuais. A Europa precisava ser repovoada, e como os legisladores da
época viam na homoafetividade uma ameaça a esse objetivo, passaram a editar cada vez mais leis com o
intuito de puni-la90.
Em outras palavras, com a Idade Média o preconceito contra qualquer ato sexual que não fosse
aquele praticado dentro do casamento, na posição mais ortodoxa e com a finalidade exclusiva da
procriação, aumentou em grandes proporções, pois a sociedade humana já estava começando a ficar
“doutrinada” pelos dogmas arbitrários e preconceituosos da Igreja Católica Apostólica Romana contra
tudo aquilo que não julgava correto.
Por oportuno, cite-se que os costumes sociais das tribos indígenas das Américas e dos povos
asiáticos baseavam-se na mesma estrutura pseudobissexual do mundo antigo, sem grandes variações.
Relatos demonstram que os espanhóis ficaram horrorizados com a naturalidade com que o amor entre
homens era encarado no Novo Mundo, reação esta idêntica à dos jesuítas que ali e à Ásia (Japão e
China) foram. É interessante notar como o mundo inteiro, em maior ou menor grau, tinha a prática da
pederastia institucionalizada como necessária ao desenvolvimento da masculinidade dos adolescentes.
A moral condenatória da homoafetividade veio apenas após a Antiguidade Clássica europeia, com
fortíssima influência das instituições religiosas, no que se estendeu ao “Novo Mundo”, “descoberto”
apenas após a consolidação da homofobia estatal.

2.4 Os humanistas, os puritanos, os capitalistas e os iluministas: visões distintas, preconceito


idêntico
Com o advento da visão humanista, oriunda da Itália do século XV, os valores da Grécia Clássica
foram redescobertos. A cultura grega foi revigorada, donde a antiga visão do mundo clássico no que
tange à sexualidade voltou a ter fortes defensores entre os filósofos, que pregavam abertamente pela
validade do amor masculino. Isso fez que esses não só ignorassem como também ridicularizassem as leis
e os conceitos demonistas relativos ao amor homoafetivo91.
Novamente, era o amor entre homens mais velhos e adolescentes aquele vangloriado pelos filósofos
humanistas. O que assustava a sociedade era o relacionamento entre dois homens de idades similares,
pois a visão do homem mais velho na condição passiva era tida como degradante dos valores morais da
época – como se estivesse abrindo mão de sua masculinidade. Mas note-se um detalhe: o simples fato de
haver condenação e desprezo explícito por homens adultos sexualmente passivos configura prova cabal
da existência da homossexualidade e da homoafetividade no passado, mesmo entre adultos, visto que isso
não seria algo inventado de forma fortuita e apriorística, mas como reação ao que ocorria na realidade
empírica. Contudo, a condenação homofóbica não deixou de crescer nesse período. Apesar de muitos
filósofos passarem a defender o amor entre homens da mesma forma que na Grécia Clássica, a
criminalização da homoafetividade continuou crescendo. Em verdade, as autoridades faziam vista grossa
em muitos casos, só penalizando aqueles que não escondiam seus relacionamentos homoafetivos da
comunidade em geral – especialmente entre as classes mais baixas (a nobreza e o clero contavam, como
sempre, com maior benevolência do Estado).
Isso ganhou ênfase com a visão puritana, oriunda dos movimentos protestantes de reforma religiosa.
Os puritanos, apesar de discordarem da Igreja Católica em muitos aspectos, reforçaram a ideia de que o
ato sexual meramente procriativo realizado dentro do casamento seria a única manifestação válida da
sexualidade humana, de acordo com suposta moralidade divina. Por outro lado, eram ainda mais cruéis
em suas condenações às manifestações afetivas que não seguiam esse dogma.
No século XVII, o modelo econômico capitalista começou a ganhar força, com o estímulo da
competitividade entre os homens, o que passou a inibir qualquer contato mais amistoso, especialmente
amoroso, entre eles. Com isso, passou-se a estimular o desenvolvimento de uma sociedade cada vez mais
consumista (como ainda hoje se faz), o que fez que o amor homoafetivo fosse visto como um entrave ao
consumismo desejado pelas elites de então. Isso se explica pelo fato de que a família heteroafetiva tinha
uma potencialidade consumista maior do que a família homoafetiva, ante a incapacidade desta de gerar
descendentes. Vislumbre​-se uma época em que a adoção praticamente não existia e na qual não existiam
técnicas de inseminação artificial. Assim, além do já consagrado medo de extinção da humanidade se a
homossexualidade fosse aceita (como se heterossexuais fossem simplesmente, em um passe de mágica, se
“transformar” em homossexuais ou então deixar de existir pela simples regulamentação do
relacionamento homoafetivo...), passou-se a considerar o amor entre iguais92 inconveniente, pelo fato de
não gerar futuros consumidores e nem mesmo ensejar o consumo dos produtos voltados ao público
infantil93. Esse tipo de visão fez que os Estados passassem a estimular o comportamento heterossexual a
todo custo, mesmo que o preço disso fosse ignorar outros comportamentos também condenados, como a
prostituição. Como os homens só se casavam aproximadamente aos 30 anos, e considerando que, em tese,
o ato sexual só podia ocorrer dentro do casamento, temia-se que eles pudessem utilizar-se de homens
prostitutos para satisfazerem seus desejos sexuais. Assim, com o intuito de evitar o temido “crescimento
da homossexualidade”, condenava-se a prostituição masculina e estimulava-se a feminina. As meretrizes
eram então uma válvula de escape necessária à sociedade94, inobstante a clara hipocrisia dessa situação,
considerando que a prostituição também era tida como um pecado severamente condenável.
Mesmo a visão iluminista, que via na liberdade sexual uma forma de atingir o progresso, a ordem e a
felicidade, condenou com veemência o amor homoafetivo. Por mais contraditório que isso possa parecer,
continuava-se condenando a sexualidade homoafetiva como algo contrário à moral, mesmo sem serem
trazidos novos argumentos para isso. Ao que parece, partiu-se do pressuposto de que seria ela “errada”
pelo simples fato de dita condenação já estar historicamente consagrada, como se a institucionalização
do preconceito tivesse o condão de torná-lo jurídica e eticamente válido. Contudo, é provável que a
visão iluminista não tenha ajudado no aumento da tolerância à homoafetividade devido ao fato de ter tido
sua maior ênfase no século XVIII, período no qual se passou a acreditar que o vigor masculino, tido
como necessário à acumulação de riqueza, estaria inerentemente ligado à quantidade de sêmen que o
homem tivesse dentro de si. Ou seja: acreditava-se que os homens tinham apenas uma limitada quantidade
de sêmen em seu corpo. Assim, não é à toa que esse período da história fez que a sexualidade não
heterossexual passasse a ser ainda mais condenada, pois se entendia que ela “gastava” a semente da vida
de forma inútil, ou seja, não procriativa.

2.5 O século XIX e a patologização da homossexualidade


Com a evolução do pensamento humano, passou-se a valorizar a racionalidade em detrimento da
religiosidade no que tange à explicação dos fenômenos humanos e naturais. Deixou-se, gradativamente,
de acreditar nos dogmas religiosos para buscar uma explicação científica, racional para as questões da
vida humana. Isso levou a que, a partir do século XIX, ganhasse força a posição de que a
homossexualidade não deveria ser vista como um pecado contra Deus, mas como uma doença a ser
tratada. Dessa forma, pouco a pouco, a classe médica foi desenvolvendo teorias para tentar enquadrar a
homossexualidade como uma “patologia”. As pessoas, simplesmente, passaram a aceitar essa visão, em
virtude de ser a heterossexualidade a expressão sexual mais comum nas sociedades humanas.
Todavia, é interessante notar que nunca houve uma comprovação acerca do que enquadraria a
homossexualidade como uma “doença” ou algo do gênero – nunca se provou que uma pessoa teria sua
saúde prejudicada pelo simples fato de ser homossexual. Muito embora tenham existido (e ainda existam)
aqueles que defendiam que as pessoas homossexuais seriam mais retraídas, propensas à depressão e
inibidas do que as heterossexuais (o que não pode ser generalizado, visto existirem muitos homossexuais
que não se enquadram nisso), essas características não são inerentes à homossexualidade. Afinal, muitos
heterossexuais também são retraídos, depressivos e inibidos, e ninguém atribui tais sintomas à sua
heterossexualidade. Em verdade, o que ocorre é que o alto grau de preconceito homofóbico faz que os
homossexuais, em geral, sintam a necessidade de se retrair (ainda que não durante toda a sua vida), de
esconder sua verdadeira sexualidade para não sofrerem agressões físicas e psicológicas que o machismo
heterossexista, vigente no mundo atual, impõe cotidianamente ao cidadão homossexual. Isso acaba
levando à depressão e à inibição, pois ditas pessoas têm que esconder sua verdadeira identidade por
meio da criação de um “personagem” heterossexual, para que este viva a vida em seu lugar.
Imagine o leitor um menino que cresce sabendo que gosta de meninos e não de meninas, ao contrário
do que todos esperam. Quando adolescente, tendo maior compreensão do que significa seu sentimento
por outros meninos, passa a se retrair, policiando-se ao máximo para que suas atitudes não deem a
entender que é homossexual. Isso tudo apenas para que não seja discriminado por seus colegas de escola
e, muitas vezes, por sua própria família. O mesmo vale para meninas. É evidente que uma pessoa que
imponha a si própria tamanha restrição acaba se sentindo isolada, sozinha, e se torne, por vezes, retraída,
depressiva e/ou inibida. Mas é igualmente óbvio que nenhum desses sintomas tem algo que ver com a
sexualidade da pessoa: o homossexual poderá, eventualmente, desenvolvê-los em consequência do forte
preconceito homofóbico vigente na sociedade humana, não em razão de sua homossexualidade.
De qualquer forma, voltando ao tema deste subtópico, foi no século XIX, aliás, que foi criada a
palavra “homossexual” pelo médico Karoly Maria Benkert. O termo surgiu de uma carta escrita por ele
ao Ministério da Justiça da Alemanha do Norte em defesa dos homens homossexuais que estavam sendo
perseguidos por questões políticas95. Entendia o referido médico que não deveriam os homossexuais ser
perseguidos criminalmente, mas sim “curados” de sua condição homossexual.
A posição de Freud, que em muito influenciou nas concepções sobre a homossexualidade, é confusa
em decorrência de uma contradição entre o início e o final de sua obra. A princípio, através de seu
consagrado “complexo de Édipo”, Freud classificou o amor por pessoas do mesmo sexo como uma
desordem no desenvolvimento da sexualidade humana, no sentido de que a ausência paterna durante a
infância e a violência repressiva do pai ensejariam, respectivamente, as homossexualidades masculina e
feminina. Disso se vê de onde surgiu a ideia de que todo ser humano nasceria bissexual e com o tempo
teria sua sexualidade definida (ainda que permanecesse bissexual), sendo socialmente aceita apenas a
variação heterossexual. A aparente contradição apontada na visão de Freud decorre, por outro lado, da
notória “Carta a uma mãe americana”, na qual expressou uma atitude positiva e não patológica sobre a
homoafetividade96.
Mas, de qualquer forma, apesar de alguns poucos médicos terem seguido esse exemplo e
defenderem, assim, que o amor por pessoas do mesmo sexo não deveria ser criminalizado, a classe
médica em geral difundiu a ideia da homossexualidade como “degeneração”, por vislumbrarem nela um
suposto conteúdo patológico, o que aumentou a concepção social condenatória do comportamento
homoafetivo. Posicionamentos esdrúxulos, como o de que a masturbação levaria à homossexualidade e
de que uma pessoa homossexual jamais poderia alcançar a felicidade (pois era tida como “perturbada”),
entre outras, ajudaram a aumentar esse estigma. Em decorrência dessa visão patológica, temia-se que a
homossexualidade pudesse se “espalhar” pela sociedade se não fosse fortemente reprimida, o que
igualmente contribuiu para o aumento da homofobia.
Sempre que existia uma crise em determinada nação, a culpa era colocada exclusivamente naqueles
que não se enquadravam no conceito predominante da sociedade. Criou-se uma moralidade esquizoide,
pela qual os parlamentares e estadistas em geral passaram a afirmar que os valores da sociedade estavam
sendo degenerados por uma série de condutas tidas como inaceitáveis (entre elas a homossexualidade),
aumentando assim a perseguição aos ditos “transgressores” – em geral homossexuais e mulheres (o
movimento feminista começava a engatinhar)97.
Isso fez com que tratamentos desumanos fossem abertamente impostos a homossexuais, sem nenhuma
punição estatal. Terapias com choques convulsivos, lobotomia e terapias por aversão98 foram largamente
utilizadas e ninguém na sociedade a elas se opunha: queriam, a todo custo, descobrir uma forma de
reverter a homossexualidade. Obviamente não conseguiram – pois não se cura algo que não é patológico.

2.5.1 Foucault e a história da sexualidade após o século XVIII


Foucault inicia o volume I de sua história da sexualidade dizendo que, em geral, acredita-se que até
o início do século XVIII vigoraria ainda uma certa franqueza acerca da sexualidade, momento no qual a
família conjugal teria confiscado o tema da sexualidade e, em torno do sexo, se calado, em um modelo
conjugal imposto pela lei, que reconhecia o quarto dos pais como o único lugar de sexualidade
reconhecida, caracterizando um tríplice decreto de interdição, inexistência e mutismo acerca da
sexualidade em geral, entendendo-se a repressão como o modo fundamental de ligação entre poder, saber
e sexualidade99. Contudo, Foucault entende que a sociedade trata com muita hipocrisia deste tema, pois
ela fala prolixamente de seu próprio silêncio, obstinando-se a detalhar o que não se diz, considerando
como ponto essencial formular interdições e permissões à sexualidade, mas levar em consideração o fato
de se falar de sexo, quem fala, os lugares e os pontos de vista de que se fala, as instituições que incitam a
fazê-lo, que armazenam e difundem o que dele se diz, de que maneira o poder penetra e controla o prazer
cotidiano100.
Foucault considera que, ao contrário do que se pensa, a partir do século XVII, em torno e a propósito
do sexo ocorreu uma verdadeira explosão discursiva – afirma que talvez tenha havido uma depuração
bastante rigorosa do vocabulário autorizado, com novas regras de decência que filtraram as palavras
(uma polícia dos enunciados), estabelecendo regiões de silêncio absoluto ou de discrição, mas, em
compensação, houve uma multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do
poder, mediante uma incitação institucional a falar dele cada vez mais, ante a obstinação das instâncias
do poder a ouvir falar e fazê-lo falar ele próprio sob a forma da articulação explícita e detalhada101.
No século XVIII, Foucault afirma que nasce uma incitação política, econômica e técnica para se falar
sobre o sexo em público, mas não somente por um discurso moral, mas um discurso racional, falando do
sexo não apenas como algo a se condenar ou tolerar, mas algo a se gerir, inserir em sistemas de utilidade
e a se regular para o bem de todos102. Embora conceda que seja verdade que desapareceu a liberdade de
linguagem entre crianças e adultos ou alunos e professores sobre o tema, isso não significa puro e
simples silenciar – não se fala menos do sexo, fala-se dele de outra maneira103; são outras pessoas que
falam, a partir de outros pontos de vista e buscando outros efeitos – falando-se da maneira mais prolixa
possível, em termos prescritivos, acerca da sexualidade das crianças104 e da sexualidade em geral105.
Nesse sentido, destaca que a lei matrimonial era saturada de prescrições, sobrecarregando o sexo
dos cônjuges de regras e recomendações, sendo que a explosão discursiva dos séculos XVIII e XIX gerou
um movimento centrífugo em direção à monogamia heterossexual, garantindo-se ao casal legítimo [que
nela se enquadra] um direito à maior discrição, ao passo em que se passou a interrogar com maior
atenção a sexualidade daqueles que não se enquadravam nesta norma, a saber, a sexualidade das
crianças, dos loucos, dos criminosos e em relação ao prazer dos que não amam o outro sexo, pessoas
estas que, sem serem menos condenadas, passaram a ser escutadas para que assim fosse possível melhor
regular a sexualidade legítima106.
Ademais, destaca Foucault que a ciência passou a ser utilizada para justificar estes discursos do
sexo supostamente a partir de seu ponto de vista purificado e neutro, mas aponta que era uma ciência
essencialmente subordinada aos imperativos de uma moral, cujas classificações reiterou sob a forma de
normas médicas107, provocando medos a pretexto de dizer a verdade108. Em contraposição a uma arte
erótica (ars erotica), que extrai a verdade do próprio prazer, desenvolveu-se entre nós uma ciência
sexual (scientia sexualis), que estabelece procedimentos que se ordenam, essencialmente, em função de
uma forma de poder-saber destinada a obter a [suposta] verdade sobre o sexo109, a saber, a confissão
(total, meticulosa e constante), que se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização do
poder110 e passou a ser, no Ocidente, uma das técnicas mais altamente valorizadas para produzir a
verdade – fosse ela produzida espontaneamente ou de forma forçada, pela tortura, visto que a sexualidade
foi definida como algo obscuro ao próprio sujeito, donde este deveria revelá-la para que ela fosse
devidamente interpretada por aquele que ouve a confissão111, especialmente por força da medicalização
e, portanto, da patologização da sexualidade, que demandaria intervenções terapêuticas ou de
normalizações dentro deste campo de significações a decifrar112.

2.6 O século XX: o Relatório Kinsey e a atual visão da ciência médica sobre a homossexualidade
Até meados do século XX, não houve significativa evolução no entendimento sobre a
homossexualidade. Tragicamente, isso fez que milhares de homossexuais fossem assassinados nos
campos de concentração nazistas (ao lado de judeus e ciganos).
O grande marco deste século foi, certamente, o famoso Relatório Kinsey, de 1945. Nele, Alfred
Kinsey, em uma pesquisa inédita, estudou o comportamento sexual do macho humano (em seguida, fez
um estudo similar voltado às mulheres), onde classificou o homem como “heterossexual exclusivo”,
“incidentalmente homossexual”, “mais do que incidentalmente homossexual”, “igualmente hétero ou
homossexual”, “mais do que incidentalmente heterossexual”, “incidentalmente heterossexual” e
“homossexual exclusivo” (além de “indiferente sexualmente”)113.
A crítica que se pode fazer ao Relatório Kinsey é com relação ao método por ele utilizado para
classificar as pessoas. Isso porque Kinsey baseou-se no ato sexual, e não no desejo sexual, para
classificar as pessoas em homo, hétero ou bissexuais. Afinal, para que uma pessoa possa ser classificada
como homossexual, deve se sentir genuinamente atraída amorosa e sexualmente por pessoas do mesmo
sexo – por outro lado, o mero ato sexual não supõe esse desejo genuíno. Kinsey, ao revés, considerou que
o simples fato de a pessoa ter tido uma relação sexual isolada com alguém do mesmo sexo, ainda que
fosse a única em sua vida, a classificava como “incidentalmente homossexual” (ou seja, como bissexual).
Mas, inobstante esta crítica, o Relatório Kinsey foi importantíssimo na medida em que foi o primeiro
estudo científico que não se deixou influenciar por preconceitos: para aquilo a que se destinou, que era
saber que tipos de atos sexuais realizavam as pessoas (o que é diverso de um estudo sobre a sexualidade
humana, que seria mais abrangente), o Relatório Kinsey ajudou a mostrar ao mundo que a
homossexualidade efetivamente existe.
Em 1969, os tumultos de Stonewall, marcados por diversos conflitos entre a polícia estadunidense e
homossexuais, tiveram grande destaque na mídia. Em determinada noite, policiais invadiram o bar
“Stonewall Inn” alegando que este estaria cometendo infração da legislação sobre a venda de bebidas
alcoólicas – dita “infração” decorria do fato de que as leis estadunidenses da época proibiam sua venda
em estabelecimentos direcionados ao público homossexual, o que estava, somente naquela época,
começando a ser declarado inconstitucional pelo Judiciário dos Estados Unidos. Assim, os policiais
tentaram prender uma série de homossexuais e travestis que estavam no local (pelo simples fato de não
serem heterossexuais), o que ensejou uma revolta sem precedentes, na qual os travestis e os
homossexuais presentes passaram a contra-atacar a polícia com aquilo que tinham em mãos. Esses
conflitos, que se estenderam por dias, ficaram conhecidos como os tumultos de Stonewall, tendo sido
eles que inspiraram a criação da Parada do Orgulho Gay114 nos Estados Unidos e no mundo (pois ditos
conflitos terminaram com uma passeata de protesto contra a política homofóbica) – atualmente melhor
denominada como Parada do Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros).
Em 1974, a Associação Americana de Psiquiatria afirmou que a homossexualidade per si não é uma
perturbação mental. Em 1993, a Organização Mundial de Saúde fez o mesmo, excluindo-a de sua
Classificação Internacional de Doenças (CID 10/1993). No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia, em
1999, foi ainda mais preciso, afirmando não ser ela uma doença, um desvio psicológico nem uma
perversão (Resolução 01/1999), precedido que foi pelo Conselho Federal de Medicina, que o fez em
1985.
Como se vê, foi apenas no final do século XX que a ciência médica mundial deixou de ver na
homossexualidade uma patologia. Nesse sentido, se não é uma doença, é ela tão normal quanto a
heterossexualidade, ou, com muito mais razão, sendo os homossexuais pessoas tão dignas quanto os
heterossexuais, merecem eles o mesmo tratamento que os heterossexuais, por força dos princípios da
igualdade e da dignidade da pessoa humana, explicitados oportunamente neste trabalho.

2.7 A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade


O comportamento homossexual já existia no Brasil desde antes da colonização portuguesa. Isso
restou constatado já pelos colonizadores de 1500, que se depararam com recorrentes relacionamentos
homossexuais (masculinos e femininos) entre os índios brasileiros – tupinambás, tupinaés, guaicurus,
guaicurus-caduveos, botocudos, bororos, coerunas, ianomâmis, tapirapés, kadiwéus e kraôs115. Muito
embora se possa dizer que em regra seguia-se a citada pederastia institucionalizada supradescrita, havia
a existência de casais homoafetivos adultos, assumindo o sexualmente passivo as funções tidas como
femininas (por vezes se travestindo), sendo totalmente aceitos pelos demais membros da tribo.
Os cristãos consideravam a homossexualidade dos índios como decorrência da “frouxidão de
costumes”, atribuindo-a às crenças pagãs destes, o que fez que os portugueses identificassem os nativos
brasileiros com a prática homossexual116. Note-se a verdadeira arrogância dos colonizadores cristãos,
que se davam ao direito de julgar negativamente os costumes alheios pelo simples fato de serem diversos
dos seus.
Em síntese, pode-se dizer que a sexualidade dos nativos brasileiros seguia o que ocorria na
Antiguidade Clássica europeia, com algumas variantes de tribos para tribos, conforme seus costumes e
suas lendas. Foi, também aqui, somente com a chegada da moral judaico-cristã117 que se começou a
perseguição à prática homossexual no Brasil, que passou a trazer punições desumanas e praticamente
sádicas aos homossexuais118.
Tamanha era a histeria visando combater a homossexualidade, que se chegou ao absurdo de adulterar
sonetos de Michelangelo, com o intuito de censurar sua homossexualidade119. As leis da época eram
implacáveis contra a homossexualidade, como se percebe pelas penas de fogueira, confisco de bens e
infâmia previstas nas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas – esta última diretamente aplicável
no Brasil até o Código Civil de 1916, donde, se nosso país não era oficialmente teocrático, era no
mínimo confessional (tinha a religião católica como oficial).
Nesse sentido, vale transcrever uma chocante sentença proferida pelo autointitulado “Santo” Ofício
da Inquisição:

Decide o Visitador do Santo Ofício que vistos os Autos, declarações das testemunhas e a
confissão que fez depois de preso o sodomita Salvador Romeiro, (...) o qual confessou que já foi
preso na Ilha de São Tomé e mandado para Portugal preso onde andou remando nas galés por fazer
as torpezas de pecado de molície (masturbação) e, outrossim, mostra-se que depois disso o réu fez e
efetivou por muitas e diversas vezes o horrendo e nefando crime de sodomia, sendo umas vezes
agente e outras vezes paciente, com pouco temor de Deus e esquecido da salvação de sua alma. E,
outrossim, mostra-se o réu muito notado e infamado de sodomítico e cometedor de tais torpezas,
no qual caso as leis e Ordenações do Reino mandam que qualquer modo que o fizesse, seja
queimado e feito por fogo em pó, para que de seu corpo e sepultura nunca mais haja memória e
todos os seus bens sejam confiscados pela Coroa Real posto que descendentes ou ascendentes, e
que seus filhos e descendentes fiquem ináveis e infames como os daqueles que cometem o crime
de lesa-majestade. Vendo, porém, como réu de misericórdia, a qual ele pediu confessando sua culpa
depois de preso, com muitas provas de arrependimento, condenam o réu Salvador Romeiro que vá
ao Ato Público descalço, em corpo, com a cabeça descoberta, cingido com uma corda e com uma
vela acesa na mão, e seja açoitado publicamente por esta vila e vá degregado para as galés do
Reino por oito anos, para onde será embarcado na forma ordinária, nas quais servirá os ditos oito
anos ao Reino, remando sem soldo, fazendo penitência de tão horrendas e nefandas culpas, e pague
as custas do processo. Olinda, Capitania de Pernambuco, 4 de agosto de 1594. Heitor Furtado de
Mendonça, Visitador120.

Note-se a crueldade da Igreja Católica para com aqueles que ousavam viver sua vida de forma
diversa daquela estatuída pelos dogmas católicos, donde é no mínimo interessante como tal instituição
(como outras) ignora os postulados cristãos do “Amai-vos uns aos outros”, “Não julgueis e não serás
julgado” e do “Perdoe e serás perdoado”121 – na verdade, lembrando-se deles apenas quando lhe
convém, pois nunca constou da Bíblia nenhuma pena de morte, de trabalhos escravos forçados ou
açoitamento àqueles que tenham uma prática homoafetiva. Respeito ao próximo e à diversidade era
inexistente, como resta comprovado, pois somente eram respeitados aqueles que aderissem cegamente
aos dogmas católicos.
Nesse sentido, valem as longas e pertinentes considerações do Ministro Celso de Mello no
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277:
Se revisitarmos a legislação reinol que Portugal impôs ao Brasil em nosso período colonial, e
analisarmos as punições cominadas no Livro V das Ordenações do Reino, conhecido como “liber
terribilis”, tal o modo compulsivo com que esse estatuto régio prodigalizava a pena de morte,
iremos constatar a maneira cruel (e terrivelmente impiedosa) com que as autoridades da Coroa
perseguiram e reprimiram os homossexuais. É interessante observar que as Ordenações do Reino –
as Ordenações Afonsinas (1446), as Ordenações Manuelinas (1521) e as Ordenações Filipinas
(1603) –, marcadas por evidente hostilidade aos atos de sodomia, também qualificada como
“pecado nefando” (ou, na expressão literal daqueles textos legislativos, como “cousa indigna de se
exprimir com palavras: cousa da qual não se pode fallar sem vergonha”), cominaram sanções
gravíssimas que viabilizavam, até mesmo, a imposição do “supplicium extremum” aos autores
dessas práticas sexuais tidas por “desviantes” (...)122. A atividade persecutória que a Coroa real
portuguesa promoveu contra os homossexuais, em Portugal e em seus domínios ultramarinos,
intensificou-se, ainda mais, com o processo de expansão colonial lusitana, a ponto de el-Rei D.
Sebastião, preocupado com as relações homossexuais entre portugueses e os povos por estes
conquistados, haver editado a Lei sobre o Pecado de Sodomia, como assinala o ilustre Antropólogo
e Professor LUIZ MOTT (“Relações Raciais entre Homossexuais no Brasil Colonial”). Naquela
fase de nosso processo histórico, no entanto, não foram apenas as autoridades seculares que
dispensaram esse duríssimo tratamento aos homossexuais. Também a Igreja, a partir de 1553 (como
informa RONALDO VAINFAS, em sua obra “Confissões da Bahia”), reprimiu-os e puniu-os,
severamente, em nosso País, como se vê dos documentos que registraram a atuação do Santo Ofício
no Brasil, como aqueles que se referem, por exemplo, à Primeira Visitação do Santo Ofício (1591) e
que teve, à sua frente, o Inquisidor Heitor Furtado de Mendonça, consoante relata MINISA
NOGUEIRA NAPOLITANO (“A Sodomia Feminina na Primeira Visitação do Santo Ofício ao
Brasil”): “As punições previstas em tais leis tinham, sobretudo, a finalidade de suscitar o medo,
explicitar a norma e dar o exemplo a todos aqueles que assistissem às sentenças e às penas sofridas
pelos culpados, fossem humilhações perante todo o público, fosse a flagelação do seu corpo ou, até
mesmo, a morte na fogueira, chamada de pena capital. Essas punições possuíam menos o intuito de
punir os culpados do que espalhar o terror, a coerção, o receio. Elas espalhavam um verdadeiro
temor, fazendo com que as pessoas que presenciassem esses espetáculos punitivos examinassem
suas consciências, refletissem acerca de seus delitos. O ritual punitivo era uma cerimônia política
de reativação do poder e da lei do monarca. A sodomia propriamente dita, segundo o livro Quinto
das Ordenações Filipinas, se equiparava ao de lesa-majestade e se estendia tanto aos homens quanto
às mulheres que cometessem o pecado contra a natureza. Todos os culpados seriam queimados e
feitos por fogo em pó, seus bens confiscados para a coroa e seus filhos e netos seriam tidos como
infames e inábeis”. Embora a atuação do Tribunal do Santo Ofício somente tenha ocorrido no final
do século XVI, com a sua Primeira Visitação à Bahia (1591), o fato é que, culminando um processo
de negociações diplomáticas iniciadas, ainda, sob D. Manuel I, o Venturoso, a Inquisição foi
instituída, em Portugal, no reinado de D. João III, pelo Romano Pontífice, Paulo III, que promulgou a
Bula “Cum ad nihil magis”, de 23.05.1536, que restaurou anterior documento pontifício, com igual
denominação e finalidade, editado em 1531, pelo Papa Clemente VII. Esse evento, analisado por
diversos autores (PEDRO CARDIM, “Religião e Ordem Social”, in Revista de História das Ideias,
Coimbra, 2001; FRANCISCO BETHENCOURT, “Os Equilíbrios Sociais do Poder”, in História de
Portugal, organizada por José Matoso, 1993, Lisboa, Estampa, v.g.), refletiu, naquele momento
histórico, a forte influência resultante do Concílio de Trento (1545-1563), cujas deliberações – as
denominadas resoluções tridentinas – exacerbaram, ainda mais, a reação hostil ao comportamento
homossexual, valendo rememorar, por oportuno, o registro feito por VERONICA DE JESUS
GOMES (op. cit.): “Marcado por ‘um entendimento da realeza onde o religioso e o político surgem
lado a lado, chegando mesmo a interpenetrar-se’, o Estado português, ao buscar a ortodoxia
religiosa e moral de seus súditos, criou a Inquisição, uma instituição de caráter híbrido, já que,
mesmo se constituindo como ‘tribunal eclesiástico, não deixa de se afirmar como tribunal régio’.
Ainda no século XVI, o Santo Ofício lusitano, certamente influenciado pelas ideias de reforma
propostas pelo ‘Concílio de Trento’, não se voltou apenas contra os erros de fé, tendo recebido a
incumbência de julgar certos ‘desvios morais’, isto é, pecados/crimes que, até então, estavam sob
jurisdição civil e eclesiástica. As disposições tridentinas demonstraram ojeriza às práticas dos
sodomitas. Ao atentar para os perigos da perda da graça da justificação, que, uma vez recebida,
podia ser despojada não apenas pela infidelidade, através da qual se extinguia a própria fé, mas
também através de qualquer outro pecado mortal, mesmo quando a fé não acabava, as determinações
do concílio lembraram as afirmações do apóstolo Paulo que assinalou a exclusão de efeminados e
sodomitas do reino de Deus”. Vê-se, daí, que a questão da homossexualidade, desde os pródromos
de nossa História, foi inicialmente tratada sob o signo da mais cruel das repressões (LUIZ MOTT,
“Sodomia na Bahia: O amor que não ousava dizer o nome”), experimentando, desde então, em sua
abordagem pelo Poder Público, tratamentos normativos que jamais se despojaram da eiva do
preconceito e da discriminação, como resulta claro da punição (pena de prisão) imposta, ainda hoje,
por legislação especial, que tipifica, como crime militar, a prática de relações homossexuais no
âmbito das organizações castrenses (CPM, art. 235), o que tem levado alguns autores (MARIANA
BARROS BARREIRAS, “Onde está a Igualdade? Pederastia no CPM”, Boletim IBCCRIM, ano 16,
n.º 187, jun./2008; CARLOS FREDERICO DE O. PEREIRA, “Homossexuais nas Forças Armadas:
tabu ou indisciplina?”, v.g.) a sustentar a inconstitucionalidade material da referida cláusula de
tipificação penal, não obstante precedente desta Corte em sentido contrário (HC 79.285/RJ, Rel.
Min. Moreira Alves).

Mas tamanha já era a hipocrisia social que, apesar de se manter um discurso padrão de defesa da
sacralidade do matrimônio, chegou-se, em clara filosofia de fins que justificam meios, a defender a
importação de prostitutas estrangeiras com o intuito de combater a homossexualidade123, aparentemente
na tentativa de aumentar o número de mulheres para que os homens não tivessem necessidade de manter
práticas sexuais com outros homens, em absurda ignorância que se negava a perceber que a sexualidade
não se escolhe e não se muda por ato de vontade.
Tal contexto, como citado, existia em todas as religiões cristãs, visto que tanto reformistas como
contrarreformistas condenavam a homoafetividade como um “costume desviante” que mereceria punição.
Contudo, aqui também a repressão ao comportamento homoafetivo não fez a homossexualidade
desaparecer, como obviamente jamais conseguiria, visto que a sexualidade não é uma “opção”, dada a
impossibilidade de uma pessoa mudar de sexualidade por vontade própria. Essa repressão existia em
todas as esferas sociais. Os homossexuais simplesmente passaram a disfarçar mais sua prática
homossexual construindo guetos, locais onde podiam se encontrar sem que sofressem repressão da
sociedade.
Com a evolução do pensamento, os iluministas, apesar de não aceitarem a homossexualidade,
passaram a considerar uma atrocidade puni-la com a morte, donde o Código Napoleônico de 1810
descriminalizou as práticas privadas e consensuais entre adultos do mesmo sexo124, o que influenciou a
legislação brasileira no mesmo sentido. Contudo, relata João Silvério Trevisan que a partir do Código
Imperial surgiram os crimes “por ofensa à moral e aos bons costumes”, sob os quais a polícia
homofóbica continuava a enquadrar a homoafetividade, com o absurdo de enquadrar o travestismo como
contravenção penal125, o que sucedeu até o atual Código Penal.
Por outro lado, com a patologização da homossexualidade no século XIX (supradescrita),
criminalistas chegaram a defender a internação de homossexuais em instituições especializadas, ao ponto
de o médico-legisla Viriato Fernando Nunes afirmar, em tese de 1928, defendida perante a Faculdade de
Medicina de São Paulo, que toda perversão atentaria violentamente contra as normas sociais, merecendo
repressão rigorosa, em explícita condenação moral (pois de “científica” nada teve) à
homossexualidade126. Na mesma linha, o médico-legisla Aldo Sinisgalli apontava que, embora a história
provasse que punir homossexuais não atingia os resultados visados (de extinguir a homossexualidade),
homossexuais eram “doentes” que deveriam ser tratados mesmo contra sua vontade, para que a sociedade
não ficasse exposta às suas “mórbidas tendências”...127.
Por outro lado, a prática sempre demonstrou que as tentativas de mudança médica da
homossexualidade não mostraram resultado, o que, contudo, não ensejou a libertação dos homossexuais
enclausurados nos locais psiquiátricos, por considerarem, os homofóbicos de então, que seria “ainda
mais clamoroso” deixá-los soltos...128 O preconceito e a discriminação decorrentes de tais posturas são
tão gritantes que não precisam ser mais bem explicitados.
Tamanho era o moralismo homofóbico, que o catedrático em Direito Penal José Soares de Melo
afirmou (também dissimulando seu preconceito na forma de pseudocientificidade) que o Código Penal
seria insuficiente ante a ausência de punição às práticas homossexuais sem violência carnal ou
corrupção, donde esses homossexuais estariam escapando da lei, sem punição... A evidente condenação
desse jurista à homossexualidade fica ainda mais clara em sua tese no sentido de que, “mesmo antes da
prática de um crime o Estado pode segregar um indivíduo”129, com a qual visava a segregação de
homossexuais pelo simples fato de serem homossexuais, por considerá-los “perniciosos” ao Estado e à
sociedade... Claramente, tal jurista não fazia a menor ideia do que caracteriza a “privacidade”, ou então
não se importava com esse importante direito fundamental, já que queria criminalizar inclusive a relação
homoafetiva consensual entre dois adultos130.
Mas, como dito, tais repressões não conseguiram acabar com a homossexualidade, como ingênua ou
ignorantemente pretendiam. Como se sabe, a literatura, seja satírica, seja romântica ou de qualquer outro
tipo, sempre relata a realidade, ainda que de forma lúdica ou lendária. No contexto da
homossexualidade131, assim, valem ser citados, entre outros, os grandes:

(a) Gregório de Matos, com seus poemas satíricos que, por vezes, abordavam a
homossexualidade (como no poema “Marinícolas”, em que satirizava o nome do provedor Nicolau
com o termo “maricas”);
(b) Álvares de Azevedo, de quem se suspeita a homossexualidade em virtude, por exemplo: (i)
da peça “Satã e macário”, que segundo o crítico Antonio Candido, tinha “um toque de
homoerotismo”; (ii) de dedicar ao amor às mulheres expressões como “amor filial”; (iii) ter tido,
segundo Mario de Andrade, um descaso sexual pelas mulheres; (iv) pela carta que escreveu a seu
assim chamado “amigo” Conde de Fé, no poema “Itália”, chamada por ele de “Pátria do meu amor!”
(embora haja quem atribua o episódio a uma “veia satírica” do poeta romântico, mas não à sua
suposta homossexualidade); e especialmente (v) por cartas escritas ao amigo Luís Antônio da Silva
Nunes, colega de república estudantil, que revelam um tom de ardente amor (como no trecho “Assim
como eu te amo, ama-me. Não esqueças entre as Campinas do Rio Grande ... do teu amigo”), apesar
do estudioso em literatura Brito Rocha defender que se trataria de “amizade espiritual” (como nos
casos de Goethe e Schiller e Byron e Hoog), não de homossexualidade;
(c) O cortiço, de Aluísio de Azevedo, que traz duas personagens femininas periféricas que
mantinham uma notável relação amorosa;
(d) Bom-crioulo, de Adolfo Caminha, que apresenta uma relação amorosa entre dois rapazes
como centro da história, livro este que, para o estudioso em literatura Horácio Costa, foi
massacrado pela crítica em virtude do rechaço à homossexualidade, o que se denota das críticas
puramente ideológicas (e não literárias) ao mesmo;
(e) Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, no qual o jagunço Riobaldo ama
secretamente seu jovem parceiro Diadorim, que, quando morto, se descobre ser uma mulher
travestida de homem jagunço, donde indaga Trevisan se teria Riobaldo amado o reflexo feminino de
um homem ou o homem pressentido (e vislumbrado) nessa mulher;
(f) Olavo Bilac, tido como “o maior pederasta do país” (conforme entrevista de Paschoal
Carlos Magno em O Pasquim, n. 208, de 2 jul. 1973);
(g) Mario de Andrade, cuja fama de homossexual era notória, visto ter escrito contos sobre o
amor entre rapazes (“Frederico paciência”, “Tempo de camisolinha” e “Primeiro de maio”, em
Contos novos; “Meu engraxate”, em Os filhos da Candinha), além de poemas entre soldados e
adolescentes (“Cabo Machado”, “Soneto”, “Poema tridente”, “Canto do mal de amor”, em De
pauliceia desvairada a café: poesias completas), embora as referências homoeróticas sejam
extraídas de angustiadas lamentações de um poeta que sofria de “mal de amor”, segundo suas
próprias palavras (“Reconhecimento do Nêmesis”, “Vinte e nove bichos”, “Os gatos”, “Estâncias”,
“Dor”, “Quarenta anos” e “Lira paulistana”, em Poesias completas, já citada). Tamanha era sua
fama de homossexual que Oswald de Andrade chegou a afirmar que “Mario parecia um Oscar
Wilde, por detrás” (“Dias de Mário”, entrevista com José Bento, secretário particular de Mario de
Andrade”, revista Memória, n. 17, p. 9-11). Mário de Andrade deixou diversas correspondências
suas lacradas, que, por disposição testamentária, só deveriam ser abertas cinquenta anos após sua
morte, em 1995. Uma comissão formada por familiares e acadêmicos alegou se tratar de matéria “de
muita controvérsia” decidir quais dessas cartas deveriam ser publicadas – e, considerando a recusa
em publicar determinadas cartas e o fato de outras terem sido encontradas com rasgões e partes
arrancadas, especula-se que tais cartas revelariam definitivamente sua homossexualidade132
(revelando-se verdadeiro absurdo o despotismo dessa “comissão” ao não revelar ditas
correspondências ao público, afinal trata-se de correspondências de um dos maiores nomes da
literatura brasileira, em tema de inequívoco interesse público-literário).

Em suma, a forte repressão à homossexualidade continuou também no Brasil até o final do século
XX, quando, especialmente a partir da década de 1990, passou-se a tolerar mais a homossexualidade, o
que se atribui à evolução do pensamento humano no sentido do respeito à diversidade e também do
pensamento científico, que despatologizou a homossexualidade – muito embora o surto da AIDS (na
década de 1980) tenha feito a pseudotolerância existente ruir, com os moralistas homofóbicos atribuindo
à homossexualidade, como suposta “degradação moral”, o surgimento da doença, sendo notórias as
manifestações religiosas no sentido de que a AIDS seria uma “punição divina” à degradação moral, da
qual faria parte a homossexualidade... Isso ocorre porque, em verdade, como corretamente afirma João
Silvério Trevisan, a sociedade sempre precisou de reservatórios negativos a funcionar como bodes
expiatórios nos momentos de crise e mal-estar, quando então, ante as necessidades circunstanciais, os
ataca para lhes atribuir a culpa por todos os males da humanidade – sendo que a homossexualidade
sempre funcionou como tal, pois, apesar de tolerada no Brasil, a prática homoafetiva por vezes acabou se
tornando caso de polícia, mesmo quando não proibida por lei133.
De qualquer forma, percebe-se um aumento na tolerância e, por vezes, na aceitação da
homossexualidade nos grandes centros urbanos e nos países de Primeiro Mundo. Quanto maior o
entendimento de que o homossexual é tão humano quanto o heterossexual, não havendo diferença nenhuma
nesse sentido, maior é a aceitação das pessoas homossexuais ou, no mínimo, maior é o respeito a elas.
Essa compreensão é mais fácil de ser obtida nas grandes cidades em decorrência do constante fluxo de
informações nelas existentes, que faz que seus habitantes estejam cada vez mais atualizados e
conhecedores dos avanços científicos, no que se inclui o entendimento médico-psicológico sobre a
sexualidade humana. Nas cidades do interior, ao inverso, existe uma maior resistência no respeito e na
aceitação dos homossexuais, justamente por inexistir um fluxo de informações que torne possível a
superação de preconceitos sociais arraigados nessas comunidades. Nesse conflito de ideologias, é mais
do que evidente que a ideologia do respeito à diversidade (enfim, à pluralidade) deve prevalecer sobre
preconceitos arcaicos ainda arraigados em determinados locais, em geral no interior, em virtude da
ausência do influxo de informações existente nos centros urbanos.
Em suma, a discriminação homofóbica precisa acabar, visto que não há hoje nenhum motivo lógico-
racional que justifique a sua condenação (como nunca houve).

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


A homossexualidade passou de um comportamento amplamente tolerado, e às vezes até vangloriado
pelas sociedades humanas em determinadas circunstâncias (pederastia institucionalizada), como na
Grécia Clássica, para amplamente rejeitada, ante a influência das religiões nesse sentido.
No mundo antigo, o amor de homens mais velhos por rapazes adolescentes era valorizado, pois se
entendia que nessa relação o tutor ensinaria ao jovem como se portar em sociedade, além de transmitir-
lhe conhecimento e sabedoria por meio do ato sexual. Essa relação, aceitável até que o rapaz atingisse a
maturidade (quando ele deveria assumir o papel de tutor de outro jovem adolescente), era inclusive tida
como indispensável para que o adolescente adquirisse sua masculinidade. Já as relações sexuais entre
homens adultos, apesar de existirem em grande número, eram rechaçadas, não por se tratar do amor entre
dois homens, mas porque se entendia que um homem adulto que consentisse em assumir o papel sexual
passivo estaria “abrindo mão” de sua masculinidade, em um comportamento tido como subversivo. Tal
concepção era justificada pela teoria de que, ao “abrir mão” de sua masculinidade, o homem sexualmente
passivo estaria assumindo uma conduta feminina – e, como a mulher era uma “cidadã de segunda classe”,
praticamente sem direitos, a essa condição o homem passivo era equiparado.
A ausência de condenação à homossexualidade em si no Mundo Antigo pode ser percebida no fato
de que, em regra, apenas o homem sexualmente passivo era condenado, ao passo que o ativo, que
continuava sendo visto como masculino, continuava sendo respeitado pela sociedade. Contudo, com a
crescente influência das religiões judaico-cristãs, o mundo ocidental passou, gradativamente, a se tornar
homofóbico. Tal começou a ocorrer com grande ênfase no período de nossa história134 regido pelos
Estados Confessionais, em que o Estado era influenciado pela religião por ele adotada como oficial (e
principalmente nos Estados Teocráticos, em que Estado e Religião se confundem). Nesse contexto, as
Igrejas em geral passaram a defender a tese de que a homossexualidade seria um pecado, um
comportamento “desviante”, “antinatural” e “contrário à vontade de Deus”, razão pela qual deveria ser
rechaçada por nossa sociedade.
Assim, pouco a pouco, arraigou-se na mente das pessoas o preconceito135 difundido pela Igreja em
relação aos homossexuais, uma vez que vivemos sob a égide da Igreja Católica Apostólica Romana por
muitos séculos, no período denominado por “Idade Média” (também conhecida como “Idade das
Trevas”, em razão das inúmeras perseguições religiosas que a “Santa” Inquisição promovia em face dos
não católicos e de todos aqueles que “ousavam” não seguir seus dogmas). Em verdade, a Igreja Católica
demorou aproximadamente mil anos para conseguir institucionalizar o preconceito homofóbico nas
sociedades que influenciava, uma vez que não conseguiu mudar imediatamente o pensamento das
sociedades do Mundo Antigo, que tinham a pederastia institucionalizada arraigada em suas culturas.
Todavia, em dado momento histórico, a homofobia ficou arraigada no pensamento social, e cada vez mais
leis criminalizando a homossexualidade foram editadas e aprovadas. Como a homoafetividade era vista
como um “pecado abominável”, na maioria das vezes os acusados não tinham direito ao que hoje
entendemos por ampla defesa, contraditório e, em suma, devido processo legal: muitas vezes não tinham
direito sequer a advogado, sendo julgados e condenados sumariamente a penas bárbaras.
No século XIX, com a gradativa evolução do pensamento humano, superou-se a visão teocrática do
mundo, passando as pessoas a procurar por explicações científicas, e não teológicas, sobre os fenômenos
da vida humana. Isso fez que as pessoas deixassem de ver a homossexualidade como um “pecado”,
passando a encará-la como uma “doença” que precisaria ser tratada. Em vez de considerarem-na normal,
pela evidente ausência de provas em sentido contrário, fizeram o oposto: consideraram-na uma
“anomalia” pela ausência de comprovação de sua normalidade, em uma atitude inacreditavelmente
ilógica – afinal, só se pode considerar “doença” um comportamento comprovadamente prejudicial à
saúde humana, e não um comportamento simplesmente incomum (minoritário), do qual não se tem notícia
de nenhum efeito prejudicial àquele(a) que o possui (a saber, a pessoa homossexual apenas em razão de
sua homossexualidade).
Inobstante, no final do século XX a ciência médica mundial deixou de considerar a
homossexualidade uma patologia: em 1974, a Associação América de Psiquiatria afirmou que a
homossexualidade per si não é uma perturbação mental. Em 1993, a Organização Mundial de Saúde fez o
mesmo, excluindo-a de sua Classificação Internacional de Doenças, afirmando que “a orientação sexual
por si não deve ser vista como um distúrbio” (CID 10/1993). No Brasil, o Conselho Federal de
Psicologia, em 1999, foi ainda mais preciso, afirmando não ser ela uma doença, um desvio psicológico
nem uma perversão (Resolução 01/1999), tendo ocorrido em nosso país processo similar no tocante ao
entendimento e tolerância à homossexualidade do que aquele supradescrito, ocorrido no resto do mundo
– com a ressalva de que os índios se encontravam, quando do descobrimento, na mesma fase que os
povos europeus da Antiguidade Clássica no que toca à homossexualidade.
Gradativamente, a sociedade tem apresentado maior tolerância (o que difere de aceitação) com
relação à homossexualidade. Quanto maior o entendimento de que o homossexual é tão humano quanto o
heterossexual, não havendo diferença nenhuma nesse sentido, maior é a aceitação e/ou o respeito às
pessoas homossexuais. Em termos jurídicos, entretanto, os homossexuais ainda encontram-se muito
defasados em relação aos heterossexuais, sendo justamente isto o que o presente trabalho visa combater.

1 SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999. p. 10 (sem grifo no
original).
2 Ibidem, p. 33.
3 SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 20, afirma: “Vejamos as
tribos Marind e Kiman. Nelas, todo menino, passada a infância, era separado da mãe e tirado da casa das mulheres, para
dormir com o pai na casa dos homens. Aos primeiros sinais de puberdade, o tio materno era designado para penetrar o
menino analmente, fornecendo-lhe dessa maneira o esperma que o tornaria forte. Os meninos permaneciam nessa fase
por cerca de três anos. (...) [Contudo,] O homem Marind não interrompia suas práticas homossexuais quando se casava.
No processo de produzir uma família, ele podia ser convocado para ser o iniciador do seu sobrinho, durante três ou quatro
anos (...)”.
4 “O sistema de valores tribal colocava a homossexualidade acima da heterossexualidade, que, nos seus mitos, estava
sempre associada ao medo da castração e da morte. (...) Havia também um aspecto metafísico na relação homossexual,
pois os participantes acreditavam que ela tinha o poder de transformá-los física e espiritualmente. (...) [Segundo Deacon,] ‘A
racionalização com que os nativos justificam suas práticas homossexuais é a de que o órgão do menino se torna grande e
forte graças aos atos homossexuais de seu marido’” (ibidem, p. 20-21 e 22 – sem grifo no original).
5 Fez-se a ressalva porque, em muitos casos, não se tratava de bissexualidade propriamente dita. Muitos desses homens
eram efetivamente homossexuais, ou seja, não se sentiam genuinamente atraídos por mulheres. Contudo, ditas pessoas
mantinham esporádicas relações sexuais com mulheres com o único intuito de terem descendentes.
6 De acordo com a afirmação de Bernard Deacon, quando se refere a uma tribo primitiva: “Todo chefe tem um certo número
de meninos-amantes e comenta-se que alguns homens são tão completamente homossexuais nos seus afetos que
raramente têm relações com suas esposas, preferindo seus rapazes” (ibidem, p. 22).
7 “Os babilônios amavam adivinhar o futuro, e ainda conservamos um de seus manuais com profecias baseadas nos atos
sexuais. Parece que se um homem possuísse por trás um igual adquiriria proeminência entre os irmãos e colegas deste.
Se mantivesse relações com um cortesão durante um ano inteiro, estava salvo de todas as suas preocupações. Mas se
um homem tivesse relações com o seu escravo, estaria em dificuldades. O mal o atingiria se ele se relacionasse com um
prostituto. De modo que, penetrar analmente alguém de status social superior ou do mesmo nível, podia trazer boa sorte,
porém o homem arriscava-se à má sorte se seduzisse um escravo. Os homens que preferiam um papel passivo (a menos
que fossem servidores do templo) eram vistos como inferiores” (ibidem, p. 32 – sem grifo no original).
8 “Como os mesopotâmios e civilizações posteriores, eles [egípcios] achavam que um homem adulto submetido à relação
anal perdia a masculinidade. Chamar um homem de mulher já era um grande insulto, mas um homem permitir ser tratado
como uma mulher significava que ele estava abaixo dos escravos. Por aí, pode-se ter uma ideia da visão desfavorável que
eles tinham das mulheres” (ibidem, p. 34 – sem grifo no original).
9 “É como se, em não havendo uma palavra para designar a homossexualidade ou a pessoa homossexual, tais categorias
não existissem como ideia. Igualmente, não havia um conceito, devo ressaltar, de uma pessoa bissexual – existia apenas a
sexualidade masculina (duvido que houvesse um conceito de sexualidade feminina; somente a fertilidade, geração e
maternidade femininas). Não existia, com certeza uma ideologia baseada na iniciação dos meninos ou no ato pederástico,
embora houvesse, como vamos ver, fortes provas de que esse rito de passagem masculino ocorria no mundo arcaico, na
época da civilização egípcia. Dois costumes, acredito, explicam o porquê disso: o casamento cedo e a ausência de
qualquer tabu contra relações sexuais de rapazes antes do casamento com escravos ou prostitutos de ambos os sexos. O
sexo era disponível, estava por toda a parte, como a bebida e o alimento, simplesmente considerado necessário. Se
alguém, por temperamento, não considerasse sexo uma coisa fascinante, estudava o sacerdócio e se preparava para uma
vida de celibato” (ibidem, p. 36 – sem grifos no original).
10 Expressão consagrada para designar o amor entre dois homens, que ganhou ênfase com o advento dos humanistas e foi,
posteriormente, abandonada.
11 “Sabemos que a pederastia ritualizada existiu no arcaico mundo indo-europeu fora da Grécia, na grande família de povos
que se estendia do Atlântico ao Ganges. Há um modelo comum a todos: o jovem ou menino é um aluno, discípulo ou
aprendiz, ao passo que o amante mais velho é um mestre, um guerreiro, professor e modelo” (ibidem, p. 28 – sem grifo no
original).
12 “O mais famoso casal masculino da mitologia grega é o formado por Zeus e Ganimedes, mas Apolo também estava
constantemente raptando jovens efebos: Ciparisso, Admeto, Himeneu, Carnus, Hipólito e outros. Hércules amava
Foloctetes, Nestor, Adônis, Jasão e muitos mais. Adônis foi seduzido por Dionísio. É talvez afirmar o óbvio, mas as
mulheres não aparecem nesses mitos de iniciação. Onde estão, poder-se-ia perguntar, as mães de todos esses jovens
dourados e o que pensam elas dessas seduções? Como vimos nos exemplos etnográficos, as mães e o restante das
mulheres aceitam o papel que os jovenzinhos estão prestes a desempenhar, já que foram ensinadas que é dessa maneira
que eles se tornam homens. Somente assim o futuro da raça estará assegurado. Mais uma vez, podemos ver que, se a
pederastia ocupava um papel na estrutura social como um ritual sagrado, as mulheres não têm um papel e devem existir,
subservientes, fora do palco” (ibidem, p. 28-29).
13 “A transmissão de um saber, de uma ‘educação’ refinada, a procura de uma elevação” – tradução livre efetuada por
BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais – aspectos jurídicos, São Paulo: RT, 2002, p. 32, que também
afirma que “Além da estética, ao redor da homossexualidade, havia todo um ritual envolvendo a transmissão e a aquisição
de sabedoria, cujo maior exemplo é o filosofo Platão e seus preceptores. Adolescentes buscavam o mestre para serem
iniciados na arte da retórica e da oratória. Eram denominados efebos. Após serem escolhidos pelo preceptor, o que era
motivo de muita honra, os jovens aprendizes deveriam se submeter a favores sexuais. Nota-se que havia um fundamento
para que os preceptados servissem seus preceptores: acreditava-se que essa prática aumentaria suas habilidades
políticas e militares, além de ter como característica ‘la transmission d’ unsavoir, d’ une ‘éducation’ raffinée, la recherche
d’une élévation’” (sem grifo no original).
14 LASSO, Pablo (Antropologia cultural e homossexualidade..., Homossexualidade – Ciência e consciência, p. 31-43) apud
BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais – aspectos jurídicos. São Paulo: RT, 2002, p. 32. “Em
Esparta, a relação homossexual era prescrita pelo governo, a ponto de se castigar o jovem que não tivesse amante ou
multá-lo se preferisse um rico a um pobre. A homossexualidade espartana era um resultado lógico da supervalorização do
mundo masculino, de guerra, das relações entre homens etc. Como exemplo da solidariedade e agressividade que a
homossexualidade é capaz de produzir no grupo militar que a pratica, convém não esquecer o destacamento homossexual
que tinha Felipe de Macedônia e que morreram todos na batalha de Queroneia, assombrando a quantos os viram lutar.
Evidentemente, cada um deles, ao lutar contra o inimigo, defendia seu par, sua própria vida, a de seu amado e seu prestígio
social ante os olhos daquele com quem, efetivamente, compartilhava seus sentimentos. Não é necessário destacar a
agressividade de quem trata de vingar a morte do amante nas mãos do inimigo no momento em que ocorria isso” (sem
grifos no original).
15 SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 73.
16 Ibidem, p. 68.
17 Cf. Spencer, op. cit., p. 71.
18 Exemplo clássico dessa afirmação foi o notório Imperador Júlio César: “César, que tivera um caso notório com Nicomedes,
rei de Bitínia, era chamado de ‘a rainha’ por Otávio, nas assembleias públicas, por ter sido visto, num banquete dado por
Nicomedes, com outros exoledi (homossexuais passivos). César era ridicularizado em público. Dizia-se que usava a toga
de maneira a fazê-la oscilar languidamente sobre o chão. Mas também tinha uma reputação de sedutor de mulheres, entre
elas pelo menos duas rainhas: Cleópatra, sem dúvida a mais famosa, e Eunoe, mulher do rei Bogudes da Mauritânia. Ele
também seduziu as esposas de Pompeu, Crasso e Sérvio Sulpício. Não era à toa que costumava ser chamado de omnium
virolum mulier, omnium mulierum virum (mulher de todos os homens e homem de todas as mulheres). (...) César, contudo,
não era apenas o chefe de uma força conquistadora romana; sua potência estava inevitavelmente ligada a suas proezas no
campo de batalha. Um homem com a reputação que tinha, acreditava-se, podia se permitir resvalar ocasionalmente num
papel passivo e ainda assim continuar um homem. Seu caráter preenchia as expectativas romanas. César era fisicamente
forte, dono de grande habilidade militar, resistente e tenaz, e ainda altamente sexualizado. Se os soldados o amavam e
aprovavam, era por ser ele um vencedor na cama e na guerra. Ovídio escreveu que ‘todo amante é um soldado’ – um
conceito popular no mundo antigo que remonta a Safo e Homero” (ibidem, p. 72-73 – sem grifos no original).
19 Por vezes, críticos da militância que pleiteia o reconhecimento do direito de homossexuais aduzem que o termo homofobia
seria tecnicamente equivocado, na medida em que fobia designaria pavor/aversão de homossexuais, o que nem sempre
seria o caso. Independentemente da origem etimológica da palavra, esta claramente evoluiu para significar, atualmente,
preconceito e/ou discriminação contra homossexuais, que, aliás, sempre esteve presente no pavor e/ou na aversão da
origem etimológica. De qualquer forma, este é o significado que se dá, no presente trabalho, a homofobia: preconceito ou
discriminação contra homossexuais. Ademais, também entendendo que o sexismo (logo, o machismo) é a causa remota
da homofobia, RIOS, Roger Raup. O conceito de homofobia na perspectiva dos direitos humanos e no contexto dos
estudos sobre preconceito e discriminação, in: RIOS, Roger Raupp (org.). Em defesa dos direitos sexuais. Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 119-122, afirma que a homofobia, além de se caracterizar como “aversão fóbica”,
caracteriza-se também pelo heterossexismo, “um sistema onde a heterossexualidade é institucionalizada como norma
social, política, econômica e jurídica, não importa se de modo explícito ou implícito”, sendo que, nesse sentido, “a relação
umbilical entre sexismo e homofobia é um elemento importantíssimo para perceber a homofobia como derivação do
heterossexismo”, visto que “a homofobia revela-se como contraface do sexismo e da superioridade masculina, na medida
em que a homossexualidade põe em perigo a estabilidade do binarismo das identidades sexuais e de gênero, estruturadas
pela polaridade masculino/feminino”.
20 Nesse sentido, a revista Newsweek relatou o caso do Afeganistão, no qual fazendeiros produtores de ópio, incapazes de
quitar os empréstimos tomados de traficantes (empréstimos estes tomados para que pudessem produzir ópio e, com o
produto da colheita, quitar o débito), acabam obrigados a darem suas filhas em casamento aos traficantes, nos
denominados casamentos por débitos (debt weddings). Entre outros casos narrados na reportagem, relatou-se a história de
um fazendeiro que teve sua plantação destruída por uma ação governamental, e que pediu o perdão do débito ao conselho
tribal (tribal council), mas ouviu, em resposta, uma deliberação unânime no sentido de que ele teria que entregar sua filha de
dez anos em casamento ao traficante, de quarenta e cinco anos de idade (cf. MOREAU, Ron. The tale of Afghan opium
brides. Newsweek, 7 abr. 2008).
21 TREVISAN, João Silvério. Seis balas num buraco só. A crise do masculino. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998, p. 39-42.
Segundo o autor: “Assim como existem muitos homens cordatos, as mulheres não são necessariamente e sempre
delicadas, por natureza. Entre os índios brasileiros, por exemplo, os traços físicos distintivos dos dois gêneros são muito
menos claros do que em nossa cultura urbana: para os nossos olhos, uma índia nhambiquara parece ‘menos’ feminina e
um guerreiro kraô pode ser ‘menos’ masculino. A força masculina e a delicadeza feminina são, portanto, atributos que foram
construídos de um modo ou de outro, a partir de algum momento, na história da cultura patriarcal. Ou seja, o masculino e o
feminino não podem ser tomados como realidades objetivas e imutáveis. (...) A virilidade, segundo Badinter, não é um dom.
Ao contrário, deve ser ‘fabricada’ de acordo com um referencial: o ‘verdadeiro homem’ – uma figura ilusória e utópica que o
macho precisa alcançar através de deveres e provações, para mostrar que também é um. Em outras palavras, o varão é
‘uma espécie de artefato e, como tal, corre sempre o risco de apresentar defeito’. Isso torna a virilidade uma carga pesada,
desde muito cedo. O macho dominante tem que estar sempre pronto a comprovar sua força. (...) Tais ritos iniciáticos
masculinos presentes em dezenas de culturas arcaicas indicam que, diferentemente das mulheres, para ‘ser homem’ é
preciso tornar-se homem. Em outras palavras, ‘o caminho para a masculinidade precisa ser conquistado’, ao mesmo
tempo em que permanece sempre possível o risco de perdê-la – nas palavras do psicanalista Paulo Roberto Ceccarelli. (...)
Curiosamente, entre as meninas de ontem e de hoje, a ‘passagem’ para a feminilidade é marcada naturalmente pela
primeira menstruação, sem necessidade de provas. Nas culturas antigas, o rito de iniciação feminina, quando existia,
encontrava-se basicamente ligado à fertilidade. Segundo Paulo Roberto Ceccarelli, se a feminilidade tem ligação direta com
a procriação, a masculinidade ‘está construída num espaço social e político’. Assim, enquanto o feminino tem uma
identidade mais configurada, graças à sua relação com a natureza, o masculino depende de circunstâncias social e
culturalmente mutáveis, o que o torna fragilizado e permanentemente ameaçado. De algum modo, seu desenvolvimento
deve ser provocado, sob o risco de não despertá-lo, e precisa ser protegido através de proibições rigorosas, sobretudo para
resguardá-lo do ‘contágio’ do feminino (...). Em resumo, segundo Ceccarelli, a masculinidade não é uma ‘aquisição
definitiva’; antes ‘resulta de um trabalho constante’, de modo que a posse do pênis não constitui, por si mesma, nenhuma
garantia palpável de virilidade. Na busca da masculinidade, o homem tem sempre presente ‘o fantasma de estar privado
dela’” (sem grifos no original).
22 SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 39.
23 Cf. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. O uso dos prazeres. Vol. II, Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque. 12. ed. São Paulo: Graal, 2007, pp. 10-12.
24 “Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras
de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que
seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo” (FOUCAULT, op. cit., p. 15).
25 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 14-16.
26 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 31.
27 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 23-24. Sobre o tema, afirma Foucault que “Por ‘moral’ entende-se um conjunto de valores e
regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos (...)”, assim como
que “por ‘moral’ entende-se igualmente o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são
propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de
conduta”. Aponta ainda que, entre as diferentes maneiras de se conduzir moralmente, temos a “determinação da
substância, isto é, a maneira pela qual o indivíduo deve constituir tal parte dele mesmo como matéria principal de sua
conduta moral”, o “modo de sujeição, isto é, à maneira pela qual o indivíduo estabelece sua relação com essa regra e se
reconhece como ligado à obrigação de pô-la em prática”, a “elaboração do trabalho ético que se efetua sobre si mesmo,
não somente para tornar seu próprio comportamento conforme a uma regra dada, mas também para tentar se transformar
a si mesmo em sujeito moral de sua própria conduta” e, por fim, uma “teleologia do sujeito moral: pois uma ação não é
moral somente em si mesma e pela sua singularidade; ela o é também por sua inserção e pelo lugar que ocupa no conjunto
de uma conduta; ela é um elemento e um aspecto dessa conduta, e marca uma etapa em sua duração e um progresso
eventual em sua continuidade”, pois “Uma ação moral tende à sua própria realização; além disso, ela visa, através dessa
realização, a constituição de uma conduta moral que leva o indivíduo, não simplesmente a ações sempre conformes aos
valores e às regras, mas também a um certo modo de ser característico do sujeito moral”. (FOUCAULT, op. cit., pp. 26-28)
28 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 35-37.
29 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 115 e 118-121.
30 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 126.
31 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 86.
32 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 87.
33 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 92-94.
34 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 96.
35 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 115 e 118-121.
36 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 126.
37 Cf. FOUCAULT, Op. Cit., p. 86.
38 “O aforismo do Contra Nera, que parece distinguir tão nitidamente os papéis que a cortesã, a concubina e a esposa devem
desempenhar na vida de um homem, foi algumas vezes lido como uma tripartição que implicaria funções excludentes:
prazer sexual de um lado, vida cotidiana de outro, e enfim, para a esposa somente a continuação da linhagem. Mas é
preciso levar em conta o contexto no qual essa sentença, aparentemente brutal, foi formulada. Tratava-se de um litigante
que pretendia invalidar o casamento aparentemente legítimo de um de seus inimigos, assim como o reconhecimento,
enquanto cidadãos, dos filhos nascidos desse casamento: e os argumentos apresentados se baseavam na origem da
mulher, seu passado como prostituta, e seu status atual, que não poderia ser outro que não o de concubina. O ponto não
era, portanto, o de mostrar que se vai buscar prazeres em outro lugar que não junto à esposa legítima; mas que uma
descendência legítima não poderia ser obtida a não ser com a própria esposa. É por isso que Lacey observa, a propósito
desse texto, que não se deve encontrar nele a definição de três papéis distintos, mas sim uma enumeração cumulativa que
deve ser lida assim: o prazer é a única coisa que a cortesã pode dar; a concubina pode proporcionar, além disso, as
satisfações da existência cotidiana; mas somente a esposa pode exercer uma certa função pertinente ao seu próprio
status: dar filhos legítimos e garantir a continuidade da instituição familiar” (FOUCAULT, op. cit., p. 134. Grifos nossos).
39 “O que está em jogo nessa prática refletida da vida do casamento, o que aparece como essencial à boa ordem da casa, à
paz que aí deve reinar, e ao que a mulher pode desejar, é que esta possa guardar, enquanto esposa legítima, o lugar
eminente que o casamento lhe conferiu: não se ver preterida por outra, não ser destituída de seu status e de sua dignidade,
não ser substituída por outra ao lado de seu marido, eis o que lhe importa antes de mais nada. Pois a ameaça contra o
casamento não vem do prazer que o homem possa obter aqui ou acolá, mas das rivalidades que podem nascer entre a
esposa e as outras mulheres em torno do lugar a ser ocupado na casa e das precedências a respeitar. O marido ‘fiel’
(pistos) não é aquele que ligaria o estado de casamento à renúncia a qualquer prazer sexual obtido com outra: é aquele que
sustenta até o fim os privilégios reconhecidos à mulher pelo casamento” (FOUCAULT, op. cit., pp. 146-147. Grifo nosso).
40 “Ora, o que mostram a Econômica de Xenofonte e o discurso de Isômaco é que, embora a sabedoria do marido – sua
enkrateia como também seu saber de chefe de família – esteja sempre pronta a reconhecer os privilégios da esposa, em
troca, ela deve, para conservá-los, exercer o melhor possível seu papel na casa e as tarefas que lhe são associadas”
(FOUCAULT, op. cit., p. 147).
41 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 129-136.
42 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 139-142.
43 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 150-156.
44 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 156.160. Nas palavras do autor: “(...) o texto situa nitidamente a questão das relações sexuais
no quadro geral das relações de justiça entre o marido e a mulher (...) e em particular na Ética a Nicômaco e na Política,
Aristóteles responde a essa questão quando analisa a natureza política do vínculo conjugal – isto é, o tipo de autoridade que
nele se exerce. Segundo ele, é papel do homem governar a mulher (a situação inversa, que pode ser devida a várias
razões, é ‘antinatural’). (...) Desigualdade de seres livres, mas desigualdade definitiva e baseada sobre uma diferença de
natureza. É nesse sentido que a forma política da relação entre marido e mulher será a aristocracia: um governo onde é
sempre o melhor que comanda, mas onde cada um recebe a sua parte de autoridade, seu papel e suas funções em
proporção com seu mérito e valor. (...) o que ocasiona, como em todo governo aristocrático, que ele delegue à sua mulher a
parte em que ela é competente (se quisesse fazer tudo sozinho, o marido transformaria seu poder numa ‘oligarquia’). A
relação com a mulher se coloca, portanto, como uma questão de justiça, que está diretamente ligada à natureza ‘política’ do
vínculo matrimonial. (...) Não se dá o mesmo com a mulher [comparativamente à situação dos filhos]: sem dúvida esta é e
será sempre inferior ao homem, e a justiça que deve reger as relações entre esposos não pode ser a mesma que reina
entre os cidadãos; contudo, por causa de sua semelhança, o homem e a mulher devem ter uma relação que ‘se aproxime
muito da justiça política’ [Grande Morale]” (FOUCAULT, op. cit., pp. 158-159).
45 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 86.
46 Discordo parcialmente de Foucault neste ponto. Entendendo-se a homossexualidade como a atração erótico-afetiva por
pessoas do mesmo sexo, a heterossexualidade como a atração erótico-afetiva por pessoas de ambos os sexos e a
bissexualidade como a atração erótico-afetiva por pessoas de ambos os sexos, então podemos falar em homossexuais
antes do final do século XIX (quando o termo foi criado) no contexto específico de pessoas que sentiam atração apenas por
pessoas do mesmo sexo (e bissexuais, por pessoas de ambos os sexos). Realmente não se identificavam as pessoas
como “homossexuais/heterossexuais/bissexuais” na época, mas o fato de haver pessoas que desejavam relação conjugal
com pessoa do mesmo sexo mostra que a homossexualidade (e a bissexualidade) existiam naquela época. É uma questão
terminológica, embora, claro, o uso da terminologia contemporânea supõe sua contextualização, como a aqui brevemente
realizada. Contudo, o simples fato de se condenar a existência de atos sexuais e relações conjugais entre dois homens
adultos, como anotado no corpo do texto, prova que havia homens que desejavam se relacionar conjugalmente com outros
homens – logo, que desejavam relações que hoje denominamos como homoafetivas (o fato de haver a condenação a tal
situação prova que ela existia).
47 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 167-174.
48 “O texto não estabelece a fronteira da honra entre aqueles que rejeitam seus pretendentes e aqueles que os aceitam. Para
um jovem grego, ser assediado por enamorados não constituía, evidentemente, uma desonra: era, ao contrário, a marca
visível de suas qualidades; o número de pretendentes podia ser objeto de orgulho legítimo – e às vezes de gloríola. Mas
aceitar a relação amorosa, entrar no jogo (mesmo se não representasse exatamente aquele que propunha o apaixonado)
também não era considerado uma vergonha. (...) É o ‘uso’ que determina o seu valor moral segundo um princípio que se
encontra frequentemente formulado em outro lugar; de qualquer modo são expressões muito próximas que são
encontradas no Banquete: ‘Nessa matéria nada é absoluto; a coisa, nela mesma e somente ela, não tem nem beleza nem
feiura; mas o que a faz bela é a beleza de sua realização; e sua fealdade o que a faz feia’. (...) A temperança – sophrosune
– que é exigida como uma das qualidades maiores dos rapazes implica uma discriminação nos contatos físicos. Mas não
se pode inferir desse texto os atos e os gestos que a honra imporia recusar. (...) a reflexão moral então não se dedica tanto
a definir com o máximo de rigor possível os códigos a serem respeitados e o quadro dos atos permitidos e proibidos,
quanto a caracterizar o tipo de atitude, de relação consigo mesmo que é requerida” (FOUCAULT, op. cit., pp. 184-185).
49 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 174-180.
50 “Entre o homem e o rapaz não há – não pode e não deve haver – comunidade de prazer. (...) E ninguém é tão severamente
condenado como os rapazes que manifestam, por sua facilidade em ceder, pela multiplicidade de suas ligações, ou ainda,
por sua postura, sua maquiagem, seus adornos ou seus perfumes, que eles podem encontrar prazer em desempenhar
esse papel. O que não significa, contudo, quando acontece do rapaz ceder, que ele deva fazê-lo de certa forma na total
frieza. Ao contrário, ele só deve ceder se experimenta, por seu amante, sentimentos de admiração ou de reconhecimento e
afeição, que lhe fazem desejar dar-lhe prazer. O verbo charizesthai é correntemente empregado para designar o fato de que
o rapaz ‘aceita’ e ‘concede seus favores’. A palavra indica bem que, do amado ao amante existe outra coisa que não uma
simples ‘rendição’: o jovem ‘concede seus favores’ por um movimento que consente a um desejo e a uma demanda do
outro, mas que não é da mesma natureza. É uma resposta: não é o compartilhar de uma sensação. O rapaz não tem que
ser o titular de um prazer físico; ele nem mesmo tem que ter prazer com o prazer do homem; ele tem é que ressentir um
contentamento em dar prazer ao outro se ele cede quando convém, isto é, sem demasiada precipitação nem com
demasiada contrariedade. A relação sexual com o rapaz demanda, portanto, da parte de cada um dos parceiros, condutas
particulares. Como consequência do fato de que o rapaz não pode se identificar com o papel que ele tem que
desempenhar, ele deverá recusar, resistir, fugir e esquivar-se; será também necessário que ele estabeleça condições para
o consentimento, se no final das contas ele o concede, que dizem respeito àquele a quem ele cede (seu valor, status,
virtude) e o benefício que ele pode esperar dessa relação (benefício vergonhoso, se somente se tratar de dinheiro, mas
honroso se o que está implicado for a aprendizagem do ofício de home, apoios sociais para o futuro, ou uma amizade
durável). (...) De modo que o ato sexual, na relação entre um homem e um rapaz, deve ser tomado num jogo de recusas,
de esquivas e de fuga que tende a adiá-lo o mais possível, mas também num processo de trocas que fixa quando, e em
que condições, é conveniente que ele se produza. Em suma, o rapaz dá por complacência e, portanto, por outra coisa que
não o seu próprio prazer, algo que seu parceiro busca pelo prazer que nessa relação ele obterá; mas este último não pode
pedi-lo legitimamente sem a contrapartida de presentes, de benefícios, de promessas e de engajamentos que são de outra
ordem do que o ‘dom’ que lhe é pedido. (...) O amor pelos rapazes não pode ser moralmente honrado, a não ser que ele
comporte (graças aos benefícios razoáveis do amante e graças à complacência reservada do amado) os elementos que
constituem os fundamentos de uma transformação desse amor num vínculo definitivo e socialmente precioso, o de philia
[amizade]” (FOUCAULT, op. cit., pp. 196-198).
51 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 180-198, aonde relata o autor que a exceção a esta postura encontra-se no discurso de
Aristófanes no Banquete, que admite a relação entre homens sem dissimetria de idades e, quanto ao erasta e ao eromeno,
admite que o rapaz sinta prazer sexual na sua relação com o homem adulto (contrariamente à aparentemente dominante
posição aristotélico-platônica).
52 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 206-214.
53 Cf. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. O cuidado de si. Vol. III, Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque,
9. ed. São Paulo: Graal, 2007, p. 13.
54 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 28-29.
55 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 32.
56 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 34-36.
57 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 36-37.
58 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 37-38.
59 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 61. Ademais, “Podemos resumir tudo isso dizendo que o fio diretor da interpretação de
Artemidoro, no que concerne ao valor de prognóstico dos sonhos sexuais, implica na decomposição e a análise dos sonhos
sexuais em elementos (personagens e atos) que são, por natureza, elementos sociais; e que indica uma certa maneira de
qualificar os atos sexuais em função do modo pelo qual o sujeito sonhador mantem, enquanto sujeito do ato sonhado, sua
posição de sujeito social (...) deve, para que seu sonho seja bom, manter seu papel de ator social (...) O sonho sexual diz,
na pequena dramaturgia da penetração e da passividade, do prazer e do dispêndio, o modo de ser do sujeito tal como o
destino o preparou. (...) O órgão masculino – o que é chamado de anagkaion (o elemento ‘necessário’, aquele cujas
necessidades nos coagem, e pela força do qual coagimos os outros) – é significante de todo um feixe de relações e de
atividades que fixam o status do indivíduo na cidade e no mundo; aí figuram a família, a riqueza, a atividade de palavra, o
status, a vida política, a liberdade e, finalmente, o próprio nome do indivíduo. (...)” (FOUCAULT. op. cit., pp. 39-40)
60 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 45-47.
61 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 49-50.
62 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 53-54.
63 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 96-97.
64 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 100.
65 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 59.
66 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 60-61.
67 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 64.
68 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 64-65.
69 “Nesses regimes médicos vemos produzir-se uma certa ‘patologização’ do ato sexual. Mas entendamo-nos bem: não se
trata de modo algum daquela que se produziu muito mais tarde nas sociedades ocidentais, quando o comportamento
sexual foi reconhecido como portador de desvios doentios. Ele será organizado, então, como um campo que terá suas
formas normais e suas formas mórbidas, sua patologia específica, sua nosografia e sua etiologia – eventualmente sua
terapêutica. A medicina greco-romana opera diferentemente; ela inscreve o ato sexual num campo onde ele corre o risco de
ser a cada instante afetado e perturbado por alterações do organismo; e onde inversamente ele corre o risco de induzir
diversas doenças, próximas e distantes. Pode-se falar de patologização em dois sentidos (...) [é] à própria natureza do
processo – aos dispêndios, abalos, agitações que ele provoca no organismo – que são atribuídos os efeitos perturbadores
(...) [e como] um processo onde o sujeito é levado passivamente pelos mecanismos do corpo, pelos movimentos da alma,
onde lhe é necessário restabelecer seu domínio por um ajustamento preciso unicamente com as necessidades da natureza
(...) O ato sexual não é um mal; ele manifesta um núcleo permanente de males possíveis (...) A atenção exigida é aquela
que faz com que lhe estejam sempre presentes no espírito as regras às quais ele deve submeter sua atividade sexual (...)
Ele deve manter consigo um discurso de ‘verdade’; mas esse discurso não tem por função dizer ao sujeito a verdade
daquilo que, por natureza, são os atos sexuais, de que maneira recorrer a eles para conformar-se o mais exata e
estritamente possível (...) o regime dos aphrodisia, o regime de sua distribuição proposta pela medicina não deve ser nada
mais, nem menos, do que a forma de sua natureza presente para o pensamento, sua verdade habitando a conduta como
sua constante prescrição ”. (FOUCAULT, op. cit., pp. 144-145).
70 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 106-109.
71 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 136-139 e 142-145.
72 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 116-120.
73 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 125-126.
74 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 129-131.
75 Que, para os homens, não se devia praticar nem muito cedo, nem muito tarde, por supostamente prejudicarem o
crescimento e desenvolvimento da puberdade e esgotarem um corpo incapaz de reconstituir os princípios que lhe foram
retirados, respectivamente, e, para as mulheres, deveria se dar apenas a partir da primeira menstruação, considerado o
momento da maturidade corporal necessária para o ato sexual (FOUCAULT, op. cit., pp. 131-133).
76 “De tal modo que, no final das contas, é após uma refeição moderada e antes do sono – ou eventualmente da sesta – que
o momento das relações sexuais será o mais favorável e, segundo Rufo, a própria natureza indicaria sua preferência por
esse instante dando então ao corpo a sua mais forte excitação” (FOUCAULT, op. cit., p. 134).
77 Temperaturas estas que deveriam ser mais ou menos quentes e úmidas, sendo a atividade sexual tida como desfavorável
nas constituições frias e secas (!) (FOUCAULT, op. cit., pp. 134-135).
78 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 69-70.
79 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 125.
80 “Não te deitarás com homens, como fazes com mulheres: é abominação” (Levítico, 18.22).
81 A interpretação histórico-crítica nada mais é do que a interpretação teleológica dos fatos históricos: busca compreender o
contexto em que foram ditas as palavras para entender seu real significado, o que em muito se assemelha à interpretação
teleológica, que visa superar a literalidade do enunciado normativo para entender o fim visado pela norma, seu real
significado, sua ratio essendi (seu conteúdo).
82 “(...) Paulo fala de um deus indiferente aos pagãos e que lhes deu ‘afetos vis’: pois até mesmo suas mulheres
transformaram o costume natural naquilo que é contra a natureza; e a exemplo também dos homens, deixando o costume
natural de uma mulher, queimam de luxúria uma pela outra; homens com homens empenhando-se naquilo que é
inconcebível” (SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 82).
83 “Devemos recordar que Paulo ensinava que a Segunda Vinda do Messias era iminente. A Igreja primitiva acreditava que
esse evento deveria ocorrer a qualquer momento e que os anjos apareceriam para dividir a humanidade em bons e maus.
Não admira que o desejo sexual, no acaso de sua espontaneidade, lançando sua rede aberta sobre todo tipo de objeto de
luxúria, fosse visto com tão terrível medo e repulsão. (...) Há aqui uma sutil mudança na visão da masculinidade por parte da
sociedade. Não era o homem mais masculino, o mais viril, o que mais conservava seu espírito vital, aquele que perdia
pouca semente? Quintiliano escreveu que, para preservar a voz masculina ‘forte, rica, flexível e firme’, o homem deve se
abster do sexo. (...) O Apocalipse (14.4) descreve uma procissão dos redimidos, formada por homens virgens, não
conspurcados pelas mulheres” (ibidem, p. 83).
84 Um exemplo disso é a constatação de João Crisóstomo ao afirmar das diversas pessoas “que ouviram as Escrituras
trazidas do céu, essas que não se unem a prostitutas tão sem cuidado quanto o fazem com jovens homens. Os pais dos
jovens aceitam isso em silêncio; não tentam salvar seus filhos, nem procuram remédio para o seu mal. Nenhum está
envergonhado (...) há algum perigo que a feminilidade se torne desnecessária no futuro, com jovens homens satisfazendo
as necessidades a que as mulheres estão acostumadas”. Percebe-se claramente que João Crisóstomo condenava o amor
entre pessoas do mesmo sexo e que ficava surpreso com o fato de os pais dos meninos que prestavam favores sexuais a
homens mais velhos não virem nenhum problema em tal prática. Isso demonstra que a cultura da época estava
consolidada no sentido da pederastia institucionalizada como a forma adequada de garantir a masculinidade dos meninos,
por mais que as religiões já estivessem trabalhando pela difusão do preconceito homofóbico (ibidem, p. 84).
85 “Talvez seja impossível para nós descobrir onde estava exatamente a verdade, mas seria de surpreender que a expressão
bissexual, que continuara a ser perfeitamente aceitável por milhares de anos, desaparecesse da noite para o dia somente
porque uma pequena elite – uns poucos religiosos ascéticos e filósofos – pregava contra ela por alguma obscura razão. É
coisa diferente quando as punições brutais de Justiniano começam a ocorrer; tais horrores devem ter soado como uma
nota de advertência até mesmo para os mais descuidados” (ibidem, p. 85-86).
86 Ibidem, p. 84.
87 Ibidem, p. 76.
88 Ibidem, p. 76.
89 “A partir do século XIV na Europa, a homossexualidade, já associada à heresia e à usura, foi ligada a algo mais sinistro –
feitiçaria e demonismo. Não surpreende, portanto, que a natureza humana relacionada com isso fingisse que o ato de união
homossexual era coisa que não lhe dizia respeito” (ibidem, p. 121).
90 Quanto à forma de condenação do amor entre homens e entre mulheres, é elucidativo o seguinte trecho da obra de Colin
Spencer: “As multas se tornavam maiores de acordo com a idade do homem [pois presumia-se que, quanto mais novo,
menor compreensão tinha da suposta ‘imoralidade’ do ato realizado], mas, se não fossem pagas em 10 dias, o criminoso
era despido, atado pelos genitais, forçado a desfilar nu pelas ruas, surrado e depois expulso da cidade. Um homem acima
de 33 anos devia ser queimado e toda a sua propriedade confiscada pela cidade. O acusado não tinha direito a advogado
ao apresentar sua defesa. A fogueira parece ter sido reservada para os casos mais graves, como o estupro homossexual;
outros criminosos foram mais provavelmente chicoteados, multados e exilados. (...) O lesbianismo não era considerado
muito seriamente. Equiparava-se a uma espécie de masturbação, e a penitência era de um ano sem poder comungar. Mas
se uma mulher durante uma relação homossexual montava em outra, tinha de ser chicoteada, porque usar a posição
recomendada para a relação marital heterossexual se tornava obsceno e blasfêmico. O lesbianismo estava
tradicionalmente ligado ao paganismo. Afirmava-se que as lésbicas em meio ao ato amoroso rezavam para espíritos
femininos e comandavam rituais pagãos. Mas a associação de sexualidade ilícita com o demônio ou alguma crença pagã
ou herética não se afastava muito do que pensava o cristianismo medieval” (ibidem, p. 123 e 127 – sem grifo no original).
91 “O que mais pode explicar o que tantos escritores e pintores tornaram público? Flamino Nobili escreveu que Platão e outros
filósofos gregos tinham julgado a beleza de um rapaz mais apropriada para despertar o desejo do que a de uma mulher.
Ariosto (1474-1533), autor de Orlando furioso, escreveu um tanto cegamente que todos os humanistas se envolviam em
atividades homossexuais. (...) Quando seu rival, Bandinellu, publicamente o chamou de ‘sodomita sujo’, Cellini, mentindo,
no entanto com grande atrevimento, respondeu: ‘Desejaria por deus ter sabido como ceder a uma tão nobre prática; afinal
de contas, lemos que Júpiter a desfrutou com Ganimedes no paraíso” (ibidem, p. 130 e 132).
92 Expressão cunhada para designar o relacionamento entre duas pessoas de iguais sexos biológicos, não necessariamente
um relacionamento nos quais ambos fossem iguais no comando da família oriunda de sua união amorosa (assim como em
casais heteroafetivos, era e é comum que, em um casal homoafetivo, um dos companheiros tenha maior proeminência na
tomada de decisões – seja por questões financeiras, seja por qualquer outra, o que não cabe aqui investigar).
93 É curioso notar como, atualmente, a situação se inverteu: há inúmeros ramos do mercado consumidor voltados ao público
homossexual em razão de se presumir que estes não teriam filhos e, portanto, teriam mais dinheiro para gastar consigo.
Em inglês, cunhou-se uma expressão nominada Dual Income, no Kids (em tradução livre: “Dupla Receita, nenhuma
Criança”) – embora, atualmente, cada vez mais casais homoafetivos estejam adotando menores ou tendo filhos oriundos
de inseminação artificial e, portanto, estejam desmistificando essa compreensão.
94 Ibidem, p. 205.
95 BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais – aspectos jurídicos. São Paulo: RT, 2002, p. 15.
96 “Entendi, pela sua carta, que seu filho é homossexual. Estou muito impressionado pelo fato da senhora não mencionar este
termo nas informações sobre ele. Posso perguntar-lhe por que o evita? A homossexualidade não traz com certeza qualquer
benefício, mas não é nada que deva ser classificado como uma doença; consideramos que seja uma variação do
desenvolvimento sexual” (In: SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Record,
1999, p. 302).
97 “A teoria da degeneração se disseminava. (...) Os médicos tinham estabelecido que o homossexual masculino era
efeminado: eles sentem ‘a necessidade de submissão passiva, ficam facilmente maravilhados com romances e roupas’.
(...) Esses médicos eram os mesmos que se opunham a uma maior liberdade para as mulheres, alegando que as
diferenças marcantes entre os sexos tinham base biológica, e até mesmo ameaçavam que, se essas diferenças fossem
violadas, a capacidade de reprodução das mulheres poderia se perder. / Quando o crescimento populacional caía, como
acontecia às vezes, políticos, médicos e a Igreja atacavam juntos os homossexuais e a ampliação do movimento das
mulheres. (...) Também era difundida a ideia de que a decadência da Grécia e de Roma fora devida a uma predatória
homossexualidade. (Na verdade, essa falsa ideia recusava-se a ser desmentida)” (SPENCER, Colin. Homossexualidade:
uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 301 – sem grifo no original).
98 Nessas “pseudoterapias”, fazia-se o “paciente” ingerir remédios indutores ao vômito para, em seguida, assistir a cenas
homoeróticas. Em decorrência do remédio, o “paciente” se sentia mal e vomitava. Após, recebia uma injeção de
testosterona e assistia a filmes eróticos heterossexuais, no intuito de “despertar” a sexualidade “normal”... A posterior prova
científica de que os homossexuais não possuem disfunções hormonais em muito decepcionou os homofóbicos que
aplicaram os referidos tratamentos.
99 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber. Vol. I, Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e
J.A. Guilhon Albuquerque. 18. ed. São Paulo: Graal, 2007, pp. 09-11.
100 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 17-18. Mas “É necessário deixar bem claro: não pretendo afirmar que o sexo não tenha sido
proibido, bloqueado, mascarado ou desconhecido desde a época clássica; nem mesmo afirmo que a partir daí ele o tenha
sido menos do que antes. Não digo que a interdição do sexo é uma ilusão; e sim que a ilusão está em fazer dessa
interdição o elemento fundamental e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do que foi dito sexo a partir
da Idade Moderna. Todos esses elementos negativos – proibições, recusas, censuras, negações – que a hipótese
repressiva agrupa num grande mecanismo central destinado a dizer não, sem dúvida, são somente peças que têm uma
função local e tática numa colocação discursiva, numa técnica de poder, numa vontade de saber que estão longe de se
reduzirem a isso. Em suma, gostaria de desvincular a análise dos privilégios que se atribuem normalmente à economia da
escassez e aos princípios de rarefação para, ao contrário, buscar as instâncias de produção discursiva (que,
evidentemente, também organizam silêncios), de produção de poder (que, algumas vezes têm a função de interditar), das
produções de saber (as quais, frequentemente, fazem circular erros ou desconhecimentos sistemáticos); gostaria de fazer
a história dessas instâncias e de suas transformações. Ora, uma primeira abordagem feita deste ponto de vista parece
indicar que, a partir do fim do século XVI, a ‘colocação do sexo em discurso’, em vez de sofrer um processo de restrição,
foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação; que as técnicas de poder exercidas sobre o sexo não
obedeceram a um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário, de disseminação e implantação das sexualidades
polimorfas e que a vontade de saber não se detém diante de um tabu irrevogável, mas se obstinou – sem dúvida através de
muitos erros – em constituir uma ciência da sexualidade. São esses movimentos que gostaria de evidenciar, agora, de
maneira esquemática a partir de alguns fatos históricos que se afiguram marcantes, e para isso, de certa forma, passarei
por cima da hipótese repressiva e dos fatos de interdição e de exclusão que ela evoca” (FOUCAULT, op. cit., pp. 18-19).
101 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 23-24. “Sem dúvida, o importante é que esta obrigação era fixada, pelo menos como ponto
ideal para todo bom cristão. Coloca-se um imperativo: não somente confessar os atos contrários à lei, mas procurar fazer
de seu desejo, de todo o seu desejo, um discurso. Se for possível, nada deve escapar a tal formulação, mesmo que as
palavras devam ser cuidadosamente neutralizadas. A pastoral cristã inscreveu, como dever fundamental, a tarefa de fazer
passar tudo o que se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra. A interdição de certas palavras, a decência
das expressões, todas as censuras do vocabulário poderiam muito bem ser apenas dispositivos secundários com relação
a essa grande sujeição: maneiras de torná-la moralmente aceitável e tecnicamente útil. (...) O essencial é bem isso: que o
homem ocidental há três séculos tenha permanecido atado a essa tarefa que consiste em dizer tudo sobre seu sexo (...) e
que se tenha esperado desse discurso, cuidadosamente analítico, efeitos múltiplos de deslocamento, de intensificação, de
reorientação, de modificação sobre o próprio desejo. (...) Censura sobre o sexo? Pelo contrário, constituiu-se uma
aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo, cada vez mais discursos, suscetíveis de funcionar e de serem efeito de
sua própria economia” (FOUCAULT, op. cit., pp. 26-27 e 29).
102 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 30-31. Ademais, “é a primeira vez em que, pelo menos de maneira constante, uma sociedade
afirma que seu futuro e sua fortuna estão ligados não somente ao número e à virtude dos cidadãos, não apenas às regras
de casamentos e à organização familiar, mas à maneira como cada qual usa seu sexo. (...) Entre o Estado e o indivíduo o
sexo tornou-se objeto de disputa, e disputa pública; toda uma teia de discursos, de saberes, de análise e de injunções o
investiram” (FOUCAULT, op. cit., pp. 32-33).
103 “Há, sem dúvida, aumento da eficácia e extensão do domínio sob controle, mas também sensualização do poder e
benefício e prazer. (...) O poder funciona como um mecanismo de apelação, atrai, extrai essas estranhezas pelas quais se
desvela. O prazer se difunde através do poder cerceador e este fixa o prazer que acaba de desvendar. O exame médico, a
investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico e os controles familiares podem, muito bem, ter como objetivo global e
aparente dizer não a todas as sexualidades errantes ou improdutivas mas, na realidade, funcionam como mecanismos de
dupla incitação: prazer e poder. Prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa,
revela; e, por outro lado, prazer que se abrasa por ter que escapar a esse poder, fugir-lhe, enganá-lo ou travesti-lo. Poder
que se deixa invadir pelo prazer que persegue e, diante dele, poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar
ou de resistir. (...) Tais apelos, esquivas, incitações circulares não organizaram, em torno dos sexos e dos corpos,
fronteiras a não serem ultrapassadas, e sim, as perpétuas espirais de poder e prazer. (...) A implantação das perversões é
um efeito-instrumento: é através do isolamento, da intensificação e da consolidação das sexualidades periféricas que as
relações do poder com o sexo e o prazer se ramificam e multiplicam, medem o corpo e penetram nas condutas. E, nesse
avanço dos poderes, fixam-se sexualidades disseminadas, rotuladas segundo uma idade, um lugar, um gosto, um tipo de
prática” (FOUCAULT, op. cit., p. 52-53 e 56)
104 “O que se poderia chamar de discurso interno da instituição – o que ela profere para si mesma e circula entre os que a
fazem funcionar – articula-se, em grande parte, sobre a constatação de que essa sexualidade existe: precoce, ativa,
permanente. (...) E em todas essas medidas a criança não deveria ser apenas um objeto mudo e inconsciente de cuidados
decididos exclusivamente entre adultos; impunha-se-lhe um certo discurso razoável, limitado, canônico e verdadeiro sobre
o sexo – uma espécie de ortopedia discursiva” (FOUCAULT, op. cit., pp. 34-35).
105 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 33-39. “O que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado, o sexo, a
permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo”
(FOUCAULT, op. cit., p. 42).
106 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 45-46. “Todas estas figuras, outrora apenas entrevistas, têm agora de avançar para tomar a
palavra e fazer a difícil confissão daquilo que são. Sem dúvida não são menos condenadas. Mas são escutadas; e se
novamente interrogada, a sexualidade regular o será a partir dessas sexualidades periféricas, através de um movimento de
refluxo. (...) [houve] uma transformação capital: a tecnologia do sexo, basicamente, vai-se ordenar a partir desse momento,
em torno da instituição médica, da exigência de normalidade a, ao invés da questão da morte e do castigo eterno, do
problema da vida e da doença. A ‘carne’ é transferida para o organismo” (FOUCAULT, op. cit., p. 46 e 128).
107 “Em nome de uma urgência biológica e histórica, justificava os racismos oficiais, então iminentes. E os fundamentava
como ‘verdade’” (FOUCAULT, op. cit., p. 62).
108 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 61-62.
109 “É esta representação jurídica que continua presente nas análises contemporâneas sobre as relações entre poder e sexo.
Ora, o problema não consiste em saber se o desejo é realmente estranho ao poder, anterior à lei como se imagina muitas
vezes, ou, ao contrário, se não seria a lei que o constituiria. A questão não é essa. Quer o desejo seja isso ou aquilo, de
todo modo continua-se a concebê-lo relativamente a um poder que é sempre jurídico e discursivo – poder cujo ponto central
se encontra na enunciação da lei. Permanecemos presos a uma certa imagem do poder-lei, do poder-soberania que os
teóricos do direito e a instituição monárquica tão bem traçaram. E é desta imagem que precisamos libertar-nos, isto é, do
privilégio teórico da lei e da soberania, se quisermos fazer uma análise do poder nos meandros concretos e históricos de
seus procedimentos. É preciso construir uma analítica do poder que não tome mais o direito como modelo e código. (...)
Portanto: analisar a formação de um certo tipo de saber sobre o sexo, não tem termos de repressão ou de lei, mas em
termos de poder (...) poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem
e constitutivas de usa organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça,
inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeiras ou sistemas ou ao
contrário, as defasagens que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou
cristalização institucional tomo como corpo os aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. (...) o
poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a
uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, op. cit., p. 100-103).
110 “Não se deve descrever a sexualidade como um ímpeto rebelde, estranha por natureza e indócil por necessidade, a um
poder que, por sua vez, esgota-se na tentativa de sujeitá-la e muitas vezes fracasse em dominá-la inteiramente. Ela
aparece mais como um ponto de passagem particularmente denso pelas relações de poder; entre homens e mulheres,
entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre educadores e alunos, entre padres e leigos, entre administração e
população. Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior
instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais
variadas estratégias” (FOUCAULT, op. cit., p. 114).
111 “Sobre tal pano de fundo [de luta pela vida], pode-se compreender a importância assumida pelo sexo como foco de disputa
política. É que ele se encontra na articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia
política da vida. De um lado, faz parte das disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição das forças,
ajustamento e economia das energias. Do outro, o sexo pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais
que induz. (...) O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie. Servimo-nos dele como matriz das
disciplinas e como princípio das regulações. É por isso que, no século XIX, a sexualidade foi esmiuçada em cada
existência, nos seus mínimos detalhes (...) [mediante] campanhas ideológicas de moralização ou de responsabilização: é
empregada como índice da força de uma sociedade, revelando tanto sua energia política como seu vigor biológico. De um
polo a outro dessa tecnologia do sexo, escalona-se toda uma série de táticas diversas que combinam, em proporções
variadas, o objetivo de disciplina do corpo e o da regulação das populações” (FOUCAULT, Op. Cit., p. 158-159).
112 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 65-68 e 75-78.
113 “Os valores sexuais ortodoxos se escandalizaram com os dados sobre a incidência de comportamento homossexual.
Cinquenta por cento dos homens admitiram responder eroticamente ao seu próprio sexo, e um terço deles tivera uma
experiência pós-adolescência; quatro por cento tornaram-se exclusivamente homossexuais, quando adultos; e um em cada
oito homens tinha sido predominantemente homossexual por um período de pelo menos três anos” (SPENCER, Colin.
Homossexualidade: uma história. 2. ed.. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 337).
114 Há quem diga que não faria sentido ter “orgulho” de determinada orientação sexual ou identidade de gênero e, por vezes,
há quem fale em “orgulho hétero”, da mesma forma que há quem fale em “orgulho branco” em contraposição ao “orgulho
negro”. Contudo, há aqui um mal-entendido por parte destas pessoas. Não se trata de orgulho pura e simplesmente de
determinada orientação sexual, identidade de gênero ou cor de pele, mas de ser como se realmente é, mesmo com todo o
preconceito existente contra si por conta da característica que gera tal preconceito. Nesse sentido, o “orgulho gay” se refere
ao fato de a pessoa sentir orgulho de ser como realmente é (no caso, homossexual), mesmo em um contexto social de
flagrantes e fortes preconceitos contra ela por força de sua orientação sexual homoafetiva – o mesmo pode ser dito sobre o
“orgulho negro”, no contexto da pessoa negra se atribuir a mesma dignidade conferida socialmente às pessoas brancas e
não se deixar menosprezar pelo preconceito em sentido contrário (sendo que desconheço alguém falar em “orgulho
lésbico/bissexual/transgênero”, embora faça todo o sentido alguém invocar tais “orgulhos”, por se referirem ao mesmo
contexto). Por outro lado, brancos não são alvo de preconceitos por sua cor de pele e heterossexuais não são alvo de
preconceitos por sua orientação sexual; logo, afigura-se completamente descabido falar-se em “orgulho branco” e em
“orgulho hétero” – somente um profundo simplismo acrítico que ignora o contexto que se acabou de expor pode invocar
estes últimos conceitos.
115 Para detalhes das especificidades de cada tribo, vide: TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A
homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 65-67 e 220-226.
116 Ibidem, p. 68.
117 Moral que sequer atenta para uma noção histórico-crítica da Bíblia, como demonstrarei no capítulo seguinte.
118 “Na Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII, não apenas a Espanha, Portugal, França e Itália católicas mas também a
Inglaterra, Suíça e Holanda protestantes puniam severamente a sodomia. Seus praticantes eram condenados a punições
capazes de desafiar as mais sádicas imaginações, variando historicamente desde multas, prisão, confisco de bens,
banimento da cidade ou do país, trabalho forçado (nas galés ou não), passando por marca com ferro em brasa, execração
e açoite público até a castração, amputação das orelhas, morte na forca, morte por fogueira, empalamento e afogamento.
Entre as vítimas podiam contar-se tanto nobres, eclesiásticos, universitários e marinheiros, quanto simples camponeses,
servos e artesãos. (...) A verdade é que as denúncias funcionavam até o ponto de ocorrer punição contra as pessoas
omissas, como no caso do jovem Mateus, que pagou multa e cumpriu penitência pública porque deixara de denunciar o
blasfemo João Nunes, na Visitação Inquisitorial pernambucana de 1593. Ou também o caso do carpinteiro e açougueiro
Pedrálvares, que, na Visitação Inquisitorial baiana de 1591, foi multado, penitenciado e açoitado publicamente em Salvador,
por não ter denunciado sua esposa, supostamente herética. (...) Quanto aos delitos, a preocupação maior dos inquisitores
era com aqueles relacionados com a fé católica. Além de todo o espírito ortodoxo que a Igreja ciosamente contrapunha à
Reforma protestante e heresias afins, havia também o perigo das práticas judaicizantes, considerando que em Portugal e
Espanha existia um grande número de judeus obrigados a se converter ao catolicismo (daí serem chamados de cristãos-
novos, em contraposição a cristãos-velhos). Supostamente ou não, os cristão-novos continuavam a professar a fé judaica,
de maneira clandestina, merecendo por isso especial vigilância da Inquisição. Mas, além dos crimes contra a fé, havia
aqueles contra a moral e os costumes; parece que esses raramente mereceram o castigo da pena de morte, ainda que as
Ordenações do Reino previssem morte por fogueira em casos de sodomia” (TREVISAN, op. cit., p. 127 e 131-132 – sem
grifos no original).
119 Cf. o prefácio de Andréa Lombardi para Poemas, de Michelangelo Buonarroti, apud TREVISAN, João Silvério. Devassos no
paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 134.
120 TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2004, p. 151-152.
121 “Amai-vos uns aos outros” significa que todos devem tolerar aqueles que são distintos de si; “Não julgueis e não serás
julgado” significa que não cabe a nenhum humano condenar moralmente ao outro porque só a Deus cabe julgar; “Perdoe e
serás perdoado” significa que, caso você, humano, tenha usurpado a competência de Deus e tenha julgado negativamente
seus irmãos humanos, perdoe-o e serás perdoado por Deus por ter se dado o direito de julgar moralmente o próximo, o
que, repita-se, pelos mandamentos cristãos só cabe a Deus.
122 Voto do Ministro Celso de Mello, pp. 5-11. No trecho omitido, o Ministro Celso de Mello cita a lição de Veronica de Jesus
Gomes, oriunda de sua dissertação de mestrado, nominada “Vícios dos Clérigos: A Sodomia nas Malhas do Tribunal do
Santo Ofício de Lisboa” (Niterói: UFF, 2012), a qual peço vênia para transcrever na íntegra, dada sua extrema pertinência
para exemplificar a fala do Ministro e, ainda, todo o exposto neste capítulo acerca da perseguição da homossexualidade a
partir da Idade Média: “As ‘Ordenações’ do Reino português foram rigorosas no julgamento do pecado/crime ao preverem
penas bastante severas aos sodomitas, incluindo a morte, como já assinalavam, no século XV, as ‘Ordenações Afonsinas’.
A pena capital foi confirmada pelas leis posteriores, quando houve melhor sistematização e recrudescimento das regras
penais. As ‘Ordenações Manuelinas’ (1514/1521) mantiveram a fogueira para os transgressores, equipararam o crime de
sodomia ao de lesa-majestade, ou seja, quem cometesse um ato sodomítico sofreria as mesmas sanções de quem traísse
a pessoa do rei ou o seu real estado, declarando que ‘todos seus bens sejam confiscados pera a Coroa dos Nossos
Reynos (...), assi propriamente como os daqueles, que cometem o crime da lesa Magestade contra seu Rey e Senhor’ [sic].
Além disso, condenou seus filhos e descendentes à infâmia, proibindo-lhes a ocupação de cargos públicos, além de incitar
a delação, prometendo um terço da fazenda dos acusados aos que apontassem culpados, ‘em segredo ou em publico’.
Aquele que soubesse de algum ‘desviante’ e não o delatasse, qualquer que fosse sua pessoa, teria todos os bens
confiscados e seria degredado para sempre dos reinos e senhorios portugueses. Quanto aos parceiros dos sodomitas, o
Código Manuelino previa que, em caso de delação, que culminasse na prisão do acusado, lhe fosse perdoada toda pena
cível, ‘e crime contheuda nesta Ordenaçam (...)’ [sic]. As disposições ali registrada valiam tanto para os que pecaram antes
de sua promulgação quanto para os que, porventura, cometessem o dito crime dali em diante. As regras valiam também
para a sodomia feminina, que, a partir de então, passou a configurar-se como um crime julgado pelas ordenações régias.
(...) As ordenações Filipinas (1603) confirmaram a pena capital aos sodomitas de qualquer qualidade, incluídas as
mulheres, mantendo o confisco de bens e a infâmia de seus descendentes, da mesma maneira que o estabelecido para os
que cometessem o crime de lesa-majestade. Os delatores agora teriam direito à metade da fazenda do culpado. Em caso
de delatados despossuídos, a Coroa pagaria cem cruzados ao ‘descobridor’, quantia que seria devida apenas em caso de
prisão do sodomita. Da mesma forma que as Manuelinas, condenavam ao confisco total de bens e ao degredo perpétuo os
que não colaborassem com a justiça e reafirmavam a indulgência perante os que delatassem os parceiros. Esse código
legislativo apresentou inovações que merecem ser destacadas. O discurso persecutório às práticas homoeróticas parece
recrudescer. A molície entre pessoas do mesmo sexo, que não constava nas duas primeiras ordenações, passou a ser
punidas gravemente com a pena do degredo para as galés ‘e outras penas extraordinárias, segundo o modo e
perseverância do peccado’: (...) Duas testemunhas de diferentes atos de molície eram requeridas para que o delito fosse
provado e o legislador se preocupou com a identidade das testemunhas, que não deveriam ter seus nomes revelados, mas
segundo o arbítrio do julgador. Até então, não havia preocupação quanto às carícias homoeróticas por parte da legislação
régia. As ‘Ordenações Afonsinas’ observaram apenas os atos sodomíticos em si e as ‘Ordenações Manuelinas’ incluíram as
mulheres, a bestialidade (praticada por ambos), além do uso de roupas de homens por mulheres e vice-versa. Nos Códigos
Filipinos, ainda que os ‘tocamentos desonestos’ não fossem o bastante para comprovar o delito, passaram a ser
gravemente punidos com o degredo para as galés ou outras penas, dependendo da contumácia e pertinácia do indivíduo.
Outro aspecto que merece ser ressaltado é a introdução da tortura no título referente à sodomia. Sempre que houvesse
culpados ou indícios de culpa, que, conforme o Direito, bastassem, o sujeito era enviado para o tormento, para que
revelasse os parceiros e quaisquer outras pessoas que tivessem cometido sodomia ou soubessem de sua prática. A
tortura de réus negativos ou ‘vacilantes’ foi um procedimento judiciário comum nos códigos legislativos europeus. (...) Em
Portugal, a preocupação com a utilização da técnica como forma de arrancar as confissões era tamanha que as
‘Ordenações Manuelinas’ aconselhavam que não fossem aplicadas seguidas sessões de tormento ao mesmo réu, para
que, com ‘medo da dor’, ratificasse uma falsa confissão. (...) As três ‘Ordenações’ não foram os únicos códigos legislativos
portugueses que censuraram e penalizaram sodomitas e praticantes de molície. As chamadas ‘Leis Extravagantes’
também tiveram o mesmo objetivo. Em 09 de março de 1571, uma ‘Lei Extravagante’, promulgada por D. Sebastião, ditava
que ‘as Pessoas, que com outras do mesmo sexo cometterem o peccado de mollicie, serão castigadas gravemente com o
degredo de Galés, e outras penas extraordinárias, segundo o modo e perseverança do peccado’. Em 1606, o rei Felipe II
ratificou a lei de D. Sebastião contra a molície, em que se determinava que os culpados fossem presos e, sendo peões,
devendo ser degredados por sete anos para as galés. Em caso de pessoas de ‘melhor qualidade’, seriam degredadas para
Angola, sem remissão. Todavia, os reincidentes mais devassos poderiam ser condenados à morte, ‘perdendo as famílias
nobres sua dignidade e privilégios’” (Voto do Ministro Celso de Mello, pp. 5-7).
123 ALMEIDA, José Ricardo Pires de (Homossexualismo (a libertinagem no Rio de Janeiro), p. 80-82), apud TREVISAN, João
Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Record,
2004, p. 181.
124 Cf. TREVISAN, op. cit., p. 166.
125 Ibidem, p. 166-167.
126 NUNES, Viriato Fernandes. As perversões sexuais em medicina legal, apud TREVISAN, João Silvério. Devassos no
paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 187.
127 Cf. SINISGALLI, Aldo. Considerações gerais sobre o homossexualismo. Arquivos da Polícia e Identificação, apud
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2004, p. 187.
128 Ibidem, p. 190.
129 Cf. SINISGALLI, Aldo. Considerações gerais sobre o homossexualismo, Arquivos da Polícia e Identificação, apud
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2004, p. 191.
130 É irrelevante que a privacidade fosse ou não expressamente reconhecida como direito fundamental na época, pois o que
se faz sexualmente, de forma consensual e entre quatro paredes, não é da conta de ninguém. Por outro lado, a privacidade
é uma das manifestações do direito à liberdade, em seu sentido defensivo de vedação de interferências estatais.
131 As informações dos autores literários foram extraídas da obra TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A
homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 249-269, à qual se
remete o leitor para maiores detalhes.
132 “Quando isso enfim ocorreu, as especulações só aumentaram, provocadas por um patético jogo de cena que mais tem
revelado do que ocultado a homossexualidade de Mario de Andrade. Antes de tudo, ainda que teoricamente aberto, o
conteúdo de cada carta só pode ser revelado com a autorização expressa da família. Como se não bastasse, foram
encontradas cartas com rasgões, partes arrancadas, trechos recortados a tesoura, linhas semiapagadas, sem falar no
desaparecimento de um lote de correspondência trocada semanalmente entre Mario e seu amigo íntimo Manuel Bandeira,
durante mais de vinte anos. Sabe-se da existência de pelo menos uma dessas cartas ‘sumidas”, que ainda se encontra
lacrada – por ordem expressa dos amigos doadores – sem data para ser aberta. Sobre seu conteúdo, especialistas
desconversam, mas especula-se que nela Mario revelaria a Bandeira seus casos homossexuais – confidência muito viável
entre ambos, mesmo porque conhece-se uma outra carta em que Bandeira aconselhava Mario a censurar seus poemas
referenciados a amores masculinos. Apesar do cerco, têm pipocado confirmações da homossexualidade de Mario de
Andrade, sem qualquer intenção de denegrir sua ‘imagem’, mas simplesmente resgatar a verdade e, no dizer do professor
Davi Arrigucci Jr., permitir uma melhor compreensão de sua obra. (...) Mais direta foi Raquel de Queiroz. Tendo convivido
com Mario no Rio, Rachel acreditava que ele se tornara muito infeliz por não ter se assumido homossexual, o que ‘era um
fato notório entre todos nós’; e complementava: ‘A gente sentia isso nele, era visível.’ Em suas memórias, Rachel atribui ‘ao
seu sufocado homossexualismo’ o vazio da vida pessoal de Mario, que acabava escrevendo compulsivamente aos
amigos, muitos dos quais jovens escritores que o veneravam. Em seu curto exílio carioca, trabalhando no Instituto Nacional
do Livro, Mario de Andrade sofria com seu chefe, Augusto Meyer, que em suas constantes bebedeiras agredia Mario,
chamando-o de mulato viado – ‘coisa que ele era, mas ninguém dizia’, conta Rachel (...)” (ibidem, p. 258 – sem grifo no
original).
133 Cf. ibidem, p. 22.
134 Refere-se aqui somente à história e às religiões ocidentais.
135 Adota-se aqui o mesmo sentido de preconceito adotado por Roger Raupp Rios, segundo o qual “ao termo preconceito é
aqui atribuído um sentido negativo, como ‘juízo não fundamentado’” (RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a
discriminação por orientação sexual: A homossexualidade no direito brasileiro e norte-americano. Porto Alegre: RT: 2002, p.
26, em nota de rodapé).
Capítulo 2

DA HOMOSSEXUALIDADE E DA HOMOAFETIVIDADE

“Podemos definir o sentimento homossexual como a sensação de estar apaixonado, de se


envolver amorosamente, ou sentir atração erótica por pessoa de sexo semelhante. É uma forma
distinta de ser da maioria, somente no que diz respeito à orientação sexual, pois, nos demais
aspectos, não há diferença. É a troca de afetos, é o envolvimento íntimo entre duas pessoas
pertencentes ao mesmo sexo.” – Taísa Ribeiro Fernandes.1

1. CONCEITUAÇÃO
Terminada a contextualização histórica no que tange ao entendimento que a humanidade deu à
identidade homossexual ao longo dos tempos, podemos agora conceituar a homossexualidade e
diferenciar os dois conceitos. Por mais que esses temas mereçam ser tratados em, pelo menos, um livro
próprio, que tenha preferencialmente um enfoque sociológico, histórico e antropológico, é fundamental
que o leitor tenha uma correta compreensão desses conceitos (ainda que de forma sintética) para que
possa analisar corretamente o enfoque jurídico do tema tratado nesta obra.
A homossexualidade caracteriza-se pelo sentimento de amor romântico2 por uma pessoa do mesmo
sexo. Tecnicamente, pode ser definida como a atração erótico-afetiva que se sente por uma pessoa do
mesmo sexo3. Da mesma forma, a heterossexualidade caracteriza-se pelo sentimento de amor romântico
que se sente por pessoas de sexo diverso, sendo assim, igualmente, a atração erótico-afetiva que se sente
por uma pessoa de sexo diverso.
Por mais que isso seja dizer o óbvio, é importante ressaltar que o homossexual é aquele que ama
romanticamente uma pessoa do mesmo sexo. Esse é o único ponto relevante no que tange à definição da
orientação sexual da pessoa: se amar apenas pessoas do mesmo sexo, será homossexual; se amar apenas
pessoas do sexo oposto, será heterossexual; se amar pessoas de ambos os sexos (ainda que tenha um
maior apelo por um deles), será bissexual. Isso é a orientação sexual, que foi bem definida pelos
Princípios de Yogyakarta como a “capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional,
afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim
como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas”4.
Poder-se-ia perguntar: mas o que é amor? O amor é um afeto profundo5, podendo ser um amor
fraterno ou amor romântico, cujas diferenças são notórias.
No que tange à questão terminológica, foram cunhados os termos homoerotismo, homoafetividade e
homoessência como forma de se retirar a carga pejorativa existente no termo homossexualismo6-7.
Embora considere o termo homoessência perfeito para seu propósito de apontar que o amor por
pessoas do mesmo sexo é algo da essência humana, utilizarei basicamente o termo homoafetividade, que
realmente descreve com igual perfeição aquilo que se quer aqui demonstrar8: que as relações entre
pessoas do mesmo sexo são pautadas pelo amor familiar, ou seja, pelo amor romântico que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura (conforme será
pormenorizadamente demonstrado).
Note-se, ainda, que o homossexual não tem nenhuma relação com o transexual. Transexual é a pessoa
que sofre dissociação entre seu sexo físico e seu sexo psíquico – a pessoa tem a convicção de que nasceu
no corpo errado. É o homem que se vê como mulher, ou a mulher que se vê como homem. Em geral, a
pessoa deseja passar por uma cirurgia de adequação de seu sexo físico ao seu sexo psíquico para acabar
com a angústia de acreditar que nasceu no corpo errado.
O homossexual, por sua vez, é uma pessoa que não tem nenhum problema com seu sexo biológico, ou
seja, que não sofre dissociação entre seu sexo físico e seu sexo psíquico: é um homem que se entende
como homem e ama outros homens, assim como a mulher que se entende como mulher e ama outras
mulheres. Em suma, é uma pessoa que ama pessoas do mesmo sexo sem ter nenhum problema com seu
próprio sexo biológico.
Encerrada a questão sobre a homossexualidade, tratemos agora da identidade sexual. A identidade
sexual é o conjunto de características atribuídas à pessoa em decorrência de sua sexualidade específica9.
Ou seja, compõe a variedade de pensamentos e atitudes que se espera da pessoa que se define como
homo, hétero ou bissexual em função de sua sexualidade. Em outras palavras, é o conjunto de
características que se consideram inerentes à sexualidade – seja ela homo, hétero ou bissexual. Trata-se
de um conceito vago e relativo, especialmente no tocante à identidade homossexual, em virtude da
ignorância da maioria das pessoas sobre o que verdadeiramente é a homossexualidade. Isso faz surgirem
diversos equívocos, que seguem abaixo desmistificados.
Muitos veem o homossexual (especialmente o masculino) como alguém excessivamente preocupado
com sua sexualidade, ou seja, como “promíscuo” ou “devasso”. Na verdade, o homossexual em nada
difere do heterossexual no que tange aos desejos sexuais (além, é claro, do objeto de desejo, se homem
ou mulher) – o homem gay tem a mesma libido de um homem hétero (o mesmo valendo para as mulheres).
Primeiramente, deve-se apontar que promiscuidade não é exclusividade de homossexuais e nem mesmo
mais presente na homossexualidade. Inúmeros heterossexuais também são promíscuos (inclusive, a
história jurisprudencial do concubinato adulterino – as traições nos casamentos – serve como prova
cabal disso). Ademais, o que os heterossexuais em geral ignoram é todo um contexto que torna o
homossexual alguém extremamente reprimido sexualmente, o que o faz buscar ambientes onde possa
namorar, onde possa simplesmente beijar seu(sua) namorado(a) sem sofrer preconceitos (em geral,
boates destinadas ao público LGBT10).
Imagine o leitor heterossexual a vivência num contexto no qual não pudesse nem ao menos se
declarar amorosamente a quem gosta por medo de preconceito e de violência física e psicológica, na
família e na sociedade. Imagine passar todo o final de sua infância11 e sua adolescência com medo de
assumir que gosta de pessoas do sexo oposto, pensando cautelosamente no que falar e no que deixar de
falar para não passar a ideia de que é heterossexual, não por achar que a heterossexualidade seria
“errada”, mas por simples medo de sofrer com o preconceito social. Pois bem, é por essa situação que
passa o homossexual: tem medo de se assumir enquanto homossexual pelo medo do preconceito
homofóbico lamentavelmente existente em nossa sociedade. Esse contexto, que é parte integrante de todos
os homossexuais do mundo (pelo menos na parte inicial de suas vidas), faz que eles busquem locais onde
possam namorar livremente, como qualquer casal heterossexual namora. A diferença é que os
heterossexuais podem namorar em praças públicas, restaurantes em geral, na faculdade, na escola etc.
sem nenhum embaraço, ao passo que os homossexuais não têm essa liberdade pela repressão que
sofreriam em muitos lugares.
Outro equívoco é o de achar que a homossexualidade seria “errada” pelo simples fato de muitos
homossexuais não se aceitarem e inclusive acharem que seriam “pecadores” ou algo do gênero pelo
simples fato de amarem pessoas do mesmo sexo. Não há nada de errado no simples fato de ser
homossexual, mas, em decorrência da forte carga de preconceito homofóbico que se encontra enraizado
em nossa cultura e que cotidianamente é difundido por nossa sociedade machista e heterossexista, muitos
homossexuais acabam internalizando a homofobia (preconceito internalizado), passando assim eles
mesmos a ter preconceito contra outros homossexuais, especialmente contra os assumidos (assim como
ocorre com mulheres machistas e negros racistas).
O leitor certamente tem uma noção, ainda que inconsciente, do que se acabou de dizer: a todo
momento a mídia e a sociedade em geral pregam, indiretamente, a heterossexualidade como a única
sexualidade “aceitável”. Isso pode ser percebido pela ausência de qualquer publicidade de massa
voltada ao público homossexual: mesmo porque, quando alguma empresa faz esse tipo de publicidade, é
atacada pelos setores conservadores da sociedade, que dizem que a homossexualidade seria algo “contra
a moral e os bons costumes”... Um exemplo que merece ser citado ocorreu em abril de 2006, quando a
empresa DKT Brasil elaborou diversos outdoors difundindo um preservativo com a marca Affair,
voltada para o público homossexual. O cartaz mostrava dois homens em um quase beijo e continha a
palavra: Liberdade. Houve imediata campanha homofóbica pelos setores conservadores, que
apresentaram queixas ao CONAR (Conselho de Autorregulamentação Publicitária) contra tal
publicidade. Em razão disso, o CONAR abriu uma notificação contra o anúncio, para investigar uma
suposta ofensa à “ética na propaganda” (sic). Nesse sentido, após alguns dias, o CONAR proferiu uma
“liminar” (em processo administrativo, não vinculativa), determinando a retirada dos outdoors sob a
justificativa de preservação da respeitabilidade12... Em seguida à retirada dos outdoors, a DKT Brasil
colocou nos locais onde estavam eles afixados outros com a seguinte frase: “O amor não deveria
incomodar”.
Esse singelo exemplo demonstra como é grande a repressão social que sofrem os homossexuais. Ora,
há inúmeros outdoors nos quais um homem está beijando uma mulher (inclusive em posições insinuantes)
e nunca houve nenhuma reação contra eles (ao menos por parte das pessoas em geral). Há claramente
dois pesos e duas medidas quando se considera um ato homoafetivo e um ato heteroafetivo idênticos. De
forma velada, a sociedade deixa claro que só admite a heterossexualidade, justamente por reprimir ao
máximo qualquer veiculação da homossexualidade. É isso o que faz que muitos homossexuais acabem
pensando que a homossexualidade seria “errada” – contudo, são eles, juntamente com os homofóbicos, os
que estão errados.
Feita a digressão exemplificativa, voltemos ao tema da identidade homossexual. Nos dias de hoje,
embora não seja possível qualificar todos os homossexuais dentro de um conjunto imutável de
características, pode-se dizer que a identidade homossexual caracteriza-se pela aceitação por parte do
homossexual do fato de que ele ama pessoas do mesmo sexo e faz parte de uma minoria estigmatizada
alvo de preconceito e discriminação pelo simples fato de ter a sexualidade homoafetiva13. Ademais,
deve supor um sentimento de indignação em razão dessa negativa de direitos, em decorrência da
arbitrariedade de tal fato, justamente por não haver nenhum motivo plausível para se condenar uma
pessoa pelo simples fato de ela não ser heterossexual, uma vez que o homossexual é tão digno e tão
humano como qualquer heterossexual. Esses são os únicos elementos comuns entre todos os
homossexuais – a negativa de direitos quando efetivamente vivem uma relação amorosa com uma pessoa
do mesmo sexo e a indignação que isso deve gerar.
Uma nota importante: não se pode confundir orientação sexual com identidade sexual: orientação
sexual refere-se ao sexo para o qual sentimos amor e desejo, ao passo que a identidade sexual refere-se
ao fato de assumir plenamente esta orientação sexual14. Logo, quem fala em homossexualidades,
heterossexualidades ou bissexualidades acaba por misturar os conceitos de orientação sexual e de
identidade sexual, pois o plural quer significar as várias formas em que diferentes pessoas podem viver
sua homossexualidade, heterossexualidade ou bissexualidade. Homossexualidade é a atração erótico-
afetiva por pessoas do mesmo sexo; heterossexualidade é a atração erótico-afetiva por pessoas de sexo
diverso; e bissexualidade é a atração erótico​-afetiva por pessoas de ambos os sexos. Práticas e formas
de exercício da sexualidade podem variar, mas a orientação sexual permanece a mesma.
Para finalizar o tópico, cumpre reiterar algo que já foi exposto em nota de rodapé supra: o
significado de homofobia. Como mencionado, por vezes, críticos da militância que pleiteia o
reconhecimento do direito dos homossexuais aduzem que o termo homofobia seria tecnicamente
equivocado, na medida em que fobia designaria pavor/aversão de homossexuais, o que nem sempre seria
o caso. Independentemente da origem etimológica da palavra, esta claramente evoluiu para significar,
atualmente, preconceito ou discriminação contra homossexuais, que, aliás, sempre estiveram presentes
no pavor e/ou na aversão da origem etimológica. Como bem diz Daniel Borrillo, em sentido estrito, a
homofobia é a atitude de hostilidade contra as pessoas homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais
(homofobia específica), ao passo que, em sentido amplo, é a atitude de hostilidade contra todos aqueles
que, mesmo heterossexuais, não são conformes às normas sexuais, ensejando a discriminação àqueles que
apresentam ou têm a si atribuídas determinadas qualidades ou defeitos imputados ao gênero oposto, de
sorte que esta homofobia geral visa denunciar os desvios e deslizes do masculino em direção ao feminino
e vice-versa, para tentar coagir tais pessoas a agirem em conformidade com o gênero atribuído
socialmente a pessoas de seu sexo biológico15. A homofobia torna-se, assim, a guardiã das fronteiras
tanto sexuais (hétero/homo), quanto de gênero (masculino/feminino), sendo evidenciada a diferença
homo/hétero com o intuito de ordenar um regime das sexualidades em que os comportamentos
heterossexuais são os únicos considerados merecedores da qualificação de modelo social e de referência
em termos de sexualidade normal/aceitável16. Em suma, este é o significado que se dá, no presente
trabalho, a homofobia: preconceito ou discriminação contra homossexuais17.
Feitas essas considerações, pode-se adentrar em outros pontos cruciais na compreensão da
homossexualidade.

1.1 Homoafetividade/heteroafetividade. Pertinência terminológica


Cumpre referir, aqui, a pertinência do uso dos termos homoafetividade/heteroafetividade, que
receberam algumas críticas. A primeira foi a de que estes termos seriam inadequados para definir uma
relação entre duas pessoas porque um filho homem sente afeto por seu pai e uma filha mulher afeto por
sua mãe, existindo, assim, uma relação “homoafetiva”; neste caso, sem, contudo, existir atração erótico​-
afetiva pelo pai ou pela mãe, assim, melhor seria a expressão “relação homossexual/heterossexual” para
definir as relações respectivas. Contudo, a crítica faz uma leitura puramente literal do termo, ignorando a
obviedade segundo a qual a referência a uma união/relação como homoafetiva/heteroafetiva foi cunhada
por Maria Berenice Dias com o evidente intuito de destacar o afeto romântico, não o afeto fraterno que
se sente por familiares. Da mesma forma que o Direito deve ser interpretado de forma inteligente a fim de
que a lei não resulte em absurdo (consoante célebre máxima de Maximiliano), o mesmo deve ser feito
com as palavras: as palavras devem ser interpretadas de forma inteligente, de acordo com as razões de
sua criação, a fim de que não se tenha uma compreensão absurda de seu significado.
Outras críticas também foram feitas.
Afirmou-se que definir uma pessoa como homoafetiva/heteroafetiva seria uma forma de valorizá-la
apenas se ela tivesse o intuito de manter uma relação conjugal/estável com outra, menosprezando e
deixando à margem do Direito as pessoas que se encontrassem em relações sexuais casuais/esporádicas.
Já me foi afirmado, para isto justificar, que não se pode vincular direitos humanos ao afeto, à existência
de afetividade, pois isto não abrangeria o direito ao livre exercício da sexualidade como um todo. Sobre
o tema, primeiramente, cumpre destacar que os termos em questão foram cunhados por Maria Berenice
Dias para descrever uma união/relação romântico-afetiva (e não fraterno-afetiva), não para descrever
pessoas como homoafetivas/heteroafetivas. De qualquer forma, este autor por vezes descreveu pessoas e
mesmo a orientação sexual como homoafetiva(s)/heteroafetiva(s), o que foi, também, largamente feito
pelo Ministro Ayres Britto em seu voto no julgamento da ADPF 132 e da ADIn 4.277 (bem como por
outras pessoas). Cabe aqui analisar a questão.
Eu particularmente não vejo problema em designar pessoas como heteroafetivas/homoafetivas
porque, da mesma forma que os termos homossexualidade/heterossexualidade têm implícitos o afeto
romântico que as pessoas sentem em suas relações conjugais a despeito de o foco das palavras ser na
sexualidade como um todo, (muitas vezes entendida restritivamente como relativa ao desejo sexual das
mesmas), os termos homoafetividade/heteroafetividade têm pressuposta a sexualidade da pessoa como
um todo; ou seja, da mesma forma que os termos homossexualidade/heterossexualidade não são
excludentes do afeto romântico/conjugal da pessoa apenas por seu foco terminológico na sexualidade, os
termos homoafetividade/heteroafetividade não são excludentes da sexualidade como um todo apenas por
seu foco terminológico na afetividade romântica da pessoa (a afetividade romântica/conjugal pressupõe a
sexualidade). Afigura-se incoerente adotar uma benevolência interpretativa para dizer que os termos
homossexualidade/heterossexualidade não excluiriam a afetividade romântica/conjugal da pessoa e uma
má-vontade interpretativa em relação aos termos homoafetividade/heteroafetividade para se deixar de
reconhecer que estes não excluem a sexualidade como um todo da pessoa. A meu ver, a denominação
homoafetivas/heteroafetivas apenas destaca que as pessoas têm a potencialidade de sentir atração
romântica/conjugal por outras do mesmo sexo (pessoas homoafetivas) ou do sexo oposto (pessoas
heteroafetivas), não obstante o fato de elas poderem manter relações sexuais casuais, sem sentir tal afeto
romântico/conjugal. Logo, não há nada de excludente ou, pior, de “higienista” na definição das pessoas
como heteroafetivas/homoafetivas – somente uma profunda má-vontade com os referidos termos pode
gerar tais compreensões, sendo descabidas as respectivas críticas.
De qualquer forma, abstraída essa discussão sobre ser ou não adequado chamar as pessoas de
heteroafetivas/homoafetivas, fato é que o debate é completamente outro quando se define as
relações/uniões como homoafetivas/heteroafetivas. Com efeito, a referida terminologia foi criada para
justificar a inclusão das uniões entre pessoas do mesmo sexo no âmbito de proteção dos regimes
jurídicos da união estável e do casamento civil, com o intuito de se destacar que as uniões entre pessoas
do mesmo sexo são pautadas no mesmo afeto romântico que justifica as uniões entre pessoas de sexos
opostos. Isso foi feito por conta do preconceito social que afirmava que as uniões entre pessoas do
mesmo sexo seriam motivadas por mera luxúria, por puro desejo erótico e não pelo sentimento de amor
sublime que une duas pessoas de sexos opostos Ademais, as uniões conjugais são necessariamente
pautadas pelo afeto romântico e, consoante a regulamentação do tema da união estável no Brasil e das
uniões de fato mundo afora, é preciso que haja continuidade e durabilidade da união, bem como que ela
seja feita de forma pública e em uma comunhão plena de vida e interesses (ou seja, com o intuito de
constituir família) – e a união estável nada mais é do que o casamento sem papel passado, ou seja, uma
união conjugal idêntica ou análoga ao casamento civil, cuja única “diferença” é a inexistência de sua
formalização perante o Estado18, em que o casamento civil também pressupõe uma união romântico-
afetiva pautada na comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura.
Anote-se que homoafetividade/heteroafetividade são termos que se referem a
homoconjugalidade/heteroconjugalidade, no sentido da união conjugal com uma pessoa do mesmo sexo
ou de sexo oposto, respectivamente19.
Nesse sentido, descabe invocar o direito a atos sexuais casuais para criticar a expressão união
heteroafetiva/homoafetiva. Com efeito, o direito a atos sexuais casuais encontra-se no âmbito de
proteção do direito fundamental à liberdade, que garante a todos o direito de fazer o que quiser, desde
que não se prejudique terceiros e/ou a si próprios no que tange a direitos considerados indisponíveis
pelo ordenamento jurídico, ao passo que os direitos à união estável e ao casamento civil encontram-se no
âmbito de proteção do direito fundamental à constituição de uma família conjugal, e não da relação
sexual casual. Direito à liberdade em um caso, direito à constituição de uma família conjugal em outro.
Logo, não se está limitando a abrangência de direitos humanos por vinculá-los unicamente ao afeto,
desconsiderando a sexualidade como um todo: o direito ao livre exercício da sexualidade encontra-se
abrangido pelo direito à liberdade, ao passo que o afeto é condição indispensável para a configuração da
família. Para atos sexuais casuais, invoque-se o direito à liberdade, mas para a caracterização de uma
família, o afeto é indispensável. A definição de família conjugal supõe necessariamente algo maior que
uma relação sexual casual, a relação de duas pessoas que só se encontram para manter relações sexuais
ou uma relação que, apesar de afetiva, não tem a continuidade, durabilidade e estabilidade de uma união
conjugal. A família conjugal supõe necessariamente uma união pautada pelo amor romântico/conjugal
relacionado a comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, continua e duradoura. Essa a
sua noção basilar.
Isso, inclusive, foi amplamente afirmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF
132 e da ADI 4.277, que reconheceu a união homoafetiva como família conjugal em igualdade de
condições com a família conjugal heteroafetiva. Vejamos trechos dos votos dos Ministros relativamente
ao tema – não por “argumento de autoridade”, de forma alguma, mas pela extrema pertinência de seus
argumentos sobre o conceito de família (aparentemente ignorado pelos críticos aqui censurados). Embora
o voto do Ministro Ayres Britto tenha sido o que mais se alongou na descrição da família, cumpre iniciar
com o voto do Ministro Fux, que bem sintetizou o que aqui se pretende expor (deixando o voto do
Ministro Ayres Britto para o final, como forma de fechar com chave de ouro o que aqui se pretende
expor).
Para o Ministro Luiz Fux, “O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os
indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte
recíprocos entre os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto
coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de
seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns
perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos, tem-se uma
família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional”20. Nesse sentido, a pertinente fala do
Ministro Celso de Mello, para quem “torna-se indiscutível reconhecer que o novo paradigma, no plano
das relações familiares, após o advento da Constituição Federal de 1988, para fins de estabelecimento de
direitos/deveres decorrentes do vínculo familiar, consolidou-se na existência e no reconhecimento do
afeto”21, donde, como bem dito pelo Ministro Lewandowski sobre o ponto: “a ninguém é dado ignorar –
ouso dizer – que estão surgindo, entre nós e em diversos países do mundo, ao lado da tradicional família
patriarcal, de base patrimonial e constituída, predominantemente, para fins de procriação, outras formas
de convivência familiar, fundadas no afeto, e nas quais se valoriza, de forma particular, a busca da
felicidade, o bem-estar, o respeito e o desenvolvimento pessoal de seus integrantes”22.
Vejamos, agora, as considerações do Ministro Marco Aurélio: “o reconhecimento da entidade
familiar depende apenas da opção livre e responsável de constituição de vida comum para promover a
dignidade dos partícipes, regida pelo afeto existente entre eles”23, restando assim consagrado o Direito
“das Famílias”, “isto é, das famílias plurais, e não somente da família matrimonial, resultante do
casamento. Em detrimento do patrimônio, elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os
membros como elementos centrais de caracterização da entidade familiar”, razão pela qual “Alterou-
se a visão tradicional sobre a família, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a
existir para que os respectivos membros possam ter uma vida plena comum”, deixando de se considerar
o conceito de família enquanto “instituição-fim em si mesmo”, para nela identificar a qualidade de
instrumento a serviço da dignidade de cada um de seus membros, em que “Se o reconhecimento da
entidade familiar depende apenas da opção livre e responsável de constituição de vida comum para
promover a dignidade dos partícipes, regida pelo afeto existente entre eles, então não parece haver
dúvida de que a Constituição Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva admitida como tal”.
Vejamos, agora, a paradigmática manifestação do Ministro Ayres Britto acerca da compreensão do
que constitui uma família conjugal. O Ministro descreveu o matrimônio como “um pacto afetivo que se
deseja tão publicamente conhecido que celebrado ante o juiz, ou o sacerdote juridicamente habilitado, e
sob o testemunho igualmente formal de pessoas da sociedade. Logo, um pacto formalmente predisposto
à perdurabilidade e deflagrador de tão conhecidos quanto inquestionáveis efeitos jurídicos de monta”24;
descreveu a união estável como união interpessoal “que a vida uniu pelo afeto”25; afirmou o
reconhecimento da “família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco
importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por
pessoas assumidamente homoafetivas. Logo, família como fato cultural e espiritual ao mesmo tempo
(não necessariamente como fato biológico)”26 em “valores que não se hierarquizam em função da
heteroafetividade ou da homoafetividade das pessoas”27; reconheceu que “a família é uma complexa
instituição social em sentido subjetivo. Logo, um aparelho, uma entidade, um organismo, uma estrutura
das mais permanentes relações intersubjetivas (...) no sentido de centro subjetivado da mais próxima,
íntima, natural, imediata, carinhosa, confiável e prolongada forma de agregação humana. (...)
Ambiente primaz, acresça-se, de uma convivência empiricamente instaurada por iniciativa de pessoas
que se veem tomadas da mais qualificada das empatias, porque envolta numa atmosfera de
afetividade, aconchego habitacional, concreta admiração ético-espiritual e propósito de felicidade tão
emparceiradamente permeado da franca possibilidade de extensão desse estado personalizado de
coisas a outros membros desse mesmo núcleo doméstico. (...) esse núcleo familiar é o principal locus
de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por ‘intimidade e vida
privada’ (inciso X do art. 5.º), além de, já numa dimensão de moradia, se constituir no asilo
‘inviolável do indivíduo’, consoante dicção do inciso XI desse mesmo artigo constitucional. O que
responde pela transformação de anônimas casas em personalizados lares, sem o que não se tem um
igualmente personalizado pedaço de chão no mundo. E sendo assim a mais natural das coletividades
humanas ou o apogeu da integração comunitária, a família teria mesmo que receber a mais dilatada
conceituação jurídica e a mais extensa rede de proteção constitucional. Em rigor, uma palavra-gênero,
insuscetível de antecipado fechamento conceitual das espécies em que pode culturalmente se
desdobrar”28, afirmou também que “a família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionadamente
amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das mais
duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada. O que a
credencia como base da sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária
e espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa definia a família como ‘a
Pátria amplificada’), que termina sendo o alcance de uma forma superior de vida coletiva, porque
especialmente inclinada para o crescimento espiritual dos respectivos integrantes. Integrantes
humanos em concreto estado de comunhão de interesses, valores e consciência da partilha de um
mesmo destino histórico. Vida em comunidade, portanto, sabido que comunidade vem de ‘comum
unidade’. E como toda comunidade, tanto a família como a sociedade civil são usinas de
comportamentos assecuratórios da sobrevivência, equilíbrio e evolução do Todo e de cada uma de suas
partes. Espécie de locomotiva social ou cadinho em que se tempera o próprio caráter dos seus
individualizados membros e se chega à serena compreensão de que ali é verdadeiramente o espaço do
mais entranhado afeto e desatada cooperação. Afinal, é no regaço da família que desabrocham com
muito mais viço as virtudes subjetivas da tolerância, sacrifício e renúncia, adensadas por um tipo de
compreensão que certamente esteve presente na proposição spinozista de que, ‘Nas coisas ditas humanas,
não há o que crucificar ou ridicularizar. Há só o que compreender’” ao passo que “a Constituição
Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao
rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a
que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva”29.
Nesse contexto, fica evidente a pertinência terminológica das expressões união homoafetiva e união
heteroafetiva, bem como das expressões família conjugal heteroafetiva e família conjugal homoafetiva,
que expressam com muito mais felicidade o elemento central da família contemporânea, que é o afeto
romântico/conjugal, do que as expressões “união homossexual/heterossexual” ou “família conjugal
heterossexual/homossexual”. Não estou dizendo que a expressão “família conjugal
homossexual/heterossexual” seria errada, pois não adoto a má-vontade interpretativa relativamente às
palavras “homossexual/heterossexual” claramente utilizada pelos críticos aqui refutados acerca das
palavras “homoafetivo/heteroafetivo”. O que digo é que há maior pertinência das expressões
homoafetividade/heteroafetividade para explicitar o conceito de família em relação às expressões
“homossexualidade/heterossexualidade”, pois se é certo (como é) que o foco das palavras na sexualidade
não exclui a afetividade romântica/conjugal (pois esta é abrangida pela sexualidade), é igualmente certo
que o foco das palavras na afetividade deixa ainda mais intuitivo ao leitor que o centro da família
contemporânea é o afeto.
Claro que, por uma questão de coerência com a origem das palavras
heteroafetividade/homoafetividade (criadas para destacar o afeto romântico, não fraterno), não parece
adequado chamar-se uma família fraterna (pautada no afeto fraterno) de homoafetiva/heteroafetiva, pois
isto só serviria para trazer confusões. Logo, embora também constituam famílias as uniões públicas,
contínuas e duradouras pautadas em uma comunhão plena de vida e interesses motivada pelo afeto
fraterno30 e não pelo afeto romântico/conjugal, elas não devem ser chamadas de famílias
homoafetivas/heteroafetivas, pois essas expressões destinam-se a explicitar as famílias conjugais, não as
famílias fraternas.
Lembre-se, com Luc Ferry, que “O amor é o novo grande princípio da nossa existência”, sendo que,
no que tange à família conjugal, vivemos uma era na qual as pessoas se escolhem fundamentalmente,
senão exclusivamente, por amor31 (abstraídos “casamentos por conveniência”, os quais não visam formar
uma família conjugal, mas apenas auferir os benefícios dela, razão pela qual casos como este devem ser
entendidos como exceções, sem que isso desconfigure o fato de que, em regra, as pessoas atualmente se
casam por amor). É nesse contexto que os termos homoafetividade/heteroafetividade devem ser
compreendidos: não como limitantes da sexualidade humana ao afeto, mas como consagradores da noção
de que a família contemporânea é caracterizada pela afetividade (no mínimo enquanto dever ou conduta
de cuidado e solidariedade para com o outro familiar). Afinal, como bem dito pelo juiz Antônio Mônaco
Neto, da Comarca de Salvador/BA em decisão de 12.04.12, “a base da constituição da família deixou de
ser a procriação e a geração de filhos, para se concentrar na troca de afeto e de amor”, compreensão esta
que constitui o entendimento contemporâneo sobre a importância da afetividade nas relações familiares
aliada à publicidade, durabilidade, continuidade e intenção de constituir família [mediante comunhão
plena de vida e interesses]32.
Em suma, ao menos a utilização das expressões união homoafetiva/heteroafetiva, família conjugal
homoafetiva/heteroafetiva afiguram-se pertinentes e aptas a demonstrar aquilo a que se destinam, a
saber, que estamos diante de uma família conjugal, em que as críticas não merecem acolhida.

2. A BÍBLIA E A HOMOSSEXUALIDADE

2.1 O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade?


Um aspecto que as Igrejas em geral jamais divulgam é o de que não há consenso entre os estudiosos
acerca daquilo que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade. Muito pelo contrário, há muita
controvérsia quanto a esse tema. Em atenção a esta controvérsia, o padre Daniel A. Helminiak, em obra
homônima a este subtítulo, traz à baila todos os entendimentos que comprovam que a Bíblia não traz, em
seu corpo, nenhuma condenação à homossexualidade per si. Ao contrário, a Bíblia não se refere à
homossexualidade isoladamente considerada, mas apenas reprova algumas condutas nas quais a
homossexualidade está envolvida, apesar de não ser o foco da condenação33.
O leitor que não estudou o tema pode estranhar esta afirmação, especialmente porque muitos
padres/pastores bradam, em alto e bom som, que a palavra de Deus seria contrária à homossexualidade,
considerando-a, portanto, um pecado. Contudo, para entender o que aqui se defende (que a
homossexualidade não constitui nem sequer um pecado), deve ser, primeiramente, ressaltada a grande
divergência que há no que tange à interpretação da Bíblia. Têm-se aqui duas concepções: a interpretação
literal e a interpretação histórico-crítica da Bíblia, sendo que a primeira prega que não há interpretação
do texto bíblico, mas sua mera leitura e compreensão gramatical, ao passo que a segunda afirma que o
significado do texto decorre do entendimento daquele que o escreveu, donde é necessário compreender o
contexto histórico do autor para a correta compreensão de sua mensagem34.
Elucidada essa questão da divergência de interpretação, é seguro afirmar que são os
fundamentalistas aqueles que condenam a homossexualidade com base na Bíblia, uma vez que a leem a
partir do entendimento que damos às palavras nos dias atuais, não se importando com a significação que
tinham na época em que foram proferidas/escritas. Todavia, é equivocada tal espécie de interpretação
(literal), seja em relação à Bíblia seja em relação a qualquer outro documento. Deve-se entender
qualquer texto com base no contexto histórico que o escritor em análise vivenciava, e não naquilo que o
leitor/intérprete entende em relação à situação concreta ali descrita. Cabe destacar que, com o passar do
tempo, mesmo o significado das palavras muda, palavras deixam de ser usadas, são substituídas por
outras e assim por diante, donde adotar-se uma interpretação literal com base no entendimento que se dá
hoje às palavras pode levar (e geralmente leva) a equívocos de interpretação, uma vez que se terá uma
ideia diferente da situação realmente descrita pelo autor daquela época. Ou seja, deve-se entender aquilo
que o escritor efetivamente quis dizer com suas palavras, não aquilo que o leitor acha que ele quis
dizer35. Assim, é equivocada a interpretação literal da Bíblia, assim como a de qualquer documento,
sendo correta a interpretação histórico-crítica, que analisa o contexto do escritor do texto sob análise a
partir dos costumes e conceitos de sua época, o que leva a uma interpretação mais precisa do que a
literal.
Cabe, agora, analisar os argumentos usualmente utilizados por autores religiosos para condenar a
homoafetividade. Os trechos bíblicos normalmente citados como condenatórios da homossexualidade são
os que se referem a Sodoma e Gomorra, à abominação do Levítico, à Epístola de Paulo aos Romanos e
os referentes a 1 Coríntios e 1 Timóteo. Todavia, conforme citado, esses trechos trazem condenações
outras que não a homoafetividade em si, ou seja, condenam outras condutas, nas quais, por acaso, a
homossexualidade está envolvida.
No trecho de Sodoma e Gomorra, o que se condena é a falta de hospitalidade e o abuso sexual
cometido por seus cidadãos. Na história bíblica, dois anjos (representados por figuras do sexo
masculino), que se encontram em longa viagem pelo deserto, chegam à noite em Sodoma e conseguem
hospedagem na casa de um cidadão (Lot), que tinha origem estrangeira e sabia que eles eram anjos.
Algum tempo depois, alguns cidadãos (homens) da cidade batem à porta do hospedeiro e exigem
conhecer os visitantes. Temeroso em deixar seus hóspedes serem conhecidos pelos cidadãos, o
hospedeiro pede que os cidadãos reconsiderem e inclusive oferece suas duas filhas virgens para serem
conhecidas em seu lugar, o que não é aceito. Quando os homens invadem a casa, os dois anjos se revelam
e cegam os invasores, deixando a cidade e fazendo que a ira divina destrua o local. A questão aqui se
encontra no significado da palavra conhecer – na época, tinha ela um sentido sexual, de conhecimento do
corpo alheio. Assim, os intérpretes literais defendem que o pecado aqui teria sido a simples
homossexualidade dos cidadãos de Sodoma, todavia se equivocam, uma vez que as condutas reprováveis
destes foram a falta de hospitalidade com relação a estranhos (pois os cidadãos, além de conhecê-los,
queriam expulsá-los da cidade, ao passo que o deserto, que é extremamente quente durante o dia, é frio
de forma inversamente proporcional à noite) e quererem abusar sexualmente deles. Sendo a sexualidade a
questão aqui tratada, a ofensa aos padrões éticos ocorreu pelo fato da intenção do abuso sexual e da
ausência de hospitalidade, e não do objeto sexual (se do mesmo ou de outro sexo).
É curioso notar que, nesse caso, os intérpretes literais da Bíblia adotam uma leitura histórico-crítica
do verbo conhecer, ao darem a ele o significado que tinha na época de Sodoma e Gomorra (sentido este
inexistente nos dias atuais), ao mesmo tempo em que a interpretam de forma literal quando analisam o
contexto como um todo. Ou seja, eles interpretam a Bíblia conforme seus interesses e preconceitos, não
conforme uma regra de interpretação36.
Por outro lado, cumpre ressaltar que o termo “sodomia” tem um sentido consideravelmente diverso
daquele amplamente utilizado há séculos para se referir pejorativamente ao ato sexual homoafetivo. No
início de sua utilização, sodomia significava todo e qualquer ato sexual não procriativo; com o passar do
tempo, passou a significar qualquer ato sexual que não o praticado da forma mais ortodoxa e com a única
finalidade da procriação; por fim, passou a ser usado praticamente como sinônimo de ato homossexual
masculino, o que é incorreto quando analisado o contexto da criação da palavra37. Ou seja, como a
homossexualidade se enquadra na ideia de “ato sexual não procriativo”, então podia ela ser enquadrada
nesse conceito de “sodomia”. Contudo, é evidente que não era apenas a ela que o criador desse termo se
referia – qualquer ato sexual entre um homem e uma mulher que não o mais tradicional era tido,
inicialmente, como sodomia, como libertinagem sexual, vedada pelos dogmas religiosos, e só julgavam
válido aquele que tivesse a finalidade exclusivamente procriativa e dentro dos sagrados laços do
matrimônio. Foi somente com o passar de séculos de pregação homofóbica que se passou a usar esse
termo exclusivamente para se referir ao amor entre pessoas do sexo masculino, o que é, evidentemente,
equivocado, pois dito amor per si não pode ser tido como libertino, como provam os inúmeros casais
homoafetivos monogâmicos e estáveis hoje existentes.
No segundo trecho bíblico citado, qual seja a abominação do Levítico, a real questão aqui não é o
comportamento homossexual em si, mas a identidade judaica. Não era comum (ou pelo menos aceito) os
judeus da época relacionarem-se homoafetivamente: eles, equivocadamente, consideravam todo e
qualquer ato homossexual como “libertino”. Assim, como eles consideravam a libertinagem como um ato
“impuro”, passaram a condenar a homossexualidade como uma “impureza” devido a esse erro conceitual.
Por outro lado, a prática homoafetiva era aceita por outros povos, como o canaanita. Assim,
considerando que a religião cristã começa a partir do Novo Testamento (e o Levítico encontra-se no
Antigo Testamento), o Levítico vê a questão sob a ótica judaica, a partir da definição dos atos “impuros”,
donde o referido trecho vê a homossexualidade como uma traição à identidade judaica, sendo essa a
razão da condenação a ela. Todavia, como homossexualidade não é sinônimo de libertinagem (que era o
real objeto da condenação em questão), percebe-se que houve um equívoco conceitual dos judeus da
época: se soubessem que a homoafetividade é tão digna quanto a heteroafetividade, não teriam criado
essa condenação com relação a todo e qualquer homossexual.
De qualquer forma, percebe-se que a homossexualidade em si não é analisada neste trecho, somente
a questão de se respeitar ou não os dogmas de conduta judaicos da época (devendo-se ter em mente o
citado erro conceitual cometido pelos judeus)38.
No terceiro trecho, a Epístola de Paulo aos Romanos, as colocações acerca da homossexualidade
pressupõem a compreensão das lições do Levítico, que não condenava a homossexualidade em si, mas
uma traição à identidade judaica e uma condenação à libertinagem, devido ao equívoco supracitado.
Ademais, como o Levítico colocava a homossexualidade como uma “impureza” (classificação judaica), a
Epístola de Paulo aos Romanos denota justamente que a “impureza” não tinha significado algum em
Cristo, mesmo porque a questão da homossexualidade naquele trecho tratava primordialmente da questão
da identidade judaica, não da essência da homoafetividade39.
Por fim, o obscuro termo grego “arsenokoitai”, encontrado em 1 Coríntios e 1 Timóteo, cuja
interpretação é igualmente obscura e muito divergente entre os estudiosos do tema, condena os abusos
relacionados à homossexualidade daquela época, quais sejam a exploração sexual e a libertinagem (o
que hoje também não é visto com bons olhos com relação à heterossexualidade), mas não a questão da
homoafetividade isoladamente considerada40.
Ante a análise desses trechos, percebe-se que a Bíblia não condena a homossexualidade em si: ela
sequer analisa a conduta homoafetiva isoladamente considerada. A Bíblia condena a libertinagem, a
luxúria, a prostituição e o abuso sexual, não a homoafetividade. Foi um erro conceitual que ligou a
homossexualidade àquelas práticas, donde, depois de superado dito erro, percebe-se que a condenação
bíblica não se direciona à homoafetividade41-42.
Por fim, cabe destacar um trecho bíblico citado por Daniel A. Helminiak que só vem a comprovar o
quanto exposto, no sentido de que reprovar o indivíduo unicamente por sua homossexualidade configura
preconceito daquele que isto defende: “Sei, estou convencido no Senhor Jesus, de que nenhuma coisa é
impura em si mesma; somente o é para quem a considera impura – Romanos, 14:13-14”43.
Recomenda-se a leitura da obra do padre Daniel A. Helminiak para que se tenha uma ideia mais
ampla das discussões a respeito do tema (Bíblia e homossexualidade), uma vez que o assunto foi aqui
enfocado de maneira apenas superficial, demonstrando apenas a fonte da interpretação do citado autor a
respeito do tema e suas conclusões, visto que a análise aprofundada da questão foge dos limites do
presente trabalho.
Permito-me, ainda, uma contribuição própria: como preceitos cristãos, encontram​-se os seguintes:
Amai-vos uns aos outros; Não julgues e não serás julgado; Perdoa e serás perdoado. Pois bem: esses
três princípios cristãos não permitem nenhuma condenação e agressão a homossexuais. Sobre o amor ali
citado, evidentemente não se trata de amor romântico ou mesmo de amor fraterno, mas de tolerância,
entendida como “tendência a admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou
mesmo diametralmente opostas às nossas”44. Sobre o tema, cabe citar o entendimento de José Reinaldo
de Lima Lopes45, ao tratar do pensamento de Kant, para elucidar o tema: “Não é o amor da afeição que
os cristãos devem a seus inimigos, mas o amor universal que se diz respeito. Posso respeitar um inimigo,
como também um estranho, sem ter para com ele nenhum sentimento de afeto em particular, seja ele
irascível ou concupiscível. O amor universal dos cristãos ficaria transformado em respeito, a forma
universal do amor divino, ‘caritas’, sem qualquer intervenção do amor ‘eros’, ou mesmo do amor
‘philia’, o querer bem dos amigos”.
Ainda segundo essa moralidade divina, o não julgues significa que não cabe a ninguém julgar
negativamente a terceiros por atitudes suas que não prejudiquem outras pessoas, na medida em que
somente a Deus cabe julgar. Lembre-se aqui que as religiões como um todo (inclusive as de fé cristã)
pautam-se pelo livre-arbítrio, que garante às pessoas o direito de decidirem como querem viver suas
vidas – não que a homossexualidade seja uma opção (não o é), mas caso assim (descabidamente) se
entenda, então se deve respeitar homossexuais, no mínimo, por força do livre​-arbítrio que a todos Deus
garantiu, já que homossexuais não prejudicam ninguém por sua mera homossexualidade e/ou por seus
relacionamentos homoafetivos46.
Por fim, o perdoa e serás perdoado significa que, se apesar da proibição anterior tiveres
efetivamente julgado negativamente a um terceiro, perdoe-o e serás perdoado por Deus pelo descabido
julgamento negativo.
Ademais, aqueles que condenam a homossexualidade com base na Bíblia devem fazer-se as
seguintes indagações:

Será, porém, este o ensinamento de Cristo? Será que o mesmo Cristo redentor que abençoou os
puros de espírito, que chamou a Si todos os cansados e os oprimidos, que chamou todos sem
exceção à sua Igreja, pode apelar à segregação? Ao afastamento? À marginalização? Serão mais
dignos do amor de Deus todos os demais fiéis que sendo homossexuais não o dizem? (...) Haverá
pecado numa relação de amor e entrega mútua entre duas pessoas que se amam? Se Deus é amor,
porque não poderá estar no meio do casal estável de homossexuais?47

É evidente, portanto, a ausência de condenação da fé cristã à homossexualidade, configurando


equívoco interpretativo afirmação em sentido contrário por parte de quem quer que seja – mesmo do
chefe da Igreja Católica.
3. “HOMOSSEXUALISMO” X HOMOSSEXUALIDADE: ENTENDIMENTO MÉDICO-
PSICOLÓGICO ACERCA DA HOMOAFETIVIDADE
Com a evolução do pensamento humano ao longo dos tempos, saiu-se de uma sociedade teocrática
(em que os dogmas religiosos são tidos como inquestionáveis e como verdades universais) para uma
sociedade racional (onde a razão pautada pela ética laica é o que determina se um comportamento é certo
ou errado), no sentido de que o ser humano começou a procurar respostas científicas, e não religiosas,
para explicar os fenômenos humanos.
Com relação à homossexualidade, dita evolução de pensamento fez os cientistas considerarem, a
princípio, a homossexualidade não como um “pecado”, como defendem muitas Igrejas, mas como uma
“doença”, partindo do pressuposto de que a heterossexualidade seria a conduta “sadia” e a
homossexualidade um “distúrbio”, um “desvio comportamental” etc. Dessa ideia cunhou-se a palavra
“homossexualismo”, uma vez que o sufixo “-ismo” significa “doença”. Logo, a princípio a ciência
médica classificou o sentimento de amor por pessoas do mesmo sexo como uma doença que deveria ser
tratada.
Não é o escopo deste trabalho adentrar profundamente no mérito das discussões médico-
psicológicas a respeito da homossexualidade, contudo pode-se afirmar que após séculos de estudos sobre
o tema a ciência médica mundial concluiu que o amor por indivíduos do mesmo sexo não constitui uma
“doença”, um “desvio psicológico”, uma “perversão” nem nada do gênero. Tal é o entendimento
esposado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que, em sua Classificação Internacional de
Doenças n. 10, em sua revisão de 1993 (CID 10/1993), passou a considerar a homossexualidade como
uma das manifestações naturais da sexualidade humana, assim como a heterossexualidade48. Dessa forma,
deixada de lado a afirmação de que a homoafetividade seria uma “doença” ou algo do gênero, passou-se
então a afirmar se tratar de conduta natural ao ser humano, assim como a heteroafetividade.
Tal entendimento foi ratificado em nosso país por meio da Resolução 01/1999, do Conselho Federal
de Psicologia, que afirmou, expressamente, não se tratar a homossexualidade de doença, desvio
psicológico, perversão nem nada do gênero, proibindo os profissionais de psicologia de promover
qualquer tratamento de “cura” da homossexualidade, assim como reprová-la perante seus pacientes ou
participar de propagandas nesse sentido, pois não se cura aquilo que não é patológico. Esse já era o
entendimento da Associação Americana de Psiquiatria desde a década de 197049.
Desta feita, ante o entendimento médico-psicológico de não se tratar a homossexualidade de uma
doença, desvio ou perversão psicológica, foi substituído o sufixo “-ismo” pelo sufixo “-dade”, que
significa “modo de ser”. Assim, é tecnicamente incorreta a utilização da palavra “homossexualismo”,
sendo o correto o uso da palavra “homossexualidade”, como se faz neste trabalho.
A propósito, é oportuno citar que aquilo que algumas Igrejas fazem no sentido de tentar “curar” a
homossexualidade das pessoas é, na verdade, uma verdadeira violência psicológica, que apenas faz que
os homossexuais fiquem com um preconceito internalizado50 sobre si mesmos, tendo em vista a
arbitrária condenação religiosa que ditas instituições pregam de forma contrária à homossexualidade51.
Dessa forma, essas instituições religiosas devem ser proibidas de propagar essas tentativas de “cura” da
homossexualidade, mesmo porque tal conduta configura crime de charlatanismo, por visar “curar” uma
orientação sexual que não é doença e, consequentemente, não é passível de cura. Nem se avente que os
pastores religiosos e afins não estariam sujeitos a tal punição criminal pela liberdade religiosa
constitucionalmente consagrada, pois nenhum direito é absoluto. A liberdade religiosa não pode ser
usada como arma para difundir o preconceito, o ódio e a intolerância. Nesse sentido, no conflito entre a
liberdade religiosa que difunde o preconceito e o direito dos cidadãos homossexuais de terem sua honra
preservada pela não difusão de mentiras (pois é mentira que homossexuais poderiam simplesmente
deixar de ser homossexuais), obviamente prevalecerá o direito à honra dos cidadãos homossexuais, pelo
princípio da proporcionalidade largamente utilizado na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Nem se avente que apenas os homossexuais interessados em “mudar” sua orientação sexual (o que é
impossível) se submeteriam a essas pseudoterapias. Afinal, a mera difusão dessa inverdade (“cura”)
implica, em muitos casos, internalização do preconceito, donde muitos homossexuais acabam acreditando
que são “doentes” ou “pecadores” e procuram essas pseudoterapias na esperança de mudarem sua
orientação sexual – o que nunca ocorre. O que acontece é que o homossexual acaba reprimindo sua
homossexualidade após essas pseudoterapias: não deixa de amar pessoas do mesmo sexo, apenas
reprime esse sentimento. Contudo, a experiência prática tem demonstrado que aqueles declarados como
“curados” de sua homossexualidade sempre têm “recaídas”, que se tornam cada vez mais constantes com
o passar do tempo, pois, como dito, eles não deixaram de ser homossexuais, apenas reprimiram sua
personalidade homossexual ante as pregações homofóbicas dos pastores em questão, donde se percebe
claramente a verdadeira violência psicológica que ditas pseudoterapias infligem aos homossexuais, em
inequívoca afronta à dignidade humana destes (o mesmo vale para os bissexuais que a elas se submetam).
Antes que o leitor eventualmente fique indignado com essa afirmação, sob o fundamento de que a
liberdade religiosa deveria ser respeitada mesmo nesta hipótese, analise uma questão similar. Até
meados do século XX, havia religiosos que pregavam que os negros seriam pessoas menos dignas do que
os brancos. Chegavam ao absurdo de dizer que Deus teria colocado brancos e negros em continentes
diferentes com o intuito de não permitir sua miscigenação52. Chegou-se a dizer, como fundamento da
escravidão, que os negros não seriam nem mesmo humanos, pois não teriam alma... O maior exemplo
desse ódio religioso contra negros foi o grupo Ku Klux Klan, que difundia discursos de ódio (hate
speeches) contra eles, justificando-se com base na liberdade de expressão e também na liberdade
religiosa.
Hoje, se qualquer religioso pregar algo nesse sentido será imediatamente preso por crime de
racismo (ou injúria qualificada), pela pregação do ódio e da intolerância contra negros. Por mais que a
discriminação por orientação sexual ainda não constitua crime específico53, não se deve permitir a
difusão do ódio e da intolerância contra homossexuais em nenhuma hipótese, pois são pessoas
merecedoras da mesma dignidade e do mesmo tratamento que os heterossexuais. Aliás, apesar de ainda
não existir um crime específico oriundo da discriminação por orientação sexual, tal atitude se enquadra,
no mínimo, no crime de injúria (ofensa à honra subjetiva da pessoa – aquilo que ela pensa sobre si
mesma), além do crime de difamação (ofensa à honra objetiva da pessoa – o que os outros pensam sobre
você), caso seja realizada perante outras pessoas. Na esfera cível, caracteriza dano moral passível de
indenização, justamente pela ofensa à honra subjetiva e eventualmente objetiva do homossexual em
questão.
Portanto, não existe uma orientação sexual “correta”: a homossexualidade e a bissexualidade são tão
dignas quanto a heterossexualidade, conforme o entendimento médico-psicológico dos órgãos médico-
científicos oficiais.

3.1 Critérios para a definição de uma doença e a homossexualidade


O médico e psiquiatra Ronaldo Pamplona da Costa colaciona seis critérios usualmente utilizados
para classificar algum comportamento como sadio ou doente: estatístico, valorativo, sofrimento
subjetivo, da naturalidade, nosográfico e da lesão orgânica.
Quanto ao primeiro critério (estatístico), por ele entende-se que sadio seria o usual, ou seja, aquele
comportamento realizado pelo maior número de pessoas. Dessa forma, como os homossexuais
correspondem a aproximadamente 10% (dez por cento) da população mundial54, então seriam por esse
critério “doentes”. Todavia, o fato de se fazer parte de uma minoria não significa, necessariamente, ser
“doente”. Conforme citado pelo mencionado autor, os superdotados são igualmente uma minoria, mas não
são tidos como “doentes” em razão de sua maior inteligência (o mesmo podendo ser dito quanto a
canhotos e ambidestros). Assim, o simples fato de se fazer parte de uma minoria não significa que a
pessoa em questão seja “doente”.
Com relação ao segundo critério (valorativo), verifica ele a adaptação, integração e autonomia do
indivíduo. Nesse sentido, os homossexuais adaptam-se ao seu meio social tão bem quanto os
heterossexuais, não havendo diferenças nesse sentido, o mesmo valendo para a integração psicológica
deles para com seu meio social. Quanto à autonomia, têm os homossexuais a mesma capacidade de
“dirigir-se, de escolher e criar seus objetivos”55 que os heterossexuais – mas cabe aqui destacar que, da
mesma forma que os heterossexuais não têm capacidade para alterar sua orientação sexual por sua
própria escolha, o mesmo ocorre com os homossexuais.
Quanto ao terceiro critério (sofrimento subjetivo), deve-se ressaltar que os homossexuais não sofrem
em decorrência de sua homossexualidade, mas devido ao preconceito e à discriminação da sociedade em
geral contra a homoafetividade. Não é a homossexualidade que lhes causa sofrimento, mas o tratamento
hostil que recebem cotidianamente da sociedade pelo simples fato de serem homossexuais, diferentes da
maioria. As minorias em geral têm esse sofrimento subjetivo, mas, repita-se, dito sofrimento ocorre por
causa do preconceito e da discriminação social, não devido à característica que os torna diferentes. Ora,
da mesma forma que não se culpa a heterossexualidade pela depressão de inúmeros heterossexuais, é
descabida a responsabilização da homossexualidade pela depressão de homossexuais, pois é o
preconceito homofóbico que lhes causa a depressão, não sua sexualidade. Ou seja, o sofrimento subjetivo
dos homossexuais decorre da hostilidade de que são alvo, não de sua homossexualidade.
Com relação ao quarto critério (da naturalidade), sadio seria aquilo que está de acordo com a
natureza, ou seja, aquilo que não sofreu a interferência do ser humano. Conforme afirma Ronaldo
Pamplona da Costa, “O que se opõe ao natural seria o cultural”56-​57 .
A teoria segundo a qual haveria um gene gay ganhou destaque quando, em 1993, o geneticista Dean
Hamer afirmou ter encontrado um gene que estaria presente nos homossexuais em geral – o que o fez
concluir que haveria 99% de chance de a homossexualidade ser genética, portanto natural de parte dos
seres humanos, da mesma forma que é natural alguns terem olhos castanhos e outros terem olhos azuis ou
verdes58. Contudo, esse entendimento tem sido altamente contestado pela ciência médica, no sentido de
não estar sendo aceita a afirmação de que a sexualidade humana seria totalmente fixada de acordo com
um determinismo biológico. O próprio Dean Hamer passou a afirmar que a genética não seria
determinante da sexualidade, mas um dos fatores a serem considerados. A esse assunto me aterei
detidamente no próximo subtópico, mas adianto que o único consenso dos órgãos da ciência médica
mundial é no sentido de que a orientação homoafetiva não é uma doença ou algo do gênero, assim como
não é uma “opção”, qualquer que seja sua origem.
O quinto critério (nosográfico) diz considerar-se doença um comportamento cujas particularidades
se enquadrem na Classificação Internacional de Doenças (CID), a entidade nosográfica internacional.
Nesse sentido, não se pode dizer que a homossexualidade per si possa ser enquadrada no rol de doenças
elencado pela Classificação Internacional de Doenças. Afinal, ansiedade, depressão e angústia não são
quadros característicos da homossexualidade, tanto que muitos heterossexuais sofrem dessas mesmas
condições e nem por isso se cogita serem elas decorrentes da heterossexualidade dessas pessoas.
Novamente, cabe destacar que o sofrimento psíquico de que sofre parcela da população homossexual é
decorrente do preconceito e da discriminação de que é alvo por parte da sociedade, não tendo dito
sofrimento nenhuma relação com a homossexualidade da pessoa discriminada, sendo decorrente apenas
da sua não aceitação por parte da comunidade em que vive.
Por fim, o último critério que poderia considerar a homossexualidade como doença é o da lesão
orgânica, ou seja, haveria uma disfunção no organismo dessas pessoas que ocasionasse uma alteração de
seu quadro clínico para um que não o saudável. Todavia, “durante anos e anos a medicina pesquisou o
sistema nervoso central, os hormônios, o funcionamento do aparelho genital, assim como as relações
sexuais entre homens, e nada encontrou neles de diferente dos homens e mulheres heterossexuais. Diante
de toda essa evidência a OMS aboliu o diagnóstico de homossexualidade da CID”59.
São essas as razões de a Organização Mundial de Saúde entender que a homossexualidade e a
bissexualidade não constituem doença, desvio psicológico, perversão nem nada do gênero, conforme se
infere da seguinte afirmação por ela proferida: “A orientação sexual por si não deve ser vista como um
transtorno”60, na medida em que os estudos realizados não foram capazes de comprovar qualquer
patologia inerente à homossexualidade e à conjugalidade homoafetiva61. Isso só vem provar que a ciência
médica mundial considera a homossexualidade como uma das livres manifestações da sexualidade
humana, ao lado da heterossexualidade, não constituindo nenhuma delas, por si só, uma doença nem nada
do gênero.

3.2 Entendimento da ciência médica quanto à origem da homoafetividade


Como demonstrado, a ciência médica mundial já afirmou que a homossexualidade não constitui
doença, desvio psicológico, perversão nem nada do gênero, sendo assim uma das livres manifestações da
sexualidade humana, ao lado da heterossexualidade. A polêmica que resta, contudo, reside na definição
daquilo que origina a homossexualidade, questão ainda longe de obter um consenso dos estudiosos a
respeito.
Mas, primeiramente, deve-se deixar claro que a simples procura incessante pela “causa” da
homossexualidade já revela um certo preconceito, pois ninguém se preocupa em descobrir a origem da
heterossexualidade. Ora, se algo origina uma, com certeza algo igualmente origina a outra! Dito
preconceito consiste justamente no fato de se ter como absolutamente inquestionável a naturalidade da
heterossexualidade ao passo que ainda se colocam dúvidas acerca da naturalidade da homossexualidade.
Não se está aqui questionando o modo de ser heteroafetivo, muito pelo contrário: afirma-se, apenas, que
o homoafetivo é tão normal quanto ele. É justamente por isso que reitero o quanto exposto na epígrafe do
Capítulo 162. Mas, inobstante tais colocações, adentrarei na discussão acerca da origem da
homossexualidade.
Os críticos da teoria genética baseiam-se na constatação de que, entre alguns gêmeos univitelinos
pesquisados, haveria casos onde um seria homossexual e o outro, heterossexual. Como os gêmeos
univitelinos são “cópias genéticas”, por serem originados do mesmo óvulo, afirmam os críticos da teoria
genética que, se a homossexualidade se originasse apenas dos genes, não seria possível que gêmeos
idênticos tivessem orientações sexuais diversas. Hoje aparentemente há um consenso de que a
sexualidade seria definida por meio da conjugação de fatores genéticos, biológicos, psicológicos e
sociais (em síntese: fatores biopsicossociais).
Em primeiro lugar, tanto há, no mínimo, influência da genética na determinação da sexualidade que
há maior incidência de homossexuais entre gêmeos univitelinos do que entre outros irmãos (gêmeos
bivitelinos ou irmão não gêmeos). Se se parte do pressuposto que a ausência de homossexualidade em
todos os gêmeos univitelinos pesquisados afastaria a teoria da determinação genética da sexualidade
(hétero, homo ou bissexual), esta maior incidência da mesma sexualidade em gêmeos univitelinos mostra
inequivocamente que há, no mínimo, influência genética na determinação da sexualidade (seja ela homo,
hétero ou bissexual)63.
Penso que o desejo sexual por pessoas do mesmo sexo, de sexo diverso ou de ambos os sexos seja
inato. Essa a minha pré-compreensão. Afinal, se o meio ambiente isoladamente considerado fosse capaz
de definir a sexualidade de uma pessoa, por meio de mensagens expressas, subconscientes etc., hoje não
existiriam homossexuais pelo simples fato de ser nossa sociedade heterossexista64 há muito tempo. Ora,
se a criação dos pais, a cultura e/ou o meio social definissem a sexualidade da pessoa, então não seria
possível o surgimento de homossexuais ante a constante pregação social historicamente existente no
sentido de que a heterossexualidade seria a única sexualidade “correta”, “aceitável”, e assim por diante.
Em outras palavras: a sociedade não só faz apologia à heterossexualidade como a exige de todas as
pessoas, de forma expressa e implícita, donde me parece ilógico defender que a sexualidade seria
definida por fatores “psicossociais” a partir do momento em que existem homossexuais em um mundo no
qual todos os fatores psicossociais direcionam a pessoa à heterossexualidade65. Claro que isso não
significa que as pessoas devam ser analisadas em sua complexidade identitária a partir de um ponto de
vista puramente biológico. De maneira nenhuma: pensar assim seria confundir identidade sexual com
orientação sexual, supradefinidas. As atitudes da pessoa e suas reações ao que acontece à sua volta
decorrem, basicamente, do meio social em que convive, dos seus valores e de suas pré-compreensões
acerca da vida em geral. O que defendo aqui é que o desejo sexual por pessoas do mesmo sexo, do sexo
oposto ou de ambos os sexos sofra determinação ou, no mínimo, influência genética/biológica, o que
nada tem a ver com a forma como essa pessoa administrará sua vida e a forma como ela agirá diante dos
acontecimentos em geral.
Já tive a curiosidade de perguntar a defensores da teoria da determinação ou influência dos fatores
psicossociais na sexualidade quais seriam tais fatores. Verifiquei duas ordens de respostas: a primeira é
inacreditável: eles não sabem! Ou seja, afirmam que a sexualidade seria definida ou influenciada por
fatores psicossociais, mas não sabem dizer quais fatores psicossociais seriam esses! Ora, isso é um
absurdo. Se alguém afirma que algo externo à pessoa influencia ou determina sua sexualidade, então deve
necessariamente saber ao menos quais seriam esses fatores concretos aptos a influenciar ou determinar a
sexualidade do indivíduo. O ônus da prova está com os que defendem que a influência de fatores
psicossociais influenciaria ou determinaria a orientação sexual, pois estes fatores são externos à pessoa,
plasmados por atitudes contra ela cometidas ou realizadas, que devem, por isso, ser apontadas para que
se possa defender sua existência. Por esse raciocínio, é descabido exigir a comprovação dos defensores
da teoria genética, na medida em que, se fatores psicossociais não influenciarem na orientação sexual, ela
só poderá ser genética, pela ausência de outra explicação possível. Como a genética é algo interno à
pessoa, que existe independentemente de fatores externos, esse raciocínio inverso quanto ao ônus da
prova é plenamente válido (ou seja, embora seja, em tese, possível descobrir se a genética efetivamente
influencia ou determina a orientação sexual, esse raciocínio inverso é plenamente válido). Em verdade, é
muito curioso o posicionamento daqueles que dizem que a sexualidade decorreria de fatores
psicossociais, pois tais pessoas não se dignam a dizer quais seriam esses fatores psicossociais
ensejadores da homossexualidade! Isso, a meu ver, desprestigia qualquer possibilidade de aceitação
dessa teoria, tendo em vista que cabe àqueles que alegam ter provas de suas afirmações – sendo
aplicável, inclusive, o célebre adágio processual segundo o qual alegar sem provar é o mesmo que não
alegar. Nem se diga que caberia a quem defende a teoria genética provar ser a sexualidade genética,
tendo em vista que, não havendo provas de ser ela influenciada por fatores psicossociais, tal significa
que ela só pode ser inata, genética. Afinal, se não for determinada por fatores psicossociais, então só
pode ser inata, genética. Essa é a premissa (puramente lógica) de que partimos e que enseja meu
posicionamento segundo o qual o ônus da prova da origem da sexualidade reside naqueles que alegam
que seria psicossocial, pois se algo independe do meio social para existir, isso significa que esse algo é
inato, natural.
A segunda resposta apresentada, por sua vez, pauta-se na suposta influência que um pai agressivo e
distante e uma mãe superprotetora teriam nesse sentido, ou seja, de que tal conjuntura fizesse a pessoa
“se tornar” homossexual. Contudo, tal circunstância é desprovida de comprovação empírico-científica
que a sustente. Afinal, essa foi (em geral) a conjuntura de todo o século XX – pais distantes e despóticos;
mães superprotetoras66. Fosse essa teoria válida, a maioria das pessoas seria homossexual, o que não é
evidentemente o que ocorre67.
A única influência comprovada dos fatores psicossociais na sexualidade ocorre na exteriorização
desta às pessoas em geral (a pessoa se apresentar como homo, hétero ou bissexual), mas nunca na
sexualidade em si (a pessoa ser homo, hétero ou bissexual). Ou seja, o que pode acontecer é a pessoa
acabar reprimindo sua verdadeira sexualidade devido ao preconceito e à discriminação existentes na
sociedade – um homossexual que finge ser heterossexual e até mesmo mantém um relacionamento
heterossexual68 apenas para não sofrer o preconceito e a discriminação hoje dispensados aos
homossexuais.
Sobre o tema, vale citar que, quando se fala que uma pessoa homossexual torna​-se gay, se quer dizer
que a pessoa, que já é homossexual (sente atração erótico​-afetiva por pessoas do mesmo sexo), precisa
aceitar sua própria homossexualidade e aceitar vivê-la plenamente, a despeito dos preconceitos sociais
existentes contra ela69. Explique-se: o adolescente heterossexual, quando passa a ter desejos eróticos por
pessoas de sexo oposto ao seu, aceita naturalmente esse seu desejo heteroerótico e aceita, assim, a
perspectiva de eventualmente manter uma relação amorosa com uma pessoa de sexo oposto. Na mesma
situação, o adolescente homossexual, quando passa a ter desejos eróticos por pessoas do mesmo sexo,
normalmente nega esses desejos e nega a perspectiva de eventualmente manter uma relação amorosa com
uma pessoa do mesmo sexo por força de todo o preconceito social contra a homossexualidade, o que lhe
causa forte angústia por se conscientizar de que tem uma característica (homossexualidade) que a
sociedade (e, muitas vezes, sua própria família70) despreza71. Ou seja, enquanto para o adolescente
heterossexual é fácil assumir sua identidade pela ausência de preconceitos sociais contra a
heterossexualidade, para o jovem homossexual é difícil assumir sua identidade por conta dos
preconceitos sociais contra a homossexualidade72 e por temer não atender às expectativas de sua
família73. Assim, tornar-se gay é o processo de autoaceitação da pessoa acerca de sua
homossexualidade74, aceitando-se enquanto homossexual e, preferencialmente, criando uma imagem
positiva acerca de si, enquanto pessoa homossexual75, e uma imagem positiva acerca de namoros e
relacionamentos conjugais homoafetivos. Inexiste a necessidade de um heterossexual de tornar-se hétero
porque, dada a ausência de preconceitos sociais contra a heterossexualidade, o adolescente heterossexual
já aceita instintivamente sua heterossexualidade e sua identidade heterossexual, na qual não sofre
angústia e não tem receio nenhum de assumir sua heterossexualidade e de manter namoros
heteroafetivos76.
Sobre o tema, vale a explicação de Richard A. Isay77, fruto de seus muito anos exercendo
psicoterapia em favor de pacientes homossexuais:

A autopercepção do adolescente homossexual é a tarefa de desenvolvimento mais importante


desta etapa de sua vida, o começo da consolidação e da integração de sua orientação sexual, o
primeiro estágio para tornar-se gay. Em termos ideais, a sua sexualidade deveria se integrar
positivamente, um processo difícil para muitos por causa da rejeição inicial dos pais, a posterior
rejeição dos amigos, a interiorização. Seria razoável presumir que, assim como o adolescente
heterossexual, o adolescente homossexual de onze, doze ou treze anos estaria apto a reconhecer a
sua homossexualidade a partir do surgimento dos impulsos sexuais na época da maturação
psicológica. Mas nós já vimos as muitas razões para as demoras neste processo, em especial a sua
autoestima danificada, portanto, é só depois dos dezoito, dezenove anos, ou mesmo até depois da
sua maioridade, que os adolescentes homossexuais são capazes de assumir para si mesmos a sua
orientação homossexual. Para que o adolescente seja capaz de se assumir para si mesmo, é preciso
que ele se sinta relativamente livre dos danos causados à sua autoestima, para poder se sobrepor à
negação de seus sentimentos por pessoas do mesmo sexo, negação esta provocada pela sensação de
ter sido rejeitado, primeiro pelos pais na infância, depois por seus amigos, por temer desapontar os
pais, pela estigmatização social, estereótipos negativos e pela falta de modelos saudáveis para
seguir. Para se assumir para si mesmo, ele tem que ter adquirido suficiente independência e
autoconfiança a ponto de perceber que nunca será capaz de corresponder às necessidades de seus
pais, no que diz respeito a uma vida convencional com uma família convencional. De certo modo ele
tem que desistir de fazê-lo. Frequentemente a autoaceitação só ocorre depois que o rapaz descobre o
amor, uma paixão suficientemente poderosa para ajudá-lo a superar a negação. Frequentes fantasias
sexuais acompanhadas de masturbação são tão importantes para consolidar a sexualidade do
adolescente homossexual quanto para o heterossexual. Experimentações sexuais no âmbito de um
relacionamento afetivo têm maior probabilidade de provocar o início de uma integração positiva do
que encontros sexuais com parceiros anônimos. No entanto, tais relacionamentos não se encontram
tão disponíveis para jovens homossexuais quanto para heterossexuais que estejam explorando sua
sexualidade [obs.: isso em razão do forte preconceito social contra relacionamentos amorosos
homoafetivos]. Assumir-se para outros adolescentes e adultos gays, ou em outras palavras, a
“homossocialização”, ajuda-o a superar o desespero que é frequentemente causado pela
estigmatização e rejeição por parte dos amigos ou da família. Funciona como uma espécie de
antídoto contra a sua sensação de isolamento cognitivo e social, e é um refúgio do abuso verbal e
físico a que muitos são sujeitos, especialmente aqueles de aparência e comportamentos menos
convencionais. Fazer amizades com outros adolescentes gays e envolver-se em meios sociais gays
propicia a estes adolescentes a criação de alianças, o encontro de parceiros sexuais e a descoberta
de modelos que possam idealizar e com quem possam se identificar. (...) Quando os pais o aceitam,
o adolescente se reassegura do seu amor e apoio, não apenas como homossexual, mas como uma
pessoa destacada deles, o que aumenta a probabilidade de assimilar a sua orientação sexual de
maneira positiva. Pais que rejeitam furiosamente o filho por ser gay ou lésbica provavelmente
querem que ele corresponda às suas expectativas sociais e oferecem pouco suporte ou respeito para
o desenvolvimento de independência, individualidade e autoconfiança do filho. Quando estes
adolescentes finalmente colocam a sua orientação sexual aos pais, costumam fazê-lo de maneira
agressiva, para machucar, mas também para abrir um espaço em meio ao que se espera deles, de
modo a poderem crescer, se expressar e confiar em si.

Logo, quando se fala que a pessoa homossexual precisa tornar-se gay não se está dizendo que ela
vai adquirir o desejo homossexual, mas que ela precisa aceitar seu desejo homossexual já existente e
aceitar que pode ser feliz em um relacionamento conjugal homoafetivo78, da mesma forma que
heterossexuais aceitam seu desejo heterossexual e aceitam que podem ser felizes em relacionamentos
conjugais heteroafetivos. Uma identidade saudável como gay supõe à pessoa homossexual ter
experiências sexuais apaixonadas, assumir-se quando possível, fazer amizades com outros gays e
sustentar relacionamentos sexuais íntimos e amorosos mútuos79.
Em suma, ainda que alguém seja geneticamente homossexual, nada impede que dita pessoa reprima
sua verdadeira orientação sexual para ser aceita pelo seu meio social e, inclusive, mantenha um
relacionamento heterossexual “de aparência”. Afinal, o meio não tem como mudar a sexualidade da
pessoa, mas tem como coagi-la a reprimir sua verdadeira sexualidade pelo medo do preconceito social.
Essa pode ser, a meu ver, a explicação para gêmeos univitelinos que aparentemente têm sexualidades
“distintas”. Na verdade, eles têm a mesma sexualidade, contudo um deles se aceita enquanto homossexual
e o outro sofre de preconceito internalizado. Isso é possível porque, embora geneticamente idênticos,
cada um desenvolve uma personalidade, e o fato de serem gêmeos idênticos não significa que terão
exatamente o mesmo amadurecimento psicológico. Assim, se um dos dois acabar tendo mais medo ou
ignorância que o outro sobre o tema da homossexualidade, vai acabar reprimindo sua verdadeira
sexualidade, diferentemente do outro. Aponte-se, ainda, que as pesquisas em geral não levam em conta
essa questão do preconceito internalizado, apenas acreditando na resposta à pergunta direta no que tange
à orientação sexual na qual a pessoa se enquadraria (pois a pessoa pode mentir ao responder, o que
ocorre com frequência com relação a esta pergunta quando respondida por muitos homossexuais, que se
dizem heterossexuais para não sofrerem preconceito).
Outrossim, também no sentido da origem biológica da homossexualidade, são esclarecedoras as
palavras de Suzana Herculano-Houzel, neurocientista e professora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, que afirma peremptoriamente não ser a sexualidade uma “opção”, mas, ao contrário, ser ela
determinada biologicamente mediante a influência de genes e hormônios durante a formação, ainda no
útero, de determinadas regiões cerebrais, que, por sua vez, determinarão mais tarde a preferência sexual,
depois de amadurecidas na adolescência80.
Em suma, entendo ser a sexualidade inata pela ausência de provas de que influências psicossociais
certamente não determinam a orientação sexual da pessoa, pois se a psicologia ou o meio social a
determinassem, então não seria possível a existência de homossexuais e bissexuais em uma sociedade
heterossexista como a nossa. Por outro lado, se em gêmeos univitelinos encontrarem-se realmente
orientações sexuais verdadeiramente distintas (e não apenas homofobia internalizada naquele que se
declarou heterossexual), então parece que realmente ficará provado que a genética tem uma influência na
orientação sexual (já que a grande maioria dos gêmeos univitelinos se identificam com a mesma
orientação sexual), com possível influência do meio psicossocial na definição da sexualidade. Contudo,
independentemente de qual das teorias (genética ou psicossocial) sobre a origem da sexualidade esteja
efetivamente correta (não há consenso entre os especialistas no tema), o que se deve ter como objetivo é
o combate à discriminação homofóbica. Aqueles que são preconceituosos discriminarão homossexuais
e/ou bissexuais independentemente de a sexualidade ser de origem genética ou psicossocial (se for
genética, insistirão que seriam “doenças”, ao passo que se for psicossocial, farão o possível para que
ditos fatores psicossociais sejam evitados...). Assim, o principal enfoque da discussão sobre a
homossexualidade deve ser o combate ao preconceito, não o debate (interessante, não se dúvida) sobre a
origem da homossexualidade – assim como da hétero e da bissexualidade.

3.3 “Opção” x orientação sexual: correta colocação do tema


Uma concepção largamente difundida é a de que a homossexualidade seria uma “opção”, uma
“escolha” do indivíduo. A constatação dessa concepção verifica-se facilmente, tendo em vista ser comum
a população se referir à homossexualidade como “opção sexual”. Contudo, essa visão é sem dúvida
equivocada, sendo isso fácil de constatar – inclusive com a explanação da neurocientista Suzana
Herculano​-Houzel, transcrita em nota de rodapé.
Com efeito, nenhuma pessoa escolhe ser homo, hétero ou bissexual: as pessoas simplesmente se
descobrem de uma forma ou de outra. Não há “escolha”, mesmo porque, se opção houvesse, certamente
as pessoas optariam pela orientação sexual mais fácil de ser vivida, qual seja aquela que não sofre com o
preconceito social: a heterossexual. Em suma: sexualidade não se escolhe, se descobre.
Dessa forma, não se trata de “opção sexual”, mas de orientação sexual do indivíduo, expressão que
significa que o desejo sexual está “em direção a” determinado sexo biológico, o que não ocorre por
“sugestionamento”81. Como mencionado, a orientação sexual foi bem definida pelos Princípios de
Yogyakarta como a “capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual
por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações
íntimas e sexuais com essas pessoas”82. Ou seja, é a identificação do gênero que se deseja o dado
revelador da orientação sexual, nada mais83. Isso porque, se assim fosse (“escolha” e não orientação
sexual), por qual motivo uma pessoa escolheria viver toda a sua vida de uma forma que a sociedade em
geral ainda não aceita? Qual motivo levaria alguém a escolher, ainda em tenra idade, uma forma de vida
que certamente será alvo de discriminação de muitas pessoas certamente desconhecedoras (ignorantes)
do tema? Afinal, desde tenra idade já sabemos qual é a nossa sexualidade, seja a pessoa hétero, homo ou
bissexual, sendo que os indivíduos destes dois últimos grupos muitas vezes demoram a aceitar sua
orientação sexual em decorrência do preconceito ainda existente em nossa sociedade quanto a essas
orientações, o que não altera o fato de terem sempre sido homo ou bissexuais.
Crianças e adolescentes, como é notório, são indivíduos que, mais do que adultos, buscam uma vida
livre de preocupações. Em sendo assim, é óbvio que uma pessoa nessa idade, ao vislumbrar todo o
preconceito existente em face da homo e da bissexualidade, jamais escolheria, de livre e espontânea
vontade, viver de uma forma que a sociedade ainda não aceita. Do mesmo modo, muitos homossexuais e
bissexuais adultos escolheriam mudar sua sexualidade para heterossexual se pudessem, pois estes não
sofrem preconceito por sua orientação sexual, ao contrário daqueles – aliás, deve-se notar a existência de
homossexuais que desejam genuinamente mudar sua orientação sexual para fugir da discriminação
homofóbica, mas não conseguem, muito embora se esforcem para tanto (conseguindo no máximo sublimar
sua homossexualidade, que contudo continua existindo).
Como se sabe, a sociedade contemporânea ainda tem muitas reservas com relação a homossexuais.
Em decorrência da ignorância e de seus preconceitos sobre o tema, acaba dispensando um tratamento
muitas vezes discriminatório com relação a homossexuais – seja por meio de agressões físicas, verbais
ou até mesmo pela proibição da manifestação homoafetiva em determinados locais, quando
manifestações heteroafetivas idênticas são permitidas84. Faz isso por considerara homoafetividade uma
conduta “imoral”, que seria passível de reprovação. Ora, se a sexualidade da pessoa dependesse da
“opção” dela, qual pessoa escolheria de livre e espontânea vontade ser de uma forma que sofre o repúdio
social? Qual pessoa não optaria em mudar para a orientação sexual que não é objeto de preconceitos?
Entenda-se bem o que se está dizendo: não se trata de considerar esta ou aquela orientação sexual como
“certa”, “natural”, e assim por diante. Trata-se apenas de afirmar que as pessoas optariam viver da forma
mais fácil, sem a dificuldade “extra” do preconceito social. Afinal, aqueles que amam pessoas do mesmo
sexo têm, além das mesmas dificuldades cotidianas daquelas que direcionam seu amor a pessoas de sexo
diverso, a dificuldade oriunda da discriminação homofóbica, do desprezo social.
Nesse sentido, dada a existência de uma equivocada moral coletiva que considera a
homossexualidade uma conduta desviante e indigna, a taxação da homoafetividade como uma “escolha
consciente” do indivíduo só ajuda a reforçar o preconceito existente contra ditas pessoas. Afinal, aquele
que por ela “optasse” estaria indo de livre e espontânea vontade contra os valores tidos como corretos
pela sociedade, afrontando-a por escolha própria. Esse é o preconceito oriundo da tachação da
sexualidade humana como uma “opção consciente” do indivíduo85.
Por outro lado, sem contradizer o que se acabou de expor, deve ser ressaltado que o respeito à
diversidade humana é indispensável em qualquer situação, seja com relação a crenças políticas,
religiosas, ideológicas e quaisquer outras possíveis. Cada pessoa tem sua própria forma de pensar e agir
desde o início dos tempos. Nunca houve uma unanimidade no pensamento humano: sempre existiram
aqueles que discordaram do pensamento vigente, ainda que em extrema minoria, donde o simples fato de
uma pessoa ser diferente de outra em algum ponto não pode ser motivo suficiente para ser ela
discriminada em relação àqueles dos quais ela se diferencia. A diferenciação de tratamento deve ser
sempre pautada pela lógica e pela racionalidade, para evitar que vivamos em uma sociedade pautada
pelo subjetivismo e pela arbitrariedade de alguns. A partir do momento em que a própria Constituição da
República afirma que o Brasil é uma sociedade fraterna, plural e sem preconceitos86, então aqueles que
são diferentes devem ser respeitados.
Como se vê, apesar de ser incorreto o uso da expressão “opção sexual”, tal diferença conceitual é
irrelevante: da mesma forma que ninguém pode ser discriminado por uma característica a si inerente
(inata), também não pode sê-lo por escolhas conscientes que não tragam prejuízos a terceiros e que não
sejam expressamente vedadas por lei (art. 5.º, II, da CF/1988). Ou seja, mesmo que se considerasse a
homossexualidade como uma “opção” do indivíduo (e “opção” não é), ainda assim não poderia ela ser
objeto de discriminação jurídica, visto que não é proibida pela lei e que não traz prejuízo algum a
nenhuma pessoa – afinal, somente homossexuais se relacionarão amorosamente (amor romântico) com
homossexuais, não estando nenhum heterossexual obrigado a fazê-lo pelo simples fato de se reconhecer a
normalidade e a naturalidade da relação homoafetiva, como é ou deveria ser óbvio.
Assim, inobstante não ser a sexualidade humana uma “escolha” do indivíduo, o fato de alguns serem
homossexuais ou bissexuais, ao passo que outros são heterossexuais, não pode isoladamente justificar a
discriminação daqueles em relação a estes , pois essa “diferença” no que tange à direção à qual o amor
está apontado (se a pessoa do mesmo sexo ou a pessoas de sexo diverso) não altera em nada o caráter, a
competência nem a dignidade das pessoas. É uma “diferença” irrelevante, especialmente para o Direito,
que obrigatoriamente deve ser regido pela lógica e pela racionalidade.

3.4 Conceito de homofobia


Não há espaço neste trabalho, que se foca no Direito das Famílias, para investigar profundamente o
conceito de homofobia, a despeito de ter sido demonstrado, no capítulo 1, que o machismo é a origem
histórica da homofobia ante a perseguição a homens que mantivessem uma sexualidade passiva ter se
“justificado” pelo fato de eles estarem supostamente “abrindo mão” de sua masculinidade, que suporia
necessariamente o “papel ativo” na relação sexual. Contudo, cabe aqui anotar que concordo
integralmente com o conceito muito bem desenvolvido por Daniel Borrillo87 em seu estudo monográfico
acerca do tema, segundo o qual:

A homofobia pode ser definida como a hostilidade geral, psicológica e social contra aquelas e
aqueles que, supostamente, sentem desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos de seu próprio
sexo. Forma específica do sexismo, a homofobia rejeita, igualmente, todos aqueles que não se
conformam com o papel predeterminado para seu sexo biológico. Construção ideológica que
consiste na promoção constante de uma forma de sexualidade (hétero) em detrimento de outra
(homo), a homofobia organiza uma hierarquização das sexualidades e, dessa postura, extrai
consequências jurídicas.

Nesse sentido, a negação do casamento civil, da união estável e da adoção conjunta a casais
homoafetivos implica inegavelmente uma forma de homofobia institucional/social do Estado que, ainda
que não persiga homossexuais e tolere a conjugalidade homoafetiva, não respeita integralmente os
cidadãos homossexuais, ao não garantir, aos casais homoafetivos, os regimes jurídicos destinados aos
casais heteroafetivos, em flagrante desrespeito ao direito a igual respeito e consideração devido a todos
e, portanto, também a homossexuais e casais homoafetivos, por isto caracterizar verdadeira
hierarquização da heterossexualidade e da conjugalidade heteroafetiva sobre a homossexualidade e a
conjugalidade homoafetiva, na medida em que se garantem direitos e status social superior àquelas em
relação a estas.

3.5 As minorias sexuais. conceituação de orientação sexual, gênero e identidade de gênero


Ainda não há literatura consolidada acerca do significado preciso da expressão minorias sexuais,
razão pela qual se afigura indispensável a delimitação do que aqui se entenda por tal categoria. Entende-
se aqui que as minorias sexuais são formadas por pessoas que são discriminadas por conta de sua
orientação sexual, sua identidade de gênero, por seu gênero dissonante do socialmente esperado para
pessoas de seu sexo biológico, por sua intersexualidade ou por exercerem práticas sexuais não aceitas
pela moralidade majoritária sem que haja motivação lógico-racional que justifique tal discriminação. Até
hoje as minorias sexuais sempre foram formadas por homossexuais88, bissexuais89, transexuais90,
travestis91 e intersexuais92, ou seja, aqueles cuja orientação sexual não seja a heterossexual
(homossexuais e bissexuais), aqueles cuja identidade de gênero não coincida com o gênero socialmente
atribuído ao seu sexo biológico (transexuais, travestis), aqueles cuja biologia pessoal traz elementos de
ambos os sexos (intersexuais) e aqueles que têm comportamentos que a sociedade atribui a pessoas do
outro sexo (discriminação por motivo de gênero). Isso porque estes são grupos de pessoas que têm sido
discriminadas ao longo dos tempos unicamente por conta de sua sexualidade93, de seu gênero ou de sua
identidade de gênero, em virtude do heterossexismo social94 ainda vigente.
Discutir-se-á, agora, o que se entende pelos elementos centrais dessa definição, devido ao
desconhecimento acerca do conteúdo das expressões orientação sexual, gênero e identidade de gênero,
assim como pela inacreditável controvérsia existente sobre o que significaria orientação sexual.
A orientação sexual refere-se ao sexo que atrai a pessoa de forma erótico-afetiva, definindo-a como
homossexual, heterossexual ou bissexual95. Tal expressão se refere ao sexo biológico ao qual o
sentimento erótico-afetivo da pessoa está direcionado. Trata-se da atração erótico-afetiva que se sente
por pessoas do mesmo sexo (homossexualidade96), pessoas de sexo diverso (heterossexualidade97) ou de
ambos os sexos (bissexualidade98). Portanto, atualmente, a homossexualidade caracteriza-se pelo amor
romântico-conjugal entre pessoas do mesmo sexo; a heterossexualidade pelo amor romântico-conjugal
entre pessoas de sexo diverso; e a bissexualidade pelo amor romântico-conjugal entre pessoas de ambos
os sexos99. Logo, o que distingue homo, hétero e bissexualidade é o objeto de desejo erótico-afetivo,
respectivamente, pessoas do mesmo sexo, pessoas de sexo diverso e pessoas de ambos os sexos.
Esclareça-se: quando falo em atração erótico-afetiva, não estou querendo dizer que todo
envolvimento sexual se dá com estes dois elementos – há uma infinidade de relacionamentos sexuais que
não são pautados pelo afeto romântico da definição, mas não é esse o foco aqui pretendido. A intenção
foi destacar que o homossexual só consegue sentir atração, tanto erótica quanto romântico-afetiva, por
pessoa do mesmo sexo, que o heterossexual só consegue sentir atração, tanto erótica quanto romântico-
afetiva, por pessoa do sexo oposto e que o bissexual consegue sentir atração, erótica e afetiva, por
pessoas de ambos os sexos – o que não significa que a mera atração erótica (sexual) não surja nestas
pessoas por outras (as quais, portanto, podem perfeitamente sentir atração meramente erótica/sexual por
outras, sem sentiram atração afetiva/romântica por elas).
É de se refutar, aqui, o argumento por vezes utilizado no sentido de que a expressão orientação
sexual abarcaria também a pedofilia/pederastia100, ou seja, o desejo sexual por menores de idade. Trata-
se de argumento que desafia a inteligência e beira a má-fé, argumento este normalmente esgrimido por
religiosos fundamentalistas que condenam, a priori, a homossexualidade e buscam, a todo instante,
“argumentos” para tentar justificar seu preconceito homofóbico. Com efeito, a pedofilia é uma prática
sexual específica que independe da orientação sexual. A expressão orientação sexual envolve o sexo
biológico que constitui o objeto do sentimento erótico-afetivo das pessoas, independentemente da idade,
ao passo que a pedofilia é uma prática sexual específica que não está relacionada à orientação sexual
(pode ser praticada por homo, hétero ou bissexuais), praticada entre um adulto e uma criança, prática esta
moralmente condenada ao longo dos últimos séculos (embora largamente difundida no passado, a partir
da puberdade das pessoas). Logo, prática sexual não se confunde com orientação sexual. Um mínimo de
bom-senso leva a tal constatação.
Aponte-se, ainda, que a orientação sexual independe de “opção” da pessoa, pois a realidade
empírica já demonstrou que um ato de vontade é incapaz de alterar a orientação sexual de alguém, sendo
assim tecnicamente incorreta a expressão opção sexual. Ainda que a ciência médica não saiba definir o
que forma a sexualidade, aduzindo tratarem-se de fatores biopsicossociais, ponto pacífico na seara
científica séria é aquele segundo o qual a pessoa não escolhe ser homo, hétero ou bissexual,
simplesmente descobre-se de uma forma ou de outra. O que pode ocorrer é a pessoa reprimir sua
verdadeira orientação sexual (normalmente, homossexuais e bissexuais) para exteriorizar uma outra (a
heterossexual) por conta do preconceito social que teme sofrer se assumir sua verdadeira orientação
sexual101. Contudo, neste caso, não temos uma “mudança” de orientação sexual, mas mera repressão da
verdadeira orientação sexual da pessoa, em que se pode concluir que “opção” há, apenas, na
exteriorização ou não de sua orientação sexual, mas não na definição dela.
Por fim, a orientação sexual não é passível de “ensino”, de aprendizado nem nada do gênero, como a
inacreditável interpretação literal do termo “orientação” faz algumas pessoas pensar. Isso resta
igualmente comprovado pelas inúmeras pesquisas psicossociais que já demonstraram que a criação de
um menor por um casal homoafetivo não aumenta a possibilidade de ele “se tornar” homossexual102 –
mesmo porque a orientação sexual não se escolhe nem se ensina, apenas se descobre.
O termo gênero significa o conjunto de características atribuídas às pessoas por conta de seu sexo
biológico103. Ou seja, a partir da presunção de que determinadas atitudes e posturas seriam inerentes ao
homem ou à mulher (essencialismo), criaram​-se os conceitos de masculinidade e feminilidade para
designar as atitudes que se espera/exige de homens (masculinidade) e de mulheres (feminilidade) –
basicamente, como forma de se estabelecer o predomínio dos homens sobre as mulheres104, com a
atribuição de características de autonomia, liderança, racionalidade, agressividade, competitividade,
objetividade e não expressão das emoções ao masculino105 e características de hipersensibilidade
emocional, passividade, subjetividade e criação/educação dos filhos ao feminino106. Em suma, o
masculino define-se em negação ao feminino (pois, segundo as normas de gênero que perduram até hoje,
masculino e feminino seriam categorias antagônicas, diametralmente opostas entre si). Como se vê, neste
campo, tem-se presentes as ideologias de gênero, “que nos ensinam o comportamento adequado,
esperado e recompensado pelos outros, moldam nossas personalidades para conformá-las às normas
sociais e reprimem ou punem comportamentos a elas não conformes” e que nos são transmitidas desde o
nosso nascimento107. Embora não seja o escopo deste trabalho realizar as profundas digressões
sociológicas inerentes ao tema já amplamente explorado pelos estudos sociológicos (principalmente
feministas), cabe lembrar que a literatura já demonstrou que os conceitos de masculinidade e
feminilidade são relativos (construtivismo), variáveis conforme cada sociedade e dependentes dos
valores a elas inerentes108, em que resta refutada qualquer cientificidade de argumentos que diga que
determinadas atitudes éticas e/ou morais sejam inerentes ao sexo biológico109.
A identidade de gênero constitui-se no entendimento que a pessoa tem relativamente ao gênero do
qual faz parte110. Transexual é a pessoa na qual há dissociação entre o seu sexo biológico e sua
identidade de gênero (ou seja, entre seu sexo físico e seu sexo psíquico). Usando-se uma expressão já
consagrada neste campo, é a pessoa que tem convicção de que nasceu no corpo errado111. É o caso do
homem que se entende como mulher e da mulher que se entende como homem. Daí se percebe a clara
distinção entre homossexuais e transexuais: enquanto os segundos não se identificam com seu sexo
biológico, os primeiros identificam-se com ele e, apesar disso, possuem sentimento erótico-afetivo
direcionado a pessoas do mesmo sexo.

4. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


A homossexualidade é o sentimento de amor romântico por uma pessoa do mesmo sexo.
Tecnicamente, é a atração erótico-afetiva que se sente por uma pessoa do mesmo sexo. Não constitui
doença, desvio psicológico, perversão nem nada do gênero. Tal entendimento é esposado
internacionalmente pela Organização Mundial de Saúde, por meio de sua Classificação Internacional de
Doenças n. 10, em sua última revisão de 1993 (CID 10/1993) e, nacionalmente, pela Resolução 01/1999
do Conselho Federal de Psicologia, e também pela Associação Americana de Psiquiatria desde a década
de 1970. Assim, percebe-se que ela é uma das livres manifestações da sexualidade humana, ao lado da
heterossexualidade.
Não é ela uma “opção” do indivíduo, pelo simples fato de que ninguém escolhe em dado momento de
sua vida se vai ser homo, hétero ou bissexual: as pessoas simplesmente se descobrem de uma forma ou
de outra. Da mesma forma, não se consegue “trocar” de orientação sexual ao longo da vida – os que se
sentem genuinamente atraídos tanto por homens quanto por mulheres (ainda que em gradações diferentes)
são bissexuais. Note-se que a expressão orientação sexual significa, tanto popular como tecnicamente,
que o desejo está “em direção a” determinado sexo biológico, não significando que a pessoa teria sido
“orientada” a ter esta ou aquela sexualidade, sendo que o entendimento neste último sentido decorre de
tradução puramente literal dos significados dos termos isolados da expressão, o que afronta seu correto
entendimento. Não há “sugestionamento” na orientação sexual – o sugestionamento é inócuo, pois não tem
nenhuma influência na sexualidade, podendo tê-la apenas na forma como a pessoa se identifica
socialmente em termos de sua sexualidade (no apresentar-se como homo, hétero ou bissexual, não no ser
homo, hétero ou bissexual).
Hoje, há aparentemente uma predominância do entendimento segundo o qual a homossexualidade
seria originada por meio de uma conjugação de fatores biopsicossociais. Nesse sentido, fica comprovado
pela maior existência de homossexuais entre gêmeos univitelinos do que entre irmãos bivitelinos (ou que
não sejam gêmeos) que a genética tem pelo menos influência na determinação da sexualidade. Contudo,
este autor vai além, por aderir à teoria genética, em função: (i) de inexistir “opção” da pessoa nesse
sentido; (ii) de a cultura e o meio social não serem capazes de determinar/transformar a sexualidade do
indivíduo – pois, se assim o fosse, a visão heterossexista, que há séculos está em vigor em nossa
sociedade, já teria extirpado todos os não heterossexuais da população humana; (iii) da questão do
preconceito internalizado, que pode justificar o fato de gêmeos idênticos que tenham a mesma
sexualidade se identificarem de forma diversa (ou seja, um assumir e outro reprimir sua verdadeira
sexualidade). De qualquer forma, não há dúvidas de que, ao menos, influência genética há na
determinação da orientação sexual.
A orientação sexual refere-se ao sexo que atrai a pessoa de forma erótico-afetiva, definindo-a como
homossexual, heterossexual ou bissexual. Não se confunde com a pedofilia, que é uma prática sexual
específica que pode ser cometida por pessoas de qualquer orientação sexual nem é passível de
ensinamento, tendo em vista que ela não é algo que se aprende nem se escolhe, mas simplesmente se
descobre.
O termo gênero significa o conjunto de características atribuídas às pessoas por conta de seu sexo
biológico, atribuições estas pautadas por valores culturais relativos que variam entre os tempos e entre
as diversas sociedades humanas.
A identidade de gênero constitui-se no entendimento que a pessoa tem em relação ao gênero do qual
faz parte – embora as pessoas usualmente tenham uma coincidência entre seu sexo físico e seu sexo
psíquico, transexuais sofrem uma disforia de gênero ensejadora da dissociação entre seu sexo físico e
seu sexo psíquico. Diferenciam-se das travestis porque estas não se incomodam em ser identificadas
como pessoas de seu sexo biológico mesmo quando se travestem, ao passo que transexuais desejam que
as pessoas em geral não saibam que se trata de uma pessoa de sexo biológico distinto do seu sexo
aparente.
A Bíblia não condena a homossexualidade isoladamente considerada, mas condutas a ela
equivocadamente relacionadas, como o abuso sexual, a libertinagem e a falta de hospitalidade, que são
igualmente condenadas quando associadas à heterossexualidade. Todavia, quaisquer considerações
religiosas a respeito do tema são irrelevantes para o mundo do Direito, uma vez que o Brasil é um Estado
Laico, no qual nenhuma religião deve intervir na política e especialmente no Direito do país.
De toda forma, ainda que não se aceite a análise histórico-crítica da Bíblia (que demonstra que ela
não condena a homossexualidade), é de se notar que o Brasil é um Estado Laico, no qual fundamentações
religiosas não podem ser válidas para ditar rumos políticos ou jurídicos da nação, visto que, do
contrário, o Estado estará em relação de aliança com a instituição religiosa e/ou religião respectiva, o
que é expressamente vedado pelo art. 19, inc. I, da CF/1988.

1 Uniões homossexuais: efeitos jurídicos. São Paulo: Método, 2004, p. 22.


2 A expressão amor romântico não constitui redundância, mas necessária diferenciação do mesmo para o amor fraterno, que
se sente por familiares e amigos íntimos. Ainda que seja mais do que evidente que quando se fala em homoafetividade ou
heteroafetividade está-se referindo ao amor romântico, não é incomum ouvir em resposta à afirmação de que
homossexuais amam pessoas do mesmo sexo que amor sente-se inclusive por familiares, em referência ao amor fraterno,
como se fosse impossível amar romanticamente pessoas do mesmo sexo (este autor já ouviu isto diversas vezes). Então,
para evitar mal-entendidos (embora um mínimo de bom-senso na interpretação já afastasse essa possibilidade), fazemos
referência a amor romântico neste trabalho como aquele que existe nas uniões amorosas e sexuais entre duas pessoas –
que evidentemente não se limita a paixão ou a desejo carnal, seja entre heterossexuais ou gays, mas no desejo de
construção de uma vida em comum, como se casados (civilmente) fossem. Ademais, fica expresso que sempre que se
referir meramente a amor neste trabalho (sem nenhuma adjetivação), estaremos nos referindo ao citado amor romântico.
Cite-se, por fim, que, ainda que se propague que o amor romântico seja uma invenção do século XIX, fato é que as uniões
amorosas entre duas pessoas são, atualmente, pautadas por ele, razão pela qual, ao menos no atual contexto histórico, é
correta a definição apresentada. De qualquer forma, uma definição que se acredita inalterável por futuras mudanças de
paradigmas no que tange ao amor é a definição técnica apresentada (atração erótico-afetiva).
3 Afirma DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva. O preconceito & a justiça. 5. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 43, que,
etimologicamente, “o vocábulo ‘homossexualidade’ foi criado pelo médico húngaro Karoly Benkert e introduzido na literatura
técnica no ano de 1869. É formado pela raiz da palavra grega homo, que quer dizer ‘semelhante’, e pela palavra latina
sexus, passando a significar ‘sexualidade semelhante’. Exprime tanto a ideia de semelhança, igual, análogo, ou seja,
homólogo ou semelhante ao sexo que a pessoa almeja ter, como também significa a sexualidade exercida com uma
pessoa do mesmo sexo”.
4 Definição constante nos Princípios de Yogyakarta, p. 6. Ditos princípios foram facilmente localizados no google por este
autor. De qualquer forma, segue um link que dá acesso a um arquivo (sob a forma de “.pdf”) contendo-
os: www.sxpolitics.org/mambo452/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=34 . Acesso em: 7 jul. 2008.
Vide o item 1.1 do Capítulo 17, em nota de rodapé, para vislumbrar os direitos garantidos por essa declaração.
5 Extraem-se do Dicionário Houaiss da língua portuguesa as seguintes definições de amor: “atração afetiva ou física que,
devido a certa afinidade, um ser manifesta por outro”, “forte afeição por outra pessoa, nascida de laços de consanguinidade
ou de relações sociais”; “atração baseada no desejo sexual; afeição e ternura sentida por amantes” (2.a reimpr. com
alterações, 2007, p. 193).
6 Enézio de Deus Silva Júnior sintetiza bem os motivos que ensejaram tais neologismos: “No Brasil, dois vocábulos foram
inseridos na linguagem comum, em plausíveis iniciativas, que contribuíram para a compreensão da homossexualidade de
uma forma coerente mais natural: homoerotismo e homoafetividade. O primeiro, do psicanalista Jurandir Costa-Freire, visa
a ‘revalorizar, dar um outro peso moral às experiências afetivo-sexuais que, hoje, são pejorativamente etiquetadas de
homossexuais’ (COSTA, 1992, p. 24). A segunda expressão, da jurista e desembargadora Maria Berenice Dias, enfatiza,
com muita propriedade terminológica, o afeto, enquanto justificativa maior da expressão erótica dos que se sentem atraídos
pelo mesmo sexo. Homoafetivos, destarte, são os vínculos entre pessoas homossexuais (que, bem mais do que sexuais
no sentido genital, encontram no amor a sua razão de se desenvolverem e de existirem em sociedade, apesar de todo o
preconceito)” (JÚNIOR, Enézio de Deus Silva. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais, 2.a Edição, 2.a
Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 57-58).
7 Vale citar, ainda, o significado do termo homoessência: “A homossexualidade, em sintonia com as reformulações científicas,
com os novos entendimentos sobre orientação afetivo-sexual e em conformidade com os avanços jurídicos, em matéria de
direitos humanos, deve ser vislumbrada no plano essencial da constituição humana – assim como as outras manifestações
ou variantes do desejo, como a heterossexualidade e a bissexualidade. Pela razão de sempre ter sido alvo de escárnio,
repúdio e de preconceitos infundados, apresento, através desta obra, e ratifico a expressão que cunhei (desde a defesa do
meu trabalho monográfico): homoessência e suas variantes (homoessencial, homoessencialidade), visando a uma
compreensão sensível da afetividade voltada para o mesmo sexo, porquanto a estrutura humana de desejo é infindável
nascente da psique e um bem fundamental, que não se obstaculiza; no máximo, nega-se no âmbito subjetivo ou camufla-
se, no social. A atração (inclinação) afetiva para o sexo idêntico, com efeito, não surge como escolha nem cessa por
imposição ou vontade, assim como o desejo heterossexual. Por isso, a livre manifestação da sexualidade (e, pois, da
afetividade) está entre os direitos consagrados, internacionalmente, como fundamentais e inalienáveis dos seres humanos”
(Ibidem, p. 58 – sem grifos no original).
8 Considerando que o termo erotismo significa “estado de excitação sexual” (Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2.a
reimpressão, 2007, p. 1190), penso que isso pode causar os mal-entendidos que o termo homoafetivo visa justamente
evitar, apesar da boa intenção de seu autor (demonstrada na transcrição supra), razão pela qual opto pela utilização deste
último.
9 No mesmo sentido, CASTAÑEDA, Marina. A Experiência Homossexual. Explicações e conselhos para os homossexuais,
suas famílias e seus terapeutas. Tradução: Brigitte Moonique Hervot e Fernando Silva Teixeira Filho. São Paulo: A Girafa
Editora, 2007, p. 73, para quem “é importante fazer a distinção entre a orientação sexual (o sexo para o qual sentimos amor
e desejo) e a identidade sexual (o fato de assumir plenamente esta orientação). Pode haver orientação sexual, mas não
identidade; é, de fato, uma situação bastante frequente. A primeira aparece geralmente durante a infância; a segunda não
pode tomar forma antes da adolescência (pois não temos a consciência necessária de nós mesmos antes dessa etapa), e
só pode se desenvolver plenamente na idade adulta – isto é, depois dos vinte anos, aproximadamente”, até porque, como
diz a autora adiante, “A identidade constrói-se também conhecendo os seus semelhantes, e nessa etapa de exploração é
essencial conhecer outros homossexuais. Assim, aprende-se que não se está só, que há inúmeras maneiras de viver a
homossexualidade, e que existem muitos parceiros possíveis. Entende-se também que se pertence a uma comunidade, e
isso é indispensável quando se passa pelo luto da identidade heterossexual. Finalmente, o fato de compartilhar com outros
suas primeiras experiências homossexuais é o primeiro passo de um longo trabalho de ‘saída do armário’ (...)” (Ibidem, p.
94 – grifos nossos).
10 Sigla para “Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros”.. Na 1ª edição desta obra, afirmei que parecia que a militância
havia deliberado pela alteração da sigla, de GLBTT, para LGBTT (dois “Ts” para “Travestis e Transexuais”), de sorte a se dar
maior visibilidade às mulheres lésbicas. Pois bem, realmente colocou-se a letra “L” no início da sigla, deixando-a como
“LGBT” (com um “T” designando Travestis e Transexuais). Assim, embora continue pensando que o importante é termos
todos os grupos representados nas letras da sigla, para evitar confusões no público não militante pela diferença de siglas,
adoto a sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros), que se consolidou ao longo dos últimos anos e é, ainda,
a sigla utilizada pela militância internacional.
11 Quando a pessoa começa a ter noção de sua sexualidade.
12 Vide Representação Conar 039/06, que se encontra na seção de casos de relativos a “respeitabilidade” (Disponível em:
www.conar.org.br, link “decisões e casos”, “resumo das decisões”, “ano-2006”, “abril-2006”. Acesso em: 7 jul. 2008). Segue
o resumo do caso, oriundo do site do Conar: “Consumidores de São Paulo insurgiram-se contra outdoor de lubrificante da
DKT com a imagem de dois homens prestes a se beijar. Segundo as queixas, a peça seria inadequada por apelo excessivo
à sensualidade e ao erotismo, temas impróprios para veiculação em mídia exterior, exposta diuturnamente a público amplo,
inclusive crianças. Antes mesmo que o Conar aceitasse a denúncia, em meio à divulgação oferecida pela imprensa, os
outdoors passaram a ser retirados dos locais de exibição. Houve concessão de medida liminar, seguida de pedido de
reconsideração pela defesa, apoiando-se nos protestos de pessoas contrariadas pela retirada dos cartazes. A medida
liminar, no entanto, foi mantida pelo relator. Anunciante e agência afirmaram em defesa enviada ao Conar que a intenção da
campanha era se comunicar com o público homossexual, alvo do produto anunciado, e que o fez de modo legítimo. Alegou
que a imagem mostrava um ‘quase beijo’, o que não deveria causar indignação, uma vez que a fotografia não se valia de
vulgaridades, retratando apenas uma relação afetuosa. Em seu parecer, o relator esclareceu que a opção sexual retratada
no anúncio não foi o motivo da restrição aplicada a ele e que a peça seria igualmente ousada se, ao invés de dois homens,
mostrasse um homem e uma mulher em um ‘quase beijo’. Não pela imagem, mas por sua associação a um produto
denominado lubrificante pessoal. Para ilustrar sua consideração, o relator levantou a hipótese de uma criança que vê o
cartaz e pergunta ao pai o que é lubrificante pessoal. Dessa forma, recomendou a sustação definitiva da peça em função do
veículo utilizado. Seu voto foi aceito unanimemente pelos membros do Conselho de Ética” (sem grifo no original). Algumas
observações merecem ser feitas. O cartaz não tinha absolutamente nada de “erótico”, mas apenas dois homens em um
quase beijo (em vias de se beijarem). Ademais, não parece acertada a colocação de que crianças poderiam indagar o que
seria um lubrificante. Além de ser uma mera elucubração abstrata, não há problema nenhum em um pai ou uma mãe
explicar ao filho o que seria um lubrificante, de forma sutil, para uma criança entender – da mesma forma como se explica
para crianças de onde os bebês vêm, para usar um exemplo banal mas relativo a uma hipótese análoga. Mesmo porque as
denúncias foram feitas com base no simples fato de se tratar de duas pessoas do mesmo sexo, não pela associação ao
preservativo. Apenas para deixar claro: não digo que a decisão foi pautada por preconceito (especialmente pelo argumento
utilizado) – preconceituosas foram as queixas de consumidores que ensejaram a denúncia (feita de ofício). A decisão foi
apenas equivocada, pelas razões já expostas. De qualquer forma, ao menos uma notícia divulgou que a decisão foi pautada
no fato de que, apesar da campanha não ser ofensiva, o outdoor não seria o meio adequado para exibição de cenas com
“excesso de erotismo” (sic). Disponível em: http://www.dkt.com.br/arquivos_detalhe.asp?
ARQ_CODIGO=6&GRUPO_CODIGO=&COD=CAMPANHAS&CD_TEXTO=ANUNCIOS. Acesso em: 7 jul. 2008, que
contém tanto o outdoor original quanto o segundo, com a frase “O amor não deveria incomodar”, no que se volta a questão
já citada: há inúmeros outdoors com cenas eróticas entre casais heteroafetivos, e nenhuma insurgência se cria contra eles.
13 Marina Castañeda parece ter entendimento análogo, senão vejamos: “Em todos esses casos, falta algo. Esse algo é a
identidade homossexual, que compreende a consciência e a aceitação de todos os elementos já descritos. A identidade
implica, portanto, uma convergência de desejos, de práticas e de consciência, que culminam em uma definição e uma
aceitação de si como homossexual. Ora, todos esses elementos não se manifestam ao mesmo tempo, mas geralmente
em épocas diferentes da vida. E não aparecem na mesma ordem: em uma pessoa podem surgir primeiramente as
práticas, depois o desejo, depois o amor; em outra, a ordem pode ser invertida. Não há uma sequência nem uma
progressão no tempo que sejam comuns a todos os homossexuais. Ou melhor, talvez devêssemos falar de diferentes
fases ou graus na homossexualidade, indo desde experiências ou desejos isolados (tais quais vivem muitas pessoas), até
uma relação amorosa e um estilo de vida abertamente homossexuais. Somente quando todos os elementos se combinam
podemos falar de uma identidade homossexual: só ‘se torna’ realmente homossexual quando se atinge essa congruência
interna” (CASTAÑEDA, Marina. Op. cit., p. 52 – grifos nossos).
14 Cf. CASTAÑEDA, Marina. Op. cit., p. 73.
15 Cf. BORRILLO, Daniel. Homofobia. História e crítica de um preconceito. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2000, pp. 13 e 24-25.
16 Ibidem, p. 16 (com leve paráfrase).
17 Nesse sentido: RIOS, Roger Raupp. O conceito de homofobia na perspectiva dos direitos humanos e no contexto dos
estudos sobre preconceito e discriminação, in: RIOS, Roger Raupp (org.). Em defesa dos direitos sexuais. Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 113-114, 118-120, 122, 128-129 e 131-134. Após apontar que, em uma abordagem
psicológica, “preconceito é o termo utilizado, de modo geral, para indicar a existência de percepções negativas por parte de
indivíduos e grupos, onde estes expressam, de diferentes maneiras e intensidades, juízos desfavoráveis em face de outros
indivíduos e grupos, dado o pertencimento ou a identificação destes a uma categoria tida como inferior” e que, em uma
abordagem sociológica, “o preconceito é ‘definido como uma forma de relação intergrupal onde, no quadro específico das
relações de poder entre grupos, desenvolvem-se e expressam-se atitudes negativas e depreciativas além de
comportamentos hostis e discriminatórios em relação aos membros de um grupo por pertencerem a este grupo (Camino &
Pereira, no prelo)”, afirma o autor que “homofobia é a modalidade de preconceito e de discriminação direcionada contra
homossexuais”. Anota ainda que “as ideias de ‘aversão a homossexuais’ e de ‘heterossexismo’ operam como pontos de
convergência de algumas das controvérsias aludidas, possibilitando examinar o estado da arte destes estudos e uma
análise da homofobia dentro do paradigma dos direitos humanos”; que o termo homofobia foi cunhado justamente com o
significado de aversão fóbica, ou seja, “o próprio termo foi cunhado a partir de elaborações psicológicas”, mas acabou
adquirindo também a condenação do heterossexismo, “um sistema onde a heterossexualidade é institucionalizada como
norma social, política, econômica e jurídica, não importa se de modo explícito ou implícito”, sendo que, nesse sentido, “A
relação umbilical entre sexismo e homofobia é um elemento importantíssimo para perceber a homofobia como derivação do
heterossexismo”, na medida em que “a homofobia revela-se como contraface do sexismo e da superioridade masculina, na
medida em que a homossexualidade põe em perigo a estabilidade do binarismo das identidades sexuais e de gênero,
estruturadas pela polaridade masculino/feminino”. Adiante, precisa as diferenças entre preconceito e discriminação, pois “o
termo discriminação designa a materialização, no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas
ou omissivas, originadas do preconceito, capazes de produzir violação de direitos contra indivíduos e grupos
estigmatizados”, cabendo anotar que o autor vislumbra no termo discriminação uma carga inerentemente negativa, de
diferenciação prejudicial e injusta (o que, a meu ver, tem certa razão mas não precisa ser entendido dessa forma, bastando
que se adjetive a discriminação de positiva/benéfica ou negativa/prejudicial). Aponta o autor, ainda, que “fica claro que a
indivíduos e grupos distantes dos padrões heterossexistas é destinado um tratamento diverso daquele experimentado por
heterossexuais ajustados a tais parâmetros. Essa experiência, comumente designada pelo termo ‘homofobia’, implica
discriminação, uma vez que envolve distinção, exclusão ou restrição, prejudicial ao reconhecimento, ao gozo ou exercício
em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais” para, por fim, analisar modalidades de discriminação
homofóbica direta e indireta.
18 Ausência de formalização esta que supõe prova judicial ou extrajudicial da união para que tenha a si reconhecidos os
efeitos jurídicos da relação, o que no casamento civil se resolve com a mera apresentação da certidão de casamento, sem
necessidade de outras provas, em que se percebe que o casamento civil traz maior segurança jurídica que a união estável.
19 Tanto que já há autores que usam tal terminologia, como se pode ver em JÚNIOR, Aparecido Januário. CAPUCHO, Fábio
Jun. MANFROI, José. Homoconjugalidade & Justiça: da Possibilidade Jurídica do Casamento Homoafetivo à Igualdade
Virtual?, disponível em http://www.unigran.br/revistas/juridica/ed_atual/artigos/artigo09.php (último acesso: 2 out. 2012).
Essa é a forma como sempre entendi a terminologia homoafetividade/heteroafetividade: a conjugalidade com pessoa do
mesmo sexo ou de sexo oposto.
20 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Luiz Fux, p. 13 – grifos nossos.
21 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, p. 40 – grifos nossos. Momento no qual, aliás, o Ministro fez
menção a trecho desta obra que defende o afeto como princípio jurídico-constitucional implícito ao princípio da dignidade da
pessoa humana, consoante capítulo 5, item 2.4.1 (“O Amor Familiar como o Elemento Formador da Família
Contemporânea”).
22 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Lewandowski, p. 10 – grifos nossos.
23 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Marco Aurélio, p. 8 – grifos nossos.
24 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 27 – grifos nossos.
25 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 29 – grifos nossos.
26 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 20 – grifos nossos.
27 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 21 – grifos nossos.
28 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, pp. 21-22.
29 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, pp. 22-23 e 24.
30 Dois amigos ou dois primos distantes podem manter uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua
e duradoura sem, todavia, sentirem um afeto romântico e/ou sem manterem relações sexuais. Esse é um exemplo do que
chamo de família fraterna para diferenciar essa situação da família conjugal, necessariamente pautada no afeto
romântico/conjugal entre seus integrantes. O conceito de família cunhado neste livro, de amor familiar como o amor que
vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura é amplo o suficiente para abarcar
tanto o amor romântico quanto o amor fraterno – até por isso destaco que o amor familiar relativo ao casamento civil e à
união estável é o amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, justamente para diferenciar as situações. Não obstante, vale destacar a pertinência da lição de Maria Berenice
Dias no sentido do cabimento da analogia para, no caso de falecimento de um dos integrantes de uma família fraterna, ser
devida a analogia com o regime jurídico da união estável para garantir que o(a) companheiro(a) fraterno(a) receba herança
do falecido(a) de acordo com as regras sucessórias da união estável – afinal, apesar de não serem situações idênticas pela
união estável constitucionalizada ter visado normatizar as uniões conjugais entre duas pessoas, são análogas porque em
ambas temos o amor familiar caracterizador da família contemporânea, a despeito de um caso versar sobre amor
romântico/conjugal e outro sobre amor fraterno.
31 FERRY, Luc. A Revolução do Amor. Por uma Espiritualidade Laica, Tradução de Véra Lucia dos Reis, 1ª edição, Rio de
Janeiro: Editora Objetiva, 2010, capa interna e p. 94.,
32 Decisão disponível em
<http://www.direitohomoafetivo.com.br/anexos/juris/1204__c336240403f50dfa15db9c1937c92c25.pdf> (último acesso em 2
out. 2012 – processo não informado), na qual afirmou o magistrado que “amor e afeto [são] sentimentos basilares para
lastrear a vontade de formar uma entidade familiar e estabelecer objetivos em comum, além da convivência e mútua
assistência, com características de duração, publicidade , continuidade e intenção de constituir família”.
33 SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história, 2. ed., Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 97, afirma que “Nem está essa
visão [de uma suposta condenação bíblica da homossexualidade] apoiada nas afirmações de Cristo, que pouco falou de
sexo, a não ser para desaprovar o adultério e a promiscuidade”.
34 HELMINIAK, Daniel A. O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade, 1.ª Edição São Paulo: GLS Edições, 1998,
p. 27 e 28, traz a seguinte lição: “A interpretação literal afirma entender o texto unicamente conforme o que ele diz. Esta é a
abordagem fundamentalista. Ela afirma não interpretar o texto, mas simplesmente lê-lo como ele é. Entretanto, é claro que
mesmo o fundamentalismo segue uma regra de interpretação. Esta regra, simples e fácil, diz que a significação do texto é
dada no presente e por quem o lê. Façamos a comparação com a outra abordagem, a da leitura histórico-crítica. A regra
aqui diz que a significação do texto é dada por aquele que o escreveu no passado. Para afirmar qual é o ensinamento dado
pelo texto bíblico hoje, primeiro é preciso compreendê-lo em sua situação original e então transportar seu significado para o
presente. (...) Apesar de ouvirmos com mais frequência no rádio e na TV apenas a abordagem fundamentalista, todas as
principais igrejas cristãs apoiam o método histórico-crítico. Portanto, o argumento apresentado aqui não é novidade; ao
contrário, ele é absolutamente padronizado, sendo sustentado por quase dois séculos de estudos. De fato, ele já existia
antes mesmo do fundamentalismo, que surgiu em parte como uma oposição a ele”.
35 Nesse sentido, segura é a lição do padre Daniel A. Helminiak (Ibidem, p. 23 e 24): “É importante prestar atenção às
diversas formas de se ler um texto, especialmente quando lidamos com textos antigos como a Bíblia. As palavras podem
ter um determinado significado para nós hoje e, na época das pessoas que a escreveram, seu significado pode ter sido
completamente diferente. Tomemos um exemplo da vida cotidiana. Temos no Brasil a expressão jogo de cintura. Para
entendê-la é preciso conhecer algo sobre o carnaval. Quem melhor impressiona na hora de um desfile é quem consegue
rebolar, ou seja, cuja cintura não é rígida. Por associação, quem tem jogo de cintura é flexível nas situações e consegue sair
dançando dos problemas. Se você fala português muito bem mas não sabe nada sobre carnaval nem conhece esta
expressão idiomática, ao ouvir pela primeira vez a frase: ‘Sabe o Roberto? Não tem muito jogo de cintura’, é provável que
pense que o Roberto está com muito problema de coluna. Você entendeu as palavras, mas não o significado. Claro, você
pode argumentar que as palavras significam apenas aquilo que dizem. Você as ouviu e entendeu. Roberto não tem jogo, ou
movimento, na cintura, está imóvel, paralisado. Afinal, você sabe falar português! Você poderá até insistir, mas todo mundo
irá pensar que você é quem não tem jogo de cintura” (grifos do original).
36 “Muitos centraram-se na violação como sendo um ato sexual em vez de um ato de violência. Mas não fiquemos por aqui.
As razões da destruição de Sodoma são melhor esclarecidas por Ezequiel (16:49,50). Segundo o profeta os pecados de
Sodoma eram orgulho, abundância de alimentos e insolência. Nada aqui foi dito sobre a homossexualidade, nem noutro
local qualquer das Escrituras, referente à Sodoma” (VARELLA, Luiz Salem. Homoerotismo no Direito Brasileiro & Universal:
Parceria Civil entre Pessoas do Mesmo Sexo, 1.a Edição, Campinas: Editora Agá Juris, 2000, p. 226-227, baseado em
estudo da Associação Portuguesa de Homossexualidade Masculina/APHM – antiga “A Muralha”, como referida no livro –
sem grifo no original).
37 “Hincmar de Reims (806-882), um arcebispo e teólogo que muito influenciou o pensamento cristão, aplicou o termo
sodomia a todos os atos sexuais não procriativos. (...) Hincmar coloca os atos homossexuais junto com a preguiça e a
gula, afastando-os do pecado nefando em que Crisóstomo e outros intérpretes de São Paulo os converteram. A Igreja via o
adultério, a fornicação e a bestialidade como atos muito mais sérios. (...) São Bonifácio também redefine a ‘sodomia’ e seus
pecados, quando observa que havia boatos de que o povo da Inglaterra havia rejeitado casamentos legais em favor do
adultério e que ‘tais uniões engendrarão um povo degenerado e ignóbil, queimando de luxúria’. Mais tarde, Bonifácio
descreveria exatamente o que queria dizer com a expressão ‘luxúria sodomítica’: desprezo pelas leis do casamento e
preferência pelo incesto, promiscuidade, adultério e união ímpia de religiosas e mulheres nos conventos” (SPENCER, Colin.
Homossexualidade: uma história, 2.ª Edição, Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 98-99).
38 Mas, ainda que não se aceite tal tese, é de se lembrar que “Obviamente os cristãos dos nossos dias não se encontram
vinculados pelas regras e rituais descritos no Levítico (cfr. Gálatas, 3:22-25, em particular o versículo 25). Se estas
passagens fossem válidas para condenar a homossexualidade, então os cristãos teriam de cumprir igualmente os demais
preceitos descritos no Levítico. (...) [Por outro lado] O termo abominação se encontra geralmente associado à idolatria e à
prática religiosa do culto da prostituição por parte dos ‘cananitas’, de acordo com Ezequiel. Dada a associação da palavra
‘tovah’ com o culto da prostituição é pouco provável que esta se aplique às relações estáveis e de fidelidade entre
homossexuais” (ibidem, p. 227-228).
39 “Nesta passagem bíblica as palavras gregas ‘physin’ e ‘paraphysin’ têm sido traduzidas como natural e não natural,
respectivamente, o que não significa ir contra as leis da natureza, implicando antes uma ação incaracterística para essa
pessoa. A palavra não implica em si qualquer condenação de ordem ética. Paulo vê as relações sexuais entre
homossexuais como impuras e merecendo castigo, tal como o faz para a falta de circuncisão, ou o comer comidas
proibidas. Somente menciona o fato para fazer sobressair a parte principal de sua carta, onde as condições de pureza da lei
judaica não são relevantes para Jesus Cristo” (ibidem, p. 228 – sem grifos no original).
40 “Numa lista de vícios que excluem do Reino de Deus, o apóstolo [Paulo] introduz-nos dois tipos de pessoas: os malakoi, os
moles, os doces, isto é, os efeminados, o homossexual passivo e o arsenokoitai, o vocábulo desconhecido do grego
clássico, mas etimologicamente muito claro e que indicaria os homossexuais ativos, porém ambas as palavras devem ser
interpretadas à luz do abuso e luxúria correntemente associados às relações sexuais homem-homem no Império Romano”
(ibidem, p. 228 – sem grifo no original).
41 Nesse sentido é a conclusão do padre Daniel A. Helminiak (O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade, 1.ª
Edição São Paulo: GLS Edições, 1998, p. 123-125), com a qual se concorda: “Todos estes textos tratam de temas outros
que não a própria atividade homogenital, e os cinco se resumem a apenas três diferentes questões. Primeiro, o Levítico
proíbe a homogenitalidade como uma traição à identidade judaica, pois supostamente o sexo entre homens era uma prática
canaanita. A questão tratada pelo Levítico com relação ao sexo entre homens era a da impureza, uma ofensa contra a
religião judaica e não uma violação da natureza intrínseca do sexo. Segundo, a Epístola aos Romanos pressupõe o
ensinamento das leis judaicas do Levítico, e em Romanos o sexo entre homens é mencionado como um exemplo de
impureza. Entretanto, a sua inclusão em Romanos tem a finalidade precisa de demonstrar que as questões de pureza não
tinham importância em Cristo. Finalmente, através do obscuro termo arsenokoitai, 1 Corintios e 1 Timóteo condenam os
abusos associados à atividade homogenital no século I: exploração e libertinagem. Portanto, a Bíblia não assume
diretamente nenhuma posição definida sobre a moralidade dos atos homogenitais enquanto tais, e nem sobre a moralidade
dos relacionamentos de gays e lésbicas. De fato, o mais extenso tratamento que a Bíblia concede ao assunto – em
Romanos – sugere que em si os atos homogenitais não têm qualquer significado ético. Entretanto, compreendidos em seu
contexto histórico, os ensinamentos de 1 Coríntios e 1 Timóteo deixam claro o seguinte: as formas abusivas de sexo entre
homossexuais e entre heterossexuais devem ser evitadas. (...) Isto é tudo o que pode ser dito honestamente acerca dos
ensinamentos bíblicos sobre a homossexualidade. Se as pessoas ainda quiserem saber com certeza se o sexo entre gays
ou lésbicas em si é bom ou ruim, se os atos homogenitais enquanto tais são certos ou errados, eles terão de procurar a
resposta em algum outro lugar. Sim, porque o simples fato é que a Bíblia nunca aborda essa questão. E mais: a Bíblia
parece deliberadamente não estar preocupada com este assunto (sem grifos no original).
42 Ademais, é pertinente a observação de Luiz Salem Varella (Homoerotismo no Direito Brasileiro & Universal: Parceria Civil
entre Pessoas do Mesmo Sexo, 1.a Edição, Campinas: Editora Agá Juris, 2000, p. 228-229), que, ainda em termos bíblicos,
aponta para o Gênesis 1-3, que versa sobre relações humanas, no sentido de que: “O importante é o amor e sabedoria de
Deus, que fez todas as coisas boas e não quer nenhum mal a ninguém. Nada sugere que os autores bíblicos
pretendessem dar uma lição sobre orientação sexual” – mesmo porque a ideia que temos hoje de orientação sexual só veio
a surgir no final do século XIX, conforme demonstrado no capítulo anterior.
43 HELMINIAK, Daniel A. O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade, 1.ª Edição São Paulo: GLS Edições, 1998,
p. 18.
44 Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2.a reimpr. com alterações, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2007, p. 2730.
45 LOPES, José Reinaldo de Lima. Liberdade e direitos sexuais – o problema a partir da moral moderna, in: RIOS, Roger
Raupp (org.), Em defesa dos direitos sexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Revista do Advogado, 2007, p. 61.
46 Aponte-se, por oportuno, que é (para dizer o mínimo) contraditória a posição da Igreja Católica quando diz que “aceita
homossexuais mas não aceita a homossexualidade” – ora, isso é uma contradição em termos/ideias. Dita igreja quer, com
isso, dizer que homossexuais que se mantenham em celibato serão por ela aceitos, ao passo que por homossexualidade
ela entende a efetiva “prática homossexual” – o relacionamento homoafetivo. Contudo, a homossexualidade é o sentimento
de amor romântico, a atração erótico-afetiva por pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade sempre existirá dentro de
homossexuais, ainda que estes se mantenham celibatários, donde ou se aceita a homossexualidade ou não há como se
aceitar os homossexuais.
47 VARELLA, Luiz Salem. Homoerotismo no Direito Brasileiro & Universal: Parceria Civil entre Pessoas do Mesmo Sexo, 1.a
Edição, Campinas: Editora Agá Juris, 2000, p. 229 (sem grifo no original).
48 Explicitando a evolução da ciência médica quanto à classificação da homossexualidade, leciona Maria Celina Bodin de
Moraes (A união entre pessoas do mesmo sexo..., p. 95-96 apud GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e
Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1ª Edição, 2005, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, p.
69-70, em nota de rodapé): “Assinale-se que a Organização Mundial de Saúde – OMS – retirou, da última ‘Classificação
Internacional de Doenças’ (CID) divulgada, qualquer referência à homossexualidade. A mudança foi significativa. Com efeito,
na CID 9, de 1975, o homossexualismo constava no capítulo das doenças mentais (como ‘Desvios e Transtornos Sexuais’,
sob o código 302), com diagnóstico psiquiátrico. Em 1985, numa das revisões periódicas, a OMS publicou circular na qual o
homossexualismo, por si só, deixava de ser considerado como doença. Deveria passar por isso, do capítulo das doenças
mentais para o capítulo dos ‘sintomas decorrentes de circunstâncias psicossociais’. Desde 1995, porém, quando da
divulgação da CID 10, referências à homossexualidade não mais aparecem. Os psiquiatras, incumbidos da tarefa de
revisão da CID, concluíram não existirem sinais que justifiquem considerar a orientação homossexual como doença ou
mesmo como sintoma, tratando-se apenas de uma manifestação do ser humano” (sem grifo no original).
49 Deve-se apontar que é um absurdo afirmar que a homossexualidade só teria sido retirada da Classificação Internacional de
Doenças em virtude de pressões do Movimento Homossexual, como se este tivesse poder para tanto – caso tivesse
tamanho poder, não teriam homossexuais já conseguido a igualdade de direitos pela qual tanto se luta? A retirada da
homossexualidade da CID ocorreu porque nunca houve provas de que a homoafetividade constituísse uma patologia, em
especial porque ela não prejudica em nada o corpo humano (o assunto será tratado com pormenores ainda neste capítulo).
A OMS é um órgão que decide tecnicamente, não politicamente. É o cúmulo pretender desmerecer dita retirada da
homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças, dada a absoluta ausência de provas desta infeliz colocação.
50 O “preconceito internalizado” é o juízo de valor irracional que alguém passa a ter sobre si mesmo, dada uma característica
sua, pelo simples fato de a sociedade repeti-lo desde sempre. No caso dos homossexuais, é notório que vivemos em uma
sociedade heterossexista, ou seja, em uma sociedade que afirma que seria a heterossexualidade a única orientação sexual
“certa”, “natural” etc., o que é completamente equivocado, ante a citada posição da ciência médica mundial. Mas, inobstante
isso, imagine o leitor o caso dos homossexuais, que desde pequenos ouvem esta equivocada premissa. Isso faz que
alguns passem a acreditar que seriam pessoas indignas pelo simples fato de serem homossexuais – ou seja, são eles
enganados pelo preconceito homofóbico da sociedade, internalizando-o. Mas, repita​-se: não há nada de errado em ser
homossexual, pelo simples fato de não haver prova nenhuma nesse sentido, e pela posição da ciência médica mundial
nesse sentido.
51 Segundo Marina Castañede: “Todas as pesquisas recentes mostram que é quase impossível mudar a orientação sexual,
mesmo quando uma pessoa assim o deseja. Ademais, as tentativas desse tipo podem ter consequências graves: o
homossexual que procura ‘ser curado’ e não consegue acaba por se sentir ainda mais doente e culpado do que antes.
Como explicou a Associação Americana de Psiquiatria dos Estados Unidos no final de 1998, ao condenar formalmente
qualquer terapia visando ‘curar’ a homossexualidade, ‘a terapia reparadora pode trazer danos aos pacientes, provocando
depressão, ansiedade e condutas autodestrutivas’” (CASTAÑEDA, Marina. A Experiência Homossexual. Explicações e
conselhos para os homossexuais, suas famílias e seus terapeutas. Tradução: Brigitte Monique Hervot e Fernando Silva
Teixeira Filho. São Paulo: A Girafa Editora, 2007, p. 31). Só uma ressalva: não há prova nenhuma acerca da possibilidade de
mudança de orientação sexual – o que essas pseudoterapias fazem é incutir na pessoa homossexual ou bissexual o temor
de ir ao inferno por atração sexual homoafetiva e fazem, portanto, que a pessoa reprima sua homossexualidade e passe a
viver uma vida heterossexual (mesmo sem desejo sexual heteroafetivo), sem que isso faça desaparecer seus desejos
homossexuais. Isso, data venia, não pode ser considerado como “mudança” de orientação sexual.
52 Veja-se, por exemplo, o entendimento de uma instância inferior que, felizmente, foi reformado pela Suprema Corte dos EUA
no histórico caso Loving v. Virginia (388 US 1, 1966), no qual um homem negro e uma mulher branca foram condenados a
um ano de prisão por terem se casado (pois o chamado casamento “inter-racial” era legalmente vedado naquele país,
vedação esta que só foi derrubada após este julgamento), sob o seguinte fundamento: “O Todo-Poderoso Deus criou as
raças branca, negra, amarela, malaia e indígena, e ele as colocou em continentes separados. E não haveria motivo para
tais casamentos se não fosse por interferência no Seu arranjo. O fato Dele ter separado as raças mostra que Ele não teve
a intenção de que houvesse mistura entre as raças” (tradução livre do original: “Almighty God created the races white, black,
yellow, malay and red, and he placed them on separate continents. And but for interference with his arrangements there
would be no cause for such marriages. The fact that He separated the races shows that He did not intend for the races to
mix”).
53 O que mudará caso seja aprovado o PLC 122/06, que visa criminalizar a discriminação por orientação sexual (e por
identidade de gênero), incluindo-o no tipo penal de racismo. Lembre-se, nesse sentido, que o tipo penal de “racismo”
engloba hoje o preconceito por cor de pele, origem nacional, etnia e religião, sendo que a este rol pretende o citado projeto
de lei incluir a orientação sexual e a identidade de gênero. Há ferrenhos opositores dessa inclusão, sob o fundamento de
que a “liberdade de expressão” estaria afrontada, sendo que homossexuais estariam sendo alçados a uma “casta superior”
da sociedade. Contudo, trata-se de equívocos gritantes. Em primeiro lugar, porque não é a “discriminação homofóbica” que
estará sendo criminalizada, mas a discriminação “por orientação sexual”, donde heterossexuais discriminados também
estarão sendo vítimas do novo crime. Segundo, ninguém tem o direito de ofender ninguém, pois a liberdade de expressão
não garante o direito a ofensas e à difusão de mentiras. Criticar um homossexual meramente por sua homossexualidade é
algo tão descabido quanto criticar alguém apenas devido à cor de pele, visto que (como a cor de pele) a sexualidade não
tem absolutamente nenhuma relação com caráter, criminalidade, promiscuidade, pedofilia nem nada do gênero
(associações que por vezes são arbitrariamente feitas à homossexualidade...). Terceiro, a discriminação por orientação
sexual sofrida por homossexuais é tão histórica e estigmatizante quanto a discriminação por cor de pele, etnia, procedência
nacional e religião; logo, se a discriminação por estes critérios pode gerar o crime de racismo, então não há nenhum óbice
que a orientação sexual também o seja, ante o aspecto material da isonomia (explicitado no capítulo seguinte). Por fim, não
há afronta à liberdade religiosa (de crença, culto etc.) porque evidentemente não se punirá a mera afirmação da
homossexualidade como pecado, pois há livros sagrados de determinadas religiões que isto afirmam em sua literalidade
(embora, ao menos no caso da Bíblia, a interpretação histórico-crítica demonstre não haver nada pecaminoso na mera
homossexualidade, como demonstram estudos específicos do tema – como o de Daniel A. Helminiak, supraexplicitado). O
que se criminalizará é a discriminação, a ofensa, a humilhação ao homossexual. Afinal, uma coisa é um religioso dizer em
seu templo de culto, em uma abordagem da homossexualidade, que a homossexualidade é pecado (sic). Outra bem
diferente é afirmar que o homossexual seria uma pessoa sem caráter, inerentemente promiscuo e/ou pedófilo, incapaz de
criar crianças e adolescentes com amor e dedicação etc. No primeiro caso, tem-se a descrição de algo que está escrito
em um livro religioso, donde a liberdade religiosa aliada à liberdade de expressão permite sua divulgação; no segundo caso,
tem-se afirmações não referendadas pela literalidade de nenhum livro religioso ou doutrina religiosa e sem nenhuma
comprovação empírico-científica que lhes fundamente, pautadas unicamente no subjetivismo (vulgo achismo) daquele que
faz tais afirmações, de sorte a configurar um verdadeiro discurso de ódio puramente discriminatório. Assim, no primeiro
caso, não ocorrerá a tipificação do crime mesmo com a aprovação do PLC 122/2006, tipificação que ocorrerá no segundo
caso. Afinal, a liberdade de expressão não abarca discursos de ódio, mesmo que praticados sob o escudo da liberdade
religiosa (para fins históricos, cumpre lembrar que a Ku Klux Klan era uma organização terrorista que se dizia pautada na
ideologia cristã que pregava abertamente a inferioridade dos negros relativamente aos brancos, e os ofendiam, chamando-
os de animais e outros impropérios do gênero). Pois bem: da mesma forma que a liberdade de expressão, aliada à
liberdade religiosa, não protegia os discursos de ódio perpetrados pela Ku Klux Klan contra negros, igualmente não protege
discursos que menosprezam os não heterossexuais em relação aos heterossexuais, visto que tal menosprezo configura
discurso de ódio ou, no mínimo, um discurso preconceituoso puramente discriminatório, visto que desprovido de
comprovação empírico-científica e mesmo de argumentos lógico-racionais que lhes justifiquem. Considerando que a
liberdade é o direito de fazer tudo o que se queira desde que não se prejudiquem terceiros e que os discursos de ódio são
manifestações ofensivas e/ou que visam perpetrar o preconceito e/ou a discriminação contra determinada(s) pessoa(s) ou
grupo de pessoas, tem-se que os discursos de ódio não se enquadram no âmbito de proteção da liberdade de expressão,
donde não cabe sequer invocá-la para se defender a inconstitucionalidade da discriminação por orientação sexual ou por
identidade de gênero – mesmo porque referida criminalização atende aos ditames do próprio Direito Penal Mínimo, que
prega a pertinência de criminalizações apenas quando resguardem um bem jurídico relevante (de natureza constitucional) e
que os demais ramos do Direito não sejam aptos a resolver o problema, pois tal criminalização visa resguardar o direito à
tolerância (a ser tolerado), no sentido de não ser agredido e/ou ofendido, o que tem base constitucional no dispositivo que
veda preconceitos e discriminações de quaisquer espécies (art. 3.º, inc. IV), ao passo que leis antidiscriminatórias de cunho
administrativo que preveem punições, como advertências, multas, suspensões e cassações de licença de funcionamento
ou, no caso de funcionários públicos, punições de acordo com a legislação própria (como faz a Lei Estadual Paulista
10.948/2001), não têm se mostrado efetivas para coibir a discriminação por orientação sexual ou por identidade de gênero.
Não que se espere que uma lei criminal, isoladamente considerada, resolva o problema; claro que o combate a referidas
discriminações demanda políticas públicas de sensibilização e consequente conscientização da sociedade acerca de seu
descabimento (bem como a capacitação de funcionários públicos e do setor privado em geral sobre a necessidade de tratar
com igual respeito e consideração a população LGBT relativamente ao tratamento dispensado às pessoas em geral (LGBT:
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, cabendo mencionar também as pessoas Intersexuais), o que se
afirma é que, considerando que a ideologia do Direito Penal Mínimo prega a pertinência da criminalização apenas quando os
demais ramos do Direito não se mostrem aptos a resolver o problema, então essa ineficiência dos demais ramos jurídicos
justifica a criminalização da(s) conduta(s) em questão. Para maiores desenvolvimentos, vide VECCHIATTI, Paulo Roberto
Iotti. Constitucionalidade da classificação da homofobia como racismo (PLC 122/2006). In: DIAS, Maria Berenice (org.).
Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: RT, 2011, pp. 511-528.
54 Estatística esta retirada do notório “Relatório Kinsey”, elaborado pelo zoólogo estadunidense Alfred Kinsey em suas obras
“O comportamento sexual do homem” e “O comportamento sexual da mulher”.
55 COSTA, Ronaldo Pamplona da. Homossexualidade: saúde x doença, in: VIEIRA, Tereza Rodrigues (coord.). Bioética e
sexualidade, São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2004, p. 67.
56 Ibidem, p. 68.
57 Cumpre aqui transcrever alguns trechos da obra de Luiz Salem Varella (Homoerotismo no Direito Brasileiro & Universal:
Parceria Civil entre Pessoas do Mesmo Sexo, 1.a Edição, Campinas: Editora Agá Juris, 2000, p. 71-73), que traz uma
breve coletânea de alguns estudos que visaram identificar as origens biológicas da homossexualidade: “Em 1952, Kallman
realizou um dos primeiros estudos genéticos sérios sobre a homossexualidade. Estudando a orientação sexual de 85 pares
de gêmeos idênticos e não idênticos, ele observou uma concordância de 100% em comportamentos declaradamente
homossexuais nos gêmeos idênticos. Concluiu pela existência de um fator genético na homossexualidade. Entretanto,
outros investigadores não conseguiram replicar sua pesquisa com os mesmos resultados, obtendo dados contrários.
Também foi observado que devido à grande identificação existente entre os gêmeos, e circunstâncias ambientais
semelhantes, também é provável a existência de fator não genético para esta concordância no comportamento
homossexual. Não se conseguiu provar diferenças entre cromossomos dos homossexuais e dos heterossexuais. (...)
Retomemos aqui a tese de Américo Luís Martins da Silva, que começa por demonstrar que cientistas canadenses
descobriram que a região do cérebro ligada às funções de aprendizagem é 13% maior nos homossexuais. Este estudo foi
apresentado em 17.11.94 na reunião anual da Sociedade de Neurociência e sugere que há um componente biológico na
orientação sexual. A psiquiatra Sandra Witelson, da Universidade de MacMaster, em Ontário, no Canadá, salienta que os
fatores biológicos têm um papel na formação da sexualidade. Se esse papel é o mais importante não se pode ainda dizer.
Os cientistas chefiados por Sandra Witelson analisaram os cérebros de vinte e um homens (onze deles homossexuais)
usando técnicas de ressonância magnética. Eles verificaram que a região do cérebro conhecida como corpo caloso é
maior nos homossexuais. A região está ligada à habilidade verbal e motora. (...) Em 1992, a Universidade da Califórnia
apresentou um estudo mostrando que a estrutura cerebral chamada junta anterior é 34% maior nos homossexuais em
relação aos heterossexuais. No mesmo ano, o neurologista Simon Levay, do Instituto de Pesquisa Biológica Salk, informou
que o hipotálamo – a parte do cérebro que regula o apetite, a temperatura corporal e o comportamento sexual – é menor
nos homossexuais. E, em março de 1993, uma dupla de pesquisadores norte-americanos, Richard Pillard e J. Michael
Bailey, anunciou outra descoberta que reforça a ideia do fator genético para explicar a homossexualidade: gêmeas idênticas
tinham três vezes mais probabilidades de ser lésbicas do que gêmeas fraternas [Cf. Dor da descoberta, Veja, São Paulo,
12 maio 1993, Caderno Comportamento, p. 59]. Os indícios da origem biológica da homossexualidade não param por aí.
Pesquisadores da Universidade de Ontário, no Canadá, descobriram que os homossexuais têm impressões digitais com
um padrão característico. (...) Os cientistas chefiados pela neurobióloga Doreen Kimura compararam as impressões
digitais de 66 homossexuais com as de 182 homens heterossexuais. O resultado mostrou que os homossexuais
apresentavam 30% a mais de microestrias nos dedos da mão esquerda do que nos da direita. A mesma característica, no
entanto, só foi encontrada em 14% dos heterossexuais. (...) Além disso, os cientistas resolveram trabalhar com impressões
digitais porque são características físicas que se formam muito cedo – entre a oitava e a décima sexta semana de
gestação – e não mudam ao longo de toda a vida da pessoa. O estudo levanta ainda a hipótese de existir um vínculo entre
as impressões digitais e o desenvolvimento do sistema nervoso.[Cf. Homossexuais teriam digitais características, O Globo,
Rio de Janeiro, 20 dez. 1994, Caderno Ciência e Vida, p. 22]. Mais recentemente, descobriu-se que moscas-das-frutas
(drosófilas) machos se tornam bissexuais quando tratadas com genes sexuais de fêmeas. (...) Constatou-se que moscas-
das-frutas do sexo masculino cujo sistema nervoso central foi modificado com a introdução de um gene que determina o
desenvolvimento de características femininas cortejaram tanto machos quanto fêmeas. Eles atribuíram o comportamento
sexual à feminização das estruturas nervosas, inibindo a produção de substâncias que fazem com que os machos
procurem fêmeas. [Cf. A caçada ao gene gay, Manchete, Rio de Janeiro, 10 jun. 1995, Caderno Ciências, p. 24]. Segundo
Ralph Greenspan, da Univerdade de New York, embora os genomas das moscas e dos homens sejam diferentes, na
natureza, o que é encontrado numa espécie muitas vezes é aplicável a outras. Apesar da polêmica sobre a orientação
sexual humana, nas moscas está claro que a biologia tem papel predominante”. [Cf. Mosca mutante é bissexual: estudo
reforça fator biológico do homossexualismo, O Globo, Rio de Janeiro, 11 fev. 1995, Caderno O Mundo/Ciência e Vida, p. 22]
(sem grifos no original).
58 COSTA, Ronaldo Pamplona da. Homossexualidade: saúde x doença, in: VIEIRA, Tereza Rodrigues (coord.). Bioética e
sexualidade, São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2004, p. 68. No original: “A genética diz que boa parte dos homossexuais
pesquisados tem um gene que predispõe à homossexualidade. A revista americana Science, de julho de 1993, publicou
pesquisa realizada por Dean Hamer e equipe, geneticistas do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, em que
esses estudiosos buscam saber se existe uma influência genética na determinação da orientação sexual humana. Fez um
estudo de 114 famílias de homens homossexuais e encontrou um número maior de homossexuais no lado materno (7,5%)
do que no paterno (2%). Depois tomou para estudo 40 famílias que tivessem 2 filhos homossexuais, ou seja, 80
pesquisados, e encontrou em 64% deles um gene que se repete no cromossomo X, herdado da mãe. Conclusão: existe
99% de possibilidade que exista um subtipo humano de orientação sexual masculina que sofre influência, mas não
determinação, da genética no desenvolvimento da orientação homossexual. Ao confirmar essa teoria diremos então que a
homossexualidade é congênita, é natural” (sem grifos no original).
59 COSTA, Ronaldo Pamplona da. Homossexualidade: saúde x doença, in: VIEIRA, Tereza Rodrigues (coord.). Bioética e
sexualidade, São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2004, p. 68.
60 CID-10/1993, em nota do capítulo referente aos “Transtornos psicológicos e comportamentais associados ao
desenvolvimento sexual e à sua orientação”.
61 Segundo Marina Castañeda: “Uma parte dessas pesquisas confirmou uma ideia que nasceu inicialmente no século XIX, e
que foi adotada por Freud e retomada por diversas associações médicas, psicológicas e psiquiátricas de nossa época,
segundo a qual a homossexualidade não é uma patologia. Essa ideia foi inicialmente demonstrada por uma psicóloga
americana, Evelyn Hooker, em 1958. Ela aplicou uma bateria de testes psicológicos em duas amostras de homens,
homossexuais e heterossexuais, e mandou os resultados para vários especialistas a fim de que avaliassem a saúde mental
de cada indivíduo e depois o classificassem como homo ou heterossexual. Os resultados foram surpreendentes. Os
especialistas se mostraram incapazes de diferenciar os homo dos heterossexuais, e não encontraram nenhuma patologia
que pudesse indicar a homossexualidade. Ademais, o nível de saúde mental é quase idêntico nos dois grupos, com uma
leve vantagem para os homossexuais. Hooker concluiu que, entre outros aspectos, os homossexuais eram tão ‘normais’
quanto os heterossexuais, e que a homossexualidade, portanto, não podia ser considerada uma categoria clínica. Foi
graças a estudos desse tipo, chegando sempre à mesma conclusão, e aos esforços de um número crescente de
psiquiatras e psicólogos homossexuais que a Associação Americana de Psiquiatria dos Estados Unidos riscou a
homossexualidade de sua lista de patologias em 1973. Foi seguida pela Associação de Psicologia do mesmo país em 1974,
e pela Organização Mundial de Saúde em 1992. Contudo, essas organizações reconheceram, em seus respectivos
manuais de diagnóstico, que a pessoa que não aceita sua homossexualidade pode sofrer de depressão, ansiedade e outros
problemas psicológicos – mas que estes derivam de pressões familiares e sociais e de conotações negativas geralmente
associadas à homossexualidade” (CASTAÑEDA, Marina. op. cit., pp. 35-36).
62 “Em minha opinião, a homossexualidade não deveria ser explicada, ela apenas existe. O que precisa ser investigado é a
opinião que as várias sociedades sempre tiveram sobre ela” (Colin Spencer).
63 Embora não concorde com todas as posições da autora, valem as seguintes considerações de Marina Castañeda acerca
do tema: “Apesar das grandes transformações sociais, demográficas e culturais que ocorreram no Ocidente desde a
Segunda Guerra Mundial, os números da homossexualidade permaneceram mais ou menos iguais. Isso sugere que há na
orientação sexual algo de irredutível, que é independente do contexto histórico e cultural. Talvez o mais prudente seja
pensar que um dia será encontrado um componente genético ou biológico da homossexualidade, sabendo, contudo, que
não será suficiente para explicá-la. Do mesmo modo, parece que certas aptidões musicais são hereditárias – mas todos
aqueles que nascem com elas não se tornam necessariamente músicos (e muito menos ainda bons músicos). Isso indica,
então, que a predisposição não é suficiente, não garante nada, e não significa muita coisa, se não for conscientemente
desenvolvida e cultivada” (CASTAÑEDA, Marina. op. cit., pp. 68-69).
64 Sociedade heterossexista é aquela que prega a heterossexualidade como a única sexualidade aceitável.
65 Sobre o tema, valem as considerações do psiquiatra estadunidense Richard A. Isay: “Eu tive uma oportunidade ímpar em
minha carreira. Na primeira metade da mesma atendi apenas homens heterossexuais, enquanto que na segunda foram os
homossexuais que predominaram. Em 1980, comecei a trabalhar com pacientes gays que não manifestavam interesse em
mudar sua orientação sexual. Eles vinham a mim com problemas referentes à subsistência, trabalho e relacionamentos
que eram similares aos de meus pacientes heterossexuais dos anos anteriores. Suas histórias, somadas a estudos que
indicavam que a ocorrência de homossexualismo é mais alta em gêmeos monozigóticos que em dizigóticos e irmãos não
gêmeos, me convenceram de que o homossexualismo masculino era uma questão de constituição pessoal,
provavelmente determinada geneticamente. Essa conclusão contradizia a visão psicanalítica vigente de que o
homossexualismo era causado por uma relação problemática com os pais na infância. Pude constatar que assim como os
heterossexuais se recordam de sentir atração pelo sexo oposto desde a mais tenra idade, também os homossexuais
relatam ter experienciado atração por pessoas do mesmo sexo já aos quatro, cinco ou seis anos. No caso dos gays, a
primeira atração é pelo pai ou seu substituto. Esta atração é frequentemente reprimida e, da mesma forma como a atração
infantil dos heterossexuais pela mãe, é lembrada posteriormente com muita dificuldade ou de forma distorcida, projetada
em outro homem, tal como um irmão mais velho, parente ou amigo da família. Seguindo o raciocínio da maioria dos
psicanalistas, segundo o qual o surgimento da atração pelo sexo oposto sugere uma predisposição à heterossexualidade,
concluí que isto também se aplica à atração pelo mesmo sexo que ocorre entre os homossexuais masculinos. (...) Outra
constatação que contribuiu para a minha conclusão de que o homossexualismo era ditado biologicamente e não pelo meio
ambiente: graves danos psicológicos eram causados pelas tentativas de terapeutas em transformar o comportamento
homossexual de seus pacientes em heterossexual ou simplesmente inibir seus impulsos homossexuais. Apesar de o
esforço em transformar qualquer comportamento cristalizado ser capaz de gerar angústias, tenha este comportamento
sido determinado por fatores ambientais ou genéticos, foi a gravidade da depressão e ansiedade causadas por estas
tentativas que me fez pensar na possibilidade de uma base biológica na orientação sexual de meus pacientes” (ISAY,
Richard A. Tornar-se gay. O caminho da autoaceitação. Tradução: Dinah Klebe. São Paulo: Summus, 1998, p. 12-13).
66 Segundo o psiquiatra estadunidense Richard A. Isay: “Eu não notei nenhuma diferença determinante entre os pais de meus
pacientes heterossexuais e os de meus pacientes homossexuais. Trabalhei com homens heterossexuais que tiveram pais
distantes e mães dominadoras, e de homens homossexuais com pais amorosos de comportamento dentro da média” (op.
cit., p. 13).
67 Nesse sentido, afirma Luiz Salem Varella (Homoerotismo no Direito Brasileiro & Universal, 1.a Edição, Campinas: Editora
Agá Juris, 2000, p. 61), que: “A existência de mãe autoritária, sedutora, e pai hostil, ou distante, é uma das teorias que
prevalecem para explicar a homossexualidade. Entretanto, estas teorias muitas vezes se contradizem. Existem
homossexuais com mães fracas e pais fortes, como existem heterossexuais com mães autoritárias e pais distantes”. No
mesmo sentido, Marina Castañeda: “Sabe-se atualmente que as coisas não são assim tão simples. Por um lado, não se
conseguiu evidenciar diferenças sensíveis entre a infância ou a dinâmica familiar de homossexuais e de heterossexuais:
crianças que ‘tendiam’ à homossexualidade não se tornaram homossexuais quando adultos, e muitos homossexuais
tiveram, em contrapartida, uma infância e uma vida familiar tediosamente ‘normais’. Por outro lado, existem homens muito
masculinos e mulheres muito femininas que são homossexuais. E os anos 1980 e 90 viram surgir uma sensibilidade e um
modo de vida que poderiam ser qualificados de andrógenos. As diferenças que permitiam outrora falar de comportamentos
ou de temperamentos propriamente masculinos ou femininos se apagaram. Não estamos mais na época em que um
eminente psiquiatra pôde escrever: ‘Podemos sempre suspeitar da homossexualidade nas mulheres que têm os cabelos
curtos, se vestem de acordo com a moda masculina ou que cultuam os esportes ou os lazeres masculinos’ [Richard von
Kraft-Ebbing]” (CASTAÑEDA, Marina. Op. cit., pp. 26-27).
68 Por mais que um relacionamento envolva o contato sexual, muitas pessoas conseguem manter uma relação sexual com
outra sem, contudo, sentirem-se atraídas sexualmente por dita pessoa.
69 Sobre o tema, vide ISAY, Richard A. Tornar-se gay. O caminho da autoaceitação. Tradução: Dinah Klebe. São Paulo:
Summus, 1998; e CASTAÑEDA, Marina. A Experiência Homossexual. Explicações e conselhos para os homossexuais,
suas famílias e seus terapeutas. Tradução: Brigitte Monique Hervot e Fernando Silva Teixeira Filho. São Paulo: A Girafa
Editora, 2007.
70 Segundo Richard A. Isay: “A rejeição paterna, real ou percebida, em resposta ao desejo do filho por alguém do mesmo
sexo, interesses diferentes, ou uma masculinidade não convencional são fatores determinantes para a baixa autoestima de
alguns meninos homossexuais recém-entrados na adolescência. (...) A percepção do preconceito social nas atitudes dos
pais e amigos em relação aos homossexuais faz com que muitos adolescentes de doze, treze, quatorze ou até quinze
anos reprimam ou suprimam seus impulsos e fantasias sexuais e neguem para si mesmos que são homossexuais” (op.
cit., p. 64).
71 Para Richard A. Isay: “Para tornar-se gay é preciso ser capaz de se autodenominar ‘homossexual’ ou ‘gay’. Garotos
homossexuais com pais amorosos, que aceitam seus desejos sexuais distintos e seu tipo diferente de masculinidade,
costumam desenvolver uma autoimagem forte e positiva. É provável também que consigam se assumir como ‘gays’ antes
e mais facilmente do que aqueles que sentiram necessidade de se adequar às expectativas sociais para serem amados.
Meninos que foram rejeitados pelos pais por causa de sua condição homossexual, em geral, manifestarão, quando adultos,
raiva e autopiedade, tornando-se portanto muito menos capazes de estabelecer relações adultas de amor mútuo do que
aqueles que se sentiram aceitos e amados pelos pais. (...) A pressão dos pais e dos amigos para que se assuma um
comportamento heterossexual, a falta de uma abertura em nossa sociedade que permita aos jovens gays se encontrar e
namorar livremente, e a facilidade com que um homem pode ter sexo com outro levam alguns adolescentes ou até mesmo
adultos gays a expressar sua sexualidade de maneira encoberta. (...) Um adolescente gay costuma temer a rejeição dos
pais, portanto ele normalmente não se assume para eles antes da adolescência ou mesmo até o início da vida adulta, com
frequência depois de já ter se assumido para outros jovens gays, ter tido algumas experiências sexuais e vivenciado a
poderosa e positiva experiência de se apaixonar” (op. cit., p. 15, 69 e 79).
72 Contudo, vale a advertência de Richard A. Isay: “A incerteza do adolescente homossexual no que se refere à sua orientação
sexual não deveria, no entanto, ser entendida como uma heterossexualidade latente ou conflituada, nem como uma
heterossexualidade passível de ser desimpedida. Deveria sim ser compreendida como uma homossexualidade inibida por
conflitos internos e preconceitos sociais” (op. cit., p. 65).
73 Exemplifique-se com o relato de Richard A. Isay acerca de um paciente seu: “Ele temia ser homossexual porque se sentia
atraído por outros garotos. Suas fantasias sexuais, eram, desde quando ele era capaz de lembrar, exclusivamente com
garotos. Ele odiava a sua homossexualidade e queria desesperadamente ser heterossexual. (...) Ele me disse em sua
primeira sessão que achava que sua mãe ficaria desolada se ele fosse homossexual. Ele queria ser heterossexual por
causa dela, viver uma vida convencional, dar a ela os netos que ela tantas vezes disse que queria. Foi ela que o pressionou
a fazer terapia aos quinze anos, por causa de sua falta de agressividade, que fez com que ela acreditasse que ele poderia
ser homossexual” (ISAY, op. cit., p. 68).
74 “Os rapazes homossexuais costumam ingressar na adolescência esperando ser heterossexuais, e é apenas no final dela
ou no começo da vida adulta que eles são capazes de descobrir a sua verdadeira orientação sexual. Devido à ansiedade
relacionada a esta incerteza a respeito da identidade sexual, a intervenção de psicoterapeutas, exaustiva e difícil como é
com qualquer adolescente, pode fazer muita diferença e ser muito gratificante. O fim da incerteza e o início da consolidação
de sua orientação sexual podem fortalecer a autoestima e provocar uma significativa diminuição da ansiedade e da
depressão” (ISAY, op. cit., p. 67).
75 Segundo Richard A. Isay: “Além disso, adolescentes homossexuais têm poucos modelos que possam seguir, alguns têm
dificuldade de se identificar com os gays visíveis, mas não convencionalmente masculinos ou socialmente desafiadores e
muitos relacionam o fato de ser homossexual ao de se adquirir AIDS. Há muito poucos gays atletas, políticos, atores ou
eminentes professores, advogados e médicos que se assumam publicamente, a menos que tenham AIDS, achando que
teriam muita coisa a perder agindo de outra maneira. Infelizmente, um rapaz homossexual no início de sua adolescência
fica privado destes modelos que poderiam ajudá-lo a descobrir a sua homossexualidade e fazer com que ele fosse capaz
de dizer a si mesmo: ‘Eu sou gay como você e quero ser como você quando crescer’” (op. cit., p. 64).
76 É nesse sentido que deve ser entendida a explicação de Marina Castañeda: “homossexual nem sempre é homossexual”,
ao contrário do heterossexual. Vejamos: “Começamos com um paradoxo: homossexual nem sempre é homossexual. O
heterossexual, sim. Em todas as relações sociais, profissionais e familiares, sua orientação sexual é sempre uma parte de
sua identidade essencial. O homem heterossexual entra em relação com os homens e as mulheres de um certo modo, que
exprime abertamente sua orientação, globalmente invariável. A mulher heterossexual tem gestos, condutas e maneiras de
falar que refletem não somente sua feminilidade, mas também sua heterossexualidade. Nos dois casos, sexo biológico,
orientação sexual e papéis sociais tendem a convergir e formar uma identidade relativamente estável. Em contrapartida, o
homossexual não se desloca no mundo com uma identidade constante. Suas atitudes, seus gestos, seu modo de entrar
em relações com os outros muda conforme as circunstâncias. Ele pode parecer heterossexual no escritório, assexuado na
família, e expressar sua orientação sexual somente na presença de seus amigos. Ou, então, durante longos períodos de
vida, pode negar completamente sua homossexualidade e parecer exatamente o contrário: um Don Juan ou uma mulher
fatal sempre à procura de novas conquistas. Além do mais, o heterossexual foi educado para sê-lo; desde a mais tenra
infância, foi formado para um papel e um lugar no mundo heterossexual. Este não é o caso do homossexual, que muitas
vezes só toma consciência de sua orientação sexual no decorrer da adolescência ou da idade adulta. Portanto, ele não
cresceu em seu papel: não foi educado para ser homossexual. Falta-lhe todo tipo de habilidades e de códigos sociais de
que necessitará em um mundo homossexual, que será o seu. Quando descobrirem, enfim, sua orientação sexual, devem
reaprender todas as regras do amor, da amizade e da sociabilidade. Não é surpreendente o fato de que podemos ler, na
literatura psicológica tradicional, que os homossexuais são ‘pouco maduros’ em suas relações sociais e de casal. Contudo,
não se trata de uma falta de maturidade, mas sim de carência de aprendizagem. (...) Hoje, o termo ‘gay’ refere-se
justamente a essa coerência e a essa aceitação da homossexualidade. Mas isso não acontece de um dia para o outro; é o
resultado de um longo percurso. É por isso que podemos dizer, com toda a certeza, que as pessoas não nascem
homossexuais. A identidade gay constrói-se aos poucos; a homossexualidade não é um estado, mas um processo”
(CASTAÑEDA, Marina. Op. cit., p. 19-20 e 52).
77 Op. cit., p. 77-80.
78 Segundo Richard A. Isay: “O antídoto mais eficaz contra a baixa autoestima da maioria dos gays em nossa sociedade, no
entanto, é a certeza do amor de outro homem. É o amor do outro que possibilita ao longo do tempo uma maior clareza e
certeza a respeito de sua identidade pessoal como gay. Somente assim ser gay torna-se indispensável para a própria
felicidade” (op. cit., p. 16).
79 ISAY, Richard A. Op. cit., p. 107.
80 HERCULANO-HOUZEL, Suzana. Viver, mente e cérebro (scientific american) – O cérebro homossexual, São Paulo, n. 165,
ano XIV, p. 48-51. No original: “Para a medicina, não se enquadrar na normalidade, estatisticamente, não significa ser
doente. (...) muitas vezes um parâmetro foge à normalidade em razão da herança genética ou de fatores biológicos que não
perturbam em nada o bem-estar do indivíduo. Além disso, o que é normal em uma população pode ser anormal em outra.
Considere, por exemplo, a distribuição da cor dos olhos. No Brasil, é normal tê-los escuros. Já na Suécia isso é exceção,
pois lá a regra é ter olhos azuis. (...) Os brasileiros de olhos castanhos que moram na Suécia não são considerados
doentes por isso, nem são coagidos a ocultá-los atrás de incômodas lentes de contato. (...) Os homossexuais são alvo de
preconceito em grande parte por causa de décadas de teorias e lobbies políticos e religiosos para que a homossexualidade
fosse considerada doença, ou ao menos uma opção inconveniente a ser revertida. No entanto, todas as evidências indicam
o contrário: a preferência sexual é determinada biologicamente e ainda no útero – o que faz da homossexualidade uma
variação, já que a maioria da população é heterossexual. Para desespero daqueles que acham que podem ‘consertar’ a
sexualidade dos outros, as neurociências apontam para a origem biológica da preferência sexual humana. Para infelicidade
de muitos religiosos, políticos e psicoterapeutas, não há nenhuma evidência de que fatores sociais a influenciem. Cerca de
10% da população (masculina e feminina) procuram preferencialmente parceiros do mesmo sexo. E esse número não
muda entre os que foram criados por pai e mãe, por dois pais gays, por duas mães lésbicas, com ou sem religião. (...) É
verdade que o primeiro contato do sistema nervoso com os hormônios sexuais ocorre durante a gestação, pois é o pico de
testosterona que determina a masculinização do feto e faz com que todas as estruturas da via vomeronasal produzam
aromatase, a enzima que tornará possível, na adolescência, a ação do hormônio masculino sobre o sistema nervoso. É
também na puberdade que a testosterona induz o crescimento de várias estruturas da via vomeronasal, como pdMEA e
BST, no cérebro dos homens. A sensibilização dos neurônios ao longo dela – condição necessária para o interesse sexual –
é estimulada tanto pela testosterona quanto pelo estrogênio. Assim, o comportamento sexual resulta de ações inicialmente
organizadoras, e, mais tarde, permissivas, desencadeadas pelos hormônios sexuais. A atração que se sente pelo outro,
seja este de que sexo for, é resultado da influência de genes e hormônios durante a formação, ainda no útero, de
determinadas regiões cerebrais. Estas, por sua vez, determinarão mais tarde a preferência sexual, depois de
amadurecidas na adolescência, pelo sexo oposto na maioria das pessoas ou pelo mesmo sexo em algumas. Revelada
quando o cérebro adolescente expressa o caminho que tomou ainda na gestação, a preferência sexual não se escolhe:
descobre-se. (...) Pesquisas recentes revelam que o hipotálamo de homo e de heterossexuais do mesmo sexo tem
características diversas. Pesquisadores suecos mostraram, em 2006, que nem todo hipotálamo masculino responde a
feromônios femininos e vice-versa. Usando a ressonância magnética funcional, eles observaram que o padrão de resposta
dos neurônios hipotalâmicos correlaciona-se não com o sexo do indivíduo, mas com sua preferência sexual. (...) O que faz
com que o hipotálamo responda diferentemente aos feromônios masculino e feminino parece ser uma combinação de
herança genética com fatores hormonais durante a gestação. (...) Até algo tão fundamental como sentir-se homem ou
mulher parece ser determinado pela biologia do cérebro. Ao examinar, em 2000, um grupo de 42 pessoas composto de
homens e mulheres hétero, homo e transexuais, pesquisadores holandeses observaram um número duas vezes maior de
neurônios num dos núcleos da via vomeronasal (o BST) nas pessoas que se identificavam como homens em comparação
às que se identificavam como mulheres – independentemente do sexo biológico, da preferência sexual e do fato de terem
sido ou não tratadas com hormônios sexuais. Graças a esse tipo de estudo, a atração por pessoas do mesmo sexo
[homossexuais] ou a sensação de ter nascido do sexo ‘errado’ [transexuais] não podem mais ser consideradas aberrações
psicológicas ou frutos de uma educação ‘equivocada’, seja familiar ou escolar. Trata-se de variações determinadas
biologicamente. E como todo fenômeno biológico, a determinação da identidade e da preferência sexual está sujeita a
influências químicas e genéticas nem sempre bem compreendidas. Aliás, seria surpresa para um biólogo se todos fossem
perfeitamente iguais, sem nenhuma variação na cor dos olhos ou na preferência sexual. A descoberta de que é o cérebro, e
não os hormônios sexuais nem a genitália, que define a identidade ou a preferência sexual é uma das lições das
neurociências de maior impacto em nossa vida cotidiana. A atração por um ou outro sexo é inata, não opcional. Por isso as
tentativas de convencer pessoas ou outros animais a mudar suas preferências sexuais nunca deram certo. A ciência é
frequentemente criticada por ‘reduzir’ a questão da homossexualidade aos domínios da biologia. Isso deixa transparecer a
incrível dificuldade que o ser humano tem de aceitar-se como animal. Gostamos de assistir aos documentários sobre
macacos ou leões, mas custa-nos admitir que a Natureza pode ter influência – muitas vezes determinante – também sobre
nosso comportamento. (...) Se 100% da população têm preferência sexual inata e biologicamente determinada, somos
todos iguais nesse quesito – mesmo que o cérebro da maioria responda a feromônios do sexo oposto. Tentar mudá-la
[preferência sexual] é como insistir que uma pessoa troque a cor da pele, torne-se menos alta ou mude a cor dos olhos. É
inútil, inviável e injusto” (sem grifos no original).
81 Há quem defenda que a expressão “orientação sexual” significaria que alguém teria sido “orientado” a ter esta ou aquela
sexualidade, “sugestionado” a tanto, o que é um absurdo que parte de uma interpretação puramente gramatical dos termos
isolados da expressão. Interpretar uma expressão pela tradução de seus termos isoladamente considerados é um erro que
geralmente leva a equívocos interpretativos, como neste caso. A expressão “orientação sexual” é usada no sentido do texto,
ou seja, significando que o desejo está “em direção a” determinado sexo biológico, sem sugestionamento – este é o sentido
popular e até mesmo o sentido geral usado pelo meio médico-psicológico (salvo exceções).
82 Definição constante nos Princípios de Yogyakarta, p. 6. Ditos princípios foram facilmente localizados no google por este
autor. De qualquer forma, segue um link que dá acesso a um arquivo (sob a forma de “.pdf”) contendo-os:
www.sxpolitics.org/mambo452/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=34 . Acesso em 7 jul. 2008. Vide
o item 1.1 do Capítulo 17, em nota de rodapé, para vislumbrar os direitos garantidos por esta declaração.
83 No mesmo sentido do aqui defendido é a lição de Maria Berenice Dias (União homoafetiva O preconceito & a justiça. 5. ed.
São Paulo: RT, 2011, p. 42-43), para quem: “Desde que se descobriu a involuntariedade do agir homossexual, não cabe
mais falar em ‘opção sexual’. Segundo os Princípios de Yogyakarta, esta é a expressão que goza de maior aceitação. É
compreendida como uma referência à capacidade de cada pessoa em ter profunda atração emocional, afetiva ou sexual
por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero. No dizer de Roger Raupp Rios, orientação
sexual é a afirmação de uma identidade pessoal cuja atração e/ou conduta sexual direciona-se para alguém do mesmo
sexo (homossexualidade), sexo oposto (heterossexualidade), ambos os sexos (bissexualidade) ou a ninguém (abstinência
sexual). Assim, a identificação da orientação sexual está condicionada à identificação do sexo da pessoa escolhida, em
relação à pessoa que escolhe. Quando alguém dirige seu interesse sexual a outrem, ou seja, opta por outrem para manter
um vínculo afetivo, elege o gênero da pessoa com quem deseja se relacionar. A identificação do gênero do objeto do desejo,
se masculino ou feminino, é o dado revelador da orientação sexual, opção essa que não pode merecer tratamento
diferenciado” (grifo nosso). Note-se que a “escolha” mencionada pela autora refere-se apenas à decisão de manter um
relacionamento afetivo com a pessoa em questão, no sentido de que entre todas as pessoas daquele gênero (sexo
biológico) escolheu-se esta, o que não significa que aquela pessoa teria “optado” por se relacionar com pessoas de
determinado sexo, visto que sexualidade não é influenciável e menos ainda determinável de opção – ninguém escolhe ser
homo, hétero ou bissexual, as pessoas apenas se descobrem de uma forma ou de outra.
84 Vide exemplo, lamentavelmente frequente, de casais homoafetivos “convidados a se retirar” de estabelecimentos
comerciais, em geral restaurantes, por um simples agrado que deixe claro que são homossexuais, tido como normais entre
casais heteroafetivos, mas não aceito entre casais homoafetivos. Ressalte-se, nesse ponto, que diversos Estados
possuem leis próprias (em São Paulo, a Lei Estadual 10.948/2001) que proíbem qualquer tipo de discriminação em razão
da orientação sexual da pessoa (assim como por sua identidade de gênero), sob pena de sanções administrativas, tais
como multa, suspensão e cassação da licença de funcionamento de estabelecimentos comerciais.
85 Nesse sentido, é pertinente a observação Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 71), que afirma que:
“Diante dessas constatações, o que importa referir sobre a homossexualidade e o direito é a necessidade de ser afastada a
identificação sociomoral das pessoas por conta de suas inclinações sexuais. Deve-se, na afirmação de Rodrigo da Cunha
Pereira, abandonar a pretensão de se ‘colocar um selo de legitimidade ou ilegitimidade em determinadas relações sexuais’,
uma vez que a sexualidade por sua essência escapa ao normatizável”.
86 Preâmbulo da Constituição Federal: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte
para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a
solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República
Federativa do Brasil” (sem grifo no original). Aponte-se que este autor adere à teoria segundo a qual o preâmbulo tem
significado jurídico mas não é norma constitucional, servindo portanto como paradigma interpretativo da Constituição.
Reconheço, contudo, que na contradição entre preâmbulo e norma constitucional, prevaleça esta. Reitere-se, por oportuno,
que a expressão “sob a proteção de Deus” não teve eficácia jurídica reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal quando do
julgamento da ADIn 2076, em especial no voto do Ministro Sepúlveda Pertence. Cite-se, ainda, o art. 3.o, IV, da CF/1988,
segundo o qual constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “promover o bem-estar de todos, sem
preconceitos de origem, raça, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (sem grifos no original).
87 BORRILLO, Daniel. Homofobia. História e crítica de um preconceito. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000, p. 34.
88 Homossexuais são as pessoas que sentem atração erótico-afetiva por pessoas do mesmo sexo, independentemente de
se considerarem ou não pertencentes à comunidade homossexual ou mesmo como homossexuais, por ser a orientação
sexual um conceito que toma como parâmetro apenas o sexo pelo qual a pessoa sente atração erótico-afetiva (pelos
mesmos motivos, heterossexuais são as pessoas que sentem atração erótico-afetiva por pessoas do sexo oposto). Ao
contrário do transexual, o homossexual não sofre dissociação entre seu sexo (biológico) e seu gênero – é um homem (sexo
masculino) que se entende como homem e, independente disso, sente atração erótico-afetiva por outros homens.
89 Pelos mesmos motivos expostos na nota anterior, bissexuais são as pessoas que sentem atração erótico-afetiva por
pessoas de ambos os sexos.
90 Transexual é um termo que passou por uma evolução conceitual. Isso porque, tradicionalmente, sempre se definiu o
transexual como a pessoa que sofre uma dissociação entre seu sexo físico e seu sexo psíquico, dissociação esta definida
tecnicamente como disforia de gênero (na expressão que se popularizou sobre o tema, ele tem a certeza de que “nasceu
no corpo errado”), tendo assim uma ojeriza a seu órgão sexual biológico e que, por conta disso, deseja realizar uma cirurgia
de “mudança de sexo” (atualmente designada de cirurgia de transgenitalização), além de não desejar que as pessoas em
geral saibam que se trata de um transexual, mas de uma pessoa em que o sexo biológico coincide com seu sexo psíquico.
Contudo, atualmente existem transexuais que, apesar de possuírem essa disforia de gênero, não desejam realizar a
cirurgia por uma série de fatores (medo da cirurgia, ausência de condições financeiras e temor de não ter prazer sexual
com o novo órgão sexual construído cirurgicamente, por exemplo). Por outro lado, há transexuais que simplesmente não
sofrem de uma ojeriza por seu órgão sexual, apenas não sentindo prazer genuíno durante a relação sexual. Assim,
entende-se aqui que transexual é a pessoa que se identifica com o gênero oposto àquele socialmente atribuído ao seu sexo
biológico, possui uma dissociação entre seu sexo físico e seu sexo psíquico, que geralmente não sente prazer na utilização
de seu órgão sexual e que não deseja que as pessoas em geral saibam de sua condição transexual após a adequação de
sua aparência a seu sexo psíquico. Trata-se, assim, de uma questão identitária. Vide o conceito de gênero e de identidade
de gênero, em notas posteriores..
91 Em razão da evolução conceitual sofrida pelo termo transexual, a diferença deste para a travesti tornou-se sutil, porém ela
existe. Isso porque, ao contrário do transexual, a travesti não sente ojeriza por seu órgão genital, inclusive utilizando-o
prazerosamente durante suas relações sexuais. Por outro lado, ao contrário do transexual, a travesti não sente a
necessidade de esconder seu sexo biológico. Assim, entende-se aqui que travesti é a pessoa que, apesar de possuir uma
relativa dissociação entre seu sexo físico e seu sexo psíquico (ao menos no que tange às normas de gênero socialmente
impostas), sente prazer na utilização de seu órgão sexual e não se importa que as pessoas em geral saibam de sua
condição, embora socialmente também prefira ser tratada como pessoa relativa à aparência que efetivamente ostenta.
Trata-se, também aqui, de uma questão puramente identitária.
92 Intersexual é a pessoa portadora de um distúrbio biológico. Na lição de Gerard Ramsey, com base na definição do
Dorland’s medical dictionary (Dicionário Médico Dorland, de 1988), o intersexo “refere-se a ‘um indivíduo que apresenta
mistura, em vários graus, de características de cada sexo, incluindo a forma física, órgãos reprodutivos e comportamento
sexual’” (RAMSEY, Gerard. Transexuais perguntas e respostas. Tradução: Rafael Azize. São Paulo: Edições GLS, 1998, p.
43). O intersexual normalmente sofre uma cirurgia após o nascimento, que o médico coloca ao arbítrio dos pais, para que
seu corpo fique condizente com um dos dois sexos (masculino ou feminino). Por vezes, quando adulto (ou mesmo
adolescente), o intersexual percebe que há algo errado com seu corpo, entendendo-se como pertencente ao sexo oposto
àquele que lhe foi determinado pela cirurgia antes mencionada – cirurgia esta altamente discriminatória, pois o correto é
deixar que a pessoa intersexual cresça e defina, ela própria, se deseja realizar a cirurgia e qual dos sexos será por ele
determinado.
93 Não há que se confundir os termos sexo, gênero e sexualidade. Com efeito, “Atualmente, a palavra sexo é usada em dois
sentidos diferentes. Um se refere ao gênero e define como a pessoa é, ao ser considerada do sexo masculino ou feminino.
O outro sentido se refere à parte física da relação sexual. Já a sexualidade transcende os limites do ato sexual e inclui
sentimentos, fantasias, desejos, sensações e interpretações”. (D’ELLAS, Movimento. Direitos Humanos e Contribuição à
Cidadania. Rio de Janeiro: Movimento D’ELLAS, 2005, p. 13) [o significado do termo gênero será explicitado adiante, no
corpo do texto] Ou seja, a sexualidade é uma “dimensão fundamental da experiência humana, [que] pode ser compreendida
à luz de diferentes perspectivas. A sexualidade tem uma faceta biológica, mas não se reduz a ela. Aspectos psicológicos,
sociais e culturais fundamentam a vivência humana da sexualidade”, razão pela qual “A sexualidade não é sinônimo de
coito, sendo uma disposição a experimentar a si mesmo e ao outro segundo o registro do prazer e da criação. Sexualidade
é disposição que motiva o contato e a intimidade e se expressa na forma de sentir, de ser, de se relacionar. Sexualidade,
portanto, refere-se a uma importante dimensão da experiência humana que está diretamente relacionada ao laço social”
(Texto-base da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, 2008, p. 50). No mesmo
sentido, afirma Richard Dunphy que, embora até a década de 1970 fosse comum entender-se a sexualidade como mera
prática de atos sexuais, nas décadas de 1980 e 1990 tornou-se ponto comum ir-se além para se entender a sexualidade
“em um significado mais amplo, abrangendo desejos eróticos, práticas e identidades, conforme ensinam Stevi Jackson e
Sue Scott (1996:2)”, definição esta que “tem o mérito de permitir que nos concentremos nos sentimentos sexuais e nos
relacionamentos, não apenas nos atos sexuais; e nas várias maneiras pelas quais nós somos ou não definidos como
sexuais por nós mesmos e pelos outros” (DUNPHY, Richard. Sexual Politics. An Introduction. Edinburgh: Edinburgh
University Press, 2000, p. 41).
94 Heterossexismo é a ideologia que prega a heterossexualidade como a única sexualidade aceitável no meio social (o que
parte de um preconceito social que afronta o princípio do pluralismo jurídico), donde sociedade heterossexista é aquela que
prega o heterossexismo. Assim, “Por meio do heterossexismo, se verifica a promoção incessante, pelas instituições ou
pelos indivíduos, da superioridade da heterossexualidade e da subordinação da homossexualidade. Assim, é desvalorizada
e considerada inferior toda forma de sexualidade que venha a se distinguir da conduta heterossexual, que a ideologia sexista
dominante impõe como modelo único e compulsório” (Texto-base da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais,
Travestis e Transexuais, 2008, p. 50).
95 A orientação sexual “É a atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa sente pela outra. A orientação sexual existe num
continuum que varia desde a homossexualidade exclusiva até a heterossexualidade exclusiva, passando pelas diversas
formas de bissexualidade” (D’ELLAS, Movimento. Direitos Humanos e Contribuição à Cidadania Homossexual. Rio de
Janeiro: Movimento D’ELLAS, 2005, pp. 13-14). A definição de Yogyakarta foca no gênero e não no sexo da pessoa para fins
de atração erótico-afetiva, pois há pessoas não transexuais que se interessam por transexuais após a adequação do sexo
físico ao sexo psíquico destes (no qual a pessoa se relaciona com outra com um corpo masculino/feminino cujo sexo
biológico não é coincidente com este corpo readequado). Sobre o tema, entendemos que pode ser usada a expressão
tradicional, atração erótico-afetiva por pessoas de sexo idêntico, distinto ou a ambos, entendendo-se a expressão sexo
masculino/feminino como atinente a corpo masculino/feminino (não necessariamente ao sexo biológico/genético, mas à
expressão corporal da pessoa).
96 A homossexualidade caracteriza-se pela atração erótico-afetiva que se sente por pessoas do mesmo sexo; “é a atração
afetiva e sexual por uma pessoa do mesmo sexo. Da mesma forma que a heterossexualidade (atração por uma pessoa do
sexo oposto) não tem explicação, a homossexualidade também não tem. Depende da orientação sexual de cada pessoa”
(D’ELLAS, op. cit., p. 14).
97 A heterossexualidade é a atração erótico-afetiva por pessoas de sexo diverso.
98 A bissexualidade é a atração erótico-afetiva que se sente por pessoas de ambos os sexos, em que bissexuais são
“pessoas que se relacionam sexual e/ou afetivamente com qualquer dos sexos” (D’ELLAS, Op. cit., p. 16).
99 Reitera-se o exposto em nota anterior, no sentido da ausência de redundância da expressão amor romântico, para se poder
diferenciá-lo do amor fraterno e por ser o amor romântico o ideal buscado nas relações conjugais.
100 A pederastia é a pedofilia entre homens, em que se pode concluir que pedofilia é gênero do qual a pederastia é uma
espécie.
101 Ou seja, “Embora tenhamos a possibilidade de escolher se vamos demonstrar ou não os nossos sentimentos, os
psicólogos não consideram que a orientação sexual seja uma opção consciente que possa ser modificada por um ato de
vontade” (D’ELLAS, op. cit., p. 14).
102 Vide, em inglês, o estudo nominado, em tradução nossa, de “A Ausência de Diferenças entre Pais Gays/Lésbicas e
Heterossexuais: Uma Retrospectiva da Literatura”. O estudo foi localizado, em inglês, na internet, no seguinte endereço
eletrônico: <http://www.ibiblio.org/gaylaw/issue6/Mcneill.htm> (último acesso: 30 abr. 2008) e traz os seguintes estudos: (i)
sobre casais homoafetivos formados por lésbicas: Strong & Schinfeld – 1984; Harris & Turner – 1986; Shavelson, Biaggio,
Cross, & Lehman – 1980; Pagelow – 1980; Kweskin & Cook – 1982; Green, Mandel, Hotvedt, Gray, & Smith – 1986; Peters
& Cantrell – 1991; Patterson – 1995a; McNeill, Rienzi, & Kposowa – 1998; (ii) sobre casais homoafetivos formados por gays:
Miller – 1979; Mallen – 1983; Skeen & Robinson – 1984; Bigner & Jacobsen – 1989a; Bigner & Jacobsen – 1989b; Bigner &
Jacobsen – 1992; Crosbie-Burnett & Helmbrect – 1993; Bailey, Bobrow, Wolfe, & Mikach – 1995; (iii) sobre desenvolvimento
de crianças de pais homossexuais e heterossexuais: Weeks, Derdeyn, & Langman – 1975; Miller – 1979; Kirkpatrick,
Smith, & Roy – 1981; Hoeffer – 1981; Miller, Jacobsen, & Bigner – 1982; Golombok, Spencer, & Rutter – 1983; Harris &
Turner – 1986; Pennington – 1987; Bozett – 1988; Huggins – 1989; Bailey, Bobrow, Wolfe, & Mikach – 1995; Flaks, Ficher,
Masterpasqua, & Joseph – 1995; Patterson – 1995c; Tasker & Golombok – 1995; Patterson & Mason, Chan, Raboy, &
Patterson. Todos eles concluíram pela ausência de diferenças nas pessoas criadas por casais homoafetivos em relação
àquelas criadas por casais heteroafetivos por conta unicamente do fato de terem sido criadas por um casal homoafetivo.
103 Segundo Geraldo Tadey Moreira Monteiro, “As relações de gêneros definem-se, em primeiro lugar, por oposição ao
conceito de relações entre os sexos. Os estudos feministas da década de sessenta impuseram uma distinção curial entre
sexo e gênero, que os estudos sociológicos incorporaram amplamente”, em que “Enquanto o primeiro tem uma acepção
nitidamente biológica – o sexo é uma condição prescrita biologicamente ao indivíduo, o segundo preconiza uma visão
cultural e psicossocial da condição sexual – o gênero é uma identidade socialmente construída à qual os indivíduos se
conformam em maior ou menor grau (Millett, 1969)” razão pela qual “o gênero, embora ligado ao sexo, não lhe é idêntico,
mas construído socialmente” (MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Construção Jurídica das Relações de Gênero. O
Processo de Codificação Civil na Instauração da Ordem Liberal Conservadora do Brasil. Rio de Janeiro-São Paulo:
Renovar, 2003, p. 17). Nesse sentido, segundo Richard Dunphy, a distinção entre sexo e gênero foi popularizada por Ann
Oakley, para quem “‘Sexo’ é uma palavra que se refere às diferenças biológicas entre homens e mulheres, a visível
diferença de genitália e as respectivas diferenças de funções procriativas. ‘Gênero’, contudo, é uma questão de cultura:
refere-se à classificação social entre ‘masculino’ e ‘feminino’ (Oakley, 1972: 16)” (OACKLEY apud DUNPHY, Richard. Sexual
Politics. An Introduction. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2000, p. 37). Essa é a definição tradicional que aqui se
julga correta, pois contrariamente às críticas segundo as quais o sexo biológico seria tão passível de compreensão por
meio de engenharias sociais, cabe concordar novamente com Richard Dunphy quando afirma que há duas razões para não
se ignorar essa diferença: a primeira é aquela segundo a qual “nem o fato de o nosso entendimento do corpo mudar e
evoluir e nem o fato de não existirem simplesmente ‘duas históricas e fixas biologias – masculina e feminina’, torna morta a
distinção sexo/gênero”, pois “há importantes diferenças biológicas entre homens e mulheres as quais seria tolo ignorar”, na
medida em que, “Como aponta Wilmott, ‘enquanto há uma sobreposição biológica, homens e mulheres são
ontologicamente distintos por suas respectivas capacidades reprodutivas (embora homens e mulheres não sejam
fundamentalmente tipos de pessoas qualitativamente distintas)”, não fazendo sentido ignorar esse fato uma vez que “um
menino de treze anos não vai começar a menstruar apenas porque lhe é dito repetidamente que ele é uma garota”; já a
segunda razão, talvez até mais importante embora complementar à primeira, é aquela segundo a qual “foram as diferentes
capacidades reprodutivas que foram compreendidas pelas sociedades patriarcais e foi a elas que foram dadas
interpretações desigualitárias” (DUNPHY, Richard. Op. cit., p. 40-41 – tradução livre). Quanto ao último trecho, que aqui se
considerou como de difícil tradução (embora de clara ideia), segue o original: “it is the differences in reproductive capacities
which have been seized upon in patriarchal societies and given inegalitarian interpretations”).
104 Nesse sentido, vale ratificar a doutrina de Geraldo Tadey Moreira Monteiro no sentido de que “As relações de gênero
participam de relações de poder (...) [ou seja, de] uma estrutura social que ‘desequilibra’ as instituições em favor de
determinados grupos sociais, facultando-lhes o acesso privilegiado a bens e recursos comuns” por meio de um “‘poder de
gênero’, isto é, o poder de um sexo sobre o outro”, que “engendra-se no âmbito das estruturas sociais de dominação”,
donde “As estruturas de dominação, que consistem em sistemas ordenados de interações sociais,são condição das
práticas reais de poder e, naquilo que nos interessa, estabelecem uma relação direta com as hierarquias de gênero
(Connell, 1987)”, o que significa que “Em termos gerais, a ideologia sexista dominante estabelece uma relação constitutiva
entre masculinidade, autoridade, domínio tecnológico e violência, que é suficiente para ‘mostrar’ à mulher o ‘seu lugar’ na
sociedade” (MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Construção Jurídica das Relações de Gênero. O Processo de
Codificação Civil na Instauração da Ordem Liberal Conservadora do Brasil. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2003, p. 19).
105 Quanto ao último exemplo, tem-se a ideia/norma social segundo a qual “homens não choram”, claramente influenciada
por normas de gênero.
106 Trata-se de um rol meramente exemplificativo. Quanto ao tema das emoções, mesmo o amor romântico não escapa das
normas de gênero. Com efeito, segundo o relato de Richard Dunphy (Sexual Politics. An Introduction. Edinburgh: Edinburgh
University Press, 2000, p. 106-107): “O argumento central de Stevi Jackson é o de que o amor é uma experiência de
aprendizado segundo os gêneros – meninos e meninas aprendem diferentes scripts. Homens não são encorajados a
desenvolver competências relativas a localizarem-se dentro de discursos de emoções – é por meio do idioma da fanfarra
sexual e da conquista, não da linguagem do romance, que a masculinidade é afirmada. Encorajados a localizar o núcleo
central de suas identidades no mundo ‘externo’, homens geralmente aprendem a expressar sentimentos de amor ou
amizade mediante ‘fazer coisas’ [sic – doing things] e em atividades compartilhadas em vez de revelações íntimas [de seus
sentimentos]. Mulheres, ao contrário, são socializadas na definição de si mesmas em termos de relacionamentos e, por
intermédio do penetrante idioma da ficção romântica, são encorajadas a abraçar não apenas revelações [intimas], mas a
noção de sacrifício-próprio em nome do ‘amor’” (tradução livre).
107 Cf. DUNPHY, op. cit., p. 80 – tradução livre.
108 Assim, gênero é “o conjunto de normas, valores, costumes e práticas através das quais a diferença entre homens e
mulheres é culturalmente significada e hierarquizada. Envolve todas as formas de construção social das diferenças entre
masculinidade e feminilidade, conferindo sentido e inteligibilidade social às diferenças anatômicas, comportamentais e
estéticas. Contemporaneamente se compreende que não há linearidade na determinação do sexo sobre o gênero e sobre o
desejo, sendo o gênero uma construção individual, social e cultural que sustenta a apresentação social da masculinidade
e/ou da feminilidade por um indivíduo” (Texto-base da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e
Transexuais, p. 50).
109 Para maiores digressões sobre o tema, vide a excelente obra de João Silvério Trevisan acerca da crise da masculinidade,
na qual se demonstra que os atributos ditos como “masculinos” e “femininos” são variáveis ao longo da história e entre as
diversas sociedades, ressaltando ainda que, enquanto o reconhecimento da condição “feminina” na mulher é tido como
natural, por uma questão biológica (primeira menstruação e possibilidade de procriação), o reconhecimento da
“masculinidade” é algo que precisa ser conquistado por meio de posturas social e culturalmente mutáveis, além de se
correr sempre o risco de se perder dito reconhecimento se o homem deixar de se portar conforme social e culturalmente
dele se exige, necessitando assim de um trabalho constante para sua manutenção, em que, segundo Ceccarelli, “Na busca
da masculinidade, o homem tem sempre presente ‘o fantasma de estar privado dela’” (cf. TREVISAN, João Silvério. Seis
balas num buraco só. A crise do masculino. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998, p. 39-42).
110 Segundo os Princípios de Yogyakarta, em definição ratificada pelo Texto-base da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (2008, p. 51): “Compreendemos [como] a identidade de gênero a profundamente
sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no
nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função
corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e
maneirismos”.
111 “Sendo o fator psicológico predominante na transexualidade, o indivíduo identifica-se como sexo oposto, embora dotado de
genitália externa e interna de um único sexo” (D’ELLAS, Movimento. Direitos Humanos e Contribuição à Cidadania
Homossexual. Rio de Janeiro: Movimento D’ELLAS, 2005, p. 16). Destaque-se apenas que a Organização Mundial de
Saúde ainda considera a dissociação entre sexo físico e sexo psíquico uma patologia (qualificando-a como uma disforia de
gênero), em que a ciência médica ainda utiliza-se do termo transexualismo (o sufixo “-ismo”, na ciência médica, significa
“doença”, ao passo que o sufixo “-dade” significa “modo de ser”). Contudo, o uso do sufixo “-dade” é feito por autores que
defendem (com razão, a meu ver) a experiência transexual como uma questão de gênero e não uma doença, reivindicando,
assim, a despatologização da condição transexual – é o caso, por exemplo, de Berenice Bento, para quem “a
transexualidade é uma experiência identitária, caracterizada pelo conflito com as normas de gênero”, sendo os
transgêneros pessoas que “ousam reivindicar uma identidade de gênero em oposição àquela informada pela genitália e, ao
fazê-lo, podem ser capturados pelas normas de gênero mediante a medicalização e patologização da experiência”. Isso
porque, segundo a autora, enquanto o heterossexismo social afirma que “Os gêneros inteligíveis obedecem à seguinte
lógica: vagina-mulher-feminino versus pênis-homem-masculino”, de sorte a institucionalizar o entendimento de que a
complementaridade natural provaria, inquestionavelmente, que a humanidade seria necessariamente heterossexual e que
os gêneros só teriam sentido quando relacionados às capacidades inerentes de cada corpo [ou seja, uma construção
identitária que ligue necessariamente o sexo biológico do homem ao gênero masculino e o sexo biológico da mulher ao
gênero feminino], por conta dessa presunção heterossexista, a transexualidade passa a representar um perigo para estas
normas de gênero, “à medida que reivindica o gênero em discordância com o corpo-sexuado”. Assim, afirma a autora que a
patologização da transexualidade foi uma das formas encontradas pela ideologia heterossexista para continuar a defender a
heterossexualidade como uma sexualidade admissível, pois, se as ações empíricas não conseguem corresponder às
expectativas estruturadas a partir das suposições oriundas das normas de gênero heterossexistas, ocorre a
desestabilização das normas de gênero, normas estas que se defendem geralmente pelo uso da violência física e/ou
simbólica para manter práticas dissonantes à margem daquilo considerado por aquelas como humanamente normal, em
que “O processo de naturalização das identidades e a patologização fazem parte desse processo de produção das
margens, local habitado pelos seres abjetos, que ali devem permanecer” [por decisão arbitrária da ideologia dominante]. (cf.
BENTO, Berenice. O que é a Transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008, pp. 15, 18, 31-35). Recomenda-se a leitura
integral da obra para se compreender com maiores pormenores todas as nuances do tema. Por outro lado, considerando
que saúde é definida pela Organização Mundial de Saúde como o completo estado de bem-estar físico, psíquico e social e
não o mero estado de não patologia, considero que o transexual pode ser considerado como de saúde prejudicada – não
por ser detentor de uma patologia, mas por não ter um bem​-estar psíquico e/ou social por conta da dissociação de seu
sexo físico em relação a seu sexo psíquico, podendo a expressão disforia de gênero ser entendida neste contexto. Anote-
se, por oportuno, que o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo publicou manifesto, em 26.05.2011, defendendo a
despatologização da transexualidade por argumentos análogos aos desenvolvidos nesta nota (íntegra em
<http://www.crpsp.org.br/portal/midia/fiquedeolho_ver.aspx?id=365>. Último acesso em: 06 jan. 2012). Por outro lado, vale
notar que a atual normatização do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre a cirurgia de transgenitalização é a
Resolução CFM 1.955/2010 (que revogou a anterior Resolução CFM 1.652/2002, a qual, por sua vez, já havia substituído a
Resolução CFM 1.482/1997).
Capítulo 3

OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA E DA


PROPORCIONALIDADE

1. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE – NOTA INTRODUTÓRIA


O princípio da isonomia possui um duplo aspecto no ordenamento jurídico brasileiro, a saber: um
aspecto formal e um aspecto material.

1.1 Aspecto formal – conteúdo e histórico


Em seu aspecto formal, o princípio da igualdade estabelece a denominada igualdade perante a lei,
que determina a igual aplicação do Direito vigente a todos os indivíduos, sem consideração das
características pessoais específicas dos cidadãos sujeitos à legislação a ser aplicada. Esta concepção,
extremamente legalista, criou-se a partir da Revolução Burguesa contra o Regime Feudal que vigorava na
sociedade francesa de sua época. Surgiu especialmente para combater a série de privilégios concedidos
ao Clero e à Nobreza (como se sabe, a sociedade de então se regia pelo regime estamental, que se
dividia entre Nobreza, Clero e Povo, com a Burguesia inclusa nesta última categoria), uma vez que
praticamente todos os ônus necessários ao desenvolvimento social recaíam sobre o Povo, existindo,
concomitantemente, uma série de privilégios às outras duas classes estamentais. O Código Napoleônico
de 1804 é exemplo clássico dessa nova concepção de igualdade absoluta entre todos os cidadãos, no
tocante aos direitos e deveres a eles garantidos e impostos, o que visava, especialmente, impedir a volta
daquele regime estamental que se tinha acabado de derrubar1.
Devido ao momento histórico em que foi criada, a noção meramente formal da isonomia
proporcionou ao legislador total liberdade para estabelecer quem seriam os iguais e quem seriam os
desiguais, no sentido de que a lei poderia dispor livremente sobre a matéria sem nenhuma restrição,
ainda que oriunda do texto constitucional2. Contudo, tal visão extremamente legalista do Direito trouxe
uma série de dificuldades quanto à aplicação dos direitos fundamentais dos cidadãos. Isso porque, tendo
o legislador o poder de definição do conteúdo jurídico preciso dos direitos fundamentais (visto que era a
lei que definia o conteúdo dos mesmos, independentemente do que dissesse a Constituição, em
verdadeira interpretação da Constituição conforme a lei) acabou-se dando a ele também o poder de
criar discriminações extremamente contrárias especialmente à dignidade da pessoa humana e baseadas
unicamente em critérios arbitrários (embora abstratos) do elaborador da lei3.
Assim, a realidade prática demonstrou que a aplicação do princípio da igualdade, em seu aspecto
meramente formal, abre margem para uma série de arbitrariedades, uma vez que possibilita a inversão
total da célebre definição de Aristóteles, que serve de base ao preceito isonômico segundo a qual se
deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. Isso
porque a aplicação isolada do aspecto formal da isonomia permite tratar igualmente os desiguais, o que
per si já fere dito princípio (como, por exemplo, a cobrança do mesmo valor de IPTU – Imposto Predial
e Territorial Urbano de propriedades de 200 e 20 metros quadrados, algo intuitivamente anti-isonômico).
Dessa forma, concluiu-se pela insuficiência da compreensão meramente formal do preceito
isonômico, que demandou por uma consideração também material, proibitiva de tratamento desigual de
situações idênticas ou análogas, mesmo que tal diferenciação arbitrária fosse instituída por lei4. A
supremacia dos direitos fundamentais passou a se impor até mesmo sobre a vontade das maiorias
parlamentares (ou seja, do legislador democrático) a partir do momento em que se reconheceu a
supremacia da Constituição sobre os atos do Parlamento.
Dessa forma, tornou-se necessária a aplicação do aspecto material da isonomia, que a seguir se
aborda.

1.2 Aspecto material – conteúdo


Em seu aspecto material, o princípio da igualdade consagra a célebre definição de igualdade de
Aristóteles, uma vez que define que deve ser dado o mesmo tratamento jurídico aos indivíduos que se
encontrem em situação idêntica ou análoga, ao passo que aos que se encontram em situação diversa deve
ser dado um tratamento jurídico diverso, justamente em face da situação diferenciada em que se
encontram5. É a denominada igualdade na lei.
A partir da formulação em epígrafe, surgem, quase espontaneamente, as seguintes indagações: Quem
são os iguais e os desiguais? Qual(is) o(s) critério(s) de que se utiliza(m) para se fazer a(s)
diferenciação(ões) entre indivíduos com o fim de aplicar-lhes tratamentos jurídicos distintos?
Para responder a essas questões, Celso Antônio Bandeira de Mello trouxe o seguinte procedimento
trifásico cumulativo: quando se pretende dar um tratamento jurídico desigual a determinado grupo
abstrato de indivíduos, é preciso eleger um critério distintivo entre o grupo discriminado e os demais,
devendo, além disso, existir uma correlação lógico-racional entre o critério distintivo eleito e a
discriminação jurídica que se pretende introduzir (ou seja, deve ser uma decorrência silogística – lógica
– do critério diferenciador erigido e também ser racional, ou seja, ser embasada em fundamentos fático-
científicos que a justifiquem), sendo, por fim, também necessário que tal discriminação seja condizente
com os valores constitucionalmente consagrados, no seguinte molde:

1) eleição de um fator de desigualação que abarque pessoas indeterminadas e indetermináveis


no momento de sua escolha;
2) identificado o fator de desigualação, deve haver uma correlação lógica abstrata entre ele e
o tratamento jurídico diferenciado que se pretende introduzir; e
3) deve existir, por fim, uma correlação lógica concreta entre o tratamento jurídico
diferenciado e os valores prestigiados pela Constituição.

Quanto ao fator de desigualação, ressalta Celso Antônio Bandeira de Mello que “a lei não pode
erigir em critério diferencial um traço tão específico que singularize no presente e definitivamente, de
modo absoluto, um sujeito a ser colhido pelo regime peculiar”6, apontando ainda para o fato de que “o
traço diferencial adotado, necessariamente há de residir na pessoa, coisa ou situação a ser discriminada;
ou seja: elemento algum que não exista nelas mesmas poderá servir de base para sujeitá​-las a regimes
diferentes”7. Outrossim, ressalta a proibição de eventual inviabilidade lógica ou material das normas
jurídicas, no que tange à sua reprodução em outros casos, tratando-se a primeira de “(...) situação atual
irreproduzível por força da própria abrangência racional do enunciado”8, sendo a segunda caracterizada
por uma “(...) descrição de situação cujo particularismo revela uma tão extrema [hipótese], da
improbabilidade da recorrência que valha como denúncia do propósito, fraudulento, de singularização
atual absoluta do destinatário”9. Assim, conclui que só não haverá agravo à isonomia com relação a esse
aspecto (fator de desigualação) se a lei “(...) atingir uma categoria de pessoas ou então voltar-se para um
só indivíduo, se, em tal caso, visar a um sujeito indeterminado e indeterminável no presente”10. Este
primeiro aspecto é o que Alexy denomina de práxis decisional universalizante, que é um “postulado
geral de racionalidade prática, que vale tanto para o legislador quanto para o aplicador do direito”11.
Superada a questão do critério de desigualação, deve haver uma correlação lógico-racional entre o
critério de diferenciação erigido e o tratamento jurídico diferenciado que se pretende introduzir a
determinado grupo de indivíduos. Neste ponto, tem-se que esse tratamento jurídico diferenciado que se
pretende impor deve ser uma consequência silogística (elemento lógico) da característica erigida como
critério de diferenciação entre os indivíduos que receberão dito tratamento diferenciado e os que
continuarão sob a égide da legislação comum, além de ser embasado em fundamentos fático-científicos
que o justifiquem (elemento racional)12. Isso significa que somente deve ser instituído um tratamento
diferenciado se for apresentada uma fundamentação lógico-racional que o justifique, sendo que, na
inexistência de fundamentação suficiente ou válida, a isonomia impõe a aplicação do mesmo regime
jurídico a todas as situações13.
Por fim, além dos dois aspectos anteriores, deve a diferenciação pretendida estar de acordo com os
valores protegidos por nossa Constituição, donde se conclui que a relação lógico-racional explicitada
anteriormente deve estar de acordo com a Carta Magna, sob pena de se caracterizar tal discriminação
como verdadeira inconstitucionalidade por atentar contra a isonomia, uma vez que estará ferindo os
valores protegidos pela Lei Maior, mesmo no caso de perfeitamente lógica e racional a diferenciação
pretendida14.
Essa é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello. Faço apenas uma ressalva ao pensamento do
célebre doutrinador: penso que o terceiro critério não faz parte da isonomia, mas da constitucionalidade
em geral. Isso porque, se é certo (como é) que a discriminação juridicamente válida é aquela que, além
de visar pessoas indeterminadas e indetermináveis e seja pautada por uma motivação lógico-racional,
deva ser coerente com os valores constitucionalmente consagrados, a isonomia encontra-se satisfeita com
a presença dos dois primeiros aspectos supra-apontados, donde eventual incoerência da diferenciação
com outros valores constitucionais ensejará inconstitucionalidade por afronta a estes, não à isonomia (o
que significa dizer que a discriminação juridicamente válida, necessariamente tem que respeitar a
isonomia, embora o respeito à isonomia nem sempre gere uma discriminação juridicamente válida).
De qualquer forma, percebe-se que a discriminação juridicamente válida é aquela oriunda de uma
valoração lógico-racional no sentido da necessidade de se dispensar um tratamento diferenciado a uma
situação quando comparada a outra(s), diferenciação esta que deverá, ainda, estar em consonância com
os valores consagrados em nossa Constituição Federal. Por outro lado, é de se notar que a lição de Celso
Antônio Bandeira de Mello deve ser complementada com a ponderação de Canotilho no sentido de que o
princípio da isonomia não se resume à proibição do arbítrio (tão bem explicitada pelo primeiro), mas
também à função social da igualdade, no sentido de ser a isonomia uma imposição constitucional
relativa que, por isso, a caracteriza como uma forma de eliminação das desigualdades fáticas. Em outras
palavras, ainda que a isonomia genericamente considerada não fundamente um dever absoluto de
legislação, fundamenta um dever de legislação relativo, uma imposição constitucional acessória, uma
exigência de atuação relativa, no sentido de que quando existirem pessoas essencialmente iguais àquelas
que foram objeto de regulamentação legal, o princípio da igualdade exigirá para estas uma disciplina
legal igual à estabelecida para os casos já regulados, fundamentando um dever legislativo de atuação
nesse sentido. Dessa forma, aponta o autor que quando a disciplina legiferante favorecer certos
indivíduos esquecendo-se de outros, impor-se-á à Jurisdição e à Administração que supram a lacuna
legal por intermédio da analogia, só devendo dita lei ser declarada nula quando as vantagens legais não
puderem ser estendidas pela aplicação analógica aos casos ou grupos reconhecidos como portadores dos
mesmos pressupostos daqueles já contemplados pela disciplina legal15.
Isso significa que, verificada a arbitrariedade, entendida como inexistência de motivação lógico-
racional que justifique o tratamento diferenciado do grupo que foi resguardado pela regulamentação legal
em relação ao grupo não contemplado, dever-se-á constatar uma inconstitucionalidade por omissão, que
deverá ser sanada pela utilização das técnicas hermenêuticas da interpretação extensiva ou da analogia,
como forma de se conceder ao grupo discriminado os direitos conferidos ao outro grupo. Ressalte-se que
o fato de se tratar de uma inconstitucionalidade por omissão e não por ação torna incorreta e inoportuna
uma expurgação da lei em questão do ordenamento jurídico por vício de inconstitucionalidade, na medida
em que o grupo protegido pelo texto legal é merecedor de dita proteção, havendo inconstitucionalidade
unicamente na exclusão do outro grupo de dita regulamentação. Assim, é de se ter em mente que
inconstitucionalidades por omissão não podem nem devem ser solucionadas mediante declaração de
nulidade da lei concessiva de direitos, mas pela extensão de tais direitos ao grupo discriminado pela lei
por intermédio da interpretação extensiva ou da analogia, que são, afinal, técnicas hermenêuticas
decorrentes da isonomia por visarem garantir igual tratamento aos iguais, ou fundamentalmente iguais,
respectivamente.
Por outro lado, é de se notar o equívoco daqueles que dizem que as diferenciações expressamente
proibidas pela Constituição tornariam inconstitucional toda e qualquer lei que criasse tratamento
diferenciado com base naqueles critérios. Citem-se, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente
e o Estatuto do Idoso, que criam regimes jurídicos diferenciados e mais benéfico a menores e idosos do
que aquele existente para adultos, mesmo a despeito da proibição de discriminação por idade (art. 3.o, IV,
da CF/1988), ou mesmo da diferença de prazo na licença-maternidade e na licença-paternidade, mesmo a
despeito da proibição de discriminação por sexo (arts. 3.o, IV, e 5.o, I, da CF/1988). Ocorre que, nesses
casos, a Constituição erigiu tais cláusulas como classificações suspeitas, presumindo sua
inconstitucionalidade, donde a validade delas depende de uma fundamentação lógico-racional que
justifique sua necessidade e pertinência como um importante fim estatal16. Restam, assim,
compatibilizadas as questões de proibições expressas na Constituição com o aspecto material da
isonomia e, ainda, com o postulado segundo o qual a lei não tem palavras inúteis (lei aqui usada em
sentido amplo: constitucional ou infraconstitucional).
É por isso que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e a licença-maternidade
não são inconstitucionais, mesmo a teor dos arts. 3.o, IV e 5.o, I, da CF/1988, na medida em que se afigura
como lógica e racional a maior proteção de menores e idosos em relação a adultos, visto que os
primeiros ainda não têm o discernimento e a experiência necessárias para a vida em sociedade e os
segundos se encontram em situação de inferioridade física, menor resistência e maior desgaste em
relação a adultos em geral. O mesmo se diga quanto ao maior prazo da licença-maternidade em relação à
licença-paternidade, na medida em que é a mulher quem dá a luz à criança e, ainda, ante a necessidade da
amamentação, justifica-se que ela tenha um descanso maior do que o do homem, que não tem desgaste
físico algum com o nascimento de seu(sua) filho(a), assim como não precisa amamentá​-lo(a) por meses.
Vislumbra-se aqui um importante fim estatal na garantia de uma maior proteção a crianças, adolescentes
e idosos em relação a adultos, visto que constituem numerosa parte da população que necessita de
especial proteção estatal em virtude de sua hipossuficiência relativamente ao restante da população
(adulta), de sorte a garantir que recebam igual respeito e consideração do Estado e do restante da
sociedade contra discriminações e abusos que possam vir a sofrer.
Cabe destacar o acerto de Walter Claudius Rothemburg quando afirma que não existem “duas
igualdades”, uma formal e outra material, ou ainda uma igualdade perante a lei e outra igualdade na lei,
mas, ao contrário, existe apenas uma igualdade, que deve respeitar todas estas compreensões17. Nesse
sentido, entendo que a igualdade formal é a regra, ao passo que a igualdade material é a exceção, no
sentido de que aquele que propugna pelo tratamento desigual tem o ônus de provar a pertinência lógico-
racional de tal diferenciação, sob pena de ser aplicada a igualdade formal. Ou, nas palavras do autor18:
“A igualdade significa, portanto, evitar discriminações injustificáveis, proibindo-se o tratamento desigual
de quem esteja numa mesma situação, bem como promover distinções justificáveis, oferecendo um
tratamento desigual para quem esteja numa situação diferenciada (injusta)”. É, inclusive, o que já decidiu
o Supremo Tribunal Federal (necessidade de consideração tanto do aspecto formal quanto do aspecto
material na análise de determinada diferenciação jurídica à luz do princípio da isonomia19).
Com essas premissas em mente, pode-se analisar o dever de respeito às diferenças oriundo do
princípio da igualdade20. Com efeito, a partir do momento em que a isonomia exige uma fundamentação
lógico-racional que justifique a discriminação pretendida com base no critério diferenciador erigido,
tem-se que é inconstitucional o desrespeito a terceiros por puros preconceitos e, assim, por motivos
puramente arbitrários, justamente por serem estes desprovidos de fundamentação lógico-racional que
lhes fundamente.
O pluralismo social constitucionalmente consagrado reforça essa tese. Afinal, a partir do momento
em que a Constituição consagra uma sociedade plural, isso significa que a Constituição reconhece e
protege o direito das pessoas viverem plenamente seus diferentes projetos de vida sem que totalitárias
pretensões uniformizantes tenham qualquer respaldo constitucional.
Isso significa que o mero moralismo majoritário não tem o condão de justificar discriminações
jurídico-sociais pelo simples fato de o grupo discriminado ter um estilo de vida supostamente contrário à
moral do grupo majoritário/dominante. Não foi outra a conclusão da Suprema Corte dos EUA no
julgamento do caso Lawrence v. Texas, de 2003, no qual declarou a inconstitucionalidade das leis que
criminalizavam o sexo homoafetivo (chamado de “sodomia homossexual”), entre outros motivos, pelo
fato de a mera desaprovação moral não servir de fundamento para discriminar determinado grupo de
pessoas, na medida em que a promoção de valores morais majoritários não passa pelo teste da relação
racional, que aduz que uma discriminação será constitucional quando for pautada por uma relação
racional com uma legítima e independente finalidade constitucional (cf. Romer v. Evans)21, no que não se
enquadra o mero moralismo majoritário não acompanhado pela promoção de uma tal finalidade
constitucional. Para tanto, referido julgado prestigiou as colocações do voto vencido do Justice Stevens,
em Bowers v. Hardwick, segundo o qual “o fato de que a maioria governante de um Estado
tradicionalmente considerou como imoral uma determinada prática não é uma razão suficiente para
justificar uma lei que proíba esta prática”22.
Por fim, uma nota importante sobre o aspecto material da isonomia: como é intuitivo, o que é lógico-
racional para uma pessoa pode não sê-lo para outra. Nesse tema, ingressa-se em uma questão
valorativa, o que geralmente leva a diversos entendimentos a respeito do mesmo tema e, ainda, a
evoluções/mudanças de posicionamento sobre o que é isonômico e o que não o é23. Ou seja, o que se
considera isonômico em uma determinada época pode não mais sê-lo em épocas futuras, como a história
humana já comprovou. Nesse sentido, vale mencionar a evolução da isonomia no ordenamento jurídico
estadunidense, que: (i) partiu de uma legislação escravista, avançando para, após a abolição: (ii) admitir
que negros fossem discriminados negativamente em relação a brancos; (iii) deixar de considerar
legítimas discriminações pautadas unicamente na cor de pele (doutrina do Separate but Equal –
Separados mais Iguais); (iv) admitir ações afirmativas para promover a igualdade real dos cidadãos
(doutrina do Treatment as an Equal – Tratamento como um Igual)24.
Isso significa que mutações normativas do que se considera materialmente isonômico são
absolutamente normais, em razão da evolução do pensamento humano e das novas descobertas
científicas. Diz-se isto pelo fato de que não se deve pensar que não haveria afronta à isonomia pelo não
reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas ou então pelo não reconhecimento da
possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos pelo
simples fato de, no passado, não terem sido consideradas anti-isonômicas tais arbitrárias posturas. O
contexto social atual é diferente daquele do passado; o entendimento humano sobre a homossexualidade e
a homoafetividade também (atualmente, as pessoas civilizadas respeitam a homossexualidade, ao passo
que a ciência médica mundial não mais a patologiza, vendo-a como uma das livres manifestações da
sexualidade humana, ao lado da heterossexualidade). De uma forma ou de outra, hoje não se vislumbram
razões para negar direitos às uniões homoafetivas pelo simples fato de serem formadas por duas pessoas
do mesmo sexo, na medida em que essas uniões são tão dignas quanto as existentes entre duas pessoas de
sexos diversos. Assim, eventuais razões do passado não podem ser importadas acriticamente ao presente:
deve-se levar em conta o atual entendimento científico a respeito do tema. Mesmo porque não é porque
algo sempre foi assim que este algo estaria necessariamente certo – a escravidão sempre foi assim antes
de sua abolição e nem por isso esteve certa em nenhum momento histórico. Nunca esteve, embora o
pensamento da época não o vislumbrasse, talvez por não se preocupar tanto com a dignidade da pessoa
humana quanto se preocupa hoje.
Em suma, somente não haverá agravo à isonomia se a discriminação pretendida visar a indivíduos
indeterminados e indetermináveis ao tempo da elaboração do projeto de lei que a consagra e for, ao
mesmo tempo, racionalmente lógica em seus fundamentos e concretamente coerente com os valores
constitucionalmente consagrados, donde se impõe a aplicação da mesma norma a todos (o aspecto formal
da isonomia), sem diferenciações de tratamento, no caso de não atendimento de qualquer um dos critérios
supraelucidados, todos necessários à aplicação do aspecto material do preceito isonômico25. Por outro
lado, constatada a arbitrariedade da exclusão de determinados grupos do regime legal em questão, dita
inconstitucionalidade por omissão deverá ser sanada por intermédio da interpretação extensiva ou da
analogia, como forma de se estender a ditos grupos o regime jurídico ao qual fazem jus.

1.3 A teoria tridimensional do Direito e o objeto de proteção das normas. O Direito como ciência
valorativa
Uma das principais alegações dos opositores ao reconhecimento do status jurídico​-familiar das
uniões homoafetivas é o fato de inexistir “lei expressa” permitindo tal hipótese. Usam a expressão “o
homem e a mulher” constante nos dispositivos que tratam do casamento civil e da união estável para
justificar seu ponto de vista. Apesar de esta ser uma discussão a ser travada pormenorizadamente em
capítulos próprios, cumpre tecer algumas considerações acerca do objeto de proteção das normas, que
não se configuram por situações fáticas constantes dos enunciados normativos, mas, ao contrário, a partir
do(s) valor(es) protegido(s) por estes.
Demonstra completo desconhecimento acerca do objeto de proteção de uma norma jurídica a
afirmação de que a mera falta de texto normativo regulamentando determinada situação fática ensejaria a
absoluta falta de proteção jurídica a esta ou, ainda, a não extensão de regime jurídico dispensado por
texto normativo a situação idêntica ou análoga àquela situação mencionada pelo enunciado normativo.
Com efeito, a norma jurídica não protege determinadas situações fáticas devido à arbitrariedade e/ou aos
caprichos do legislador (de ter protegido apenas estas e não outras) – a norma jurídica protege
determinados fatos devido a um valor positivo a eles conferidos. Em outras palavras, o que se protege
não é um fato isolado, mas um valor inerente à situação mencionada pela norma, seja ela constitucional
ou infraconstitucional.
Essa é a Teoria Tridimensional do Direito, segundo a qual há três aspectos nas normas jurídicas, a
saber: (i) um aspecto fático, que engloba os fatos abarcados pela norma; (ii) um aspecto valorativo, que
justifica a proteção aos fatos abarcados em virtude de um valor positivo a eles atribuído ou a
condenação aos referidos fatos em virtude de um valor negativo a eles vinculado; e (iii) um aspecto
normativo, que instrumentaliza em um texto normativo a proteção ou condenação legislativa aos fatos em
comento26. Isso significa que o Direito é uma ciência valorativa, no sentido de que protege ou reprime
determinados fatos em razão da valoração a eles atribuída.
Cumpre definir aqui o que se entende por valoração: valorar quer dizer atribuir um significado
positivo ou negativo a determinado fato, por meio de atribuição de um grau de importância ou
desimportância ao referido fato27. Isso significa que uma lei que regulamente uma situação, garantindo-
lhe proteção jurídica, valorou-a positivamente; ao passo que uma lei que proibiu ou restringiu os direitos
de outra situação, valorou-a negativamente28.
Destarte, fica claro que o Direito protege uma situação fática, por meio de uma norma jurídica em
decorrência de um valor positivo conferido àquele fato. Em outras palavras, a norma decorre de um fato
valorado positiva ou negativamente pelo legislador, razão pela qual se pode cunhar a equação segundo a
qual fato + valor = norma29. Fica claro, portanto, que é o valor da norma jurídica o objeto protegido
por esta, e não uma situação fática desprovida de qualquer valoração30.
Ora, se um fato liga-se a um valor para gerar a norma, então se percebe que a norma decorre de um
fato valorado positiva ou negativamente, conforme a equação segundo a qual norma = fato + valor.
Exemplifique-se: a norma que pune o homicídio analisa o fato (matar alguém), atribui-lhe um valor
negativo (matar é errado, condenável) e, consequentemente, atribui-lhe uma pena (reclusão). Da mesma
forma o Estatuto da Criança e do Adolescente é um microssistema jurídico que analisa o fato
“menoridade”, atribui-lhe um juízo de valor (crianças e adolescentes precisam de maior proteção que
adultos) para a criação de diversas normas que protegem os interesses de crianças e adolescentes. O
mesmo pode ser dito quanto ao Estatuto do Idoso: analisa o fato “idade avançada” e atribui-lhe um juízo
de valor (idosos precisam de maior proteção que adultos) para a criação de diversas normas que
protegem os idosos.
Como se pode ver, não é um fato isoladamente considerado que é protegido pela norma: é o valor
inerente a esse fato que é protegido por ela. O Direito é uma ciência valorativa, pois o ser humano
somente age em determinado sentido por visar uma determinada finalidade, orientado por valores – ou
seja, “toda atividade humana se destina a satisfazer um valor ou a impedir que um desvalor sobrevenha.
As valorações são, pois, um dos ingredientes ônticos do processo cultural, inseparável da ‘vida
quotidiana’”31. Por outro lado, as valorações devem ser pautadas pela racionalidade, pelo entendimento
empírico-científico a respeito do tema sob análise, sendo inadmissível o uso de subjetivismos
desprovidos de qualquer comprovação no momento da valoração, ou seja, no momento de se atribuir um
significado positivo ou negativo ao fato analisado32. Tendo isso em mente, chega-se a uma compreensão
completa dos institutos da interpretação extensiva e da analogia, que são técnicas hermenêuticas de
integração e interpretação jurídica que visam garantir a uma situação não citada expressamente
(interpretação extensiva) ou não regulamentada (analogia) a mesma proteção jurídica concedida àquela
tomada como paradigma em decorrência de ambas serem idênticas (interpretação extensiva) ou
possuírem o mesmo elemento essencial (valor) protegido pela norma (analogia).
Assim, na precisa lição de Humberto Ávila33:

A questão, então, passa a dizer respeito à motivação do tratamento diferenciado. A igualdade


pressupõe uma relação entre dois sujeitos com base em determinado critério de diferenciação. Esse
critério de diferenciação, por sua vez, é utilizado para atingir determinada finalidade,
correlacionando os sujeitos, tendo em vista determinadas propriedades que, relativamente àquela
finalidade, são tidas como relevantes. (...) Como a igualdade exige uma comparação de sujeitos, há
a necessidade de estabelecer uma medida de comparação para atingir uma dada finalidade. (...) ela
pressupõe uma relação entre sujeitos com base em determinado critério de diferenciação, que é
utilizado para atingir determinada finalidade, e correlaciona os sujeitos tendo em vista
determinadas propriedade havidas, relativamente àquela finalidade, como relevantes (...) Com
efeito, sempre que se pretende realizar a igualdade, há uma relação entre determinados elementos
(sujeitos, medida de comparação, elemento indicativo da medida de comparação e finalidade da
comparação). (...) a igualdade é uma relação entre dois ou mais sujeitos em razão de um critério que
serve a uma finalidade. (...) Esses juízos comparativos estão evidentemente relacionados: para
saber se as pessoas devem ser tratadas igualmente é preciso verificar, no plano dos fatos, se elas
têm as propriedades selecionadas como relevantes pela norma (...). Vale dizer, a igualdade,
enquanto dever de tratamento igualitário, só surge quando, para alcançar determinada finalidade que
deve ser buscada, os sujeitos são comparados por critérios que, além de serem permitidos, são
relevantes e congruentes relativamente àquela finalidade (...). A igualdade pode, portanto, ser
definida como sendo a relação entre dois ou mais sujeitos, com base em medida(s) ou critério(s) de
comparação, aferido(s) por meio de elemento(s) indicativo(s), que serve(m) de instrumento para a
realização de determinada finalidade. (...)

Disso resulta que, considerando que o atual entendimento empírico-científico demonstra que a
homoafetividade é tão normal e tão digna quanto a heteroafetividade, não podem os casais
homoafetivos serem discriminados em relação aos casais heteroafetivos por conta unicamente da
homogeneidade de sexos daquele casal, devendo aqueles receberem a mesma proteção jurídica
concedida a estes por intermédio das citadas técnicas interpretativas, sendo preconceituoso o
entendimento em sentido contrário.
Nesse sentido, a interpretação extensiva é fundamentada no fato de que o legislador pode não ter em
mente todas as situações fáticas que contenham o valor protegido pela norma por ele elaborada, donde
ele pode ter deixado expressa a proteção a uma determinada situação fática ao mesmo tempo em que se
omitiu quanto a uma outra situação idêntica, omissão esta por ignorância ou preconceito, o que é
irrelevante. Já a analogia é baseada no fato de uma situação que seja diferente daquela expressamente
regulamentada possuir o mesmo valor (elemento essencial) da situação expressa, razão pela qual é
utilizada para estender à segunda situação, não expressamente regulamentada, o regime jurídico conferido
à primeira situação, expressa pela lei.
Ou seja, a interpretação extensiva e a analogia nada mais são do que formas de aplicação da
isonomia, visto que com elas se pretende tratar igualmente os iguais ou os fundamentalmente iguais por
serem possuidores do mesmo elemento essencial (valor), que é o verdadeiro objeto de proteção da
norma jurídica (no caso da analogia). Em verdade, são elas formas de alcançar a verdadeira finalidade
do Direito mesmo que a letra fria do texto normativo, aparentemente, não abarque todas as situações que
o valor que ele visou proteger, na prática, abrange. Afinal, o legislador não é um déspota que possui o
poder de regular arbitrariamente a vida em sociedade conforme seus caprichos: a partir do momento em
que o ordenamento jurídico consagra a igualdade como preceito fundamental, todos aqueles que se
encontram na mesma situação ou em situação fundamentalmente idêntica devem receber o mesmo
tratamento jurídico, donde é possível a aplicação da interpretação extensiva ou da analogia nos casos
onde o texto normativo não proíba expressamente a situação omitida pelo preceito geral da norma34.
Como se percebe, a interpretação extensiva e a analogia são exteriorizações do princípio da
igualdade, no sentido de que visam tratar igualmente os iguais (interpretação extensiva) e os
fundamentalmente iguais (analogia), muito embora a letra fria do texto normativo não preveja
expressamente dita proteção jurídica. Isso se justifica porque o valor protegido pela igualdade
constitucionalmente assegurada é o de que as pessoas que se encontrem nas mesmas condições, ou em
condições essencialmente idênticas, recebam o mesmo tratamento jurídico, para evitar
arbitrariedades, favorecimentos despóticos de determinados grupos ou pessoas em relação a
outros(as).
Dessa forma, deve-se sempre utilizar a interpretação teleológica quando se interpreta um
dispositivo legal. Interpretação teleológica é aquela que visa identificar a finalidade do texto normativo,
ou seja, o valor por ele protegido para apurar seu real objeto de proteção, justamente para estender ou
mesmo restringir sua aplicação aos fatos analisados no caso concreto. Ou seja, quando o intérprete
perceber que o texto normativo não citou expressamente determinada situação ou então foi omisso em
relação a ela, e que não há motivação lógico-racional no tratamento diferenciado das duas situações,
deverá estender a ela o mesmo tratamento jurídico dispensado à situação expressamente citada ou
regulamentada. Aliás, toda interpretação jurídica deve ser guiada pela pauta teleológica que busque a
real finalidade do texto normativo35.

1.3.1 Caracterização da lacuna normativa


Argumento muito comum utilizado contra o reconhecimento do casamento civil, da união estável e da
adoção conjunta por casais homoafetivos é o fato de a legislação usar a expressão “o homem e a mulher”
nos dispositivos legais/constitucionais respectivos, no sentido de que reconhecem a união estável “entre
o homem e a mulher” (arts. 226, § 3.º, da CF/1988, e 1.723 do CC/2002) e o casamento civil como o ato
celebrado “quando o homem e a mulher” comparecem perante o juiz de paz (art. 1.514 do CC/2002),
como se isso configurasse uma “proibição implícita” ao casamento civil e à união estável entre pessoas
do mesmo sexo. Contudo, esse entendimento é absurdo, na medida em que é notório, consoante as lições
de Direito Civil Clássico consagradas pela doutrina36, no sentido de que o fato de a legislação citar um
fato sem proibir outro configura lacuna normativa passível de colmatação por interpretação extensiva ou
analogia, por força do princípio da igualdade, que demanda tratamento igual a situações idênticas ou
idênticas no essencial, respectivamente.
Esse tema foi tratado já na primeira edição desta obra, no Capítulo 6, item 3 – “A Interpretação
Extensiva, a Analogia e a Possibilidade Jurídica do Casamento Civil Homoafetivo”37, bem como, no
mesmo capítulo, no item 6 – “Da Possibilidade Jurídica do Pedido de Casamento Civil Homoafetivo”38 –
tópicos mantidos (com acréscimos) nesta nova edição. Contudo, achei por bem criar item específico
acerca da caracterização da lacuna normativa neste capítulo pela inacreditável frequência com que
argumentos no sentido de que a redação normativa “impediria” o reconhecimento do casamento civil e da
união estável por casais homoafetivos pela mera literalidade normativa. Digo inacreditável por ser
basilar na ciência jurídica que o fato de a legislação citar um fato sem proibir outro configurar lacuna
normativa e não “proibição implícita” ao fato não regulamentado – até porque, do contrário, restariam
inviabilizadas as técnicas hermenêuticas da interpretação extensiva e da analogia, já que ambas
pressupõem que a legislação citou um fato sem proibir outro e que o juiz compare as duas situações para
aplicar àquela não citada pelo texto normativo o regime jurídico por este expressamente dispensado
àquela por ele mencionada caso as considere idênticas ou análogas.
Logo, absolutamente descabida a afirmação de que o fato de a legislação citar a expressão “o homem
e a mulher” ou “marido e mulher” implicaria “proibição implícita” ao casamento civil ou à união estável
entre pessoas do mesmo sexo, na medida em que isto significa meramente a regulamentação do fato
heteroafetivo (a união entre pessoas de sexos diversos) como casamento civil e união estável sem,
todavia, que isto signifique “proibição implícita” ao fato homoafetivo (a união entre pessoas do mesmo
sexo) como casamento civil e união estável, como demonstrado pormenorizadamente no capítulo 6, itens
3 e 6 – pois, como bem afirmado pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277, o fato de a legislação ter reconhecido a união entre o homem e a mulher não significa o não
reconhecimento da união entre duas pessoas do mesmo sexo39.

1.3.2 Interpretação extensiva ou analogia para reconhecimento do casamento civil, da união estável e
da adoção por casais homoafetivos. Despsicologização do conceito de interpretação extensiva.
Esclarecimentos
A tese principal deste trabalho é aquela segundo a qual devem ser reconhecidos o casamento civil, a
união estável e a adoção por casais homoafetivos por interpretação extensiva ou analogia, por força do
princípio da igualdade40. Pode-se indagar porque se fala em interpretação extensiva ou analogia. Como
mencionado, as duas supõem um texto normativo que cita um fato sem nada dispor sobre o outro, mas
diferem porque a interpretação extensiva refere-se a duas situações idênticas, e a analogia a duas
situações que, embora diferentes em algum aspecto, são idênticas no essencial, naquilo que justifica a
normatização do fato regulamentado. Nesse sentido, considero que as uniões homoafetivas são idênticas
às uniões heteroafetivas, tendo em vista que ambas são pautadas pelo mesmo amor familiar, sendo
absolutamente irrelevante o fato de termos duas pessoas do mesmo sexo em um caso e duas pessoas de
sexos distintos em outro, o que não configura nenhuma diferença – não mais do que a existente entre um
casal heteroafetivo formado por brancos e um casal heteroafetivo formado por negros. Contudo, caso se
considere que isso configuraria uma “diferença” entre as situações, então só se pode concluir que não se
trata de uma diferença relevante, uma vez que ambas as uniões são pautadas pelo mesmo elemento
essencial, a saber: o amor familiar, que é o elemento formador da família contemporânea. Dessa forma,
a interpretação teleológica dos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável demonstra que
eles visam proteger a família oriunda de uma união amorosa, entendida ela como a pautada pelo amor
romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura (amor familiar41). Não que outras formas de amor não configurem o amor familiar: o amor
fraterno que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura
também deve ser visto como caracterizador de uma entidade familiar, embora sem caráter romântico-
sexual. Contudo, o casamento civil e a união estável são regimes jurídicos que abarcam as uniões
amorosas pautadas pelo amor romântico, não pelo amor fraterno, desse modo, correta a definição aqui
adotada.
Lembre-se da lição de Ávila, supratranscrita: “a igualdade, enquanto dever de tratamento igualitário,
só surge quando, para alcançar determinada finalidade que deve ser buscada, os sujeitos são comparados
por critérios que, além de serem permitidos, são relevantes e congruentes relativamente àquela
finalidade”. Nesse sentido, sendo a finalidade dos textos normativos relativos à casamento civil e à
união estável regulamentar a família conjugal, sendo a união homoafetiva uma família conjugal, ela
deverá ser por eles abarcada, por interpretação extensiva ou analogia, visto que o não reconhecimento
da família conjugal homoafetiva não traz nenhum prejuízo ou benefício à família conjugal heteroafetiva,
além de se tratar de medida arbitrária, por ser despida de fundamentação lógico-racional que lhe
fundamente, em que esse não reconhecimento é inconstitucional por afronta ao princípio da isonomia. Tal
afirmação será pormenorizadamente desenvolvida nos capítulos 6 a 10.
Na definição tradicional, afirma-se que a interpretação extensiva destina-se a complementar o texto
legal/constitucional sob o fundamento de que o legislador disse menos do que queria; no mesmo sentido,
afirma-se que a interpretação restritiva destina-se a corrigir o texto legal/constitucional sob o
fundamento de que o legislador disse mais do que queria. Como se vê, essas definições tradicionais têm
como foco o que os parlamentares específicos que aprovaram o texto normativo pensaram ou deixaram
de pensar. Não é, todavia, meu entendimento. Entendo que, identificado (pela interpretação) o valor
protegido pela norma, deve-se estender ou restringir o âmbito de incidência do texto normativo para
adequá-lo à finalidade normativa, independentemente do que pensou ou deixou de pensar o legislador
concreto. Se sua vontade não está exteriorizada no texto normativo nem se adéqua ao valor protegido
pela norma, ela deve ser tida como irrelevante. Consoante já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça,
inclusive analisando o tema da possibilidade jurídica da união estável e do casamento civil por casais
homoafetivos, se o texto normativo não traz uma proibição específica de extensão do regime jurídico em
questão a determinada situação ou uma restrição específica mediante termos como
“apenas/somente/unicamente”, então não há proibição normativa e, portanto, impossibilidade jurídica do
pedido. Afirma o STJ que, se o legislador desejasse, poderia incluir tais proibições/restrições no texto
normativo, mas, se não o fez, não se pode considerar como proibida a extensão do regime jurídico em
questão à situação não mencionada pelo texto normativo42 – ainda mais no Direito das Famílias, no qual
proibições/restrições devem ser expressas ante o caráter taxativo dos impedimentos matrimoniais.
Pelo mesmo raciocínio, não se pode considerar a vontade psicológica do legislador concreto na
interpretação do texto normativo quando tal vontade não esteja exteriorizada nas palavras do referido
texto. Dessa forma, na linha da corrente objetiva da interpretação normativa, entendo cabível
interpretação extensiva quando a lei disse menos do que queria – a lei objetivamente considerada,
desvinculada da vontade psicológica do legislador concreto sobre seu âmbito de incidência. A
investigação da vontade subjetiva do legislador concreto deve ser feita para se entender o que ele quis
proteger com o texto normativo em questão, mas deve-se levar em conta o conceito que o legislador quis
proteger, não a concepção pessoal do legislador sobre o que se enquadra neste conceito. No presente
caso, parece evidente que o legislador quis proteger a família conjugal com os regimes jurídicos do
casamento civil e da união estável – este é o conceito protegido pela legislação, no qual todas as uniões
amorosas que se enquadrarem no conceito de família conjugal devem ser abarcados pelos regimes
jurídicos do casamento civil e da união estável caso não haja proibição/restrição normativa específica
nas palavras dos textos normativos respectivos que impeçam tal exegese extensiva. Se a concepção de
família conjugal do legislador não abarca as uniões homoafetivas, por exemplo, isso não pode ser tido
como relevante, pois o que deve ser interpretado é o texto normativo, não a vontade psicológica do
legislador – até porque criar-se proibições não previstas no texto normativo é inconstitucional por
afronta ao princípio da legalidade, consagrado em nosso art. 5.º, II, da CF/1988, segundo o qual ninguém
será obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude de lei – em virtude de lei, e não em
virtude da vontade subjetiva do legislador não exteriorizada em texto normativo. Aliás, o STJ já
decidiu que afronta o princípio da legalidade a decisão judicial que impõe “requisito” para acesso a
determinado regime jurídico quando dito requisito não é previsto em lei (no texto da lei) – ou seja, que
ofende o princípio da legalidade criar “requisito” não previsto em lei43, o que reforça a posição aqui
defendida, pois se o texto normativo não estabeleceu expressamente algo como requisito de determinado
regime jurídico, não se pode ter como existente um tal “requisito”, sob pena de afronta ao princípio da
legalidade (art. 5.º, II, da CF/1988).

1.4 O princípio do Estado Laico e a proibição da utilização de fundamentações religiosas para


justificar discriminações jurídicas
Antes de iniciar esta questão, cumpre explicitar o texto normativo-constitucional que consagra o
princípio do Estado Laico no ordenamento jurídico brasileiro, a saber, o art. 19, I, da CF/1988, que
proíbe ao Estado brasileiro manter com religiões e respectivas instituições religiosas quaisquer relações
de aliança ou dependência.
Ainda que não se aceite a conclusão do capítulo anterior sobre a ausência de condenação divina à
homossexualidade e se entenda que a bíblia efetivamente condena a homossexualidade por si, há que se
considerar que o Brasil é um Estado Laico, no qual os rumos da nação não podem ser definidos nem
sequer influenciados pelas religiões, o que se extrai da vedação expressa do art. 19, I, da CF/1988 no
sentido de manutenção de relações de “dependência ou aliança” com religiões e/ou instituições
religiosas44.
Ante o teor do citado dispositivo constitucional, é evidente que o Estado Brasileiro não pode
utilizar-se de fundamentações religiosas para justificar discriminações políticas e jurídicas, ante a
proibição de manutenção de relações de dependência ou aliança com os credos religiosos45. Ademais, é
uma decorrência lógica do princípio da laicidade estatal essa proibição, visto que as religiões baseiam-
se em supostas “verdades universais”, que não admitem discussão, por mais que toda a racionalidade
humana aponte para o sentido contrário. Afinal, as religiões baseiam-se em um ponto que lhes é muito
cômodo: a fé não necessita de comprovação – basta que alguma colocação seja professada e que nela se
acredite, ante a afirmação de que seria baseada na “palavra de Deus”. No entanto, ao contrário, a
isonomia exige comprovação lógico-científico-racional, sendo esta a única forma válida de se criarem
discriminações jurídicas, o que significa que, além de violar o princípio do Estado Laico, fundamentar
uma discriminação jurídica em explicações religiosas afronta também o princípio da igualdade, que
supõe a existência de pelo menos um fundamento lógico-racional que justifique a discriminação
pretendida com base no critério discriminador erigido. Ou seja, não se podem usar explicações
religiosas para fundamentar diferenciações jurídicas, dada a sua absoluta arbitrariedade:
arbitrariedade porque não admitem discussões ou debates. Como são colocadas como consagração da
“palavra de Deus”, os religiosos que as defendem não admitem sequer que alguém as questione. Não é
incomum alguém ser chamado de “herege”, “pecador” e outros nomes afins, por “ousar” criticar
racionalmente os dogmas religiosos.
Nesse sentido, cumpre aqui lembrar os horrores cometidos pela Igreja Católica na Idade Média, que
ensejaram inclusive a denominação desse período como “Idade das Trevas” pelos historiadores, ante as
arbitrariedades e injustiças cometidas por dita instituição religiosa contra aqueles que “ousavam” não
concordar integralmente com seus dogmas. Afinal, mesmo aqueles que diziam professar a fé católica na
época, caso não seguissem à risca todos os dogmas dessa Igreja eram tidos como “hereges”,
“influenciados pelo demônio” e, por isso, muitas vezes queimados em praça pública (ante os Estados
permitirem a influência da Igreja Católica em seus domínios, inclusive por intermédio do Tribunal da
“Santa” Inquisição). Aponte-se, por exemplo, o caso de Galileu, que “ousou” dizer que a Terra girava em
torno do Sol (teoria heliocêntrica) e que só não foi queimado por ter-se retratado perante o Tribunal da
“Santa” Inquisição...
Faço questão de ressaltar que não é meu objetivo desmerecer a fé católica, nem qualquer outra – os
seguidores desta ou daquela crença têm todo o direito de acreditarem naquilo que lhes fizer sentido com
relação a sua fé (mesmo porque quem cometeu aquelas atrocidades foi a instituição religiosa, em
inegável deturpação dos valores cristãos de amor e respeito ao próximo). Contudo, a Idade Média é a
prova cabal de que as instituições religiosas não podem ter o poder de determinar os rumos políticos e
jurídicos dos países, ante a absoluta arbitrariedade de muitos de seus dogmas.

1.4.1 Conteúdo jurídico do princípio do Estado Laico


Um Estado Laico é aquele que não se confunde com determinada religião, não adota uma religião
oficial, permite a mais ampla liberdade de crença, descrença e religião, com igualdade de direitos entre
as diversas crenças e descrenças e no qual fundamentações religiosas não podem influir nos rumos
políticos e jurídicos da nação. Ora, a partir do momento em que se veda aos entes de Direito Público que
mantenham relações de dependência ou aliança com as religiões ou suas instituições (art. 19, I ,da
CF/1988), veda-se a utilização de fundamentos religiosos como paradigmas válidos para a condução
política e jurídica do País, pois, do contrário, teria uma relação de aliança com a religião cujo
fundamento dogmático foi utilizado, o que é vedado constitucionalmente. Este é o conteúdo jurídico do
princípio da laicidade estatal.
Assim, ainda que se entenda que a fé cristã, assim como qualquer outra, condene o relacionamento
homoafetivo, tal consideração é inócua para o mundo do Direito, uma vez que a religião não pode ditar
os rumos políticos e jurídicos da nação.
Afinal, restou demonstrado que uma discriminação somente não afrontará o preceito igualitário caso
haja uma justificação lógico-racional entre o critério de desigualação erigido (no caso, a orientação
sexual das pessoas) e a discriminação que se pretende introduzir (no caso, a discriminação entre os
efeitos jurídicos conferidos à união homoafetiva em comparação àqueles conferidos à união
heteroafetiva). Ou seja, restou demonstrado que, para que não se tenha uma inconstitucionalidade na
discriminação, deve existir um motivo fático que justifique, inequivocamente e de maneira lógico-
racional, a necessidade da discriminação pretendida. Outrossim, será demonstrado no capítulo seguinte,
com relação ao princípio da dignidade da pessoa humana que, considerando que as pessoas são
merecedoras de igual proteção de sua dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas,
independentemente de quaisquer características suas, e considerando que a eventual relativização deste
princípio deve atender aos ditames do princípio da isonomia, ter-se-á demonstrado que a colocação da
homoafetividade como digna de menos proteção do que a heteroafetividade é igualmente inconstitucional
por afrontar a dignidade humana constitucionalmente consagrada.
Dessa forma, considerando que o Brasil é um Estado Laico, nenhum motivo de ordem puramente
religiosa pode vir a justificar qualquer forma de discriminação jurídica entre as pessoas, pois do
contrário o Estado manteria relação de aliança com a religião usada como tal, o que é vedado pelo citado
art. 19, I, da CF/1988. Mesmo porque os dogmas religiosos são extremamente subjetivos e passíveis de
críticas do ponto de vista científico-racional, por elevarem determinadas afirmações a verdades
universais, inquestionáveis (os dogmas46), como se tivessem sido assim afirmadas por Deus, o que não
pode ser confirmado – basta ver a grande quantidade de religiões existentes no mundo nos dias de hoje.
Se a vontade de Deus fosse tão clara, então a humanidade não teria apenas uma religião? Assim, a menos
que Deus desça à Terra em toda a Sua Onipresença, Onisciência e Onipotência e Inquestionável Presença
e diga o que deve e o que não deve ser aceito e o motivo de tais colocações, o que por sinal ainda não
aconteceu, nenhum dogma religioso poderá servir de motivo para justificar a discriminação de pessoas,
quaisquer que sejam.
Tal é inclusive o posicionamento do padre Daniel A. Helminiak, que também afirma que devem as
instituições religiosas que pregam o preconceito contra homossexuais justificarem seus motivos, não
devendo servir de base unicamente a Bíblia, pois esta não condena a homossexualidade em si, mas
condutas a ela incorretamente associadas e, também e principalmente, porque afirmar que “Deus disse
que é errado” não é uma resposta boa o bastante, pois também Deus deve justificar suas posições para
que haja bom-senso e sabedoria na moralidade divina, visto que, do contrário, tal moralidade seria
puramente arbitrária e despótica – o que evidentemente é um absurdo lógico inaceitável (porque a
vontade divina, perfeita por definição, não poderia ser arbitrária e despótica)47.
Nem se invoque a expressão “sob a proteção de Deus”, constante do preâmbulo constitucional para
tentar uma exegese diversa48. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal já definiu, no julgamento da ADI
2.076 que o preâmbulo tem significação meramente política, não jurídica49. Ou seja, considerando que o
Supremo Tribunal Federal deixou claro no julgamento da ADI 2.076 que a expressão “sob a proteção de
Deus”, além de não ser texto normativo de repetição obrigatória, não é juridicamente relevante, nos
termos do voto do Ministro Sepúlveda Pertence, que não foi contestado pelos demais Ministros, não se
poderá invocar tal expressão preambular para se pretender impor entendimentos religiosos a toda a
nação.
De qualquer forma, mesmo a posição da eficácia interpretativa do preâmbulo não faz que o Estado
Brasileiro possa ser tido como teocrático, confessional ou ainda que posições religiosas possam ser
utilizadas como paradigmas interpretativos válidos em função da expressão “sob a proteção de Deus”,
na medida em que esta expressão não tem nenhuma significação jurídica e, ainda, pela presença de texto
normativo constitucional que impossibilite tal posição – a saber, o já explicitado art. 19, I, da CF/1988,
consagrador do princípio da laicidade estatal no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro – e é
pacífico que, na contradição entre o preâmbulo e um dos artigos, incisos, parágrafos ou alíneas da
Constituição, estes últimos hão de prevalecer.
A ausência de normatividade da expressão “sob a proteção de Deus” reside no fato de que ela não
pode pretender instituir uma obrigação à divindade. Ora, se uma nação efetivamente estivesse “sob a
proteção de Deus”, isso significaria que Deus deveria obrigatoriamente efetivar tal proteção quando
necessário. Mas, como não se afigura possível nem razoável instituir uma obrigação à divindade, então
se afigura impossibilidade jurídica por impossibilidade fática de efetivação de tal pretensão. A referida
expressão é, apenas, pretensiosa afirmação no sentido de que a divindade estaria preocupada com a
Assembleia Nacional Constituinte Brasileira. Assim, independentemente da teoria que se adote sobre a
natureza jurídica do preâmbulo constitucional e independentemente da localização desta (ou seja, ainda
que estivesse presente em artigo constitucional), a expressão “sob a proteção de Deus” jamais terá
qualquer significação jurídica na medida em que dita expressão não tem nenhum sentido jurídico, nenhum
conteúdo jurídico, tratando-se de mera exortação pretensiosa. Em termos mais sintéticos, foi essa a
fundamentação do Ministro Sepúlveda Pertence, em voto concordante ao julgamento da referida ADI
2.076, com a qual se concorda50.
Mas, ainda que com isso não se concorde e se entenda (incorretamente) que tal expressão teria
significação jurídica, mesmo assim a referida expressão não tem o condão de tornar válida a utilização
de fundamentações religiosas para pautar justificações jurídicas. Primeiramente, porque referida
expressão não é impositiva, não atribuindo nenhuma obrigação a ninguém, donde, reconhecida a
juridicidade interpretativa do preâmbulo constitucional ou mesmo a plena normatividade do mesmo, ela
só pode ser entendida como proibição a uma postura ateísta do Estado que proíba manifestações
religiosas e especialmente a religiosidade privada das pessoas – o que se encontra vedado ainda pelos
textos normativos que consagram as liberdades de consciência, de crença, de estabelecimento de cultos
religiosos, assim como pela proteção aos locais de culto e liturgia, constantes do art. 5.o, VI, da CF/1988.
Afinal, como demonstrado, o princípio da laicidade estatal veda a utilização de fundamentações
religiosas para embasar discriminações juridicamente válidas, donde a contraposição entre dita
expressão e o art. 19, I, da CF/1988 só pode levar à prevalência deste último em relação à expressão
preambular. Ademais, mesmo isoladamente considerada, dita expressão somente expressa que o Brasil
não é um Estado Ateísta (proibidor de qualquer crença teísta), mas um Estado Laico, que permite a
liberdade religiosa, embora vede, por força do citado dispositivo constitucional, a utilização de
fundamentações religiosas para embasar discriminações juridicamente válidas.
Assim, resta evidente que fundamentações religiosas não podem servir de paradigma válido para
justificar discriminações jurídicas, sob pena de permitir a volta da arbitrariedade e do preconceito de
forma institucionalizada em nosso Estado de Direito, o que é inadmissível. É por esse motivo que o
Brasil consagrou o princípio da laicidade estatal, justamente para evitar as barbaridades cometidas sob a
égide de Estados Teocráticos (nos quais Estado e Igreja se confundem) ou mesmo Confessionais (nos
quais o Estado adota uma religião oficial). Ou seja, a laicidade estatal brasileira impede que
fundamentações religiosas sejam validamente utilizadas para pautar decisões jurídicas e políticas.

2. OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE – CONTEÚDO


JURÍDICO
Oriundo inicialmente de construção jurisprudencial do Tribunal Constitucional Alemão, o princípio
da proporcionalidade51 visa, precipuamente, servir como método de controle dos atos estatais no sentido
de averiguar a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito das medidas estatais
em debate para, neste terceiro momento (que supõe necessariamente o reconhecimento da adequação e da
necessidade citadas), solucionar o conflito entre dois ou mais direitos fundamentais em choque por parte
dessas medidas, por meio de um juízo de ponderação entre os mesmos para, identificado aquele que seria
mais relevante no caso concreto, sacrificar-se (o menos possível) o outro52.
Assim, como forma de controle da atividade estatal e mesmo de solução de conflito entre dois ou
mais direitos, o princípio da proporcionalidade é subdividido em três subprincípios a ele inerentes, a
saber: o da adequação, o da necessidade e o da proporcionalidade em sentido estrito. A adequação
significa que a medida impugnada deve ser apta a atingir o fim por ela pretendido; a necessidade aponta
que deve ser utilizado o meio menos gravoso para atingir aquele fim; por fim, a proporcionalidade em
sentido estrito significa que o que se ganha com a restrição deve ser maior do que o que se perde com
ela, o que se verifica por meio de uma ponderação entre os direitos em conflito para apurar qual deles
deverá ser sacrificado (na menor medida possível), por ser menos relevante, ou qual a forma de
compatibilização entre eles para evitar o conflito efetivo e acabar com a tensão existente53. Ou, na lição
de Luís Roberto Barroso54: “Cuida-se, aqui, de uma verificação entre os danos causados e os resultados
a serem obtidos. Nas palavras de Canotilho, trata​-se ‘de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se
alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim’. (...) é a ponderação
entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos
direitos dos cidadãos”.
Assim, se a medida impugnada não for apta a atingir o fim por ela pretendido, se houver outra menos
gravosa aos atingidos que possa atingir o mesmo fim ou, ainda, se o direito que ela vise proteger tiver
menor relevância do que o outro direito com o qual ela colida, então dita medida será inconstitucional
por afronta ao princípio da proporcionalidade.
Ademais, uma discriminação somente será juridicamente válida (ou seja, respeitadora do aspecto
material da isonomia) se igualmente respeitar os ditames do princípio da proporcionalidade, visto que
somente haverá racionalidade na diferenciação se ela for: adequada a atingir os fins pretendidos;
necessária, ante a inexistência de outra forma menos gravosa para tanto; e, por fim, proporcional em
sentido estrito, uma vez que o valor protegido com a desequiparação deve ser maior do que o valor por
ela restringido ou sacrificado no caso concreto55 (ou seja, se não for possível uma concordância prática
de forma a viabilizar a convivência de ambos os bens em conflito, ainda que um seja mais relativizado
que o outro, será necessário o sacrifício de um deles no caso concreto, o que supõe necessariamente a
ponderação apontada).
Outrossim, cumpre apontar que não equiparo os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade,
entendendo que ambos possuem conteúdos jurídicos distintos. Sobre o princípio da razoabilidade, deve-
se concordar com Jane Reis Gonçalves Pereira56, que traz à lume quatro concepções doutrinário-
jurisprudenciais acerca do princípio da razoabilidade – plenamente cumuláveis para a definição do
conteúdo jurídico do princípio da razoabilidade, a saber: (i) como antônimo de arbitrariedade (são
irrazoáveis os atos estatais destituídos de causa ou fundamento, assim como os que se amparam em
razões irrelevantes, o que supõe um imperativo de congruência às medidas adotadas pelo Poder
Público); (ii) como justiça do caso concreto (são irrazoáveis posturas que desconsiderem as regras da
lógica ou da experiência comum; razoabilidade como sinônimo de equidade); (iii) como exigência de
consistência e coerência lógica das leis e decisões judiciais (coerência interna, de ausência de
contradição entre os diversos fundamentos contidos no ato normativo ou na sentença, e coerência externa,
harmonia entre o ato controlado e os valores imanentes do ordenamento jurídico); (iv) como
equivalência (imposição constitucional de correspondência equilibrada entre as grandezas analisadas).
Percebe-se, assim, que a razoabilidade deve ser utilizada no processo de ponderação
(proporcionalidade em sentido estrito), embora com ela não se confunda.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO: DA DISCRIMINAÇÃO JURIDICAMENTE VÁLIDA


(ISONÔMICA E PROPORCIONALMENTE)
Uma ideia comum quando se estuda pela primeira vez a isonomia é a de que ela vedaria toda forma
de discriminação. Tal concepção, indiretamente demonstrada acima, é equivocada. Toda norma é
discriminatória; toda norma garante uma série de direitos e/ou obrigações aos indivíduos. O Estatuto da
Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso são exemplos perfeitos: garantem uma discriminação
benéfica aos menores, no primeiro caso, e aos idosos no segundo, e em ambos os casos em detrimento de
adultos (que ficam em uma situação jurídica inferior àquela de menores e idosos). A Lei dos Crimes
Hediondos, por sua vez, traz uma discriminação negativa àqueles que se enquadram em suas disposições.
O princípio da igualdade não é absoluto: admite relativização por meio de seu aspecto material.
Para tanto, uma discriminação juridicamente válida deverá respeitar o procedimento trifásico-cumulativo
consagrado por Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo o qual a discriminação juridicamente válida
será: a que tiver como objeto pessoas indeterminadas e indetermináveis no momento da elaboração do
texto normativo em questão; seja uma decorrência lógico-racional do critério discriminador erigido, ou
seja, deverá ser uma decorrência silogística (aspecto lógico) do critério de desigualação eleito e, por
mais silogística que seja, deverá ser motivada com fundamentos fático-científicos que a justifiquem
(aspecto racional); e, por fim, por maiores que sejam a lógica e a racionalidade que a embasem, seja
coerente com os valores constitucionalmente consagrados. Somente quando respeitados esses três
requisitos é que se terá uma discriminação juridicamente válida57, do que, ao revés, vale dizer que
quando um ou mais desses requisitos restar desrespeitado, ter-se-á o caso de uma discriminação
inconstitucional por afrontar a isonomia.
Por outro lado, cumpre ressaltar que as normas jurídicas não protegem meras situações fáticas, mas
determinados valores nelas presentes, o que pode ser facilmente vislumbrado por meio da Teoria
Tridimensional do Direito (norma = fato + valor), donde o fato de o texto normativo ser omisso em
relação a determinada situação fática (como o é hoje no que tange às uniões homoafetivas) não significa,
necessariamente, que dita situação não expressamente citada ou não regulamentada não possa usufruir do
regime jurídico dispensado à outra situação expressamente protegida pelo texto normativo. O que deve
ser levado em conta nesse ponto é o fato de existir ou não o mesmo valor protegido pela norma na
situação não citada/não regulamentada, hipótese na qual será cabível a extensão daquele regime
jurídico a esta, seja por meio da interpretação extensiva ou da analogia, que são princípios gerais de
Direito oriundos do aspecto material da isonomia, no sentido de garantirem o mesmo tratamento jurídico
aos iguais (interpretação extensiva) e aos fundamentalmente iguais (analogia). Essa é a exteriorização da
interpretação teleológica, que se baseia no objeto de proteção da norma (em sua finalidade), em vez de
se ater a sua fria letra. Ou seja, interpreta-se uma norma de acordo com o seu objeto de proteção, com a
sua finalidade, e não segundo a letra fria e eventualmente desatualizada do texto normativo.
Ressalte-se, ainda, que nenhum motivo de ordem religiosa serve para fundamentar uma
discriminação juridicamente válida, pois o Brasil é um Estado Laico, no qual a religião não pode influir
na política e/ou no ordenamento jurídico pátrio, pois, do contrário, ter-se-ia relação de aliança com a
religião em questão, o que é expressamente vedado pelo art. 19, I, da CF/1988. Isso porque
fundamentações religiosas são dotadas de alto grau de arbitrariedade, visto que baseadas em supostas
“verdades universais” (dogmas) que não admitem discussão, mesmo que toda a razão humana aponte para
o sentido contrário. Assim, percebe-se que a adoção de fundamentações religiosas para fundamentar
discriminações jurídicas, além de violar o princípio da laicidade estatal, viola também o princípio da
igualdade, que supõe uma motivação lógico-racional que justifique a discriminação pretendida com base
no critério diferenciador erigido.
Por sua vez, o princípio da proporcionalidade é uma forma de controle dos atos públicos que visa
invalidar aqueles que se mostrem inaptos a obter o fim por eles pretendido, que sejam mais gravosos do
que outros possíveis para que se atinja tal fim e, ainda, aqueles cujos direitos que visam proteger sejam
menos relevantes do que outros direitos que com eles conflitem no caso concreto. Nesse sentido, é de se
notar que somente haverá respeito à isonomia na diferenciação se esta for: adequada para atingir os fins
pretendidos; necessária, ante a inexistência de outra forma menos gravosa para tanto; e, por fim,
proporcional em sentido estrito, no sentido de que o valor protegido com a desequiparação deve ser
maior do que o valor sacrificado por ela no caso concreto (ou seja, somente se respeitados esses três
subprincípios do princípio instrumental da proporcionalidade). Apenas assim a discriminação perpetrada
será proporcional e, consequentemente, válida.

1 Nesse sentido, explica Roger Raupp Rios (O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: a
Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 41) que:
“Neste contexto, o imperativo da igualdade exige igual aplicação da mesma lei a todos endereçada. Disto decorre que a
norma jurídica deve tratar de modo igual pessoas e situações diversas, uma vez que os destinatários do comando legal são
vistos de modo universalizado e abstrato, despidos de suas diferenças e particularidades. O resultado que daí advém é a
regulação igual de situações subjetivas e objetivas desiguais: eis a aplicação formal da igualdade, contrariando
materialmente a consagrada máxima segundo a qual ser justo é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais
na medida de suas desigualdades. (...) Deste modo, ainda que dirigida ao aplicador da lei, tal formulação nada diz a respeito
dos critérios fundantes das distinções entre os possíveis destinatários da regra jurídica, bastando para a observância da
igualdade a fixação e a lealdade ao critério estabelecido”. Explicitando o intuito da igualdade formal, afirma Viviane Girardi
(Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, 2005, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, p. 75): “Tem-se, pois, que o sistema jurídico cria mecanismos e forja categorias
chamando para si a definição de quem é o sujeito de direito, ou seja, aquele que, atingindo a maioridade que é dada pelo
sistema, contrata, compra e vende, casa-se com quem o sistema também define que pode se casar e, ao morrer, pode
testar e transmitir seu patrimônio. Nesse contexto está embutida a igualdade formal, ou seja, com base na autonomia da
vontade, todos podem contratar, comprar, contrair matrimônio e transmitir patrimônio. Percebe-se, pois, que a igualdade
formal de todos perante a lei migra para o sistema jurídico positivado como uma conquista que não realiza concretamente a
igualdade de todos, mas só daqueles que detêm patrimônio e interesses patrimoniais”.
2 Como se sabe, o constitucionalismo tal como concebemos hoje, com a supremacia da Constituição sobre a legislação
criada pelo Parlamento, surgiu nos EUA com a decisão Marbury v. Madison no final do século XVIII. Contudo, na Europa
prevaleceu a ideia de supremacia absoluta do Parlamento, uma vez que o entendimento da época não via na Constituição
uma condicionante material das normas infraconstitucionais, concepção esta que só ganhou força efetiva no final do século
XX. Assim, o relevante para o tema aqui discutido é que na Europa o Parlamento era livre para a criação de normas mesmo
que contrariamente ao texto constitucional. A ideia de controle de constitucionalidade pelo Judiciário somente começou a
vingar na teoria constitucional europeia ao longo do século XX quando os horrores do nazi-fascismo demonstraram que
mesmo o Parlamento democraticamente eleito pode cometer as mais flagrantes injustiças.
3 Quanto ao tema, afirma Roger Raupp Rios (O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: a
Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 36) que:
“Especificamente no âmbito dos direitos fundamentais, onde se insere o princípio da igualdade, admitiu-se a definição do
conteúdo dos direitos fundamentais pelo legislador. O esvaziamento material deste conteúdo, cujos contornos ficavam à
mercê da legislação, acabou por tolerar a adoção de medidas flagrantemente contrárias à dignidade humana, como
claramente ilustra a admissão de discriminações pelo regime nazista, mesmo no quadro de um ordenamento jurídico onde
previsto o princípio da igualdade. Diante desta concepção, verificou-se a mais completa ineficácia dos direitos fundamentais
que, muito além de uma perspectiva formal, reclamam conteúdo e disciplina jurídica próprios” (sem grifo no original). Nesse
sentido, leciona Robert Alexy (Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, 5.a Edição Alemã, 1.a
Edição Brasileira, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 398) acerca da insuficiência desse critério (por ele denominado
práxis decisional universalizante, ou seja, um “postulado geral de racionalidade prática, que vale tanto para o legislador
quanto para o aplicador do direito”, pois “ele nada diz sobre que características, de que indivíduos, devem ser tratados de
que forma. Se o enunciado geral de igualdade se limitasse ao postulado de uma práxis decisória universalizante, o
legislador poderia, sem violá-lo, realizar qualquer discriminação, desde que sob a forma de uma norma universal, o que é
sempre possível. A partir dessa interpretação, a legislação nazista sobre judeus não violaria o enunciado ‘os iguais devem
ser tratados igualmente’”.
4 “Assim sendo, a afirmação da igualdade meramente formal, preconizada no quadro do Estado de Direito formal,
corresponde a um princípio de racionalidade universalista que nada acrescenta à questão da justiça ou da injustiça das
equiparações ou diferenciações. Nada diz a respeito de como devem ser tratados os indivíduos com tais ou quais
características. Nesta esteira, aliás, estariam o legislador e o aplicador da lei autorizados a praticar qualquer discriminação
sem ofender ao princípio da igualdade, donde que, por exemplo, não ofenderia ao princípio da igualdade a legislação nazista
endereçada contra judeus, ciganos ou homossexuais. Fica patente, pois, a insuficiência da afirmação abstrata e
universalizante da igualdade perante a lei, enraizada tão só na superação da sociedade estamental do derrotado Antigo
Regime” (RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: a Homossexualidade no
Direito brasileiro e Norte-Americano, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 41 e 42 – sem grifo no original).
5 O que significa, nos termos da célebre frase aristotélica, que se deve “tratar igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais na medida de sua desigualdade”.
6 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3.ª Edição, 11.ª Tiragem, Maio-2003, São
Paulo: Malheiros Editores, p. 23.
7 Ibidem, p. 23.
8 Ibidem, p. 25.
9 Ibidem, p. 25.
10 Ibidem, p. 25.
11 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, 5.a Edição Alemã, 1.a Edição
Brasileira, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 398. Na mesma página, todavia, o autor afirma a insuficiência desse
critério, pois: “Ele nada diz sobre que características, de que indivíduos, devem ser tratadas de que forma. Se o enunciado
geral de igualdade se limitasse ao postulado de uma práxis decisória universalizante, o legislador poderia, sem violá-lo,
realizar qualquer discriminação, desde que sob a forma de uma norma universal, o que é sempre possível. A partir dessa
interpretação, a legislação nazista sobre judeus não violaria o enunciado ‘os iguais devem ser tratados igualmente’”. Sobre a
insuficiência deste critério para o respeito à isonomia, vide nota 4, também com a lição de Alexy.
12 Afirma Celso Antônio Bandeira de Mello que: “(...) é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar
os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a
inserção ou arredamento do gravame imposto. (...) Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita.
Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu
de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos
dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia” (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3.ª
Edição, 11.ª Tiragem, São Paulo: Malheiros Editores, Maio 2003, p. 38 e 39 – sem grifo no original).
13 Não é outra a lição de Roger Raupp Rios (O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: a
Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 53 e 54),
que afirma que: “Somente diante de uma razão suficiente para a justificação do tratamento desigual, portanto, é que não
haverá violação do princípio da igualdade. Ora, a suficiência ou não da motivação da diferenciação é exatamente um
problema de valoração. Neste quadro, ante a inexistência de uma razão suficiente, a máxima da igualdade ordena um
tratamento igual; para tanto expressar, Alexy assim formula, de modo mais preciso, a máxima de igualdade: ‘Se não há
nenhuma razão suficiente para a permissão de um tratamento desigual, então está ordenado um tratamento igual’. Inexiste
razão suficiente sempre que não for alcançada fundamentação racional para a instituição da diferenciação; este dever de
fundamentação impõe uma carga de argumentação para que se justifiquem tratamentos desiguais. (...) (sem grifos no
original). Roger Raupp Rios sintetizou bem a lição de Alexy, razão pela qual se a mantém neste trabalho. Para acesso ao
original, vide Robert Alexy (Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, 5.a Edição Alemã, 1.a
Edição Brasileira, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 407-409), para quem “a necessidade de haver uma razão
suficiente que justifique uma diferenciação, e também que a qualificação dessa razão como suficiente é um problema de
valoração. Neste ponto, interessa apenas a primeira questão. A necessidade de se fornecer uma razão suficiente que
justifique a admissibilidade de uma diferenciação significa que, se uma tal razão não existe, é obrigatório um tratamento
igual. Essa ideia pode ser expressa por meio do seguinte enunciado, que é um refinamento da concepção fraca do
enunciado geral de igualdade, a que aqui se deu preferência: (7) Se não houver uma razão suficiente para a
permissibilidade de um tratamento desigual, então, o tratamento igual é obrigatório. (...) o enunciado geral de igualdade
estabelece um ônus argumentativo para o tratamento desigual”.
14 Nesse sentido, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3.ª Edição, 11.ª
Tiragem, São Paulo: Malheiros Editores, Maio 2003, p. 41 e 42), que: “(...) não é qualquer diferença, conquanto real e
logicamente explicável, que possui suficiência para discriminações legais. (...) Requer-se, demais disso, que o vínculo
demonstrável seja constitucionalmente pertinente. É dizer: as vantagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão
de ser conferidas prestigiando situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interesses
acolhidos no sistema constitucional” (sem grifos no original).
15 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: Contributo para a Compreensão das
Normas Constitucionais Programáticas, 2.a Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 380-390.
16 Tal é o que ocorre no ordenamento jurídico dos EUA em relação à isonomia local, denominada Equal Protection Doctrine
(Doutrina da Igual Proteção), por força de criação jurisprudencial que considero válida também para o Brasil, com a
ressalva de que a inexistência de disposição expressa na Constituição no sentido de se considerarem algumas
classificações mais suspeitas do que outras (sendo que se ocorre tal distinção entre classificações é reconhecido pela
jurisprudência estadunidense) torna necessário reconhecer que todas as cláusulas suspeitas sujeitam-se à necessidade de
igual fundamentação para serem tidas como válidas. Justifico a escolha do “importante fim estatal” em detrimento do “fim
estatal primordial” do strict scrutiny (análise estrita) estadunidense por afigurar-se aquele como mais razoável, tornando
efetivamente possíveis diferenciações jurídicas nessas hipóteses (visto a experiência jurisprudencial dos EUA ter
demonstrado a quase impossibilidade de superação do stricty scrutiny), ao mesmo tempo em que exige uma maior
atenção a critérios historicamente estigmatizados, o que atende às preocupações do Constituinte Originário, sem, todavia,
impedir que a liberdade de conformação do legislador corrija desigualdades fáticas devidamente justificadas. Para um
aprofundamento um pouco maior sobre essa questão, vide: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Da constitucionalidade e da
conveniência da Lei Maria da Penha. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1711, 8 mar. 2008. Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11030. Acesso em: 8 mar. 2008. Sobre o conteúdo jurídico da Equal Protection
Doctrine, manifestar-me-ei brevemente no capítulo atinente ao Direito Comparado, também em nota de rodapé.
17 Cf. ROTHEMBURG, Walter Claudius. Igualdade. In: LEITE, George Salomão. SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.). Direitos
Fundamentais e Estado Constitucional. São Paulo: RT, 2009, p. 359.
18 ROTHEMBURG, op. cit., p. 354.
19 Para nossa Suprema Corte: “O princípio da isonomia, que se reveste de autoaplicabilidade, não é – enquanto postulado
fundamental de nossa ordem político-jurídica – suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse
princípio – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado,
em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da
igualdade na lei; e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera numa fase de generalidade puramente
abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de
discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já
elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão
subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo
legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade” (STF, MI 58, Plenário, Rel.
para acórdão Min. Celso de Mello, j. 14.12.1990, DJ 19.04.1991). No mesmo sentido, julgado mais recente, que inclusive
cita o MI n.º 58 para ratificá-lo, a saber: AI 360.461-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJE 28.03.2008).
20 No mesmo sentido, artigo de minha autoria: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Igualdade e Respeito às Diferenças. In: DIAS,
Maria Berenice (org.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: RT, p. 214-222.
21 Vide a íntegra de Romer v. Evans em CHOPPER et al. Constitutional Law.. Cases – Comments – Questions, 10ª Edição,
St. Paul: Thomson/West, 2009, pp. 1334-1341 (a menção à doutrina da igual proteção encontra-se nas páginas 1.336-
1.337).
22 Tradução livre. A decisão, em inglês, encontra-se em CHOPPER et al, op. cit., pp. 498-509 (o trecho transcrito encontra-se
na p. 502). Este livro não traz a íntegra do voto da Justice O’Connor, que pode ser encontrado em KOMMERS, Donald P.;
FINN, John E.; JACOBSOHN, Gary J. American Constitutional Law. Liberty, Community and the Bill of Rights. Essays,
Cases and Comparative Notes. 3. ed., Lanham/Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 2009, pp. 359-369. v. 2, (o
qual, curiosamente, omite o trecho transcrito no corpo do texto).
23 Quanto à questão da valoração, parece ter a mesma opinião Robert Alexy (Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de
Virgílio Afonso da Silva, 5.a Edição Alemã, 1.a Edição Brasileira, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 400 e 411) para
quem: “Como não existe uma igualdade ou uma desigualdade em relação a todos os aspectos (igualdade/desigualdade
fática universal) entre indivíduos e situações humanas, e visto que uma igualdade (desigualdade) fática parcial em relação a
algum aspecto qualquer não é suficiente como condição de aplicação da fórmula, então, ela só poder dizer respeito a uma
coisa: à igualdade e à desigualdade valorativa. Para possibilitar uma ordem jurídica diferenciada, a igualdade (desigualdade)
valorativa tem que ser relativizada de duas maneiras. Ela tem que ser uma igualdade valorativa em relação às igualdades
(desigualdades) fáticas parciais, pois se ela se esgotasse em uma igualdade valorativa dos indivíduos, pura e
simplesmente, ela em nada poderia contribuir para a fundamentação de tratamentos diferenciados. Além disso, ela tem que
ser uma igualdade valorativa em relação a determinados tratamentos, pois, se não fosse assim, não seria possível explicar
porque duas pessoas que, em um aspecto, devem ser tratada de forma igual não são assim tratadas sob todos os
aspectos. A essas duas relativizações, que são as condições de possibilidade de um tratamento diferenciado, soma-se
uma terceira, em relação ao critério de valoração, que permite dizer o que é valorativamente igual e desigual. O enunciado
‘o igual deve ser tratado igualmente; o desigual, desigualmente’ não contém, em si mesmo, um tal critério; mas sua
aplicação pressupõe um. Assim, a igualdade material leva, necessariamente, à questão da valoração correta e, com isso, à
questão sobre o que seja uma legislação correta, racional ou justa. Isso torna claro o principal problema do enunciado geral
de igualdade. Ele pode ser expressado por meio de duas questões intimamente relacionadas. A primeira: se e em que
medida os necessários juízos de valor no âmbito do enunciado geral de igualdade são passíveis de fundamentação
racional; a segunda: no sistema jurídico, a quem compete – ao legislador ou ao juiz constitucional – decidir de forma
vinculante em última instância acerca desses juízos de valor. Essas questões indicam a problemática a ser considerada
por qualquer interpretação do art. 3.º, § 1.º, enquanto norma que vincula substancialmente o legislador”. Contudo, adverte o
autor que “a interpretação do enunciado geral de igualdade como uma regra de ônus argumentativo permite estruturar um
pouco mais a questão da valoração, mas não consegue solucioná-la. Saber o que é uma razão suficiente para a
permissibilidade ou a obrigatoriedade de uma discriminação não é algo que o enunciado da igualdade, enquanto tal, pode
responder. Para tanto são exigíveis outras considerações, também elas valorativas”. Quanto àquela segunda pergunta, o
autor se manifesta pela prevalência da decisão judicial na valoração quando adotada uma concepção fraca de igualdade,
que é aquela “cujo objetivo é a manutenção dos limites da liberdade de conformação do legislador, definidos por meio do
conceito de arbítrio; ela não diz respeito, portanto, a uma igualdade valorativa em um sentido ideal, mas a uma igualdade em
um sentido restrito” – isso em contraposição a uma descabida concepção forte de igualdade, que daria ao Tribunal
Constitucional a capacidade de buscar a solução ideal, mais justa e mais adequada, o que se revela inaceitável porque
,“como não há uma cognição segura acerca da norma mais justa ou mais adequada, a tarefa do legislador se resumiria a
aceitar o que o Tribunal Constitucional Federal entende como o mais justo ou o mais adequado”, sendo que “não é
necessária fundamentação alguma para demonstrar que não pode ser [este último] o sentido do enunciado da igualdade”
(ibidem, p. 406).
24 Para uma análise da evolução do pensamento estadunidense no que tange à isonomia (ali denominada Equal Protection
Doctrine – Doutrina da Igual Proteção), inclusive com análise dos principais casos que moldaram a posição da Suprema
Corte dos EUA, vide: TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, 5.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva,
2007, p. 534-547. Em síntese, o autor menciona que: (i) no período pré-guerra civil, a escravidão ainda existia nos EUA (nos
Estados do Sul) e era tolerada pela Suprema Corte (Jones v. Von Zandt, Ableman v. Booth, Moore v. Illinois e Dred Scott v.
Sandford – no último, a Suprema Corte expressamente aduziu que negros não poderiam ser enquadrados como cidadãos
por terem sido considerados como seres inferiores e subordinados no momento da promulgação da Constituição, donde
não poderiam utilizar nenhum dos direitos ou privilégios que a Constituição assegurava aos cidadãos dos EUA); (ii) no
período pós-guerra civil, foi aprovada emenda constitucional que consagrou o equal treatment, que garantia a isonomia
formal, tendo sido declarada a inconstitucionalidade de diversas leis que discriminavam cidadãos tão somente pela cor da
pele, etnia, gênero ou qualquer outro critério arbitrário de discriminação (Strauder v. West Virginia e Yick Wo v. Hopkins);
(iii) a doutrina do Separate but Equal, no sentido de que “tal Doutrina aceitava a separação, o isolacionismo das raças,
porém com a imposição de que os serviços prestados a cada uma seriam os mesmos, é dizer, que os serviços prestados
à raça negra deveriam possuir a mesma qualidade daqueles prestados à raça branca” (Roberts v. City of Boston, Plessy v.
Ferguson, Roberts v. City of Boston), pelos quais a Suprema Corte entendia que tal doutrina não teria a tendência de
destruir a igualdade entre as duas “raças”, assim como não implicaria a ideia de que uma seria inferior à outra,
entendimento este superado apenas em Brown v. Board of Education of Topeka, no qual se julgou que instalações
separadas são intrinsecamente desiguais; (iv) doutrina do Treatment as an Equal, que: “Segundo Dworkin, ‘este não é o
direito a uma distribuição igualitária de bens e oportunidades, mas sim um direito a uma preocupação e respeito igual no
âmbito das decisões políticas sobre a forma de distribuição de tais bens’. Esse tipo de doutrina permite a adoção de
políticas públicas ou privadas que tratam de forma diferente aqueles que, de fato, são diferentes: essencial para
efetivamente combater a discriminação (capitaneada pelo Chief Justice Earl Warren, na maior fase do chamado “ativismo
judicial” da Suprema Corte – case Jeness v. Fortson, “em que a Suprema Corte observou que, ‘às vezes, a maior
discriminação pode residir em tratar coisas que são diferentes como se fossem iguais’ [Tribe]”; Grutter v. Bollinger, em que
se decidiu que “com vistas a obter um grupo de líderes legitimados aos olhos da sociedade, é necessário que o caminho à
liderança esteja aberto a talentosos e qualificados indivíduos de todas as raças e etnias”, e mesmo Gratz v. Bollinger, que
reiterou a doutrina mas entendeu que o critério (cor de pele) era ilegítimo porque não fornecia um “fator a mais” à cor de
pele, mas um fator “determinante” a ela. “O que se depreende dessas decisões é que a ação afirmativa, na jurisprudência
norte-americana, é considerada uma medida juridicamente admissível, não atentatória à igualdade, ao menos no âmbito
educacional. Porém, o critério raça ou minoria que esta encampa não pode afigurar-se como elemento essencial no
momento da admissão do indivíduo na instituição de ensino. O indivíduo há de ser minimamente capaz e poder,
efetivamente, contribuir para o ambiente universitário”.
25 É esse o entendimento de Roger Raupp Rios (O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: a
Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.
54), que afirma que: “Em princípio, portanto, está exigido um tratamento igual, sendo permitido um tratamento desigual se e
somente se for possível justificá-lo. (...) A garantia do direito de igualdade dá-se, pois, mediante a imposição de um ônus de
argumentação e de prova por conta de quem afirmar a desigualdade e reivindicar um tratamento desigual” (sem grifos no
original).
26 Na definição de Miguel Reale (Lições preliminares de direito, 27.ª Edição, 2004, São Paulo: Editora Saraiva, p. 64-65): “(...)
Uma análise em profundidade dos diversos sentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três
aspectos básicos, discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: um aspecto normativo (o Direito como
ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e
um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça). Nas últimas décadas o problema da tridimensionalidade do Direito
tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à qual penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela
demonstração de que: a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente
(fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada significação a esse
fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e,
finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato
ao valor; b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados uns dos outros, mas coexistem numa
unidade concreta; c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de
um processo (já vimos que o Direito é uma realidade histórico-cultural), de tal modo que a vida do Direito resulta da
integração dinâmica e dialética dos três elementos que a integram” (sem grifos no original).
27 Devo a segunda parte desta definição, posterior à vírgula, a diálogo com o Professor Roberto Francisco Daniel, em aula de
Mestrado na Instituição Toledo de Ensino/Bauru.
28 “Dizer que o homem é um ser racional é o mesmo que dizer que é um ser que se dirige. A atuação, portanto, implica
sempre uma valoração. Todo valor, por conseguinte, é uma abertura para o dever ser. Quando se fala em valor, fala​-se
sempre em solicitação de comportamento ou em direção para o atuar. Valor e dever ser implicam-se e exigem-se
reciprocamente. Sem a ideia de valor, não temos a compreensão do dever ser. Quando o dever ser se origina do valor, e é
recebido e reconhecido racionalmente como motivo da atuação ou do ato, temos aquilo que se chama um fim. Fim é o
dever ser do valor reconhecido racionalmente como motivo de agir. (...) A nosso ver, a noção de fim é decorrência da de
valor. O fim é valor enquanto racionalmente pode ser captado e reconhecido como modo de agir. (...) O que declaramos fim
não é senão um momento de valor abrangido por nossa racionalidade limitada, implicando um problema de meio adequado
à sua realização” (REALE, Miguel. Filosofia do direito, 20.a Edição, 5.a tiragem, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 379 e
380).
29 Esta equação é subjacente às lições de Miguel Reale. Afinal, afirma o autor que “a estrutura do Direito é tridimencional,
visto como o elemento normativo, que disciplina os comportamentos individuais e coletivos, pressupõe sempre uma dada
situação de fato, referida a valores determinados”, sendo preciso observar “a unidade ou a correlação essencial existente
entre os aspectos fático, axiológico e prescritivo do Direito” (REALE, Miguel. Filosofia do direito, 20.a Edição, 5.a tiragem,
São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 511); ou ainda que “a tridimensionalidade específica do Direito resulta de uma
apreciação inicial da correlação existente entre fato, valor e norma no interior de um processo de integração, de modo a
abranger, em unidade viva, os problemas do fundamento, da vigência e da eficácia do Direito” (ibidem, p. 515). Cite-se,
ainda, o entendimento do autor no sentido de que “duas são as condições primordiais para que a correlação entre fato, valor
e norma se opere de maneira unitária e concreta: uma se refere ao conceito de valor, reconhecendo-se que ele
desempenha o tríplice papel de elemento constitutivo, gnoseológico e deontológico da experiência ética; a outra é relativa à
implicação que existe entre o valor e a história, isto é, entre as exigências ideais e a sua projeção na circunstancialidade
histórico-social como valor, dever-ser e fim. (...) Dizemos que o valor constitui a experiência jurídica porque os bens
materiais ou espirituais, construídos pelo homem através da História, são, por assim dizer, ‘cristalizações de valor’ ou
‘consubstanciações de interesses’ (ibidem, p. 543). Ora, se a estrutura do Direito é tridimensional porque o elemento
normativo supõe uma situação fática referida a valores determinados (primeira citação), isso significa que a norma é
formada pela atribuição de um valor a um fato. Logo, a equação apresentada (norma = fato + valor) afigura-se correta.
30 Na explicação de Miguel Reale (Lições preliminares de direito, 27.ª Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 66: “Há, por
exemplo, norma legal que prevê o pagamento de uma letra de câmbio na data de seu vencimento, sob pena do protesto do
título e de sua cobrança, gozando o credor, desde logo, do privilégio de promover a execução do crédito. (...) Mais tarde,
estudaremos melhor essa questão. O que por ora desejamos demonstrar é que, nesse exemplo, a norma de direito
cambial representa uma disposição legal que se baseia num fato de ordem econômica (o fato de, na época moderna, as
necessidades do comércio terem exigido formas adequadas de relação) e que visa a assegurar um valor, o valor do
crédito, a vantagem de um pronto pagamento com base no que é formalmente declarado na letra de câmbio. Como se vê,
um fato econômico liga-se a um valor de garantia para se expressar através de uma norma legal que atende às relações
que devem existir entre aqueles dois elementos” (sem grifos no original).
31 Na lição de Miguel Reale (Filosofia do direito, 20.a Edição, 5.a tiragem, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 543).
Fundamenta-se o autor: “O específico do homem é conduzir-se, é escolher fins e pôr em correspondência meios a fins. A
ação dirigida finalisticamente (o ato propriamente dito ou a ação em seu sentido próprio e específico) é algo que só pertence
ao homem. Não se pode falar, a não ser por metáfora, de ação ou de ato de um cão ou de um cavalo. O ‘ato’ é algo
pertinente, exclusivamente, do ser humano. Os outros animais movem-se; só o homem atua. A atuação pressupõe
consciência de fins, possibilidade de opção, projeção singular no seio da espécie, aprimoramento de atitudes,
aperfeiçoamento nos modos de ser e de agir. Seu problema liga-se ao da cultura, e, como esta, tem sua raiz na liberdade,
no poder de síntese que permite ao homem instaurar novos processos, tendo consciência de estar integrado na natureza e
no complexo vital condicionado por esta. (...) A ação, em seu sentido rigoroso, ou o ato, é energia dirigida para algo, que é
sempre um valor. O valor, portanto, é aquilo a que a ação humana tende, porque se reconhece, em um determinado
momento, ser motivo, positivo ou negativo da ação mesma. Não se indaga aqui da natureza ou das espécies de valores,
mas apenas se verifica que o homem atua, objetiva ou contraria a algo de valioso. (...) Se a ação humana se subordina a
um fim ou a um alvo, há direção, ou pauta assinalando a via ou a linha de desenvolvimento do ato. A expressão dessa pauta
de comportamento é o que chamamos de norma ou de regra. Não existe possibilidade de ‘comportamento social’ sem
norma ou pauta que não lhe corresponda. A cada forma de conduta corresponde a norma que lhe é própria” (REALE,
Miguel. Filosofia do direito, 20.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 378-379 e 384).
32 Segundo Miguel Reale (Filosofia do direito, 20.a Edição, 5.a tiragem, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 362): “O primeiro
dever do estudioso, ao aplicar o método fenomenológico, é procurar afastar de si todos os preconceitos, todos os prejuízos
porventura formados a respeito do mesmo fenômeno, notadamente quanto à sua transcendência, ou realidade fora da
consciência (‘époque’ fenomenológica). Devemos colocar-nos em um estado de disponibilidade perante o objeto, no sentido
de procurar captá-lo, na sua pureza, assim como é dado na consciência, sem refrações que resultem de nosso coeficiente
pessoal de preferências, para poder descrevê-lo integralmente, com todas as suas qualidades e elementos, recebendo-o
‘tal como se oferece originariamente na intuição’ (descrição objetiva). Posto o sujeito perante o objeto, é necessário
descrevê-lo de maneira neutra, como é dado imediatamente à consciência, sem se formular, logo de início, qualquer
pergunta sobre a existência extramental do objeto, como algo de separável ou independente do sujeito. (...) Nota-se, desde
logo, que o método fenomenológico implica uma mudança de atitude com referência ao objeto que se quer descrever,
atitude esta que brota de uma exigência crítica de rigor e de evidência” (sem grifo no original).
33 ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 24, 29, 39, 40, 41 e 42.
34 Ressalte-se, neste ponto, que a legislação brasileira não proíbe o casamento civil, a união estável e a adoção por casais
homoafetivos: a expressão “o homem e a mulher”, presente em diversos dispositivos, não tem esse condão. Ao contrário,
ressalta apenas que a lei dispôs expressamente sobre a relação heteroafetiva, omitindo-se, por outro lado, em relação à
homoafetiva. Essas premissas centrais do presente trabalho serão esmiuçadas nos capítulos próprios, tendo sido aqui
citadas apenas por se tratar de menção oportuna.
35 É essa a lição de Miguel Reale (Lições preliminares de direito, 27.ª Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 290-292),
que afirma que o “fim da lei é sempre um valor, cuja preservação ou atualização o legislador teve em vista garantir,
armando-o de sanções, assim como também pode ser fim da lei impedir que ocorra um desvalor. Ora, os valores não se
explicam segundo nexos de causalidade, mas só podem ser objeto de um processo compreensivo que se realiza através
do confronto das partes com o todo e vice-versa, iluminando-se e esclarecendo-se reciprocamente, como é próprio do
estudo de qualquer estrutura social. (...) Estas considerações iniciais visam pôr em realce os seguintes pontos essenciais
da que denominamos hermenêutica estrutural: a) toda interpretação jurídica é de natureza teleológica (finalística) fundada na
consistência axiológica (valorativa) do Direito; b) toda interpretação jurídica dá-se numa estrutura de significações, e não de
forma isolada; c) cada preceito significa algo situado no todo do ordenamento jurídico. Pois bem, dessa compreensão
estrutural do problema resulta, em primeiro lugar, que o trabalho do intérprete, longe de reduzir-se a uma passiva adaptação
a um texto, representa um trabalho construtivo de natureza axiológica, não só por se ter de captar o significado do preceito,
correlacionando-o com outros da lei, mas também porque se devem ter presentes os da mesma espécie existentes em
outras leis: a sistemática jurídica, além de ser lógico-formal, como se sustentava antes, é também axiológica ou valorativa.
(...) Mais do que qualquer outro autor, Emilio Betti soube dar realce ao papel da interpretação jurídica, distinguindo-a
cuidadosamente de outras formas de interpretação, como a histórica, a literária ou a musical. O intérprete do Direito,
consoante demonstrações convincentes daquele mestre, não fica preso ao texto, como o historiador aos fatos passados, e
tem mesmo mais liberdade do que o pianista diante da partitura. Se o executor de Beethoven pode dar-lhe uma
interpretação própria, a música não pode deixar de ser de Beethoven. No Direito, ao contrário, o intérprete pode avançar
mais, dando à lei uma significação imprevista, completamente diversa da esperada ou querida pelo legislador, em virtude
de sua correlação com outros dispositivos, ou então pela sua compreensão à luz de novas valorações emergentes no
processo histórico” (sem grifos no original).
36 Cite-se, exemplificativamente, as lições de Carlos Roberto Gonçalves e de Sílvio de Salvo Venosa. Para o primeiro: “O
legislador não consegue prever todas as situações para o presente e para o futuro, pois o direito é dinâmico e está em
constante movimento social, acompanhando a evolução da vida social, que traz em si novos fatos e conflitos. (...) Tal
estado de coisas provoca a existência de situações não previstas de modo específico pelo legislador e que reclamam
solução por parte do juiz. Como este não pode eximir-se de proferir decisão sob o pretexto de que a lei é omissa, deve
valer-se dos mecanismos destinados a suprir as lacunas da lei, que são: a analogia, os costumes e os princípios gerais de
direito. (...) Nisso se resume o emprego da analogia, que consiste em aplicar a caso não previsto a norma legal
concernente a uma hipótese análoga prevista e, por isso mesmo, tipificada [analogia legal] (...) A segunda baseia-se e um
conjunto de normas, para obter elementos que permitam a sua aplicação a um caso sub judice” (GONÇALVES, Carlos
Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 48-50. v. I – grifos nossos); para o segundo: “O
ideal seria o ordenamento jurídico preencher todos os acontecimentos da sociedade. Não é, como vimos, o que ocorre. O
juiz não pode, em hipótese alguma, deixar de proferir decisão nas causas que lhe são apresentadas. Na falta de lei que
regule a matéria, recorre às fontes subsidiárias, entre as quais podemos colocar a analogia. Na realidade, a analogia não
constitui propriamente uma técnica de interpretação, como a princípio possa parecer, mas verdadeira fonte do Direito, ainda
que subsidiária e assim tida pelo legislador no art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil. Trata-se de um processo de
raciocínio lógico pelo qual o juiz estende um preceito legal a casos não diretamente compreendidos na descrição legal. O
juiz pesquisa a vontade da lei, para transportá-la aos casos que a letra do texto não havia compreendido. Para que esse
processo tenha cabimento, é necessária a omissão no ordenamento. (...) Na analogia legal, o aplicador do Direito busca
uma norma que se aplique a casos semelhantes. (...) O intérprete procura institutos que têm semelhança com a situação
sob enfoque. (...) Tenta extrair do pensamento dominante em um conjunto de normas uma conclusão particular para o caso
em exame. Essa é chamada analogia jurídica. A analogia é um processo de semelhança (...) Para o uso da analogia, é
necessário que haja lacuna na lei e semelhança com a relação não imaginada pelo legislador. A seguir, no derradeiro passo
do raciocínio, o intérprete procura uma razão de identidade entre a norma encontrada, ou o conjunto de normas, e o caso
compreendido. A utilização da técnica analógica para o preenchimento de lacunas presta grandes serviços, mas só pode
ser utilizada com eficiência quando o aplicador não foge à ratio legis aplicada, quando então daria amplitude perigosa ao
princípio, arriscando-se a julgar contra a lei” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2005, p. 48-50 – grifos nossos).
37 VECCHIATTI, 2008, p. 257-271.
38 VECCHIATTI, 2008, p. 288-290.
39 ADPF 132 e da ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 11 e 44, aqui parafraseado. No original: “O fato de a
Constituição proteger, como já destacado pelo eminente Relator, a união estável entre homem e mulher não significa uma
negativa de proteção – nem poderia ser – à união civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo”.
40 Sobre a analogia ser uma decorrência do princípio da igualdade para garantia de tratamento igual a situações
“substancialmente semelhantes”, vide DINIZ, Maria Helena, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 11. ed.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 112-114 – trecho integralmente transcrito em nota de rodapé do capítulo 6, item 3 – “A
Interpretação Extensiva, a Analogia e a Possibilidade Jurídica do Casamento Civil Homoafetivo” [em que acrescento, com
muito mais razão, também a interpretação decorrente da isonomia por, neste caso, termos situações idênticas].
41 Cf. Capítulo 5, item 2.4.1 “O Amor Familiar como o elemento formador da família contemporânea”.
42 Cf., v.g.: STJ, REsp 820.475/RJ, DJe 06.10.2011, e REsp 827.962/RS, DJe 08.08.2011 – este segundo peremptório ao
afirmar que “É juridicamente possível pedido de reconhecimento de união estável de casal homossexual, uma vez que não
há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação explícita ao ajuizamento de demanda com tal propósito” e que “Os arts. 4.º
e 5.º da Lei de Introdução do Código Civil autorizam o julgador a reconhecer a união estável entre pessoas de mesmo
sexo”, pois “A extensão, aos relacionamentos homoafetivos, dos efeitos jurídicos do regime de união estável aplicável aos
casais heterossexuais traduz a corporificação dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa
humana” (grifo nosso). No mesmo sentido, o histórico julgamento que reconheceu a licitude do casamento civil
homoafetivo: STJ, REsp 1.183.378/RS, DJe 01.02.2012.
43 Segundo o STJ, “A jurisprudência desta Corte entende que ofende o princípio da legalidade a decisão que determina a
interrupção do prazo para a aquisição da benesse do Decreto 5.295 em razão do cometimento de falta de natureza grave,
uma vez que acaba por criar requisito objetivo não previsto em lei” (STJ, HC 80.103/SP, DJe 06.10.2008).
44 “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas,
subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência
ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (sem grifos no original).
45 Para maiores aprofundamentos sobre o tema, vide VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Tomemos a sério o princípio do
Estado laico. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1830, 5 jul. 2008. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?
id=11457. Acesso em: 7 jul. 2008 (artigo também disponível em www.clubjus.com.br, em 02.07.2008, no seguinte link:
<http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.19499>). Para uma análise da consequência prática de dita vedação de
utilização de fundamentações religiosas para pautar decisões políticas e jurídicas, ou seja, sobre a inconstitucionalidade de:
(i) afixação de símbolos religiosos em órgãos públicos; (ii) custeio de despesas de instituições religiosas e chefes religiosos
– com enfoque no caso do chefe da Igreja Católica; (iii) concordatas com o Vaticano; (iv) aceitação de cartas psicografadas
como provas; e, por fim, (v) comentário crítico sobre a posição de outros autores, vide: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti.
Laicidade Estatal tomada a sério. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1.830, 5 jul. 2008. Disponível
em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11463. Acesso em: 7 jul. 2008 (disponível também em: www.clubjus.com.br,
no seguinte link: http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.19500).
46 Dogma é aqui entendido como o “ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível, cuja
verdade se espera que as pessoas aceitem sem questionar”; “qualquer doutrina de caráter indiscutível em função de
supostamente ser uma verdade aceita por todos”; “opinião sustentada em fundamentos irracionais e propagada por
métodos que tb. o são”; “nas religiões, esp. entre cristãos, doutrina a que é atribuída uma autoridade acima de qualquer
opinião ou dúvida particular que possa ter um crente” (Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2.a reimpressão com
alterações, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2007, p. 1071).
47 No original: “Uma atitude é julgada errada por algum motivo. Se o motivo não mais existe e nenhum outro é fornecido, como
esta atitude pode continuar sendo considerada errada? A simples afirmação de que ‘Deus disse que isto é errado’ não é
uma resposta boa o suficiente, pois o princípio é válido mesmo em se tratando de Deus: também Deus deve fornecer o
motivo pelo qual algo é errado. Isto significa dizer que há bom-senso, que há sabedoria na moralidade exigida por Deus. Se
não houver, então toda a moralidade será arbitrária e Deus considerará as coisas como certas ou erradas segundo um
capricho divino. Neste caso, toda a reflexão sobre a ética deixaria de existir, pois não haveria um princípio racional por trás
da moralidade e as exigências de Deus não seriam razoáveis. Tal conclusão, porém, é um absurdo. É completamente
ridícula. Logo, é preciso que haja um motivo pelo qual algo seja considerado errado, e deve ser por este mesmo motivo que
Deus o proíba. Bem, mas Deus não poderia ter razões que escapem à nossa compreensão? Claro que sim. Mas se fosse
este o caso, nunca poderíamos conhecer a vontade de Deus – a menos que Deus a revelasse. E onde Deus a revelaria?
Uma resposta óbvia é: ‘Na Bíblia, claro!’. Esta resposta é perfeitamente válida. Mas ela nos traz de volta exatamente ao
ponto de partida: como podemos determinar o que Deus quis dizer na Bíblia? As opções ainda são as mesmas: as
abordagens literal e histórico-crítica” (HELMINIAK, Daniel A. O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade, 1.ª
Edição, São Paulo: GLS Edições, 1998, p. 36 – sem grifo no original).
48 Como se sabe, há três correntes acerca da natureza jurídica do preâmbulo constitucional. A primeira nega-lhe qualquer
eficácia jurídica, apontando que seria mera exortação política de nenhum conteúdo jurídico; a segunda atribui-lhe a mesma
natureza das normas constitucionais, aduzindo que o fato de se encontrar no texto constitucional lhe dá o mesmo caráter
dos textos normativos constitucionais em geral; e a terceira, intermediária, reconhece-lhe eficácia interpretativa da
Constituição, pois, embora reconheça que na contradição entre preâmbulo e texto normativo constitucional, deve este
prevalecer, o fato de o preâmbulo estar no corpo da Constituição lhe dá força jurídica. Como inclusive apontado pelo
Supremo no referido acórdão, tais posições podem ser vistas em Jorge Miranda (Manual de direito constitucional:
Constituição, 5.a Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, tomo II, p. 261-267), onde o constitucionalista português aponta
seu entendimento no sentido de que o preâmbulo é parte integrante da Constituição, dela não se distinguindo pela origem,
sentido ou instrumento que se contem, mas apenas por seus efeitos, não atribuindo a ele a mesma eficácia própria dos
artigos da Constituição pelo fato de ele não ser um conjunto de preceitos, mas um conjunto de princípios que se projetam
sobre os preceitos e sobre os restantes setores do ordenamento, donde não pode ser invocado isoladamente nem há
inconstitucionalidade por sua violação isolada.
49 Ou seja, o Supremo adotou a primeira das correntes descritas na nota anterior.
50 Segue o inteiro teor da manifestação do Ministro Sepúlveda Pertence (ADIn 2.076): “Sr. Presidente, independentemente da
douta análise que o Eminente Ministro-Relator procedeu sobre a natureza do preâmbulo das Constituições, tomado em seu
conjunto, esta locução ‘sob a proteção de Deus’ não é uma norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar
obrigação para a divindade invocada. Ela é uma afirmação de fato – como afirmou Clemente Mariani, em 1946, na
observação recordada pelo eminente Ministro Celso de Mello – jactanciosa e pretensiosa, talvez – de que a divindade
estivesse preocupada com a Constituição do Brasil. De tal modo, não sendo norma jurídica, nem princípio constitucional,
independentemente de onde esteja, não é ela de reprodução compulsória aos Estados-membros. Julgo improcedente a
ação direta”.
51 Não desconheço a crítica segundo a qual a proporcionalidade não poderia ser um princípio porque ela não poderia ser
ponderada com outros princípios, justamente por ser ela que determina a ponderação. Contudo, além de não me limitar a
classificar princípios como meros mandamentos de otimização (já que, segundo penso, princípios são mandamentos
nucleares do sistema, em questão que não cabe aqui desenvolver), cabe citar aqui a correta colocação de Luís Roberto
Barroso e Ana Paula de Barcellos (O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no
direito brasileiro, in: BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional. Ponderação, Direitos
Fundamentais e Relações Privadas, 2.a Edição, Rio de Janeiro-São Paulo-Recife, editora??, 2006, p. 361), no sentido de
que “O emprego do termo princípio, nesse contexto, prende-se à proeminência e à precedência desses mandamentos
dirigidos ao intérprete, e não propriamente ao seu conteúdo, à sua estrutura ou à sua aplicação mediante ponderação. Os
princípios instrumentais de interpretação constitucional constituem premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas que
devem anteceder, no processo intelectual do intérprete, a solução concreta da questão posta”. É o caso do princípio
instrumental da proporcionalidade.
52 Na definição de Gustavo Ferreira Santos (O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal –
Limites e Possibilidades, 1.a Edição, 2001, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, p. 107-108): “(...) o princípio da
proporcionalidade é um instrumento específico, identificado e desenvolvido em uma dada experiência jurídico​-constitucional,
que permite a limitação do poder estatal. Trata-se de um instrumento segundo o qual a medida a ser tomada pelo Estado há
de ser adequada e necessária à finalidade apontada pelo agente, bem como deve ser garantida uma relação de
proporcionalidade entre o bem protegido pela atividade estatal e aquele que, por ela, é atingido ou sacrificado. O princípio da
proporcionalidade faz essa mediação entre grandezas, combinando, proporcionalmente à importância para o caso
concreto, diferentes valores contidos no sistema. As normas em colisão serão comparadas e testadas de forma a se
chegar a uma conclusão consagradora de uma das duas ou que compatibilize as duas. Ordena o princípio da
proporcionalidade a ponderação e a harmonização de interesses reconhecidos na Constituição, com o fito de encontrar
uma justa decisão em situações de tensão entre direitos. Trata-se aqui da aplicação da ideia de uma dupla dimensão dos
direitos fundamentais, uma subjetiva, titularizada pelo indivíduo e fundamentadora de status, e uma objetiva, que baseia uma
ordem jurídica da comunidade (cf. Hesse, 1998, p. 228). Nessa dimensão objetiva, são justificáveis diversas restrições aos
direitos em nome da harmonia entre os vários elementos” (sem grifos no original).
53 Na lição de Gilmar Ferreira Mendes (Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil, 1.a Edição, São Paulo:
Editora Saraiva, 2004, p. 83), tem-se que: “A doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de
imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da
restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o
princípio da proporcionalidade. Essa nova orientação, que permitiu converter o princípio da reserva legal
(Gesetzesvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes), pressupõe
não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios
para a consecução dos objetivos pretendidos (Geeignetheit) e a necessidade de sua utilização (Notwendigkeit oder
Erforderlichkeit). Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa
ponderação entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade
ou razoabilidade em sentido estrito). O pressuposto da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas
adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. O requisito da necessidade ou da exigibilidade
(Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente
eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. Assim, apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é
necessário não pode ser inadequado”. Especificamente sobre a proporcionalidade em sentido estrito, afirma Robert Alexy
(Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, 5.a Edição Alemã, 1.a Edição Brasileira, São Paulo:
Malheiros Editores, 2008, p. 117) que: “Princípios são mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas e
fáticas. A máxima da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, exigência de sopesamento, decorrente da relativização
em face das possibilidades jurídicas. Quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um
princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do princípio antagônico”.
54 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 6.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 228-
229.
55 É essa a lição de Luís Roberto Barroso (Interpretação e aplicação da Constituição, 6.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva,
2006, p. 244), com quem se deve concordar quando afirma que: “De plano, portanto, não será legítima a desequiparação
arbitrária, caprichosa, aleatória. O elemento de discriminação tem de ser relevante e residente nas pessoas por tal modo
diferenciadas. Não pode ser externo ou alheio a elas. (...) De parte isto, tem de haver racionalidade na desequiparação, vale
dizer: adequação entre o meio e o fim. (...) A desequiparação, ademais, terá de ser necessária para a realização do objetivo
visado, vedado o excesso, isto é, o tratamento diferenciado além do que é imprescindível. (...) E, por fim, terá de haver
proporcionalidade em sentido estrito. É imperativo que o valor promovido com a desequiparação seja mais relevante do que
o que está sendo sacrificado. (...)”.
56 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais, 1.a Edição, Rio de Janeiro-São
Paulo-Recife: Editora Renovar, 2006, p. 358-366.
57 Embora, ao contrário de Celso Antonio Bandeira de Mello, eu pense que a isonomia se satisfaça com os dois primeiros
aspectos, sendo o terceiro relativo à constitucionalidade em geral.
Capítulo 4

OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA


HUMANA E DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO

1. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

1.1 Considerações preliminares


Hoje, no mundo, é pacífico o entendimento de que a dignidade da pessoa humana constitui um
princípio jurídico essencial de todo Estado que se considere Democrático de Direito. Sem entrar na
questão da árdua evolução do pensamento humano para chegar a essa conclusão (de indispensabilidade
da proteção da dignidade da pessoa humana), pode​-se com certeza afirmar que a Segunda Guerra
Mundial foi o verdadeiro divisor de águas nessa questão. A consciência dos horrores trazidos, por
exemplo, pelo regime nazista (que existia em um Estado de Direito, vale ressaltar), fez a maior parte dos
Estados preocuparem-se com a consagração da dignidade humana como princípio jurídico fundamental.
A principal prova dessa tomada de consciência é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que
em 1948 (três anos após o término da Segunda Grande Guerra) colocou o respeito à dignidade como
direito de toda a família humana1.
Todavia, apesar de não haver dúvida com relação ao direito de todas as pessoas humanas no sentido
do respeito à sua dignidade, muito controvertida é a questão referente ao conteúdo jurídico de dito
princípio jurídico2.

1.2 O princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à busca da felicidade


A dignidade humana constitucionalmente consagrada garante a todos o direito à felicidade3, na
medida em que a realidade empírica demonstra que a própria existência humana destina-se a evitar o
sofrimento e a buscar aquilo que acreditamos que nos trará a felicidade. Parafraseando Luiz Alberto
David Araújo, a própria noção de contrato social implica a compreensão de que esse pacto coletivo só é
aceito pelas pessoas em geral por acreditarem que a vida em sociedade, com todos os seus ônus e
benefícios, propiciará maiores condições de alcançar a felicidade do que se vivessem isoladamente4.
Tal constatação é muito simples, mas supõe uma digressão histórica que demonstre a evolução do
pensamento humano, em especial ao longo do século XX. Até meados do referido século, a humanidade
era regida por um sistema jurídico que valorizava uma visão extremamente patrimonialista da vida
humana. A família, tida como um fim em si mesmo, visava unicamente garantir a perpetuação da espécie e
que os bens do homem fossem herdados por alguém que fosse efetivamente seu descendente, “do seu
sangue”, donde se valorizava sobremaneira a virgindade da mulher. Afinal, como as técnicas de
verificação da paternidade da época não forneciam uma posição precisa no que tange à filiação, a
virgindade feminina anterior ao casamento passou a ser vista como requisito de respeitabilidade da
mulher, justamente para garantir a certeza da filiação masculina.
A questão da família será abordada no próximo capítulo. Contudo, essa visão da entidade familiar
voltada exclusivamente para a transmissão patrimonial do homem (pessoa do sexo masculino) e para a
procriação mesmo em detrimento da realização pessoal de cada um de seus membros mostra que nossa
antiga legislação não se importava com a pessoa humana, mas sim com o patrimônio humano.
Essa visão perdurou até meados do século XX, quando os horrores do nazi-fascismo mostraram que
o ser humano é capaz de dizimar determinados grupos de pessoas humanas por motivos preconceituosos,
absolutamente arbitrários. Disso resultou o entendimento de que a dignidade humana, ou melhor, o direito
de todos viverem suas vidas da melhor maneira possível, de acordo com suas próprias escolhas e/ou
características, desde que não prejudiquem terceiros, deve ser respeitado acima de tudo.
Nesse sentido, nunca se deve esquecer que os campos de concentração nazistas eram palcos de
extermínio de pessoas humanas pelo simplesmente por terem esta ou aquela crença (judeus), esta ou
aquela orientação sexual (homo e bissexuais) e assim por diante. Ou seja, o preconceito (juízo de valor
arbitrário) foi usado para determinar quem poderia viver e quem deveria morrer, donde restou
indispensável, naquela época, alçar a dignidade humana ao topo hierárquico do Direito.
Assim, a valorização da pessoa humana e a sua proteção acima de qualquer outro valor visa
justamente proteger o ser humano do próprio ser humano, para que aqueles que se encontrem em melhores
condições físicas, militares etc. não possam se aproveitar disso para subjugar outros, em pior situação
fática.
Consequentemente, a superação daquela visão patrimonialista da pessoa humana ensejou a
preocupação do Direito com os valores que efetivamente trazem a felicidade às pessoas, a saber: o amor,
o respeito recíproco, a solidariedade, entre outros. Quanto à família, um longo tempo após a realidade
social ter demonstrado que muitos casais encontravam-se infelizes em sua união matrimonializada, até
então indissolúvel, a legislação passou a admitir o divórcio como forma de assegurar a essas pessoas o
direito de buscarem a felicidade por meio do amor romântico, que havia deixado de existir naquela união
meramente formal. Mesmo porque o fato social era inevitável: muitos casamentos já haviam “falido”,
ensejando o término fático da relação mesmo com o não reconhecimento da licitude de dito
comportamento pelo Direito. Destarte, considerando que o Direito deve acompanhar o fato social, a
menos que haja um fundamento válido ante a isonomia ou a outro princípio constitucional que justifique o
contrário (inexistente neste caso), foi mera questão de tempo a aprovação do divórcio, mesmo com a
pressão de instituições como a Igreja Católica em sentido contrário.
Fica, pois, claro que o ordenamento jurídico brasileiro passou a dar mais importância ao amor, aos
laços fraternos e à solidariedade em detrimento da antiga visão patrimonialista de nossa legislação
anterior, por mais que não o tenha dito de forma expressa. Afinal, reconheceu-se expressamente o caráter
jurídico-familiar da união estável (o “casamento de fato”), que se mantém unicamente pelo amor existente
na relação, garantindo-lhe muitos direitos anteriormente só garantidos ao casamento civil5.
Desta feita, não há como negar que o Direito Brasileiro alçou a dignidade da pessoa humana a valor
máximo de seu ordenamento jurídico, especialmente em atenção ao art. 1.º, III, da CF/1988, que coloca a
dignidade da pessoa humana como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, e
que esta garante a todos o direito à felicidade, dentro evidentemente dos limites constitucionais.

1.3 As classificações insular e da nova ética. A posição de Antônio Junqueira de Azevedo


Na classificação trazida por Antônio Junqueira de Azevedo6, há duas concepções acerca da
dignidade humana: a insular e a da nova ética. A primeira afirma o ser humano como razão e vontade
para uns e, para outros, como autoconsciência; ao passo que a segunda, por ele defendida, vê o ser
humano integrado à natureza, sendo capaz “de sair de si, reconhecer no outro um igual, usar a linguagem,
dialogar e, ainda, principalmente, na sua vocação para o amor, como entrega espiritual a outrem”7.
Deve restar claro que os conceitos supraexpostos referem-se ao traço diferenciador da pessoa
humana com relação aos demais seres vivos. Isso porque toda e qualquer forma de vida merece ter
proteção jurídica que evite abusos arbitrários – o que pode ser constatado pela proteção conferida ao
meio ambiente e aos direitos dos animais de não serem tratados com crueldade. Contudo, o que a
dignidade humana visa garantir é uma proteção especial à pessoa humana, uma vez que tem ela atributos
que a diferenciam positivamente das demais formas de vida, e que lhe garantem direitos a uma maior
proteção do que a ofertada aos demais seres vivos.
Assim, para a concepção insular, o que diferencia o ser humano dos demais seres vivos e garante
especial proteção à sua dignidade são a razão e a vontade a ele inerentes, na medida em que são a sua
capacidade de pensar racionalmente (analisando as questões sob fundamentos fático-científicos) e de agir
de acordo com o seu próprio pensamento (vontade livre) que o diferenciam dos demais seres vivos. Ou
então, para outra vertente desta concepção, a sua capacidade de autoconsciência, ou seja, de ter a
compreensão de si mesmo, no sentido de se autodeterminar, o que, a meu ver, supõe, necessariamente, o
uso da razão e da vontade.
Vale ressaltar que a concepção insular consagrou-se pelas lições de Kant, adepto que era da teoria
racionalista do conhecimento. Kant defendia, em síntese, que o ser humano é um fim em si mesmo pelas
suas capacidades de autonomia de vontade e de autodeterminação, que o diferenciariam dos demais seres
vivos e, portanto, garantir-lhe-iam o direito a uma dignidade maior do que a conferida àqueles.
Ressaltava que os demais seres vivos não possuem autonomia de vontade e capacidade de
autodeterminação, estando sempre sujeitos ao determinismo da Natureza, mas não à sua própria vontade8.
Por outro lado, a concepção da nova ética, conforme explicitada por Antônio Junqueira de
Azevedo9, afirma que:

(...) A pessoa humana, na verdade, se caracteriza por participar do magnífico fluxo vital da
natureza (é seu gênero mais amplo), distinguindo-se de todos os demais seres vivos pela sua
capacidade de reconhecimento do próximo, de dialogar, e, principalmente, pela sua capacidade
de amar e sua abertura potencial para o absoluto (é sua principal diferença) (concepção da
pessoa humana fundada na vida e no amor); c) com esse fundamento antropológico, a dignidade da
pessoa humana como princípio jurídico pressupõe o imperativo categórico da intangibilidade da
vida humana e dá origem, em sequência hierárquica, aos seguintes preceitos: 1 – respeito à
integridade física e psíquica das pessoas; 2 – consideração pelos pressupostos materiais mínimos
para o exercício da vida; e 3 – respeito às condições mínimas de liberdade e convivência social
igualitária (sem grifos no original).

Conforme citado, o mencionado autor é adepto dessa segunda concepção, qual seja a da nova ética,
conforme a denomina. Para tanto, desmistifica a posição do ser humano como razão e vontade ou mesmo
como autoconsciência, justificando que tais características não são exclusivas da pessoa humana: outros
animais também as possuem. No caso da razão e da vontade, são comuns não só ao ser humano como
também aos animais superiores, ao passo que, quanto à autoconsciência, é ela igualmente comum, pelo
menos ao chimpanzé, conforme atesta (ainda que em graus diferentes entre a pessoa humana e tais
animais, em ambos os casos, cumpre acrescentar).
Os animais têm vontade própria, não há dúvida, pois do contrário seriam todos dóceis e facilmente
controláveis pelo ser humano, o que não ocorre desde o início dos tempos. Ademais, alguns, como o
chimpanzé, têm autoconsciência e autodeterminação, conforme comprovado pela denominada
“experiência do espelho”10, explicitada pelo mencionado autor.
Assim, conclui Antônio Junqueira Azevedo pela insuficiência da concepção insular no tocante ao
critério diferenciador da pessoa humana em relação aos demais seres vivos, trazendo o entendimento de
que o ser humano se diferencia dos demais seres vivos pela sua capacidade de reconhecer o próximo, de
dialogar, de amar e de se abrir para o absoluto. A partir daí, da efetiva diferenciação do ser humano para
com os demais seres vivos, posiciona-se o autor pela intangibilidade da vida humana, que, para ele, é o
pressuposto da dignidade da pessoa humana. Consequentemente, supõe que é absolutamente necessária a
proteção da integridade física e psíquica das pessoas, além da garantia dos pressupostos materiais
mínimos para a existência, liberdade e igualdade entre todas as pessoas humanas. Vale ressaltar a
posição do autor pelo grau absoluto de seu “pressuposto”, que é a intangibilidade da vida humana11, o
que o leva a classificá-la como “imperativo jurídico categórico”12, em alusão à célebre concepção de
Kant que considerava os imperativos categóricos como preceitos absolutos, não passíveis de crítica e/ou
negação. Por outro lado, o citado autor discorre sobre as “consequências” desse seu “pressuposto” como
fundamentais, mas não como imperativos categóricos, classificando-as como “imperativos jurídicos
relativos”13.

1.4 Dignidade da pessoa humana como dimensão simultaneamente defensiva e prestacional. A


posição de Ingo Wolfgang Sarlet e de Luís Roberto Barroso
Defende Ingo Wolfgang Sarlet que a dignidade da pessoa humana não é algo que seja exclusivamente
inerente ao ser humano, ao contrário da doutrina racionalista de Kant. Entende que o desenvolvimento
cultural das sociedades humanas e sua consequente evolução também caracterizam o conteúdo do que
efetivamente se considera como “dignidade da pessoa humana”, especialmente quanto às condutas que a
ofendem, em complementação à concepção biológica da dignidade. Nesse sentido, entende o autor que a
dignidade humana é tanto um limite para a atuação estatal, que não pode invadi-la, quanto um dever
prestacional do Estado, que deve tomar todas as medidas necessárias para garantir que todas as pessoas
humanas tenham sua dignidade respeitada por toda a coletividade14.
Por outro lado, é de se notar que o autor não formula um conceito abstrato sobre o que caracterizaria
o objeto de proteção concreto da dignidade da pessoa humana, por não considerar possível uma
conceituação da mesma que não se atenha ao caso concreto. Aponta que as características que garantem o
tratamento beneficamente diferenciado à pessoa humana seriam a autonomia e o direito de
autodeterminação, conforme reconhecido pela Declaração Universal da ONU15.
Ademais, defende o autor uma necessária ponderação e hierarquização entre o princípio da
dignidade da pessoa humana e os demais direitos fundamentais na análise do caso concreto. Isso porque
as demandas envolvendo pessoas que tiveram sua dignidade atacada por outrem geralmente levam a um
conflito entre o direito de a pessoa ter a sua dignidade humana respeitada e, eventualmente, algum direito
fundamental do ofensor. Tal se justifica pelo fato de que “(...) o princípio da dignidade da pessoa humana
acaba por justificar (e até mesmo exigir) a imposição de restrições a outros bens constitucionalmente
protegidos, ainda que se cuide de normas de cunho jusfundamental”16. Outrossim, exemplifica tal
colocação no plano do Direito Comparado com o fato de que
(...) o Tribunal Constitucional de Portugal, no Acórdão n. 349/1991, ao apreciar a alegação de
inconstitucionalidade da penhora da pensão em demanda executiva, decidiu que ‘perante conflito
entre o direito do pensionista a receber pensão condigna e o direito do credor, deve o legislador,
para tutela do valor supremo da dignidade da pessoa humana, sacrificar o direito do credor na
medida do necessário e, se tanto for preciso, totalmente’17.

Dessa colocação pode surgir a seguinte indagação: mas por que se deve necessariamente sacrificar
outro direito que não o do respeito à dignidade da pessoa humana no caso concreto, e não o contrário (ou
seja, o sacrifício desse direito de respeito à dignidade em relação ao outro)? Tal se dá pelo fato de ter o
Constituinte de 1988 alçado o princípio da dignidade da pessoa humana ao topo hierárquico de nossa
Constituição, no sentido de ser ele o princípio fundamental (logo, de maior hierarquia axiológico-
normativa) da Carta Magna, sendo, nas palavras do citado autor18, o seu “valor-guia”, uma vez que
constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 1.º, III, da CF/1988.
Outrossim, cumpre destacar o fato de que os direitos fundamentais são assim considerados (como
fundamentais) justamente por se partir do pressuposto de que, sem eles, o ser humano não pode ter uma
vida digna na sua condição de pessoa humana. Ou seja, os direitos fundamentais são exteriorizações do
princípio da dignidade da pessoa humana, no sentido de visarem garantir uma vida digna a todos os
cidadãos. Assim, por mais que os direitos alçados à condição de fundamentais por nossa Constituição
Federal tenham diferentes gradações de dignidade humana em seu conteúdo (ou seja, o fato de alguns
desses direitos possuírem maior carga de proteção à dignidade humana do que outros), todos eles19
representam a exteriorização de uma vertente da dignidade humana que o Constituinte quis proteger.
Ainda nesse mister, ressalte-se que a previsão disposta no art. 5.º, § 2.º, da CF/198820 permite
concluir que os direitos previstos em seu Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) não são os
únicos direitos fundamentais, configurando, assim, a existência de direitos fundamentais implícitos, além
dos ali previstos (assim como de outros oriundos dos tratados internacionais dos quais o Brasil faça
parte). Dessa forma, tendo em conta o princípio da dignidade da pessoa humana, sempre que se
identificar na Constituição algum direito que possua em seu conteúdo21 a proteção da dignidade humana,
dever-se-á classificá-lo como um direito humano fundamental, assim como os constantes do mencionado
Título II de nossa Carta Magna, na qualidade de direito fundamental implícito.
Todavia, é preciso tomar cuidado para que não se banalize o princípio da dignidade da pessoa
humana, o que poderia ocorrer ao tentar colocá-lo como fundamento de todo e qualquer dispositivo de
nossa Carta Magna, sob pena de esvaziar o seu conteúdo fundamental. É preciso muita cautela do
intérprete ao classificar algum outro dispositivo da Constituição como direito fundamental, o que só pode
acontecer em sendo esse outro dispositivo materialmente um direito humano fundamental, em que pese
não estar ele formalmente colocado no título referente a esses direitos22.
Por fim, cumpre tecer algumas considerações sobre o problema do conflito doutrinário acerca do
caráter absoluto ou relativo do princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, sustenta a maior
parte da doutrina e da jurisprudência ser a dignidade humana absoluta intangível pelo legislador e pelo
juiz, no sentido de que deve prevalecer, de modo absoluto, sobre todos os demais direitos. Todavia,
seguindo caminho diverso, Ingo Wolfgang Sarlet aponta para o problema dessa concepção absoluta da
dignidade humana. Conforme atesta, em se considerando que todas as pessoas humanas possuiriam um
direito absoluto, intangível em qualquer hipótese de respeito à sua dignidade, então num caso concreto
traria enormes dificuldades para o julgador decidir uma lide envolvendo esse direito, se houvesse um
efetivo conflito direto entre as dignidades de autor e réu da demanda. Tome-se o exemplo dado, ainda
que com outras palavras, pelo citado doutrinador23: o criminoso. Aquele que comete homicídio
qualificado pela utilização de meio cruel, uma vez comprovado tal fato pelo devido processo legal, será
evidentemente recolhido a um estabelecimento prisional. Contudo, nesse caso, em se tomando como
absoluto o princípio da dignidade da pessoa humana, poder-se-á alegar que a dignidade do preso resta
ofendida pelo fato de ser ele recolhido a uma prisão, pois será tolhido não só em sua liberdade de
locomoção, mas em uma série de outros direitos pelo espaço de tempo em que estiver preso24. Todavia, o
que se usa para justificar a prisão do criminoso é o fato de que a sociedade não pode ficar à mercê dele,
que é potencialmente mais propenso a cometer um crime que os demais cidadãos que nunca o cometeram.
Assim, deixá-lo solto traria uma constante situação de apreensão e medo à sociedade, o que se tem por
inaceitável. Dessa forma, resta claro o confronto supranoticiado: por um lado, tem-se a dignidade (e
segurança) da coletividade; e, de outro, a dignidade humana do criminoso.
Esse exemplo enfatiza o grande problema existente ao considerar o princípio da dignidade da pessoa
humana como absoluto, pois, nesse caso, o juiz do caso concreto ver-se-ia em um verdadeiro beco sem
saída, porque ou sacrifica uma fração da dignidade de uma das partes ou então não terá como decidir a
questão.
Assim, é correta a posição do autor no sentido de que “a dignidade, ainda que não se trate como o
espelho no qual todos veem o que desejam, inevitavelmente já está sujeita a uma relativização (de resto
comum a todos os conceitos jurídicos) no sentido de que alguém (não importa aqui se juiz, legislador,
administrador ou particular) sempre irá decidir qual o conteúdo da dignidade e se houve, ou não, uma
violação no caso concreto”25.
Mas, ainda aqui, surge a seguinte indagação: como se deve proceder à escolha de qual dignidade
humana deve prevalecer; qual critério utilizar nesse mister? Conforme colaciona o autor, na doutrina e na
jurisprudência alemãs parece haver “certo consenso quanto ao fato de que, em princípio, nenhuma
restrição de direito fundamental poderá ser desproporcional e/ou afetar o núcleo essencial do direito
objeto da restrição”26, o que se afigura plenamente razoável e, portanto, acertado.
Destarte, os princípios da igualdade e da proporcionalidade devem ser os nortes utilizados
quando da decisão sobre qual dignidade humana deve prevalecer no confronto direto que as lides
concretas podem trazer ao juiz. Isso porque, conforme já demonstrado no capítulo referente à isonomia,
um dos critérios para que a discriminação seja constitucionalmente válida é a existência de um motivo
lógico-racional que justifique a discriminação pretendida em face do critério desigualador erigido, o que
visa evitar a desproporcionalidade da restrição a todo e qualquer direito27.
Dessa forma, somente deve o juiz proceder à relativização da dignidade humana em questão se
verificar a existência de um fundamento lógico-racional no caso concreto que o justifique, assim como
se dita relativização for proporcional (adequada, necessária e proporcional em sentido estrito). No
exemplo supracolacionado, o motivo é o fato de que o criminoso tirou a vida de outrem e, ainda por
cima, com a utilização de meio cruel. Considerando que a vida humana é um direito fundamental assim
erigido por nossa Carta Magna, é plenamente cabível que seja o criminoso em questão preso, para que se
cumpra a tríplice função da pena (aspectos retributivo/punitivo, preventivo de novos crimes e
ressocializante), e que, inclusive, tenha uma pena maior do que aquele agente que cometeu um homicídio
simples, pelo fato de este não ter contra si nenhuma condição qualificadora do crime.
Anote-se, para finalizar, a pertinente lição de Luís Roberto Barroso28 acerca do tema:
Após estabelecer que a dignidade humana deve ser considerada um princípio legal – e não um
direito fundamental autônomo – eu proponho três elementos como o seu conteúdo mínimo e derivo
uma série de direitos e implicações de cada. Para fins legais, a dignidade humana pode ser dividida
em três componentes: valor intrínseco, o qual identifica o status especial dos seres humanos no
mundo; a autonomia, que expressa o direito de toda pessoa, como ser moral e como indivíduo livre
e igual, de tomar decisões e perseguir sua própria ideia de vida boa [good life]; e valor
comunitário, convencionalmente definido como a legítima interferência estatal e social na
determinação dos limites da autonomia pessoal. Essa dimensão comunitária da dignidade humana
deve ser sujeita a um exame minucioso, próximo e permanente [permanent and close scrutiny],
dados os riscos de paternalismos e moralismos afetarem as legítimas escolhas e os [legítimos]
direitos das pessoas. Na estruturação de argumentações legais em casos mais complexos e
polêmicos [complex and divisive cases], é útil identificar e discutir as questões relevantes que
surgem em cada um dos três níveis de análise e, assim, prover maior transparência e controle à
justificação e às escolhas feitas pelas cortes ou outros intérpretes.

1.5 Posição pessoal. Dignidade da pessoa humana e o direito à felicidade. ADPF 132 e ADI 4.277
O cerne do entendimento aqui esposado é o seguinte: a dignidade humana constitucionalmente
consagrada garante a todos o direito à felicidade, na medida em que a realidade empírica demonstra que
a própria existência humana destina-se a evitar o sofrimento e a buscar aquilo que acreditamos nos trará
a felicidade, pois, parafraseando Luiz Alberto David Araújo, a própria noção de contrato social implica
a compreensão de que esse pacto coletivo só é aceito pelas pessoas em geral por acreditarem que a vida
em sociedade, com todos os seus ônus e benefícios, propiciará maiores condições de alcançar a
felicidade do que a vida de forma isolada29.
O princípio da dignidade da pessoa humana garante a todos a mesma dignidade pelo simples fato de
serem pessoas humanas. A proteção especial do ser humano em relação aos demais seres vivos é
justificada pelo fato de o ser humano diferenciar​-se positivamente daqueles, o que lhe garante o
reconhecimento de dignidade maior daquela reconhecida aos demais seres vivos. Todavia, é
absolutamente irrelevante saber quais seriam estas características específicas que diferenciam o ser
humano dos demais seres vivos (embora a doutrina majoritária pareça seguir a concepção kantiana ao
dizer que o ser humano se diferencia dos demais seres vivos por força de sua racionalidade – por agir
conforme a razão, a autonomia da vontade e a liberdade, e não necessariamente em função de seus puros
instintos): afinal, qualquer um sabe diferenciar um ser humano de outro animal. Assim, o princípio da
dignidade da pessoa humana garante a todos o mesmo respeito e a mesma dignidade pelo simples fato de
serem pessoas humanas, sendo absolutamente irrelevantes quaisquer condições externas nesse contexto.
Não se pode aceitar sem reservas teorias que pretendam dar à cultura o poder de definir a dignidade
da pessoa humana. O que a cultura pode fazer é estabelecer valores, ou seja, princípios gerais a
determinar aquilo que se considera digno ou não30. Contudo, é inaceitável a arbitrariedade cultural que
subjuga determinadas pessoas humanas em detrimento de outras – como ocorria, até bem pouco tempo
atrás, com as mulheres no Ocidente e ainda hoje ocorre com elas em países teocráticos, como o Irã e
Afeganistão, entre outros (no Ocidente, de prisioneiras dos pais, passavam a prisioneiras dos maridos,
submetidas aos desígnios despóticos destes –, tanto que, no Brasil pelo menos, por muito tempo a mulher
sofreu uma absurda diminuição de capacidade civil com o casamento; de absolutamente capaz passava a
relativamente capaz... Em países teocráticos em geral, as mulheres são ainda hoje enclausuradas dentro
de burcas ou, ainda que não, são verdadeiras prisioneiras dos pais e, posteriormente, passam a sê-lo dos
maridos, que mandam e desmandam nelas como se objetos fossem).
Não se desconhece a dificuldade de se estabelecer padrões mundiais de dignidade a serem
conferidos a todos os seres humanos. Penso que os diferentes Estados conseguem fazê-lo por terem o
monopólio legítimo da força dentro de seus territórios. Mas, ao contrário, a ONU e a OTAN não
conseguem se impor sobre os Estados por não aplicarem efetivas sanções econômicas e/ou mesmo
intervenções nos Estados que desrespeitam os direitos humanos. O grande problema, do ponto de vista da
efetividade jurídica da questão, cinge-se à ausência de vinculação jurídica das Constituições aos ditames
da ONU, o que propicia a cada Estado a liberdade de criar os textos normativos que melhor lhe
convenham. Isso é positivo dentro da ótica de respeito às especificidades culturais, não há dúvida, mas
mesmo as especificidades culturais devem respeito ao conteúdo material do princípio da dignidade da
pessoa humana; portanto, o respeito é devido a todos, pelo simples fato de serem seres humanos – pois
este respeito, como visto, é inerente ao próprio princípio do Estado de Direito e, portanto, à própria
noção de contrato social.
Com isso parece concordar Peter Häberle, para quem: “Já com vista a concepções interculturalmente
válidas de identidade, verifica-se que determinados componentes fundamentais da personalidade humana
devem ser levados em consideração em todas as culturas: eles representam, com isso, também o conteúdo
de um conceito de dignidade humana insuscetível de uma redução culturalmente específica”31.
Tal significa que, mesmo no âmbito de uma compreensão intersubjetiva do princípio da dignidade da
pessoa humana, deste deve ser extraída uma obrigação de respeito pela pessoa individualmente
considerada em sua autonomia individual quando isto não prejudique terceiros32 (como a
homossexualidade e a homoafetividade, que efetivamente não prejudicam ninguém).
Ou seja, “a dignidade da pessoa humana (assim como – na esteira de Hannah Arendt – a própria
existência e condição humana), sem prejuízo de sua dimensão ontológica e, de certa forma, justamente em
razão de se tratar do valor próprio de cada uma e de todas as pessoas, apenas faz sentido no âmbito da
intersubjetividade e da pluralidade. Aliás, também por esta razão é que se impõe o seu reconhecimento e
proteção pela ordem jurídica, que deve zelar para que todos recebam igual (já que todos são iguais em
dignidade) consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade, o que, de resto, aponta para a
dimensão política da dignidade, igualmente subjacente ao pensamento de Hannah Arendt, no sentido de
que a pluralidade pode ser considerada como a condição (e não apenas como uma das condições) da
ação humana e da política”33. Em outras palavras, “a noção da dignidade como produto do
reconhecimento da essencial unicidade de cada pessoa humana e do fato de esta ser credora de um dever
de igual respeito e proteção no âmbito da comunidade humana”34.
Para o magistrado germânico Dieter Grimm, isso significa que “a dignidade, na condição de valor
intrínseco do ser humano, gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus
projetos existenciais e felicidade e, mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada,
ainda assim, ser considerado e respeitado pela sua condição humana”35.
Ainda segundo Ingo W. Sarlet, a dignidade da pessoa humana não pode ser conceituada de maneira
fixista, pois isso não se coaduna com a pluralidade e a diversidade de valores inerentes à sociedade
democrática contemporânea, apontando o autor, ainda, o entendimento de Carmem Lúcia Antunes Rocha,
para quem a dignidade humana é um conceito em permanente processo de construção e desenvolvimento,
donde, como Peter Habërle, conclui que suas dimensões natural e cultural se complementam e interagem
mutuamente36.
Por outro lado, a dificuldade em garantir a dignidade inerente a todo ser humano em todos os países
do mundo não torna os seres humanos de determinada localização merecedores de tratamento menos
digno do que aqueles que estão em outras localidades. Localização geográfica não é critério nem motivo
legítimo de diferenciação. Da mesma forma, despotismos culturais também não o são, pois, como visto, a
cultura deve respeito ao conteúdo material do princípio da dignidade da pessoa humana e, ainda, ao
ordenamento jurídico em geral, no sentido de que serão injurídicos comportamentos contrários ao
ordenamento jurídico, ainda que profundamente arraigados na cultura em questão.
A dificuldade efetivamente existente na conceituação positiva sobre o que seria a dignidade da
pessoa humana, se cria embaraços à efetivação de políticas prestacionais a concretizarem-na (ações
positivas visando a sua implementação); inexiste, por outro lado, no que tange à constatação do que
efetivamente afronta a dignidade humana. Há que se utilizar, aqui, a célebre “fórmula objeto” do alemão
Günter Dürig (de base kantiana), segundo a qual a dignidade da pessoa humana resta afrontada quando o
ser humano é usado como meio para a consecução de outros fins. Isso significa, a meu ver, que a
dignidade da pessoa humana impõe o respeito à individualidade das pessoas, à liberdade de
consciência delas, no sentido de terem autonomia moral, ou seja, poderem viver suas vidas da forma
que melhor lhes convenha desde que, evidentemente, não prejudiquem terceiros37, prejuízo este que
inexiste na homoafetividade.
Nesse sentido, apesar de dizer que tal fórmula não oferece uma solução para a globalidade dos
casos, por não definir previamente o que deve ser protegido, mas apenas a verificação, no caso concreto,
da violação da dignidade da pessoa humana, afirma Ingo W. Sarlet que “o que se percebe, em última
análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde
as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do
poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos
fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade
da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e
injustiças”38.
Nesse sentido, o voto do Ministro Marco Aurélio39 no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277,
tanto sobre a vedação de instrumentalizações, como concepção negativa do princípio da dignidade da
pessoa humana, quanto, especialmente, na proteção da busca da realização do projeto de vida como
parte do conteúdo positivo deste: “A proibição de instrumentalização do ser humano compõe o núcleo
do princípio, como bem enfatizado pelo requerente. Ninguém pode ser funcionalizado,
instrumentalizado, com o objetivo de viabilizar o projeto de sociedade alheio, ainda mais quando
fundado na visão coletiva preconceituosa ou em leitura de textos religiosos. A funcionalização é uma
característica típica das sociedades totalitárias, nas quais o indivíduo serve à coletividade e ao Estado, e
não o contrário. As concepções organicistas das relações entre indivíduo e sociedade, embora ainda
possam ser encontradas aqui e acolá, são francamente contrárias incompatíveis com a consagração da
dignidade da pessoa humanal. Incumbe a cada indivíduo formular as escolhas de vida que levarão ao
desenvolvimento pleno da personalidade. A Corte Interamericana de Direitos Humanos há muito
reconhece a proteção jurídica conferida ao projeto de vida (v. Loayza Tamayo versus Peru, Cantoral
Benavides versus Peru), que indubitavelmente faz parte do conteúdo existencial da dignidade da pessoa
humana. Sobre esse ponto, consignou Antônio Augusto Cançado Trindade no caso Gutiérrez Soler versus
Colômbia, julgado em 12 de setembro de 2005: ‘Todos vivemos no tempo, que termina por nos consumir.
Precisamente por vivermos no tempo, cada um busca divisar seu projeto de vida. O vocábulo ‘projeto’
encerra em si toda uma dimensão temporal. O projeto de vida tem, assim, um valor essencialmente
existencial, atendo-se à ideia de realização pessoal integral. É dizer, no marco da transitoriedade da
vida, a cada um cabe proceder às opções que lhe pareçam acertadas, no exercício da plena liberdade
pessoal, para alcançar a realização de seus ideais. A busca da realização do projeto de vida desvenda,
pois, um alto valor existencial, capaz de dar sentido à vida de cada um’ [afinal] O Estado existe para
auxiliar os indivíduos na realização dos respectivos projetos pessoais de vida, que traduzem o livre e
pleno desenvolvimento da personalidade”.
Ademais, sobre o direito à busca da felicidade encontrar-se implícito ao princípio da dignidade da
pessoa humana, são valiosas as lições do Ministro Celso de Mello40 no citado julgamento: “Reconheço
que o direito à busca da felicidade – que se mostra gravemente comprometido, quando o Congresso
Nacional, influenciado por correntes majoritárias, omite-se na formulação de medidas destinadas a
assegurar, a grupos minoritários, a fruição de direitos fundamentais – representa derivação do princípio
da dignidade da pessoa humana, qualificando-se como um dos mais significativos postulados
constitucionais implícitos cujas raízes mergulham, historicamente, na própria Declaração de
Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776. (...) Não é por outra razão que
STEPHANIE SCHWARTZ DRIVER (‘A Declaração de Independência dos Estados Unidos’, p. 32/35,
tradução de Mariluce Pessoa, Jorge Zahar, Ed. 2006), referindo-se à Declaração de Independência dos
Estados Unidos da América como típica manifestação do Iluminismo, qualificou o direito à busca da
felicidade como prerrogativa fundamental inerente a todas as pessoas: ‘Em uma ordem social racional,
de acordo com a teoria iluminista, o governo existe para proteger o direito do homem de ir em busca da
sua mais alta aspiração, que é, essencialmente, a felicidade ou o bem-estar. O homem é motivado pelo
interesse próprio (sua busca da felicidade), e a sociedade/governo é uma construção social destinada a
proteger cada indivíduo, permitindo a todos viver juntos de forma mutuamente benéfica’. (...)
Desnecessário referir a circunstância de que a Suprema Corte dos Estados Unidos da América tem
aplicado esse princípio em alguns precedentes – como In re Slaughter-House Cases (83 U.S. 36, 1872),
Butchers’ Union Co. v. Crescent City Co. (111 U.S. 356, 1886), Meyer v. Nebraska (262 U.S. 390,
1923), Pierce v. Society of Sisters (268 U.S. 510, 1925), Griswold v. Connecticut (381 U.S. 479, 1965),
Loving v. Virginia (388 U.S. 1, 1967), Zablocki v. Redhail (434 U.S. 374, 1978), v.g. –, nos quais esse
Alto Tribunal, ao apoiar os seus rulings no conceito de busca da felicidade (‘pursuit of happiness’),
imprimiu​-lhes significativa expansão, para, a partir da exegese da cláusula consubstanciadora desse
direito inalienável, estendê-lo a situações envolvendo a proteção da intimidade e a garantia dos direitos
de casar-se com pessoa de outra etnia, de ter a custódia dos filhos menores, de aprender línguas
estrangeiras, de casar-se novamente, de exercer atividade empresarial e de utilizar anticoncepcionais”.
Vale, ainda, trazer o preciso conceito de dignidade da pessoa humana de Sarlet, que corrobora o aqui
exposto, segundo o qual “tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva
reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como também
que venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e
promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos”41.

1.5.1 Do direito fundamental ao respeito (implícito ao princípio da dignidade da pessoa humana)


Que o respeito é inerente à dignidade da pessoa humana é algo afirmado ou, no mínimo, não refutado
pela doutrina em geral. É um pensamento inclusive clássico, que remonta a Kant e Hegel.
Kant já vislumbrava o respeito como um dever de virtude do ser humano, embora não passível de
imposição pela violência42. Nesse ponto, o equívoco kantiano restou em não reconhecer o respeito como
imponível coativamente (por considerar que o respeito deveria partir do próprio sujeito, não podendo ser
imposto externamente43), ou seja, como dever jurídico, já que, como visto, o respeito é pressuposto da
vida em sociedade – afinal, respeito deve ser entendido como não repressão física ou psicológica, o que
caracteriza uma imposição de refreamento de atitudes plenamente possível (e desejável) de se impor
coativamente por meio do aparelho estatal. Contudo, a posição kantiana já denota o respeito como uma
obrigação inerente à dignidade da pessoa humana, na medida de seu entendimento no sentido de que a
dignidade do ser humano exige que ele efetivamente respeite a dignidade do outro (além da sua
própria)44 justamente para que não se instrumentalize o outro para a consecução de determinados fins
(ante a concepção kantiana de que o ser humano é um fim em si mesmo e, portanto, não pode ser usado
como meio para se atingir outros fins).
Só não se pode incorrer no equívoco kantiano de considerar que agir racionalmente seria apenas a
obediência da “lei moral”45, ou seja, daquilo que a maioria da sociedade entende como correto (já que
moral é o conjunto de usos e costumes aceitos pela coletividade)46. A razão independe da moral. A moral
pode ser pautada por subjetivismos (vulgos achismos), ou seja, por concepções arbitrárias que foram
eleitas pela maioria como corretas (vide, como exemplos: (i) o aprisionamento da mulher no lar,
reprimindo-a sempre que queria se igualar ao marido em direitos; e (ii) os totalitarismos aprovados por
maiorias). Racionalidade deve ser entendida como uma compreensão advinda de comprovações lógico-
científico-empíricas (sendo racional, por exemplo, uma não condenação por ausência de comprovações
lógico​-científico-empíricas justificadoras da condenação)47 – e a comprovação é incompatível com
subjetivismos, com arbitrariedades. Não que toda moral seja arbitrária: muitas questões de moralidade
são comprováveis, mas essa simples possibilidade (historicamente comprovada) de arbitrariedade da
moral demonstra que não se pode equiparar racionalidade a respeito de leis morais.
Hegel, por sua vez, entende o respeito como um imperativo prático-motivador do estabelecimento de
um estado jurídico – ou seja, o respeito é um imperativo jurídico ao ser humano, falando, inclusive, em
uma pretensão de respeito à particularidade, àquilo que é distinto, característico48.
O dever de respeito se impõe mesmo a visões puramente liberalistas (individualistas), segundo as
quais a liberdade nada mais é do que a primeira das propriedades sociais – a propriedade de si49, na
medida em que “a liberdade engendra o dever de reconhecer a liberdade do outro”50. Afinal, a liberdade
implica o direito de respeito à autonomia individual, para que cada um viva sua vida da forma que
melhor lhe aprouver (desde que não prejudicados terceiros), donde é inerente à própria noção de
liberdade o respeito à liberdade do outro – logo, o respeito ao próximo é inerente à própria noção de
liberdade.
Ou seja, é devido à sua intangível dignidade que o ser humano tem direito ao respeito, extraindo-se
daí um subelemento fundamental à noção de dignidade: a igualdade51. Ainda segundo Béatrice Maurer, é
porque cada ser humano é dotado da dignidade, que todos são iguais, donde negar a alguém a
dignidade significa considerá-lo inferior e, portanto, não mais um ser humano – tal qual ocorreu com
judeus, homossexuais e deficientes físicos no que tange ao tratamento que receberam dos nazistas52, já
que foram considerados “inferiores” à pseudo “raça ariana” idealizada por Hitler.
Assim, há um efetivo direito ao respeito à dignidade que todos podem opor contra todos. “O que
permanece indiscutível é que o respeito à dignidade do outro acarreta certas obrigações tanto por parte
das autoridades públicas como por parte de qualquer indivíduo”53. Nesse sentido, vale citar a posição do
Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, ao afirmar que “uma Constituição que situa a dignidade
humana no ponto central de seu sistema de valores não pode, em princípio, conceder na ordenação das
relações inter-humanas direito à pessoa de outro que não respeite, ao mesmo tempo, a dignidade humana
dos outros e seja vinculado a deveres”54. Ou ainda a posição de Günter Dürig, para quem a dignidade da
pessoa humana garante uma pretensão de respeito ético-individual nas relações sociais55.
Adalbert Podlech aparenta seguir o mesmo raciocínio ao elencar suas cinco condições centrais para
a garantia da dignidade da pessoa humana, a saber: (i) a liberdade do medo existencial no Estado Social
por meio da possibilidade do trabalho e de um seguro social mínimo; (ii) a igualdade normativa dos
seres humanos, permitidas apenas desigualdades fáticas justificáveis; (iii) a defesa da identidade e da
integridade humanas por meio da garantia do livre desenvolvimento espiritual do indivíduo; (iv) a
limitação do poder estatal; e (v) o respeito ao ser humano em sua corporalidade como momento de sua
individualidade autônoma e responsável56.
No mesmo sentido, Peter Häberle afirma que, considerando que o Poder Estatal decorre do povo, “o
respeito e a proteção da dignidade humana constitui um ‘dever fundamental’ (Grundpflicht) do Estado
constitucional, ou, de forma mais precisa: um ‘dever jurídico-fundamental’”57, garantindo a dignidade da
pessoa humana “um direito público subjetivo, direito fundamental do indivíduo contra o Estado (e contra
a sociedade) e ela é, ao mesmo tempo, um encargo constitucional endereçado ao Estado, no sentido de
um dever de proteger o indivíduo em sua dignidade humana em face da sociedade (ou de seus grupos)”58.
Ainda que levando em conta o texto positivo da Lei Fundamental Alemã, também Michael Koepfler vê
uma obrigação de respeito extraída da cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana59.
De toda essa exposição fica evidente que é inadmissível que se subjuguem as minorias em função do
que a maioria pensa ser a forma supostamente “correta” de viver a vida, sob pena de afronta à dignidade
humana daquelas. Cada pessoa possui uma autonomia individual que lhe garante o direito de viver a
vida da forma como melhor lhe aprouver, portanto o direito de ser respeitada pelos demais membros
da coletividade, desde que não prejudique terceiros – nesse sentido é a afirmação de John Rawls de que
“cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade
pode sobrepujar”60. Ora, se as pessoas têm autonomia para decidir como viver sua vida também têm o
direito de serem respeitadas, pois o respeito não supõe a “aceitação”, a concordância, mas apenas a
tolerância e a aceitação do diferente enquanto igual, bem como a não agressão e o tratamento cordial
que é inerente à vida em sociedade. Isso é tão evidente que é inacreditável que tenha que ser difundido.
Ou seja, existe um direito fundamental ao respeito implícito ao princípio da dignidade da pessoa
humana.
Todos sabem o que é respeito, mas para evitar problemas, cumpre conceituá-lo. Respeitar é o ato de
demonstrar tolerância com terceiros e tratá-los enquanto iguais, ou seja, é o ato de admitir maneiras
de pensar e agir diversas das suas próprias. Respeitar é, portanto, não reprimir e não discriminar
uma pessoa pelo simples fato de ela pensar ou agir de forma diferente da sua e tratá-la enquanto
igual, o que, em nosso ordenamento jurídico, é respaldado, ainda, pelo direito fundamental à liberdade
de consciência, que é “a faculdade de o indivíduo formular juízos e ideias sobre si mesmo e sobre o
meio externo que o circunda”61, afirmando também que o Estado não pode interferir nesse âmbito íntimo
do indivíduo, “não lhe cabendo impor concepções filosóficas aos cidadãos”62. Tolerar supõe não ofender
e não discriminar, ao passo que respeitar supõe o ato de tolerar e, ainda, de tratar o outro enquanto igual.
Ora, se todos têm direito de autodeterminar a forma como viverão suas vidas, é evidente que têm o
direito de ter a sua autodeterminação respeitada pelos demais membros da sociedade quando isso não
implique prejuízos a terceiros, prejuízos que inexistem na homoafetividade.
Note-se, ainda, que a homoafetividade não causa nenhum prejuízo a heterossexuais, como é evidente.
Se um heterossexual se sente incomodado ao vislumbrar um casal homoafetivo, isso decorre de profundo
preconceito, ou seja, de juízo de valor dezarrazoado, irracional, desprovido de lógica e racionalidade a
fundamentá-lo63.
Em suma, do princípio da dignidade da pessoa humana também decorre a obrigação de respeito ao
próximo, o que significa que todas as pessoas merecem o mesmo respeito pelo simples fato de serem
pessoas humanas64.

2. O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO

2.1 A interpretação conforme a Constituição no ordenamento jurídico brasileiro: natureza jurídica


A interpretação conforme a Constituição surgiu na jurisprudência da Corte Constitucional Alemã
com o intuito de conferir a determinada lei, que possui mais de uma interpretação possível, aquela que
esteja de acordo com o ordenamento constitucional do país em questão.
No que tange à natureza jurídica da interpretação conforme, há três correntes que tentam explicá-la:
a primeira afirma que seria um método de interpretação das leis infraconstitucionais; a segunda
classifica-a como um princípio da Constituição; e a terceira coloca-a como mecanismo de controle da
constitucionalidade das leis e dos atos normativos.
Para a primeira corrente, a interpretação conforme seria uma mera técnica de interpretação da
legislação infraconstitucional que visaria conformá-la com o texto constitucional, evitando assim a
declaração de sua inconstitucionalidade, em atenção ao princípio da supremacia da Constituição
Federal65. A crítica feita a essa corrente baseia-se no fato de que coloca o intérprete basicamente como
uma longa manus do legislador, ou seja, como mero instrumento de exteriorização da vontade deste, o
que não corresponde à verdade66. Afinal, como as leis visam proteger determinados valores, e não meras
circunstâncias fáticas, pode ser que o legislador tenha expressado, na redação do dispositivo de lei em
questão, apenas uma ou algumas das situações fáticas possuidoras daquele valor protegido. Assim, a
função do intérprete é, ao verificar dita omissão de uma situação idêntica ou, ao menos, possuidora do
mesmo elemento essencial da primeira, estender àquela o mesmo regime jurídico conferido a esta, por
meio da interpretação extensiva ou da analogia. Como se pode ver, a interpretação conforme não pode
ser equiparada às interpretações extensiva ou restritiva ou, ainda, à analogia, uma vez que é por meio
dela que se verifica a necessidade de utilização de uma destas no caso concreto, em decorrência da
omissão legal. Ou seja, a interpretação conforme a Constituição constitui um mecanismo de verificação
da pertinência da utilização da interpretação extensiva, da interpretação restritiva ou da analogia (ou
seja, das técnicas hermenêuticas de interpretação jurídica), o que ocorrerá se os valores constitucionais
assim o exigirem.
A segunda corrente afirma que a interpretação conforme seria um princípio implícito de nossa Carta
Magna, a saber: um princípio verificador da conformidade da legislação infraconstitucional em relação à
Constituição. A crítica a essa corrente baseia-se no fato de que (em que pese ser a interpretação
conforme utilizada para que sejam efetivamente respeitadas as normas constitucionais) ela não pode ser
considerada um princípio voltado unicamente para esse fim tendo em vista que isso a levaria a se
confundir com o já existente princípio da supremacia das normas constitucionais. “Em outras palavras, o
princípio constitucional da interpretação conforme seria mais um efeito do princípio da supremacia do
que propriamente um princípio constitucional, motivo pelo qual não se aceita esta natureza jurídica sem
reservas”67-68.
Já a terceira corrente, ao classificá-la como um instrumento de controle da constitucionalidade das
leis e dos atos normativos, coloca-a como um modo de salvaguardar a supremacia das normas
constitucionais em face das infraconstitucionais, no sentido de que, na existência de diversas
interpretações possíveis, seja delimitada a única que seria válida diante do ordenamento jurídico-
constitucional69. Ou seja, de acordo com essa concepção, aquele que pleiteia uma interpretação
conforme está afirmando, em princípio, que a lei impugnada é inconstitucional se interpretada “desta ou
daquela forma”, razão pela qual pleiteia-se o reconhecimento da interpretação “x” como sendo a única
válida para evitar o reconhecimento e a declaração da inconstitucionalidade da lei em questão.
A pergunta que pode ser formulada após esta colocação é a seguinte: mas por que se pleiteia uma
interpretação conforme e não a declaração da inconstitucionalidade propriamente dita da lei, se se
apresenta como inconstitucional mediante determinada interpretação? Isso se dá pelo fato de que, apesar
da aparência da inconstitucionalidade da lei em questão, dita inconstitucionalidade não se refere ao
objeto (núcleo essencial) propriamente dito da lei, mas apenas ao âmbito de sua abrangência, além do
fato de que a lei, apesar de ser inconstitucional se adotada determinada interpretação, possui uma
importante relevância para a sociedade, razão pela qual precisa ser mantida70. Em outras palavras, a
inconstitucionalidade configura-se pela eventual discriminação ou afronta do texto constitucional
existente na lei em questão se interpretada “desta ou daquela forma”, discriminação ou afronta estas tidas
como inconstitucionais e que podem ser evitadas se adotada uma das interpretações possíveis.
A terceira corrente parece-me a mais correta. Com efeito, realmente não pode a interpretação
conforme ser equiparada a mecanismos hermenêuticos de interpretação, porque, em verdade, é ela que
define se deverão (ou não) ser utilizados para que se obtenha o respeito às normas constitucionais. Ou
seja, não é ela um método de interpretação: é, em verdade, o mecanismo hermenêutico a ser utilizado
para aferir se determinado método de interpretação deve ou não ser utilizado no caso concreto com o
intuito de salvaguardar os valores protegidos pela Carta Magna. Por outro lado, não se pode deixar de
concordar que, se vista como mero princípio constitucional, confundir-se-ia com o princípio da
supremacia das normas constitucionais. Aliás, esse princípio da supremacia constitucional demanda pela
declaração da inconstitucionalidade dos textos normativos que afrontem a Constituição, no caso de
impossibilidade de se conferir a eles uma interpretação condizente com a Constituição por meio da
interpretação conforme.
Imagine-se, por exemplo, uma lei que permita indistintamente a pena de morte no Brasil. Como se
sabe, a pena de morte a civis em tempos de paz é vedada pela cláusula pétrea atinente ao direito à vida71.
Assim, imaginando-se uma redação peremptória da lei em questão (do gênero: “Será condenado à morte
aquele que reincidir na prática de crime doloso qualificado contra a vida que tenha gerado o resultado
morte”), será impossível a utilização da interpretação conforme a Constituição, porque por mais que se
faça uma interpretação restritiva ainda assim a lei estará afrontando a cláusula pétrea que estabelece o
direito fundamental à vida em tempos de paz, donde a única forma de salvaguardar a Constituição será
com a declaração da inconstitucionalidade da lei em questão.
2.2 Requisitos da interpretação conforme a Constituição
São dois os requisitos da interpretação conforme a Constituição, a saber: a necessidade e a
utilidade.
A necessidade da interpretação conforme divide-se, em verdade, em duas esferas: necessidade de
sua utilização e necessidade de manutenção da lei impugnada no ordenamento jurídico. A primeira
baseia-se no fato de que o texto normativo, se tiver a si atribuída uma interpretação gramatical (literal),
estará carreado de inconstitucionalidade. Ou seja, “apresenta sinais evidentes de sua nulidade, caso
interpretada em seu sentido literal, permitindo ao aplicador do Direito declarar a sua nulidade, amparado
no princípio da supremacia formal da Constituição”72. A segunda, por sua vez, funda-se no fato de que a
lei, apesar de possuir variantes interpretativas inconstitucionais, é extremamente relevante à sociedade se
interpretada da forma constitucional, donde a simples declaração de sua inconstitucionalidade e
consequente expurgação do ordenamento jurídico traria mais malefícios do que benefícios ao interesse
público. É ela fundada, assim, no “princípio da otimização ou da máxima eficácia das leis do
ordenamento, as quais, após publicadas, produzem efeitos na tessitura social de uma determinada
comunidade”73.
A utilidade, por sua vez, consiste no fato de que a mesma será efetivamente útil àquele que a
pleiteia, no sentido de garantir-lhe ao mesmo um bem da vida que não lhe seria garantido caso fosse
adotada uma das variantes inconstitucionais da lei em questão. Ou seja, a utilidade aqui apontada refere-
se ao efetivo interesse de agir do autor da demanda, no que se confunde com essa condição da ação.

2.3 Limites da interpretação conforme a Constituição. ADPF 132 e ADI 4.277


Considerando que a interpretação conforme é oriunda de pura criação jurisprudencial da Corte
Constitucional Alemã, os seus limites foram igualmente criados pela doutrina e pela jurisprudência.
A maior parte da doutrina sobre o tema entende que o intérprete não poderia “ultrapassar os limites
literais” do texto normativo sob o pretexto de fornecer-lhe uma interpretação conforme a Constituição,
assim como não poderia o julgador decidir de forma que afrontasse a “finalidade pretendida pelo
legislador”. Baseiam-se na Teoria da Separação dos Poderes74, no sentido de que, se o legislador tiver
sido claro no seu intuito, o intérprete não poderia dar ao texto normativo uma interpretação diversa, ainda
que fosse a única condizente com a Constituição, pois isso configuraria uma usurpação da competência
do Poder Legislativo, em uma “legislação positiva” do intérprete-juiz que seria vedada pelo citado
sistema da Tripartição de Poderes. Isso se justificaria pelo fato de que o parlamentar tem mandato
popular, ao contrário do magistrado, na eterna celeuma acerca da legitimidade democrática do Poder
Judiciário (ou, especificamente, da ausência de tal legitimidade apontada pelos críticos).
Contudo, essas limitações só podem ser aceitas com reservas. Isso porque, apesar de os textos
normativos em geral possuírem em seu corpo determinadas situações fáticas, nem sempre correspondem
a todos os fatos que possuem o valor protegido pelos textos normativos em questão. Com efeito,
conforme explicitado em tópico anterior relativo à Teoria Tridimensional do Direito, toda norma decorre
de um valor atribuído a determinado fato, donde é o valor o elemento essencial da norma, e não o fato em
si (norma = fato + valor).
Assim, quando se analisa a questão do “limite da literalidade” da interpretação conforme, é preciso
ter em mente que o que deve ser preservado é o valor atribuído pelo legislador à norma em questão, e
não ao(s) fato(s) porventura citado(s) por ele. Afinal, quando o legislador criou o texto normativo, ele
poderia ter a impressão de que apenas as situações por ele citadas no texto legal possuíam o valor que
ele visou proteger, quando, em verdade, outras situações possuem esse mesmo valor, apesar da sua
ignorância conceitual nesse sentido. Ou seja, o fato de o legislador ter citado apenas uma ou algumas
circunstâncias fáticas no texto normativo não significa que outras situações fáticas não citadas não
possam ter a si estendido o regime jurídico em questão por um suposto “limite literal” oriundo da
Separação de Poderes. As situações de fato que o texto normativo deixou de citar apenas não receberão o
mesmo tratamento jurídico daquelas expressamente citadas se não possuírem o mesmo valor (elemento
essencial) que ensejou a proteção destas pelo texto legal. Disso não ocorrerá afronta à Separação dos
Poderes em razão de ser o Direito uma ciência valorativa, que protege valores e não fatos isoladamente
considerados.
O mesmo ocorre quanto ao limite da “finalidade do legislador”. Isso porque, como dito, a legislação
protege valores e não meros fatos isoladamente considerados. Afinal, a proteção de um valor cria um
caráter abstrato e indeterminado na norma, que, por sua vez, abarca todos os fatos possuidores de dito
valor, evitando subjetivismos e caprichos pessoais do legislador quando da elaboração da legislação em
geral, que certamente ocorreriam caso se permitisse que ele protegesse uma situação em detrimento de
outra, apesar de serem elas idênticas ou análogas, assim, é obrigatória a extensão do regime jurídico
destinado a uma situação descrita pelo texto da norma a outras que a ela sejam idênticas ou análogas
(mas não tenham sido expressamente citadas pelo texto normativo), por interpretação extensiva ou
analogia, por força da isonomia.
Entendimento em sentido contrário tornaria inúteis os institutos da interpretação extensiva e da
analogia, que visam justamente garantir que situações absolutamente idênticas ou então idênticas no
essencial àquela(s) citada(s) pelo(s) texto(s) normativo(s), mas que, por algum motivo não foram
expressamente citadas/regulamentadas recebam o mesmo tratamento jurídico daquelas que o foram,
justamente por possuírem o mesmo valor que ensejou a normatização do regime jurídico em questão.
Assim, considerando os termos do art. 4.º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro75 e
do art. 126 do Código de Processo Civil76, fica evidente o poder-dever de extensão a determinada
situação fática não citada pelo texto normativo do mesmo regime jurídico conferido àquela
expressamente citada, quando idêntica, por meio da interpretação conforme a Constituição, em
decorrência da isonomia constitucionalmente consagrada – lembrando aos críticos da legitimidade
democrática do Judiciário que foi o Legislador democraticamente eleito que criou os institutos da
interpretação extensiva e da analogia, expressamente previstos na legislação.
Afinal, considerando que a interpretação extensiva e a analogia são sucedâneos do princípio da
igualdade, no sentido de garantirem aos iguais e aos fundamentalmente iguais o mesmo tratamento
jurídico, então a interpretação conforme configura-se como técnica necessária para garantir dita
isonomia jurídica, não havendo nenhum problema e nenhuma afronta ao “limite da literalidade” e ao
“limite da finalidade do legislador” aqui explicitados77.
Note-se que é impossível descobrir a efetiva vontade do legislador pelo fato de o projeto de lei
nunca ser fruto da vontade de apenas uma pessoa, mas de uma série de parlamentares com interesses e
opiniões por vezes totalmente díspares com relação ao tema, donde não se pode deixar de concordar com
o fato de que o texto normativo, uma vez aprovado, assume vida própria, independentemente da vontade
daqueles que o aprovaram, sendo que é da interpretação do texto normativo que se extrairá a norma
aplicável78.
Na verdade, seguindo ou não a “vontade do legislador”, deve restar claro que este só pode proteger
valores por intermédio das normas jurídicas, e não meras circunstâncias fáticas. Aceitar um positivismo
extremado, no sentido de conferir ao legislador o poder absoluto de, despoticamente, proteger uma
situação, mas não outra, apesar de idênticas ou então fundadas no mesmo valor (elemento essencial),
significa afrontar violentamente a isonomia constitucionalmente consagrada, que determina o tratamento
igualitário dessas situações, sendo esta a razão de só poderem ser aceitos com as reservas supraexpostas
esses “limites da literalidade e da finalidade do legislador” no que tange à interpretação conforme.
Entendimento contrário ao aqui defendido significa, em verdade, admitir posturas totalitárias,
absolutamente arbitrárias por ilógicas, irracionais, sem nenhuma razoabilidade ou proporcionalidade,
como as ocorridas no positivismo extremado do nazi-fascismo.
Sobre o tema, vale citar o voto do Ministro Gilmar Mendes79 no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277, no qual reconheceu que a jurisprudência do STF não se atenta à vontade do legislador quando
realiza a interpretação conforme à Constituição, mas apenas aos limites literais do texto normativo,
consoante os diversos julgados que cita, senão vejamos:

A prática demonstra que o Tribunal não confere maior significado à chamada intenção do
legislador, ou evita investigá-la, se a interpretação conforme à Constituição se mostra possível
dentro dos limites da expressão literal do texto (Rp 1.454, Rel. Min. Otávio Gallotti, RTJ, 125:997;
Rp. 1.389, Rel. Min. Oscar Corrêa, RTJ 126:514; Rp. 1.399, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ 9 set.
1988). (...) O Supremo Tribunal Federal, quase sempre imbuído do dogma kelseniano do legislador
negativo, costuma adotar uma posição de self-restraint ao se deparar com situações em que a
interpretação conforme possa descambar para uma decisão corretiva da lei (ADI 2.405-RS, Rel.
Min. Carlos Britto, DJ 17.02.2006; ADI 1.344, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 19.04.1996; Rp 1.417-
DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 15.04.1988). Ao se analisar detidamente a jurisprudência do
Tribunal, no entanto, é possível verificar-se que, em muitos casos, a Corte não se atenta para os
limites, sempre imprecisos, entre a interpretação conforme delimitada negativamente pelos sentidos
literais do texto e a decisão interpretativa modificativa desses sentidos originais postos pelo
legislador (ADI 3.324, ADI 3.046, ADI 2.652, ADI 1.946, ADI 2.209, ADI 2.596, ADI 2.332, ADI
2.084, ADI 1.797, ADI 2.087, ADI 1.668, ADI 1.344, ADI 2.405, ADI 1.105, ADI 1.127). No
julgamento das ADIs 1.105 e 1.127, ambas de relatoria do Min. Marco Aurélio, o Tribunal, ao
conferir interpretação conforme à Constituição a vários dispositivos do Estatuto da Advocacia (Lei
8.906/1994), acabou adicionando-lhes novo conteúdo normativo, convolando a decisão em
verdadeira interpretação corretiva da lei (ADIn 1.105-DF e ADIn 1.127, rel. orig. Min. Marco
Aurélio, rel. p/ o acórdão Min. Ricardo Lewandowski). Em outros vários casos mais antigos (ADI
3.324, ADI 3.046, ADI 2.652, ADI 1.946, ADI 2.209, ADI 2.596, ADI 2.332, ADI 2.084, ADI
1.797, ADI 2.087, ADI 1.668, ADI 1.344, ADI 2.405, ADI 1.105, ADI 1.127), também é possível
verificar-se que o Tribunal, a pretexto de dar interpretação conforme à Constituição a determinados
dispositivos, acabou proferindo o que a doutrina constitucional, amparada na prática da Corte
Constitucional italiana, tem denominado de decisões manipulativas de efeitos aditivos (...).
Portanto, é certo que o Supremo Tribunal Federal já está se livrando do vetusto dogma do legislador
negativo, aliando-se, assim, à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas
com eficácia aditiva, já adotada pelas principais Cortes Constitucionais do mundo. A assunção de
uma atuação criativa pelo Tribunal pode ser determinante para a solução de antigos problemas
relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causa entraves para a efetivação
de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional. (...) Eu comemoro e
comungo também desse entendimento. É sabido que sou um crítico ferrenho daquele argumento de
que, quando em vez, lançamos mão: de que não podemos fazer isto ou aquilo porque estamos nos
comportando como legislador positivo ou coisa que o valha. Não há nenhuma dúvida de que aqui o
Tribunal está assumindo um papel ativo, ainda que provisoriamente, pois se espera que o legislador
autêntico venha a atuar. Mas é inequívoco que o Tribunal está dando uma resposta de caráter
positivo. Na verdade, essa afirmação – eu já tive oportunidade de destacar – tem de ser relativizada
diante de pretensões que envolvem a produção de norma ou a produção de um mecanismo de
proteção. Deve haver aí uma resposta de caráter positivo. E se o sistema jurídico, de alguma forma,
falha na composição desta resposta aos cidadãos, e se o Poder Judiciário é chamado, de alguma
forma, a substituir o próprio sistema político nessa inação, óbvio que a resposta só pode ser de
caráter positivo. É certo que essa própria afirmação já envolve certo engodo metodológico. Eu diria
que até a fórmula puramente anulatória, quando se cassa uma norma por afirmá-la inconstitucional –
na linha tradicional de Kelsen –, já envolve também uma legislação positiva no sentido de se manter
o status quo, um modelo jurídico contrário à posição que estava anteriormente em vigor.

Como se vê, no mínimo estamos vivenciando uma revisitação ao tema dos limites da interpretação
conforme à Constituição para entender que somente os limites semânticos do texto constituiriam óbice à
atribuição de uma interpretação que adequasse o texto normativo à Constituição, não assumindo
relevância a vontade subjetiva do legislador concreto para o tema, pois, como dito acima, a legislação
protege valores e não meros fatos isoladamente considerados, donde a proteção de um valor cria um
caráter abstrato e indeterminado na norma, que, por sua vez, abarca todos os fatos possuidores de dito
valor, em que é obrigatória a extensão do regime jurídico destinado a uma situação descrita pelo texto da
norma a outras que a ela sejam idênticas ou análogas (mas não tenham sido expressamente citadas pelo
texto normativo), por interpretação extensiva ou analogia, de sorte a se evitarem subjetivismos e
caprichos pessoais do legislador quando da elaboração da legislação em geral, que certamente
ocorreriam caso se permitisse que ele protegesse uma situação em detrimento de outra, apesar de serem
elas idênticas ou análogas, por força da isonomia.

2.4 Da diferença entre a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de nulidade


sem redução de texto de lei
Em decorrência do fato de a interpretação conforme ter sido criada no âmbito jurisprudencial, sem
contornos legislativos claros para tanto, acabou-se, de início, tratando-a como sinônimo de “declaração
parcial de nulidade sem redução de texto de lei”, sendo que a própria jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal já decidiu dessa forma.
Contudo, no caso brasileiro, considerando que o parágrafo único do art. 28 da Lei 9.868/1999
diferenciou ditos institutos (apesar de não conceituá-los), essa equiparação já não se afigura possível em
nosso ordenamento jurídico, apesar de apresentarem certas similitudes – pelo menos em função do
célebre brocardo segundo o qual “a lei não possui palavras inúteis”, pois restaria inútil uma das
expressões do citado artigo legal caso ambas tivessem atribuído a si o mesmo significado jurídico. Tendo
isso em mente, cabe diferenciá-las.
Na interpretação conforme, a lei se apresenta como manifestamente inconstitucional, em
decorrência da discriminação arbitrária ou outra afronta à Constituição decorrente de sua interpretação
meramente literal (gramatical). Por outro lado, na declaração de nulidade parcial sem redução de texto, a
lei se apresenta como aparentemente constitucional, sendo que apenas algumas de suas variantes
interpretativas afiguram-se como inconstitucionais.
Essa diferença gera uma consequência considerável na decisão judicial respectiva: sendo adotada a
declaração de nulidade sem redução de texto, são proibidas determinadas variantes interpretativas da lei
em questão – afinal, como a lei é substancialmente constitucional, então são vedadas apenas as possíveis
interpretações que se mostrem inconstitucionais. Por outro lado, sendo adotada a interpretação
conforme, é fixada a única interpretação válida perante a Constituição Federal, sendo todas as demais
tidas como inconstitucionais80.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O princípio da dignidade da pessoa humana estabelece que todos são merecedores de igual proteção
de sua dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas. Garante a todos, ainda, o direito de busca
da felicidade, desde que não prejudiquem outros nesse processo. Dessa forma, todos os cidadãos são
merecedores da garantia da mesma dignidade pelo ordenamento jurídico: nem mais, nem menos.
Todavia, as demandas jurídicas em geral põem em confronto as dignidades de pelo menos duas
pessoas (autor e réu), uma vez que todos os direitos fundamentais têm, além de seu próprio conteúdo
essencial, um conteúdo maior ou menor de proteção à dignidade humana que os justificam. Por essa
razão, admite-se a relativização do princípio da dignidade da pessoa humana, caso contrário seria
impossível ao juiz decidir o litígio. Mas, para tanto, deve o magistrado (assim como o legislador e o
aplicador do Direito) valer-se do aspecto material da isonomia, que necessariamente deve respeitar o
princípio da proporcionalidade. Ou seja, para que seja válida a relativização da dignidade humana de um
em relação à de outro(s), deve haver um fundamento lógico-racional que a justifique e tal medida deve
ser adequada, necessária e proporcional em sentido estrito, sob pena de inconstitucionalidade por
afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da proporcionalidade.
Por sua vez, a interpretação conforme a Constituição é um mecanismo de controle de
constitucionalidade que visa garantir que determinado texto normativo que possua mais de uma
interpretação possível, sendo apenas uma delas constitucional e as demais inconstitucionais, tenha a si
atribuída apenas a interpretação constitucional, uma vez presentes os requisitos da necessidade e da
utilidade. Nesse sentido, há um equívoco na sua equiparação com a declaração parcial de nulidade sem
redução de texto de lei, porque nesta é proibido o uso de determinadas interpretações inconstitucionais,
ao passo que na interpretação conforme o julgador define a única interpretação constitucionalmente
válida. Ou seja, no primeiro caso tem-se mais de uma interpretação constitucionalmente válida, ao passo
que, no segundo, tem-se apenas uma que o seja. Considerando que ambas as expressões estão previstas
no art. 28 da Lei 9.868/1999, entendimento em sentido contrário que desse a ambas o mesmo significado
jurídico tornaria inútil uma das expressões, em afronta ao célebre princípio geral de Direito segundo o
qual “a lei não possui palavras inúteis”, sendo este mais um motivo para diferenciá-las.
Quanto aos limites da interpretação conforme, a doutrina majoritária aponta para uma “literalidade
do texto normativo” e uma “finalidade do legislador”, no sentido de que não poderia o intérprete-
julgador ultrapassar o suposto sentido literal do enunciado normativo nem contrariar a finalidade do
legislador o elaborou. Contudo, esses limites só podem ser aceitos com reservas; pois, considerando que
a norma jurídica protege valores e não fatos arbitrariamente selecionados, tem-se que mesmo que o
legislador não tenha citado expressamente determinada situação fática, se for idêntica ou, no mínimo,
possuir o mesmo valor (elemento essencial) que conferiu proteção à situação expressamente
regulamentada, então o regime jurídico do texto normativo em questão deverá ser estendido à situação
não citada/não regulamentada pela interpretação extensiva ou pela analogia, conforme o caso, como
decorrência da interpretação conforme a Constituição, visto serem aquelas técnicas hermenêuticas
sucedâneos do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado.

1 “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais
e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (...) Art. 1.º Todos os homens nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito
de fraternidade” (grifos do original).
2 Neste ponto, afirma Ingo Wolfgang Sarlet (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal
de 1988, 2.ª Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 37) que: “(...) o fato é que esta – a dignidade da
pessoa humana – continua, talvez mais do que nunca, a ocupar um lugar central no pensamento filosófico, político e
jurídico, do que dá conta a sua já referida qualificação como valor fundamental da ordem jurídica, para expressivo número
de ordens constitucionais, pelo menos as que nutrem a pretensão de constituírem um Estado democrático de Direito. Da
concepção jusnaturalista – que vivenciava seu apogeu justamente no século XVIII – remanesce, indubitavelmente, a
constatação de que uma ordem constitucional que – de forma direta ou indireta – consagra a ideia da dignidade da pessoa
humana, parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão somente de sua condição humana e independentemente
de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e
pelo Estado” (sem grifo no original).
3 Na lição de Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 92-93): “(...) como ensina Guilherme
Calmon Nogueira da Gama ao falar das novas posturas do direito contemporâneo de família: ‘Cuida-se de adotar posturas
que sejam coerentes com o significado da própria existência do homem na Terra, elucidando os mistérios e segredos da
pessoa humana e do meio que a circunda, tentando atingir o bem existencial mais desejado: o bem-estar social ou, mais
individualmente, a felicidade’”, tendo em vista que “Com os auspícios da família contemporânea de característica plural,
fundada na plena igualdade entre os membros, diárquica quanto à sua direção, ao contrário do modelo anterior que tinha na
figura do pai e marido o chefe absoluto da sociedade conjugal, e eudemonista porque seus membros possuem um direito
moral à felicidade, surge um novo personagem com voz e fala nesse cenário, qual seja: o filho, a criança, o adolescente, a
pessoa ainda em desenvolvimento” (ibidem, p. 99 – sem grifos no original).
4 Vide Luiz Alberto David Araújo (A proteção constitucional do transexual, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p. 74),
para quem: “Não se concebe a ideia de que o Estado Moderno deva buscar um caminho diferente daquele que pressupõe a
felicidade de seus componentes. O homem se organiza para obter felicidade. Submete-se ao regramento do Estado, aceita
suas regras, paga os impostos, limita-se, sabendo, no entanto, que os fins dessa associação só podem levar à busca da
felicidade. (...) Ao arrolar e assegurar princípios como o do Estado Democrático, o da dignidade da pessoa humana e o da
necessidade de promoção do bem de todos, sem qualquer preconceito, o constituinte garantiu o direito à felicidade. Não o
escreveu de forma expressa, mas deixou claro que o Estado, dentro do sistema nacional, tem a função de promover a
felicidade, pois a dignidade, o bem de todos, pressupõe o direito de ser feliz. Ninguém pode conceber um Estado que tenha
como objetivo a promoção do bem de todos possa colaborar para a infelicidade do indivíduo. Portanto, a interpretação
constitucional leva à busca da felicidade do indivíduo, não de sua infelicidade. E, como veremos adiante, felicidade
pressupõe atenção aos valores da minoria” (sem grifos no original). Muito embora o entendimento consagrado seja no
sentido de que o contrato social teria existido com fins à garantia da segurança das pessoas em geral (o que não deixa de
ser verdade), este é só um dos aspectos da questão. As pessoas só se unem para ficar mais seguras porque entendem
que, com isso, terão melhores condições de alcançarem a felicidade. Logo, percebe-se que a teoria aqui defendida não é
contraditória à clássica explicação sobre o contrato social: ao contrário, a teoria aqui esposada é complementar a esta, por
explicar o fundamento teleológico do contrato social.
5 Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1ª
Edição, 2005, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, p. 48 e 50) afirma que: “A sociedade brasileira, refletida na
Constituição de 1988, se pretende mais justa e os direitos fundamentais, de forma explícita no conteúdo do seu artigo 5.º,
afirmaram a proibição de toda e qualquer forma de preconceito ou discriminação. Festejando a igualdade e tendo como
fundamento a dignidade da pessoa humana, buscou inaugurar um novo momento para o povo brasileiro, em que a ciência
do direito, mais do que garantir, deverá promover direitos e, assim, efetivar o sentido maior de cidadania. (...) O expresso
reconhecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, nas palavras de Sérgio Ferraz, constitui-
se na ‘(...) base da própria existência do Estado Brasileiro e, ao mesmo tempo, fim permanente de todas as atividades, é a
criação e manutenção das condições para que as pessoas sejam respeitadas, resguardadas e tuteladas em sua
integridade física e moral, assegurados o desenvolvimento e a possibilidade de plena realização de suas potencialidades e
aptidões’ (sem grifos no original).
6 Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana, Revista dos Tribunais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
ano 91, vol. 797, 2002.
7 Ibidem, p. 13.
8 Essa posição parece ser a da doutrina majoritária que trata do tema, conforme reconhecido por Antônio Junqueira de
Azevedo e colacionado por Ingo Wolfgang Sarlet (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988, 2.ª Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 32 e 33): “Construindo sua concepção a
partir da natureza racional do ser humano, Kant sinala que a autonomia da vontade, entendida como a faculdade de
determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos
seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da natureza humana. Com base nesta premissa, Kant
sustenta que ‘o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente
como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se
dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado
simultaneamente como um fim... Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir é sempre condicional. Os
seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres
irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se
chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser
empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito)’”.
9 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista dos Tribunais, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 797, 2002, p. 25.
10 Na qual são colocados animais na frente de um espelho e se verificam quais conseguem entender que estão olhando para
a sua imagem refletida e não para outro ser – essa experiência demonstrou que os chimpanzés isso entendem; logo, se
autodeterminam.
11 Tanto que, v.g., posiciona-se contrariamente à eutanásia, em juízo de valor cuja cuidadosa e necessária análise ultrapassa
os limites do presente trabalho.
12 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista dos Tribunais, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 797, 2002, p. 19.
13 Ibidem, p. 19.
14 Cf. Ingo Wolfgang Sarlet (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 2. ª
Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 46 a 48), para quem: “Por outro lado, há quem aponte para o
fato de que a dignidade da pessoa humana não deve ser considerada exclusivamente como algo inerente à natureza
humana (no sentido de uma qualidade inata pura e simplesmente), isto na medida em que a dignidade possui também um
sentido cultural, sendo fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo, razão pela qual as dimensões
natural e cultural da dignidade da pessoa se complementam e interagem mutuamente. (...) É justamente nesse sentido que
assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos
poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também
aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade, que voltará a ser referida
oportunamente. Recolhendo aqui a lição de Podlech, poder-se-á afirmar que, na condição de limite da atividade dos poderes
públicos, a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, porquanto
deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado (este sendo considerado o elemento fixo e imutável da
dignidade). Como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade da pessoa reclama que este guie as suas ações tanto
no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade, especialmente criando
condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade, sendo portanto dependente (a dignidade) da ordem
comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas
necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade (este seria,
portanto, o elemento mutável da dignidade)” (sem grifos no original).
15 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 6.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006,
p. 118-119 e 121: “Inicialmente, cumpre salientar que a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é algo que
simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano
como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser
titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, como elemento integrante e irrenunciável da
natureza da pessoa humana, é algo que se reconhece, respeita e protege, mas não que possa ser criado ou lhe possa ser
retirado, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. Não é, portanto, sem razão que se sustentou até
mesmo a desnecessidade de uma definição jurídica da dignidade da pessoa humana, na medida em que, em última
análise, se cuida do valor próprio, da natureza do ser humano como tal. Além disso, como já visto, não se deve olvidar que
a dignidade independe das circunstâncias concretas, sendo algo inerente a toda e qualquer pessoa humana, de tal sorte
que todos, mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade. Na formulação feliz de Jorge Miranda, o fato de os
seres humanos (todos) serem dotados de razão e consciência representa justamente o denominador comum a todos os
homens e que expressa em que consiste sua igualdade. (...) Nesta mesma linha, situa-se a doutrina de Günter Dürig (...).
Segundo este renomado autor, a dignidade da pessoa humana consiste no fato de que ‘cada ser humano é humano por
força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria decisão,
tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que o
circunda’. À luz do que dispõe a Declaração Universal da ONU, bem como dos entendimentos citados a título
exemplificativo, verifica-se que o elemento nuclear da dignidade da pessoa humana parece residir – e a doutrina majoritária
conforta este entendimento – primordialmente na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (de cada pessoa).
Importa, contudo, ter presente a circunstância de que esta liberdade (autonomia) é considerada em abstrato, como sendo a
capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminar sua conduta, não dependendo da sua efetiva realização
no caso da pessoa em concreto, de tal sorte que também o absolutamente incapaz (por exemplo, o portador de grave
deficiência mental) possui exatamente a mesma dignidade que qualquer outro ser humano física e mentalmente capaz. (...)
Com base em tudo que até agora foi exposto, verifica-se que reduzir a uma fórmula abstrata e genérica aquilo que constitui
o conteúdo da dignidade da pessoa humana, em outras palavras, seu âmbito de proteção, não parece ser possível, a não
ser mediante a devida análise no caso concreto. Como ponto de partida, vale citar a fórmula desenvolvida na Alemanha por
G. Dürig, para quem a dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta (o
indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, em outras palavras, na
descaracterização da pessoa humana como sujeito de direitos. Esta fórmula, por evidente, não oferece uma solução global
para o problema (já que não define previamente o que deve ser protegido), mas permite a verificação, no caso concreto, da
existência de uma efetiva agressão contra a dignidade da pessoa humana, fornecendo, ao menos, uma direção a ser
seguida” (sem grifos no original) No mesmo sentido, reiterando o citado posicionamento: SARLET, Ingo Wolfgang. As
dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível, in
SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 21-22.
16 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 2.ª
Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 115.
17 Ibidem, p. 117.
18 No original (ibidem, p. 70 e 74): “(...) Inspirando-se – neste particular – especialmente no constitucionalismo lusitano e
hispânico, o Constituinte de 1988 preferiu não incluir a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias
fundamentais, guindando-a, pela primeira vez – consoante já reiteradamente frisado – à condição de princípio (e valor)
fundamental (artigo 1.º, inciso III). (...) a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a
certeza de que o artigo 1.º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma
declaração de cunho ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status
constitucional formal e material e, como tal, inequivocamente carregado de eficácia, alcançando, portanto – tal como
sinalizou Benda – a condição de valor jurídico fundamental da comunidade. Importa considerar, neste contexto, que, na sua
qualidade de princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos
fundamentais mas de toda a ordem jurídica (constitucional e infraconstitucional), razão pela qual, para muitos, se justifica
plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-normativa (höchstes
wertsetzendes Verfassungsprinzip) (sem grifos no original).
19 Ou, ao menos, a sua maior parte, sendo os demais oriundos de outros princípios fundamentais da Carta da República.
20 “Art. 5.º, § 2.º: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
21 Vide, nesse sentido: SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988, 2.ª Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 104 e ss. Vale aqui ressaltar, como o faz o
autor, que o fato de um direito humano fundamental possuir conteúdo em dignidade da pessoa humana não significa, em
hipótese alguma, que esse direito confunde-se com a noção de dignidade da pessoa humana. Ainda que exista quem
defenda o contrário, tem-se que, apesar de esses direitos fundamentais já estarem impregnados de certa quantia de
dignidade humana em seu conteúdo, têm eles conteúdo essencial distinto do conteúdo essencial da dignidade humana,
sendo esta a razão que os diferencia e inclusive que possibilita deduzir-se autonomamente da dignidade humana (ou seja,
sem a necessidade de apelar a um dos direitos fundamentais), nas palavras do citado autor, “pretensões jurídico-subjetivas
fundamentais”.
22 Nesse sentido, a advertência do autor (ibidem, p. 100, 102-104) no sentido de que: “Nesta quadra, um dos maiores desafios
para quem se ocupa do estudo da abertura material do catálogo dos direitos e garantias é justamente o de identificar quais
os critérios que poderão servir de fundamento para a localização daquelas posições jurídico​-fundamentais como tais não
expressamente designadas pelo Constituinte. (...) Aplica-se aqui a concepção subjacente ao pensamento de Laurence
Tribe, no sentido de que a dignidade (assim como a Constituição) não deve ser tratada como um espelho no qual todos
veem o que desejam ver, pena de a própria noção de dignidade e sua força normativa ser banalizada e esvaziada. O que se
pretende demonstrar, nesse contexto, é que o princípio da dignidade da pessoa humana assume posição de destaque,
servindo como diretriz material para a identificação de direitos implícitos (tanto de cunho defensivo como prestacional) e, de
modo especial, sediados em outras partes da Constituição. (...) Assim, o fato é que – e isto temos por certo – sempre que
se puder detectar, mesmo para além de outros critérios que possam incidir na espécie, estamos aqui diante de uma
posição jurídica diretamente embasada e relacionada (no sentido de essencial à sua proteção) à dignidade da pessoa,
inequivocamente estaremos diante de uma norma de direito fundamental, sem desconsiderar a evidência de que tal tarefa
não prescinde do acurado exame de cada caso (sem grifos no original).
23 Ibidem, p. 123 e seguintes.
24 Cumpre ressaltar que Ingo Sarlet ressalva a possibilidade de se entender que, a partir do pressuposto de que o núcleo
essencial dos direitos fundamentais não se confunde necessariamente com seu conteúdo em dignidade (isso naqueles
direitos que têm na dignidade humana seu fundamento mediato), ter-se-ia, nesse caso, uma restrição do direito à liberdade
da pessoa com sua prisão, sem descurar do fato de que, mesmo tolhida de sua liberdade, a pessoa merece receber um
tratamento digno do Estado (ibidem, p. 139). Todavia, parece-me que uma pessoa que viva em uma prisão acaba por ter
uma vida menos digna que uma pessoa que viva em liberdade, na medida em que uma vida digna não se afigura possível
em um ambiente sem privacidade e mesmo intimidade, como nos presídios (ainda que o núcleo essencial da dignidade da
pessoa humana não se confunda com o dos direitos fundamentais em geral, pelo menos estes aqui citados, que
constituem concretização da dignidade humana, razão pela qual uma vida sem privacidade e intimidade acaba sendo
menos digna do que a vida com tais condições).
25 Ibidem, p. 129.
26 Ibidem, p. 120.
27 Esta parece ser a posição de Ingo Wolfgang Sarlet quando afirma que: “Assim, considerando que também o princípio
isonômico (no sentido de tratar os desiguais de forma desigual) é, por sua vez, corolário direto da dignidade, forçoso admitir
– pena de restarem sem solução boa parte dos casos concretos – que a própria dignidade individual acaba, ao menos de
acordo com o que admite parte da doutrina constitucional contemporânea, por admitir certa relativização, desde que
justificada pela necessidade de proteção da dignidade de terceiros, especialmente quando se trata de resguardar a
dignidade de todos os integrantes de uma determinada comunidade” (ibidem, p. 133-134 – sem grifo no original).
28 BARROSO, Luís Roberto. “Here, there and everywhere”. Human Dignity in contemporary law and in the transnational
discourse, pp. 70-71. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1945741> (último acesso em: 08 jan. 2012).
29 Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p.
74 (trecho original já transcrito em nota anterior).
30 Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet (As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão
jurídico-constitucional necessária e possível, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de
Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 23) apesar de afirmar que “a
própria dimensão ontológica (embora não necessariamente biológica) da dignidade assume seu pleno significado em
função do contexto da intersubjetividade que marca todas as relações humanas e, portanto, também o reconhecimento dos
valores (assim como princípios e direitos fundamentais) socialmente consagrados pela e para a comunidade de pessoas
humanas”, afirma, com base em Pérez Luño, que se “sustenta uma dimensão intersubjetiva da dignidade, partindo da
situação básica do ser humano em sua relação com os demais (do ser com os outros), em vez de fazê-lo em função do
homem singular, limitado a sua esfera individual sem que com isto – importa frisá-lo desde logo – se esteja a advogar a
justificação de sacrifícios da dignidade pessoal em prol da comunidade, no sentido de uma funcionalização da dignidade”
(sem grifo no original).
31 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, Tradução de Ingo W. Sarlet e Pedro
Scherer de Mello Aleixo, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e
Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 126.
32 Nesse sentido, a lição de J. C. Gonçalves Loureiro, para quem “a dignidade da pessoa humana – no âmbito de sua
perspectiva intersubjetiva – implica uma obrigação geral de respeito pela pessoa (pelo seu valor intrínseco como pessoa),
traduzida num feixe de deveres e direitos correlativos, de natureza não meramente instrumental, mas sim, relativos a um
conjunto de bens indispensáveis ao ‘florescimento humano’” (LOUREIRO, J. C. Gonçalves, O Direito à Identidade Genética
do Ser Humano, p. 281, apud SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma
compreensão jurídico-constitucional necessária e possível, in SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade:
Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 24).
33 Ibidem, p. 24-25 (sem grifo no original).
34 Ibidem, p. 26 (sem grifo no original).
35 Ibidem, p. 32 (sem grifo no original).
36 Ibidem, p. 27.
37 Em sentido similar, por eles melhor trabalhado, afirmam José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira (CRP –
Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.a Edição brasileira, 4.a Edição portuguesa, Coimbra: Coimbra Editora e
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 609) que a liberdade de consciência “é a convicção ética e a autónoma
responsabilidade reivindicada por qualquer indivíduo para justificar o seu comportamento”, ou seja, “a liberdade de formação
das próprias convicções (forum internum)” e a “exteriorização da decisão de consciência (forum externum)”.
38 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico​-
constitucional necessária e possível, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do
Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 34-35.
39 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Marco Aurélio, pp. 11-12.
40 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, p. 35, 36 e 37-38 – grifos nossos.
41 Ibidem, p. 37 (sem grifos no original).
42 KANT apud SEELMAN, Kurt. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel, Tradução de Rita Dostal Zanini
in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 46.
43 Ibidem, p. 47.
44 Cf. MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana… ou pequena fuga incompleta em torno de
um tema central, Tradução de Rita Dostal Zandini, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de
Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 83.
45 SEELMAN, Kurt. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel, Tradução de Rita Dostal Zanini, in: SARLET,
Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005, p. 76.
46 Vale aclarar que este não é o conceito de moral de Kant, para quem o agir de forma moral está relacionado ao imperativo
categórico, ou seja (e parafraseando), agir de tal forma que sua conduta possa ser universalizada. Claro, exigir que as
pessoas ajam apenas de tal forma que suas condutas possam ser universalizadas acaba por abrir espaço para
totalitarismos, ou seja, imposição de uma homogeneidade de condutas incompatível com o pluralismo social do mundo
contemporâneo. Não estou dizendo que Kant tinha esse ideal totalitário em mente, de forma alguma, o que digo é que essa
exigência pode levar a alguma espécie de totalitarismo, o que imagino que não tenha sido percebido por Kant.
47 Meu conceito de racionalidade deriva de uma construção a partir das conceituações do Dicionário Houaiss, para o qual
razão significa a “faculdade de raciocinar, de apreender, de compreender, de ponderar, de julgar (...) raciocínio que conduz à
indução ou dedução de algo (...) capacidade de avaliar com correção, com discernimento; bom-senso, juízo (...) justificação
de um ato; explicação de um fato; argumento, motivo” (Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, 2.a
reimpressão com alterações, 2007, p. 2389); raciocinar implica “fazer uso da razão para estabelecer relações entre (coisas
e fatos), para entender, calcular, deduzir, julgar (algo); refletir (...) apresentar razões, ponderar” (ibidem, p. 2373); sendo,
portanto, racional aquilo “em que há coerência, lógica (...) que demonstra bom-senso ou juízo ponderado; sensato” (ibidem,
p. 2373).
48 SEELMAN, Kurt. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel, Tradução de Rita Dostal Zanini, in: SARLET,
Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005, p. 53. Ainda segundo a concepção hegeliana: “Aquele que não reconhece o outro como livre,
isto é, não o reconhece como igual na competência da titularidade de direitos ou como indivíduo particular com suas
necessidades específicas, degrada-o” (ibidem, p. 54-55). Ademais, “Sua concepção de dignidade da pessoa humana deixa-
se compreender, mais provavelmente, como uma diretriz no sentido da proteção da possibilitação de realizar prestações –
e não como uma compensação por tais prestações. O reconhecimento recíproco é o fundamento da dignidade e, ao
mesmo tempo, a consequência por um estado juridicamente ordenado” (ibidem, p. 59).
49 CHAUNU apud MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana… ou pequena fuga incompleta
em torno de um tema central, Tradução de Rita Dostal Zandini, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade:
Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 78.
50 Ibidem, p. 79.
51 MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana… ou pequena fuga incompleta em torno de um
tema central, Tradução de Rita Dostal Zandini, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de
Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 80.
52 Ibidem, p. 81.
53 Ibidem, p. 85.
54 BverfGE 24, 119 (144) apud HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, Tradução de
Ingo W. Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de
Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 100 (em nota de rodapé).
55 DÜRIG apud HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, Tradução de Ingo W. Sarlet
e Pedro Scherer de Mello Aleixo, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito
e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 119.
56 PODLECH apud HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, Tradução de Ingo W.
Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do
Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 123 (sem grifos no original).
57 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, Tradução de Ingo W. Sarlet e Pedro
Scherer de Mello Aleixo, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e
Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 132-133 (sem destaques no original).
58 Ibidem, p. 137.
59 KOEPFLER, Michael. Vida e dignidade da pessoa humana. Tradução de Rita Dostal Zanini, in: SARLET, Ingo Wolfgang
(org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 163.
60 RAWLS apud VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição como reserva de justiça, Lua Nova, n. 42, p. 62.
61 MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 403 (posição de Paulo Gustavo Gonet Branco).
62 Ibidem, p. 403.
63 Peço que não se desafie a inteligência dizendo que isso faria que se permitissem atos obscenos, como muitos opositores
do Projeto de Lei da Câmara 122/06 fazem (o PLC 122/06 visa criminalizar a discriminação por orientação sexual e por
identidade de gênero, incluindo ditas discriminações no tipo penal de racismo, projeto este já aprovado na Câmara dos
Deputados e que aguarda votação pelo Senado). Ora, é mais do que evidente que a proibição à repressão da manifestação
da afetividade dos casais homoafetivos visa garantir a estes que manifestem publicamente seu afeto da mesma forma que
é permitido a casais heteroafetivos manifestarem – nem mais, nem menos, donde, como não se permitem atos obscenos
entre casais heteroafetivos, também não se permitirão entre casais homoafetivos, sendo que, em nenhum momento, se
pleiteia “direito a obscenidades”. Mas os locais que permitem manifestações de afeto não obscenas – tais como andar de
mãos dadas, abraçados(as), tratar-se reciprocamente como namorados(as) etc. – entre casais heteroafetivos devem,
obrigatoriamente (mesmo hoje), permiti-las aos casais homoafetivos por força do princípio constitucional da igualdade, que
veda diferenciações desprovidas de uma fundamentação lógico-racional que as fundamentem. Visa este projeto garantir
que casais homoafetivos e LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) em geral sejam respeitados,
garantindo que sejam tratados isonomicamente e com igual dignidade em relação a casais heteroafetivos e heterossexuais
em geral, donde se afigura plenamente constitucional. Não se trata de “mordaça gay” como muitos inacreditavelmente
pregam: trata-se apenas de imposição legal de respeito devido à histórica discriminação sofrida por homossexuais e
transexuais ao longo da história. Não afronta a liberdade de expressão porque esta não é absoluta (como nenhum direito
fundamental é) e não garante o direito a ofender ou arbitrariamente reprimir terceiros, sendo que o PLC 122/06 visa tão
somente impedir ditas ofensas e discriminações contra homossexuais e transexuais. Com efeito, o PLC 122/2006 visa
criminalizar a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero, incluindo-a no tipo penal de racismo. Lembre-
se, nesse sentido, de que o tipo penal de “racismo” engloba hoje a discriminação por cor de pele, etnia, procedência
nacional e religião, sendo que a este rol pretende o citado projeto de lei incluir a orientação sexual e a identidade de gênero.
Há ferrenhos opositores dessa inclusão, sob o fundamento de que a “liberdade de expressão” estaria afrontada, sendo que
homossexuais estariam sendo alçados a uma “casta superior” da sociedade. Contudo, trata-se de equívoco gritante. Em
primeiro lugar, porque não é a “discriminação homofóbica” que estará sendo criminalizada, mas a discriminação “por
orientação sexual”, em que heterossexuais discriminados também estarão sendo vítimas do novo crime. Segundo, ninguém
tem o direito de ofender nem de discriminar arbitrariamente o outro, pois as liberdades de expressão, de religião e de crença
não garantem o direito a ofensas e à difusão de mentiras. Criticar um homossexual por sua mera homossexualidade é algo
tão descabido quanto criticar um negro por sua mera cor de pele, visto que (como a cor de pele) a orientação sexual não
tem absolutamente nenhuma relação com caráter, criminalidade, promiscuidade, pedofilia nem nada do gênero
(associações que, por vezes, são arbitrariamente feitas à homossexualidade por homofóbicos ou ignorantes – pessoas que
desconhecem o tema). Terceiro, a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero sofrida é tão histórica e
estigmatizante quanto a discriminação por cor de pele, etnia, procedência nacional e religião, logo, se a discriminação por
estes critérios pode gerar o crime de racismo, então não há nenhum óbice que a orientação sexual também o seja, ante o
aspecto material da isonomia (explicitado no capítulo seguinte). Por fim, não há afronta à liberdade religiosa (de crença,
culto etc.) porque evidentemente não se punirá a mera afirmação da homossexualidade como pecado, pois há livros
sagrados de determinadas religiões que isto afirmam em sua literalidade (embora, ao menos no caso da Bíblia, a
interpretação histórico-crítica demonstre não haver nada pecaminoso na mera homossexualidade, como demonstram
estudos específicos do tema – por exemplo, o de Daniel A. Helminiak, exposto neste trabalho). O que se criminalizará é a
discriminação, a ofensa, a humilhação do homossexual. Afinal, uma coisa é um religioso dizer em seu templo de culto, em
uma abordagem da homossexualidade, que a homossexualidade é pecado (sic). Outra, bem diferente, é afirmar que o
homossexual seria uma pessoa sem caráter, inerentemente promíscuo e/ou pedófilo, incapaz de criar crianças e
adolescentes com amor e dedicação etc. No primeiro caso, tem-se a descrição de algo que está escrito em um livro
religioso, no qual a liberdade religiosa aliada à liberdade de expressão permite sua divulgação; no segundo caso, tem-se
afirmações não referendadas pela literalidade de nenhum livro religioso ou doutrina religiosa e sem nenhuma comprovação
empírico-científica que lhes fundamente, pautadas unicamente no subjetivismo (vulgo achismo) daquele que faz tais
afirmações, de sorte a configurar um verdadeiro discurso de ódio puramente discriminatório. Assim, no primeiro caso, não
ocorrerá a tipificação do crime mesmo com a aprovação do PLC 122/2006, tipificação que ocorrerá no segundo caso.
Afinal, a liberdade de expressão não abarca discursos de ódio, mesmo que praticados sob o escudo da liberdade religiosa
(para fins históricos, cumpre lembrar que a Ku Klux Klan era uma organização terrorista que se dizia pautada na ideologia
cristã que pregava negros como seres inferiores aos brancos, os ofendiam e os chamavam de animais e outros
impropérios do gênero). Pois bem: da mesma forma que a liberdade de expressão aliada à liberdade religiosa não protegia
os discursos de ódio perpetrados pela Ku Klux Klan contra negros, elas igualmente não protegem discursos que
menosprezam os não heterossexuais em relação aos heterossexuais, visto que tal menosprezo configura discurso de ódio
ou, no mínimo, um discurso preconceituoso puramente discriminatório, visto que desprovido de comprovação empírico-
científica e mesmo de argumentos lógico-racionais que lhes justifiquem. Considerando que a liberdade é o direito de fazer
tudo o que se queira desde que não se prejudiquem terceiros e considerando que os discursos de ódio são manifestações
ofensivas e/ou que visam perpetrar o preconceito e/ou a discriminação contra determinada(s) pessoa(s) ou grupo de
pessoas, tem-se que os discursos de ódio não se enquadram no âmbito de proteção da liberdade de expressão, em que
não cabe sequer invocá-la para se defender a inconstitucionalidade da discriminação por orientação sexual ou por
identidade de gênero – mesmo porque referida criminalização atende aos ditames do próprio Direito Penal Mínimo, que
prega a pertinência de criminalizações apenas quando resguardem um bem jurídico relevante (de natureza constitucional) e
que os demais ramos do Direito não sejam aptos a resolver o problema, pois tal criminalização visa resguardar o direito à
tolerância (a ser tolerado), no sentido de não ser agredido e/ou ofendido, o que tem base constitucional no dispositivo que
veda preconceitos e discriminações de quaisquer espécies (art. 3.º, inc. IV), ao passo que leis antidiscriminatórias de cunho
administrativo que preveem punições como advertências, multas, suspensões e cassações de licença de funcionamento
ou, no caso de funcionários públicos, punições de acordo com a legislação própria (como faz a Lei Estadual Paulista
10.948/2001) não têm se mostrado efetivas para coibir a discriminação por orientação sexual ou por identidade de gênero.
Não que se espere que uma lei criminal, isoladamente considerada, resolva o problema; claro que o combate a referidas
discriminações demanda políticas públicas de sensibilização e consequente conscientização da sociedade acerca de seu
descabimento (bem como a capacitação de funcionários públicos e do setor privado em geral sobre a necessidade de tratar
com igual respeito e consideração a população LGBT relativamente ao tratamento dispensado às pessoas em geral (LGBT:
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, cabendo mencionar também as pessoas Intersexuais), o que se
afirma é que, considerando que a ideologia do Direito Penal Mínimo prega a pertinência da criminalização apenas quando os
demais ramos do Direito não se mostrem aptos a resolver o problema, então essa ineficiência dos demais ramos jurídicos
justifica a criminalização da(s) conduta(s) em questão. Para maiores desenvolvimentos, vide Constitucionalidade da
classificação da homofobia como racismo (PLC 122/2006). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. DIAS, Maria
Berenice (org.). São Paulo: RT, 2011, p. 511-528.
64 Por oportuno, aponto ainda que entendo ser o direito ao respeito um direito fundamental implícito: (i) ao princípio do Estado
de Direito (art. 1.o da CF/1988), que consagra a noção de contrato social da sociedade, se a vida em sociedade supõe que
se abra mão da liberdade absoluta para ter uma liberdade relativa, entendida como aquela que não afronta os ditames do
ordenamento jurídico (em especial os direitos fundamentais dos demais cidadãos), então é evidente que o respeito ao
próximo é inerente à própria vida em sociedade, pois quem desrespeita outrem age como se tivesse liberdade absoluta
para tratar este terceiro como bem entendesse, o que é contrário à própria noção de contrato social que rege a vida em
sociedade; (ii) aos princípios da justiça, da pluralidade político-ideológica e da proibição de preconceitos (art. 3.o, I e IV, da
CF/1988), pois a noção de justiça implica ter sua pessoa respeitada por terceiros.
65 Quanto a essa teoria, afirma Eduardo Fernando Appio (Interpretação Conforme a Constituição: Instrumentos de Tutela
Jurisdicional dos Direitos Fundamentais, 1.ª Edição (ano 2002), 3.ª tiragem, Curitiba: Juruá Editora, 2004, p. 29) que: “Os
autores que pugnam em favor desta concepção entendem que, diante de uma ‘polissemia semântica’, quando forem
possíveis vários sentidos em relação a uma mesma norma legal, extraída de um texto de lei, o intérprete, após esgotar os
meios interpretativos tradicionais, deve-se socorrer da Constituição Federal, como ‘topos’ hermenêutico, optando por uma
interpretação restritiva ou ampliativa do dispositivo, no intuito de conformá-lo com a Constituição Federal. Partindo-se da
concepção de que, na interpretação das leis, existiriam duas correntes tradicionais básicas – a objetivista e a subjetivista –
a interpretação conforme, enquanto método, estaria vinculada à última corrente, ou seja, estar-se-ia buscando a vontade do
legislador. Partindo-se da premissa de que o legislador não exerceria sua atividade em desconformidade com as normas
constitucionais, o intérprete do texto infraconstitucional opta por uma ampliação, ou redução, de seu sentido, de modo a
preservar a chamada ‘presunção de constitucionalidade das leis’”.
66 Esta é a posição do autor citado na nota anterior, com a qual se concorda.
67 Nesse sentido, afirma Eduardo Fernando Appio: “Caso a interpretação conforme redunde na eliminação do núcleo
essencial de um determinado princípio previsto na Constituição Federal, não restará ao julgador alternativa senão a
declaração de inconstitucionalidade, de modo a permitir a edição de uma lei futura que corrija a nulidade ou mesmo a
resolução posterior dos casos que pretendia regular, através da aplicação de outras leis ou mesmo de princípios jurídicos”
(ibidem, p. 32-33).
68 Ibidem, p. 43.
69 “Portanto, com a utilização da interpretação conforme, o julgador ressalva que a lei examinada em princípio se apresenta
como nula, porque maculada com o vício da inconstitucionalidade, seja material (afronta aos princípios e regras da
Constituição), seja formal (inobservância do devido processo legislativo), excluindo determinadas ‘construções exegéticas’
em prol da supremacia da Constituição e do máximo aproveitamento dos atos legislativos. (...) Nesse ponto, a interpretação
da norma em conformidade com a Constituição serve como fundamento para expulsão de variantes hermenêuticas do
texto, na medida em que a solução para a lide depende de um juízo acerca da constitucionalidade da norma” (ibidem, p. 35-
36).
70 Tal pode ser melhor compreendido após a análise do requisito da “necessidade” da interpretação conforme, que se
encontra explicitado no próximo tópico.
71 Em verdade, há uma possibilidade de pena de morte no Brasil, oriunda do art. 5.º, XLVII, que define que “não haverá pena
de morte, salvo no caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX” (grifo nosso). O Código Penal Militar regulamenta
a hipótese de pena de morte em caso de guerra declarada.
72 APPIO, Eduardo Fernando. Interpretação Conforme a Constituição: Instrumentos de Tutela Jurisdicional dos Direitos
Fundamentais, 1.ª Edição (ano 2002), 3.ª tiragem, Curitiba: Juruá Editora, 2004, p. 39.
73 Ibidem, p. 41.
74 Mais bem definida como teoria da separação das funções do poder, que é uno, conforme lição consagrada da doutrina
constitucionalista, que ressalva a utilização da referida expressão pela sua tradição.
75 “Art. 4.º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de
direito.”
76 “Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide
caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia aos costumes e aos princípios gerais de direito.”
77 Pode-se dizer que o debate relativo a este tema da limitação da interpretação conforme coloca frente a frente as correntes
subjetivista e objetivista do Direito. Nesse sentido, afirma Eduardo Fernando Appio (Interpretação Conforme a Constituição:
Instrumentos de Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais, 1.ª Edição (ano 2002), 3.ª tiragem, Curitiba: Juruá Editora,
2004, p. 45): “Em verdade, trava-se o debate entre a corrente subjetivista – a qual almeja alcançar a verdadeira a única
vontade do legislador – e a corrente objetivista, a qual, de modo inverso, advoga que, a partir da edição da lei, a ‘criatura’ se
desprende e se autonomiza em relação ao seu ‘criador’. Em outras palavras, para os adeptos desta última vertente
doutrinal, a vontade efetiva do legislador é um dado irrelevante – e sua descoberta efetiva impossível – sendo certo que a lei
possui autonomia tal que permite ao intérprete dar-lhe a sua conformação, na medida em que reputa que o legislador pode
ter editado uma lei com outra finalidade, tendo produzido efeitos (válidos) não desejados”. À evidência, adere-se aqui à
corrente objetivista.
78 Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 19.a Edição, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, p. 15-
27. No mesmo sentido, vale citar novamente a lição de Eduardo Fernando Appio, ao criticar a corrente que classifica a
natureza jurídica da interpretação conforme como um método de interpretação equiparável às interpretações extensiva e
restritiva, pois: “(...) agregada à corrente subjetivista, [essa corrente] desconsidera o fato de que, em qualquer interpretação,
existe uma fusão de horizontes entre o texto interpretando e seu intérprete, sendo ultrapassada a premissa fundada na
filosofia da consciência. Ou seja, o sujeito (intérprete) não se apropria de um conhecimento ontológico da coisa em si (texto
de lei interpretado), mas sim, funde sua concepção de mundo e suas pré-compreensões com a norma que se pretende
interpretar. Neste quadrante, a vontade do legislador ingressa como um dos elementos através dos quais se chegará ao
resultado do processo hermenêutico, mas não o único e nem o mais importante. Recorde-se, ainda, que o texto de um
projeto de lei é fruto de várias vontades, passando por diversas comissões temáticas, durante o processo legislativo,
inclusive com a possibilidade de sua emenda, até que seja votada na Casa Legislativa. Deste modo, nem mesmo com o
atento acompanhamento do processo legislativo ou leitura da justificativa do projeto seria possível inferir a vontade de um
grupo de legisladores. Em verdade, após a edição da lei, esta assume tal autonomia que o seu alcance e sentido serão,
efetivamente, definidos pela comunidade jurídica, incluindo as pessoas leigas de uma determinada sociedade. Um mesmo
texto de lei, após reiterada interpretação, vai ‘amadurecendo’ seu sentido e alcance, seja no debate que se estabelece nos
meios de comunicação social, seja na leitura que se faz nos Tribunais. Assim, somente com a edição de uma lei
interpretativa posterior, teríamos uma possível, mas ainda contestável, definição da ‘vontade do legislador’, mesmo assim
com ressalvas dada a alteração no contingente das Casas Legislativas” (APPIO, op. cit., pp. 29-30 – sem grifos no original).
79 Voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 4-5, 7-8, 10-11 e 16-17.
80 “A diferença, portanto, é de sinal. Enquanto a declaração parcial de nulidade possui efeito principal negativo (em relação a
determinadas interpretações, hipotetizadas pelo julgador), a interpretação conforme tem efeito principal positivo, na medida
em que elege a única interpretação possível, vinculando juízes e administração” (ibidem, p. 79 – sem grifos no original).
Capítulo 5

A FAMÍLIA JURIDICAMENTE PROTEGIDA E A HOMOAFETIVIDADE


NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

“O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.”1 – Maria Berenice Dias,
Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; Advogada, Fundadora
e Vice-Presidente do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família.

1. O VAZIO LEGISLATIVO QUANTO ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS. DA AUSÊNCIA DE


PROIBIÇÃO LEGAL
A legislação brasileira nada dispõe acerca da união homoafetiva – não a proíbe, mas também não
trata especificamente do tema. Dessa forma, há um vazio legislativo no que concerne à relação
homoafetiva entre pessoas brasileiras2, em que se caracteriza uma lacuna normativa acerca do tema.
Ante a inexistência de regulamentação expressa de dita relação, muitos magistrados já entenderam
por impossível juridicamente o pedido de um homossexual que requer a meação do patrimônio formado
durante anos de convivência com seu parceiro quando este vem a falecer ou quando do término do
relacionamento entre ambos. Justificam esta posição por entenderem que a relação entre duas pessoas do
mesmo sexo não seria geradora de uma entidade familiar, ao contrário do que ocorre com as relações
heteroafetivas. Assim, partindo da visão equivocada de que somente as relações heteroafetivas
mereceriam proteção do Direito, ante a inexistência de textos normativos que regulamentem
expressamente as relações homoafetivas, acaba a Justiça por cometer graves injustiças, uma vez que
deixa à margem do Direito uma parcela considerável dos cidadãos, “sob o fundamento simplista de
inexistir uma norma legal que, de modo expresso, assegure [o] direito”3 daqueles que fogem dos padrões
considerados “corretos” pela maioria.
Todavia, mesmo diante da atual legislação brasileira, omissa em relação ao tema, há meios de se
garantir que a relação homoafetiva seja devidamente protegida, conforme se passa a demonstrar.

1.1 Soluções ao vazio legislativo: a analogia, a interpretação extensiva e os princípios gerais do


Direito
Data maxima venia, o entendimento jurisprudencial apontado no tópico anterior não merece
prosperar, haja vista termos em nosso ordenamento jurídico mecanismos que garantem a preservação dos
direitos dos cidadãos mesmo nos casos de vazios legislativos.
Em primeiro lugar, não obstante a inexistência de regulamentação expressa das relações
homoafetivas, tem-se como princípio geral de Direito que aquilo que não é expressamente proibido tem-
se por permitido. É a célebre máxima de Kelsen4, inclusive positivada por nossa Constituição em seu art.
5.º, II, segundo a qual ninguém será obrigado a deixar de fazer algo senão em virtude de lei (leia-se: texto
normativo expresso). Como a lei não proíbe expressamente as uniões homoafetivas, tem-se que o não
reconhecimento de efeitos jurídicos a estas, na exata medida em que são reconhecidos às uniões
heteroafetivas, conforme adiante se analisará detidamente, caracteriza uma afronta aos princípios
constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana, os quais constituem cláusulas pétreas da
Constituição Federal, normas constitucionais de eficácia plena e inclusive direitos humanos
fundamentais, assim reconhecidos pela mesma.
Dessa forma, o não reconhecimento de efeitos jurídicos atinentes ao Direito das Famílias às uniões
homoafetivas caracteriza afronta à Constituição Federal, tendo em vista que o princípio da isonomia não
admite tratamento preconceituoso para quem quer que seja. Ademais, exige o mencionado princípio que
tal tratamento diferenciado deva ser necessariamente fundamentado com provas de sua pertinência, sendo
que a discriminação juridicamente válida supõe, ainda, que dita diferenciação seja coerente com os
demais valores constitucionais. Outrossim, a dignidade da pessoa humana garante que todas as pessoas
são igualmente dignas pelo simples fato de serem pessoas humanas, independentemente de quaisquer
características suas, donde é incoerente com esse princípio, e consequentemente inconstitucional, o
tratamento menos digno hoje ofertado às uniões homoafetivas em comparação com as heteroafetivas.
Isso se confirma pela leitura do próprio caput do art. 5.º de nossa Constituição Federal, que proíbe
discriminações de qualquer natureza, o que, obviamente, proíbe a discriminação por orientação sexual
(por consequência do princípio da isonomia em seus aspectos formal e material, já explicitados no
capítulo 3), e pelo fato de seu art. 1.º, III, erigir a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos
de nosso Estado Democrático e Social de Direito.

1.2 A função do legislador


Há o entendimento de que caberia ao Direito regulamentar apenas as situações comuns, corriqueiras
e cotidianas da sociedade, “sendo que tudo aquilo que for excepcional deve ser tratado sob regime de
exceção”5. Partindo dessa premissa, há o entendimento doutrinário de que o “comum”, no tocante à
sexualidade humana, seria a relação heteroafetiva, tendo assim o legislador que se preocupar unicamente
em regulamentar a vida dos heterossexuais, deixando de lado os homossexuais, minoria que são em
relação àqueles. Contudo, é equivocado esse entendimento. Cabe ao legislador regulamentar todas as
situações existentes em sua sociedade, tanto as concernentes à maioria da população quanto, e
especialmente, as referentes aos direitos das minorias. Tal se justifica porque aquele que faz parte de
uma minoria costuma ser discriminado justamente por ser diferente, por não se enquadrar ao “padrão”
imposto pela sociedade.
O ser humano parece ter uma grande dificuldade em aceitar aquilo que não entende; aquilo que, por
ser diferente, não está acostumado a lidar. Destarte, pessoas pertencentes a grupos minoritários nas
sociedades são comumente discriminadas pelas maiorias. Assim, cabe ao legislador garantir a essas
minorias mecanismos legais específicos para que, tendo seus direitos desrespeitados, possam ingressar
no Judiciário contra o ofensor6.
Por outro lado, é de se ressaltar que, a rigor, não seriam necessários tais instrumentos em hipótese
alguma, devido ao já explicitado princípio da isonomia: sendo todos iguais perante a lei e garantindo a
todos o direito à igualdade, admitida a discriminação apenas quando comprovada lógica e racionalmente
a sua pertinência, não haveria que se falar da necessidade de leis específicas proibindo discriminações
específicas. Afinal, em decorrência da interpretação extensiva e da analogia, todas as situações idênticas
ou fundamentalmente similares às já tratadas por lei já existente teriam a si aplicados os mesmos ditames
jurídicos utilizados nos assuntos já regulamentados. Caberia, assim, unicamente, a aplicação de lei
existente à situação não citada ou não regulamentada pela interpretação extensiva ou pela analogia,
respectivamente. Todavia, as leis específicas facilitam em muito a prova daquilo que se alega: é muito
mais fácil para o autor de uma demanda judicial obter êxito quando alega que uma lei foi descumprida
pelo réu do que quando tem que provar que foi desrespeitado um princípio geral de Direito, norma
genérica que é (como o da isonomia e o da dignidade da pessoa humana, em que pese o status
constitucional destes). Isso porque a lei específica, como o próprio nome diz, trata de uma situação
particular, estabelecendo contornos claros à situação por ela regulamentada. Dessa forma, sendo tais
regras descumpridas, cabe reparação do dano causado contra aquele particular que se encaixa naquela
situação singular. Sem falar no fato de que uma lei expressa tende a evitar os próprios litígios judiciais:
sendo um direito expressamente reconhecido, as pessoas tendem a não se opor ao reconhecimento de tal
direito àqueles que o pleiteiam.
Por outro lado, deve-se ter em mente que o legislador não tem como prever absolutamente todas as
situações que podem ocorrer na vida fática, dada a imperfeição humana nesse sentido. Essa é uma lição
clássica da doutrina civilista ao tratar da colmatação de lacunas por analogia: como o legislador não tem
como prever todas as situações fáticas, cabe ao Estado-juiz colmatar as lacunas normativas por analogia,
inclusive como consequência da vedação ao juiz de deixar de julgar pela alegação de inexistência de lei
expressa que reconheça o direito em questão (vedação ao non liquet)7. Assim, ao elaborar determinado
texto normativo, pode ter o legislador se omitido quanto a determinado ponto, o que não significa que
essa situação omitida deva ser tida como proibida, uma vez que em Direito não existem “proibições
implícitas” e, ainda, ante a existência da interpretação extensiva e da analogia como técnicas de
interpretação jurídica, que visam garantir que situações idênticas ou fundamentalmente idênticas àquelas
expressamente regulamentadas recebam o mesmo tratamento jurídico, como sucedâneo da isonomia
constitucionalmente consagrada8.
Nesse sentido, a inexistência de ditas leis específicas não impossibilita a defesa dos direitos
daqueles que vivem à margem da lei ante a existência dos princípios da isonomia e da dignidade da
pessoa humana, os quais garantem às pessoas, individual ou coletivamente, a proteção de seus direitos ao
proibir discriminações arbitrárias e ao garantir que todas as pessoas humanas sejam merecedoras da
mesma dignidade. Mesmo porque o art. 4.º da LINDB assevera que, na omissão da lei, o juiz julgará
segundo a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito (entre eles a isonomia, a dignidade
humana e a interpretação extensiva), ao passo que o art. 126 do CPC proíbe o juiz de sentenciar alegando
lacuna da lei, hipótese na qual deve se socorrer das citadas fontes (analogia, costumes e princípios gerais
de Direito).
Especificamente com relação às uniões homoafetivas, considerando que constituem entidades
familiares que se enquadram no modelo juridicamente consagrado (conforme se demonstra nos próximos
tópicos), os preceitos constitucionais são suficientes para garantir os efeitos jurídico-familiares delas
decorrentes, conforme se demonstrará detidamente em capítulos específicos.

2. A QUESTÃO DA FAMÍLIA

2.1 A importância da família na história da humanidade

“A família contemporânea constitucionalizada afasta-se do standard talhado em séculos


passados. É o afeto o elemento unificador dessa família em busca do novo milênio. Os laços de
família, conforme grafava Cecília Meireles, afastam-se dos tradicionais critérios patrimoniais
e biológicos, edificando-se sobre os vínculos de amor e de afeição que aportam como os
verdadeiros elementos solidificadores da unidade familiar.” – Luiz Edson Fachin9 (Professor
Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná).

Desde os primórdios da humanidade tem-se a noção mais ou menos clara de que a felicidade
verdadeira e genuína (se é que existe algum outro tipo) só pode ser alcançada mediante a vida a dois.
Talvez isso se justifique pela falta de sentido em obter êxitos atrás de êxitos sem que haja alguém com
quem desfrutar as alegrias deles decorrentes, e mesmo alguém a quem beneficiar e com quem
compartilhar todos os frutos decorrentes dos sucessos alcançados. Certa ou errada essa concepção, é no
que acredita a maior parte da população.
Ainda que de maneiras distintas, a humanidade sempre prezou a vida a dois, dando cada vez mais
importância aos relacionamentos afetivos entre pessoas com o passar dos séculos, tendo em vista que é
deles que surgem as famílias.
Essa evolução constante e gradativa da importância da família no contexto social pode ser
vislumbrada no caput do art. 226 de nossa Constituição Federal, que coloca a família como base da
sociedade brasileira. Tal ênfase deixa claro qual é o objetivo maior do Estado brasileiro: a proteção da
família. Todas as leis criadas, todos os objetivos expressamente citados por estas, visam, ainda que
indiretamente, à proteção da entidade familiar, haja vista ser esta a base de nossa sociedade – vale
lembrar que não há estrutura que não venha a ruir quando sua base é destruída.

2.2 A família brasileira – Breves considerações históricas

2.2.1 A Família na Sociedade Rural e o “Modelo Institucional” do Código Civil de 1916


“[A princípio] Compreendida como um fato natural, inexistiu a preocupação parlamentar de definir
sua estrutura, ante a naturalidade da noção de família”10. Esse entendimento baseou-se na concepção
tradicional da família, qual seja a formada pela união matrimonializada de um homem com uma mulher e
os descendentes do casal (a típica família heteroafetiva) e nos costumes extremamente machistas da
época (que consideravam a mulher casada como relativamente incapaz). Isso porque a família
inicialmente codificada não tinha como ponto de preocupação o bem-estar de seus componentes: visava
apenas garantir que o modelo econômico da época fosse cada vez mais revigorado, no sentido de que, em
uma sociedade rural, a existência de mão de obra numerosa era indispensável para que se alcançasse uma
boa produção.
Em verdade, conforme esclarece Engels, a palavra família foi inicialmente utilizada pelos romanos
antigos para designar apenas os escravos, na medida em que famulus queria dizer escravo e família era o
conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem, ao passo que o termo família passou
eventualmente a ser utilizado pelos romanos para designar um organismo social cujo chefe tinha sob suas
ordens a mulher, os filhos e um certo número de escravos submetidos a seu poder patriarcal, com direito
de vida e morte sobre todos eles11. A família das codificações liberais burguesas permaneceu no
obscurantismo pré-iluminista, não se lhe aplicando os ideais de liberdade e igualdade em razão disso
estar à margem dos interesses patrimonializantes que passaram a determinar as relações civis12. A
família era um mero núcleo de produção, sendo estimulada a procriação como forma de garantir o seu
sustento na velhice e, especialmente, o sustento do modelo consumista do sistema capitalista. Esse foi o
modelo prevalente na sociedade até meados do século XX.
Ou seja, a família jurídica do início do século XX, do Código Civil de 1916, de modelo
predominantemente rural, não se preocupava com o amor ou com as pessoas nela existentes: tinha um
intuito meramente patrimonialista de garantir que o modelo econômico do País se mantivesse intacto.
Nessa forma familiar, o afeto era completamente ignorado. Nela, o marido era o chefe da sociedade
conjugal, cabendo exclusivamente a ele a direção desta e restando à mulher a mera tarefa de
administradora do lar e responsável pela educação dos filhos, sempre de acordo com os desígnios de seu
marido – tanto que, ao casar, a mulher deixava de ser plenamente capaz para atuar na vida civil,
tornando-se relativamente incapaz e passando a ter o seu patrimônio administrado pelo marido. Mesmo
porque esse era o papel visto como “decente” à mulher, tanto que ela tinha enorme dificuldade para
conseguir trabalhos remunerados devido à forte carga de preconceito que sofria nesse sentido.
Essa colocação do homem em posição hierarquicamente superior à da mulher no casamento civil
decorreu da postura machista da época, na qual a mulher não era considerada como tão capaz quanto o
homem para atuar na vida social – preconceito até então historicamente consagrado13. Dito modelo não
visava (ao menos primordialmente) a manutenção de uma determinada moralidade familiar, mas
principalmente preservar o modelo patrimonialista, que, editado sob a inspiração do liberalismo
individualista, alçou a propriedade e os interesses patrimoniais a pressupostos nucleares de todos os
direitos privados, inclusive do Direito de Família14.
Roger Raupp Rios sintetiza bem esse modelo familiar: é o que ele chama de modelo institucional,
hierarquizado de família, que era considerada em si mesma e que visava atender, primordialmente, aos
interesses estatais e, apenas secundariamente, aos interesses particulares da família, sobrepondo-se o
interesse público sobre o privado do casal15.
Ademais, o objetivo fundamental da família juridicamente protegida do Código Civil de 1916 era,
além de manter o modelo econômico da época, de garantir que o patrimônio do homem continuasse com
membros “do seu sangue”. Nesse sentido, a castidade da mulher era colocada como condição para sua
respeitabilidade, visto que, embora a verificação da maternidade sempre tenha sido de fácil constatação
e certeza, porque a mulher é quem traz a criança ao mundo, com relação ao homem essa certeza já não
existia, uma vez que inexistiam exames médicos que comprovassem com segura margem de certeza que
o(a) filho(a) era dele, donde a lei civil fixava prazos dentro dos quais se presumia que o filho fosse do
homem, segundo o lapso temporal do nascimento comparado com o início ou término da relação
amorosa.
Assim, essa noção simplista do conceito familiar, derivada indubitavelmente da influência das
religiões, fez surgir o entendimento de que a família somente seria formada por meio da união amorosa
entre um homem e uma mulher oficializada pelo matrimônio. O Código Civil de 1916 é prova disso: o
casamento civil, como vínculo indissolúvel, foi considerado como a única maneira de se formar a família
considerada “legítima”, sendo deixadas de lado quaisquer uniões amorosas que não fossem ratificadas
pela figura do casamento civil, mesmo aquelas entre heterossexuais. Não se admitia que qualquer um
desses relacionamentos amorosos pudesse ensejar quaisquer efeitos jurídicos, donde se criaram os
conceitos de família “legítima” e “ilegítima”. Assim, nas palavras de Euclides Benedito de Oliveira,
“legítima era apenas a família formada por meio do casamento; ilegítima, a resultante de união informal,
de fato, pela convivência de fim amoroso entre homem e mulher, sem as formalidades do ‘papel
passado’”.16
Contudo, a evolução da sociedade demonstrou que não é tão simples assim o conceito de família. As
chamadas “uniões de fato” passaram a ser cada vez mais comuns no transcorrer do século XX, deixando
claro que as pessoas mantinham-se unidas como famílias apenas quando da existência de amor na
relação, o que tornou imperiosa a regulamentação sobre o tema, uma vez que a elas não era reconhecido
nenhum efeito jurídico, fosse no campo do Direito das Famílias, fosse no campo do Direito
Obrigacional17. A família atual busca sua identificação na solidariedade (art. 3.º, I, da CF/1988), como
um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo triunfante dos últimos séculos, ainda que não
retome o papel predominante que exerceu no mundo antigo18.
Assim, em face das inúmeras injustiças cometidas nesses casos, especialmente em relação às
mulheres quando do término de sua relação amorosa considerada como concubinato, a jurisprudência
passou gradativamente a reconhecer efeitos jurídicos às relações concubinárias, donde foi erigida a
Súmula 380 do STF, segundo a qual: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os
concubinos, é cabível sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço
comum”. Essa súmula, apesar de não reconhecer a condição de entidade familiar às uniões
extramatrimoniais, passou a, pelo menos, dar-lhes efeitos jurídico-patrimoniais, garantindo à concubina
parte do patrimônio amealhado durante sua convivência com o parceiro falecido mediante a efetiva prova
de contribuição a dito crescimento patrimonial19.
Toda essa construção justifica-se porque, na época, “a finalidade essencial da família era sua
continuidade. Para haver a certeza biológica da filiação, valorizava-se a fidelidade da mulher, sendo a
virgindade um sinal externo de respeitabilidade”20. Afinal, a sociedade brasileira, no início, era
basicamente rural, e nela quanto maior fosse a família, melhores eram as chances de sobrevivência desta,
tendo em vista que dito crescimento trazia um igual crescimento, ainda que futuro, de mão de obra a ser
utilizada na lavoura.

2.2.2 A família na sociedade urbana – A mulher no mercado de trabalho


Com a crescente urbanização, o modelo familiar descrito anteriormente (institucional/hierárquico)
passou a sofrer mudanças. Devido à crescente necessidade de mão de obra, os papéis de marido e
mulher, antes rígidos, passaram a se entrelaçar, tendo em vista o ingresso desta no mercado de trabalho, o
que obrigou o homem a auxiliá-la nos afazeres domésticos – comportamento este contrário ao de até
então, que definia como função do homem trazer o “pão” para a casa e como função da mulher a mera
organização do lar, segundo as ordens do marido.
Dessa forma, com o ingresso da mulher no mercado de trabalho, passou ela a questionar e lutar
contra a discriminação jurídica que sempre sofrera, passando a exigir os mesmos direitos amplamente
reconhecidos aos homens. Ademais, as próprias regras de convívio marital passaram a ser revistas pelos
casais a partir daí formados, tendo em vista que, “com a industrialização, ocorreu o êxodo rural, e a
própria diminuição das dimensões da casa forçou uma maior convivência no ambiente familiar, levando a
uma maior aproximação entre seus membros”21. Esse aumento no tempo de convivência do casal passou a
influenciar em muito a maneira como ambos passaram a “administrar” a relação – o amor familiar22
passou a ter fundamental importância nesse convívio, pois somente uma relação afetiva verdadeira é
capaz de tornar eterno um relacionamento entre duas pessoas que convivem diariamente em regime
familiar.

Com a revolução industrial, surge um modelo de entidade familiar, cuja função preponderante é
desenvolver os valores morais, afetivos e espirituais de seus membros, enfatizando sempre a
assistência recíproca que deve existir entre eles. Atualmente, a entidade familiar deixa de ter feição
meramente econômica e alcança uma compreensão igualitária dos seus membros, que tem, por fim
promover o desenvolvimento de seus integrantes. Agora, assume uma feição distinta fundada,
sobretudo, no afeto, amor e felicidade, sentimentos que se complementam. Com estas premissas,
estabelece-se que a família é formada através de uniões homoafetivas, incestuosas, uniões estáveis,
famílias monoparentais, originadas do casamento, e por quantas outras que a capacidade e
engenhosidade humana puder organizar e compor. Corrobora com este entendimento Euclides
Benedito de Oliveira quando expõe, de forma sucinta, que “Resulta claro que o ordenamento
constitucional consagrou a definição ampla de família, como base da sociedade, garantindo-lhe
proteção especial do Estado, independente do modo pelo qual tenha se originado a união”. (...) À
caracterização de qualquer forma de união entre pessoas que se denomine familiar não há como
dispensar que a mesma ostente publicidade, comunhão, estabilidade e propósito de constituição
de família. Com as uniões incestuosas não poderia ser diferente; da mesma forma, devem estar
permeadas por esses caracteres.23
Por conseguinte, considerando que a família deixou de ser uma mera unidade de produção,
vale destacar o entendimento de Antunes Varela, segundo o qual ela se converteu, “ao fim de cada
semana, num lugar de refúgio da intimidade das pessoas contra a massificação da sociedade de
consumo. Ela constitui hoje um centro de restauração semanal da personalidade do indivíduo
contra o anonimato da rua”. (...) Não percamos de vista que o grupo familiar ajuda na formação e
crescimento da identidade individual, comunicação e objetivos comuns dos seus integrantes,
garantindo o substrato para a consolidação do afeto e da solidariedade familiar, através do
reconhecimento, tutela e da cooperação, antes mesmo que como cônjuge ou filho, como pessoa.
Para Pietro Perlingieri, “o controle sobre as vicissitudes pessoais e familiares se justifica se e na
medida em que for feito em função da garantia dos direitos fundamentais”.24

Todos esses fatores ensejaram uma transformação no conceito de família. Desatrelou-se ela do
trinômio “sexo, casamento e procriação”, que regia o Direito de Família até então, para fixar-se em
verdadeira sociedade de afeto, cujo único objetivo é a felicidade25. A função econômica perdeu seu
sentido, pois a família não era mais uma unidade produtiva nem uma espécie de seguro contra a velhice,
atribuição que foi transferida à previdência social, tendo contribuído para tanto a emancipação
econômica, social e jurídica da mulher e a drástica redução do número médio de filhos das entidades
familiares, fortalecendo-se a noção de família como uma comunhão de afetos26.
Diante de tal objetivo, as famílias extramatrimoniais passaram a ser cada vez mais comuns, mesmo
não havendo qualquer regulamentação específica sobre o tema. Afinal, como a felicidade é muito mais
importante do que um conjunto de regras supostamente estanques, nada mais natural que passarem os
indivíduos a buscá-la independentemente do que diga a legislação vigente. Por outro lado, o não
reconhecimento de tal fato pelo Direito fez que muitas pessoas do passado (em geral, as mulheres-
concubinas das classes mais baixas da sociedade) se encontrassem em situação de desamparo jurídico,
tendo em vista que, após o término de sua relação amorosa com determinado homem, ficavam sem
patrimônio algum, donde a jurisprudência se viu obrigada a criar soluções para tais casos, a fim de que
não mais fossem perpetuadas verdadeiras injustiças nos casos concretos.

2.3 As soluções encontradas pela jurisprudência para as uniões não regulamentadas


Conforme citado, a Jurisprudência passou a buscar maneiras de contornar o fato de inexistir
regulamentação às relações extramatrimoniais, visando evitar que continuassem a se perpetuar
verdadeiras injustiças com os casais em questão, em especial as concubinas. Contudo, em nenhum
momento reconheceu que as mencionadas relações formavam, naquela época, entidades familiares. Os
magistrados deixavam claro que apenas estavam sendo reconhecidos efeitos patrimoniais àquelas uniões,
para evitar o enriquecimento ilícito de uma das partes em detrimento da outra, e nada mais.

2.3.1 Analogia com o Direito do Trabalho – Indenização pelos serviços prestados. Julgados
contemporâneos do STJ
Uma vez que o entendimento dominante da época era o de que o papel “decente” da mulher na
sociedade era o de administradora do lar, o de instrumento para a perpetuação da espécie e o de babá
dos filhos (ressalte-se essa figura de babá, tendo em vista que era do homem todo o poder relativo aos
filhos, o assim chamado “pátrio poder” – atual poder familiar), passou a Jurisprudência, em princípio, a
considerar que, nas relações extramatrimoniais, a concubina se encontrava em uma espécie de relação
laboral com o parceiro, merecendo, por consequência, uma indenização pelo “tempo de serviço
prestado” ao mesmo, ante os trabalhos domésticos por ela realizados na residência “ilegítima” do casal,
por analogia ao Direito do Trabalho27.
Note-se que em nenhum momento se tratava do patrimônio amealhado pelo casal: este ia sempre para
os descendentes legais (“legítimos”), nos quais não estavam inclusos a concubina e seus filhos em
hipótese alguma.
Anote-se, por oportuno, que, em data posterior à 1ª edição desta obra, alguns julgados do Superior
Tribunal de Justiça rejeitaram o cabimento desta analogia, ante a união estável (antigo concubinato puro)
ter sido reconhecido pela Constituição e pela legislação como entidade familiar, havendo julgados que,
inclusive, negam tal pleito a relações concubinárias (concubinatos impuros)28, sob o fundamento de que
isto alçaria as uniões concubinárias a patamar superior ao das uniões matrimonializadas e das uniões
estáveis29, por estas não concederem tal direito indenizatório após o término da relação, de sorte a
ocasionar, segundo tal entendimento, uma discriminação positiva do concubinato (impuro) frente ao
casamento civil, que teria primazia sobre o concubinato por força do art. 1.727 do CC/200230. Contudo,
como a jurisprudência do STJ estava consolidada no sentido do cabimento de tal pleito e houve,
inclusive, julgado recente que a reiterou31, somente o julgamento de Embargos de Divergência pela Corte
Especial do Tribunal poderá dizer, com certeza, se o mesmo irá realmente mudar sua jurisprudência
acerca do tema.
Tal digressão final se deu apenas para situar o leitor no estágio atual deste entendimento sobre a
concessão de indenização por serviços prestados à pessoa concubina após o término da relação. Embora
não caiba aprofundar o tema por ser estranho ao cerne do presente trabalho, vale dizer que concordo com
Maria Berenice Dias quando afirma que, nos casos de união estável, não é cabível a concessão de
indenização pelos serviços prestados porque este era um subterfúgio da jurisprudência para garantir
subsistência da mulher que se encontrava fora do mercado de trabalho e, portanto, sem condições de se
sustentar por conta própria, já que hoje são devidos alimentos após o término da união estável32;
contudo, igualmente concordo com a autora quando afirma que, nos casos de concubinato do art. 1.727
do CC/2002 (antigo concubinato impuro), é imperativo garantir a sobrevivência de quem dedicou uma
vida a alguém que não lhe foi leal, mantendo outro relacionamento, mesmo porque permitir que a pessoa
casada ou que estivesse em união estável prévia não tenha nenhuma responsabilidade para com seu(sua)
concubino(a) implicará premiar tal pessoa por sua infidelidade, justamente por se afastar qualquer
responsabilidade sua para com a pessoa com quem manteve anos de relação concubinária33. Por outro
lado, a aplicação de tal analogia deve supor, necessariamente, o prazo prescricional de cinco anos para
tais verbas indenizatórias, já que tal é o prazo que o Direito do Trabalho prevê para reclamações
trabalhistas, em que a indenização jamais alcançaria valores milionários, mesmo após décadas de
convívio, em especial se compensada a indenização com eventuais doações feitas ao concubino e não
anuladas no prazo legal fixado para o cônjuge pleitear tal anulação.

2.3.2 Analogia com o Direito Comercial – Teoria das sociedades de Fato


Após aquele primeiro momento, passou a Jurisprudência a perceber que a analogia com o Direito do
Trabalho não era suficiente, tendo em vista que todo o patrimônio amealhado pelo casal de concubinos ia
inexoravelmente à família do homem, independentemente de quanto houvesse contribuído a parceira para
sua construção. Assim, sendo novamente desconsiderado o afeto existente entre o casal, passaram os
magistrados a vislumbrar semelhança das relações extramatrimoniais às sociedades de fato do Direito
Comercial (sociedade não registrada na Junta Comercial), do que resultou o entendimento de que dita
sociedade poderia ser dissolvida judicialmente, mediante a apuração de haveres dos “sócios”, como
forma de evitar o enriquecimento ilícito de uma das partes em relação à outra. Dessa forma, cabia à parte
autora (a concubina) provar o quanto tinha contribuído para a construção do patrimônio de dita sociedade
para que pudesse receber a sua “quota” respectiva. Foi dessa construção jurisprudencial que resultou a já
transcrita Súmula 380 do STF, que consagra exatamente o que se acabou de expor34-35.
Apesar do significativo avanço atingido por esse entendimento, um problema restava: como a
concubina normalmente ficava em casa cuidando da família dita “ilegítima”, em geral não tinha como
provar sua contribuição monetária para a construção do patrimônio amealhado, uma vez que, em regra,
não tinha feito tal espécie de contribuição. Assim, ante a absoluta falta da presunção legal de condomínio
existente entre as partes, como já ocorria nos casos das relações ratificadas pelo casamento civil, nas
quais se presumia a contribuição de 50% de cada parte, cuja divisão dos bens (razão pela qual tal
divisão rege-se pelo regime de bens escolhido pelo casal), ficava a concubina a ver navios, tendo em
vista que não havia contribuído com valores para a construção do patrimônio. Já nos relacionamentos
reconhecidos como entidades familiares, mesmo que não haja nenhuma contribuição monetária por parte
de um dos parceiros para a construção do patrimônio do casal, parte-se da presunção absoluta (aquela
que não admite prova em contrário) de que sem o amor familiar desse parceiro que nada contribuiu
monetariamente, o outro não teria tido forças para construir o patrimônio existente no momento da
separação. Esta presunção garante ao outro parceiro a meação do patrimônio existente, de acordo com o
regime de bens por eles escolhido, independentemente de prova de efetiva contribuição patrimonial por
parte dele.
Todavia, com relação às uniões concubinárias, o aspecto do apoio emocional que qualquer parceiro
afetivo traz ao outro era (e ainda hoje é) totalmente desconsiderado, ao contrário do que acontecia (e
acontece) em relação às uniões matrimonializadas e, hoje, às decorrentes da união estável.

2.4 A evolução histórica do conceito de família


Independentemente do entendimento jurisprudencial, que ainda denegava a condição de família
legítima às relações de concubinato, o número cada vez maior de relacionamentos extramatrimoniais fez
a doutrina, gradativamente, entender que o casamento civil não é pressuposto fundamental à formação de
famílias, superando-se aos poucos o conceito da já citada família institucional/hierárquica. Nesse
sentido, leciona Maria Berenice Dias36:

Segundo Rosana Fachin, nessa evolução, a função procriacional da família e seu papel
econômico perdem terreno para dar lugar a uma “comunhão de interesses e de vida, em que laços
de afeto marcam a estabilidade da família”. Os novos modelos familiares estão quase a desafiar a
possibilidade de encontrar-se uma conceituação única para sua identificação. Hoje as relações de
afeto caminham à frente [Silvana Maria Carbonera]. As premissas básicas em que sempre esteve
apoiado o Direito das Famílias – sexo, casamento e reprodução –, conforme bem observa Rodrigo
da Cunha Pereira, desatrelaram-se. (...)

Assim, no final do século XX, a Doutrina e a Jurisprudência viram-se obrigadas a reconhecer a


verdadeira entidade familiar formada pelos relacionamentos afetivos extramatrimoniais. Afinal, os
próprios juristas que a isto se opunham admitiam, por mais que não fosse sua intenção, que ditos
relacionamentos formavam famílias, com a ressalva de serem famílias “ilegítimas” (leia-se: não
protegidas pelo Direito). Logo, reconheciam que formavam famílias sociológicas, famílias de fato,
embora a legislação a elas não reconhecesse efeitos jurídicos.
Nesse sentido, o número cada vez maior de relacionamentos concebidos fora do casamento foi
tornando cada vez mais evidente que não se reconhecia a entidade familiar formada entre os
companheiros por puro preconceito – preconceito este decorrente da concepção difundida pelas religiões
em geral de que o casamento seria a única forma de constituição de uma família “legítima”, sendo as
demais uniões afetivas mero pecado dos envolvidos (ainda hoje, a Igreja Católica considera o casamento
como a única forma de ter uma família “legítima”). É inegável a influência da Igreja Católica Apostólica
Romana nesse sentido, uma vez que, antes da separação entre Estado e Igreja, esta efetivamente
regulamentava, ainda que indiretamente, a vida de todas as pessoas sob seu poder (em especial na Idade
Média), ante sua notória influência sobre os Estados de então, em que se consagrou a ideia de que o
matrimônio heteroafetivo seria a única forma “aceitável” de relação amorosa entre duas pessoas
(lembrando-se que o Brasil Imperial foi um Estado Confessional-católico, só surgindo a laicidade estatal
no Brasil com a primeira República).

Até bem pouco tempo, percebia-se a família, na proximidade de um casal heterossexual,


vinculado pelos laços indissolúveis do matrimônio e a descendência proveniente desse enlace. A
simbologia mental representativa da família, para muitos ainda hoje, é a desse agrupamento
tradicional, portanto, casado. As razões que uniam e mantinham tais famílias eram diversas; o afeto
entre os membros que as integravam, era uma delas, todavia, sem o poder conferido pela liberdade
de estar, sair, acolher, afastar, uma vez que o casamento era indissolúvel; a importância exagerada
conferida ao patrimônio, a desigualdade entre filhos e entre homens e mulheres, conferiam razões
para o ‘estar junto’ que podiam coincidir ou não, com um sentimento de inclinação emocional pelo
outro. Não há, nesse modelo formalizado, dificuldades em se enxergar a família, pois o sangue e,
principalmente, o documento, materializava a relação. Talvez existissem mais dificuldades para
viver a família.37
O Código Civil de 1916, refletindo as concepções morais de seu momento histórico, somente
considerava como legítimas em jurígenas as uniões de homens e mulheres quando resultantes do
casamento. Todas as outras uniões entre pessoas de sexos diferentes ou de mesmo sexo, com a
finalidade de vida em comum eram tidas (a) como ilícitas, (b) simplesmente imorais. (...) À família
legítima eram assegurados todos os direitos e deveres possíveis resultantes das relações de
parentesco, que eram juridicizadas (= reconhecidas como relações jurídicas). Paralelamente,
negava-se à família ilegítima a geração de qualquer eficácia jurídica, sendo até proibido o
reconhecimento de filhos nascidos no seu seio, exceto quando se tratava de filho natural (= filho
havido de relações entre pessoas que não ostentavam qualquer impedimento dirimente absoluto para
casar, v.g. os solteiros, viúvos, sem parentesco, consanguíneo ou afim, em grau proibido.38
O Código Civil de 1916 foi elaborado em um contexto marcado pela transição do contexto do
direito individualista para um direito de cunho social, e seus dispositivos refletiam, ainda,
influências advindas, não só do Código Napoleônico, assimiladas pela maioria das codificações da
época, como também do Direito Canônico, face às influências da Igreja Católica na organização da
sociedade. Para a Igreja, a família advinha do casamento, monogâmico, indissolúvel e percebido
como um sacramento. No Código de Napoleão, a família também era formada pelo casamento e o
direito de família seguia o padrão fundamentado na autoridade paterna, no poder marital, na
incapacidade e submissão da mulher, na dependência e na desigualdade entre os filhos em razão
da origem. (...) Natural, portanto, que a legislação civil refletisse o estilo da sociedade, cuja
estrutura familiar baseava-se no patriarcado, na desigualdade e na submissão. Neste sentido, a
norma considerava uma única forma de família, a família legítima, constituída pelo casamento, e, a
partir deste paradigma, disciplinava as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, os
efeitos do matrimônio, a filiação, o parentesco, a autoridade parental. Qualquer união diferente do
padrão legal era objeto de discriminação, bem como a filiação fora do casamento era considerada
ilegítima.39

Nesse sentido, como bem dito pelo juiz Antônio Mônaco Neto, da Comarca de Salvador/BA em
decisão de 12.04.2012, “a base da constituição da família deixou de ser a procriação e a geração de
filhos, para se concentrar na troca de afeto e de amor”, compreensão esta que constitui o entendimento
contemporâneo sobre a importância da afetividade nas relações familiares aliada à publicidade,
durabilidade, continuidade e intenção de constituir família [mediante comunhão plena de vida e
interesses]40, na medida em que dita decisão afirmou que “amor e afeto [são] sentimentos basilares para
lastrear a vontade de formar uma entidade familiar e estabelecer objetivos em comum, além da
convivência e mútua assistência, com características de duração, publicidade , continuidade e intenção de
constituir família”. Em suma, tem-se que a afetividade está na gênese das relações familiares, devendo-
se garantir proteção às diversas formas de entidades familiares baseadas no afeto e no desejo sincero de
constituir uma relação estável e duradoura, visto que o ponto comum entre todas as famílias
contemporâneas é o amor41.
Toda essa evolução no conceito de família só vem demonstrar que não se pode ter a pretensão de
classificá-la em apenas um determinado tipo de relação. Deve-se ter em mente que o amor familiar42
entre os envolvidos é o principal elemento a ser considerado quando se visa o reconhecimento de uma
relação como sendo pertencente ao ramo do Direito das Famílias – isto porque aqueles diretamente
envolvidos já têm a certeza de que são, sim, uma verdadeira família, por mais que o legislador ou parte
dos profissionais do Direito ainda não o reconheçam em face dos seus próprios preconceitos. Nessa
linha, conforme se demonstra adiante, verifica-se que o nosso ordenamento jurídico não admite a
discriminação das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas, uma vez que dita discriminação
afronta os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana.

2.4.1 O amor familiar como o elemento formador da família contemporânea. STF, ADPF 132 e ADI
4.277
Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 mudou completamente o paradigma do Direito de
Família pátrio. A Carta Magna, ao deixar de considerar o casamento civil como requisito indispensável
à constituição de uma família legítima (entendida como aquela protegida pelo Direito), passou a
considerar o amor familiar43 como requisito indispensável à formação da família juridicamente
protegida (aqui entendido como o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura). Ou seja, ao deixar de reconhecer expressamente apenas um modelo
familiar como juridicamente legítimo, o art. 226 da CF/1988 consagrou o princípio da pluralidade de
entidades familiares justamente por reconhecer que mais de um tipo de união amorosa forma uma família
juridicamente protegida – logo, o art. 226 da CF/1988 consagrou o Direito das Famílias, no plural, em
detrimento do Direito de Família, no singular, por garantir proteção a todas as uniões que se enquadrem
no conceito ontológico/material de família.
Ademais, não são taxativas as hipóteses de família apontadas na Constituição (casamento civil,
união estável e monoparental), pois, se assim o fosse, o constituinte teria elaborado um dispositivo com a
dicção: “Só são protegidas as famílias oriundas de...” ou similar, o que não existe em nosso
ordenamento jurídico. Ou seja, é claramente exemplificativo o rol de entidades familiares citado pelo art.
226 da CF/198844.
Assim, se para o Código Civil de 1916 era irrelevante o amor existente na relação, sendo apenas
considerada a cerimônia de casamento civil para a formação da família juridicamente protegida daquela
época pelo cunho eminentemente patrimonialista daquela codificação, que não se importava com a
pessoa humana, mas apenas com o patrimônio do homem45, isto deixou de ser juridicamente aceitável
com o advento da Constituição de 1988. A partir do momento em que reconheceu a união estável como
entidade familiar, consagrou ela uma realidade social já há muito existente, qual seja a de que só se
forma uma família quando existe amor romântico na relação entre duas pessoas, visto que é o elemento
que diferencia as entidades familiares formadas por casais das relações comerciais ou de amizade
(embora a família não se forme apenas pelo amor romântico, como adiante se verá).

A transição se dá, como precisamente explica o Prof. Paulo Lôbo, com a implementação do
estado social, que “desenvolvido ao longo do séc. XX caracterizou-se pela intervenção nas
relações privadas e no controle dos poderes econômicos, tendo por filtro a proteção dos mais
fracos. Sua nota dominante é a solidariedade de seus membros ou a promoção da justiça social. O
intervencionismo também alcança a família. Com o intuito de redução dos poderes domésticos –
notadamente do poder marital e do poder paterno –, da inclusão e equalização dos seus membros e
na compreensão de seu espaço para a promoção da dignidade humana”. Interessante é a percepção
de alguns estudiosos sobre o papel social exercido pela família moderna, locus de amor, de
intimidade e da vida privada, qual seja o de verdadeiro repositório do sagrado, antes encarnado em
noções como as de Divindade, nação e pátria. É a retomada, em outras bases que não a do
liberalismo oitocentista, de um humanismo entranhado no conceito de família do afeto. Nas
palavras do filósofo francês Luc Ferry, “a história da família moderna, fundada no sentimento, vai
nos mostrar que a única causa que vale a pena, afinal, é a da pessoa”. Cumpre, portanto, indagar se,
dentro da perspectiva jurídica dessa família plural, igualitária, democrática e afetiva, teria lugar a
aplicação da Teoria da Perda de uma Chance.46

Segundo Breezy Miyazato, Vizeu Ferreira e Rita de Cássia Resquetti Tarifa Espolador47, “A família
clássica, representada pelo Código Civil de 1916, extremamente hierarquizada e patriarcal, e fundada na
transpessoalidade, cede espaço para a família contemporânea, que, ao contrário da codificada, tem por
pressuposto o aspecto eudemonista, ou seja, a realização pessoal de seus membros, estes ligados por
laços afetivos, de comunhão de vida e de afeto (...) A superação da família clássica matrimonializada
cedeu espaço para a família eudemonista, ou seja, a família contemporânea deve ser um lugar de
comunhão de afeto e realização pessoal, de ajuda e esforços mútuos entre todos os componentes daquela
relação familiar”.
A constatação disso é muito simples: em primeiro lugar, duas pessoas não ficam juntas se não
estiverem ligadas por um forte vínculo afetivo (amor familiar), e isso já há muito tempo em nossa
história. Em segundo lugar, nem a doutrina nem a jurisprudência trazem outro fundamento para justificar a
formação da família contemporânea oriunda do amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura (ou seja, da relação amorosa e conjugal não eventual
de duas pessoas), limitando-se a dizer elas passam a ser protegidas com o casamento civil e com a união
estável.

Incorporando uma metodologia constitucionalizada do direito civil, o direito de família


abandona o viés patrimonializante próprio do direito civil clássico liberal e passa a valorar as
relações familiares segundo seu prioritário aspecto existencial, pondo em segundo plano o
caráter econômico nelas envolvido.48
No âmbito das relações e família somos protagonistas do florescer de um modelo fundado
sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da funcionalização, da pluralidade e do
eudemonismo.49
A pós-modernidade e, com ela, a fragmentação das regras lineares de conduta, viabilizou o
descortinamento dessas famílias marginais. A liberdade de extinguir e criar núcleos familiares e,
em alguns momentos, a “independência”, no sentido de não ser essencial o cumprimento de alguns
papéis biologicamente e/ou culturalmente assinalados para a espécie humana dividida (até hoje) em
gênero, pelos modelos masculino e feminino, vem clamar pela tutela de interesses materiais e
existenciais para quem, até pouco tempo, era invisível ao Direito. Assim, retirado o invólucro da
formalidade, emerge o afeto que passa a ser visto como aquilo que origina e mantém as famílias.
(...) 50
Assim temos que o princípio da liberdade, em relação aos cônjuges ou companheiros, se
verifica na escolha do tipo de entidade familiar que será constituída, na sua manutenção ou não.51

Nesse sentido, conforme nos ensina Maria Berenice Dias52, a compreensão do que constitui a família
contemporânea supõe a identificação do elemento que autorize reconhecer a origem do relacionamento
das pessoas – elemento este que é o afeto, ou seja, é o envolvimento emocional que leva a subtrair um
relacionamento do campo obrigacional para trazê-lo ao âmbito familiar53. A autora bem ressalta a
evolução histórica do conceito de família, que é um agrupamento cultural, uma construção social que, em
seu início, em dado momento histórico, teve no casamento civil uma convenção social criada para impor
limites ao homem, ser desejante que, na busca do prazer, tende a fazer do outro um objeto, donde o
conservadorismo social relegou os vínculos afetivos a um segundo plano, só merecendo aceitação social
se chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio, em uma concepção puramente
hierarquizada e patriarcal da família, que servia aos propósitos capitalistas de unidade de produção54 (e,
acrescento, de consumo). Contudo, ressalta a autora que esse quadro não resistiu à Revolução Industrial,
visto que o ingresso da mulher no mercado de trabalho fez que o homem deixasse de ser a única fonte de
subsistência da família, além do que a migração das famílias para as cidades fê-las viver em espaços
menores, o que levou à aproximação de seus membros e ao prestígio do vínculo afetivo entre seus
integrantes muito mais do que às formalidades do casamento civil, donde a família transformou-se, de
hierarquizada e patriarcal, em nuclear, restrita ao casal e sua prole55. Justifica-se, portanto, a
compreensão da família como uma comunidade de afeto, um verdadeiro LAR – Lugar de Afeto e
Respeito56, ou seja, relação de pessoas: a família como a relação das pessoas ligadas por um vínculo de
consanguinidade, afinidade ou afetividade57.
Ainda segundo Maria Berenice Dias58, “A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e
não a diversidade de sexo. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de
forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de
privação do direito à vida, em atitude manifestamente preconceituosa e discriminatória. Deixemos de
lado as aparências e vejamos a essência”. Essa é uma compreensão que vem se consolidando, de sorte a
podermos falar realmente em um Direito das Famílias em detrimento de um Direito de (uma única)
Família. Com efeito, como bem diz a psicanalista Malvina Ester Muszkat59, parece que “todas as
disciplinas envolvidas no estudo das famílias contemporâneas compartilham, em menor ou maior grau, a
ideia de que enquanto na família tradicional é o ‘casamento que legitima o amor’, na família
contemporânea é ‘o amor que legitima o casamento’”.
Afinal, como bem afirma Luc Ferry, “O amor é o novo grande princípio da nossa existência”, sendo
que, no que tange à família conjugal, vivemos uma era na qual as pessoas se escolhem fundamentalmente,
senão exclusivamente, por amor60 (abstraídos “casamentos por conveniência”, os quais não visam formar
uma família conjugal, mas apenas auferir os benefícios dela, razão pela qual casos como este não devem
afastar a conclusão de que, no mundo contemporâneo, as pessoas formam famílias conjugais por conta do
amor que sentem uma pela outra).
Dessa forma, “O direito de família contemporâneo ganha novos contornos com a conquista da
valorização da afetividade em suas relações, constituindo importante fator a ser considerado na prática
judicante, devendo nossos operadores, ante [a] falta de regulamentação específica, adequar as
necessidades imanentes do direito de família, por meio de interpretação que venha tutelar a dignidade da
pessoa humana aos anseios e necessidades das complexas estruturas familiares de nossa sociedade”61.
Sobre o tema, vale citar a lição da psicanalista Giselle Câmara Groeninga62, para quem “a família
deve ser reduto de amor (...) sua finalidade está em cuidar dos mais ou menos dependentes”. Cite-se,
neste ponto, a posição de Antonio Jorge Pereira Jr.63, segundo a qual “Amar pressupõe conhecer, ou seja,
possuir intelectualmente a forma do bem que nos atrai. Amar leva o sujeito a trabalhar para o bem do ser
amado, a despeito de si próprio. Quem ama, gasta-se pelo bem do outro. (...) Amar, mais que sentir-se
bem, é dar-se e doar-se”. Nesse sentido, a família contemporânea só se forma e se sustenta enquanto
houver reciprocamente no casal este amor de bem querer o amado (e não o mero desejo que o amado nos
complete), o que demonstra ser o amor o elemento fundador e primordial da família contemporânea
(embora o amor isoladamente considerado não forme a família, como adiante se demonstra).
Assim, como bem diz Jorge Duarte Pinheiro, não se pode desconsiderar o amor no Direito das
Famílias, pois isso seria desistir do próprio Direito das Famílias, por ter este na sua essência o amor,
que é o elemento subjacente a todas as relações jurídico-familiares e que é objeto de tutela constitucional
no que tange ao direito do desenvolvimento da personalidade (que abarca as relações afetivas)64. Parece
ser esta a posição do citado autor quando afirma que “A decisão de amar que gera vínculo sólido é
intermediada pela capacidade racional de aderir a um projeto de doação de si e pela vontade forte de
determinar-se. Vai além da satisfação sensorial (...). A relação de amor verdadeiro consolida-se
mediante compromisso sério e firme de doação. (...) Um amor autêntico requer uma autêntica liberdade,
que se manifesta na atitude de compromisso de amar com plenitude no tempo – por toda a vida – e no
espaço – fidelidade”65.
É a posição da doutrina contemporânea.
Nas precisas palavras de Luiz Edson Fachin66:

Clama-se, e não é de agora, por um direito de família que veicula amor e solidariedade. (...) O
desenho familiar não tem mais uma única configuração. A família se torna plural. Da superação do
antigo modelo da grande-família, na qual avultava o caráter patriarcal e hierarquizado da família,
uma unidade centrada no casamento, nasce a família constitucional, com a progressiva eliminação
da hierarquia, emergindo uma restrita liberdade de escolha; o casamento fica dissociado da
legitimidade dos filhos. Na família constitucionalizada começam a dominar as relações de afeto, de
solidariedade, de cooperação. Proclama-se, com mais assento, a concepção eudemonista de família:
não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento
existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade.

Para a psicanalista Giselle Câmara Groeninga67:

De uma família matrimonializada, patrimonializada, sacralizada e biologizada chegamos


atualmente na família eudemonista – em que o foco central são os relacionamentos em que cada um
tem o direito à sua realização e bem-estar, na complementariedade das funções que compõem esta
estrutura pavimentada pelo afeto, sobretudo do amor, e que encontra sua forma particular de
composição e sua identidade peculiar, dependendo das características de seus membros. E as
formas de convivência são particulares a cada família, em estreita ligação também com o tratamento
dado à questão do patrimônio (...).

Nos termos do voto do Ministro Luiz Fux68, no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277:

O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os indivíduos, mas o
verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre
os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo,
permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus
integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns
perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos, tem-se uma
família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional. (...) Pois bem. O que distingue,
do ponto de vista ontológico, as uniões estáveis, heteroafetivas, das uniões homoafetivas? Será
impossível que duas pessoas do mesmo sexo não tenham entre si relação de afeto, suporte e
assistência recíprocos? Que criem para si, em comunhão, projetos de vida duradoura em comum?
Que se identifiquem, para si e para terceiros, como integrantes de uma célula única, inexoravelmente
ligados? A resposta a essas questões é uma só: Nada as distingue. Assim como companheiros
heterossexuais, companheiros homossexuais ligam-se e apoiam-se emocional e financeiramente;
vivem juntos as alegrias e dificuldades do dia a dia; projetam um futuro comum. Se,
ontologicamente, união estável (heterossexual) e união (estável) homoafetiva são simétricas, não se
pode considerar apenas a primeira como entidade familiar. Impõe-se, ao revés, entender que a
união homoafetiva também se inclui no conceito constitucionalmente adequado de família,
merecendo a mesma proteção do Estado de Direito que a união entre pessoas de sexos opostos.
(...) É certo que o ser humano se identifica no agrupamento social em que vive, desde a sua célula
mais elementar: a família. Permitir ao indivíduo identificar-se publicamente, se assim o quiser,
como integrante da família que ele mesmo, no exercício da sua autonomia, logrou constituir, é
atender ao princípio da dignidade da pessoa humana; permitir ao homossexual que o faça nas
mesmas condições que o heterossexual é observar o mesmo respeito e a mesma consideração – é
atender à igualdade material consagrada na Constituição. (...) A aplicação da política de
reconhecimento dos direitos dos parceiros homoafetivos é imperiosa, por admitir a diferença entre
os indivíduos e trazer para a luz relações pessoais básicas de um segmento da sociedade que vive
parte importantíssima de sua vida na sombra. Ao invés de forçar os homossexuais a viver de modo
incompatível com sua personalidade, há que se acolher a existência ordinária de orientações
sexuais diversas e acolher uma pretensão legítima de que suas relações familiares mereçam o
tratamento que o ordenamento jurídico confere aos atos da vida civil praticados de boa​-fé,
voluntariamente e sem qualquer potencial de causar dano às partes envolvidas ou a terceiros.
Ressalte-se este último ponto: uma união estável homoafetiva, por si só, não tem o condão de lesar a
ninguém, pelo que não se justifica qualquer restrição ou, como é ainda pior, a limitação velada,
disfarçada de indiferença. (grifos do original)

Nesse sentido, é de se reconhecer o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas69, visto que
pautadas no mesmo amor que as heteroafetivas, das comunidades anaparentais70, pois pautadas por um
afeto análogo ao do casamento civil e da união estável e de toda e qualquer comunidade eudemonista71,
que, baseada no princípio jurídico do afeto72, na busca pela felicidade e na solidariedade, define-se
como a família que “busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus
membros”.73 Estes são os exemplos atuais, porém a extensão do Direito das Famílias não cabe só a eles,
mas a todas as relações interpessoais marcadas pelo afeto que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, por meio de analogia à interpretação teleológica do
art. 1.511 do CC/2002 – analogia porque, apesar de diversos, os afetos (romântico e fraterno,
respectivamente) são idênticos no essencial – que é a construção de uma família na relação interpessoal
em questão.
Ou seja, o texto constitucional consagrou expressamente a mudança do conceito de família, tendo em
vista ter considerado o amor como o elemento central na sua formação ao reconhecer a união estável
como entidade familiar. Então, a diferença entre a união estável e uma relação pública, contínua e
duradoura entre dois amigos é o amor romântico existente na relação (considerando que a relação entre
dois amigos é marcada pelo amor fraterno), mas ambas merecem a mesma proteção jurídica diante do
fato de serem formadas pelo amor familiar, o amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura (sendo irrelevante, para fins de divisão patrimonial, o
fato de uma ser pautada pelo amor romântico e outra pelo amor fraterno).
Assim, tem-se por inequívoco que foi mudado o conceito da família no mundo contemporâneo.
Enquanto durante a maior parte do século XX reconhecia-se apenas a família sacralizada pelo casamento
civil, a partir do final do referido século as famílias passaram a se formar principalmente por meio das
uniões amorosas em detrimento do modelo institucional anterior, cuja crise derrocou no ingresso da
afetividade como fundamento maior da família contemporânea74. Tal mudança decorreu do fato de que,
ao longo do século XX, a sociedade passou a dar muito mais importância à affectio maritalis75 (que é a
“vontade específica de firmar uma relação íntima e estável de união, entrelaçando as vidas e gerenciando
em parceria os aspectos práticos da existência”76) do que à mera formalidade do casamento civil para a
formação de suas famílias. Isso porque, apesar de o Código Civil de 1916 estabelecer que o vínculo
matrimonial era indissolúvel (embora a sociedade conjugal, na época, pudesse ser dissolvida pelo antigo
desquite), quando o casamento civil “fracassava” ou quando os companheiros simplesmente não queriam
se casar civilmente, passavam eles a manter uma relação amorosa não matrimonializada, mesmo não
sendo isso aceito pelo referido diploma legal – o que se caracterizava como “concubinato impuro” (que é
o atual concubinato): ou seja, a união amorosa de duas pessoas impedidas de se casar, no caso, por se
encontrarem formalmente casadas, embora separadas pelo fracasso do seu casamento indissolúvel77.
Com o passar das décadas, tal situação foi-se tornando cada vez mais comum, tendo sido esta a
causa da criação da notória Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal78, que, sem dar ares de
legitimidade ao concubinato, pelo menos passou a garantir-lhe os efeitos jurídicos oriundos da “teoria
das sociedades de fato”, por meio de uma analogia às sociedades empresariais não registradas do Direito
Comercial. Assim, mesmo não sendo juridicamente reconhecidas como famílias “legítimas”, as uniões
concubinárias se multiplicaram com o passar dos anos – principalmente no que tange ao antigo
concubinato puro (aquele entre pessoas não impedidas de se casar).
Como se pode ver, a sociedade humana deixou de considerar a mera formalidade do matrimônio
civil como o elemento determinante da família. Com a maior convivência dos casais, oriunda da
passagem da sociedade rural para a sociedade urbana, passaram as pessoas a valorizar cada vez mais o
amor existente na relação, sendo que o término de dito sentimento ensejava o término da relação familiar,
em que pese a legislação da época não possibilitar o divórcio. Dada a ausência dessa possibilidade, as
pessoas passavam a viver em “casamentos de conveniência”, separadas de fato ou então desquitadas, não
obstante o repúdio da sociedade da época a estas últimas condutas. Afinal, o que sempre importou a
partir do século XX foi a busca pela felicidade, mesmo que isso importasse em uma vida fora dos
contornos do Direito.
Dessa simples exposição vê-se que a sociedade atual considera o amor familiar como o elemento
formador da família contemporânea, uma vez que é ele que determina a união familiar de duas pessoas, e
não a mera formalidade do matrimônio civil79.
Por outro lado, convém deixar claro que o amor não é capaz de, isoladamente, formar uma entidade
familiar, muito embora seja seu principal elemento. Uma família não se forma apenas pelo amor, mas
pela conjugação do amor a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, de forma a que o casal: (i) efetivamente desenvolva uma vida em comum, com divisão de
alegrias e tristezas; (ii) se identifique perante seu grupo de convivência enquanto tal; (iii) esteja em união
amorosa por um período de tempo contínuo, ou seja, sem intervalos de separação; e, por fim, (iv) esteja
em união amorosa duradoura, dentro de um lapso temporal a caracterizar a estabilidade da relação. É o
afeto familiar80 citado por Sérgio Rezende Barros, claramente oriundo da interpretação teleológica dos
arts. 1.511 e 1.723 do CC/2002.
Ou seja, é a soma do amor a uma comunhão plena de vida e interesses81, de forma pública,
contínua e duradoura82, com o intuito de constituir família, o que basta para a formação da família
juridicamente protegida. Fica claro, dessa forma, que o amor que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura é o amor familiar que forma a família
contemporânea, tendo sido superado o antigo modelo de “família institucional”, que era aquela formada
por um modelo fechado, existente por si mesmo independentemente do sentimento de seus membros, e
que tinha que cumprir com determinadas formalidades para ser juridicamente protegido, para ser
reconhecida a família afetiva, oriunda do amor existente na relação83-84.
Ademais, a constatação de que o elemento formador da família contemporânea é o amor que vise a
uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura foi, inclusive,
positivada, o que se percebe pela interpretação teleológica dos arts. 1.511 e 1.723 do Código Civil85. Ou
seja, nota-se que o casamento civil, que ainda é visto como o modelo ideal de família pelo nosso
ordenamento jurídico-constitucional visa ao estabelecimento de uma comunhão plena de vida entre os
cônjuges, donde não se admite uma família que não seja pautada na convivência plena e integral de
interesses entre os parceiros – o que só existe na ocorrência de amor na relação, pois uma convivência
pública, contínua e duradoura entre dois amigos como se irmãos fossem (familiares, portanto) não
configura a união estável constitucionalmente consagrada (ainda que tal família fraterna merece proteção
equivalente à da união estável, por analogia, por ambas formarem entidades familiares, embora uma
forme uma família fraterna e outra uma família conjugal) – mesmo que tal relação se dê entre homem e
mulher, para aqueles que descabidamente se apegam à literalidade normativa sem atentar para a
teleologia do dispositivo constitucional em questão. A essa questão (que constitui um dos cernes deste
trabalho) se voltará no momento oportuno.
Por outro lado, a união estável reconhecida como entidade familiar é aquela baseada no amor e
exteriorizada em uma relação pública, contínua e duradoura, com o intuito de constituir que seja família,
ou seja, com o intuito de estabelecimento de uma comunhão plena de vida entre os companheiros, donde
se percebe claramente que o amor familiar é o elemento diferencial entre a união estável e as relações
negociais ou de amizade. É de se notar, ainda, que “constituir família” não significa “ter filhos” (prole),
tendo em vista que a capacidade procriativa não é condição elencada pela legislação constitucional e/ou
infraconstitucional para a válida formação do casamento civil e da união estável, assim como a ausência
de fertilidade não constitui causa de nulidade ou anulação do casamento civil, impedimento matrimonial
nem nada do gênero, por ausência de disposição normativa nesse sentido (lembrando-se que os
impedimentos matrimoniais são taxativos).
Disso fica ainda mais claro que “constituir família” significa manter uma relação amorosa que vise
a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, tendo em vista
que a interpretação teleológica dos textos normativos relativos ao casamento civil e à união estável
demonstra que a família constitui-se pela comunhão plena de vida e interesses entre os parceiros, em uma
comunidade de amor pública, contínua e duradoura que vise à construção de uma vida em comum, nada
mais86. No mesmo sentido, a lição de Marcos Bernardes de Mello87, para quem “Esse requisito de que
haja, entre os conviventes, o objetivo de constituir família tem recebido a crítica doutrinária, porque não
deve haver, apenas, o objetivo, mas, efetivamente, constituir uma família. Que significa isto?
Inicialmente, o desejo de uma vida em comum. Não que precisem ter a intenção de ter filhos. Requer-se,
apenas, que os conviventes passem a viver perante as pessoas que formam seu círculo social como uma
família, assumindo um estado em tudo semelhante ao de pessoas casadas, concedendo-se, mutuamente,
o tratamento, a consideração, o respeito que se devem dispensar, reciprocamente, os esposos,
conforme sugere Zeno Veloso”.
Outrossim, destaque-se que a expressão “o homem e a mulher” não constitui “proibição implícita”
ao reconhecimento da união estável homoafetiva assim como do casamento civil homoafetivo, tendo em
vista que não existem proibições implícitas em Direito. Ou o texto normativo proíbe expressamente
determinado fato ou a extensão de determinado regime jurídico, ou ele é tido como totalmente permitido,
nos termos do art. 5.o, II, da CF/1988, que estabelece que ninguém será obrigado a deixar de fazer algo
senão em virtude de lei, donde, da mesma forma, somente o texto normativo expresso pode excluir
determinadas pessoas da proteção de determinados regimes jurídicos, como o casamento civil e a união
estável. Nesse sentido, como não há texto normativo que proíba expressamente o casamento civil e a
união estável entre pessoas do mesmo sexo, e igualmente não há legislação que diga que a união
homoafetiva não constituiria uma família juridicamente protegida, tem-se como descabido o
entendimento interpretativo que vise excluir as uniões amorosas formadas por pessoas do mesmo sexo da
proteção do Direito de Família pátrio, inclusive por violar lição clássica de Direito Civil segundo a qual
o fato de a lei citar um fato e não proibir outro ao regulamentar um regime jurídico implica lacuna
normativa, passível de colmatação por interpretação extensiva ou analogia, e não “proibição implícita”,
na medida em que a lei deixar de citar um fato quando regulamenta outro é pressuposto da aplicação de
tais técnicas interpretativas para colmatação de lacunas normativas. Esse assunto será tratado
pormenorizadamente em capítulos próprios, que tratam da possibilidade jurídica do casamento civil e da
união estável entre pessoas do mesmo sexo.
É de se notar, ainda, que o Direito das Famílias pretende tutelar a família, ou seja, todas as uniões
que se caracterizem como famílias no sentido ontológico do termo, em que não pode a família
juridicamente protegida deixar de tutelar aquelas famílias que não estejam expressamente proibidas
pelo Direito de receberem efeitos jurídicos. Afinal, “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei”, nos termos do art. 5.º, II, da Constituição Federal – e deixar de
conceder efeitos jurídicos a determinada “família” é o mesmo que dizer que ela não é aceita pelo
Direito, o que só pode ser feito de forma expressa ante o princípio de que não há nulidade sem texto
(sendo que a interpretação teleológica desta regra denota que, igualmente, não há restrição de
direitos sem texto), decorrente do citado artigo constitucional.
Cabe agora um esclarecimento: o leitor poderá estar se perguntando sobre o porquê do uso da
expressão amor familiar em vez de simplesmente amor ou afeto. Isto decorre do fato da experiência
deste autor, ao defender perante outros juristas o afeto como o elemento formador da família
juridicamente protegida, ter ouvido como resposta, por vezes, algo como: “ora, mas se assim o fosse
então toda sociedade comercial formaria uma família, em decorrência da affectio societatis ali
existente”. Contudo, tal colocação é absolutamente equivocada, tendo em vista que a affectio societatis é
completamente distinta da affectio maritalis existente nas famílias oriundas das uniões amorosas. Com
efeito, a affectio societatis visa unicamente à formação de uma sociedade empresarial em decorrência da
mera afinidade dos sócios entre si, que visam ou a um conteúdo econômico (lucro) ou a uma atividade
beneficente (no caso de associações e/ou fundações sem fins lucrativos). A affectio maritalis (o amor
familiar), por outro lado, busca uma comunhão plena de vidas e interesses, baseada no amor, por meio da
vida em comum, auxiliando o companheiro/cônjuge em todos os momentos de dificuldade de sua vida,
estando presente e comemorando todos os seus sucessos e momentos felizes, e assim por diante –
conforme preconizado pelo já transcrito art. 1.511 do Código Civil. Assim, tem-se que a affectio
societatis e a affectio maritalis são sentimentos completamente distintos, sendo o segundo o elemento
formador da família contemporânea e, consequentemente, da atual família juridicamente protegida, e
não o primeiro. Esta é a razão pela qual me refiro ao afeto protegido pelo Direito das Famílias como
amor familiar ao longo desta obra, para que não haja a menor possibilidade de confusão de dito conceito
com a affectio societatis do Direito Comercial.
Desta feita, considerando-se que as famílias homoafetivas têm o mesmo elemento determinante da
formação das famílias heteroafetivas, qual seja o amor familiar/afeto familiar88, afeto este que vise a
uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, é inconstitucional a
discriminação jurídica89 das primeiras em relação às segundas, levando-se em conta unicamente a
orientação sexual do par, por afronta aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana,
normas constitucionais de eficácia plena que são, conforme se demonstrará detidamente nos próximos
capítulos.
Cabe, aqui, um último esclarecimento para finalizar o tópico. Muitos juristas (e inclusive alguns
julgados) costumam negar o caráter jurídico-familiar das uniões homoafetivas e, quando confrontados
com a constatação de que o amor familiar é o elemento formador da família contemporânea, dizem que a
lei estaria sendo “clara” ao citar a união “entre o homem e a mulher”, donde o afeto seria irrelevante
para o deslinde da causa. Ou seja, partem de uma visão de extremo legalismo, já totalmente ultrapassada
pela ciência jurídica, recusando-se a realizar uma interpretação teleológica acerca do tema – dizem que a
união homoafetiva não formaria uma família juridicamente protegida, mas não se dignam a dizer o que
formaria a família juridicamente protegida segundo seu entendimento. Esse posicionamento, contudo, é
equivocado. Com efeito, é de se notar que a união estável não se forma por uma mera “convivência
pública, contínua e duradoura” entre duas pessoas. Se dois amigos ou dois irmãos morarem juntos de
forma pública, contínua e duradoura eles não estarão formando nenhuma união estável90. Da mesma
forma, um homem e uma mulher que não mantenham um vínculo amoroso entre si, mas morem juntos de
forma pública, contínua e duradoura por questão de conveniência (como para mera divisão de despesas),
não estarão formando uma “união estável”.
Ou seja, é evidente que é o amor romântico o elemento essencial da união estável e,
consequentemente, da família juridicamente protegida e do casamento civil. Quanto a este, ninguém
nunca se deu ao trabalho de questionar qual seria o seu elemento essencial pelo fato de que a prova do
casamento civil se dá pela mera certidão de casamento, ao contrário da união estável, que é uma união de
fato e que, por isso, precisa ser comprovada pela via judicial.
De qualquer forma, conforme salientado, uma união pública, contínua e duradoura entre duas pessoas
que não mantenham entre si uma união amorosa, mas mera relação de amizade não forma a união estável,
visto que esta se caracteriza justamente por ser uma união amorosa. A legislação exige para o
reconhecimento de uma união amorosa de fato como união estável o seu caráter público, contínuo e
duradouro. Contudo, reitere-se que é o amor romântico o elemento diferencial da união estável da
relação de amizade entre duas pessoas, donde o amor não é “irrelevante” no julgamento de uma ação que
vise a reconhecer uma união estável – ele é o aspecto mais relevante, justamente por ser o elemento
formador da família contemporânea. Reitere-se, ainda, para que não se vislumbre inexistente contradição
entre o que se disse aqui e acima, que a união pública, contínua e duradoura entre dois amigos deverá ser
considerada como uma família fraterna se houver amor fraterno pautado em uma comunhão plena de
vida e interesses entre eles, a despeito da inexistência de relações sexuais entre ambos. A união pública,
contínua e duradoura despida de comunhão plena de vida não constitui família, ao passo que a união
pública, contínua e duradoura caracterizada por uma comunhão plena de vida e interesses (ou seja, com o
intuito objetivamente caracterizado de constituir família) caracteriza uma entidade familiar, seja o
afeto/amor em questão romântico ou fraterno.

2.5 A família e a Constituição Federal de 1988


A família é a base da sociedade brasileira e deve receber especial proteção do Estado. É o que
dispõe o art. 226, caput, da CF/1988.
Um grande avanço trazido pela Constituição Federal de 1988 foi o reconhecimento jurídico-familiar
das uniões amorosas, de caráter estável, formadas por duas pessoas (além da família monoparental). É o
que dispõe o art. 226, § 3.º, da CF/1988 (a inexistência de restrição da união estável às uniões
heteroafetivas será abordada em capítulo próprio). Assim, a ideia do casamento civil como
indispensável à constituição de uma família “legítima” foi extirpada de nosso ordenamento jurídico com
o advento da Constituição Federal de 1988, uma vez que esta passou a reconhecer a união estável como
entidade familiar.
Foi consagrada, ainda, a tese de que a capacidade procriativa da entidade familiar não é
indispensável à constituição da família, uma vez que elevou à condição de entidade familiar a família
monoparental, que é a comunidade formada por um dos pais e seu(s) descendente(s). Ora, se a
capacidade procriativa da família fosse indispensável à existência jurídica da família, então seria
extremamente contraditório o reconhecimento dessa modalidade (monoparental), sendo que a
Constituição não prega que seja uma exceção ao conceito de família – a Constituição sequer conceituou a
família. Ou, como diz Paulo Lôbo91:

O modelo igualitário da família constitucionalizada se contrapõe ao modelo autoritário do


Código Civil anterior. O consenso, a solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas que a
integram são os fundamentos dessa imensa mudança paradigmática, que inspiraram o marco
regulatório estampado nos arts. 226 a 230 da Constituição de 1988.

Verifica-se, assim, que a Constituição Federal não restringiu a família à união formada por duas
pessoas que tenham contraído entre si o casamento civil, uma vez que admitiu expressamente que ela se
forma, também, a partir do momento em que duas pessoas unem-se amorosamente com o intuito de uma
comunhão de vida e interesses de forma pública, contínua e duradoura (união estável), assim como pela
família monoparental. Cumpre esclarecer que esses modelos não são taxativos, porque, se esse fosse o
intuito da Constituição o constituinte teria elaborado um dispositivo que declarasse expressamente tal
restrição – mesmo porque restrições a direitos devem ser expressas, pois tudo que não é por lei
expressamente proibido tem-se por permitido, conforme explicita o art. 5.º, II, da CF/1988, em
interpretação a contrario sensu.
Ademais, ao contrário do que pregam alguns, a Constituição Federal não restringiu a família
decorrente da união amorosa somente àquela formada por pessoas de sexos diversos e igualmente não
definiu o casamento civil como “regra” de família a ser seguida – esse era o modelo das Constituições
anteriores, que não se repetiu com o advento da Carta Magna de 1988. Isso porque, em primeiro lugar, a
Constituição não conceituou a família – apenas fala que a família é a base da sociedade brasileira. Por
outro lado, a Carta Magna não proibiu as uniões homoafetivas, além de não dizer que somente se forma a
família oriunda da união amorosa por meio da união heteroafetiva.
Nesse sentido, cumpre ressaltar que a restrição de direitos somente se faz mediante enunciado
normativo expresso. Pois bem: onde está o texto normativo que restringe o Direito das Famílias às uniões
heteroafetivas? A resposta: em lugar nenhum! Essa vedação normativa não existe. Defender que a
redação do § 3.º do art. 226 da Lei Maior proibiria a união estável entre pessoas do mesmo sexo, ou
ainda que restringiria a entidade familiar às uniões amorosas formadas por pessoas de sexo diverso,
significa simplesmente ignorar uma série de princípios de hermenêutica jurídica, além dos princípios da
igualdade, da dignidade da pessoa humana, da analogia e da interpretação extensiva (estes dois
decorrentes da isonomia e consagrados por lei – arts. 4.o da LICC e 126 do CPC). Os conteúdos jurídicos
dos dois primeiros já foram explicitados neste trabalho – em síntese, vedam eles a arbitrariedade
jurídica, ou seja, a discriminação arbitrária, que é aquela que não é dotada de uma motivação lógico-
racional que a justifique ante o critério desigualador erigido (que, nesse caso, é a conjugação dos sexos
do casal, caracterizadora da orientação sexual das pessoas envolvidas). A discriminação efetuada nos
dias de hoje é clara: enquanto se garantem às uniões heteroafetivas todas as benesses do Direito de
Família, colocam-se as uniões homoafetivas em um grau inferior, visto que a sua exclusão do conceito de
família juridicamente protegida implica a não concessão dos efeitos benéficos do Direito das Famílias a
estas, no que importa atribuir-lhes os efeitos concedidos às uniões concubinárias, o que ocasiona uma
proteção jurídica bem menor. Nesse sentido, conforme será demonstrado nos capítulos subsequentes,
considerando que inexiste motivação lógico-racional a justificar dita discriminação, tem-se que ela
afronta os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana e, portanto, deve ser afastada por
interpretação extensiva ou analogia.
Afinal, a interpretação extensiva visa estender o regime jurídico da situação citada pelo texto
normativo à situação não citada devido a serem idênticas, visto que estabelece que, caso o legislador ou
mesmo o constituinte tenha exemplificado na redação do dispositivo legal quando pretendeu garantir
proteção jurídica a um fato jurídico, ou então, caso desconhecesse que outras situações também se
enquadravam na proteção por ele pretendida, deveria tal proteção ser igualmente garantida a todas as
variações daquele fato jurídico, não expressamente citadas no dispositivo legal, por se tratar de situações
idênticas. Já a analogia implica a concessão dos efeitos jurídicos garantidos a determinado fato jurídico
a outro que, apesar de não regulamentado, tem o mesmo elemento essencial daquele expressamente
regulamentado, pois, apesar de serem distintos, são idênticos naquilo que é essencial à regulamentação,
donde merecem a mesma proteção jurídica. A diferença entre a interpretação extensiva e a analogia é
que, na primeira, trata-se de uma variação do mesmo fato expressamente citado, ao passo que, na
segunda, trata-se de um fato diferente, mas semelhante naquilo que é fundamental àquele expressamente
regulamentado, razão pela qual se garante ao último a mesma proteção jurídica conferida ao primeiro.
Como se vê, são elas instrumentos hermenêuticos de integração do Direito decorrentes da isonomia,
criadas em decorrência da impossibilidade de regulamentar todos os fatos jurídicos existentes, devido às
constantes mudanças da sociedade, cujos envolvidos e suas necessidades não podem ser ignorados e
marginalizados pelo Direito.
No caso das famílias decorrentes da união amorosa entre duas pessoas, como suprademonstrado, o
elemento que as caracteriza é o amor existente na relação, que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, razão pela qual considero as uniões homoafetivas
idênticas às heteroafetivas, visto serem ambas situações nas quais temos duas pessoas que se amam
romanticamente em uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura –
mas, ainda que assim não se entenda, é inegável que são idênticas pelo menos no essencial, que é o
amor familiar, visto que é ele o elemento formador da família contemporânea.
Assim, sendo reconhecida a entidade familiar decorrente das uniões amorosas entre pessoas de
sexos diversos, deve ela ser igualmente reconhecida naquelas uniões formadas por pessoas do mesmo
sexo, em decorrência da interpretação extensiva ou da analogia, uma vez que o amor familiar existente
nos dois casos é idêntico, visando os pares a uma comunhão plena de vida, em caráter estável, público,
contínuo e duradouro, ou seja, visando a constituição de uma família – e constituir família não é algo
vinculado à filiação.
Portanto, não reconhecer a família formada pela união amorosa formada entre duas pessoas do
mesmo sexo implica criar uma proibição/discriminação que não existe em nosso ordenamento jurídico-
legal-constitucional, o que é expressamente defeso pelo já citado art. 5.º, II, da CF/1988, já que nossa Lei
Maior não diz que uniões homoafetivas não formam entidades familiares. Ressalte-se, novamente, que
esse assunto será tratado pormenorizadamente adiante.

2.5.1 Dos dispositivos constitucionais que tratam da família. Da ausência de proibição às famílias
homoafetivas ou de dispositivo que não as reconheça. A interpretação do Ministro Ayres Britto no
julgamento da ADPF 132 e na ADI 4.277
Os opositores do reconhecimento da família homoafetiva alegam, em geral, que a Constituição
Federal teria previsto “apenas” a família formada por um homem e uma mulher, ou seja, a família
heteroafetiva. Todavia, é equivocado este entendimento. Com efeito, é de se ressaltar que a Constituição
Federal não prevê, taxativamente, quais seriam os modelos de família por ela protegidos. Se o fizesse,
teria sido redigido um dispositivo que dissesse que “Somente serão protegidas as seguintes
famílias...”, “Apenas serão protegidas as seguintes famílias...” ou algo similar, o que não é o que
ocorre em nosso texto constitucional.
O art. 226, caput, estabelece apenas que a família é a base da sociedade brasileira e tem especial
proteção do Estado. Em nenhum momento coloca o casamento civil como “regra” da família
juridicamente protegida, como faziam as Constituições anteriores, assim como também não afirma que o
que se entende por família seria apenas o casamento civil, a união estável e a comunidade formada por
qualquer dos pais com seus descendentes, como aduzem alguns. Igualmente, não proíbe em nenhum
momento o reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas – como bem reconhecido
pelo Ministro Ayres Britto em seu voto no julgamento da ADPF 132 e na ADI 4.277, em longa
manifestação que concluiu, acertadamente, que “a Constituição Federal não faz a menor diferenciação
entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não
distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de
inclinação homoafetiva”, em que, interpretando de forma não reducionista o conceito de família, penso
que o STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo de
coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em
discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico”, entende que “a família é, por natureza ou
no plano dos fatos, vocacionadamente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros,
constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas
relações humanas de índole privada. O que a credencia como base da sociedade, pois também a
sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e espiritualmente estruturada”, a saber, “uma
forma superior de vida coletiva, porque especialmente inclinada para o crescimento espiritual dos
respectivos integrantes. Integrantes humanos em concreto estado de comunhão de interesses, valores e
consciência da partilha de um mesmo destino histórico. Vida em comunidade, portanto, sabido que
comunidade vem de ‘comum unidade’” 92.
Os parágrafos do referido dispositivo, da mesma forma, não definem o que seria a “família
constitucionalmente protegida”, conforme se passa a demonstrar:
§ 1.º: este dispositivo afirma que o casamento juridicamente válido é apenas o civil, não tendo
nenhum valor para o Direito o casamento meramente religioso (que serve, apenas, como prova de união
estável). Em nenhum momento traz alguma proibição ao casamento civil homoafetivo ou alguma relação
do casamento civil com o casamento religioso;
§ 2.º: aqui a Constituição apenas aduz que o casamento religioso somente produzirá efeitos jurídicos
caso seja ratificado pelo ordenamento jurídico – é o denominado casamento religioso com efeitos civis.
Este dispositivo apenas possibilita que aqueles que queiram consagrar sua união amorosa de acordo com
seu credo religioso possam, igualmente, ter os direitos civis oriundos da relação matrimonial
juridicizada garantidos à sua união. Contudo, em nenhum momento afirma o referido dispositivo que o
casamento civil não seria possível a casais homoafetivos – e o simples fato de o casamento religioso em
geral não ser possível de ser contraído por pessoas do mesmo sexo por conta de arbitrários dogmas
religiosos não implica o fato de isso ocorrer com o casamento civil em decorrência do princípio do
Estado Laico, que veda a influência de qualquer religião na vida política e jurídica do País, além do
referido dispositivo não trazer nenhuma relação necessária entre casamento civil e casamento religioso;
Nenhum desses dispositivos limita o casamento civil a casais heteroafetivos, consoante voto do
Ministro Ayres Britto na ADPF 132 e na ADI 4.27793, apenas servindo-se, teleologicamente, a prestigiar
o casamento civil como “um pacto afetivo que se deseja tão publicamente conhecido que celebrado ante
o juiz, ou o sacerdote juridicamente habilitado, e sob o testemunho igualmente formal de pessoas da
sociedade. Logo, um pacto formalmente predisposto à perdurabilidade e deflagrador de tão conhecidos
quanto inquestionáveis efeitos jurídicos de monta (...) uma forma de constituição da família que se
apresenta com as vestes da mais ampla notoriedade e promessa igualmente pública de todo empenho pela
continuidade do enlace afetivo, pois, ao fim e ao cabo, esse tipo de prestígio constitucional redunda em
benefício da estabilidade da própria família”.
§ 3.º: este parágrafo consagra a grande evolução da Constituição Federal de 1988, qual seja o
reconhecimento da união amorosa não consagrada pelo casamento civil como entidade familiar. Em
nenhum momento define este dispositivo o que seria a família juridicamente protegida, apenas
reconhece que a união estável formada por duas pessoas que não sejam casadas também é considerada
como entidade familiar, uma das espécies das famílias juridicamente reconhecidas. Assim, consagra este
dispositivo o “amor familiar”94 como o elemento formador da família contemporânea, visto que se não
é alguma formalidade que gera a entidade familiar juridicamente protegida, então só pode ser o
sentimento de amor, aliado à comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, o que forma a entidade familiar protegida pela Constituição Federal.
Quanto a este dispositivo especificamente, os opositores ao reconhecimento da família conjugal
homoafetiva em geral apoiam-se exclusivamente na expressão “o homem e a mulher”, entendendo que
seria ela proibitiva da união estável e, em suma, da entidade familiar homoafetiva. Chegam inclusive a
afirmar que, em sendo a diversidade de sexos “exigida” para a união estável, também o seria para o
casamento civil, sob o fundamento de que o que se exige ao “menos” também se exigiria ao “mais”.
Contudo, em um enorme equívoco hermenêutico, esquecem-se aqueles que isso afirmam que toda norma
tem como objeto de proteção determinado elemento por ela considerado como importante por meio de
uma valoração. Ou seja, não é a letra fria do texto normativo que prevalece, mas sua a finalidade, o seu
objeto de proteção. Mesmo porque, como tive oportunidade de afirmar em sustentação oral perante o
Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, o art. 226, § 3.º, diz que é
reconhecida a união estável “entre o homem e a mulher” não significa que ele disse que a união estável é
reconhecida “apenas entre o homem e a mulher” – como o apenas não está escrito, não há limites
semânticos no texto que impeçam a exegese constitucional inclusiva aqui pretendida, de extensão da
união estável a casais homoafetivos por interpretação extensiva ou analogia (pois não se diz que a
expressão “o homem e a mulher” abarcaria a união homoafetiva, mas que ela é apenas exemplificativa,
não proibitiva da exegese extensiva/analógica inclusiva da união homoafetiva no conceito de união
estável).
Nesse sentido, cabe indagar: qual foi o elemento valorativamente protegido pelo Constituinte quando
elaborou o § 3.º do art. 226 da Constituição Federal? A mesma pergunta deve ser feita quanto ao objeto
de proteção do casamento civil no art. 1.514 do Código Civil. A resposta a estas perguntas é que
determinará se as uniões homoafetivas podem ou não ser reconhecidas como famílias juridicamente
protegidas nos dias de hoje.
Por uma questão de ordem, no que tange ao conteúdo, prefiro tratar dessa questão no Capítulo 7, que
versa especificamente sobre a união estável e sua aplicabilidade às uniões homoafetivas, razão pela qual
remeto o leitor àquele Capítulo para a continuação deste debate. Em síntese, o que se pode dizer é que o
elemento protegido pela norma constitucional e pelas normas infraconstitucionais que versam sobre a
união estável é a família conjugal, formada pelo amor familiar, ou seja, pelo amor que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, sentimento este que é o
elemento formador da família contemporânea. Assim, apesar da omissão do enunciado normativo no que
tange às uniões homoafetivas, a união estável é possível entre elas, por meio da interpretação extensiva
ou da analogia, que são técnicas de integração do ordenamento jurídico decorrentes da isonomia que
visam tratar igualmente os iguais ou então os fundamentalmente iguais, visto que os princípios
constitucionais são a forma correta de interpretar a Constituição Federal (conforme explicitado naquele
capítulo).
Não foi outra a conclusão do Ministro Ayres Britto no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277 ao
afirmar que este nada tem a ver com a dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade; afinal,
“que não se faça uso da letra da Constituição para matar o seu espírito”, mas apenas a consagração da
noção de que o casamento civil não é a única forma de constituição de uma família legítima de proteção
estatal, bem como garantia contra o preconceito inferiorizante da mulher relativamente ao homem nas
relações conjugais entre companheiros95.
§ 4.º: este dispositivo apenas prevê, expressamente, que a comunidade formada por qualquer um dos
pais com seus descendentes também configura uma entidade familiar, pelo mesmo motivo exposto
anteriormente: o preconceito que existia antes de 1988 com esse modelo familiar, que gerava sua
exclusão do Direito das Famílias, o que fez que o Constituinte Originário deixasse expressa sua proteção
jurídico​-familiar. Ou seja, não há nada a ser interpretado como proibição ou restrição de direitos às
uniões homoafetivas – também foi esta a conclusão do Ministro Ayres Britto, ou seja, que este dispositivo
constitucional serviu-se ao reconhecimento da família monoparental como entidade familiar, não
significando que o rol de entidades familiares constitucionalmente enunciadas seria taxativo96;
§ 5.º: o mesmo motivo que levou o constituinte a prever no inc. I do art. 5.º da Constituição que
homens e mulheres são iguais perante a lei o fez deixar expresso que o homem e a mulher são iguais na
sociedade conjugal, mesmo já tendo consagrado a isonomia no caput do art. 5.o. Com efeito, sob a égide
do Código Civil de 1916 o marido-homem era o chefe da sociedade conjugal, cabendo a ele dirigi-la,
segundo seus próprios desígnios, em nada importando a vontade da esposa​-mulher para aquele diploma
legal. Tanto era assim que a mulher deixava de ser plenamente capaz para se tornar relativamente capaz
quando contraía núpcias (em uma absurda capitis diminutio). Somente após o Estatuto da Mulher Casada
é que a esposa-mulher passou a ter alguma participação na direção da sociedade conjugal, como
colaboradora na direção da sociedade conjugal, mesmo assim prevalecendo a vontade do marido em
caso de discordância até sentença judicial que dispusesse em contrário.
Enfim, este dispositivo constitucional tem apenas o condão de esclarecer que no casamento civil
heteroafetivo ambos os cônjuges têm exatamente os mesmos direitos e obrigações no comando da
sociedade conjugal, ao contrário do que ocorria antes de 1988, quando a vontade do marido prevalecia
sobre a da mulher. Nas palavras do Ministro Ayres Britto, esse dispositivo “se deve ao propósito
constitucional de não perder a menor oportunidade de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem
hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano”97; todavia, não tem o condão de restringir o
casamento civil apenas a casais heteroafetivos, mas apenas o de disciplinar os direitos e deveres dos
cônjuges heteroafetivos, nada mais. Em outras palavras, não traz nenhuma disposição sobre a relação
homoafetiva (permitindo-a ou proibindo-a), apenas estabelece uma regra atinente à relação heteroafetiva,
nada mais. Defender o contrário significa dar ao dispositivo constitucional um alcance proibitivo que ele,
efetivamente, não tem;
§ 6.º: este dispositivo apenas estabelece que o vínculo matrimonial pode ser dissolvido pelo
divórcio98, na forma da lei infraconstitucional. Nada traz que possa levar ao entendimento da proibição
do matrimônio civil homoafetivo ou da família homoafetiva;
§ 7.º: trata este dispositivo do planejamento familiar, estabelecendo caber livremente ao casal
elaborá-lo com base no princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, devendo
o Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedando apenas
qualquer forma coercitiva por parte das instituições oficiais ou privadas nesse sentido. Não traz, em
nenhum momento, qualquer proibição ao reconhecimento da família conjugal homoafetiva ou ao
casamento civil homoafetivo;
§ 8.º: estabelece este dispositivo que deve o Estado assegurar assistência a cada um dos membros da
família, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Não proíbe, em nenhum
momento, a família conjugal homoafetiva, nem limita o Direito de Família apenas às heteroafetivas, o
mesmo valendo quanto ao casamento civil;
Art. 227: o caput e seus parágrafos esmiúçam o princípio da integral proteção à criança e ao
adolescente, apontando os direitos do menor e os deveres correlatos do Estado e da sociedade. Em
nenhum momento proíbe a família conjugal homoafetiva ou ainda o casamento civil homoafetivo.
Relativamente a seu § 5.º, o Ministro Ayres Britto reitera a inexistência de qualquer distinção
constitucional entre adotantes homoafetivos ou heteroafetivos, de sorte a possibilitar a adoção tanto por
um homossexual isoladamente considerado quanto a um casal homoafetivo99.
Os dispositivos acima esmiuçados são todos aqueles que tratam da família na Constituição Federal.
A análise de todos eles não tem como levar à conclusão de que a família conjugal constitucionalmente
protegida seria apenas a heteroafetiva, e muito menos que estariam proibidos o casamento civil
homoafetivo e a união estável homoafetiva, pelas razões supraexpostas (interpretação sistemática com a
isonomia e a dignidade da pessoa humana).

2.5.1.1 O princípio da pluralidade de entidades familiares. Art. 226, caput, da CF/1988


Rodrigo da Cunha Pereira100 bem explicita o princípio constitucional da pluralidade de entidades
familiares nos seguintes termos:

Alguns doutrinadores defendem que o art. 226 da Constituição é uma “norma de clausura”, na
medida em que elenca as entidades familiares que são objeto da proteção do Estado. Não se afigura
adequada tal argumentação, pois várias outras entidades familiares existem além daquelas ali
previstas, e independentemente do Direito. A vida como ela é vem antes da lei jurídica. Jacques
Lacan, em 1938, demonstrou, em seu texto A família (publicado no Brasil com o nome Complexos
familiares), a dissociação entre família como fato da natureza e como um fato cultural, concluindo
por essa última vertente. Ela não se constitui apenas de pai, mãe e filho, mas é antes uma
estruturação psíquica em que cada um de seus membros ocupa um lugar, uma função, sem estarem
necessariamente ligados biologicamente. Desfez-se a ideia de que a família se constituiu,
unicamente, para fins de reprodução e de legitimidade para o livre-exercício da sexualidade. Paulo
Luiz Netto Lobo, com a autoridade de um dos grandes civilistas brasileiros da atualidade,
baseando-se na principiologia constitucional, conclui que “a exclusão não está na Constituição, mas
na interpretação”. Ao contrário dos textos constitucionais anteriores, a Carta Magna de 1988,
embora não tenha nominado todas as entidades de família existentes (tarefa de difícil execução),
chancelou-lhes proteção ao suprimir a locução “constituída pelo casamento”, presente nas
Constituições de 1967 e de 1969. O jurista alagoano garante que a enumeração é apenas
exemplificativa. (...) A família passou a ser, predominantemente, locus de afeto, de comunhão do
amor, em que toda forma de discriminação afronta o princípio basilar do Direito de Família. Com
a personalização dos membros da família eles passaram a ser respeitados em sua esfera mais íntima,
na medida em que disto depende a própria sobrevivência da família, que é um “meio para a
realização pessoal de seus membros. Um ideal em construção”, conforme salienta Rosana Fachin. É
na busca da felicidade que o indivíduo viu-se livre dos padrões estáticos para construir sua
família. É, portanto, da Constituição da República que se extrai o sustentáculo para a
aplicabilidade do princípio da pluralidade de família, uma vez que, em seu preâmbulo, além de
instituir o Estado Democrático de Direito, estabelece que deve ser assegurado o exercício dos
direitos sociais e individuais, bem como a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça como
valores supremos da sociedade. Sobretudo da garantia da liberdade e da igualdade, sustentadas pelo
macroprincípio da dignidade, é que se extrai a aceitação da família plural, que vai além daquelas
previstas constitucionalmente e, principalmente, diante da falta de previsão legal. Diante da
hermenêutica do texto constitucional e, sobretudo, da aplicação do princípio da pluralidade das
formas de família, sem o qual estar-se-ia dando um lugar de indignidade aos sujeitos da relação que
se pretende seja família, tornou-se imperioso o tratamento tutelar a todo grupamento que, pelo elo
do afeto, apresente-se como família, já que ela não é um fato da natureza, mas da cultura, repita-
se (ver item 7, deste Capítulo). Por tratamento tutelar entenda-se o reconhecimento pelo Estado de
que tais grupamentos não são ilegítimos e, portanto, não estarão excluídos do laço social. (grifos e
destaques nossos)

No citado item 7, Rodrigo da Cunha Pereira, com base na lição de Sérgio Resende de Barros e de
Paulo Lôbo, afirma que não é qualquer afeto que gera a entidade familiar, porque do contrário qualquer
namoro o geraria, afirmando que o que gera a entidade familiar é o afeto/a afetividade (fundamento e
finalidade da família, com desconsideração do móvel econômico) conjugado(a) com a ostensibilidade
(que exclui relacionamentos casuais, sem compromisso) e a estabilidade (que pressupõe uma entidade
familiar reconhecida pela sociedade enquanto tal, que assim se apresenta publicamente). Acrescenta,
ainda, um outro elemento (“que, na verdade, reúne todos eles”), a saber, uma estrutura psíquica, pois é
a partir dela que Lacan pôde definir a família como uma estruturação psíquica em que cada um de seus
membros ocupa um lugar, uma função, sem estarem necessariamente ligados biologicamente101 –
estrutura psíquica familiar esta existente nas uniões homoafetivas, à identidade ou, no mínimo, à análoga
semelhança das uniões heteroafetivas agora que foi superada a visão patriarcal/hierarquizada de família
para se entender a família sob o enfoque eudemonista, ou seja, aquele voltado à felicidade de seus
membros, em igualdade de condições e funções na dinâmica familiar.
Assim102, tem-se a consagração implícita do princípio da pluralidade das entidades familiares pelo
caput do art. 226 da CF/1988, o que significa que o rol de famílias exposto nos seus parágrafos é
meramente exemplificativo e não taxativo – no qual o não reconhecimento do status jurídico-familiar das
uniões homoafetivas é inconstitucional por afronta ao caput do art. 226 da CF/1988, na medida em que a
união homoafetiva preenche os requisitos materiais de formação da família (afetividade, estabilidade e
convivência pública, contínua e duradoura, na lição de Paulo Lôbo103 – é dizer, o amor familiar
defendido neste trabalho104, ou seja, o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de
forma pública, contínua e duradoura), razão pela qual a união homoafetiva é uma família conjugal
constitucionalmente protegida e não pode, portanto, deixar de ser reconhecida pelo Poder Judiciário e
protegida com igualdade de condições com a família conjugal heteroafetiva.

2.5.2 Do objeto de proteção do Direito das Famílias


Tendo como base a Teoria Tridimensional do Direito, cabe agora indagar: qual o elemento
valorativamente protegido pelo Direito das Famílias e, consequentemente pelo casamento civil e pela
união estável? Esta pergunta é de fundamental importância, tendo em vista que sua resposta é que
determinará a possibilidade ou impossibilidade de extensão do Direito das Famílias aos casais
homoafetivos.
A resposta, no atual estágio de nosso ordenamento jurídico, é inequívoca: o elemento protegido pelo
Direito de Família é o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura, pois é esse sentimento que forma a família juridicamente protegida
contemporânea.
Essa afirmação é baseada na evolução do pensamento social acerca da importância da família:
afinal, como acima exposto, apesar de o Código Civil de 1916 não garantir nenhum direito às uniões
extramatrimoniais, estas se proliferaram de forma irrefutável no decorrer do século XX. Isso ocorreu
pelo fato de ter a sociedade brasileira passado a dar mais importância à sua felicidade do que às
formalidades previstas pela lei para a consagração das uniões amorosas, no sentido de que as pessoas
passaram a dar mais importância à sua felicidade fática (real) do que ao modelo jurídico considerado
ideal para a felicidade, que era o casamento civil indissolúvel, como demonstrado em tópico supra.
Vale a pena citar a posição de Paulo Lôbo105 a respeito do tema, que muito bem delineia a questão:

A família, ao converter-se em espaço de realização da afetividade humana, marca o


deslocamento da função econômico-político-religioso-procracional para essa nova função. Essas
linhas de tendências enquadram-se no fenômeno jurídico-social denominado repersonalização das
relações civis, que valoriza o interesse da pessoa humana mais do que suas relações patrimoniais. É
a recusa da coisificação ou reificação da pessoa, para ressaltar sua dignidade. A família é o espaço
por excelência da repersonalização do direito. (...) A excessiva preocupação com os interesses
patrimoniais que marcou o direito de família tradicional não encontra eco na família atual, vincada
por outros interesses de cunho pessoal ou humano, tipificados por um elemento aglutinador e
nuclear distinto – a afetividade. Esse elemento nuclear define o suporte fático da família tutelada
pela Constituição, conduzindo ao fenômeno que denominamos repersonalização. (...) A
restauração da primazia da pessoa, nas relações de família, na garantia da realização da afetividade,
é a condição primeira de adequação do direito à realidade. Essa mudança de rumos é inevitável.
(...) A família tradicional aparecia através do direito patrimonial e, após as codificações liberais,
pela multiplicidade de laços individuais, como sujeitos de direito atomizados. Agora, é fundada na
solidariedade, na cooperação, no respeito à dignidade de cada um de seus membros, que se obrigam
mutuamente em uma comunidade de vida. A família atual é apenas compreensível como espaço de
realização pessoal e afetiva, no qual os interesses patrimoniais perderam seu papel de principal
protagonista. A repersonalização de suas relações revitaliza as entidades familiares, em seus
variados tipos ou arranjos. (...) A família é sempre socioafetiva, em razão de ser grupo social
considerado base da sociedade e unida na convivência afetiva. A afetividade, como categoria
jurídica, resulta da transeficácia de parte dos fatos psicossociais que a converte em fato jurídico,
gerador de efeitos jurídicos.

Assim, sendo o objeto de proteção do Direito das Famílias o amor que vise a uma comunhão plena
de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, então é inegável que as uniões
homoafetivas são famílias conjugais juridicamente protegidas, inseridas no Direito das Famílias, por
força da interpretação extensiva ou, no mínimo, da analogia.

2.5.3 O afeto como princípio jurídico-constitucional. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
Os próximos quatro parágrafos foram citados pelo Ministro Celso de Mello106 no seu voto relativo
ao julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, no tópico em que reconheceu o afeto enquanto princípio
jurídico-constitucional implícito, oportunidade na qual afirmou, com perfeição, que “torna-se indiscutível
reconhecer que o novo paradigma, no plano das relações familiares, após o advento da Constituição
Federal de 1988, para fins de estabelecimento de direitos/deveres decorrentes do vínculo familiar,
consolidou-se na existência e no reconhecimento do afeto”107 para, pouco depois, transcrever os
parágrafos a seguir (além de trecho da petição inicial da ADIn 4.277 e da lição de Maria Berenice Dias
– e citação de outras obras doutrinárias em sentido análogo).
Como suprademonstrado, mudou-se o paradigma da família: de uma entidade fechada dentro de si,
válida por si mesma, passou a existir somente em função do amor entre os cônjuges/companheiros, tendo
em vista que a sociedade passou a dar mais relevância à felicidade, portanto à afetividade amorosa, do
que à mera formalidade do casamento civil ou a qualquer outra forma preconcebida de família.
Nesse sentido, o reconhecimento do status jurídico-familiar da união estável, por si, alçou o afeto à
condição de princípio jurídico implícito, na medida em que é ele, afeto (amor romântico, no caso), o
motivo que faz que duas pessoas decidam manter uma união estável. O elemento formador da família
contemporânea é o amor familiar, mas é o amor romântico que dá o passo inicial para a constituição da
união estável, embora haja outros argumentos a corroborar a afirmação de que o afeto é um princípio
jurídico.
Assim, tendo em mente essa mudança da concepção de família, Rodrigo da Cunha Pereira demonstra
como o art. 226, § 8.o, da Constituição Federal e o princípio da dignidade da pessoa humana alçam a
afetividade à condição de princípio jurídico, pois priorizam a necessidade da realização da
personalidade de seus membros em detrimento de qualquer concepção preestabelecida de entidade
familiar, no sentido de que a família só faz sentido para o Direito a partir do momento em que é veículo
funcionalizador à promoção da dignidade de seus membros, donde o afeto tornou-se um valor jurídico de
suma relevância para o Direito de Família108.
Assiste razão ao autor. Com efeito, a partir do momento em que a Constituição Federal reconheceu o
amor como o principal elemento formador da entidade familiar não matrimonializada, alçou a afetividade
amorosa à condição de princípio constitucional implícito, que pode ser extraído em função do art. 5.o, §
2.o, da CF/1988, que permite o reconhecimento de princípios implícitos por decorrentes dos demais
princípios e do sistema constitucional (além dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o
Brasil faça parte).
Essa evolução social quanto à compreensão da família elevou o afeto à condição de princípio
jurídico oriundo da dignidade da pessoa humana no que tange às relações familiares, visto que estas, para
garantirem o direito à felicidade e a uma vida digna (inerentes à dignidade humana), precisam ser
pautadas pelo afeto e não por meras formalidades como a do casamento civil109. Assim, o princípio do
afeto é um princípio constitucional implícito, decorrente da dignidade da pessoa humana e, ainda, da
própria união estável, que tem nele o principal elemento para reconhecimento do status jurídico-
familiar de uniões não matrimonializadas. Ademais:

(...) Paulo Luiz Netto Lôbo identifica na Constituição Federal quatro fundamentos essenciais do
princípio da afetividade: a igualdade de todos os filhos independentemente da origem (CF 227 §
6.o); a adoção como escolha afetiva com igualdade de direitos (CF 227 §§ 5.o e 6.o); a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo os adotivos, com a mesma dignidade
da família (CF 227, § 4.o) e o direito à convivência familiar como prioridade absoluta da criança e
do adolescente (CF 227)110.

Outrossim, o próprio Código Civil, implicitamente, reconhece o princípio da afetividade. Com


efeito, o diploma civilista:

Invoca somente o laço de afetividade como elemento para a definição da guarda do filho
quando da separação dos pais (1584, § único). (...) Belmiro Welter identifica em outras passagens a
valoração do afeto no Código Civil: (a) ao estabelecer a comunhão plena de vida no casamento (art.
1.511); (b) quando admite outra origem à filiação além do parentesco natural e civil (1.593); (c) na
consagração da igualdade na filiação (1.596); (d) ao fixar a irrevogabilidade da perfilhação (1.604)
e (e) quando trata do casamento e de sua dissolução, fala antes das questões pessoais do que dos
seus aspectos patrimoniais111.

No mesmo sentido, o reconhecimento jurídico da adoção socioafetiva não deixa nenhuma dúvida
acerca do caráter jurídico do afeto, donde as decisões judiciais que negam o status jurídico-familiar das
uniões homoafetivas, sob o fundamento de que o afeto seria irrelevante ao deslinde da causa, são
absolutamente equivocadas, ante a juridicidade do princípio da afetividade.
Ou seja, “os tipos de entidades familiares explicitados são meramente exemplificativos, sem
embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa”112, embora se deva
ressaltar que “não só nesse limitado universo se flagra a presença de uma família”113, família esta que
existe em toda comunidade de pessoas que possua, nas relações entre si, um afeto tendente a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura114. Em suma, “O elemento
distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir
as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento
mútuo”115.
Analisemos os desenvolvimentos que a doutrina tem feito sobre o tema, a qual tem diferenciado
afeto enquanto sentimento psíquico e afetividade enquanto exteriorização (objetiva) do afeto, afetividade
esta passível de apreensão jurídica independentemente de efetivamente existir o sentimento de afeto na
relação interpessoal em questão.

Afetividade. Atividade com afeto. As relações são, muito frequentemente, pautadas por esse
elo que impulsiona as aproximações, a permanência, o cuidado, a sobrevivência. (...) O afeto é
parte da vida. Contudo, para o Direito, o afeto foi deixado de lado por muito tempo. Afinal, a
grande vedete, o patrimônio, material, econômico, não tinha quase nada a ver com ele. (...) Hoje em
dia, o afeto é tão importante para o direito que é comum a realização de congressos que se voltem,
quase que exclusivamente, para sua análise.116

O princípio da afetividade, embora relacionado a valores, com vieses psicológicos e


filosóficos, como dito alhures, não se restringe a uma destas perspectivas. Afeto e afetividade,
embora dividam a mesma origem, não se confundem: a afetividade é a dinâmica das relações
afetivas, é a constante transição dos sentimentos humanos entre os mundos interno e externo;
afeto é sentimento. Esse também é o pensamento de Paulo Lôbo: Por outro lado, a afetividade sob o
ponto de vista jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, este de
decorrência real necessária. O direito, todavia, converteu a afetividade em princípio jurídico, que
tem força normativa, impondo dever e obrigação aos membros da família, ainda que na realidade
existencial entre eles tenha desaparecido o afeto. Assim, pode haver desafeto entre pai e filho, mas
o direito impõe o dever de afetividade (LÔBO, 2006, p. 2).117

Haveria, apenas, um tipo de afetividade com vários humores, ou seriam coisas diferentes? Isso
porque, a pluralidade de famílias aponta para afetividades (sentimento/justificante) diferentes. A
afetividade do casal (heterossexual ou não) é diferente da afetividade entre pais e filhos, entre
irmãos, etc. O certo é que a afetividade, como expressão do amor, é o que se espera fazer parte de
qualquer relação familiar. (...)118

Percebe-se que esse nível de amor [caridade], sai da subjetividade e encontra-se no agir com
cuidado, respeito e afeto para com aqueles que carecem. Quem é caridoso é solidário. E como
conceito de “solidariedade”, temos: “compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas às outras
e cada uma delas a todas” [Houaiss]. Como se vê, a solidariedade, também remete a um
compromisso com o intuito de favorecer o outro. Ocorre que, diferentemente da caridade, na
solidariedade, haverá reciprocidade no comprometimento. É clara a relação de proximidade entre
caridade e solidariedade, sendo que na segunda, temos acrescentado, o caráter de reciprocidade.
Note-se que, ambas as definições, não comportam sentimentos, mas, condutas. Como visto
anteriormente, Paulo Lôbo afirma que “a afetividade especializa os princípios da solidariedade e
da dignidade”, assim, finalmente, encontramos que tipo de afetividade figura como direito e
dever. É a que depende mais do braço, do ombro e da razão do que do coração. Seguindo esse
raciocínio, o reconhecimento jurídico do afeto, nada mais é do que o reconhecimento jurídico de
uma conduta solidária, que pode ou não, estar acompanhada de bons sentimentos. Assim como
um dano moral pode apresentar por consequência, a dor, não sendo sua ausência, descaracterizadora
do dano indenizável, a solidariedade pode estar antecedida pelo afeto (sentimento), ou não. Sentir
dor, tristeza, amor, afeto, está fora do controle das pessoas. A ação é escolha. Cooperar é efetivar
afeto, ainda que não se sinta afeto. Ao confundir a afetividade que pode ser realizada,
independentemente do sentimento que se tenha, com aquelas outras expressões do amor (eros, philia
e até storghé), corre-se o risco de afastar da proteção do Judiciário, situações que tenham esse
princípio como cerne, como por exemplo, o abandono afetivo, o que justificaria o argumento
contrário de que a lei não pode obrigar ninguém a amar. Pode sim. Objetivamente.119

Para ajudar a compreender o afeto em seu sentido objetivo, propõe-se comparar com o que foi
discutido, no passado, com relação à posse. Obviamente que, trazer à baila as teorias da posse para
auxiliar na compreensão do afeto-objetivo, não aproxima, nem pretende aproximar pessoas de
coisas. São, é claro, relações marcadamente distintas. Pessoas não são objeto de propriedade e,
ainda, tais teorias, ao terem a finalidade de conceituar posse, trabalham no sentido de mostrar aquilo
que parece ser (propriedade), enquanto que, por meio dessa comparação, pretende-se mostrar
aquilo que é (família). A intenção, aqui, é mostrar, comparativamente, que, como aconteceu em
relação à posse, pensar no animus, unicamente na perspectiva do sentimento (ou da vontade), por
mais que, de início, pareça acertado, inviabiliza muitos direitos. Para explicar a posse, duas
teorias clássicas apontam os elementos que a integrariam: seriam o corpus (elemento físico) e o
animus (elemento moral). A presença de ambos seria necessária para distinguir posse e detenção.
Um dos teóricos da posse, Friedrich Karl von Savigny, em seu “Tratado da Posse”, dispõe que,
configuraria a posse o controle material de uma coisa, conjugado com a intenção de tê-la para si.
(...) Em relação à família, se pensarmos em afeto, nesta perspectiva subjetiva de sentimento,
como um de seus elementos constitutivos (animus), ao lado do corpus, que seria a proximidade
física de seus membros, como elemento identificador da existência ou não, de uma entidade familiar,
haveria o mesmo problema levantado com relação à posse, ou seja, muitas famílias não
poderiam, ser assim consideradas e, consequentemente, não teriam a tutela jurídica, por não ser
possível provar o seu animus. Haveria uma grande instabilidade nas relações familiares, uma vez
que, não existindo as amarras genéticas e do casamento, sua permanência ficaria à mercê das
oscilações sentimentais, o que é mais grave quando pensamos em filiação. A outra teoria conhecida
como Teoria Objetiva da Posse, é de autoria de Rudolf von Ihering e, também apresenta como
elementos constitutivos, o corpus e o animus, em uma perspectiva diferente da de Savigny. Para
Ihering, a presença de tais elementos se faz indispensável para dizer-se uma relação entre pessoa e
coisa seria mesmo, posse ou mera detenção. No entanto, uma das distinções em relação à teoria
subjetiva é que não se pode pensar no animus sem vinculá-lo ao corpus, uma vez que funcionam
como a palavra e o pensamento; como o pensamento é interno e toma corpo na palavra, a vontade
de possuir é interna e toma corpo no corpus. Assim, ao refutar o animus, apenas verifica-o sob uma
ótica diversa. Refere-se à conduta em relação à coisa. (...) Adaptando a lição de Ihering, com
relação à posse, para a família, podemos dizer que a afetividade, enquanto seu animus, estaria
vinculada, intrinsecamente, ao corpus, consistindo, conjuntamente, na relação entre pessoas que
se apresentem, sociualmente, como família. Assim, é o agir com afeto que cria laços familiares.
Dessa forma, ao ostentar de forma estável, condutas tipicamente familiares (convívio, assistência
material, psicológica, proteção, atenção, comprometimento, interesse etc.), estará se apresentando,
de maneira objetiva, o afeto, o que faz presumir a presença do sentimento de afeto que,
normalmente, motiva tais condutas, mas que inexistindo, não as exclui.120
O que se nota, sobretudo, é que os sentimentos ganham relevância na ordem jurídica brasileira.
Consagra-se um universo de novos valores, nos quais se observa o respeito à família não fundada no
casamento, preservando-se o desejo individual de cada um em conviver no tipo de família que mais
lhe satisfaz enquanto indivíduo. Assim, por tudo o que foi exposto, ao não se admitir comunidades
afetivas como entidades familiares, ao argumento de não estarem expressamente consignadas no
texto constitucional, tem-se uma orientação que além e afrontar este princípio da liberdade, viola
os ditames da igualdade, da dignidade da pessoa humana, do pluralismo e do direito à
convivência familiar.121

A solidariedade familiar é uma projeção do objetivo fundamental de solidariedade social (art.


3º, I, da Constituição) para as relações de família, revelando-se constitucionalmente por meio da
proteção à família (art. 226), à criança e ao adolescente (art. 227) e ao idoso (art. 230), o que impõe
um convívio pautado no feto e responsabilidade (no plano fático), bem como pela definição de
novos direitos e deveres (no plano jurídico), para a entidade familiar e seus membros. A
afetividade enquanto princípio jurídico decorre da conversão do afeto no principal alicerce das
relações de família, pois a denominada família-função somente consegue justificar a permanência da
entidade familiar nele apoiada. Esse princípio logrou primazia sobre os aspectos de caráter
patrimonial e biológico que envolviam o modelo anterior de família, redefinindo os contornos de
diversos dos seus institutos jurídicos, como a paternidade, a adoção etc. A função social da família
responde ao processo de funcionalização dos institutos jurídicos de direito privado, podendo ser
vislumbrada na previsão do caput do art. 226 da Constituição, ao proclamar a família como base da
sociedade, importando compreender que esta representa atualmente um locus privilegiado de busca
da realização pessoal e da felicidade de cada um de seus integrantes.122

Concorda-se aqui que é necessário construir um sentido objetivo para o princípio da afetividade
para lhe dar uma maior operacionalidade jurídica, sendo que considero a analogia traçada por Catarina
Almeida de Oliveira entre o princípio da afetividade com a teoria da posse na antepenúltima transcrição
acima uma importante contribuição para tal ponto. Contudo, entendo que o afeto enquanto elemento
psíquico também deve ser valorizado como princípio jurídico porque em muitos casos é possível
comprová-lo (por testemunhas, por exemplo). Claro que a afetividade em sentido objetivo deve ser
valorizada no sentido de que atitudes de solidariedade e cuidado (por exemplo) devem ser entendidas
como manifestações afetivas em sentido objetivo para fins de se dar maior operacionalidade ao princípio
do afeto (objetivamente considerado), consoante a última das transcrições acima. Contudo, reitero, acho
importante não desconsiderar a importância do afeto enquanto sentimento subjetivo nas relações
familiares, porque muitas vezes ele pode ser provado (por algum dos meios em Direito admitidos),
donde não pode ser menosprezado.
Portanto, considerando que a família hoje só pode ser compreendida sob a luz da dignidade da
pessoa humana, que é a base de toda a Constituição Federal, e considerando que a valorização da
afetividade na entidade familiar é decorrência da dignidade da pessoa humana, então se torna inegável
que a afetividade tem a condição de princípio jurídico-constitucional, ainda que implícito.

2.6 A família homoafetiva. STF, ADPF 132 e ADI 4.277

O afeto é elemento essencial das relações interpessoais, sendo um aspecto do exercício do


direito à intimidade garantido pela Constituição Federal. A afetividade não é indiferente ao
Direito, pois é o que aproxima as pessoas, dando origem aos relacionamentos que geram relações
jurídicas, fazendo juz ao status de família. Imperioso reconhecer o surgimento de uma nova
família, a chamada família ‘eudemonista’, doutrina que considera ser a felicidade individual ou
coletiva o fundamento da conduta humana.
Cabe ser lembrado o diálogo entre Hans Kelsen e Cossio perante a congregação da
Universidade de Buenos Aires. Cossio, autor da teoria ecológica, desafiou Kelsen a citar um
exemplo de relação intersubjetiva que estivesse fora do Direito. Kelsen respondeu: Oui monsieur,
l’amour. O Direito não regula sentimentos, mas ‘as uniões que associam afeto a interesses comuns,
e que, ao terem relevância jurídica, merecem proteção legal, independentemente da orientação
sexual do par’.
Como a família é uma relação de ordem da sexualidade, tem o afeto como pressuposto.
Portanto, todas as espécies de vínculos que tenham por base o afeto são merecedoras da proteção
do Estado (...)123.

Com essas palavras, Maria Berenice Dias expõe a solução à questão das uniões homoafetivas nos
dias atuais. Tais uniões são por muitos relegadas a um segundo plano sem qualquer fundamento
normativo, donde se percebe que tal ocorre por mera construção doutrinária contra legem criada pelos
profissionais do Direito. Contudo, ao contrário do que estes entendem, o amor familiar é o elemento
essencial das relações interpessoais que dão origem às famílias oriundas da união amorosa. Sem ele,
não há como falar em “casal”, pois duas pessoas que não sintam amor profundo uma pela outra não terão
a livre vontade de se relacionar em uma comunhão de vida e interesses. Por mais que o Direito não
regule os sentimentos puros, isoladamente considerados, a partir do momento em que estes são
associados a outros fatores (comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura), passam a produzir efeitos no mundo jurídico e, portanto, a merecer a proteção jurídica do
Estado. É a célebre diferenciação entre “fato” e “fato jurídico” – o primeiro não gera efeitos no mundo
do Direito, ao passo que o segundo tem relevância jurídica, razão pela qual este é regulamentado e
aquele não. Afinal, consoante disse a autora nas edições seguintes de sua obra, “A afetividade não é
indiferente ao Direito, pois é o que aproxima as pessoas, dando origem aos relacionamentos que geram
as relações jurídicas, fazendo jus ao status de família”124, pois “O centro de gravidade das relações de
família situa-se modernamente na mútua assistência afetiva, elemento essencial das relações
interpessoais que não é indiferente ao Direito”125.
No caso das uniões homoafetivas, que são fatos jurídicos, é necessário o reconhecimento do seu
status jurídico-familiar para que passem a gozar da proteção legal existente para a família, tendo em
vista que ditas uniões formam, sim, uma entidade familiar, não passando de puro preconceito a colocação
destas no âmbito do Direito Obrigacional. Afinal, não há qualquer fundamentação doutrinário-
jurisprudencial válida ante a isonomia para tal diferenciação com o paradigma das uniões heteroafetivas,
além de serem os homossexuais merecedores da mesma dignidade humana conferida aos heterossexuais,
como impõe o princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, como já demonstrado neste trabalho, a família contemporânea formada por casais
forma-se através de uma comunhão plena de vida e interesses, de caráter público, contínuo e
duradouro, o que significa que as uniões homoafetivas constituem famílias, uma vez que são fundadas no
referido sentimento, que é o que motiva seus membros a manterem a citada comunhão plena de vida e
interesses, pública, contínua e duradoura, razão pela qual devem ser protegidas pelo Direito das
Famílias, que, por óbvio, visa proteger as famílias fáticas que não sejam proibidas expressamente pelo
Direito, mesmo porque inexistem “proibições implícitas” em nosso ordenamento jurídico, como
decorrência do art. 5.º, II, da CF/1988, segundo o qual ninguém está proibido de fazer algo senão em
virtude de lei.
O ponto a que se quer chegar é o seguinte: as uniões homoafetivas possuem o mesmo elemento
valorativamente protegido nas uniões heteroafetivas, que é o amor que vise a uma comunhão plena de
vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da atual família
juridicamente protegida (affectio maritalis), razão pela qual merece ser enquadrada no âmbito de
proteção do Direito das Famílias. Afinal, o Direito das Famílias visa garantir especial proteção às
famílias que não sejam expressamente proibidas pela lei constitucionalmente válida. Assim,
considerando que as uniões homoafetivas formam famílias, não são expressamente proibidas e não têm
seus direitos diminuídos de forma expressa por nenhum enunciado normativo, então se enquadram no
conceito de família juridicamente protegida, merecendo, portanto, toda a proteção do Direito de Família
pátrio.
Nesse sentido, consoante inclusive reconhecido pelas peremptórias palavras Ministro Celso de
Mello no julgamento do RE 477.554 AgR/MG, segundo o qual “Ninguém, absolutamente ninguém, pode
ser privado de motivo de sua orientação sexual. Os homossexuais, por tal razão, têm direito de receber
a igual proteção tanto das leis quanto do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da
República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine,
que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua
orientação sexual”, razão pela qual “Toda pessoa tem o direito fundamental de constituir família,
independentemente de sua orientação sexual ou de identidade de gênero. A família resultante da união
homoafetiva não pode sofrer discriminação, cabendo-lhe os mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e
obrigações que se mostrem acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uniões heteroafetivas”.
Ademais, é incoerente a eventual alegação de que um casal heteroafetivo pode acabar constituindo
uma família sem ter entre si um sentimento de amor profundo pelo simples fato de uma relação sexual
ocasional poder gerar um(a) filho(a). Como expõe a legislação, para a configuração da união estável,
modalidade de família, é necessária uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família, nos termos do art. 1.511 e da
parte final do art. 1.723 do CC/2002. Assim, no exemplo aqui descrito, não há “comunhão plena, pública,
contínua e duradoura”, e muito menos o “objetivo de constituir família”, justamente por ser uma situação
ocasional, onde não pretendiam os consortes unirem-se afetivamente e muito menos constituir família. É
óbvio que o nascimento de um(a) filho(a) cria uma série de obrigações familiares para os pais, mas
somente em relação à criança, e não de um em relação ao outro. Ficarão eles, nesse caso, responsáveis
pela criação do(a) menor, com todos os encargos que a legislação atribui a quaisquer pais, contudo não
ficarão obrigados um em relação ao outro, visto inexistir qualquer vínculo de Direito (casamento civil)
ou de fato (união estável) entre eles. Ficam eles na mesma situação de um ex-casal após o divórcio.
Outrossim, considerando especialmente que a existência de prole e/ou capacidade procriativa não é
indispensável à caracterização da proteção normativa para as uniões afetivas entre duas pessoas, é
incoerente que o Estado (por meio do Legislativo e/ou do Judiciário) continue a relegar à marginalidade
as relações homoafetivas sob o fundamento de estas não possuírem capacidade procriativa. Além disso, a
partir do momento em que nosso ordenamento jurídico não proíbe as uniões amorosas entre pessoas do
mesmo sexo, tem-se que são permitidas por ele e, se assim o são, não tem o Estado o direito de, ainda
que indiretamente, não lhes conceder os efeitos jurídico-familiares do Direito das Famílias. Assim, nas
palavras do Ministro Marco Aurélio126 no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277: “Se o
reconhecimento da entidade familiar depende apenas da opção livre e responsável de constituição de
vida comum para promover a dignidade dos partícipes, regida pelo afeto existente entre eles, então não
parece haver dúvida de que a Constituição Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva admitida
como tal. Essa é a leitura normativa que faço da Carta e dos valores por ela consagrados, em especial
das cláusulas contidas nos artigos 1.º, inciso III, 3.º, incisos II IV, e 5.º, cabeça e inciso I”. Afinal, como
bem anotado pelo Ministro Celso de Mello127 acerca do tema, “torna-se indiscutível reconhecer que o
novo paradigma, no plano das relações familiares, após o advento da Constituição Federal de 1988, para
fins de estabelecimento de direitos/deveres decorrentes do vínculo familiar, consolidou-se na existência
e no reconhecimento do afeto”, pois, como bem anotado pelo Ministro Ayres Britto128, o próprio
matrimônio hoje é “um pacto afetivo (...) predisposto à perdurabilidade” uma vez que a família é
caracterizada por “uma convivência empiricamente instaurada por iniciativa de pessoas que se veem
tomadas da mais qualificada das empatias, porque envolta numa atmosfera de afetividade, aconchego
habitacional, concreta admiração ético-espiritual e propósito de felicidade tão emparceiradamente
permeado da franca possibilidade de extensão desse estado personalizado de coisas a outros membros
desse mesmo núcleo doméstico”, visto que “a família é, por natureza ou no plano dos fatos,
vocacionadamente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço
ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada.
O que a credencia como base da sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva,
solidária e espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa definia a família
como ‘a Pátria amplificada’). Que termina sendo o alcance de uma forma superior de vida coletiva,
porque especialmente inclinada para o crescimento espiritual dos respectivos integrantes. Integrantes
humanos em concreto estado de comunhão de interesses, valores e consciência da partilha de um
mesmo destino histórico. Vida em comunidade, portanto, sabido que comunidade vem de ‘comum
unidade’”.
Assim, nas palavras do Ministro Lewandowski129: “a ninguém é dado ignorar – ouso dizer – que
estão surgindo, entre nós e em diversos países do mundo, ao lado da tradicional família patriarcal, de
base patrimonial e constituída, predominantemente, para fins de procriação, outras formas de
convivência familiar, fundadas no afeto, e nas quais se valoriza, de forma particular, a busca da
felicidade, o bem-estar, o respeito e o desenvolvimento pessoal de seus integrantes”.
Nesse sentido, vale transcrever o caput e das alíneas “a”, “b” e “f” do Princípio 24130 dos
Princípios de Yogyakarta, postulação destinada aos Estados Nacionais realizada na Indonésia, no ano de
2006 (igualmente feita no voto do Ministro Celso de Mello no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277,
à exceção daquela relativa à alínea “e”, nas páginas 45-46 de seu voto):

DIREITO DE CONSTITUIR FAMÍLIA


Toda pessoa tem o direito de constituir uma família, independente de sua orientação sexual ou
identidade de gênero. As famílias existem em diversas formas. Nenhuma família pode ser sujeita à
discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros.
Os Estados deverão: a) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas
necessárias para assegurar o direito de constituir família, inclusive pelo acesso à adoção ou
procriação assistida (incluindo inseminação de doador), sem discriminação por motivo de
orientação sexual ou identidade de gênero; b) Assegurar leis e políticas que reconheçam a
diversidade de formas de família, incluindo aquelas não definidas por descendência ou casamento e
tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para garantir que
nenhuma família possa ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade de
gênero de qualquer de seus membros, inclusive no que diz respeito à assistência social relacionada
à família e outros benefícios públicos, emprego e imigração; (...) e) Tomar todas as medidas
legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para garantir que nos Estados que
reconheçam o casamento ou parceria registrada entre pessoas do mesmo sexo, qualquer
prerrogativa, privilégio, obrigação ou benefício disponível para pessoas casadas ou parceiros/as
registrados/as de sexo diferente esteja igualmente disponível para pessoas casadas ou parceiros/as
registrados/as do mesmo sexo; f) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras
medidas necessárias para assegurar que qualquer obrigação, prerrogativa, privilégio ou benefício
disponível para parceiros não casados de sexo diferente esteja igualmente disponível para parceiros
não casados do mesmo sexo; (...).

Não vivemos mais sob a égide do Absolutismo Totalitário, regime de governo no qual o monarca
determina despoticamente aquilo que lhe vem à mente. Vivemos em uma Democracia, regime que
estabelece que todo o poder emana do povo, que o povo governa o país em questão, ainda que
indiretamente, por meio de representantes legitimamente eleitos para tanto, e no qual a maioria define os
rumos da nação desde que respeite os direitos das minorias (democracia não é ditadura da maioria, mas
governo da maioria que respeita os direitos das minorias). Dessa forma, o povo deve ter os seus direitos
respeitados pelos governantes, especialmente as minorias ali existentes – e a discriminação por
orientação sexual caracteriza verdadeira violação dos direitos constitucionais fundamentais à isonomia e
ao respeito da dignidade da pessoa humana.
Cabe ser debatida uma interessante questão: na eleição presidencial estadunidense de 2004: vários
Estados-membros colocaram em votação se deveriam ou não as uniões homoafetivas ser regulamentadas
pelo Legislativo. Todas essas votações tiveram a mesma resposta majoritária: não131. Assim, com base
no exposto no parágrafo anterior, cabe a seguinte indagação: pode a maioria da população restringir os
direitos das minorias?
Resposta: depende. Se essa mesma população consagrou em sua Constituição (ou em seu
ordenamento jurídico em geral) princípios jurídicos que vedam a discriminação arbitrária (isonomia) e
que colocam todas as pessoas humanas em igual grau de dignidade (dignidade da pessoa humana), como
é o caso brasileiro, então a resposta é não. Essa decisão da população estadunidense é incoerente com
um ordenamento jurídico que consagre a isonomia. Isso porque, se a sociedade (por meio de seu
Legislativo) decidiu que devem reger o Estado os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa
humana, então devem esses princípios ser aplicados de maneira igual a todos os cidadãos, sejam eles
heterossexuais ou homossexuais, loiros ou morenos, canhotos ou destros, católicos ou judeus, e assim por
diante. Aliás, a resposta será negativa em qualquer Estado Constitucional de Direito, pois é da essência
do constitucionalismo que as maiorias não podem oprimir as minorias e/ou negar-lhes direitos civis e/ou
fundamentais sem uma motivação lógico-racional que isto justifique.
A real questão nesse caso é a de que deve o ordenamento jurídico do país em questão ser respeitado
e aplicado a todas as pessoas, nos termos consagrados pelo Constituinte Originário e/ou pelo Legislativo.
Ora, pelo menos no caso brasileiro e mesmo no estadunidense (que consagram a isonomia), mesmo que a
esmagadora maioria da população queira que os homossexuais tenham menos direitos que os
heterossexuais, tal é incompatível com os citados ordenamentos jurídicos que consagram os princípios da
isonomia e da dignidade da pessoa humana (que vedam qualquer discriminação arbitrária como essa)
como direitos humanos fundamentais, não podendo, portanto, tal vontade majoritária, se algum dia vier a
existir, prevalecer.
Em outras palavras: o povo brasileiro decidiu, por meio da Assembleia Nacional Constituinte, alçar
a isonomia e a dignidade humana a direitos fundamentais de eficácia plena aplicáveis em todo o território
nacional. Nesse sentido, o povo brasileiro, como um todo, proibiu a institucionalização do preconceito
no novo ordenamento jurídico oriundo da Constituição Federal de 1988. Isso significa que, até que seja
promulgada uma nova Constituição que extirpe a isonomia de seu corpo, ou então que seja apresentada
uma fundamentação lógico-racional que justifique a discriminação negativa das uniões homoafetivas em
relação às heteroafetivas, qualquer manifestação popular nesse sentido, ainda que amplamente
majoritária, será inconstitucional e não deverá produzir nenhuma consequência jurídica132.
Isso serve de resposta àqueles que tanto desejam colocar em votação popular, por meio de
plebiscito, a questão da regulamentação das uniões homoafetivas. Ora, o reconhecimento de direitos às
uniões amorosas constitui-se como direito fundamental de todo cidadão, tendo em vista todo o arquétipo
social existente em torno da união civil matrimonializada entre duas pessoas. Direitos fundamentais não
podem ser colocados em votação: devem ser conferidos a todos os brasileiros, ponto. Será
inconstitucional qualquer plebiscito que vise restringir direitos de quaisquer cidadãos, visto que os
direitos são conferidos como cláusulas pétreas pela Constituição, que não admite que o preconceito de
quem quer que seja, ainda que da maioria da população, sirva de paradigma válido para a restrição de
direitos das pessoas.
Em especial, será inconstitucional um plebiscito que dê à maioria o direito de decidir sobre algo que
afeta unicamente a minoria: ora, uma lei de “união civil homoafetiva” só será relevante para
homossexuais e bissexuais, não tendo heterossexuais nenhum legítimo interesse nesse tema, visto que não
serão atingidos nem abarcados por tal lei.
Democracia não significa despotismo da maioria sobre a minoria: como ensina José Afonso da
Silva, “democracia é o regime de garantia geral para a realização dos direitos fundamentais do
homem”133. Essa concepção decorre da correta noção segundo a qual o Estado Democrático de Direito
visa a realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa
humana134 – ou seja, a democracia existe para garantir a prevalência dos direitos fundamentais, donde,
ainda que a maioria queira desrespeitar os direitos fundamentais de quem quer que seja, a vontade
majoritária será inválida por inconstitucional, encontrando-se a maioria condicionada pelos termos da
Constituição, o que só pode ser superado por uma nova Assembleia Nacional Constituinte. O princípio
democrático existe na forma como reconhecido pela Constituição.
Isso fica claro na lição do autor quando fala que igualdade e liberdade, embora não sejam
“princípios” democráticos, são “valores democráticos, no sentido de que a democracia constitui
instrumento de sua realização no plano prático”, delineando que “a igualdade é o valor fundante da
democracia, não a igualdade formal, mas a igualdade material”135. Por outro lado, é oportuna a
colocação do autor no sentido de que maioria não é princípio, mas simples técnica de que se serve a
democracia para tomar decisões governamentais no interesse geral, não no interesse da maioria, que
é contingente136. Aponta que “precisamente porque não é princípio nem dogma da democracia, senão
mera técnica que pode ser substituída por outra mais adequada, é que se desenvolveu a da representação
proporcional, que amplia a participação do povo, por seus representantes, no poder”137. Assim, conclui o
autor que a democracia repousa sobre dois princípios fundamentais: o da soberania popular, segundo o
qual o povo é a única fonte do poder, e a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este
seja a efetiva expressão da vontade popular138.
Nesse sentido, considerando que uma lei de união civil homoafetiva não envolve heterossexuais,
estes não têm o direito de impor sua vontade arbitrária sobre homossexuais e bissexuais, donde se
percebe inclusive afronta ao princípio democrático se um plebiscito que isso possibilite venha a
acontecer. Há verdadeira afronta ao princípio democrático por tal votação na medida em que
heterossexuais não são atingidos em nenhum momento por uma lei regulamentadora das uniões
homoafetivas, donde não têm o direito de intervir nesse assunto. Somente homossexuais e bissexuais têm
interesse jurídico em tal questão.
Dessa forma, como a isonomia proíbe discriminações arbitrárias, e a dignidade da pessoa humana
estabelece que todas as pessoas humanas são iguais em dignidade (podendo esta ser relativizada apenas
pela isonomia), é incoerente com esses princípios, e consequentemente inconstitucional, que se defenda a
discriminação das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas, uma vez que é arbitrária essa
discriminação por colocar as pessoas homossexuais em situação de inferior dignidade do que as
heterossexuais, conforme se demonstrará detidamente em capítulos próprios.
Outro aspecto a ser contra-argumentado é o de que parte dos juristas defende ser a enumeração
constitucional referente à família taxativa, não admitindo, portanto, a Carta Magna outros modelos que
não os constitucionalmente consagrados. Todavia, a interpretação constitucional é integrativa, ou seja,
parte do pressuposto de que o constituinte não teve a intenção de regular todas as situações existentes na
sociedade, tendo a Constituição, pelo contrário, um caráter aberto e amplo, no sentido de que as lacunas
podem ser preenchidas pelo Legislativo e pelo Judiciário. Entender que as lacunas constitucionais
importariam em proibição das “situações lacunosas” implica contrariar o já mencionado princípio da
legalidade (legalidade constitucional, inclusive), no sentido de que aquilo que não é expressamente
proibido tem-se por permitido (art. 5.º, II, da CF/1988)139.
Assim, uma vez que as uniões homoafetivas são dotadas do mesmo amor familiar existente nas
uniões heteroafetivas, configuram verdadeiras entidades familiares, a exemplo do casamento civil e da
união estável, merecendo, portanto, a mesma proteção ofertada pelo Direito das Famílias aos casais
heteroafetivos, visto que o referido amor familiar é o elemento essencial à configuração da família
contemporânea.

2.6.1 As Gerações/Dimensões de Direitos. STF, ADPF 132 e ADI 4277


A doutrina tem apontado a existência de três dimensões140 de direitos existentes na humanidade,
oriundas do ideal de “liberdade, igualdade e fraternidade” da Revolução Francesa de 1789.
A Primeira Dimensão, subsequente à Revolução Francesa, foi a garantidora da liberdade individual
das pessoas, impondo limites ao Estado com o intuito de resguardar os direitos dos cidadãos (marca da
transição do Absolutismo para os Regimes Democráticos de Direito – consagrando, assim, o Estado
Liberal de Direito). A Segunda Dimensão, reconhecida a partir da Constituição Mexicana de 1917 e da
Constituição Alemã de Weimar, de 1919, caracteriza os direitos socioeconômico​-culturais dos cidadãos,
que passaram a impor ao Estado atitudes positivas com o intuito de garantir a igualdade de todos,
prevenindo ou remediando as diferenças sociais (consagrando, assim, o Estado Social de Direito). Já a
Terceira Dimensão, superveniente à Segunda Guerra Mundial, veio assegurar a dignidade humana por
meio da garantia a direitos difusos e coletivos da humanidade, com o intuito de evitar que uma categoria
de seres humanos fosse extirpada por outra141.
Expostas estas dimensões de direitos, não pode ser outra a conclusão senão a de que o livre
exercício da sexualidade humana constitui expressão das três dimensões de direitos, visto que isso
decorre dos postulados fundamentais da liberdade individual, da igualdade e da solidariedade humana,
portanto como direito fundamental ao mesmo tempo individual, categorial e difuso142. Afinal, a
manifestação homoafetiva (assim como a heteroafetiva) caracteriza, na verdade, o pleno exercício dos
direitos constitucionais fundamentais:

a) da isonomia (art. 5.º, caput), porque se todos são iguais perante a lei e se a todos é
garantido o direito à igualdade, sendo assim vedadas discriminações arbitrárias de qualquer
natureza, então é incompatível com a isonomia qualquer discriminação em razão da orientação
sexual da pessoa, que configura parte indissociável da consciência do indivíduo homossexual. Isso
porque não há fundamentação lógico-racional que justifique nem prova da necessidade de tal
discriminação, considerando especialmente que a homossexualidade e a relação homossexual
afetiva não são proibidas por nosso ordenamento jurídico;
b) da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III), uma vez que tal princípio garante a todos o
direito da busca pela felicidade, desde que respeitados os direitos alheios, sendo que não é direito
dos heterossexuais a extirpação da homossexualidade e mesmo da homoafetividade ou então de seus
efeitos jurídicos. Ademais, por certo os homossexuais somente atingirão tal sublime estado de
espírito (felicidade) se pudessem manifestar livremente sua afetividade para com seu/sua
companheiro(a), da mesma forma que os heterossexuais, o que só será possível com o
reconhecimento jurídico-familiar da legitimidade de suas uniões amorosas, visto que o contrário
implica juízo de valor negativo do Estado, que estará considerando as uniões homoafetivas como
menos dignas do que as heteroafetivas, o que é um absurdo inverídico;
c) da liberdade de consciência (art. 5.o, VI), que garante a todos o direito à autonomia moral,
ou seja, a viver da forma como são, no sentido de agirem em conformidade com o seu íntimo,
vivendo a vida da forma que entendem correta desde que não prejudiquem terceiros (prejuízo este
que inexiste na mera homoafetividade), donde não pode o Estado atribuir menor dignidade de forma
arbitrária às uniões homoafetivas em relação às uniões heteroafetivas, pois isso implica descabida
intromissão na vida íntima dos cidadãos ao pretender impor a concepção que ele, Estado, julga mais
correta143;
d) da intimidade e da privacidade (art. 5.o, X), que garantem a todos o direito a terem
respeitada a sua vida íntima, seja dentro do seu lar ou em ambiente restrito (intimidade), seja no
seio social (privacidade), donde, novamente, não pode o Estado atribuir menor dignidade de forma
arbitrária às uniões homoafetivas em relação às uniões heteroafetivas, pois isso implica desmerecer
a intimidade homoafetiva dos cidadãos homossexuais.

Dessa forma, tendo em vista que o livre exercício da homoafetividade é decorrência lógica dos
direitos constitucionais fundamentais supraexplicitados, tem-se por consequência lógica que o livre
exercício da sexualidade é também um direito humano fundamental, nos termos de nossa Constituição
Federal. Em outras palavras, o direito à identidade homossexual e ao livre exercício da
homoafetividade144 é um direito fundamental implícito, decorrente dos princípios da isonomia, da
dignidade da pessoa humana e da liberdade de consciência. Muito embora aqui se concorde com a
doutrina que advoga a tese segundo a qual os direitos fundamentais implícitos não necessitam de norma
constitucional que os reconheça, é inegável que o art. 5.o, § 2.o, da Carta Magna declara expressamente a
sua existência145.
Ademais, já há quem defenda a existência de direitos de quarta dimensão, que seriam
consubstanciados por um direito à diferença146. Essa questão de uma quarta dimensão de direitos é
controvertida, na medida em que outros autores apontam outras questões, como a democracia direta e o
direito a um meio ambiente saudável como direitos de quarta dimensão (havendo quem aponte, inclusive,
uma quinta dimensão). O importante aqui é delinear-se o direito à tolerância, ao respeito às diferenças,
seja qual for a dimensão ou a forma de reconhecimento de tal direito, mesmo porque o respeito e a
tolerância são pressupostos da vida em sociedade, na medida em que ninguém é igual a ninguém, donde
todos têm o dever de se respeitar reciprocamente. Por outro lado, o direito à diferença e o respeito à
tolerância devem ser reconhecidos como os genuínos direitos de quarta dimensão na medida em que a
ordem das dimensões de direitos surgiu por conta da sucessão histórica da demanda da população em
geral por tais direitos (primeiro veio a demanda à liberdade individual, depois a demanda da igualdade
real e, após, a demanda por solidariedade humana – as três dimensões clássicas), ao passo que, após a
Segunda Guerra Mundial (marco histórico da consagração dos direitos de terceira dimensão), as
demandas sociais que se seguiram foram aquelas atinentes à luta por direitos civis da população negra,
de populações étnico-culturais e da população LGBT. Logo, faz sentido que o direito à diferença e o
respeito à tolerância sejam qualificados como constituindo o conteúdo da quarta dimensão de direitos
fundamentais.
No que tange ao dito direito à tolerância147, é ele aplicável à homossexualidade se a orientação
sexual da pessoa for considerada um elemento diferencial entre os seres humanos, no sentido de
classificar em rótulos estanques as pessoas heteroafetivas e as pessoas homoafetivas. Aponte-se, apenas,
que este autor não concorda com tal diferenciação. Afinal, tanto homossexuais quanto heterossexuais são
pessoas humanas idênticas no que tange ao sentimento que nutrem pela pessoa com a qual querem passar
o resto de suas vidas. Não é a orientação sexual da pessoa que importa nesse ponto, mas o sentimento que
se nutre pelo(a) seu(sua) companheiro(a), que, no caso aqui discutido, é o amor familiar, ou seja, o amor
que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura. Assim,
considerando que o mesmo amor familiar existente na união heteroafetiva existe na união homoafetiva,
então não há que se falar em “diferença” neste caso ante a simples divergência de sexo de um dos pares
das duas relações (quando comparadas) e da orientação sexual de seus componentes, tendo em vista que
ditos elementos são irrelevantes no que tange às uniões amorosas. O que importa é a existência do amor,
e nesse ponto as uniões são idênticas. Mas, por outro lado, se for considerada a orientação sexual de
ambos os companheiros e consequentemente o sexo de um deles como elementos “importantes” à
caracterização das uniões amorosas (com o que não se concorda), então ter-se-á uma diferença entre
ambas as situações, a saber: em uma teremos pessoas de sexos diversos e, em outra, pessoas do mesmo
sexo. Contudo, mesmo nesse caso deve-se ter em mente que o elemento fundamental da relação amorosa é
o amor familiar, donde, considerando que ele existe tanto nas uniões heteroafetivas quanto nas uniões
homoafetivas, então não se pode dispensar um tratamento diferenciado a ditas situações, uma vez que
baseadas no mesmo valor primordial, que é o elemento protegido pelas leis do casamento civil e da
união estável, razão pela qual são ditos regimes jurídicos aplicáveis àquelas duas hipóteses. Esse tema
será detidamente analisado nos Capítulos 6 a 9.
Sobre o tema, cabem as preciosas considerações de Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf148
no sentido da sexualidade como direito personalíssimo do ser humano e do direito ao amor como um dos
direitos da personalidade e como um direito humano fundamental a justificar o reconhecimento do status
jurídico-familiar das uniões homoafetivas, senão vejamos:
A sexualidade, vista como direito personalíssimo do ser humano, passou a adotar uma moral
autônoma, onde é de livre decisão pessoal a expressão de sua sexualidade; houve a separação entre
a realização sexual e a procriação – separando-se a ética da sexualidade da ética da reprodução.
(...) O direito geral da personalidade, interpretado como direito de autodeterminação ético-
existencial, projeta-se sobre as escolhas atinentes ao sentido da vida, as quais se manifestam aos
direitos do corpo bem como o direito à identidade sexual. (...) No que tange ao relacionamento
amoroso, é sabido que o ser humano é gregário pela própria natureza, logo, ao ser levado a viver em
grupo, busca relações de afeto. A estrutura da família mudou com o passar dos tempos. Na
atualidade é fincada no amor, no afeto e na busca da realização sexual e de intimidade (um dos
componentes do amor). Esses laços de afetividade iniciam-se no namoro e podem perdurar ou não.
A intimidade enquanto bem da personalidade abrange em nossa concepção uma feição de múltiplos
aspectos que passam pela afinidade sexual, espiritual, intelectual, valorativa, afetiva, visando acima
de tudo à realização pessoal do ser humano em sua mais rica diversidade. O direito à identidade
sexual encontra-se intimamente ligado à intimidade pessoal e à própria imagem individual, que
favorece a entrada do indivíduo na sociedade, no mercado de trabalho, possibilitando o pleno
desenvolvimento da própria sociedade. O direito à identidade sexual como expressão do direito à
intimidade é reconhecido expressamente por inúmeras decisões do Tribunal Europeu de Direitos
Humanos. (...) Entendemos que os direitos da personalidade traduzem as emanações mais íntimas da
pessoa humana, possibilitando a sua autodeterminação, a elucidação dos seus valores mais íntimos,
a sua maneira particular de existir, suas crenças e seus valores, sua forma de se demonstrar na
sociedade em que vive. Por permear-se com sua constituição psicofísica. Consiste plenamente na
sua própria individualidade. (...) Além de ser a felicidade um bem perquirido por todos os seres
humanos, é também um direito fundamental e uma obrigação do Estado de procurar fornecer todos
os subsídios necessários para sua assunção. (...) Com base na dialética socrática, tem-se que o
homem, ao conceber suas próprias ideias, vai ao encontro de si mesmo, faz de si próprio o seu
ponto de partida. Tenta ser ele mesmo sua própria alma. A recuperação da saúde da sua própria
alma se dá através do conhecimento de si mesmo. Assim é o amor, esse sentimento de
pertencimento, de engrandecimento das potencialidades individuais da alma humana. O direito
de vivê-lo, sem sombra de dúvida, seja no seio da família, em suas diversas modalidades, seja
através das relações de parentalidade, corresponde a direitos personalíssimos do ser humano.
(...) Nesse sentido, entendemos que, dada a magnitude da abrangência dos direitos humanos, bem
como da profunda inter-relação que existe entre o direito e o amor, que a liberdade de manifestação
deste último em sua mais rica diversidade representa um direito humano fundamental. (...)
[Segundo Sérgio Resende de Barros] O afeto seria, portanto, em seu entender, um direito amálgama
que contribui para a concretização da família. O direito ao afeto é o sentimento maior que garante o
agrupamento humano por um laço mais forte do que uma simples conjunção de interesses e, assim,
dá consistência aos demais direitos humanos da família. Realmente, desde sua origem, a família é
recoberta com um manto de ternura e carinho, de dedicação e empenho, mas também de
responsabilidade para com quem se cativa. Esse manto protetor é o afeto, ao qual o direito deve
dedicar especial atenção, sob pena de pôr em risco a própria garantia jurídica. (...) [Ainda segundo
Sérgio Resende de Barros] O direito ao amor é a máxima expressão do direito ao afeto. O amor é
a substância e a culminância do afeto. Não se desenvolve um sem o outro. O mais puro afeto é o
amor. O amor faz do indivíduo um ser humano. Identifica os entes humanos, uns com os outros,
tão fortemente, que gera em todos nós a solidariedade humana, que é a única força capaz de
construir – dignamente – a humanidade em toda a humanidade, a partir de seu grupo inicial: a
família. E repita-se: não só construir, mas assegurar a humanidade construída, o que é o fim
próprio dos direitos humanos149. (...) Os princípios primordiais que norteiam a aproximação aos
direitos sobre orientação sexual se referem à igualdade (o respeito à diferença) e à não
discriminação, visando assegurar a justiça social e garantir a dignidade de lésbicas, gays, bissexuais
e transgêneros, que por sua vez não reivindicam ‘direitos adicionais’ ou ‘especiais’, mas a
observância dos mesmos direitos das pessoas heterossexuais, dentre os quais ao status familiae em
seus relacionamentos.

O direito fundamental à liberdade de orientação sexual foi reconhecido pelo Supremo Tribunal
Federal no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277. Com efeito, nas palavras do Ministro Ayres
Britto150, que, após ressaltar a licitude das relações homoafetivas ante a ausência de proibição normativa
a elas (cf. art. 5.º, II, da CF/1988), afirmou que “nessa altaneira posição de direito fundamental e bem de
personalidade, a preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da ‘dignidade da pessoa
humana’ (inciso III do art. 1.º da CF), e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal. De
autoestima no mais elevado ponto da consciência. Autoestima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente
caminho da felicidade, tal como positivamente normada desde a primeira declaração norte-americana de
direitos humanos (Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, de 16 de junho de 1776) e até hoje
perpassante das declarações constitucionais do gênero. Afinal, se as pessoas de preferência
heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual
seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente. Ou
‘homoafetivamente’, como hoje em dia mais e mais se fala, talvez para retratar o relevante fato de que
o século XXI já se marca pela preponderância da afetividade sobre a biologicidade. Do afeto sobre o
biológico, este último como realidade tão somente mecânica ou automática, porque independente da
vontade daquele que é posto no mundo como consequência da fecundação de um individualizado óvulo
por um também individualizado espermatozoide”, em que “Consignado que a nossa Constituição vedou às
expressas o preconceito em razão do sexo e intencionalmente nem obrigou nem proibiu o concreto uso da
sexualidade humana, o que se tem como resultado dessa conjugada técnica de normação é o
reconhecimento de que tal uso faz parte da autonomia de vontade das pessoas naturais, constituindo-
se em direito subjetivo ou situação jurídica ativa. Direito potestativo que se perfila ao lado das
clássicas liberdades individuais que se impõem ao respeito do Estado e da sociedade (...). 36. Não pode
ser diferente, porque nada mais íntimo e mais privado para os indivíduos do que a prática da sua própria
sexualidade. Implicando o silêncio normativo da nossa Lei Maior, quanto a essa prática, um lógico
encaixe do livre uso da sexualidade humana nos escaninhos jurídico-fundamentais da intimidade e da
privacidade das pessoas naturais. Tal como sobre essas duas figuras de direito dispõe a parte inicial do
art. 10 da Constituição, verbis: ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas’. Com o aporte da regra da autoaplicabilidade possível das normas consubstanciadoras dos
direitos e garantias fundamentais, a teor do § 1.º do art. 5.º da nossa Lei Maior, assim redigido: ‘As
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata. 37. Daqui se deduz
que a liberdade sexual do ser humano somente deixaria de se inscrever no âmbito de incidência desses
últimos dispositivos constitucionais (inciso X e § 1.º do art. 5.º), se houvesse enunciação igualmente
constitucional em sentido diverso. Coisa que não existe. Sendo certo que o direito à intimidade consigo
mesmo (pense-se na lavratura de um diário), tanto quanto a privacidade se circunscreve ao âmbito do
indivíduo em face dos seus parentes e pessoas mais chegadas (como se dá na troca de e-mails, por
exemplo)”.
Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes151: “A orientação sexual e afetiva deve ser considerada
como o exercício de uma liberdade fundamental, de livre desenvolvimento da personalidade do
indivíduo, a qual deve ser protegida, livre de preconceito ou de qualquer outra forma de discriminação –
como a que poderia se configurar por meio da impossibilidade de reconhecimento da manifestação de
vontade de pessoas do mesmo sexo em se unir por laços de afetividade, convivência comum e duradoura,
bem como de possíveis efeitos jurídicos daí decorrentes. A rigor, a pretensão que se formula aqui tem
base nos direitos fundamentais, na proteção de direitos de minorias, a partir da própria ideia do direito
de liberdade. Trata-se da afirmação do reconhecimento constitucional da união de pessoas do mesmo
sexo, como concretização do direito de liberdade – no sentido de exercício de uma liberdade
fundamental, de livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo”.
Assim, nas pertinentes palavras do Ministro Celso de Mello no julgamento do RE 477.554 AgR/MG:
“Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de
ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual”, assim, “Os homossexuais, por tal razão, têm
direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto do sistema político-jurídico instituído pela
Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua,
que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em
razão de sua orientação sexual” (g.n.).

2.6.2 O reconhecimento legal do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas – arts. 2.o e 5.o,
parágrafo único, da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006)
Questão ainda não muito debatida pela jurisprudência no que tange ao reconhecimento do status
jurídico-familiar das uniões homoafetivas é a relativa à legalização das mesmas como entidades
familiares pelos arts. 2.o e 5.o, parágrafo único, da Lei Maria da Penha. Analisemos ditos dispositivos:

Art. 2.º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual (...) goza
dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.
Art. 5.º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual
ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
(...)
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são
ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a
ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação
sexual. (grifos nossos).

A partir do momento em que se concebe a formação de uma família como direito fundamental
inerente à pessoa humana, o art. 2.o da Lei Maria da Penha reconheceu expressamente que as pessoas
homossexuais têm o direito de formarem famílias conjugais homoafetivas e, consequentemente, de terem
elas reconhecidas e protegidas pelo Direito das Famílias. Ademais, quando o parágrafo único do art. 5.o
da referida lei enunciou que as relações pessoais dispostas no mesmo independem de orientação sexual,
ele reconheceu expressamente o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas, alçando-as
expressamente à condição de entidades familiares, embora não tenha regulado seus efeitos na esfera
cível.
Com efeito, ao apontar que a família compreende-se como a comunidade formada por indivíduos que
são ou se consideram aparentados por vontade expressa (art. 5.o, II) ou por relações de afeto (art. 5.º, III)
e que as relações pessoais dispostas em todo esse artigo independem de orientação sexual (art. 5.o,
parágrafo único), então a Lei Maria da Penha afirmou que entende por família também a união
homoafetiva – pois, do contrário, as relações pessoais dispostas nos incisos II e III dependeriam de
orientação sexual, o que contraria frontalmente o parágrafo único deste dispositivo legal.
Como se sabe, a Lei Maria da Penha versa sobre a violência doméstica contra a mulher. Nesse
sentido, a violência só será “doméstica” se perpetrada em ambiente familiar. Assim, é inegável o
reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas por força do art. 5.o, parágrafo
único, da referida lei152. Por outro lado, muito embora a Lei Maria da Penha destine-se a endurecer a
punição criminal em face da violência contra as mulheres (não contra os homens), a mesma reconheceu a
família conjugal homoafetiva como um todo, seja formada por casais homoafetivos masculinos ou
femininos. As punições da Lei aplicar-se-ão apenas à violência cometida contra a mulher, mas,
considerando que as uniões homoafetivas masculinas e femininas são idênticas quanto a seu caráter
familiar, o princípio da igualdade demanda pela extensão do conceito de família aos casais homoafetivos
masculinos, ante a ausência de motivação lógico-racional que justifique o contrário.153
Assim, finalmente foi aprovada lei que serve de base para o reconhecimento do status jurídico-
familiar das uniões homoafetivas, descabendo a milenar alegação de lacuna na legislação nesse sentido.

2.6.3 Da competência das varas de família para julgamento das causas envolvendo uniões
homoafetivas

2.6.3.1 Da mudança do paradigma do direito das famílias contemporâneo. Do amor familiar como novo
paradigma do Direito de Família
Conforme supraexposto, o Direito das Famílias brasileiro passou por uma mudança de paradigma.
Passou do conceito de que a entidade familiar seria formada unicamente pelo trinômio “casamento, sexo
e procriação” para o entendimento de que a família forma-se pelo amor existente entre o casal, amor este
somado à comunhão plena de vida, em caráter público, contínuo e duradouro. Assim, a comunidade
familiar atual se forma independentemente da consagração da união afetiva pelo matrimônio – a união
estável constitucionalmente consagrada no art. 226, § 3.º, da CF/1988 é prova disso, ou seja, de que o
amor existente entre o casal é o elemento fundamental para que este seja considerado uma entidade
familiar passível da proteção do Direito das Famílias.
O Brasil não se encontra mais em um sistema jurídico que só se importa com a forma em que se
encontra o casal em questão (estado de casados) para considerá-los como família digna de proteção
jurídica, e que não dá a mínima importância para a existência ou não de afeto na relação – sistema este
do Código Civil de 1916, que consagrava uma visão meramente patrimonialista da família. O atual
sistema jurídico-familiar pátrio protege a união amorosa pelo sentimento de construção de uma vida
plena em comum, com a conjugação de esforços para a obtenção da felicidade do casal. Este é o valor
protegido pelas normas do Direito das Famílias, e não a mera forma como se apresenta – casamento,
união estável ou qualquer outra.
Não foi outro norte que orientou a árdua evolução doutrinário-jurisprudencial referente ao Direito
Concubinário no que tange ao antigo “concubinato puro” (que é a atual união estável) – de mera relação
de emprego (analogia com o Direito do Trabalho) à equiparação com a sociedade empresarial de fato
(analogia com o Direito Comercial), hoje a relação não eventual entre duas pessoas que não se encontrem
em sociedade conjugal e não estejam incluídas nas hipóteses de impedimentos matrimoniais
taxativamente previstas no art. 1.521 do CC/2002 é reconhecida como entidade familiar, em igualdade de
condições com o casamento civil nesse sentido (de reconhecimento como família).
Assim, como suprademonstrado, hoje o amor familiar é o elemento essencial para a configuração da
entidade familiar merecedora de proteção pelo Direito das Famílias no que tange aos relacionamentos
amorosos entre duas pessoas. Nesse sentido, é inequívoco que a união homoafetiva enquadra-se no atual
conceito de família juridicamente protegida, uma vez que nela existe esse amor romântico que visa à
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura. Afinal, se o referido
amor familiar é o elemento formador da família contemporânea, então toda a união afetiva que o
contenha e que não seja expressamente proibida por uma lei constitucionalmente válida é merecedora da
proteção do Direito das Famílias, em que é seguro afirmar que a união amorosa formada por pessoas do
mesmo sexo enquadra-se nesse âmbito de proteção jurídico-familiar. Dessa forma, é imperioso o
reconhecimento da competência das varas de família para o julgamento das causas envolvendo casais
homoafetivos.
Ninguém contesta racionalmente o fato de ser o amor existente nas uniões homoafetivas o mesmo
existente nas uniões heteroafetivas. Todavia, em postura contraditória, muitos não reconhecem a condição
jurídico-familiar às uniões entre pessoas do mesmo sexo. Mas, se o elemento afetivo é o mesmo nos dois
modelos de relação (heteroafetiva e homoafetiva), e se presentes os mesmos requisitos da união estável
heteroafetiva constitucionalmente consagrada (publicidade, continuidade e durabilidade), então é
inconstitucional a discriminação das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas, uma vez que
ausente fundamento lógico-racional que justifique essa discriminação, qual seja a de exclusão das uniões
amorosas formadas por pessoas do mesmo sexo do âmbito do Direito das Famílias, com base no critério
discriminador erigido, qual seja a orientação sexual do par. Assim, a marginalização das uniões
homoafetivas ao campo do Direito Obrigacional ao passo que às heteroafetivas são conferidos todos os
benefícios do Direito das Famílias afronta o preceito isonômico, sendo assim inconstitucional.
Reitere-se, ainda, que o elemento valorativamente protegido pelo Direito das Famílias é
justamente o amor que visa a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura. Ainda que a letra fria da lei utilize-se da expressão “o homem e a mulher”, é inequívoco que
a norma protege a família decorrente do amor familiar154 por meio das leis do casamento civil e da
união estável, o que se conclui pela interpretação teleológica. Isso porque uma interpretação teleológica
que analise o objeto de proteção do enunciado normativo e não se limite à sua letra fria impõe a
aplicação de uma interpretação extensiva ou, no mínimo, de uma analogia (que decorrem da isonomia)
nas normas do Direito de Família e que sejam estendidas às uniões amorosas formadas por pessoas do
mesmo sexo.
Ora, se o objeto de proteção do Direito das Famílias é a família, a partir do momento em que as
uniões homoafetivas formam famílias idênticas ou, no mínimo, análogas às uniões heteroafetivas, nota-se
que elas encontram-se protegidos pelo regime jurídico-familiar de nosso ordenamento jurídico.
Só se poderia admitir dito julgamento nas varas cíveis no caso de não se reconhecer o status
jurídico-familiar das uniões homoafetivas, o que implica necessariamente discriminação decorrente da
negação da aplicação do Direito das Famílias a elas. Contudo, não há fundamento válido ante a isonomia
que justifique a discriminação negativa das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas. Tal
discriminação dá-se, unicamente, por preconceito, que é juízo de valor injustificado e que surgiu ou pelo
menos se fortaleceu sobremaneira devido à influência de vertentes religiosas, especialmente por parte da
Igreja Católica Apostólica Romana, no que concerne ao Ocidente.
Assim, considerando que as uniões homoafetivas formam famílias conjugais e que as varas de
família são competentes para julgar demandas atinentes a quaisquer famílias não proibidas por leis
constitucionalmente válidas, é inconteste a competência das varas de família para o julgamento das
causas envolvendo as uniões amorosas formadas por pessoas do mesmo sexo, como decorrência lógica
dos princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana e da interpretação extensiva ou da analogia.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O ordenamento jurídico brasileiro nada dispõe acerca da união homoafetiva: não a proíbe, mas da
mesma forma não traz nenhuma disposição expressa sobre ela. Disto resulta que os direitos dos casais
homoafetivos normalmente têm que ser decididos em juízo, por meio de ações que visem a comprovar
que os companheiros conviveram em uma relação pública, contínua e duradoura, como entidade familiar,
e que o patrimônio deles foi construído com o esforço comum de ambos – com a ressalva de que o
julgamento destas ações sob a égide do Direito Obrigacional, e não do Direito das Famílias, implica
clara discriminação jurídica das uniões homoafetivas quando comparadas às uniões heteroafetivas.
O legislador tem a obrigação de resguardar os direitos de todos os cidadãos, especialmente os
direitos das minorias, que são discriminadas justamente por não serem da mesma forma que a sociedade
em geral. Todavia, enquanto o Legislativo não cumpre com sua obrigação constitucional de resguardar os
direitos fundamentais das minorias de forma expressa, pode e deve o Judiciário, no alto de sua
imparcialidade, neutralidade e independência, aplicando os valores constantes no ordenamento jurídico
para resguardar o Direito (como os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana), garantir
que os direitos daqueles marginalizados pela legislação expressa sejam respeitados pela comunidade em
geral, a partir de uma interpretação teleológica que perceba que, inobstante a letra fria do enunciado
normativo (texto de lei), o Direito das Famílias é aplicável às uniões homoafetivas por meio da
interpretação extensiva ou da analogia, que decorrem da isonomia.
Afinal, o conceito de família não é mais o mesmo tradicionalmente consagrado pelo Código Civil de
1916. Naquele diploma legal, a família era taxada de “legítima” e “ilegítima”, sendo somente aquela
considerada como merecedora de proteção por parte do ordenamento jurídico – ademais, “legítima” era
apenas a família consagrada pelo casamento civil. Mesmo a união estável hoje constitucionalmente
consagrada era considerada como concubinato, no que ficava fora do Direito das Famílias e era, assim
como o são as uniões homoafetivas antes da decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277155,
considerada apenas uma “sociedade de fato” que deveria ser judicialmente dissolvida, mediante os
ditames do Direito das Obrigações, visando assim evitar o enriquecimento sem causa de uma parte em
relação à outra – entendimento este consagrado pela Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal.
Mas, hoje, a família oriunda de uma união forma-se através do amor que vise uma comunhão plena
de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, sentimento este que é o amor familiar que
forma a família juridicamente protegida contemporânea – família esta que independe da existência de
filhos e mesmo de capacidade procriativa do casal, uma vez que a Constituição Federal em nenhum
momento dispôs dessa forma. Isso porque deixou a família de derivar do antigo trinômio “casamento,
sexo e procriação” para se formar, atualmente, por meio do amor que os companheiros nutrem um pelo
outro em sua união, nos termos expostos no início deste parágrafo. Nesse sentido, a união homoafetiva
forma, sim, tanto uma família conjugal quanto uma família juridicamente protegida, assim como a união
heteroafetiva, haja vista existir naquela o mesmo amor existente nesta.
Note-se, ainda, que tanto o amor é relevante para a discussão e tanto é ele o elemento formador da
família contemporânea, que uma união pública, contínua e duradoura entre dois amigos não forma uma
“união estável”, justamente porque esta se diferencia das demais uniões pelo fato de ser uma união
amorosa. Relacionamentos de amizade estáveis não geram uniões estáveis no conceito técnico-jurídico
de entidade familiar, sendo esta a prova cabal de que o amor é efetivamente relevante – em verdade,
fundamental – à análise da existência de uma família juridicamente protegida. Somente uma união
pautada pelo amor familiar, seja ele fraterno ou romântico, pode ser reconhecida como entidade familiar
e merecer a proteção do Direito das Famílias.
Ademais, o livre exercício da afetividade, no que se inclui a homoafetividade, constitui um direito
humano fundamental, posto ser a exteriorização das célebres três dimensões de direitos, assim como da
quarta dimensão (direito à diferença e à tolerância) na hipótese de se considerar a sexualidade dos
companheiros e o sexo de um deles como motivo suficiente a diferenciar uma situação (união
homoafetiva) da outra (união heteroafetiva), razão pela qual não pode o ordenamento jurídico vir a
restringir aquelas sem uma motivação válida ante a isonomia que a justifique (matéria esta que será
tratada adiante, nos capítulos referentes ao casamento civil e à união estável). Outrossim, a união
homoafetiva constitui uma família conjugal justamente por ser o elemento formador desta o amor que vise
a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura – sentimento
efetivamente este existente na união amorosa entre pessoas do mesmo sexo. Assim, ao constituir uma
família conjugal, por óbvio as uniões homoafetivas se enquadram no conceito de família juridicamente
protegida, razão pela qual o julgamento das causas que envolvam dita união amorosa devem ser
decididas pelas varas de família, especializadas nesse ramo do Direito.
Só se poderia admitir dito julgamento nas varas cíveis no caso de não se reconhecer o status
jurídico-familiar das uniões homoafetivas, o que implica necessariamente na discriminação decorrente da
negação do Direito das Famílias a tais uniões. Contudo, não há fundamento válido ante a isonomia que
justifique a discriminação negativa das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas. Tal
discriminação dá-se, unicamente, por preconceito, que é juízo de valor injustificado e que surgiu ou pelo
menos se fortaleceu sobremaneira devido à influência de vertentes religiosas, especialmente por parte da
Igreja Católica Apostólica Romana, no que concerne ao Ocidente.
Assim, é inconteste a competência das varas de família para o julgamento das causas envolvendo as
uniões amorosas formadas por pessoas do mesmo sexo, como decorrência lógica dos princípios da
isonomia, da dignidade da pessoa humana e da interpretação extensiva ou da analogia.

1 Frase que abriu a 2.ª Edição de seu livro União Homossexual: o Preconceito & a Justiça. Disponível
em: www.mariaberenicedias.com.br. Acesso em: 14 out. 2007.
2 O que existem são projetos de lei. O mais notório é o Projeto de Lei 1.151/1995 da então Deputada Marta Suplicy, e o
respectivo Substitutivo, que se encontram “engavetados” na Câmara dos Deputados desde sua criação pela absoluta falta
de interesse político em sua votação. Há, ainda, o projeto de lei nominado Estatuto das Famílias – PL 674/2007, que visa
revogar o livro de Direito de Família do Código Civil de 2002 para criar um microssistema jurídico específico para as
relações familiares, o qual prevê, em sua redação originária, a “união homoafetiva” como entidade familiar autônoma
(embora, em seu substitutivo, fruto de acordo com a bancada fundamentalista, dita evangélica, do Congresso Nacional,
tenha retirado tal previsão do projeto de Estatuto, em que, se o substitutivo for aprovado, continuaremos com o vácuo
normativo acerca da união homoafetiva). Assim, como os referidos projetos não foram convertidos em lei, deixa-se de
comentá-los no presente trabalho, que analisa a possibilidade de aplicação da legislação hoje existente às uniões
homoafetivas.
3 DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça. 5. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 15.
4 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado, São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 270, para
quem: “a ordem jurídica regula a conduta humana não só positivamente, prescrevendo uma certa conduta, isto é, obrigado
a esta conduta, mas também negativamente, enquanto permite uma determinada conduta pelo fato de a não proibir. O que
não é juridicamente proibido é juridicamente permitido. (...) a conduta de um indivíduo não juridicamente proibida e, neste
sentido, permitida, pode ser garantida pela ordem jurídica, na medida em que os outros indivíduos são obrigados a tolerar
esta conduta, quer dizer, a não impedir ou de alguma forma dificultar”. A fundamentação desta posição encontra-se em
trecho anterior da obra: “o Direito regula a conduta humana não apenas num sentido positivo – enquanto prescreve uma tal
conduta ao ligar um ato de coerção, como sanção, à conduta oposta e, assim, proíbe esta conduta – mas também por uma
forma negativa – na medida em que não liga um ato de coerção a determinada conduta e, assim, não proíbe esta conduta
nem prescreve a conduta oposta. Uma conduta que não é juridicamente proibida ou é – neste sentido negativo –
juridicamente permitida. Visto que uma determinada conduta humana ou é proibida ou não o é, e que, se não é proibida,
deve ser considerada como permitida pela ordem jurídica, toda e qualquer conduta de um indivíduo submetido à ordem
jurídica pode considerar-se como regulada – num sentido positivo ou negativo – pela mesma ordem jurídica. Na medida em
que a conduta de um indivíduo é permitida – no sentido negativo – pela ordem jurídica, porque esta não a proíbe, o indivíduo
é juridicamente livre. (...) A ordem jurídica pode limitar mais ou menos a liberdade do indivíduo enquanto lhe dirige
prescrições mais ou menos numerosas. Fica sempre garantido, porém, um mínimo de liberdade, isto é, de ausência de
vinculação jurídica, uma esfera de existência humana na qual não penetra qualquer comendo ou proibição” (Ibidem, p. 46 e
48).
5 BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais – aspectos jurídicos, 1.ª Edição, São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2002, p. 66 e 67.
6 Segundo MORAES (A união entre pessoas do mesmo sexo..., p. 96), apud GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas,
Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 69 e 81: “Como se sabe, o papel do legislador numa sociedade democrática e pluralista é,
substancialmente, o de proteção das minorias, através da tutela dos interesses dos mais fracos, desde que considerados
aqueles interesses como direitos fundamentais, direitos esses que são postos para a proteção da pessoa humana em sua
vida de relação, em sua liberdade, igualdade, participação política e social, bem como de qualquer outro aspecto que se
refira ao pleno desenvolvimento de sua personalidade. (...) O Estado Democrático de direito material implica o respeito e a
garantia de realização dos direitos fundamentais para todos os cidadãos individualmente considerados, e na questão
atinente aos homossexuais implica, além da possibilidade do reconhecimento dessa identidade sexual, na proibição de
discriminação ou de tratamento diferenciado oriundo única e exclusivamente da identidade, ou da orientação sexual das
pessoas” (sem grifo no original).
7 Cite-se, v.g., GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral, 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 48-49,
para quem “O legislador não consegue prever todas as situações para o presente e para o futuro, pois o direito é dinâmico e
está em constante movimento. (...) Tal estado de coisas provoca a existência de situações não previstas de modo
específico pelo legislador e que reclamam solução por parte do juiz. Como este não pode eximir-se de proferir decisão sob
o pretexto de que a lei é omissa, deve valer-se dos mecanismos destinados a suprir as lacunas da lei, que são: a analogia,
os costumes e os princípios gerais de direito”, pois “Efetivamente, sob o ponto de vista dinâmico, o da aplicação da lei, pode
ela ser lacunosa, mas o sistema não. Isso porque o juiz, utilizando-se dos aludidos mecanismos, promove a integração das
normas jurídicas, não deixando nenhum caso sem solução (plenitude lógica do sistema). O direito estaticamente
considerado pode conter lacunas. Sob o aspecto dinâmico, entretanto, não, pois ele próprio prevê os meios para suprir-se
os espaços vazios e promover a integração do sistema”, daí o cabimento da analogia, “que consiste em aplicar a um caso
não previsto a norma legal concernente a uma hipótese análoga prevista e, por isso mesmo, tipificada [cf. Carlos
Maximiliano]”. Dessa forma, como ensina VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2004, pp. 48-49, “O ideal seria o ordenamento jurídico preencher todos os acontecimentos da sociedade. Não é, como
vimos, o que ocorre”, assim, deve o juiz decidir os casos lacunosos por analogia, que é “um processo de raciocínio lógico
pelo qual o juiz estende um preceito legal a casos não diretamente compreendidos na descrição legal. O juiz pesquisa a
vontade da lei, para transportá-la aos casos que a letra do texto não havia compreendido”.
8 É oportuna, aqui, a observação de Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da
Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 56): “Decorrente da
impossibilidade de se aferir quais seriam os direitos que, uma vez assegurados juridicamente, realizariam a personalidade
de todos os indivíduos, o mecanismo legal disponível para a concretização da possibilidade de reivindicação dos direitos
individuais de personalidade se dá por meio da utilização do princípio da dignidade da pessoa humana, como cláusula geral
a recepcionar e tutelar todo e qualquer direito relacionado com a realização pessoal de cada pessoa. ‘A personalidade é,
portanto, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de
situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela’”.
9 Ibidem – Prefácio.
10 DIAS, Maria Berenice, União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2006, p. 61.
11 ENGELS (A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 1944, p. 80-85) apud LÔBO, Paulo. Direito Civil:
Famílias, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 8.
12 Ibidem, p. 4.
13 Preconceito este que só foi definitivamente superado, do ponto de vista jurídico, com o advento da Constituição Federal de
1988, que decretou a igualdade jurídica entre o homem e a mulher na sociedade conjugal (art. 226, § 5.º, da CF/1988).
14 Ibidem, p. 8.
15 Cf. RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001, p.
99-100 – o trecho encontra-se transcrito na nota de rodapé n.º 81, deste capítulo.
16 OLIVEIRA (União estável e seus reflexos no Direito Penal, p. 14) apud DIAS, Maria Berenice, União Homossexual – o
Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 63.
17 Cf. RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001, pp. 103-105 – o
trecho encontra-se transcrito na nota de rodapé n.º 81, deste capítulo.
18 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, pp. 2-3.
19 Essa foi uma importante vitória, na medida em que a totalitária cláusula da moral e dos bons costumes poderia
eventualmente ensejar a conclusão de que aquilo que não fosse considerado “moral” ou como de “bons costumes” seria
algo ilícito e, portanto, impassível de ter a si reconhecidas consequências jurídicas de qualquer espécie – logo, foi uma
evolução inicial.
20 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2006, p. 63.
21 Ibidem, p. 64.
22 Aqui entendido como o “amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura”, o elemento formador da família contemporânea. Adiante neste capítulo será desenvolvida pormenorizadamente
tal questão, inclusive com seu embasamento normativo.
23 RIBEIRO, Ana Cecília Rosário; ARAÚJO, Marcelo de Jesus Monteiro. A Relação Incestuosa como Entidade Familiar: uma
Revolução do Estatuto das Famílias. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. EHRHARDT JR, Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lobo, 1ª edição,
Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 295 e 317. Grifos nossos.
24 EHRARDT JÚNIOR, Marcos A. de A. Responsabilidade Civil no Direito das Famílias: vicissitudes do Direito Contemporâneo
e o paradoxo entre o dinheiro e o afeto. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lobo. Salvador:
JusPodivm, 2010, pp. 356 e 362-363. Grifos nossos.
25 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o Preconceito & a Justiça! 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.
64.
26 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 3.
27 O tema, contudo, não era pacífico. Washington de Barros Monteiro se opunha a tal postura, sob o fundamento de que “a
concessão de salários ou de indenização à concubina situa o concubinato em posição jurídica mais vantajosa que a do
próprio matrimônio, redundando em manifesto contrassenso e detrimento da justiça” (Curso de Direito Civil. Parte Geral,
36.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 24). Ao menos no que tange ao concubinato puro (a atual união estável),
não assiste razão ao autor, na medida em que ele se configura como uma união tão digna quanto a matrimonializada. Por
outro lado, a indenização pelos serviços prestados constitui medida que meramente atenua a ausência de direitos da união
concubinária, o que está longe de lhe garantir os mesmos direitos conferidos ao casamento civil. Por outro lado, se for feita
a analogia com o Direito do Trabalho, deve ser fixado o prazo prescricional de cinco anos para os “salários” que a
concubina irá cobrar, já que este é o prazo fixado por tal ramo do Direito para o trabalhador que ingressa com reclamação
trabalhista.
28 STJ, REsp 874.443/RS, DJe 14.09.2010, segundo o qual “A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que a relação
concubinária, mantida simultaneamente a matrimônio, não gera, após seu encerramento, direito à indenização patrimonial
ou direitos hereditários”.
29 STJ, REsp 988.090/MS, DJe 22.02.2010, segundo o qual “Inviável a concessão de indenização à concubina, que mantivera
relacionamento com homem casado, uma vez que tal providência eleva o concubinato a nível de proteção mais sofisticado
que o existente no casamento e na união estável, tendo em vista que nessas uniões não se há falar em indenização por
serviços domésticos prestados, porque, verdadeiramente, de serviços domésticos não se cogita, senão de uma
contribuição mútua para o bom funcionamento do lar, cujos benefícios ambos experimentam ainda na constância da união”,
que ainda afirmou: “Na verdade, conceder a indigitada indenização consubstanciaria um atalho para se atingir os bens da
família legítima, providência rechaçada por doutrina e jurisprudência”, razão pela qual concluiu que “por qualquer ângulo que
se analise a questão, a concessão de indenizações nessas hipóteses testilha com a própria lógica jurídica adotada pelo
Código Civil de 2002, protetiva do patrimônio familiar, dado que a família é a base da sociedade e recebe especial proteção
do Estado (art. 226 da CF/1988), não podendo o Direito conter o germe da destruição da própria família”.
30 STJ, REsp 872.659/MG, DJe 19.10.2009, segundo o qual “Se com o término do casamento não há possibilidade de se
pleitear indenização por serviços domésticos prestados, tampouco quando se finda a união estável, muito menos com o
cessar do concubinato haverá qualquer viabilidade de se postular tal direito, sob pena de se cometer grave discriminação
frente ao casamento, que tem primazia constitucional de tratamento”, pois “se o cônjuge no casamento nem o companheiro
na união estável fazem jus à indenização, muito menos o concubino pode ser contemplado com tal direito, pois teria mais
do que se casado fosse”, algo tido como “incompatível com as diretrizes constitucionais fixadas pelo art. 226 da CF/1988 e
com o Direito de Família, tal como concebido”, em que entender o fornecimento de tal indenização por serviços prestados
após o término da relação amorosa como “locupletação ilícita” em situação de “conivência e até mesmo estímulo àquela
conduta reprovável em que uma das partes serve-se sexualmente da outra e, portanto, recompensa-a com favores”, razão
pela qual concluiu “Inviável o debate acerca dos efeitos patrimoniais do concubinato quando em choque com os do
casamento pré e coexistente, porque definido aquele, expressamente, no art. 1.727 do CC/2002, como relação não eventual
entre o homem e a mulher, impedidos de casar; a disposição legal tem o único objetivo de colocar a salvo o casamento,
instituto que deve ter primazia, ao lado da união estável, para fins de tutela do Direito”.
31 STJ, REsp 982.664/RJ, DJe 15.04.2011, segundo o qual “Nos termos da jurisprudência da 4ª Turma do STJ, a
companheira faz jus à indenização pelos serviços prestados pelo período de vida em comum (REsp 331.511/SE, Rel. Min.
Aldir Passarinho Junior, DJ 17.05.2004, p. 228)”.
32 DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 182-183.
33 Ibidem, p. 183.
34 Pelo que se depreende da lição de Washington de Barros Monteiro, esse entendimento da Súmula 380 do STF foi um
retrocesso aos direitos anteriormente reconhecidos à concubina, pois o autor relata que, anteriormente à referida súmula:
“Entendia-se antigamente que a simples presença da concubina, à testa do lar, presidindo a economia doméstica,
assegurava-lhe direito à meação no patrimônio adquirido ou aumentado pelo companheiro” (ibidem, p. 25).
35 Ademais, como relata a doutrina, desse entendimento passou-se, gradativamente, a reconhecer à concubina o direito à
indenização pela morte do concubino por acidente do trabalho e de trânsito, desde que fosse beneficiária, além de alguns
outros direitos de natureza previdenciária, no sentido da permissão (antes negada) de constar ela como beneficiária do
contribuinte falecido. Mas, na falta dessa menção expressa (sua nomeação como beneficiária), passaram a ser igualmente
deferidos esses direitos no caso de prova de convivência ou da existência de filhos comuns com o concubino.
36 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o Preconceito & a Justiça!, 2.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2001, p. 64.
37 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o Direito impor o Amor? In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito
Contemporâneo. Estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lobo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 51. Grifos nossos.
38 MELLO, Marcos Bernardes de. Sobre a classificação do fato jurídico da união estável. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos;
EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador:
JusPodivm, 2010, pp. 145 e 146. Grifos nossos.
39 LACERDA, Carmen Sílvia Maurício de. Famílias Monoparentais: Conceito. Composição. Responsabilidade. In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito
Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 166-167. Grifos nossos.
40 Decisão disponível em
<http://www.direitohomoafetivo.com.br/anexos/juris/1204__c336240403f50dfa15db9c1937c92c25.pdf> (último acesso em
02/10/12 – processo não informado).
41 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Direito das famílias. Amor e bioética, 1ª edição, São Paulo: Campus
Jurídico, 2012, pp. 41, 277, capa interna e contracapa.
42 “Essa valorização do espaço familiar, próprio e inerente à realização do ser humano, dota a entidade familiar de função e
reconhece a afetividade como o laço a mantê-la unida e existente” (in: GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas,
Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 41).
43 Expressão adiante explicada.
44 Nesse sentido, é elucidativa a lição de Paulo Luiz Netto Lôbo: “No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação
no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família,
como ocorreu com as constituições anteriores. Ao suprimir a locução ‘constituída pelo casamento’ (art. 175 da Constituição
de 1967-1969), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional ‘a família’, ou seja, qualquer família. A
cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas
consequências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução ‘a família,
constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos’. A
interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos
subjetivos. O objeto da norma não é a família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas que a integram. Antes foi
assim, pois a finalidade era reprimir ou inibir as famílias ‘ilícitas’, desse modo consideradas todas aquelas que não
estivessem compreendidas no modelo único (matrimonial), em torno do qual o direito de família se organizou. ‘A
regulamentação legal da família voltava-se, anteriormente, para a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a
família fundada no casamento como um bem em si mesmo, enaltecida como instituição essencial’ [Gustavo Tepedino]. O
caput do art. 226 e, consequentemente, a cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que
preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensividade”. A regra do § 4.º do art. 226 integra-se à cláusula geral
de inclusão, sendo esse o sentido do termo “também” nela contido. “Também” tem o significado de igualmente, da mesma
forma, outrossim, de inclusão de fato sem exclusão de outros. “Se dois forem os sentidos possíveis (inclusão ou exclusão),
deve- ser prestigiado o que melhor responda à realização da dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das
entidades familiares reais não explicitadas no texto” (LÔBO, Paulo. Direito Civil. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 60-
61). Como diz Vivane Girardi, após comentar tal lição de Paulo Lôbo: “Portanto, de plano se pode perceber que a exclusão
de outros arranjos familiares não está no texto da Constituição, mas sim na interpretação que dele é feita (GIRARDI,
Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais. Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 136).No mesmo sentido: FERREIRA, Breezy Miyazato Vizeu; ESPOLADOR, Rita de
Cássia Resquetti Tarifa. O papel do afeto na formação das famílias recompostas no Brasil. In: DIAS, Maria Berenice;
BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey,
2010, p. 115, afirmando que a Constituição “incluiu, em seu artigo 226, uma cláusula de inclusão, não sendo possível, neste
sentido, desconsiderar estruturas familiares baseadas no princípio da afetividade, na comunhão de vida e solidariedade
entre seus membros, na medida em que a ‘afetividade desponta como elemento nuclear e definidor da união familiar’ [Paulo
Lôbo]”.
45 Destacando esse caráter patrimonialista com uma leve ironia no nome que (corretamente) concedeu ao Código Civil de
1916, afirma FACHIN, Luiz Edson. Inovação e tradição no Direito de Família contemporâneo. In: DIAS, Maria Berenice;
BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey,
2010, p. 342, que “O código patrimonial imobiliário, com imensas repercussões no Direito de Família, dava conta do
individualismo oitocentista num modelo único de sociedade. Adotou, por essa mesma razão, um standard de família, de
vínculo e de titularidade, e promoveu a exclusão legislativa das pessoas, bens, culturas e símbolos estrangeiros a sua
definição. Nada obstante, o sentido de permanência indefinida ou da vizinhança com a imutabilidade esteve mais em quem
do Código se serviu e menos em quem o elaborou. Sem embargo de tratar-se, no plano axiológico, de um projeto do século
XIX promulgado em 1916, fruto da belle époque do movimento codificador, o Código Civil brasileiro, a seu modo e a seu
tempo, resultou numa grande projeção dos interesses que alinhavaram esse corpo legislativo. A historicidade da codificação
ressalta o desenho jurídico de suas instituições de base que se alteram na medida em que vão se transformando os valores
que governam o projeto parental, as titularidades e os contratos”.
46 EHRARDT JÚNIOR, Marcos A. Responsabilidade Civil no Direito das Famílias: vicissitudes do Direito Contemporâneo e o
paradoxo entre o dinheiro e o afeto. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 382-383.
47 FERREIRA e ESPOLADOR, op. cit., p. 104, 107 e 116.
48 ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de. Ensaio Introdutório sobre a Teoria da Responsabilidade Civil Familiar. In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito
Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, p. 398. Grifo nosso.
49 ALBUQUERQUE, Fabiola Santos. Os Princípios Constitucionais e sua Aplicação nas Relações Jurídicas de Família. In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito
Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, p. 39. Grifo nosso.
50 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o Direito impor o Amor? Famílias no
Direito Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, p. 52. Grifos nossos.
51 ALBUQUERQUE, Fabiola Santos. Os Princípios Constitucionais e sua Aplicação nas Relações Jurídicas de Família.
Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, p. 39. Grifo nosso.
52 DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 15-35.
53 Vale a pena transcrever o original. Segundo a autora (ibidem, p. 16 e 40-41): “Cada vez mais a ideia de família se afasta da
estrutura do casamento. A possibilidade do divórcio e o estabelecimento de novas formas de convívio revolucionaram o
conceito sacralizado de matrimônio. A existência de outras entidades familiares e a faculdade de reconhecer filhos havidos
fora do casamento operaram verdadeira transformação na própria família. Assim, na busca do conceito de entidade familiar,
é necessário ter uma visão pluralista, que albergue os mais diversos arranjos vivenciais. É preciso achar o elemento que
autorize reconhecer a origem do relacionamento das pessoas. (...) O desafio dos dias de hoje é achar o toque identificador
das estruturas interpessoais que permita nominá-las como família. Este referencial só pode ser identificado na afetividade.
É o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a
vontade – para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do amor que funde as
almas e confunde patrimônios; gera responsabilidades e comprometimentos mútuos. Esse é o divisor entre o direito
obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito
de família é o afeto. A família é um grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade após o desaparecimento
da família patriarcal que desempenhava funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas. (...) A teoria e a prática das
instituições de família dependem, em última análise, da competência em dar e receber amor. A família continua, e mais
empenhada do que nunca, em ser feliz. A manutenção da família visa, sobretudo, buscar a felicidade. Não é mais
obrigatório manter a família, ela só sobrevive quando vale a pena. É um desafio” (sem grifos no original).
54 Ibidem, p. 24.
55 Ibidem, p. 24.
56 Ibidem, p. 24.
57 Ibidem, p. 31.
58 TJ/RS, AC 70012836755, Rel. Dra. Maria Berenice Dias, v.u., j. 21.12.2005.
59 MUSZKAT, Malvina Ester. O mal-estar na cultura do afeto e da felicidade. In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliane
Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 349.
60 FERRY, Luc. A Revolução do Amor. Por uma Espiritualidade Laica. Tradução de Véra Lucia dos Reis. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2010, capa interna e p. 94.
61 FERREIRA, Breezy Miyazato Vizeu; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. O papel do afeto na formação das
famílias recompostas no Brasil. In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins
(Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 116.
62 GROENINGA, Giselle Câmara. A função do afeto nos “contratos” familiares. In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliane
Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 205.
63 PEREIRA JR., Antonio Jorge. Da Afetividade à Efetividade nas Relações de Família. In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS,
Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 64
e 69. Anote-se que o autor diferencia amor de afeto, considerando o afeto como o fator de aproximação de pessoas, mas
insuficiente para consolidar uma autêntica estrutura familiar (ibidem, p. 69), tanto que defende que não é o afeto o objeto de
preocupação do Direito, mas o amor, na forma por ele conceituada e transcrita no corpo do texto (ibidem, p. 70). Contudo,
não adoto esta distinção, mesmo porque desde a 1ª edição desta obra utilizo a palavra amor ao invés de afeto justamente
para evitar mal-entendidos do gênero (nem a adotam os autores das transcrições doutrinárias constantes deste trabalho
que falam no afeto como elemento formador da família contemporânea – como a psicanalista Giselle Câmara Groeninga, na
obra citada na nota anterior, que, como visto, claramente chama de afeto este amor de bem querer o amado). Ademais, por
vezes o autor fala no amor “entre homem e mulher” (v.g.: ibidem, p. 69), embora não diga expressamente se exclui (ou não)
as uniões homoafetivas do conceito de família que adota – parece que exclui, pois fala que a família não é produto on
demand (sic) e que há quem defenda um batismo legal jusfamiliar (sic) a situações diferentes daquelas preconizadas como
base da sociedade, ou seja, “Para situações que não são necessárias e suficientes para constituir e perpetuar a sociedade”
(ibidem, p. 73 – grifo nosso) – pelo perpetuar, parece que o autor considera a capacidade procriativa como elemento
indispensável à formação da família, argumento este desmistificado adiante neste trabalho. Contudo, qualquer que seja a
posição do autor, entendemos que o seu conceito de amor aplica-se às uniões homoafetivas, por serem elas pautadas
neste sublime sentimento da mesma forma que o são as uniões heteroafetivas.
64 Cf. PINHEIRO, Jorge Duarte. Afecto e Justiça do caso concreto no Direito de Família. In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS,
Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Editora Del Rey,
2010, pp. 238 e 242. Este autor português manifesta preocupação sobre como considerar o afeto no Direito das Famílias,
pois embora anote que o afeto que merece consideração jurídica é o exteriorizado (“o sentimento enquanto facto psíquico
puro não interessa ao Direito. Mas, na sequência de uma exteriorização, o sentimento torna-se acessível ao Direito. O
Direito permite e proíbe comportamentos, mas não é indiferente às motivações das condutas e às consequências
emocionais que as mesmas têm sobre terceiros. (...) Não procede, portanto, a ideia de que o Direito esteja absolutamente
inibido de intervir na área do sentimento, por força de uma limitação de cariz técnico”. Ibidem, p. 240-241), preocupa-se em
evitar julgamentos com base na subjetividade e na unilateralidade do julgador, razão pela qual entende que “Talvez possa
ajudar a evitar a subjectividade e a unilateralidade o chamado método do julgamento com base na ‘empatia imparcial’,
proposto por Alexander Nikolaevich Shytov, na obra ‘Conscience and Love in Making Judicial Decisions’ – ‘Consciência e
Amor na Tomada da Decisão Judicial’. No julgamento com base na ‘empatia imparcial’, o juiz procura decidir sem se deixar
dominar pelas suas crenças e preferências pessoais; acima de tudo, tem de conhecer os sentimentos e compreender os
motivos das partes, rejeitar atitudes precipitadas, ter cuidado na ponderação dos factos, ser rigoroso, paciente e humano.
Como se vê, isto não é propriamente um método científico, mas um conjunto de atitudes ditadas pelo bom-senso. Não há,
enfim, fórmulas mágicas e infalíveis. A justiça, tal como a injustiça, é resultado da acção humana” (ibidem, pp. 243-244).
Parece-me que este método sugerido pelo autor é análogo (se não idêntico) à neutralidade que se exige do intérprete
positivista, segundo a qual o intérprete deve deixar seus valores pessoais de lado para interpretar o enunciado normativo
com base no valor que se pretendeu proteger com a norma em questão. De qualquer forma, vê-se que mesmo um autor
preocupado com a subjetividade da consideração do afeto no Direito das Famílias reconhece corretamente que o afeto
(amor) é uma parte inerente e essencial deste ramo do Direito, em que ele não pode ser ignorado pelo jurista.
65 PEREIRA JR., Antonio Jorge. Op. cit., p. 70.
66 FACHIN, Luiz Edson. Inovação e tradição no Direito de Família contemporâneo. In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliane
Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 328 e
339.
67 GROENINGA, Giselle Câmara. A função do afeto nos “contratos” familiares. In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliane
Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 206.
68 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Luiz Fux, p. 13-14.
69 Cf., v.g., TJ/RS, AC 70012836755, Relatora: Dra. Maria Berenice Dias, v.u., julgamento de 21.12.2005.
70 Novamente segundo Maria Berenice Dias: “A convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro
de uma estruturação com identidade de propósito, impõe o reconhecimento da existência de uma entidade familiar a
merecer o nome de família anaparental. (...) A solução que melhor se aproxima de um resultado justo é conceder à irmã,
com quem a falecida convivia, a integralidade do patrimônio, pois ela, em razão da parceria de vidas, antecede aos demais
irmãos na ordem de vocação hereditária. Ainda que inexista qualquer conotação de ordem sexual, convivência identifica
comunhão de esforços, cabendo aplicar, por analogia, as disposições que tratam do casamento e da união estável. Cabe
lembrar que estas estruturas de convívio em nada se diferenciam da entidade familiar de um dos pais com seus filhos e que
também merece proteção constitucional” (DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 47).
71 Como bem diz Maria Berenice Dias (União Homossexual. O Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição, 2006, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, p. 68 e 69): “O afeto é elemento essencial das relações interpessoais, sendo um aspecto do
exercício do direito à intimidade garantido pela Constituição Federal. A afetividade não é indiferente ao Direito, pois é o que
aproxima as pessoas, dando origem aos relacionamentos que geram relações jurídicas, fazendo juz ao status de família.
Imperioso reconhecer o surgimento de uma nova família, a chamada família ‘eudemonista’, doutrina que considera ser a
felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana. Cabe ser lembrado o diálogo entre Hans Kelsen e Cossio
perante a congregação da Universidade de Buenos Aires. Cossio, autor da teoria ecológica, desafiou Kelsen a citar um
exemplo de relação intersubjetiva que estivesse fora do Direito. Kelsen respondeu: Oui monsieur, l’amour. O Direito não
regula sentimentos, mas as uniões que associam afeto a interesses comuns, e que, ao terem relevância jurídica, merecem
proteção legal, independentemente da orientação sexual do par. Como a família é uma relação de ordem da sexualidade,
tem o afeto como pressuposto. Portanto, todas as espécies de vínculos que tenham por base o afeto são merecedoras da
proteção do Estado. (...)” (grifos nossos). Na 5.ª edição, a autora alterou a redação do trecho, mantendo a ideia central: “O
centro de gravidade das relações de família situa-se modernamente na mútua assistência afetiva, elemento essencial das
relações interpessoais que não é indiferente ao Direito. É o afeto que aproxima as pessoas, dando origem aos
relacionamentos que geram as relações jurídicas” (DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça, 5.
ed. São Paulo: RT, 2011, p. 108).
72 O princípio jurídico do afeto será trabalhado em item próprio, adiante.
73 WELTER apud DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 48.
74 “Como a crise é sempre perda dos fundamentos de um paradigma em virtude do advento de outro, a família atual está
matizada em paradigma que explica sua função atual: a afetividade. Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida
por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida”
(LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Famílias, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 1).
75 Muito embora costume-se definir affectio maritalis como “o ânimo de serem marido e mulher” (sic) (Disponível em:
http://www.redejuridica.com.br/expest.jsp?idpalavra=82&letra=A. Acesso em: 1.º ago. 2008), dito sentimento significa, em
verdade, o ânimo de desenvolver uma vida em conjunto, ao lado do(a) companheiro(a). Aquela definição, voltada para a
heterossexualidade, é oriunda do fato de ter a humanidade se “acostumado” a pensar na família oriunda da união amorosa
como formada unicamente entre um homem e uma mulher, o que é um equívoco, conforme se demonstra neste tópico e
neste trabalho como um todo. Afinal, quando se diz que duas pessoas de sexos diversos visam se tornar “marido e
mulher”, significa que querem manter uma união amorosa em comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura estabelecida pelo casamento civil, conforme demonstra a conjugação dos arts. 1.511 e 1.723 do
Código Civil, pois os requisitos da união estável são pautados pelo paradigma da “vida de casados”.
76 BARROSO, Luís Roberto. Diferentes mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no brasil, Revista
de Direito do Estado, n. 5, p. 167 e ss, 2007, p. 30. Meu agradecimento ao autor consta expressamente em nota de rodapé
do capítulo relativo à união estável. Faz-se aqui a mesma ressalva que ali: a paginação mencionada (p. 30) tem por base
folhas de tamanho A4 (p. 01-41), que pode inclusive ser encontrado no link referido em meu agradecimento.
77 Destaque-se, apenas, que o concubinato puro, ou seja, aquele entre pessoas não impedidas de se casar, era quase
exclusivo dos homens e suas relações com mulheres, em geral de classes mais pobres, tendo em vista que as mulheres
“de família” da época, ou seja, aquelas provenientes de famílias respeitadas e/ou abastadas, não tinham nenhuma liberdade
para se relacionarem com nenhuma outra pessoa senão aquela que seu pai (paterfamilias) permitisse. Em hipóteses
extremas, fugiam com seus amados, mas não tinham liberdade para se relacionarem amorosamente com outras pessoas
caso não se casassem com elas, sob pena de serem rechaçadas do convívio social pelo moralismo hipócrita que regia a
sociedade da época.
78 Súmula 380 do STF: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução
judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.
79 Em uma análise da evolução do pensamento humano no que tange à compreensão da família, que deixou de se
caracterizar por um modelo institucionalizado que visava unicamente a produção de cada vez mais mão de obra rural para
abarcar a união amorosa entre duas pessoas, tem-se como claro o magistério de Maria Berenice Dias, razão pela qual
novamente pede-se vênia para transcrever integralmente a sua lição: “Origem da Família – Vínculos afetivos não são uma
prerrogativa da espécie humana. O acasalamento sempre existiu entre os seres vivos, seja em decorrência do instinto de
perpetuação da espécie, seja pela verdadeira aversão que todas as pessoas têm da solidão. Tanto é assim, que se
considera natural a ideia de que a felicidade só pode ser encontrada a dois, como se existisse um setor da felicidade ao
qual o sujeito sozinho não tem acesso. Não importa a posição que o indivíduo ocupa na família, ou qual a espécie de
grupamento familiar a que ele pertence, o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é
possível integrar sentimentos, esperanças, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de
felicidade. Mesmo sendo a vida aos pares um fato natural, em que os indivíduos se unem por uma química biológica, a
família é um agrupamento cultural. Preexiste ao Estado e está acima do Direito. A família é uma construção social
organizada através de regras culturalmente elaboradas que conformam modelos de comportamento. Dispõe de uma
estruturação psíquica na qual cada um ocupa um lugar, possui uma função. Lugar do pai, lugar da mãe, lugar dos filhos,
sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente [cf. Rodrigo da Cunha Pereira]. É essa estrutura familiar
que interessa investigar e trazer para o Direito. É a preservação do LAR no seu aspecto mais significativo: Lugar de Afeto e
Respeito. O intervencionismo estatal levou à instituição do casamento, convenção social para organizar os vínculos
interpessoais. A própria organização da sociedade dá-se em torno da estrutura familiar, e não em torno de grupos outros ou
de indivíduos em si mesmos. A sociedade, em determinado momento histórico, instituiu o casamento como regra de
conduta. Essa foi a forma encontrada para impor limites ao homem, ser desejante que, na busca do prazer, tende a fazer
do outro um objeto. É por isso que o desenvolvimento da civilização impõe restrições à total liberdade, e a lei jurídica exige
que ninguém fuja dessas restrições. Em uma sociedade conservadora, os vínculos afetivos, para merecerem aceitação
social e reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família
tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando uma unidade de
produção, com amplo incentivo à procriação. Sendo uma entidade patrimonializada, seus membros eram força de trabalho.
O crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de um perfil
hierarquizado e patriarcal. Esse quadro não resistiu à revolução industrial, que fez aumentar a necessidade de mão de obra,
principalmente nas atividades terciárias. Assim, a mulher ingressou no mercado de trabalho, deixando o homem de ser a
única fonte de subsistência da família, que se tornou nuclear, restrita ao casal e a sua prole. Acabou a prevalência do
caráter produtivo e reprodutivo da família, que migrou para as cidades e passou a conviver em espaços menores. Isso
levou à aproximação dos seus membros, sendo mais prestigiado o vínculo afetivo que envolve seus integrantes. Existe
uma nova concepção da família, formada por laços afetivos de carinho, de amor. A valorização do afeto nas relações
familiares não pode cingir-se apenas ao momento de celebração do casamento, devendo perdurar por toda a relação.
Disso resulta que, cessado o afeto, está ruída a base de sustentação da família, e a dissolução do vínculo é o único modo
de garantir a dignidade da pessoa” (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 2005, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, p. 23-25 – sem grifos no original).
80 É de se ressaltar que não estou isolado neste argumento. Muito pelo contrário. A doutrina tem-se debruçado sobre o tema e
tem chegado à mesma conclusão. Nesse sentido, é elucidativa a lição de Rodrigo da Cunha Pereira, que, apesar de
fundamentação levemente distinta, traz entendimentos de célebres doutrinadores para chegar à mesma conclusão, após
citar a evolução do entendimento social a respeito da família, que demonstrei nas páginas precedentes e no início deste
tópico: “Diante deste quadro estrutural, o que se conclui é ser o afeto um elemento essencial de todo e qualquer núcleo
familiar, inerente a todo e qualquer relacionamento conjugal ou parental. Mas será que o contrário é verdadeiro, ou seja,
sempre que existir afetividade estará presente uma entidade familiar? Segundo Sérgio Resende de Barros, não é qualquer
afeto que compõe um núcleo familiar. Se assim fosse, uma amizade seria elo formador de família, o que ratifica a sua
posição de ser necessário o afeto familiar, como garantia à existência de uma família. Mas, além da afetividade, quais os
elementos necessários para que haja uma família? Paulo Luiz Netto Lobo identifica como elementos definidores de um
núcleo familiar, além da afetividade, a ostensibilidade e a estabilidade. Ele define tais requisitos da seguinte forma: a
afetividade é o fundamento e finalidade da família, com desconsideração do ‘móvel econômico’; a estabilidade implica em
comunhão de vida e, simultaneamente, exclui relacionamentos casuais, sem compromisso; já a ostensibilidade pressupõe
uma entidade famíliar reconhecida pela sociedade enquanto tal, que assim se apresenta publicamente. Os pressupostos
apontados pelo grande jurista alagoano são essenciais e são requisitos que devem estar presentes em um relacionamento
para que se conclua pela existência de uma entidade familiar. Em suma: não obstante a relevância do afeto como vínculo
formador de família, ele, por si só, não é o único elemento para se verificar a existência de um núcleo familiar. Ele deve
coexistir com outros, embora sua presença seja decisiva e justificadora para a constituição e subsistência de uma família.
Acrescentamos a estes elementos trazidos pelo Professor Paulo Lôbo, um outro, que, na verdade, reúne todos eles. Esse
elemento, ou melhor, essa noção de família sustentada pelo afeto, deve conter, em seu núcleo, uma estrutura psíquica. É a
partir desses pressupostos que Lacan pôde definir a família como uma estruturação psíquica” (CUNHA, Rodrigo Pereira da.
Princípios fundamentais norteadores do Direito de Família, 1.a Edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2005, p. 180-182 –
sem grifos no original).
81 Nos termos do art. 1.511 do Código Civil.
82 Nos termos do art. 1.723 do Código Civil.
83 “O sentido atual que informa o Direito de Família transborda de sua origem. Atualmente, o enfoque centra-se na affectio – a
família como o lugar privilegiado de abrigo, de ninho e de solidariedade com base no afeto”, donde “De uma família instituída
de forma hierarquizada, destinada à procriação biológica e voltada para sua produção econômica, chega-se a um modelo
de cooperação mútua dentro de um espaço de exercício da afetividade” (MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre
pessoas do mesmo sexo: aspectos sociais e jurídicos, 1.a Edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2004, p. 27-28 – sem
grifos no original).
84 Nesse sentido, ensina-nos Roger Raupp Rios, cuja lição, de tão elucidativa, pede-se venia para se transcrever na íntegra:
“De acordo com os citados V. Poncar e P. Rofani, o modelo de família institucional vem declinando na segunda metade do
século XX. Diversas inovações legislativas, refletindo as profundas mudanças na dinâmica familiar nestes tempos, foram
paulatinamente enfraquecendo o modelo institucional hierárquico e patriarcal. Dentre estas, merecem destaque a nova
compreensão do divórcio e a igualdade de direitos entre os cônjuges. Neste caminho, observou-se primeiramente no
mundo dos fatos a instauração de um tipo de relação familiar que privilegiava a satisfação afetiva conjunta dos cônjuges,
informado pelas aspirações de intimidade e reciprocidade no seio familiar – a chamada ‘família fusional’. A partir da década
de oitenta, esta configuração vai alterar-se ainda mais, configurando a chamada ‘família pós-moderna’, que se caracteriza
pelo predomínio da individualidade de cada um dos seus membros sobre a comunidade familiar. Segundo F. Singly, ‘o que
muda é o fato de que as relações sejam menos valorizadas por si mesmas e mais pelas gratificações que devem trazer a
cada um dos componentes da família. Hoje, a ‘família feliz’ atrai menos, o que conta é ser feliz por si mesmo’. A percepção
destas mudanças é essencial para a adequada concretização do direito de família contemporâneo, seja para o
enfrentamento da questão a quem particularmente se dedica este trabalho, seja para a compreensão daquilo que o
ordenamento jurídico dispõe sobre o fenômeno familiar como um todo. Este dinamismo culminou, no ordenamento jurídico
brasileiro, na promulgação da Constituição da República de 1988, onde foram inseridas diversas normas a respeito da
família, objeto de todo um capítulo da Ordem Social. Nesta evolução, há de se frisar, primeiramente, a superação da visão
que subordinava a dinâmica familiar à consecução de determinados fins sociais e estatais, estabelecidos no interior de uma
única e determinada cosmovisão estatal. De fato, com o reconhecimento da dignidade constitucional de outras formas de
vida comum diversas da tradicional família legítima, até a igualdade de direitos e deveres entre homem e mulher na
sociedade conjugal, o regime jurídico da família hoje vigente operou uma ruptura com o paradigma institucional antes
prevalente. Este aspecto é muito importante, uma vez que em virtude desta nova disciplina constitucional pode-se conferir
ao ordenamento jurídico a abertura e a mobilidade que a dinâmica social lhe exige, sem a fixidez de um modelo único que
desconheça a pluralidade de estilos de vida e de crenças e o pluralismo que caracterizam nossos dias. De fato, nesta trilha
têm sido desenvolvidas as abordagens atuais do direito de família. Conforme sumariou Sérgio Gischkow Pereira, as linhas
gerais do direito de família contemporâneo apresentam (1) o amor como valor capaz de dar origem, sentido e sustentação
ao casamento; (2) a completa paridade entre os cônjuges; (3) a igualdade dos filhos de qualquer natureza, incluídos os
adotivos; (4) o reconhecimento e a proteção do concubinato [leia-se o antigo “concubinato puro”, atualmente denominado
como “união estável”]; (5) o novo conteúdo do pátrio poder [hoje denominado como “poder familiar”]; (6) a menor dificuldade
na obtenção do divórcio; (7) a adequação do regime de bens aos verdadeiros significados do casamento; (8) a atuação
mais intensa do Estado sobre a família e (9) a influência dos avanços científicos e tecnológicos. Na mesma linha, Munir
Karam salienta que a configuração jurídica da família no século XXI tende claramente a valorizar mais o elemento afetivo
sobre o matrimônio formal, a procriação ou o estrato social. Como disse Maria Cláudia Crespo Brauner, os pilares da
família moderna assentam-se nas relações de solidariedade e afeto, muito além da mera função de reprodução, sustento e
educação dos filhos. Nesta dinâmica, observa-se mais e mais a valorização do direito pessoal de família sobre o direito
patrimonial. Não só isso. A atualização do direito de família hoje exigida pela realidade social requer, além da superação do
paradigma da família institucional, o reconhecimento dos novos valores e das novas formas de convívio constituintes das
concretas formações familiares contemporâneas, que alcançam não só a citada ‘família fusional’, mas também a ‘família
pós-moderna’. Neste sentido, aliás, poder-se-ia melhor explorar e refletir a respeito do § 8.º do artigo 226 da Constituição
Federal de 1988, onde fica clara a relevância e a autonomia de cada indivíduo participante da comunidade familiar, sem se
adotar uma visão ‘institucional’ ou ‘fusional’ da família. Diante desta tarefa, como devem os operadores jurídicos atuar,
cientes de que as novas dinâmicas familiares tendem cada vez mais a valorizar a construção da felicidade e do bem-estar
dos indivíduos considerados autonomamente, ao invés da consagração do grupo familiar em si mesmo? Haveria
fundamento jurídico para a qualificação destas ‘novas comunidades familiares’, daí extraindo os operadores jurídicos as
pautas normativas para a concretização do ordenamento que a história lhes exige? As questões que surgem da conjunção
de tais fenômenos sociais com o amplo espectro de direitos e deveres pertinentes ao direito de família são inumeráveis.
Nos limites deste artigo, assim conduzido o raciocínio, devo desenvolver uma resposta ao problema da união de pessoas
do mesmo sexo no âmbito do direito de família. Ainda que não tenha a pretensão de responder cabalmente à questão,
abarcando todos os seus aspectos, creio que um dado fundamental, que não pode ser esquecido no cumprimento desta
tarefa, é que o respeito à dignidade humana também se dá por intermédio do reconhecimento da pertinência das uniões de
pessoas do mesmo sexo ao âmbito do direito de família. Eis aqui uma conexão entre a dignidade humana e o
reconhecimento destas uniões no âmbito jurídico familiar, especialmente se se atentar para a sistemática rejeição de
direitos a homossexuais em virtude da alegada impertinência de suas relações afetivas a este domínio jurídico” (RIOS,
Roger Raupp, A homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 102-106 -
sem grifos no original).
85 “Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.”
“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência
pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.” (sem grifos no original).
86 Nesse mesmo sentido, apesar de usar outro enfoque, afirma Maria Berenice Dias, cuja lição vale aqui ser reiterada no
sentido de que “o afrouxamento dos laços entre Estado e Igreja acarretou uma profunda evolução social e a mutação do
próprio conceito de família, que se transformou em verdadeiro caleidoscópio de relações que muda no tempo de sua
constituição e se consolida em cada geração. Começaram a surgir novas estruturas de convívio sem uma terminologia
adequada que as identifique. Famílias formadas por pessoas que saíram de outras relações, sem que seus componentes
tenham lugares definidos. Os novos contornos da família estão desafiando a possibilidade de encontrar-se uma
conceituação única para sua identificação. Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais
diversos arranjos familiares, devendo-se buscar a identificação do elemento que permita enlaçar no conceito de entidade
familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independente de sua conformação. O desafio
dos dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que permita nominá-las como família. Este
referencial só pode ser identificado na afetividade. É o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do
âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento
estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde patrimônios; gera responsabilidades e
comprometimentos mútuos. Esse é o divisor entre o direito obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato
exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito de família é o afeto. A família é um grupo social
fundamento essencialmente nos laços de afetividade após o desaparecimento da família patriarcal que desempenhava
funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 40-44 – destaques do original; grifos nossos).
87 MELLO, Marcos Bernardes de. Sobre a classificação do fato jurídico da união estável. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos;
EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em
Homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 160. Grifos nossos.
88 Como dito, a expressão afeto familiar é de Sérgio Rezende de Barros, que o define (afeto familiar) como “um afeto que
enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e
fundamental de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de existência, subsistência
e persistência de cada um e do todo que formam” (“A ideologia do afeto”, Revista Brasileira de Direito de Família, v. 4, n. 14,
p. 9, apud CUNHA, Rodrigo Pereira da. Princípios fundamentais norteadores do Direito de Família, 1.a Edição, 2005, Belo
Horizonte: Editora Del Rey, p. 180). Apenas para que não haja qualquer margem para dúvidas, esclareço que uso amor
familiar e afeto familiar como expressões sinônimas, até porque cunhei a expressão amor familiar por influência do afeto
familiar de Sérgio Rezende de Barros.
89 Discriminação jurídica caracterizada pela concessão de menos direitos aos casais homoafetivos quando comparados aos
direitos garantidos aos casais heteroafetivos.
90 Podem até formar outra espécie de entidade familiar formada pelo amor fraterno que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, mas não a união estável, que é pautada necessariamente pelo amor
romântico.
91 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 5.
92 Cf. voto do Ministro Ayres Britto, p. 19-26 (trechos a fls. 24-26). Valem as longas (e pertinentes) considerações que fizeram
o Ministro Ayres Britto chegar a tal conclusão em sua análise do caput do art. 226 da CF/1988: “39. Se é assim, e tratando-
se de direitos clausulados como pétreos (inciso IV do § 4.º do artigo constitucional de n.º 60), cabe perguntar se a
Constituição Federal sonega aos parceiros homoafetivos, em estado de prolongada ou estabilizada união, o mesmo regime
jurídico-protetivo que dela se desprende para favorecer os casais heteroafetivos em situação de voluntário enlace
igualmente caracterizado pela estabilidade. Que, no fundo, é o móvel da propositura das duas ações constitucionais sub
judice. 40. Bem, para responder a essa decisiva pergunta, impossível deixar de começar pela análise do capítulo
constitucional que tem como seu englobado conteúdo, justamente, as figuras jurídicas da família, do casamento civil, da
união estável, do planejamento familiar e da adoção. É o capítulo de n.º VII, integrativo do título constitucional versante sobre
a ‘Ordem Social’ (Título VIII). Capítulo nitidamente protetivo dos cinco mencionados institutos, porém com ênfase para a
família, de logo aquinhoada com a cláusula expressa da especial proteção do Estado, verbis: ‘A família, base da sociedade,
tem especial proteção do Estado’ (caput do art. 226). Em sequência é que a nossa Lei Maior aporta consigo os dispositivos
que mais de perto interessam ao equacionamento das questões de que tratam as duas ações sob julgamento, que são os
seguintes: (...) [aqui o Ministro Ayres Britto transcreve os §§ 1.º a 8.º do art. 226 e os §§ 5.º e 6.º do art. 227 da CF/1988] 41.
De toda essa estrutura de linguagem prescritiva (‘textos normativos’, diria Friedrich Müller), salta à evidência que a parte
mais importante é a própria cabeça do art. 226, alusiva à instituição da família, pois somente ela – insista-se na observação
– é que foi contemplada com a referida cláusula da especial proteção estatal. Mas família em seu coloquial ou proverbial
significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais
heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas. Logo, família como fato cultural e espiritual ao mesmo
tempo (não necessariamente como fato biológico). Tanto assim que referida como parâmetro de fixação do salário mínimo
de âmbito nacional (inciso IV do art. 7.º) e como específica parcela da remuneração habitual do trabalhador (‘salário​-família’,
mais precisamente, consoante o inciso XII do art. 5.º), sem que o Magno Texto Federal a subordinasse a outro requisito de
formação que não a facticidade em si da sua realidade como autonomizado núcleo doméstico. O mesmo acontecendo com
outros dispositivos constitucionais, de que servem de amostra os incisos XXVI, LXII e LXIII do art. 5.º; art. 191; inciso IV e
§12 do art. 201; art. 203; art. 205 e inciso IV do art. 221, nos quais permanece a diretriz do não atrelamento da formação da
família a casais heteroafetivos nem a qualquer formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa; vale dizer, em
todos esses preceitos a Constituição limita o seu discurso ao reconhecimento da família como instituição privada que,
voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação
tricotômica. Sem embargo de, num solitário § 1.º do art. 183, referir-se à dicotomia básica do homem e da mulher, mas,
ainda assim: a) como forma especial de equiparação da importância jurídica do respectivo labor masculino e feminino; b)
como resposta normativa ao fato de que, não raro, o marido ou companheiro abandona o lar e com mais facilidade se
predispõe a negociar seu título de domínio ou de concessão de uso daquele bem imóvel até então ocupado pelo casal.
Base de inspiração ou vetores que já obedecem a um outro tipo de serviência a valores que não se hierarquizam em função
da heteroafetividade ou da homoafetividade das pessoas. 42. Deveras, mais que um singelo instituto de Direito em sentido
objetivo, a família é uma complexa instituição social em sentido subjetivo. Logo, um aparelho, uma entidade, um organismo,
uma estrutura das mais permanentes relações intersubjetivas, um aparato de poder, enfim. Poder doméstico, por evidente,
mas no sentido de centro subjetivado da mais próxima, íntima, natural, imediata, carinhosa, confiável e prolongada forma de
agregação humana. Tão insimilar a qualquer outra forma de agrupamento humano quanto a pessoa natural perante outra,
na sua elementar função de primeiro e insubstituível elo entre o indivíduo e a sociedade. Ambiente primaz, acresça-se, de
uma convivência empiricamente instaurada por iniciativa de pessoas que se veem tomadas da mais qualificada das
empatias, porque envolta numa atmosfera de afetividade, aconchego habitacional, concreta admiração ético-espiritual e
propósito de felicidade tão emparceiradamente permeado da franca possibilidade de extensão desse estado personalizado
de coisas a outros membros desse mesmo núcleo doméstico, de que servem de amostra os filhos (consanguíneos ou
não), avós, netos, sobrinhos e irmãos. Até porque esse núcleo familiar é o principal locus de concreção dos direitos
fundamentais que a própria Constituição designa por ‘intimidade e vida privada’ (inciso X do art. 5.º), além de, já numa
dimensão de moradia, se constituir no asilo ‘inviolável do indivíduo’, consoante dicção do inciso XI desse mesmo artigo
constitucional. O que responde pela transformação de anônimas casas em personalizados lares, sem o que não se tem
um igualmente personalizado pedaço de chão no mundo. E sendo assim a mais natural das coletividades humanas ou o
apogeu da integração comunitária, a família teria mesmo que receber a mais dilatada conceituação jurídica e a mais
extensa rede de proteção constitucional. Em rigor, uma palavra-gênero, insuscetível de antecipado fechamento conceitual
das espécies em que pode culturalmente se desdobrar. 43. Daqui se desata a nítida compreensão de que a família é, por
natureza ou no plano dos fatos, vocacionadamente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-
se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada. O
que a credencia como base da sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e
espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa definia a família como ‘a Pátria amplificada’). Que
termina sendo o alcance de uma forma superior de vida coletiva, porque especialmente inclinada para o crescimento
espiritual dos respectivos integrantes. Integrantes humanos em concreto estado de comunhão de interesses, valores e
consciência da partilha de um mesmo destino histórico. Vida em comunidade, portanto, sabido que comunidade vem de
‘comum unidade’. E como toda comunidade, tanto a família como a sociedade civil, é usina de comportamentos
assecuratórios da sobrevivência, equilíbrio e evolução do Todo e de cada uma de suas partes. Espécie de locomotiva social
ou cadinho em que se tempera o próprio caráter dos seus individualizados membros e se chega à serena compreensão de
que ali é verdadeiramente o espaço do mais entranhado afeto e desatada cooperação. Afinal, é no regaço da família que
desabrocham com muito mais viço as virtudes subjetivas da tolerância, sacrifício e renúncia, adensadas por um tipo de
compreensão que certamente esteve presente na proposição spnozista de que, ‘Nas coisas ditas humanas, não há o que
crucificar ou ridicularizar. Há só o que compreender’. 44. Ora bem, é desse anímico e cultural conceito de família que se
orna a cabeça do art. 226 da Constituição. Donde a sua literal categorização com ‘base na sociedade’. E assim normada
como figura central ou verdadeiro continente para tudo o mais, ela, família, é que deve servir de norte para a interpretação
dos dispositivos em que o capítulo VIII se desdobra, conforme transcrição acima feita. Não o inverso. Artigos que têm por
objeto os institutos do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar, da adoção etc., todos eles somente
apreendidos na inteireza da respectiva compostura e funcionalidade na medida em que imersos no continente (reitere-se o
uso da metáfora) em que a instituição da família consiste. 45. E se insistimos na metáfora do ‘continente’ é porque o núcleo
doméstico em que a família se constitui ainda cumpre explícitas funções jurídicas do mais alto relevo individual e coletivo,
amplamente justificadoras da especial proteção estatal que lhe assegura o citado art. 226. Refiro-me a preceitos que de
logo tenho como fundamentais pela sua mais entranhada serventia para a concreção dos princípios da cidadania, da
dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, que são, respectivamente, os incisos II, III e IV do art. 1.º da
CF. Logo, preceitos fundamentais por reverberação, arrastamento ou reforçada complementariedade, a saber: (...)
[transcrição dos arts. 205, 227 e 230, por sua referência à família]. 46. E assim é que, mais uma vez, a Constituição Federal
não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também
não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação
homoafetiva. Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa
Magna Carta não emprestou ao substantivo ‘família’ nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o
com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser. Assim como dá para
inferir que, quanto maior o número dos espaços doméstica e autonomamente estruturados, maior a possibilidade de efetiva
colaboração entre esses núcleos familiares, o Estado e a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados
deveres que são funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do
trabalho. Isso numa projeção exógena ou extramuros domésticos, porque endogenamente ou interna corporis, os
beneficiários imediatos dessa multiplicação de unidades familiares são os seus originários formadores, parentes e
agregados. Incluído nestas duas últimas categorias dos parentes e agregados o contingente das crianças, dos
adolescentes e dos idosos. Também eles, crianças, adolescentes e idosos, tanto mais protegidos quanto partícipes dessa
vida em comunhão que é, por natureza, a família. (...) 47. Assim interpretando de forma não reducionista o conceito de
família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo de
coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso
indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo – data vênia de opinião divergente – é extrair do sistema
de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a
proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se
desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas
tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as
mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade. Pena de se consagrar uma liberdade homoafetiva pela
metade ou condenada a encontros tão ocasionais quanto clandestinos ou subterrâneos. Uma canhestra liberdade ‘mais ou
menos’, para lembrar um poema alegadamente psicografado pelo tão prestigiado médium brasileiro Chico Xavier, hoje
falecido, que, iniciando pelos versos de que ‘A gente pode morar numa casa mais ou menos/Numa rua mais ou
menos/Numa cidade mais ou menos/E até ter um governo mais ou menos’, assim conclui a sua lúcida mensagem: ‘O que
a gente não pode mesmo/Nunca, de jeito nenhum/É amar mais ou menos/É sonhar mais ou menos/É ser amigo mais ou
menos/(...) Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos’” (grifos parcialmente nossos).
93 Voto do Ministro Ayres Britto, p. 26-27, nos seguintes termos: “I – ‘O casamento é civil e gratuita a celebração’. Dando-se
que ‘O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei’ (§§ 1.º e 2.º). Com o que essa figura do casamento perante o
Juiz, uma das modalidades de constituição da família. Não a única forma, como, agora sim, acontecia na Constituição de
1967, litteris: ‘A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos’ (caput do art. 175, já
considerada a Emenda Constitucional n.º 1, de 1969). É deduzir: se, na Carta Política vencida, toda a ênfase protetiva era
para o casamento, visto que ele açambarcava a família como entidade, agora, na Constituição vencedora, a ênfase tutelar
se desloca para a instituição da família mesma. Família que pode prosseguir, se houver descendentes ou então agregados,
com a eventual dissolução do casamento (vai-se o casamento, fica a família). Um liame já não umbilical como o que
prevalecia na velha ordem constitucional, sobre a qual foi jogada, em hora mais que ansiada, a última pá de cal. Sem
embargo do reconhecimento de que essa primeira referência ao casamento de papel passado traduza uma homenagem da
nossa Lei Fundamental de 1988 à tradição. Melhor dizendo, homenagem a uma tradição ocidental de maior prestígio
sociocultural-religioso a um modelo de matrimônio que ocorre à vista de todos, com pompa e circunstância e revelador de
um pacto afetivo que se deseja tão publicamente conhecido que celebrado ante o juiz, ou o sacerdote juridicamente
habilitado, e sob o testemunho igualmente formal de pessoas da sociedade. Logo, um pacto formalmente predisposto à
perdurabilidade e deflagrador de tão conhecidos quanto inquestionáveis efeitos jurídicos de monta, como, por exemplo, a
definição do regime de bens do casal, sua submissão a determinadas regras de direito sucessório, pressuposição de
paternidade na fluência do matrimônio e mudança do estado civil dos contraentes, que de solteiros ou viúvos passam
automaticamente à condição de casados. A justificar, portanto, essas primeiras referências que a ele, casamento civil, faz a
nossa Constituição nos dois parágrafos em causa (§§ 1.º e 2.º do art. 226); ou seja, nada mais natural que prestigiar por
primeiro uma forma de constituição da família que se apresenta com as vestes da mais ampla notoriedade e promessa
igualmente pública de todo empenho pela continuidade do enlace afetivo, pois, ao fim e ao cabo, esse tipo de prestígio
constitucional redunda em benefício da estabilidade da própria família. O continente que não se exaure em nenhum dos
seus conteúdos, inclusive esse do casamento civil.
94 Ou seja, o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura.
95 Cf. voto do Ministro Ayres Britto, p. 27-29. Em suas palavras: “II – com efeito, após falar do casamento civil como uma das
formas de constituição da família, a nossa Lei maior adiciona ao seu art. 226 um § 3.º para cuidar de uma nova modalidade
de formação de um autonomizado núcleo doméstico, por ela batizado de ‘entidade familiar’. É o núcleo doméstico que se
constitui pela ‘união estável entre o homem e a mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. Donde a
necessidade de se aclarar: II.1 – que essa referência à dualidade básica homem/mulher tem uma lógica inicial: dar imediata
sequência àquela vertente constitucional de incentivo ao casamento como forma de reverência à tradição sociocultural-
religiosa do mundo ocidental de que o Brasil faz parte (§ 1.º do art. 226 da CF), sabido que o casamento civil brasileiro tem
sido protagonizado por pessoas de sexos diferentes, até hoje. Casamento civil, aliás, regrado pela Constituição Federal
sem a menor referência aos substantivos ‘homem’ e ‘mulher’. II.2 – que a normação desse novo tipo de união, agora
expressamente referida à dualidade do homem e da mulher, também se deve ao propósito constitucional de não perder a
menor oportunidade de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero
humano, sabido que a mulher que se une ao homem em regime de companheirismo ou sem papel passado ainda é vítima
de comentários desairosos de sua honra objetiva, tal a renitência desse ranço do patriarcalismo entre nós (não se pode
esquecer que até 1962, a mulher era juridicamente categorizada como relativamente incapaz, para os atos da vida civil, nos
termos da redação original do art. 6.º do Código Civil de 1916); tanto é assim que o § 4.º [rectius: 5.º] desse mesmo art. 226
(antecipo o comentário) reza que ‘Os direitos referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela
mulher’. Preceito, este último, que também relança o discurso do inciso I do art. 5.º da Constituição (‘homens e mulheres
são iguais em direitos e obrigações’) para atuar como estratégia de reforço normativo a um mais eficiente combate àquela
renitência patriarcal dos nossos costumes. Só e só, pois esse combate mais eficaz ao preconceito que teimosamente
persiste para inferiorizar a mulher perante o homem é uma espécie de briga particular ou bandeira de luta que a nossa
Constituição desfralda numa outra esfera de arejamento mental da vida brasileira, nada tendo a ver com a dicotomia da
heteroafetividade e da homoafetividade. Logo, que não se faça uso da letra da Constituição para matar o seu espírito, no
fluxo de uma postura interpretativa que faz ressuscitar o mencionado caput do art. 175 da Constituição de 1967/1969. Ou
como diria Sérgio da Silva Mendes, que não se separe por um parágrafo (esse de n.º 3) o que a vida uniu pelo afeto. Numa
nova metáfora, não se pode fazer rolar a cabeça do artigo 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro, pois esse tipo
acanhado ou reducionista de interpretação jurídica seria o modo mais eficaz de tornar a Constituição ineficaz...” (grifos
parcialmente nossos).
96 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 31-32. Em suas palavras: “III – salto para o § 4.º do art. 226, apenas
para dar conta de que a família também se forma por uma terceira e expressa modalidade, traduzida na concreta existência
de uma ‘comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes’. É o que a doutrina entende por ‘família
monoparental’, sem que se possa fazer em seu desfavor, pontuo, qualquer inferiorizada comparação com o casamento civil
ou união estável. Basta pensar no absurdo que seria uma mulher casada enviuvar e manter consigo um ou mais filhos do
antigo casal, passando a ter que suportar o rebaixamento da sua família à condição de ‘entidade familiar’; ou seja, além de
perder o marido, essa mulher perderia o status de membro de uma consolidada família. Sua nova e rebaixada posição seria
de membro de uma simplória ‘entidade familiar’, porque sua antiga família morreria com seu antigo marido. Baixaria ao
túmulo com ele. De todo modo, também aqui a Constituição é apenas enunciativa no seu comando, nunca taxativa, pois
não se pode recusar a condição de família monoparental àquela constituída, por exemplo, por qualquer dos avós e um ou
mais netos, ou até mesmo por tios e sobrinhos. Como não se pode pré-excluir da candidatura à adoção ativa pessoas de
qualquer preferência sexual, sozinhas ou em regime de emparceiramento”.
97 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 28.
98 Na 1ª edição desta obra, afirmei que o dispositivo afirmava a possibilidade da dissolução do casamento civil pelo divórcio
“após um ano de separação judicial” ou “após dois anos de separação fática”, contudo, a EC 66 extirpou a separação
judicial do mundo jurídico e suprimiu a referência a lapso temporal para o divórcio. Embora isso tenha feito surgir celeuma
doutrinária sobre se as normas do Código Civil em relação a separação judicial permanecessem válidas, alguns
defendendo a favor da liberdade de conformação do legislador na regulamentação das normas constitucionais, e outros
entendendo que não (por ausência de lógica na manutenção da separação judicial após dita emenda constitucional),
acreditamos que a vontade objetivamente constatável da alteração foi abolir a separação judicial do mundo jurídico, com a
consequente nulificação ou revogação tácita das normas infraconstitucionais respectivas – do contrário, teria feito alguma
ressalva em sentido contrário (“nulificação ou revogação” consoante a corrente adotada sobre a consequência da
inconstitucionalidade decorrente de norma constitucional posterior à norma infraconstitucional em questão – adoto a tese
minoritária que aceita o fenômeno da inconstitucionalidade superveniente, embora o STF perfilhe a tese da mera revogação,
consoante julgamento da ADIn 02, sobre a qual não cabe aqui ingressar (mas cujos argumentos da corrente minoritária não
foram desmistificados pela maioria, já que inconstitucionalidade é um juízo de incompatibilidade vertical de normas que
independe de “intenção” do legislador de afrontar a Constituição, ao passo que a nulificação da norma infraconstitucional
pela norma constitucional posterior tem os mesmos efeitos práticos da revogação, em que ausente “privilégio” da lei sobre
a Constituição por lei posterior ter poder de revogar, na medida em que a norma constitucional posterior tem o poder de
nulificar a norma infraconstitucional (a ela inferior).
99 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 32. Em suas palavras: “Por último, anoto que a Constituição remete
à lei a incumbência de dispor sobre a assistência do Poder Público à adoção, inclusive pelo estabelecimento de casos e
condições da sua (dela, adoção) efetivação por parte de estrangeiros (§ 5.º do art. 227). E também nesta parte do seu
estoque normativo não abre distinção entre adotante ‘homo’ ou ‘heteroafetivo’. E como possibilita a adoção por uma pessoa
adulta, também sem distinguir entre o adotante solteiro e o adotante casado, ou então em regime de união estável, penso
aplicar-se ao tema o mesmo raciocínio de proibição do preconceito e da regra do inciso II do art. 5.º da CF,
combinadamente com o inciso IV do art. 3.º e o § 1.º do art. 5.º da Constituição. Mas é óbvio que o mencionado regime legal
há de observar, entre outras medidas de defesa e proteção do adotando, todo o conteúdo do art. 227, cabeça, da nossa Lei
Fundamental”.
100 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005,
pp. 165-168.
101 Op. cit., pp. 166 e 181-182.
102 Desenvolvi essa argumentação no amicus curiae que apresentei perante o Supremo Tribunal Federal para o julgamento
da ADPF 132 e da ADI 4.277, em favor da AIESSP – Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo.
Posteriormente, ela constou em VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. União Estável Homoafetiva e a Constitucionalidade de
seu Reconhecimento Judicial. Revista do Direito das Famílias e Sucessões, fev.-mar. 2010, ano XI, n.º 14, pp. 66-88, logo
após breve demonstração do conceito material de família conjugal, exteriorizado pelo amor familiar.
103 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 57-58.
104 Cf. Capítulo 5, item 2.4.1 – “O Amor Familiar como o Elemento Formador da Família Contemporânea”.
105 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 11-14 (sem grifos no original).
106 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, pp. 41-43.
107 Ibidem, p. 40.
108 No original, afirma o autor que “(...) o art. 226, § 8.o, da Constituição Brasileira de 1988 assimila o marco ora tratado da
nova família, com contornos diferenciados, pois prioriza a necessidade da realização da personalidade dos seus membros,
ou seja, a família-função, em que subsiste a afetividade, que, por sua vez, justifica a permanência da entidade familiar. Esta
é a família constitucionalizada, que trazemos a lume no presente trabalho. Por isso, insista-se, a família só faz sentido para
o Direito a partir do momento em que ela é veículo funcionalizador à promoção da dignidade de seus membros. Em face,
portanto, da mudança epistemológica ocorrida no bojo da família, a ordem jurídica assimilou tal transformação, passando a
considerar o afeto como um valor jurídico de suma relevância para o Direito de Família. Seus reflexos crescentes vêm
permeando todo o Direito, como é exemplo a valorização dos laços de afetividade e da convivência familiar oriundos da
filiação, em detrimento, por vezes, dos vínculos de consanguinidade. Além disso, todos os filhos receberam o mesmo
tratamento constitucional, independente da sua origem e se são biológicos ou não” (CUNHA, Rodrigo Pereira da. Princípios
fundamentais norteadores do Direito de Família, 1.a Edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2005, p. 180 – sem grifos no
original).
109 Lembre-se que o CC/1916 só reconhecia como famílias legítimas, entendidas como protegidas pelo Direito, aquelas
consagradas pelo casamento civil, sendo o afeto completamente desconsiderado pela legislação pretérita.
110 LÔBO apud DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2005, p. 66.
111 WELTER apud DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 66-67.
112 Ibidem, p. 39.
113 Ibidem, p. 39.
114 Falo em “amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura” por dois
motivos: (i) porque o elo afetivo isoladamente considerado nunca foi capaz de constituir uma família, necessitando dos
laços de publicidade, continuidade e durabilidade para tanto, de forma a diferenciar a família da mera amizade; e (ii) como
interpretação teleológica do art. 1.511 do CC/2002, que afirma que o casamento civil estabelece uma comunhão plena de
vida entre os cônjuges, donde dita comunhão afigura-se como indispensável à constituição de uma família, aliada aos
referidos laços de publicidade, continuidade e durabilidade exigidos para a união estável (art. 1.723 do CC/2002).
115 Ibidem, p. 39.
116 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o Direito impor o Amor? In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito
Contemporâneo. Estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lobo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 47.
117 ANDRADE, Renata Cristina Othon Lacerda de. Aplicabilidade do Princípio da Afetividade às Relações Paterno-Filiais: a
difícil escolha entre os laços de sangue e o afeto sem vínculos. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR.,
Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 73-
74. Grifos nossos.
118 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o Direito impor o Amor? In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito
Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 60-61. Grifo nosso.
119 Ibidem, pp. 65-66. Grifos nossos.
120 Ibidem, pp. 56-59. Grifos nossos.
121 RIBEIRO, Ana Cecília Rosário e ARAÚJO, Marcelo de Jesus Monteiro. A Relação Incestuosa como Entidade Familiar:
uma Revolução do Estatuto das Famílias. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. EHRHARDT JR, Marcos e OLIVEIRA,
Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., 1ª edição, Salvador: Editora Podivm, 2010, pp. 310-311.
Grifos nossos.
122 BARROSO, Lucas Abreu. Desmistificando as Relações de Família no Novo Direito Civil. In: ALBUQUERQUE, Fabíola
Santos. EHRHARDT JR, Marcos e OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., 1ª edição,
Salvador: Editora Podivm, 2010, p. 127. Grifos nossos.
123 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual. O Preconceito & a Justiça. 3. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2006, p. 68-69. A autora alterou a redação deste trecho na 4ª e na 5ª edições de sua obra. Vide, no corpo do texto, as
transcrições, já no final do primeiro parágrafo deste tópico.
124 DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O preconceito & a justiça. 4. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 129.
125 DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O preconceito & a justiça. 5. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 108.
126 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Marco Aurélio, p. 8 – grifos nossos.
127 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, p. 40.
128 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 20-24 – grifos nossos.
129 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Lewandowski, p. 10 – grifo nosso.
130 Os demais referem-se, em síntese, a proibição da orientação sexual e da identidade de gênero dos pais e/ou pretendentes
à adoção serem consideradas, isoladamente, como incompatível com o melhor interesse de crianças e adolescentes
(alínea “c”), consideração da opinião de crianças e adolescentes capazes de expressas suas opiniões (alínea “d”) e
garantia de consentimento pleno e livre como requisito para casamentos e parcerias civis entre duas pessoas (alínea “g”).
131 Vide, nesse sentido, a reportagem da“50 anos após Kinsey, sexo volta a chocar EUA”, Folha de S. Paulo, de 19 dez. 2004,
caderno Mundo).
132 O tema é inacreditavelmente polêmico. Com efeito, há quem entenda que o constitucionalismo traria uma afronta à
democracia caso seja entendido como limitador da vontade das maiorias sociais por meio de suas cláusulas pétreas.
Apontam que a maioria não poderia ser limitada pela Constituição sob pena de afronta ao princípio democrático. Contudo,
tal posição é completamente descabida e falaciosa. É descabida porque a democracia existe na forma como foi
constitucionalmente consagrada. É a Constituição Federal que define o conteúdo jurídico dos princípios nela consagrados,
não o contrário, donde, repita-se, a democracia existe na forma como foi constitucionalmente consagrada. Por outro lado, é
falaciosa porque a maioria não está nem um pouco impedida a fazer que o país passe a vigorar de forma diversa daquela
instituída pelas cláusulas pétreas. Basta que, para tanto, convoque uma nova Assembleia Nacional Constituinte e elabore
uma nova Constituição Federal, sem as cláusulas pétreas que impedem a vontade majoritária. Plebiscitos não são formas
de consulta ao Poder Constituinte Originário, aptas a superar as cláusulas pétreas: nos termos da Constituição, plebiscitos
são formas de elaboração de leis e, com interpretação teleológica extremamente condescendente, no máximo de emendas
constitucionais que, contudo, devem respeitar as cláusulas pétreas da Constituição. Ou seja, na forma como foi concebido
pela Constituição, o plebiscito não tem o condão de levar à superação das cláusulas pétreas, entre as quais os direitos
fundamentais. Muito embora haja quem alegue que essa noção de cláusulas pétreas traria insegurança jurídica na medida
em que não é possível prever os exatos resultados de uma nova Constituinte, acabar com essa compreensão de cláusulas
pétreas e, portanto, com o núcleo material intangível da Constituição traz a mesma insegurança jurídica, na medida em que
também é incerto o que as deliberações de maiorias ocasionais podem trazer a um sistema jurídico. O nazismo que o diga,
já que existiu em um regime no qual não havia vinculação material do legislador democrático à Constituição. Portanto, para
que não se permita uma verdadeira fraude constitucional, é preciso respeito às cláusulas pétreas da Constituição, mesmo
que contra a vontade da maioria, que, se quiser, deverá convocar uma nova Constituinte para elaborar uma nova
Constituição sem a cláusula pétrea que proibia o que ela, maioria, desejava. Essa é a lógica da teoria constitucional
contemporânea: conclusão em sentido contrário implica a negação da própria noção de supremacia constitucional. Nesse
sentido, embora com desenvolvimentos próprios, vide: VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição como reserva de justiça, Lua
Nova – Revista de Cultura e Política, n. 42, 1997, p. 53-97; e ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Reforma total da
Constituição: remédio ou suicídio institucional, in: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.), CRISE E DESAFIOS DA
CONSTITUIÇÃO, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 147-174. Por outro lado, essa posição segundo a qual democracia e
constitucionalidade seriam conceitos antagônicos encontra-se pautada em um conceito pré-jurídico de democracia, que
leva em conta tão somente o conceito de maioria. Pauta-se na excessiva confiança no legislador democrático, na
presunção de que aqueles eleitos pelo povo estariam sempre representando os interesses do povo – ou, pelo menos, da
maioria. Todavia, a história já comprovou, com o nazi-fascismo, que o legislador democrático não é imune a arbitrariedades,
comete injustiças das mais diversas e massacra as minorias por esdrúxulos preconceitos. Essa é uma razão de ordem
sociológica a justificar a legitimidade das limitações constitucionais às vontades majoritárias.
133 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 25.a Edição, São Paulo: Editora Malheiros, 2005, p. 132.
134 Ibidem, p. 117.
135 Ibidem, p. 132.
136 Ibidem, p. 130.
137 Ibidem, p. 130.
138 Ibidem, p. 131.
139 Não é outra a lição de Roger Raupp Rios: “(...) Com efeito, alguns juristas sustentam que a Constituição, ao enumerar tais
e quais espécies de comunidade familiar, inadmite o reconhecimento de outras comunidades familiares, sendo vedado ao
legislador ordinário e ao Poder Judiciário avançar nesta questão. A interpretação da Constituição, em face deste problema,
todavia, deve ser conduzida de outra forma. Na verdade, colocar o problema nestes termos em nada colabora para sua
elucidação, na medida em que perquirir da natureza taxativa ou enumerativa das comunidades familiares previstas no texto
constitucional seria concebê-lo de acordo com o dogma da completude, isto é, ideia de que a Constituição já tenha definido
de antemão a resposta para o problema. No entanto, quando se trata de interpretação constitucional, deve-se partir de
premissa diversa, segundo a qual a Constituição se caracteriza por sua abertura e amplitude, não se propondo de antemão
‘à pretensão de ausência de lacunas ou até de unidade sistemática’. Tomando como referência a obra de Konrad Hesse,
deve-se primeiramente fixar que a interpretação constitucional é, em primeiro lugar, concretização. Vale dizer, ‘exatamente
aquilo que, como conteúdo da Constituição, ainda não é unívoco deve ser determinado sob a inclusão da ‘realidade’ a ser
ordenada’. Desse modo, a interpretação constitucional possui uma nota criadora, pois o conteúdo da norma objeto de
interpretação só pode ser concluído pela interpretação – tudo sem abandonar a vinculação à norma. Para tanto, assinala o
jurista alemão, é necessário o ‘entendimento’ da norma a ser concretizada, num proceder essencialmente ligado à (pré)-
compreensão do intérprete e ao problema concreto. (...) Nas palavras do próprio Konrad Hesse, ‘não existe interpretação
constitucional independente de problemas concretos’. (...) Inexistindo na Constituição um sistema concluído e uniforme,
lógico-axiomático ou hierárquico de valores, mostra-se necessário tal procedimento de concretização. Nele, o intérprete
deve buscar pontos de vista relacionados com o problema concreto e indicar o que a Constituição fornece para a
consideração desses elementos na resolução do problema” (RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001, p. 116 e 117 – sem grifos no original).
140 No que tange à nomenclatura “dimensões” em vez de “gerações” de direitos fundamentais, concordamos com a posição
de Ingo Wolfgang Sarlet (A eficácia dos direitos fundamentais, 6.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006,
p. 54-55), que aduz que: “Num primeiro momento, é de se ressaltarem as fundadas críticas que vêm sendo dirigidas contra
o próprio termo ‘gerações’ por parte da doutrina alienígena e nacional. Com efeito, não há como negar que o
reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de
complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão ‘gerações’ pode ensejar a falsa impressão da
substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo ‘dimensões’ dos direitos
fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina. (...) Ressalte-se, todavia,
que a discordância reside essencialmente na esfera terminológica, havendo, em princípio, consenso no que diz com o
conteúdo das respectivas dimensões e ‘gerações’ de direitos. (...) Assim sendo, a teoria dimensional dos direitos
fundamentais não aponta, tão somente, para o caráter cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar
de todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito
constitucional interno e, de modo especial, na esfera do moderno ‘Direito Internacional dos Direitos Humanos’”.
141 Nesse sentido, ensina-nos Maria Berenice Dias: “Os direitos que foram consagrados principalmente pela declaração
francesa de 1789 passaram a ser considerados de primeira geração. Tendo como tônica a preservação da liberdade
individual, caracterizam-se como verdadeira imposição de limites ao Estado, gerando simples ‘obrigações de não fazer’.
Assim, o sujeito do direito é o indivíduo, e o objeto, a liberdade. (...)Os direitos econômicos, sociais e culturais que vieram a
ser positivados nos textos constitucionais a partir da Constituição de Weimar, de 1919, são tidos como direitos de segunda
geração. Cobram atitudes positivas do Estado, verdadeiras ‘obrigações de fazer’, com a finalidade de promover a igualdade.
Não a mera igualdade formal de todos frente à lei, mas a igualdade material de oportunidades, ações e resultados entre
partes ou categorias sociais desiguais, protegendo e favorecendo juridicamente os hipossuficientes em relações sociais
específicas, como as relações de trabalho, de consumo, etc. (...) São valores que recebem proteção do Estado, para
prevenir ou remediar o detrimento de uma categoria social por outra. Garantem uma prestação do Estado a determinados
indivíduos, a fim de promover a igualdade social buscando igualar os desiguais na medida que se desigualam. Os direitos
de terceira geração, sobrevindos à Segunda Guerra Mundial, asseguram a dignidade humana pelo implemento das
condições gerais e básicas que lhe sejam necessárias, postas como direitos difusos de toda a humanidade. Necessário se
tornou garantir, não indivíduo contra indivíduo, mas a humanidade contra a própria humanidade, reagindo aos extermínios
em massa praticados na primeira metade do século XX por regimes totalitários (stalinismo, nazismo) e democráticos
(destruição de cidades indefesas, até por bombas atômicas). (...)” (DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O
Preconceito & a Justiça. 5. ed. São Paulo: RT, 2011, pp 82-83).
142 Com efeito, aponta Maria Berenice Dias que “É crescente a positivação dos direitos humanos em nível constitucional,
fenômeno que decorre do constante processo de evolução dos valores histórico-sociais. Assim, imperioso reconhecer que
a garantia do livre exercício da sexualidade integra as três gerações de direitos, porque está relacionada com os postulados
fundamentais da liberdade individual, da igualdade social e da solidariedade humana. As gerações de direitos servem para
alcançar a realização de todos os cidadãos, havendo a necessidade de que as relações homossexuais, crivadas pelos
preconceitos, não sejam excluídas do mundo do Direito, pois a higidez dos conceitos jurídicos deve-se contrapor à
intolerância social. Além de estarem amparadas pelo princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a proibição de
discriminações injustas, impositiva a inclusão das relações homossexuais no rol dos direitos humanos fundamentais, como
expressão de um direito subjetivo ao mesmo tempo individual, categorial e difuso. Também se albergam sob a liberdade de
expressão, como garantia do exercício da liberdade individual, cabendo incluí-las, da mesma forma, entre os direitos de
personalidade, precipuamente no que diz com a identidade pessoal e a integridade física e psíquica. Acresce, ainda,
visualizar a segurança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, que é a base jurídica para a construção do direito à
orientação sexual, como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa humana [citação de Luiz Edson
Fachin] (...).Se o direito à identidade sexual é direito humano fundamental, necessariamente também o é o direito à
identidade homossexual, melhor dizendo: o direito à homoafetividade. Portanto, a relação homoafetiva corresponde a um
direito humano fundamental” (ibidem, 3. ed. p. 74-75 – grifos nossos).
143 Vale reiterar a lição do Ministro Gilmar Ferreira Mendes (In: MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 403),
para quem a liberdade de consciência é “a faculdade de o indivíduo formular juízos e ideias sobre si mesmo e sobre o meio
externo que o circunda”, afirmando ainda que o Estado não pode interferir nessa esfera íntima do indivíduo, “não lhe
cabendo impor concepções filosóficas aos cidadãos”.
144 Por “livre exercício da homoafetividade” entenda-se o direito de casais homoafetivos de apresentarem à sociedade como
casal (assim como fazem os casais heteroafetivos), sem discriminações normativas ou sociais em virtude de sua
homossexualidade e consequente homoafetividade, sendo vedado, por exemplo, a estabelecimentos comerciais impedirem
o acesso a seu estabelecimento a casais homoafetivos. Note-se, por oportuno, que em São Paulo a Lei Estadual
10.948/2001 proíbe a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero (esta última contra travestis e
transexuais), em explicitação legislativa do princípio da isonomia e do direito constitucional implícito de livre exercício da
afetividade (seja ela homo ou heteroafetiva). Da mesma forma, uma lei que criminalizasse a homossexualidade
(lamentavelmente existente em muitos países teocráticos) seria flagrantemente inconstitucional, por afronta aos princípios
da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade de consciência, da liberdade em geral, da intimidade e da vida
privada, além do direito implícito ao livre exercício da afetividade.
145 Nesse sentido, é valiosa a lição de Ingo Wolfgang Sarlet: “Atente-se, nesse contexto, para o significado da expressão
‘implícitos’, que, no sentido etimológico, pode ser considerado o que está subentendido, o que está envolvido, mas não de
modo claro. Neste sentido, verifica-se que a categoria dos direitos implícitos pode corresponder também – além da
possibilidade de dedução de um novo direito fundamental com base nos constantes do catálogo – a uma extensão
(mediante o recurso à hermenêutica) do âmbito de proteção de determinado direito fundamental expressamente positivado,
cuidando​-se, nesta hipótese, não tanto da criação jurisprudencial de um novo direito fundamental, mas, sim, de redefinição
do campo de incidência de determinado direito fundamental. (...) Seja qual for o critério utilizado (direitos implícitos ou
direitos decorrentes do regime e dos princípios) (...), o fato é que para o art. 5.o, § 2.o – para o efeito de dedução de
posições jurídicas fundamentais – assume caráter essencialmente declaratório (já que, em princípio, desnecessário, pelo
menos se considerarmos que implícito é o que já está subentendido). (...) Os direitos fundamentais implícitos têm, isto sim,
sua existência indiretamente reconhecida pelo citado preceito constitucional. Assim sendo, tenho para mim que a dedução
de direitos implícitos é algo inerente ao sistema, existindo, ou não, norma permissiva expressa neste sentido” (SARLET,
Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 6.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 104 e
108-109 – sem grifos no original).
146 Segundo Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 59), com base na lição de Lorenzetti e de
Gregório Robles: “Esses direitos, porque supõem um comportamento distinto de uns em relação aos demais indivíduos,
podem ser englobados sob o rótulo de ‘direito a ser diferente’. E ‘quanto maior é a diferenciação social, maior é a
complexidade no terreno das concepções do mundo e da vida’. Sob essa linha de raciocínio, poder-se-ia afirmar que o
reconhecimento dos direitos dos homossexuais se caracteriza como uma reivindicação de ingresso na pauta da igualdade
mais do que na da diferença, na medida em que esta reivindicação visa antes ao reconhecimento de um direito de
igualdade de tratamento, pois primeiro os homossexuais pretendem o reconhecimento de serem considerados como
‘sujeitos de direitos’ para, uma vez tomado assento no discurso jurídico a partir desse lugar de igualdade, poderem
reivindicar o respeito à diferença”.
147 Pelo menos diante da concepção adotada, tendo em vista que ainda não há consenso em relação às dimensões
posteriores à terceira, visto que existe quem defenda a existência de direitos de quinta dimensão, debate em que não
ingressarei, por fugir aos limites do presente trabalho.
148 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Direito das famílias. Amor e bioética. São Paulo: Campus Jurídico, 2012,
pp. 18, 41-42, 45, 47-48, 56, 60 e 64. Grifo nosso.
149 O restante da citação é, novamente, de Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf e não mais de Sérgio Resende de
Barros.
150 Cf. voto do Ministro Ayres Britto, p. 14-15 – grifos nossos.
151 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 29-30.
152 Nesse sentido, a lição de Maria Berenice Dias (A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei 11.340/2006 de
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p.
35-36): “Como é assegurada proteção legal a fatos que ocorrem no ambiente doméstico, isso quer dizer que as uniões de
pessoas do mesmo sexo são entidades familiares. Violência doméstica, como diz o próprio nome, é violência que acontece
no seio de uma família. Assim, a Lei Maria da Penha ampliou o conceito de família alcançando as uniões homoafetivas.
(...)Ao ser afirmado que está sob o abrigo da Lei a mulher, sem distinguir sua orientação sexual, encontra-se assegurada
proteção tanto às lésbicas como às travestis, as transexuais e os transgêneros do sexo feminino que mantêm relação
íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses relacionamentos as situações de violência contra o
gênero feminino justificam especial proteção. (...) agora, a partir da nova definição de entidade familiar, trazida pela Lei Maria
da Penha, não mais cabe questionar a natureza dos vínculos formados por pessoas do mesmo sexo. Ninguém pode
continuar sustentando que, em face da omissão legislativa, não é possível emprestar-lhes efeitos jurídicos. Há uma nova
regulamentação legislativa da família. No dizer de Roberto Lorea, derruba-se, enfim, a última barreira – meramente formal –
para a democratização do acesso ao casamento no Brasil: A nova definição legal da família brasileira se harmoniza com o
conceito de casamento ‘entre cônjuges’ do art. 1.511, do Código Civil, não apenas deixando de fazer qualquer alusão à
oposição de sexos, mas explicitando que a heterossexualidade não é condição para o casamento.
153 Também nesse sentido, a lição de Maria Berenice Dias (Ibidem, p. 38): “O conceito legal de família trazido pela Lei Maria
da Penha insere no sistema jurídico as uniões homoafetivas. Quer as relações de um homem e uma mulher, quer as
formadas por duas mulheres ou constituídas entre dois homens, todas configuram entidade familiar. Ainda que a Lei tenha
por finalidade proteger a mulher, acabou por cunhar um novo conceito de família, independente do sexo dos parceiros.
Assim, se família é a união entre duas mulheres, igualmente é família a união entre dois homens. Ainda que eles não se
encontrem ao abrigo da Lei Maria da Penha, para todos os outros fins impõe-se este reconhecimento. Basta invocar o
princípio da igualdade. A entidade familiar ultrapassa os limites da previsão jurídica para abarcar todo e qualquer
agrupamento de pessoas onde permeie o elemento afeto [Leonardo Barreto Moreira Alves. O reconhecimento legal do
conceito moderno de família..., p. 149].
154 Amor romântico, no caso.
155 Proferida no dia 05.05.2011, essa decisão reconheceu expressamente a união homoafetiva como família conjugal
constitucionalmente protegida em igualdade de condições com a união estável heteroafetiva.
SEGUNDA PARTE

DAS TESES PROPRIAMENTE DITAS
Capítulo 6

UNIÕES HOMOAFETIVAS E ISONOMIA: CASAMENTO CIVIL

“A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não a diversidade de sexo. E, antes
disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das
relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, em
atitude manifestamente preconceituosa e discriminatória. Deixemos de lado as aparências e
vejamos a essência.” – Maria Berenice Dias1, Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, advogada, Fundadora e Vice-Presidente do IBDFAM – Instituto Brasileiro
de Direito de Família – destaque nosso.

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Neste capítulo analisarei os enunciados normativos que regem o casamento civil sob a luz do
princípio da igualdade, enfrentando, assim, a questão da possibilidade jurídica do casamento civil
homoafetivo. Todavia, para a total compreensão do que aqui se expõe, é fundamental a leitura e
compreensão dos capítulos anteriores (sobre a homossexualidade, a isonomia e a evolução da concepção
da família) – o mesmo devendo ser observado quanto ao capítulo seguinte.

1.1 Evolução histórica do conceito de casamento. Da patrimonialização do afeto à concepção


eudemonista de casamento
As considerações deste tópico são pautadas no volume três da História da Sexualidade, de Michel
Foucault, que resta aqui parafraseado.
Na Antiguidade Clássica (greco-romana), o casamento era visto como um ato privado e institucional
que dizia respeito à família, à sua autoridade e às regras que ela reconhecia como suas, de modo a não
exigir a intervenção do Estado, o que se fazia mediante a entrega para o marido da tutela da filha-mulher-
esposa, até então exercida pelo pai desta – um ato cujo interesse e razão de ser exclusivamente para a
transmissão do nome (status), constituição de herdeiros, organização de um sistema de alianças e junção
de fortunas2. Foi progressivamente, no mundo helênico, que o casamento tomou lugar na esfera pública
(publicização do casamento), mediante a aprovação de uma série de leis sobre o tema, como a lei do
adultério, que condenava a mulher casada que mantivesse relações com outro homem, e o homem que
mantivesse relações com uma mulher casada (que não era, contudo, condenado se cometesse adultério
com uma mulher solteira), de sorte a transferir para o poder público uma sanção que, até então, incumbia
apenas à autoridade familiar3.
Os imperativos econômico-políticos que comandavam o casamento perderam parte de sua
importância quando o status e a fortuna das classes privilegiadas passaram a depender mais da
proximidade com o príncipe, da carreira civil ou militar e do sucesso nos negócios do que da aliança
entre grupos familiares, em que o casamento se tornou mais livre no que tange à escolha da esposa, na
decisão de casar-se e nas razões pessoais de contraí-lo, ao passo que, também nas classes não
privilegiadas, o casamento passou a ser uma forma de vínculo oriundo de fortes relações pessoais
pautadas na comunhão de vida, na ajuda mútua e no apoio moral, assim, o casamento passou a
aparecer mais como uma união livremente consentida entre dois parceiros cuja desigualdade foi
atenuada, sem, contudo, desaparecer4. O casamento se tornou um contrato desejado pelos dois cônjuges,
que nele se engajavam pessoalmente, mediante o declínio da autoridade paterna sobre o tema, declínio
este reconhecido, inclusive, por decisões judiciais, fazendo com que homem e mulher entrassem em um
sistema de deveres ou obrigações que, embora desiguais, eram compartilhados5. Assim, a relação de
superioridade exercida na casa e sobre a esposa teve que compor-se com algumas formas de
reciprocidade e de igualdade, em um certo equilíbrio entre desigualdade e reciprocidade na vida
matrimonial6.
Destaca Foucault, contudo, que os textos que representam estes ideais não podem ser considerados
como representação daquilo que realmente ocorria na prática matrimonial do Império, não obstante a
sinceridade de seus testemunhos – devem ser vistos como a formulação de uma exigência daquilo que
deveria ser a prática matrimonial, mostrando que o casamento passou a ser interrogado como um modo
de vida cujo valor é visto na relação entre dois parceiros e que, nessa relação, o homem deveria
regular sua conduta não somente a partir de um status, de privilégios e de funções domésticas, mas
também a partir de um papel relacional com a sua esposa, em que seu papel não era mais o de mera
função governamental de formação, educação e direção da esposa, por se inscrever agora em um jogo
complexo de reciprocidade afetiva e dependência recíproca, por meio de sua colocação enquanto
sujeito moral na relação de conjugalidade7.
A naturalidade do casamento heteroafetivo foi defendida, basicamente, com fundamento na
necessidade de procriação e de uma ligação estável para assegurar a educação aos filhos, assim como
nas ajudas, comodidades e prazeres que a vida a dois proporciona e na consideração da família como a
base da cidade [e, portanto, da sociedade] – para Musonius, o casamento teve a si atribuídos os objetivos
de uma descendência a obter e uma vida a compartilhar, mediante um companheirismo de vida no qual os
cônjuges trocam cuidados recíprocos; nesse sentido, ele e Platão definiram o homem como animal
conjugal, por considerarem que o ser humano é binário por constituição, ou seja, é feito para a vida a
dois, numa relação que lhe dê uma descendência e lhe permita passar a vida com um parceiro, em que a
natureza e a razão o impulsionariam para o casamento (embora também destaquem que o ser humano é um
animal social, por isso, ao mesmo tempo conjugal e social, por serem os humanos feitos para viver a dois
e também para viver em multiplicidade)8.
De qualquer forma, passou-se a problematizar o casamento enquanto um estilo particular de conduta,
sobretudo na posição do homem casado enquanto chefe de família, um cidadão honrado ou um homem
que pretendia exercer um poder sobre os outros, em que a arte de ser casado passou a supor um domínio
de si relativamente ao homem sábio, algo a ensejar uma mudança nas relações conjugais entre homens e
mulheres no casamento, de sorte a valorizar cada vez mais a relação pessoal entre os dois esposos, o
vínculo que pode uni-los e o comportamento de um para com o outro – instaurando-se um princípio de
moderação de conduta do homem casado, com base no dever de reciprocidade para com a sua esposa9. A
partir dos textos estoicos, o casamento não é mais pensado apenas como uma forma matrimonial
fixadora da complementaridade dos papéis na gestão da casa, mas, sobretudo, como um vínculo
conjugal, uma relação pessoal entre os cônjuges10 – destacou-se, assim, a dimensão afetiva da relação
conjugal11.
Assim, pensado como a relação mais fundamental e mais estreita do que qualquer outra, o vínculo
conjugal passou a definir todo um modo de existência, deixando de ser caracterizado por uma mera
repartição de encargos e comportamentos da complementaridade entre os sexos para dar ênfase a uma
vida compartilhada de existência comum12 – daí a ideia de que a vida conjugal deve ser também a arte
de constituir a dois uma nova unidade, o que englobou uma unidade ética que o casal deveria constituir
na vida conjugal, com uma fusão total entre os cônjuges, de sorte a representar um modelo forte de
existência conjugal, no qual a relação com o outro, tida como a mais fundamental dos cônjuges, se
organiza sob a forma institucional do casamento e na vida comum que a ela se superpõe13.
Nesse contexto, passou-se a exigir-se do homem uma ética do domínio de si, de sorte a que
reservasse todos os seus prazeres sexuais para a própria mulher e somente a ela, em uma conjugalização
das relações sexuais, de maneira à atividade sexual só ocorrer no interior do casamento14. Musonius
falou em prazeres legítimos justamente para designar aqueles nos quais os parceiros realizam juntos no
casamento e para o nascimento dos filhos, uma vez que a conjugalidade foi tida para a atividade sexual
como a condição para o seu exercício legítimo15, considerando Musonius que, para o ser humano
racional e social, seria de sua própria natureza que o ato sexual se inscrevesse na relação matrimonial
para nela produzir uma descendência legítima, sob o fundamento de que retirar daí os prazeres sexuais
para desvinculá-los da relação conjugal causaria dano àquilo que constitui o essencial do ser humano16.
Dessa forma, houve uma evolução no conceito de adultério: antes moralmente condenado a título de
injustiça feita por um homem a outro homem cuja mulher ele desencaminhara (portanto, entendido
unicamente como dano aos direitos do marido da mulher adúltera), passou ele a ser entendido sob o foco
do princípio da simetria entre o homem e a mulher, por força do respeito que se deve ter para com o
vínculo pessoal entre os esposos17. Em defesa dessa fidelidade sexual do homem, Musonius argumenta
que permitir ao homem fazer aquilo que se pede à mulher não fazer equivaleria a dizer que a mulher seria
mais capaz do que o homem de dominar e governar seus desejos, ideia inaceitável naquela época [pois
colocaria a mulher em situação de superioridade em relação ao homem no que tange ao controle de si],
visto que, para que o homem fosse, de fato, aquele a prevalecer, seria preciso a ele renunciar a fazer
aquilo que se interdita que uma mulher faça18. Em termos análogos, Plutarco defendeu a mesma ideia,
embora recomendando certa tolerância à mulher contra as faltas de seus maridos, faltas estas que
deveriam ser resolvidas no interior do próprio casamento19.
Assim, justamente por força dessa intensificação do valor dos aphrodisia nas relações conjugais,
por causa do papel a eles atribuído na comunicação entre os esposos, é que se começa a interrogar de
modo cada vez maior os privilégios até então reconhecidos ao amor pelos rapazes, diante do fato de o
casamento passar a ser visto como vínculo individual suscetível de integrar as relações de prazer e de
dar-lhes o valor positivo que vai constituir o foco mais ativo para a definição de uma estilística da vida
moral20. Embora ainda corrente e considerado natural nos dois primeiros séculos da era cristã, a relação
com os rapazes passou a ser mais interrogada em tom comparativo com a relação com as mulheres, no
contexto das esposas legítimas21. Basicamente, invoca-se o argumento da hipocrisia pederástica, no
sentido de que o amador de rapazes se invocava um ar de filósofo e de sábio para dizer que sua relação
seria desprovida de prazer sexual quando, na verdade, este prazer evidentemente existia, de sorte a ter-se
chegado em um dilema: ou os amadores de rapazes teriam decaído da dignidade do amor por sentirem
prazer sexual com seus amados (efebos estes que eram proibidos de sentirem prazer com seu preceptor,
por ser isto considerado uma característica feminina/efeminada, inaceitável para a época), ou então,
aceitando-se que as volúpias físicas ocorram na amizade e no amor, então não haveria de excluir destes a
relação com as mulheres22, apontando Plutarco que a mesma amizade existente no amor pelos rapazes
(vida em comum, benevolência mútua, comunidade perfeita, unidade de almas e temperança recíproca)
também pode marcar a relação de um homem e uma mulher no casamento, tomando assim da Erótica
tradicional do amor pelos rapazes seus elementos centrais e aplicando-os ao amor com a própria mulher
no interior do casamento23.
Traço que me parece fundamental da exposição de Foucault deste debate é a colocação da noção da
época de que, no amor pelos rapazes, ou as relações sexuais seriam impostas pela violência e aquele que
as sofresse só poderia experimentar cólera, ódio e desejo de vingança, ou então elas eram consentidas
pelo rapaz que, assim, passava a ser considerado pessoa feminina, por obter prazer em ser sexualmente
passivo (hedomenos toi paschein) e, portanto, objeto de vergonha, pela consideração da
antinaturalidade dessa postura, tida como a mais ínfima do ser humano24. Nesse sentido, os opositores
do amor pelos rapazes apontaram que, no amor pelas mulheres, este consentimento de bom grado era
admitido, de modo a se possibilitar que se inscrevesse o prazer físico na amizade conjugal25, o que
afastaria toda aquela problematização sobre a sexualidade passiva do rapaz – sendo, portanto, este
consentimento (charis) o elemento discriminante na comparação entre o amor pelas mulheres
relativamente ao amor pelos rapazes26. Destacou-se um princípio da reciprocidade sobre o tema, no
sentido de que porque cada um ama o outro é que aceita o seu amor, é que consente em receber as suas
marcas e que assim ama ser amado, em uma relação de duplo amor, em que cada um é, do ponto de vista
do Eros, o sujeito ativo, e por causa da reciprocidade no ato de amar, as relações sexuais podem ter lugar
na forma da afeição e do consentimento mútuos, o que [supostamente] inexistia no dilema da passividade
relativo ao amor pelos rapazes27.

Desenvolveu-se, assim, uma Erótica diferente daquela que teve seu ponto de partida no amor
pelos rapazes, mesmo se, tanto numa como na outra, a abstenção dos prazeres sexuais desempenha
um papel importante: ela se organiza em torno da relação simétrica e recíproca entre o homem e a
mulher, em torno do alto valor atribuído à virgindade28 e da união total em que vem a completar-se.
(...)
Do lado da Dietética e da problematização da saúde, a mudança marcou-se por meio de uma
inquietação mais intensa, uma definição mais extensa e mais detalhada das correlações entre o ato
sexual e o corpo, uma atenção mais viva à ambivalência de seus efeitos e a suas consequências
perturbadoras. E não se trata simplesmente de um cuidado maior pelo corpo, trata-se também de
uma outra maneira de focalizar a atividade sexual, e de temê-la pelo conjunto de seus parentescos
com as doenças e o mal. Do lado da mulher e da problematização do casamento, a modificação
consiste sobretudo na valorização do vínculo conjugal e da relação dual que o constitui; a justa
conduta do marido e a moderação que ele deve se impor não se justificam simplesmente por
considerações de status, mas pela natureza do vínculo, sua forma universal e [d]as obrigações
recíprocas que dele decorrem. E finalmente, do lado dos rapazes, a necessidade da abstinência é
cada vez menos percebida como uma maneira de dar, a formas de amor, os mais altos valores
espirituais, e cada vez mais como o signo de uma imperfeição que lhe é própria.
(...)
(...) Os elementos do código concernentes à economia dos prazeres, à fidelidade conjugal, às
relações entre homens, poderão muito bem permanecer análogos. Eles então farão parte de uma ética
profundamente remanejada e de uma outra maneira de constituir-se a si mesmo enquanto sujeito
moral de suas próprias condutas sexuais29. (grifo nosso)
Pois bem. Da análise histórica supra, percebe-se claramente que há séculos o casamento civil tem
tido a si reconhecida a função de garantir uma comunhão plena de vida entre os cônjuges, com gradativa
superação de sua função patrimonial inicial para ganhar proeminência sua função enquanto locus de
realização pessoal dos cônjuges em sua comunhão plena de vida e interesses, o que não é contrastado
pelo fato de somente em 1988 termos, no Brasil, atingido a igualdade normativa expressa entre os
cônjuges heteroafetivos na sociedade conjugal. Como se nota pela lição de Foucault, já na época do
Império Romano se lutava para o reconhecimento do casamento enquanto locus de reciprocidade afetiva
e dependência recíproca, com ênfase a uma vida compartilhada de existência comum, defendendo-se a
vida conjugal como uma unidade ética na qual o casal deveria constituir na vida conjugal, com uma
fusão total entre os cônjuges, de sorte a representar um modelo forte de existência conjugal, no qual a
relação com o outro, tida como a mais fundamental dos cônjuges, se organiza sob a forma institucional do
casamento e na vida comum que a ela se superpõe. Logo, o casamento há séculos é visto socialmente
como local de realização afetiva entre os cônjuges, o que restou finalmente consagrado socialmente no
final do século XX e normativamente com a Constituição Federal de 1988, tendo em vista que uma
compreensão puramente patrimonial do casamento civil fere de morte o princípio da dignidade da pessoa
humana, que demanda a releitura deste como locus de realização da felicidade dos cônjuges e não como
algo voltado a mera transmissão patrimonial, consoante a célebre repersonalização do Direito Civil já
consagrada na dogmática jurídica contemporânea.

1.1.1 Conceito contemporâneo de casamento


No capítulo 5, foi demonstrado que a família conjugal passou de uma instituição hierárquico-
patriarcal, na qual o homem era o chefe da sociedade conjugal e a mulher era completamente submetida
aos desígnios de seu marido, para uma relação que valoriza primordialmente o vínculo afetivo entre seus
membros, em um afeto romântico público, contínuo e duradouro pautado em uma comunhão plena de vida
e interesses (que é o intuito de constituir família), e que se pauta na igualdade de direitos e obrigações
no comando da sociedade conjugal e na criação e educação dos filhos. Essa é a família pós-moderna, do
final do século XX.
Nesse sentido, não poderia ser diferente a evolução do conceito de casamento. De instituição
voltada inicialmente para a proteção do patrimônio e da honra do homem-marido, o casamento evoluiu
para ser compreendido como um contrato entre duas pessoas que se amam e se comprometem, em uma
relação conjugal, a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura,
mediante um companheirismo de mútua assistência material e espiritual para superação das dificuldades
da vida, para o aproveitamento conjunto das alegrias e conquistas de cada um.
Nas precisas palavras de Evan Wolfson30:

Não importa que língua as pessoas falam (...) – casamento é o que nós usamos para descrever
um específico relacionamento de amor e dedicação a outra pessoa. É como nós designamos as
famílias que são unidas por causa do amor. E ele universalmente significa um nível de abnegação
[self-sacrifice] e responsabilidade e um estágio da vida diferente de qualquer outro. (...) Considere-
se todas as diferentes dimensões do casamento (...). Primeiro, casamento é um comprometimento
pessoal e uma escolha importante que pertence a casais que se amam [belongs to couples in
love]. De fato, muitas pessoas consideram a escolha de um parceiro [conjugal] a escolha mais
significativa de suas vidas. (...) Casamento é ainda uma declaração social que, com proeminência,
descreve e define os relacionamentos pessoais e o seu lugar na sociedade. O status marital,
juntamente com o que nós fazemos para viver, é muitas vezes uma das primeiras peças de
informação que nós damos aos outros sobre nós mesmos. Ele é tão importante que a maior parte das
pessoas casadas ostentam um símbolo do seu casamento nas suas mãos. (...) Casamento tem um
significado espiritual para muitos de nós e um significado familiar para quase todos nós. Parentes
perguntam inquisitivamente quando iremos nos casar, muitas vezes ao ponto de importunação [often
to the point of nagging]. (...) Casamento é agora o vocabulário que nós usamos para falar de amor,
família, dedicação, abnegação e fases da vida. Casamento é uma linguagem de amor, igualdade e
inclusão. (...)

No mesmo sentido, já se manifestou a Suprema Corte dos EUA, no julgamento Turner v. Safley, de
1989, que reconheceu o direito dos prisioneiros de se casarem mesmo que a prisão lhes impedisse de
manter relações sexuais e, assim, lhes impedisse de procriar. Segundo Evan Wolfson31:

Após cuidadosas considerações, os Justices destacaram quatro “importantes atributos” do


casamento: Primeiro, eles disseram, o casamento representa uma oportunidade de fazer uma
declaração pública de comprometimento e amor um ao outro, e uma oportunidade de receber
apoio público para aquele comprometimento. Segundo, os Justices disseram, casamento tem para
muitas pessoas uma importante dimensão espiritual ou social. Terceiro, casamento oferece a
perspectiva de “consumação” física, o que, claro, a maior parte de nós designa por um nome
distinto. E quarto, os Justices disseram, casamento nos Estados Unidos é a única e indispensável
entrada, a “precondição”, para uma vasta gama de proteções, responsabilidades e benefícios –
públicos e privados, tangíveis e intangíveis, legais e econômicos – que tem importância real para
pessoas reais. A Suprema Corte obviamente entendeu, como supra discutido, que o casamento tem
outros propósitos e outros aspectos na esfera religiosa, nos negócios e nas vidas pessoais das
pessoas. Os Justices sabiam, por exemplo, que para muitas pessoas, o casamento é ainda importante
como uma estrutura na qual eles podem ter e criar filhos. Mas quando o examinaram com a
Constituição Federal em mente, esses quatro atributos ou interesses identificados pela Corte são
aqueles que têm peso legal. E, após sopesar esses atributos, os Justices decidiram – em uma
decisão unânime – que o casamento é uma escolha tão importante que ele não pode ser
arbitrariamente negado pelo governo. Consequentemente, eles ordenaram que o governo parasse
de recusar licenças de casamento ao grupo de Americanos que trouxeram o caso [a julgamento]
Aquele grupo de Americanos era o dos prisioneiros.

No mesmo sentido, a decisão do juiz Kevin Chang32, ao analisar o argumento estatal de que o
casamento civil só seria acessível àqueles que tivessem capacidade procriativa:

No Havaí, e em qualquer lugar, as pessoas se casam por uma variedade de razões, incluindo,
mas não se limitando, as seguintes: (1) ter ou criar filhos; (2) estabilidade e comprometimento; (3)
intimidade emocional [emotional closeness]; (4) intimidade e monogamia; (5) o estabelecimento de
uma rede de apoio [framework] para um relacionamento duradouro; (6) significação pessoal
[personal significance]; (7) reconhecimento da sociedade; e (8) obter proteções, benefícios e
obrigações legais e econômicas. Homens gays e mulheres lésbicas possuem esse mesmo conjunto de
razões [mix of reasons] para quererem se casar. (...)
Ou seja, o que é relevante, para fins de casamento civil, é o fato de termos duas pessoas que se
amam romanticamente e se encontrem em uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura, pautada no companheirismo e na mútua assistência (dedicação recíproca), o que
independe de ter filhos, querer ter filhos ou poder ter filhos. Ademais, em um país pautado pela laicidade
estatal33, a importância espiritual e religiosa que o casamento tem para muitas pessoas não pode ser
considerado um elemento discriminatório para o casamento civil – os requisitos que as religiões elegem
para os seus casamentos religiosos não podem ser impostos, em um Estado Laico, àqueles que não
compartilham das crenças religiosas que sustentam estes requisitos, da mesma forma que não pode o
Estado interferir na forma como as religiões lidam com os seus casamentos religiosos. A menção à
importância espiritual e religiosa do casamento para os cidadãos só pode servir como elemento a
destacar a importância que o casamento civil tem para todas as pessoas, independentemente de suas
crenças e religiões, de sorte a destacar o direito das pessoas não cristãs (ou não pertencentes à religião
dominante no país) ao casamento, mesmo quando a religião cristã/dominante não reconheça a validade do
referido casamento.
O próprio Justice Scalia34, conservador membro da Suprema Corte dos EUA, reconheceu que a
capacidade procriativa não é um argumento forte para não reconhecer o casamento civil homoafetivo,
quando afirmou que “Se a desaprovação moral da conduta homossexual ‘não é um interesse estatal’ para
propósitos de proibir sexo privado entre adultos [private sex between adults], que justificação poderia
possivelmente existir para negar os benefícios do casamento a casais homossexuais? Certamente não o
encorajamento da procriação, considerando que pessoas estéreis e idosas são autorizadas a se casar”.

2. PRELIMINARMENTE: DA EFETIVA DISCRIMINAÇÃO SOFRIDA PELOS CASAIS


HOMOAFETIVOS EM DECORRÊNCIA DA NEGATIVA AO RECONHECIMENTO DE
SEU STATUS JURÍDICO-FAMILIAR
Quando se discute a questão das uniões homoafetivas sob o enfoque do princípio da igualdade, deve-
se inicialmente demonstrar a efetiva existência de uma discriminação jurídica decorrente da não extensão
do Direito das Famílias a estas. Isso porque, apesar de ela ser absolutamente clara, por diversas vezes
me deparei com pessoas que disseram simplesmente que não haveria nenhuma discriminação jurídica
decorrente da negação ao direito ao casamento civil homoafetivo e do não reconhecimento da união
estável homoafetiva. Uma vez me foi dito, inclusive, que “eles [homossexuais] podem fazer um contrato
e pronto” (sic), como se um mero contrato de Direito Obrigacional fosse equivalente às benesses do
Direito das Famílias.
Contudo, é somente com o casamento civil ou com a união estável que um casal pode auferir os
benefícios do Direito das Famílias, ao passo que as uniões que não são reconhecidas nem como união
estável (a saber, o namoro e o concubinato) não recebem proteção nenhuma do Direito. Assim, defender
que não haveria discriminação jurídica ao não se reconhecer a possibilidade jurídica do casamento
civil e da união estável a determinado grupo de indivíduos implica aduzir que ditos regimes jurídicos
teriam os mesmos efeitos jurídicos do concubinato! Data maxima venia, este entendimento é
absolutamente equivocado.
Isso porque o casamento civil e a união estável estão protegidos pelo Direito das Famílias, sendo
que todos os direitos dos cônjuges/companheiros decorrem unicamente de sua união amorosa. Já no
concubinato, o amor existente no casal é completamente ignorado pelo Direito, sendo que o único direito
que o “parceiro” da “sociedade de fato” considerada como formada por ambos terá é o da divisão dos
bens amealhados durante a “parceria”, desde que prove, monetariamente, quanto contribuiu para a
construção do patrimônio comum (por meio de notas fiscais, depósitos bancários etc.). Isso decorre do
fato de que a dissolução da união concubinária se faz como se estivéssemos diante de uma “sociedade
comercial de fato”, com uma verdadeira “apuração de haveres” para determinar com quanto cada um dos
“sócios” contribuiu, para que seja feita uma divisão equânime do patrimônio formado (assim como na
dissolução das sociedades comerciais em geral).
Já no casamento civil e na união estável, por outro lado, não é necessária a prova da efetiva
contribuição monetária/patrimonial para que se faça a divisão dos bens do casal no caso de separação,
porque há uma presunção absoluta de mútua contribuição em favor dos consortes, no sentido de que, por
mais que um parceiros não tenha contribuído em nada em termos monetários, parte-se do pressuposto de
que, não fosse pelo amor familiar decorrente dessa relação, o outro não teria tido forças para construir
seu patrimônio. Assim, no casamento civil a divisão patrimonial é feita segundo o regime de bens do
casal, ao passo que na união estável dividem​-se igualmente os bens adquiridos onerosamente na
constância da união, ou então da forma estipulada pelo contrato de união estável firmado pelos
companheiros, devendo unicamente ser provada a união estável do casal. Em suma, o casamento civil é
uma relação complexa por meio da qual assumem os cônjuges direitos e deveres recíprocos que
acarretam sequelas de ordem não só pessoal, mas também patrimonial, na medida em que a situação
patrimonial dos bens altera-se a partir de sua celebração, sendo que o estado civil serve justamente para
dar publicidade não só à condição pessoal, mas especialmente à condição patrimonial da pessoa,
destinando-se a garantir segurança a terceiros35.
Desta breve exposição das consequências jurídicas do concubinato, do casamento civil e da união
estável, percebe-se claramente que há uma efetiva discriminação jurídica perpetrada contra
homossexuais nos dias de hoje, tendo em vista que o vazio legislativo hoje imposto às uniões
homoafetivas tem feito que os magistrados em geral atribuam-lhes os mesmos efeitos jurídicos do
concubinato (teoria das “sociedades de fato”), donde têm os homossexuais um ônus muito maior que os
heterossexuais que vivem amorosamente para conseguir sua meação patrimonial: enquanto estes só
precisam provar sua união amorosa e seu intuito de constituir família (no caso da união estável), aqueles
precisam provar o quanto contribuíram monetariamente na construção do patrimônio existente quando do
término da união afetiva de ambos, o que é uma prova muito difícil de se fazer, como a história do
concubinato já provou.
Segundo Evan Wolfson36:

Casamento é ainda um relacionamento entre um casal e o governo. Casais precisam da


participação governamental para entrar e sair do casamento. Por ser uma instituição legal e “civil”,
o casamento é a porta de entrada legal a uma vasta gama de proteções, responsabilidades e
benefícios – a maior parte dos quais não pode ser replicada de nenhuma outra forma, não
importa o quanto você se previna [forethought] ou quanto você pode gastar com honorários
advocatícios e juntando procurações e documentos [assembling proxies and papers].

Ademais, além da discriminação decorrente desse ônus maior do que o exigido aos casais
heteroafetivos, a revista Superinteressante, de julho de 2004, listou 34 direitos que são negados aos
pares homoafetivos caso não se lhes reconheça o direito ao casamento civil (ou ao menos à união
estável), aos quais o Grupo Leões do Norte acrescentou outros 34 direitos, o que totaliza um total de 78
direitos negados a casais homoafetivos por quem não os reconhece como merecedores dos benefícios do
Direito das Famílias37.
A esse respeito vale a pena conferir o que disse a Suprema Corte do Estado de Massachusetts
(EUA)38, ao declarar a inconstitucionalidade da proibição ao casamento civil homoafetivo:

“O casamento também confere uma enormidade de vantagens na esfera privada e social àqueles
que decidem se casar”. O casamento civil é no momento um comprometimento pessoal para com
outro ser humano e uma altamente pública celebração dos ideais de reciprocidade,
companheirismo, intimidade, fidelidade e da família. “É uma associação que promove uma forma
de vida, não causas; uma harmonia em viver, não em crenças políticas; uma lealdade bilateral, e não
um projeto comercial ou social” Griswold v. Connecticut, 381, U.S. 479, 486 (1965). O casamento
civil é uma instituição estimada porque satisfaz anseios por segurança, bem-estar e união que
expressão a nossa humanidade comum, e a decisão de quando ou com quem se casar é um dos
momentos de definição pessoal de nossas vidas. “Benefícios tangíveis e intangíveis defluem do
casamento. A licença de casamento concede valiosos direitos de propriedade para aqueles que se
enquadram nos requisitos de sua concessão, e àqueles que concordam com o que poderia ser, em
outras circunstâncias, ser um oneroso grau de regulação governamental em suas atividades”. (...) O
Legislativo conferiu a “cada parte (no casamento civil) consideráveis direitos concernentes a
bens da outra os quais conviventes não casados não têm” Wilcox v. Trautz, 427, Mass., 326, 334
(1998). (...) Os benefícios acessíveis apenas pela obtenção de uma licença de casamento são
enormes, abrangendo aproximadamente todos os aspectos de vida e morte. O Estado atesta que
“centenas de estatutos” estão relacionados com o casamento e com os benefícios matrimoniais. Sem
a intenção de sermos exaustivos, nós apontamos que alguns dos benefícios estatutários conferidos
pelo Legislativo àqueles que ingressam no casamento civil incluem, quanto à propriedade:
declaração tributária conjunta (...); arrendamento pela integralidade (uma forma de propriedade que
confere certas proteções contra credores e permitem a transmissão automática da propriedade ao
consorte sobrevivente sem necessidade de homologação) (...); extensão do benefício de proteção do
bem de família (...) para o consorte sobrevivente e filhos (...); direito automático à herança da
propriedade do consorte falecido que não deixar testamento (...); os direitos de ações e de dote (que
permitem aos consortes sobreviventes certos direitos de propriedade quando o falecido consorte
não tiver feito adequada provisão ao sobrevivente em testamento) (...); direito a salários
pertencentes ao empregado falecido (...); habilitação para continuar com certos negócios do
consorte falecido (...); o direito a partilhar do plano de saúde do consorte (...); continuação de trinta
e nove semanas na cobertura de saúde para o consorte de uma pessoa inválida ou morta (...); opções
preferenciais no sistema de pensões (...); proteções financeiras a consortes de certos funcionários
públicos (bombeiros, policiais, promotores, entre outros) mortos em serviço (...); divisão equitativa
da propriedade marital no divórcio (...); direito temporário e permanente a pensão alimentícia (...);
e o direito de reclamar contra a morte injusta e a perda da sociedade conjugal, por despesas
funerárias e de sepultamento e indenização resultante de danos civis (...). Benefícios maritais
exclusivos que não estão diretamente ligados a direitos de propriedade incluem presunções de
legitimidade e de parentesco a crianças nascidas na constância do casamento (...) e direitos
comprobatórios, como a proibição contra o testemunho dos cônjuges um contra o outro sobre suas
conversas privadas, aplicáveis tanto na esfera civil quanto criminal (...). Outros benefícios legais de
natureza própria daqueles que se encontram casados incluem a qualificação para licença médica
para cuidar de pessoas relacionadas por sangue ou casamento (...); uma preferência automática de
“membro da família” para tomar decisões médicas por um consorte incapacitado ou inábil que não
tiver deixado uma procuração em sentido contrário (...); o pedido para o estabelecimento de regras
para a custódia de filhos, visitação, auxílio e remoção (...); direito prioritário à administração do
estado do consorte falecido que morre sem testamento (...). Quando o casal matrimonializado tem
filhos, seus filhos são também diretamente ou indiretamente, mas não menos auspiciosamente, os
destinatários de proteções legais e econômicas obtidas pelo casamento civil. Não obstante a forte
política pública que visa abolir as distinções legais entre filhos oriundos ou não do casamento (...),
fato é que filhos oriundos do casamento colhem uma medida de estabilidade familiar e segurança
econômica baseadas no status legalmente privilegiado de seus pais que são largamente inacessíveis,
ou não tão prontamente acessíveis, a filhos cujos pais não estão casados. Alguns desses benefícios
são sociais, como a acentuada aprovação que ainda atende o status de ser um filho cujos pais
encontram-se casados. Outros são materiais, como a maior facilidade de acesso a benefícios
familiares estatais que atendem à presunção de paternidade.

E, como bem destacado por Evan Wolfson39, virtualmente, todos estes direitos e consequências do
casamento civil [e da união estável] não podem ser obtidos mediante a contratação de um advogado ou a
elaboração de acordos privados, mesmo que o casal tenha muita disposição prévia [forethought] para
discutir todas essas questões (previamente) e tenha muito dinheiro extra para gastar com advogados.
Assim, é irrefutável que é perpetrada uma discriminação contra as uniões homoafetivas pelo simples
fato de se lhes negar o reconhecimento de seu status jurídico​-familiar e, consequentemente, de seu direito
ao casamento civil e à união estável. Afinal, dita discriminação implica a negação de todos os direitos
supratranscritos. Ou seja, fica clara a presença de um dano efetivo aos casais homoafetivos, qual seja a
negação de uma série de direitos garantidos apenas pelo Direito das Famílias, sendo que a negação de
direitos importa em um maior ônus ao casal para provar sua união e receber, assim, a proteção do
Direito.
Afinal, quando consideradas como “sociedades de fato”, as uniões homoafetivas não têm a si
garantidas a presunção legal (que é absoluta) de que ambos contribuíram igualmente para a construção do
patrimônio existente na época da sua dissolução. Disso resulta que devem comprovar monetariamente
quanto contribuíram, o que, além de ser uma prova extremamente perniciosa, acaba inevitavelmente
gerando uma divisão altamente desproporcional, com um dos pares ficando, v.g., com 80% do patrimônio
e o outro apenas com 20% caso as provas apontem para uma tal divisão nas contribuições patrimoniais
de cada um – quando não ocorre de este último, no caso de não ter nenhuma prova de contribuição
monetária, ficar sem nada.
A referida discriminação, mais do que uma discriminação por orientação sexual, é uma verdadeira
discriminação sexual, uma vez que a orientação sexual do indivíduo só pode ser determinada pelo sexo
biológico da pessoa eleita por ele(a) para receber o seu amor familiar. Nesse sentido, se uma pessoa
não é discriminada juridicamente por direcionar o seu amor familiar a outra de sexo diverso, não pode
sofrer represália do Direito pelo simples fato de amar uma pessoa do mesmo sexo40.
Por outro lado, ponto importantíssimo é aquele segundo o qual a partir do momento em que o Estado
brasileiro não proíbe a orientação sexual homoafetiva, não pode ele discriminar as uniões amorosas
formadas por pessoas do mesmo sexo no sentido de conceder-lhes menos direitos do que aqueles
conferidos às uniões heteroafetivas. Afinal, tal conduta implica discriminação arbitrária às pessoas
homossexuais em razão de sua orientação sexual e mesmo em razão de seu sexo, o que é expressamente
vedado por nossa Constituição Federal de forma explícita pelo seu art. 3.º, IV.
Demonstrada a discriminação jurídica imposta atualmente às pessoas homossexuais, passa-se agora
a efetivamente demonstrar o porquê de o princípio da igualdade demandar um tratamento igualitário entre
as uniões homoafetivas e a heteroafetivas e, consequentemente, demandar a possibilidade jurídica do
casamento civil homoafetivo.

2.1 Da necessidade da nomenclatura “casamento civil” e “união estável” para a garantia da


isonomia jurídica entre as uniões homoafetivas quando comparadas às heteroafetivas nos dias
de hoje
Muitas pessoas resistem a conceder a nomenclatura “casamento” aos casais homoafetivos, por
considerarem-na “exclusiva” das uniões heteroafetivas, diante do fato de historicamente somente terem
ocorrido casamentos heterossexuais, mesmo os civis.
Assim, cabe aqui fazer um esclarecimento fundamental: no que tange à isonomia, o que se pleiteia
por meio deste trabalho é a igualdade de direitos entre as uniões homoafetivas e as heteroafetivas, e não
uma simples atribuição de nomenclatura àquelas, embora a nomenclatura seja importantíssima para efeito
do princípio da dignidade da pessoa humana, conforme se demonstra em capítulo posterior. Contudo, as
únicas figuras jurídicas que protegem as uniões amorosas em nosso atual ordenamento jurídico são o
casamento civil e a união estável, donde se torna indispensável serem elas estendidas aos casais
homoafetivos. Não se trata de preciosismo terminológico: trata-se da única forma de conseguirem os
casais homoafetivos obter os mesmos direitos concedidos aos casais heteroafetivos.
Muito se fala acerca do Projeto de Lei 1.151/1995 de autoria da ex-deputada Marta Suplicy, que
visa regulamentar a “união civil”41 entre pessoas do mesmo sexo, atribuindo-lhe alguns efeitos na esfera
patrimonial. Contudo, até que esse projeto seja efetivamente votado e aprovado, não pode servir como
parâmetro, uma vez que somente a sua aprovação o fará entrar no mundo jurídico. Por outro lado, a
simples leitura do projeto de lei demonstra que ele não confere os mesmos direitos concedidos pelo
casamento civil ou mesmo pela união estável às uniões homoafetivas, o que significa que a isonomia
continuará afrontada mesmo com a sua aprovação nos atuais termos. Além do mais, com a decisão do
STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, que reconheceu a união estável homoafetiva como
entidade familiar com igualdade de direitos relativamente à união estável heteroafetiva, a aprovação de
dito projeto traria um verdadeiro retrocesso, na medida em que ele trata as uniões homoafetivas como
meras parcerias de Direito Obrigacional e não como as famílias conjugais que são, atribuindo-lhes
menos direitos (e obrigações) do que aqueles atribuídos pelo Direito das Famílias.
Dessa forma, o que os opositores da extensão das expressões “casamento civil” e “união estável”
aparentemente ignoram é que será somente por meio deles que terão os casais homoafetivos a plenitude
da proteção do Direito das Famílias no atual estágio de nossa legislação. Hoje não existe uma lei de
“união civil” ou de “parceria civil” disponível a homossexuais (que, se vier a existir, deverá garantir a
eles os mesmos direitos conferidos aos heterossexuais, sob pena de inconstitucionalidade por omissão,
por afronta à isonomia), donde resta irrefutável a necessidade da extensão de ditos regimes jurídicos aos
casais homoafetivos, como consequência lógica do princípio da isonomia, por meio da interpretação
extensiva ou da analogia.
Por outro lado, no que tange à diferença entre casamento civil e união estável, ainda que a união
estável venha a eventualmente garantir os mesmos direitos concedidos pelo casamento (o que não ocorre
hoje, visto que o companheiro tem uma herança menor que o cônjuge na sucessão segundo a redação
originária do CC/2002), o fato é que o casamento civil torna a vida das pessoas muito mais fácil, pois a
certidão de casamento constitui prova absoluta de que o casal em questão forma uma família conjugal, ao
passo que os companheiros em união estável precisam apresentar prova de que se encontram em união
pública, contínua e duradoura, com o intuito de constituir família – sendo que cada empresa/instituição
exige diferentes documentos para tanto, muitas vezes não aceitando mera declaração notarial de união
estável obtida pelo casal em um cartório de notas (exige-se normalmente a comprovação de que um dos
companheiros é dependente do outro no Imposto de Renda e/ou que um seja beneficiário do outro em
seguros de vida, que um seja dependente do outro em plano de saúde ou no Imposto de Renda etc. –
sendo que diferentes empresas/instituições exigem diferentes combinações de documentos para a
comprovação da união estável). Logo, a certidão de casamento civil torna a vida do casal muito mais
prática do que a vida do casal em união estável, sem falar que garante ao casal matrimonializado maior
segurança jurídica pelo fato de ele não precisar apresentar nada além do que a certidão de casamento
para comprovar seu status jurídico-familiar, não deixando o casal preocupado em ter diversos
documentos para poder apresentar determinada combinação deles consoante as exigências feitas por cada
empresa/instituição com que se relacionem.
Assim, reconhecer a união homoafetiva como união estável não resolve a questão relativamente à
isonomia, por ainda permanecer uma discriminação jurídica contra ela ao não se permitir a sua
consagração pelo casamento civil.
Para finalizar o tópico, restam algumas considerações quanto à definição que os dicionários em geral
trazem para a palavra casamento. Em paráfrase, pode-se dizer que definem o casamento como a “união
amorosa entre o homem e a mulher”, o que é comumente utilizado pelos opositores do casamento civil
homoafetivo para negar sua possibilidade. Contudo, a questão não é tão simples assim.
Deve-se lembrar que quando o conceito de casamento foi criado, não se acreditava que duas pessoas
do mesmo sexo pudessem manter entre si uma relação de amor verdadeiro, ou seja, o sentimento sublime
de querer desenvolver uma união amorosa pública, contínua e duradoura, em comunhão plena de vida e
interesses. Por um erro conceitual, acreditava-se que as relações homoafetivas visassem à mera
libertinagem, entendimento hoje já totalmente superado por qualquer pessoa que não seja totalmente
ignorante ou preconceituosa sobre o tema.
Pois bem: o conceito literal de casamento civil levou isso em consideração ao disciplinar apenas a
união heteroafetiva, ignorando a união homoafetiva. Mas, considerando que atualmente já se sabe que
aquela ideia configurava um erro conceitual, visto que não se discute seriamente o fato de ser a união
homoafetiva baseada no mesmo amor familiar que funda a união heteroafetiva, então se verifica que um
casal homoafetivo pode consagrar sua união pelo casamento civil, por possuir em si o elemento
valorativamente protegido por esse regime jurídico, a saber o amor romântico que vise a uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da
família contemporânea42. É um típico caso de mutação normativa oriunda de interpretação evolutiva do
Direito.
Assim, as definições de dicionário que restringem o casamento civil à união entre um homem e uma
mulher estão equivocadas, por usarem (ainda que inconscientemente) um conceito evidentemente
ultrapassado, visto que casais homoafetivos podem perfeitamente se enquadrar no valor de família que
funda o casamento civil43.

3. A INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA, A ANALOGIA E A POSSIBILIDADE JURÍDICA DO


CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO
Aduz o art. 1.514 do Código Civil que: “O casamento se realiza no momento em que o homem e a
mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara
casados”. É a partir desta redação que a doutrina e a jurisprudência em geral consideram a diversidade
de sexos como “condição de existência” do casamento civil, ante a ausência de menção expressa ao
casamento civil homoafetivo. Afirmam que duas pessoas do mesmo sexo somente poderiam se casar se a
lei fosse expressa nesse sentido, o que não ocorreria hoje em razão da expressão “o homem e a mulher”
daquele dispositivo legal. Ou seja: enxergam uma “proibição implícita” ante a redação do citado
dispositivo legal.
Primeiramente, é de se notar que dita interpretação é puramente ideológica, desprovida de
fundamento normativo que a justifique, na medida em que o Código Civil não define nem tenta definir o
que seria família ou mesmo casamento, também não identificando o sexo dos nubentes, limitando-se a
estabelecer requisitos para a celebração do matrimônio, elencar direitos e deveres aos cônjuges e
disciplinar diversos regimes de bens, regulamentando, por fim, o seu término e as questões patrimoniais
daí decorrentes44. A expressão “o homem e a mulher” não tem o condão de impedir o casamento civil
homoafetivo, na medida em que os impedimentos matrimoniais são as proibições explicitamente apostas
pela lei no art. 1.521 ou em outros dispositivos esparsos que declaram a nulidade ou anulabilidade do
casamento civil. A referência a homem e mulher significa tão somente a regulamentação do fato
heteroafetivo, sem que isso signifique a proibição do fato homoafetivo para a mesma finalidade, por
interpretação extensiva ou analogia.
Tanto é puramente ideológica a referida interpretação, que existia mesmo na vigência do Código
Civil de 1916, que não possuía nenhum dispositivo com redação idêntica ou mesmo similar à do atual art.
1.514. Foi por isso que sempre se afirmou que se trataria de hipótese de “inexistência jurídica” do
casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, por suposta ausência de “pressuposto fático essencial” a
dito fato jurídico. O completo descabimento da teoria da inexistência será enfocado em capítulo
posterior, mas adianta-se que não passa dita teoria de puro subjetivismo doutrinário sem nenhum
embasamento normativo que o fundamente, que serve unicamente para burlar a regra segundo a qual não
há nulidade sem texto (ou seja, a obrigatoriedade de texto normativo expresso que declare a ineficácia
jurídica do fato em questão), tendo em vista que o resultado prático da declaração de “inexistência
jurídica” é exatamente o mesmo da declaração de nulidade absoluta: a expurgação de todos os efeitos
jurídicos produzidos pelo fato em questão – ou seja, eficácia ex tunc da decisão. Em razão disso, a teoria
da inexistência jurídica de atos que existiram no mundo fático é completamente inválida, desprovida de
embasamento técnico-jurídico, sendo inconstitucional por afronta ao art. 5.º, II, da CF/1988, que exige
enunciado normativo expresso para se ter uma situação como juridicamente impossível ou, o que dá no
mesmo, a priori proibida, bem como ilícita por afrontar o caráter taxativo dos impedimentos
matrimoniais do artigo 1.521 do CC/2002, razão pela qual não pode ser aceita.
Por outro lado, aquela interpretação proibitiva do casamento civil homoafetivo é, evidentemente,
discriminatória, pois visa garantir aos casais homoafetivos menos direitos do que aqueles conferidos aos
casais heteroafetivos, tendo em vista que é só por meio do casamento civil que as uniões amorosas
podem usufruir de todas as benesses do Direito das Famílias. Contudo, à luz do conteúdo jurídico do
princípio da isonomia, tem-se que qualquer lei que pretenda instituir um tratamento jurídico diferenciado
a determinada classe de indivíduos deve ter uma fundamentação lógico​-racional que justifique a
discriminação pretendida com base no critério distintivo erigido. Ou seja: nem mesmo o legislador
poderá criar discriminações arbitrárias, visto ter ele sua liberdade de conformação materialmente restrita
tanto pelo princípio da igualdade quanto pelos dispositivos constitucionais em geral45.
Em outras palavras, caso a discriminação analisada não seja pautada pela lógica e pela
racionalidade, será flagrantemente inconstitucional e, portanto, completamente descabida. Não é outra a
lição da doutrina em geral, da qual se pode citar, exemplificativamente, Roger Raupp Rios46, Celso
Antônio Bandeira de Mello47 e Viviane Girardi48.
No mesmo sentido, a decisão da Suprema Corte do Estado de Massachusetts (EUA)49, ao declarar a
inconstitucionalidade do não reconhecimento do casamento civil homoafetivo:

A Constituição exige, no mínimo, que o exercício da autoridade regulatória do Estado não seja
“arbitrária ou caprichosa” Commonwealth v. Henry’s Drywall Co. (...). Sob a égide das garantias
da igualdade e da liberdade, a autoridade regulatória deve, no mínimo, trazer “um propósito
legítimo de uma forma racional”; uma lei deve “ter uma relação racional com um objetivo
legislativo permissível” Rushworth v. Registrar of Motor Vehicles (...)

Ademais, é de se lembrar que não existem “proibições implícitas” em Direito, ante o teor do art. 5.o,
II, da CF/1988, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de
lei, pois se as pessoas só estão proibidas de fazer algo em virtude de lei (leia-se, texto normativo), isso
significa que somente é proibido juridicamente algo que seja expressamente vedado pela lei50. Nesse
sentido, caso a lei se limite a regulamentar um fato e deixar outro sem regulamentação e sem proibição,
isso significa a existência de uma lacuna na lei, não de uma “proibição implícita”. Afinal, a legalidade
estrita não se aplica a particulares, mas apenas à Administração Pública, donde, considerando que não
está proibido o casamento civil entre cidadãos do mesmo sexo, tem-se que tal situação configura uma
lacuna da lei.
Por outro lado, os defensores da tese da “proibição implícita” aparentemente ignoram que, havendo
omissão da lei, deve o aplicador do Direito enfrentar a questão sob a ótica da analogia, dos costumes e
dos princípios gerais do Direito, nos termos dos arts. 4.º da LINDB e 126 do CPC. Isso significa que,
dada a omissão da lei sobre as uniões homoafetivas, os intérpretes devem verificar se tal lacuna não é
passível de supressão mediante a interpretação extensiva e a analogia. Portanto, considerando que a lei
não proíbe em nenhum momento o casamento civil homoafetivo, mas apenas se limita a regulamentar o
casamento civil heteroafetivo, sem nada dispor sobre aquele, tem-se o caso de verdadeira omissão legal,
que se caracteriza pela ausência de disposição expressa no ordenamento jurídico acerca do tema, seja
pelo seu reconhecimento ou pela sua proibição. No entanto, em hipóteses de omissão legal, a proteção
jurídica ofertada à situação expressamente citada pela norma deverá ser estendida à situação não citada
caso esta seja idêntica ou fundamentalmente idêntica à regulamentada, por meio da interpretação
extensiva ou da analogia, respectivamente.
Afinal, a interpretação extensiva é técnica hermenêutica de interpretação que visa à integração do
ordenamento jurídico com a realidade, no sentido de suprir (assim como a analogia) as omissões
cometidas pelo legislador (constituinte e/ou infraconstitucional) quando da elaboração do texto
normativo, superando o entendimento que usualmente se tem sobre ele51. Pois bem: o “entendimento que
usualmente se tem” nos dias de hoje, no que tange ao casamento civil e à união estável, é o de que estes
poderiam ser formados apenas por pessoas de sexos diversos. Contudo, isso é apenas consequência do
fato de constituírem os heterossexuais cerca de 90% da população mundial. Todavia, é de se ressaltar
que o fato de alguém pertencer a uma minoria não significa, de forma alguma, que este alguém terá seus
direitos tolhidos tão somente por fazer parte de um grupo minoritário. Isso porque, como demonstrado, a
discriminação juridicamente válida supõe necessariamente uma fundamentação logicamente racional que
a fundamente, sob pena de inconstitucionalidade por afronta à isonomia.
Assim, como a lei foi omissa no que tange à união homoafetiva, no sentido de não proibi-la, mas,
igualmente, não regulamentá-la, deve-se verificar se a legislação existente no que tange à união
heteroafetiva pode ser estendida àquela primeira. Isso se faz pela interpretação teleológica, por meio da
qual se analisa o verdadeiro intuito (objeto de proteção) do texto normativo, indo-se além da letra fria
deste, mesmo porque a interpretação teleológica sempre prevalece sobre a interpretação gramatical, visto
que esta existe tão somente para materializar, em palavras, a teleologia (finalidade) pretendida com o
texto normativo em questão. Em outras palavras, deve-se verificar se existe na situação não citada pelo
texto normativo o mesmo elemento valorativamente protegido naquela por ele expressamente citada – se
existir, estende-se o regime jurídico à situação não mencionada, por meio da interpretação extensiva ou
da analogia.
No que tange ao casamento civil e à união estável, o elemento protegido pelos textos normativos
respectivos é a família, família esta que se forma pelo amor romântico que vise a uma comunhão plena
de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, amor este que é o elemento formador da
família contemporânea (amor familiar). O sentido da relação matrimonial melhor se expressa pela noção
de comunhão de vidas, ou comunhão de afetos52. Ademais, se nada fala sobre homoafetividade ou
heteroafetividade, o Código Civil declina a finalidade do casamento civil no seu art. 1.511: a comunhão
plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges53. É inquestionavelmente o
envolvimento afetivo que gera o desejo de constituir família54 e, portanto, o desejo de casar.
Nesse sentido, é de se lembrar que o pressuposto da interpretação extensiva é o de que o legislador
apenas exemplificou na redação do dispositivo legal, ao citar a situação mais corriqueira e não ter
expressado a forma menos comum, o que teria ocorrido por um lapso ou mesmo por ignorância acerca do
tema. Ignorância porque pode ele não ter tido ciência de que a situação por ele não citada expressamente
se enquadra perfeitamente no objeto de proteção da norma por ele criada.
No que tange à homoafetividade, é notório que durante a maior parte do século XX foi ela
considerada uma doença, uma patologia que mereceria tratamento médico para ser “curada”, o que só foi
definitivamente desmistificado em 1993, quando a Organização Mundial de Saúde extirpou o diagnóstico
de “homossexualismo” de sua Classificação Internacional de Doenças, passando a definir tal conduta
como “homossexualidade”, visto que o sufixo “-ismo” significa “doença” e o sufixo “-dade” significa
“modo de ser”. O que se quer dizer é que, quando foi elaborado e aprovado o Código Civil de 1916 e
mesmo o Projeto do Código Civil de 2002, o legislador tinha a errônea compreensão (e/ou o
preconceito) de ser a homoafetividade uma doença ou um desvio, donde teria se referido ao casamento
civil apenas como o ato realizado por um homem e uma mulher. Contudo, conforme explicitado em
capítulo anterior, o objeto de proteção do Direito das Famílias contemporâneo, no que tange às uniões
amorosas, é o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, donde o elemento essencial do casamento civil e da união estável protegido pela lei é a
família conjugal, formada por dito amor familiar. Dessa forma, considerando que o mesmo amor
familiar existente nas uniões heteroafetivas está presente nas uniões homoafetivas, é inegável que ambas
as relações merecem a proteção legal do casamento civil.
O leitor deve se fazer a seguinte pergunta: por que a lei confere especial proteção jurídica à união
amorosa por meio do casamento civil? A resposta para esta questão é simples: essa proteção decorre do
interesse do Estado em proteger a entidade familiar formada pelo amor que vise a uma comunhão plena
de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, existente nessa união (pois a família
existente entre casais é formada por esse amor), além de querer a estabilidade das relações familiares
por meio do casamento civil. Dita estabilidade ocorre pela extensa preocupação que a legislação tem
com os contornos do casamento civil, que é uma união que o Estado quer que dure, o que só ocorrerá se
presente o dito amor familiar, donde se percebe claramente que é ele que fundamenta as leis do
casamento civil e da união estável e, consequentemente, é por elas protegido.
Nessa linha de raciocínio, considerando que o amor familiar é o elemento formador da família
contemporânea no que tange à união amorosa de duas pessoas e que esse mesmo amor familiar existente
nas uniões heteroafetivas existe nas uniões homoafetivas, então fica evidente que o elemento que a lei do
casamento civil visa proteger existe nas duas situações, por ser ele o elemento caracterizador da família
conjugal, que é o elemento valorativamente protegido pelo casamento civil e pela união estável.
Reitere-se aqui, por oportuno, o conteúdo jurídico da Teoria Tridimensional do Direito, que
demonstra que a norma é oriunda da valoração de um fato (norma = fato + valor), donde é o valor que
enseja a proteção da norma jurídica, e não o fato propriamente dito. Vale dizer, o valor é o que atribui
significação ao fato abarcado pela norma55, razão pela qual, se o elemento valorativo que ensejou a
proteção de determinada situação fática estiver presente em outra, a interpretação extensiva ou a analogia
demandará pela extensão do regime jurídico normatizado a esta última. Isso quer dizer que, por mais que
a lei atualmente traga a expressão “o homem e a mulher” (ou seja, o “fato” heteroafetivo), o valor
por ela protegido não é a heterossexualidade, mas o amor de duas pessoas que gera uma entidade
familiar, por meio de uma comunhão plena de vida e interesses, contínua, duradoura e com o intuito
de constituir família.
Ou seja, as uniões homoafetivas são idênticas às heteroafetivas, tendo em vista que em ambos os
casos temos duas pessoas que se amam e querem desenvolver uma comunhão plena de vida e interesses,
de forma pública, contínua e duradoura uma com a outra, amor este que é o elemento formador da família
contemporânea. Dessa forma, é aplicável a interpretação extensiva à lei do casamento civil para
possibilitá-lo às uniões homoafetivas. Contudo, lamentavelmente, não tem sido incomum a existência de
argumentações no sentido de que as uniões homoafetivas seriam diversas das heteroafetivas, embora não
se diga o que caracterizaria tal “diferença” – o que só pode decorrer da premissa equivocada de que a
diversidade de sexos em um caso e a homogeneidade deles em outro caracterizaria uma “diferença” entre
as duas uniões amorosas, o que é absurdo, pois a família oriunda da união amorosa de duas pessoas é
formada pelo amor familiar, existente em ambas as uniões, sendo este o único elemento a considerar na
hipótese concreta. Contudo, na hipótese de se considerar que o fato de termos um homem e uma mulher
em um caso e duas pessoas do mesmo sexo em outro caracterizaria uma “diferença”, com o que não
concordo, mesmo nesse caso deve ser reconhecida a possibilidade jurídica do casamento civil
homoafetivo. Isso porque, por mais que se vislumbre essa pseudodiferença, terá que se considerar que as
duas situações são idênticas no essencial, visto que ambas formam uma família conjugal por serem
pautadas pelo amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura, que é o elemento formador da família contemporânea. Ora, se o amor familiar é a
base da família (e, portanto, do Direito das Famílias), então é inafastável a conclusão segundo a qual
as uniões homoafetivas são idênticas no essencial às uniões heteroafetivas, razão pela qual deverá ser
reconhecida a possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo por analogia, que, juntamente
com a interpretação extensiva, é sucedâneo da isonomia56.
No sentido de ser o casamento civil uma comunidade de amor, veja-se o trecho inicial da citada
decisão da Suprema Corte do Estado de Massachusetts (EUA)57:
O casamento é uma instituição social vital. O compromisso exclusivo de duas pessoas uma à
outra nutre amor e mútua assistência; ele traz estabilidade à nossa sociedade. Para aqueles que
decidem se casar, e para os seus filhos, o casamento proporciona uma fartura de benefícios legais,
financeiros e sociais. Em troca, ele impõe pesadas obrigações legais, financeiras e sociais. A
questão diante de nós é se, de acordo com a Constituição, o Estado pode negar estas proteções,
benefícios e obrigações conferidas pelo casamento civil a duas pessoas do mesmo sexo que desejam
se casar. Nós concluímos que ele não pode. A Constituição afirma a dignidade e a igualdade de
todos os indivíduos. Ela proíbe a criação de cidadãos de segunda classe. Ao chegar à nossa
conclusão, nós demos total deferência aos argumentos trazidos pelo Estado. Mas ele falhou na
incumbência de identificar alguma razão constitucionalmente adequada para a negativa do
casamento civil aos casais formados por pessoas do mesmo sexo. Nós estamos cientes de que a
nossa decisão marca uma mudança na história da nossa lei do casamento. Muitas pessoas têm
convicções religiosas, morais e éticas profundamente consolidadas no sentido de que o casamento
deveria ser limitado à união de um homem e uma mulher, e que a conduta homossexual é imoral.
Muitos têm igualmente fortes convicções religiosas, morais e éticas no sentido de que os casais
formados por pessoas do mesmo sexo têm o direito se casar, e que as pessoas homossexuais não
deveriam ser tratadas de forma diferente daquela conferida a seus vizinhos heterossexuais. Nenhuma
dessas visões responde à pergunta diante de nós. Nossa preocupação é com a Constituição como
uma carta de governo para todas as pessoas dentro do seu alcance. “Nossa obrigação é definir a
liberdade de todos, não estabelecer o nosso próprio código moral”. Lawrence v. Texas (...). Uma
pessoa que entra em uma união íntima e exclusiva com outra do mesmo sexo e tem acesso barrado às
proteções, benefícios e obrigações do casamento civil é arbitrariamente privada do acesso a uma
das instituições mais estimadas e compensatórias da nossa comunidade. Essa exclusão é
incompatível com os princípios constitucionais do respeito à autonomia individual e à igualdade
perante a lei.

Em suma: a lei foi omissa no que tange à menção da união entre duas pessoas do mesmo sexo – não a
proibiu, mas ao mesmo tempo não a regulamentou de forma expressa. Para casos como estes, existem a
interpretação extensiva e a analogia, que visam justamente estender, para uma situação que possua
exatamente o mesmo valor protegido pela norma, a mesma proteção jurídica conferida à situação
enunciada de forma expressa, não obstante a omissão legal.
Assim, no caso do casamento civil, apesar de o art. 1.514 do CC/2002 não ter deixado expresso que
ele é possível a duas pessoas do mesmo sexo, tal possibilidade jurídica é uma decorrência lógica dos
princípios da igualdade e da interpretação extensiva ou da analogia, uma vez que ditas técnicas de
interpretação jurídica visam garantir que pessoas em situações idênticas ou idênticas no essencial a
outras expressamente citadas/regulamentadas pelo texto normativo recebam um tratamento igualitário em
relação a estas, em que pese a eventual omissão da norma jurídica.
Ou seja, as uniões homoafetivas são idênticas às heteroafetivas, tendo em vista que, em ambos os
casos, temos duas pessoas que se amam e que visam uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura. Assim, deve ser aplicada a interpretação extensiva ao art. 1.514 do
CC/2002 para possibilitar o casamento civil homoafetivo. Contudo, caso se entenda que ditas uniões não
seriam idênticas pelo simples fato de termos, em um caso, duas pessoas do mesmo sexo e, em outro, duas
pessoas de sexos diversos (o que considero irrelevante, pois a família forma-se pela união amorosa
pública, contínua e duradoura, amor este presente em ambos os casos), é inequívoco que se trata de duas
situações fundamentalmente idênticas, visto que o elemento formador da família contemporânea é o
citado amor familiar. Adotada essa posição, deverá ser aplicada a analogia no citado dispositivo legal
para possibilitar o casamento civil homoafetivo.
Dessa forma, verifica-se inexistir no ordenamento jurídico brasileiro qualquer proibição ao
casamento civil homoafetivo, mas apenas uma lacuna na lei, passível de supressão pela interpretação
extensiva ou pela analogia. A única hipótese em que se poderia proibir legalmente o casamento civil
homoafetivo seria a inserção expressa de tal hipótese entre os taxativos impedimentos matrimoniais,
como fazia o ordenamento jurídico português até 2010 (quando foi alterado o Código Civil Português
para se permitir expressamente o direito ao casamento civil homoafetivo), muito embora isso ensejasse
uma flagrante inconstitucionalidade por afronta à isonomia, já que as situações (uniões homoafetiva e
heteroafetiva) são idênticas ou, no mínimo, idênticas no essencial, donde, sendo o casamento civil um
direito de todos, passível de restrição tão somente pelo aspecto material da isonomia, torna-se evidente
que homossexuais têm o direito de se casar com pessoas do mesmo sexo, dada a arbitrariedade de
posição em sentido contrário58.
Por outro lado, reitere-se que a Lei Maria da Penha reconheceu o status jurídico​-familiar das uniões
homoafetivas em seus arts. 2.o e 5.o, parágrafo único. Com efeito, a partir do momento em que se concebe
a formação de uma família como direito fundamental inerente à pessoa humana, tem-se que o art. 2.o da
Lei Maria da Penha reconheceu expressamente que as pessoas homossexuais têm o direito de formarem
famílias conjugais homoafetivas e, consequentemente, de terem-nas reconhecidas e protegidas pelo
Direito das Famílias. Ademais, quando o parágrafo único do art. 5.o da referida lei enunciou que as
relações pessoais dispostas no mesmo independem de orientação sexual, reconheceu expressamente o
status jurídico-familiar das uniões homoafetivas, alçando-as expressamente à condição de entidades
familiares, embora não tenha regulado seus efeitos na esfera cível.
Com efeito, ao apontar que a família é compreendida como uma comunidade formada por indivíduos
que são ou se consideram aparentados por vontade expressa (art. 5.o, II), e que as relações pessoais
dispostas em todo esse artigo independem de orientação sexual (art. 5.o, parágrafo único), a Lei Maria da
Penha afirmou que entende por família também a união homoafetiva – pois, do contrário, as relações
pessoais dispostas no inc. II dependeriam de orientação sexual ou do sexo de um dos companheiros, o
que contraria frontalmente o parágrafo único desse dispositivo legal.
Dessa forma, caracterizando-se as uniões homoafetivas como entidades familiares, é inafastável o
cabimento da interpretação extensiva ou da analogia como forma de se possibilitar o casamento civil
homoafetivo, tendo em vista que este visa proteger/abarcar justamente as famílias/entidades familiares.
Nesse sentido, vale reiterar a lição de Maria Berenice Dias59 quando afirma que “agora, a partir da
nova definição de entidade familiar, trazida pela Lei Maria da Penha, não mais cabe questionar a natureza
dos vínculos formados por pessoas do mesmo sexo. Ninguém pode continuar sustentando que, em face da
omissão legislativa, não é possível emprestar-lhes efeitos jurídicos. Há uma nova regulamentação
legislativa da família. No dizer de Roberto Lorea, ‘derruba-se, enfim, a última barreira – meramente
formal – para a democratização do acesso ao casamento no Brasil: A nova definição legal da família
brasileira se harmoniza com o conceito de casamento entre cônjuges do art. 1.511, do Código Civil,
não apenas deixando de fazer qualquer alusão à oposição de sexos, mas explicitando que a
heterossexualidade não é condição para o casamento’”.
Ou, na lição de Roberto Lorea Arriada: “Essa discussão adquire novos contornos quando a Lei n.
11.340, de 2006 [Lei Maria da Penha], traz uma nova definição do que seja a família, que passa a ser
juridicamente compreendida como a ‘comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; independentemente de
orientação sexual’ (art. 5.o, inciso II, e parágrafo único)”, donde afirma com precisão que “a nova
definição legal da família brasileira se harmoniza com o conceito de casamento ‘entre cônjuges’ do art.
1.511 do Código Civil, não apenas deixando de fazer qualquer alusão à oposição de sexos, mas
explicitando que a heterossexualidade não é condição para o casamento”, razão pela qual “derruba-se,
enfim, a última barreira – meramente formal – para a democratização do acesso ao casamento no
Brasil”60.
Por todo o exposto, verifica-se a total possibilidade de o casamento civil homoafetivo nos dias de
hoje por meio da interpretação extensiva ou, no mínimo, da analogia, tendo em vista que o mesmo valor
protegido na união heteroafetiva existe na união homoafetiva, valor este que é o amor romântico que vise
a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento
formador da família contemporânea.

3.1 Uma inconstitucionalidade por omissão. Inexistência de “ativismo judicial” no reconhecimento


do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. Alternativamente:
constitucionalidade de supressão de lacunas inconstitucionais mediante “práticas de ativismo
judicial” concretizadoras dos princípios constitucionais (cf. Ministro Celso de Mello). STF,
ADPF 132 e ADI 4.277
Demonstrou-se no tópico anterior que a letra da lei não proíbe o casamento civil homoafetivo, sendo
que tal “proibição” decorre unicamente de uma descabida interpretação restritiva que se aplica aos
dispositivos legais relativos à união matrimonializada civilmente, restrição esta que se afigura
inconstitucional por afronta à isonomia. Demonstrou-se, assim, que o que existe é uma lacuna normativa,
nada mais.
Disso decorre uma inconstitucionalidade por omissão, na medida em que o benefício concedido aos
casais heteroafetivos é legítimo: estes evidentemente têm o direito de se casar civilmente e de auferir os
citados benefícios do casamento civil. A inconstitucionalidade consiste apenas no fato de a lei não
abarcar expressamente as uniões homoafetivas em seu âmbito, sendo que a inconstitucionalidade por
omissão enseja necessariamente a extensão do regime jurídico à situação não citada/não
regulamentada por meio da interpretação extensiva ou da analogia, como exigência da isonomia.
Assim, apenas para que não reste nenhuma dúvida, deve-se notar que, dada a ausência de motivação
lógico-racional que justifique a concessão de menos direitos às uniões homoafetivas em relação aos
direitos concedidos às uniões heteroafetivas, percebe-se a inconstitucionalidade por omissão no que
tange à lacuna normativa que deixa de reconhecer expressamente a possibilidade jurídica do casamento
civil homoafetivo, razão pela qual tal lacuna inconstitucional deve ser colmatada pela interpretação
extensiva ou pela analogia, como exige a isonomia.
Nesse sentido, valem as considerações do Ministro Celso de Mello61 no julgamento da ADPF 132 e
da ADI 4.277:

Nem se alegue, finalmente, no caso ora em exame, a ocorrência de eventual ativismo judicial
exercido pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente porque, dentre as inúmeras causas que
justificam esse comportamento afirmativo do Poder Judiciário, de que resulta uma positiva criação
jurisprudencial do direito, inclui-se a necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constituição da
República, muitas vezes transgredida e desrespeitada, como na espécie, por pura e simples omissão
dos poderes públicos. Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões
inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição
violada pela inércia dos poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão
constitucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei
Fundamental da República. Práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas
pela Corte Suprema em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional,
quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de
obrigações a que estão sujeitos, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-
se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de
pura passividade. A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a
imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior
gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a
Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou
insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da
Lei Fundamental (...) O desprestígio da Constituição – por inércia de órgãos meramente constituídos
– representa um dos mais graves aspectos da patologia constitucional, pois reflete inaceitável
desprezo, por parte das instituições governamentais, da autoridade suprema da Lei Fundamental do
Estado, que não tolera, porque inadmissível, o desrespeito, pela maioria, dos direitos e interesses
de grupos minoritários. Esse protagonismo do Poder Judiciário, fortalecido pelo monopólio da
última palavra de que dispõe o Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional (MS
26.603/DF, Rel. Min. Celso de Mello, v.g.), nada mais representa senão o resultado da expressiva
ampliação das funções institucionais conferidas ao próprio Judiciário pela vigente Constituição,
que converteu os juízes e os Tribunais em árbitros dos conflitos que se registram no domínio
social e na arena política, considerado o relevantíssimo papel que se lhes cometeu, notadamente
a esta Suprema Corte, em tema de jurisdição constitucional. Daí a plena legitimidade jurídico-
constitucional da decisão que o Supremo Tribunal Federal está a proferir neste julgamento, que
representa verdadeiro marco histórico no processo de afirmação e de consolidação dos direitos
da minoria homossexual em nosso País. Torna-se de vital importância reconhecer, Senhor
Presidente, que o Supremo Tribunal Federal – que é o guardião da Constituição, por expressa
delegação do poder constituinte – não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a
Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integridade
do sistema político, o amparo das liberdades públicas (com a consequente proteção dos direitos das
minorias), a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e
a legitimidade das instituições da República restarão profundamente comprometidas.

Afinal, consoante bem delineado pelo Ministro Celso de Mello62 no referido voto, “A força
normativa de que se acham impregnados os princípios constitucionais e a intervenção decisiva
representada pelo fortalecimento da jurisdição constitucional exprimem aspectos de alto relevo que
delineiam alguns dos elementos que compõem o marco doutrinário que confere suporte teórico ao
neoconstitucionalismo, em ordem a permitir, numa perspectiva de implementação concretizadora, a plena
realização, em sua dimensão global, do próprio texto normativo da Constituição”, visto que, no caso em
análise, “o postulado constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de
que se irradia o princípio da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo
de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se em função de sua própria
teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa
comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais”.
Cite-se, em complemento, as considerações do Ministro Gilmar Mendes63 no julgamento da ADPF
132 e da ADI 4.277, relativamente à necessidade de uma atuação positiva da jurisdição constitucional
para garantia de direitos fundamentais dos cidadãos quando estes estejam sendo obstados por conta de
inércia inconstitucional do legislador: “A assunção de uma atuação criativa pelo Tribunal pode ser
determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que
muitas vezes causa entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto
constitucional. (...) Eu comemoro e comungo também desse entendimento. É sabido que sou um crítico
ferrenho daquele argumento de que, quando em vez, lançamos mão: de que não podemos fazer isto ou
aquilo porque estamos nos comportando como legislador positivo ou coisa que o valha. Não há nenhuma
dúvida de que aqui o Tribunal está assumindo um papel ativo, ainda que provisoriamente, pois se espera
que o legislador autêntico venha a atuar. No entanto, é inequívoco que o Tribunal está dando uma resposta
de caráter positivo. Na verdade, essa afirmação – eu já tive oportunidade de destacar – tem de ser
relativizada diante de pretensões que envolvem a produção de norma ou a produção de um mecanismo de
proteção. Deve haver aí uma resposta de caráter positivo. E se o sistema jurídico, de alguma forma, falha
na composição desta resposta aos cidadãs, e se o Poder Judiciário é chamado, de alguma forma, a
substituir o próprio sistema político nessa inação, óbvio que a resposta só pode ser de caráter positivo. É
certo que essa própria afirmação já envolve certo engodo metodológico. Eu diria que até a fórmula
puramente anulatória, quando se cassa uma norma por afirmá-la inconstitucional – na linha tradicional de
Kelsen –, já envolve também uma legislação positiva no sentido de se manter o status quo, um modelo
jurídico contrário à posição que estava anteriormente em vigor”.
Ou, nas palavras do Ministro Luiz Fux64, com base nas lições de Dworkin: “O governo – e nós
somos o governo, nós praticamos atos de governo também, atos que são inerentes ao Poder Público – se o
legislador não faz, compete ao Tribunal suprir essa lacuna. E aqui ‘governo’ significa a administração
dos interesses das partes que não conseguiram, por autocomposição, chegar a uma solução” (g.n.).
Em verdade, consoante instigante título de artigo de Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros, interpretar a
Constituição não é ativismo judicial65, ao menos no sentido pejorativo usualmente atribuído a tal
expressão, normalmente compreendida como uma decisão que usurpa a competência do Parlamento
(“uma disfunção no exercício da função jurisdicional em detrimento, notadamente, da função
legislativa”66), ou, no mínimo, que atua em área que inicialmente seria de competência de um dos outros
Poderes (“associando a palavra a uma conduta invasiva das competências dos demais poderes e, por que
não dizer, arbitrária, porque seria implementada ao arrepio do que a própria Constituição fixa quando
cuida da divisão do exercício do Poder”67). Não se pode entender a decisão do STF aqui comentada
como “ativista” neste sentido pejorativo. Afinal, como bem dito pelo Ministro Gilmar Mendes em seu
voto no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, o fato de a Constituição proteger a união estável
entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção à união estável homoafetiva68, razão
pela qual concluiu no sentido de que “A inexistência de expressa vedação constitucional à formação de
uma união homoafetiva, a constatação de sua aproximação às características e finalidades das demais
formas de entidades familiares e a sua compatibilidade, a priori, com os fundamentos constitucionais da
dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação do desenvolvimento do indivíduo, da
segurança jurídica, da igualdade e da vedação à discriminação por sexo e, em sentido mais amplo, por
orientação sexual apontam para a possibilidade de proteção e de reconhecimento jurídico da união entre
pessoas do mesmo sexo no atual estágio de nosso constitucionalismo”, pois “há um tipo de inércia
legislativa relacionada a um dever de proteção de direitos fundamentais básicos, de direitos de minoria.
Isso reivindica, então, a atuação da Corte”69.
Logo, o reconhecimento da união estável homoafetiva por interpretação extensiva ou analogia não
gera nenhum “rompimento” com o texto constitucional, por ele não possuir texto normativo que proíba
essa exegese constitucional inclusiva, na medida em que dizer que é reconhecida a união estável “entre o
homem e a mulher” é algo distinto de uma fala que dissesse que a união estável seria reconhecida
“apenas” entre o homem e a mulher – como não há um tal “apenas/somente/unicamente”, não há limites
semânticos no texto do art. 226, § 3.º, da CF/1988 que impeçam a exegese constitucional inclusiva
aqui defendida”.
Ademais, como bem diz o Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros, no citado artigo, “A interpretação que
reconhece as relações homoafetivas e as equipara a união estável não rompe com o texto constitucional
nem parte da ideia de normas constitucionais inconstitucionais; o que esse reconhecimento propicia, em
verdade, é a interpretação da Constituição de maneira unitária, a partir de direitos já existentes no plano
constitucional, não caracterizando, dessa forma, um ativismo judicial que cria direitos não previstos pelo
ordenamento”, pois “Negar a possibilidade de uma entidade familiar homossexual e de uma união estável
homossexual, que embora não numerada, está presente na Constituição, é negar que a família deve ser
regulamentada de maneira coerente com o princípio de liberdade, presente em nosso ordenamento, quanto
à sua constituição e de igualdade, também presente em nosso ordenamento, quanto à possibilidade de
acesso a diferentes casais, independentemente de sua orientação sexual. É entender que todas as famílias
são livres e iguais, mas algumas são mais livres e iguais que outras”. Continua o autor no sentido de que
“O entendimento pela necessidade de alteração textual para a inclusão e reconhecimento de famílias
homossexuais, por mais que tenha uma preocupação legítima com aspectos democráticos, acaba por ser
antidemocrático, na medida em que procura submeter a uma discussão majoritária uma proteção que o
ordenamento já concede à diversidade de maneira contramajoritária”, explicando que “Não se pode
submeter a uma discussão de maioria a possibilidade ou não de casais homossexuais terem uma
constituição familiar reconhecida pelo Direito. [pois] Esse reconhecimento já existe como decorrência
de uma interpretação adequada, voltada para a afirmação de pluralidade, igualdade e liberdade, que nada
tem de meramente moral, tampouco pode ser retirada (ou negada) pela simples vontade da maioria”. Cita
como exemplo a situação da África do Sul: “A aprovação do casamento homossexual na África do Sul se
deu de modo muito semelhante ao ocorrido no Canadá. A discussão iniciou-se na Suprema Corte de
Apelações da África do Sul, na decisão exarada no caso 232/2003, em que o tribunal entendeu, a partir
da reconstrução do significado de casamento com base em princípios constitucionais, notadamente o
princípio da igualdade, a constitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo e, além, a
inconstitucionalidade da manutenção da exclusão da possibilidade do casamento homossexual”. Continua
a justificação da validade desta exegese com as seguintes considerações da Exposição de Motivos da
Ley 13/2005, que promulgou o casamento civil homoafetivo na Espanha, segundo a qual “Certamente, a
Constituição, ao encomendar ao legislador a configuração normativa do matrimônio, não exclui de forma
alguma uma relação que delimite as relações de casal de uma forma diferente do que já tenha existido ao
momento, regulação que dê abrigo às novas formas de relação afetiva. (...) Assim, a promoção da
igualdade efetiva dos cidadãos no livre desenvolvimento de sua personalidade (artigos 9.2 e 10.1 da
Constituição), a preservação da liberdade em que as formas de convivência se referem (artigo 1.1 da
Constituição) e a instauração de um marco de igualdade real no desfrute dos direitos sem discriminação
alguma por razão de sexo, opinião ou qualquer outra condição pessoal ou social (artigo 14 da
Constituição) são valores consagrados constitucionalmente, plasmados que devem ser no reflexo da
regulação de normas que delimitam o status do cidadão, em uma sociedade livre, pluralista e aberta”, e
conclui que:

O direito à união estável homossexual já se encontra garantido no ordenamento jurídico


com base nos princípios elencados (igualdade, liberdade, dignidade e abertura para entidades
familiares para além daquelas expressamente previstas no texto constitucional). (...) Se pretende-
se levar os direitos a sério e interpretar-se a Constituição principiologicamente de forma a garantir
sua unidade, deve-se reconhecer que não existe hoje, em nosso ordenamento, fundamento jurídico
algum apto a conferir normatividade a um entendimento excludente da possibilidade de proteção
constitucional de famílias homossexuais. Reconhecer a possibilidade da união estável homossexual
se demonstra como consequência da garantia da igualdade como forma de proteção da diferença e
da diversidade, permitindo, por conseguinte, o exercício de um desenvolvimento livre de vida,
inclusive quanto à possibilidade de escolha da forma de proteção jurídica às diversas formas de
relacionamento existentes, algo já protegido e previsto em nosso ordenamento, como uma garantia
contramajoritária à diferença, não sendo possível de se submeter a uma decisão política da maioria.

Logo, entendo que não se pode falar em “ativismo judicial” no reconhecimento do casamento civil,
da união estável e da adoção por casais homoafetivos porque esse reconhecimento se pauta em lições de
Direito Civil Clássico, segundo as quais o fato de um texto normativo regulamentar um fato sem proibir
outro configura lacuna normativa passível de colmatação por interpretação extensiva ou analogia e não
“proibição implícita” ao reconhecimento de igual juridicidade do fato não citado pelo texto da norma
relativamente àquele por ela expressamente regulamentado. Não há como considerar como “ativismo
judicial”, no sentido pejorativo que a expressão tradicionalmente carrega (de atuação fora de suas
funções típicas ou, pior, de atuação ilegítima), uma decisão que cumpre dispositivo legal que consagra a
analogia como método decisório de competência do Poder Judiciário, como fazem os arts. 4.º da LINDB
e 126 do CPC, que afirmam que, na omissão da lei, decidirá o juiz por analogia, por costumes e pelos
princípios gerais de Direito (que consagram a interpretação extensiva). A menos que se venha dizer o
absurdo de que a decisão por analogia configuraria “ativismo judicial” supostamente “contrário” à teoria
da separação “dos poderes” e se pretenda declarar a “inconstitucionalidade” de todas as decisões que
aplicam o raciocínio analógico desde que o Direito é Direito, não se pode dizer que a decisão do STF
configuraria “ativismo judicial” já que ela é justificável por raciocínio oriundo de lições de Direito Civil
Clássico.
Contudo, caso se entenda (equivocadamente) que haveria “ativismo judicial” no raciocínio
extensivo/analógico aqui defendido, então se tem por pertinente a supracitada posição do Ministro Celso
de Mello70, no sentido de que “Práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas
pela Corte Suprema em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os
órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que
estão sujeitos, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos
estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade”, uma vez
que “O desprestígio da Constituição – por inércia de órgãos meramente constituídos – representa um dos
mais graves aspectos da patologia constitucional, pois reflete inaceitável desprezo, por parte das
instituições governamentais, da autoridade suprema da Lei Fundamental do Estado, que não tolera,
porque inadmissível, o desrespeito, pela maioria, dos direitos e interesses de grupos minoritários”,
restando aí “a plena legitimidade jurídico-constitucional” da decisão do STF na ADPF 132 e da ADI
4.277, pois, nas palavras do Ministro Gilmar Mendes neste julgamento, “é dever do Estado e ultima
ratio. É dever da Corte Constitucional e da jurisdição constitucional dar essa proteção se, de alguma
forma, ela não foi engendrada ou concebida pelo órgão competente”71. Na verdade, parece-me que aqui a
expressão “ativismo judicial” foi usada pelo Ministro Celso de Mello como antônimo de “autocontenção
judicial”, sem entrar no mérito de ser uma decisão que estaria a entrar em tema de competência do
Congresso Nacional. Como supramencionado, entendo que não há usurpação de competência do
Parlamento porque a colmatação de lacunas normativas está desde sempre entre as competências do
Poder Judiciário e, portanto, do Supremo Tribunal Federal, o que se quis dizer aqui é que, ainda que se
considere (equivocamente) que a princípio essa lacuna teria que ser colmatada unicamente pelo
Parlamento, o fato de se tratar de uma lacuna inconstitucional então investe no Poder Judiciário a
prerrogativa de colmatá-la para, assim, afastar o estado de inconstitucionalidade por omissão.
De qualquer forma, entendemos absolutamente pertinente a afirmação de Walter Claudius
Rothenburg72 no sentido de que “importa mais a finalidade de cumprir a Constituição, do que o sujeito
(órgão) a quem as atribuições (competências) foram conferidas. Seria possível, portanto, admitir que
outro sujeito, inicialmente não dotado de atribuição constitucional, implementasse o comando
constitucional. O controle de constitucionalidade, realizado por órgão e procedimentos legítimos,
poderia chegar a esse ponto: destituir um sujeito constitucionalmente previsto e autorizar outro a dar
efetividade à Constituição. (...) Deste modo, por meio da fiscalização da omissão inconstitucional,
pode-se atingir o âmago do problema, que se situa antes no objeto do controle (o desrespeito
constitucional) do que no sujeito responsável. (...) Ora, o que importa fundamentalmente é suprir a
lacuna inconstitucional, que constitui o objeto do controle. A preocupação passa então novamente pelo
sujeito, só que para desinvestir o titular omisso e buscar outro capaz de colmatar a lacuna indevida,
realizando a tarefa constitucionalmente imposta. Agora, no entanto, a questão do sujeito não aparece
como principal (esta é a efetivação do direito constitucional), apenas como meio de se obter aquele
resultado. A troca de sujeito apresenta-se, assim, como um momento da evolução dos vínculos
constitucionais e como uma satisfação à exigência de implementação dos comandos constitucionais
(particularmente os vazados em termos programáticos). O órgão encarregado do controle de
constitucionalmente (principalmente o Judiciário) tem-se apresentado como o mais adequado para
conduzir (e às vezes mesmo assumir) esse câmbio. Portanto, para dar cumprimento satisfatório aos
fins estabelecidos para o Estado (e a sociedade), instaura-se uma polêmica concorrência de
legitimidade entre, fundamentalmente, o legislador (tradicional encarregado de emprestar integração
aos ditames constitucionais carentes de autoexecutoriedade) e o órgão judiciário incumbido de
realizar a fiscalização de constitucionalidade. (...) Já aqui se inicia o deslocamento de competências
constitucionalmente estabelecidas, com a vantagem – marcante sob o aspecto prático – de que goza o
Judiciário, de situar o controle do descumprimento constitucional em um campo de mais fácil e
imediata aferição jurídica: a partir do instante em que o Judiciário interfere na determinação do
sujeito responsável pelo desempenho de competências constitucionais, especifica-se uma ordem
judicial, cujo desrespeito é de mais simples caracterização e punição”. Afinal, consoante a doutrina de
Sarlet, Marinoni e Mitidiero:

Ao não se conceder a elaboração da norma faltante ao Judiciário, confere-se ao Legislativo,


implicitamente, o poder de anular a Constituição, retornando-se, assim, ao tempo em que a
Constituição dependia da ‘boa vontade’ do legislador. Ora, não há como compatibilizar o princípio
da supremacia da Constituição com a ideia de que esta pode vir a falhar em virtude da não
atuação legislativa. Isso seria, bem vistas as coisas, dar ao legislador o poder de fazer a
Constituição desaparecer. Ademais, admitir que o Judiciário nada pode fazer quando o
Legislativo se nega a tutelar as normas constitucionais é não perceber que o dever de tutela da
Constituição é acometido ao Estado e não apenas ao Legislativo. Quando o Legislativo não atua,
um Tribunal Supremo ou uma Corte Constitucional tem inescondível dever de proteger a
Constituição. Assim, se é a norma legislativa que falta para dar efetividade à Constituição, cabe ao
Judiciário, sem qualquer dúvida, elaborá-la, evitando, assim, a desintegração da ordem
constitucional. O princípio da separação dos poderes confere ao Legislativo o poder de elaborar
as leis, mas, evidentemente, não lhe dá o poder de inviabilizar a normatividade da Constituição.
Aliás, tal poder certamente não é, nem poderia ser, absoluto ou imune. Bem por isso, nos casos
em que a Constituição depende de lei ou tutela infraconstitucional, a inação do Legislativo,
exatamente por não ser vista como discricionariedade ou manifestação de liberdade e sim
violação de dever, deve ser suprida pelo Judiciário mediante a elaboração da norma que deixou
de ser editada. Note-se, aliás, que há contradição em admitir a nulificação judicial de norma
legislativa e não aceitar a elaboração judicial da norma que o Legislativo deixou de editar. Sem
dúvida, há maior censura quando se nulifica o ato do legislador do que quando se supre a sua
inação. A menos que se imagine, em total descompasso com o constitucionalismo contemporâneo,
que o legislador apenas pode descurar da Constituição ao agir e não ao deixar de agir. (...) Assim, se
o prazo conferido ao Legislativo não é cumprido, e, portanto, a declaração judicial da omissão
inconstitucional não surte efeito, isto não permite ao Judiciário parar por aí, como se o seu dever
não fosse o de remediar a ausência de tutela normativa, bastando-lhe declará-la. Lembre-se de que o
Judiciário tem o dever de suprir a falta de tutela do Legislativo e não o de simplesmente pronunciá-
la. Portanto, do não atendimento do prazo o Judiciário pode extrair consequência de modo a
fazer surgir a norma, como no caso em que há norma legal para situação idêntica, conforme ocorre
na hipótese de omissão parcial no sentido horizontal, em que se deixa de beneficiar grupo em
violação ao princípio da igualdade.

Assim, omissões inconstitucionais do Parlamento devem ser supridas pela jurisdição constitucional
(especialmente pela Suprema Corte ou Tribunal Constitucional) para se garantir a supremacia da
Constituição, inclusive contra o Parlamento, razão pela qual, ou não se pode atribuir a alcunha de
“ativismo judicial” à decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, ou, alternativamente, deve-se
admiti-la como um “ativismo judicial constitucionalmente válido (e obrigatório)”.

3.2 Mesmo instituições milenares, quando inseridas em um ordenamento jurídico, devem respeitar
os princípios e a sistemática que o regem
Apesar de ser clara, em uma visão estritamente jurídica da questão, a possibilidade jurídica do
casamento civil homoafetivo, a grande problemática consiste no fato de que, historicamente, o casamento
(civil e especialmente religioso) ter sido realizado basicamente entre pessoas de sexos diversos. Os
opositores do reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo utilizam, como
um de seus “fundamentos”, o fato de que o matrimônio sempre foi realizado entre pessoas de sexos
diversos, em que entendem que somente a união heteroafetiva poderia ser consagrada pela lei.
Como se vê, os defensores dessa tese entendem que o casamento civil seria uma “instituição”, algo
imutável mesmo com a evolução do pensamento social. Nessa seara, entra-se na célebre discussão acerca
da natureza jurídica do casamento: se seria um contrato, uma instituição ou um misto entre contrato e
instituição. Mesmo sem adentrar nessa polêmica discussão, que divide os juristas até hoje73, um aspecto
que deve ser ressaltado de plano é o de que, a partir do momento em que uma “instituição” é inserida em
um ordenamento jurídico, deve ela respeitar obrigatoriamente os princípios que regem a ordem jurídica
em questão. Não importa a origem desta, se religiosa, cultural ou qualquer outra: deve ela
obrigatoriamente obedecer aos ditames legais e constitucionais que regem o Direito que a consagra,
mesmo que isso venha eventualmente a alterar parte de seu conteúdo histórico “pré-jurídico”.
Que fique bem claro que não se está aqui aderindo em nenhum momento à teoria institucional do
casamento civil: a polêmica discussão acerca da natureza jurídica do casamento não é objeto pertinente
ou, pelo menos, relevante ao presente estudo. Todavia, ainda que se entenda que o casamento civil seja
uma instituição, deve ele obedecer aos ditames estabelecidos pelos princípios da igualdade e da
dignidade da pessoa humana, que vedam o preconceito jurídico. Afinal, o ordenamento constitucional
brasileiro consagrou ditos princípios como basilares de seu Estado Democrático e Social de Direito.
Com efeito, a isonomia estabelece que uma discriminação somente será juridicamente válida caso haja
uma motivação lógico-racional que a justifique quando considerado o critério discriminador erigido, ao
passo que a dignidade humana só admite sua relativização por meio da isonomia. No caso aqui debatido,
a discriminação pretendida é a negação de direitos decorrentes do não reconhecimento da possibilidade
jurídica do casamento civil homoafetivo, sendo o critério diferenciador a orientação sexual do par, uma
vez que é só por meio desse regime jurídico (e da união estável) que se estende o Direito de Família e
todas as suas benesses a duas pessoas que mantenham uma união amorosa.
Todavia, essa discriminação não é juridicamente válida, visto que inexiste fundamentação válida
ante a isonomia que a justifique com base na orientação sexual do par. Isso porque, considerando que o
objeto de proteção do Direito das Famílias pátrio é o amor que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, e que o mesmo amor familiar existente nas uniões
heteroafetivas é o que existe nas uniões homoafetivas, tratando-se assim de situações idênticas ou, no
mínimo, análogas, inexiste fundamentação razoável, lógico-racional, que justifique a discriminação de
umas em relação a outras tomando-se em conta unicamente a orientação sexual do par, como se faz
atualmente.
A inconstitucionalidade da referida discriminação encontra-se, ainda, na terceira fase da verificação
de validade da discriminação jurídica, a saber: a verificação da discriminação perpetrada com os
valores constitucionalmente consagrados. Ou seja, ainda que se considerasse como “lógico-racional” a
concessão de menos direitos aos casais homoafetivos em relação aos conferidos aos casais
heteroafetivos (e tal não ocorre), essa concessão de menos direitos implica afronta ao valor consagrado
no art. 19, III, da Constituição Federal, que estabelece ser vedado ao Estado brasileiro “criar distinções
entre brasileiros ou preferências entre si”74. Afinal, a referida discriminação estará denotando a
preferência do Estado brasileiro aos brasileiros heterossexuais em relação aos brasileiros homossexuais,
na medida em que o Estado estará concedendo especial proteção jurídica aos casais heteroafetivos e
recusando proteção jurídica aos casais homoafetivos.
Dita discriminação afronta, ainda, os valores constitucionais: (a) da dignidade humana (art. 1.º, III),
pois uma vida digna supõe necessariamente que seja reconhecida pela sociedade, ao menos
juridicamente, a mesma dignidade de seu relacionamento em relação aos demais; (b) da promoção do
bem-estar de todos (art. 3.º, IV, parte final), pelo mesmo motivo; (c) da sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos (preâmbulo, que vale como vetor interpretativo da Constituição75; e arts. 1.o, IV, e 3.o,
IV), também pelo mesmo motivo; e (d) da liberdade de consciência (art. 5.º, VI), pois a concessão de
menos direitos implica o menosprezo à consciência homossexual em relação à aceitação da consciência
heterossexual.
Dessa forma, é inconstitucional a discriminação jurídica das uniões entre pessoas do mesmo sexo em
relação àquelas formadas por pessoas de sexos diversos, por afronta aos princípios da isonomia, da
dignidade da pessoa humana, da promoção do bem-estar de todos, da sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos e da liberdade de consciência.
Nesse sentido, sendo inconstitucional a discriminação, somente uma interpretação conforme a
Constituição, que respeite os citados princípios, pode evitar um conflito efetivo entre a norma do
casamento civil e as supraexplicitadas, razão pela qual é indispensável o reconhecimento da
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo como decorrência lógica de nosso ordenamento
jurídico-constitucional, pela interpretação extensiva ou da analogia, sob pena de declaração da
inconstitucionalidade do art. 1.514 do Código Civil e de todos os dispositivos legais que usem a
expressão “o homem e a mulher” quando tratam do casamento civil, em virtude da descabida
interpretação restritiva a eles imposta.

3.2.1 Casamento civil x Casamento religioso. Diferença entre ambos


Como dito, a argumentação dos opositores do casamento civil homoafetivo em geral é no sentido de
que o “casamento” sempre teria sido entendido como a união entre um homem e uma mulher, razão pela
qual seria “da essência”, “da natureza” do “casamento” a diversidade de sexos, visto ter sido inspirado
no “casamento religioso”. O argumento, contudo, é falacioso.
Em primeiro lugar, tais casamentos não são idênticos. O casamento civil é um direito, é um regime
jurídico disponibilizado às uniões amorosas para que sejam protegidas pelo Direito e que precisa
respeitar a sistemática do ordenamento jurídico. O casamento religioso é um dogma, uma instituição
oriunda de preceitos de determinada religião, devendo respeito aos seus preceitos. Lembre-se, ainda, que
o casamento que é protegido pelo Direito Pátrio é o casamento civil, tendo em vista que o casamento
religioso não produz nenhum efeito jurídico (a Constituição diz que a lei deverá atribuir efeitos civis ao
casamento religioso, donde se percebe que este não produz nenhum efeito jurídico per si). O casamento
religioso serve apenas como prova de união estável caso não tenha a si atribuídos efeitos civis.
Assim, é inequívoco que o casamento civil e o casamento religioso são completamente distintos, não
tendo identidade necessária em seus pressupostos. É a legislação (constitucional e/ou infraconstitucional)
que define as condições do casamento civil, sendo que tais pressupostos devem respeitar a isonomia, sob
pena de inconstitucionalidade e necessidade de interpretação extensiva ou analogia no caso de lacunas
normativas. Ou seja, o casamento aqui pleiteado não é o religioso.
É de se notar, ainda, que o casamento civil não é um sacramento da Igreja Católica ou de qualquer
religião que seja. O casamento civil é um regime jurídico de Direito Civil que inclusive nem tem como
requisito essencial a diversidade de sexos, pois em nenhum momento a lei o diz – conclusão diversa
decorre de interpretações simplistas do seu texto literal, que desconsideram a teleologia de tal regime
jurídico. Se foi convencionado no passado que o casamento civil ocorreria apenas entre um homem e uma
mulher e muitos não aceitam ainda hoje o casamento civil homoafetivo, isso se deve, primeiro, a uma
construção social vinda de tempos remotos baseada em conceitos equivocados e, segundo, a uma
interpretação restritiva e retrógrada de tal regime jurídico nos dias de hoje, por parte de pessoas que
meramente reproduzem preconceitos longinquamente estabelecidos. Nosso ordenamento jurídico não
veda que homossexuais se casem civilmente. Inclusive, por um detalhe denominado princípio da
igualdade, o não reconhecimento do casamento civil homoafetivo afigura-se absolutamente
inconstitucional dada a ilógica e irracionalidade da discriminação jurídica daí consequente, concepção
esta facilmente perceptível por qualquer pessoa que compreenda minimamente o Direito, a interpretação
teleológico-sistemática, a interpretação extensiva ou a analogia e que saiba identificar o elemento
formador da família conjugal contemporânea formada por casais – família esta que é o objeto de
proteção das leis do casamento civil e da união estável. Por outro lado, com relação às colocações de
que deveria ser elaborada uma legislação específica às uniões homoafetivas, é de se notar que o
casamento civil já é uma união civil. Se já existe uma união civil para regulamentar uniões amorosas,
para que criar outra união civil também para regulamentar uniões homoafetivas?76
Dessa forma, percebe-se que, se há algum casamento que teria na sua “essência” a diversidade de
sexos, seria apenas o casamento religioso de determinadas religiões, ou melhor, de determinadas
interpretações religiosas, visto que há Igrejas que consagram pelo casamento as uniões homoafetivas.
Não questiono o fato de o casamento civil ter sido criado com base no casamento religioso, todavia
quando uma instituição ingressa no ordenamento jurídico, deve respeitar a sistemática do Direito em
questão, visto que em Direito nada se interpreta de forma isolada, mas sistêmica.
Também argumentam os opositores do casamento civil homoafetivo que mesmo o casamento civil
sempre teria sido entendido como a união entre o homem e a mulher, para dizer que a “diversidade de
sexos” seria “essencial”. Em primeiro lugar, tanto essa compreensão não impede em nada o
reconhecimento de tal direito que Holanda, Espanha, Bélgica, Argentina, Canadá e África do Sul, os
Estado de Massachusetts, de Nova Iorque e da Califórnia (EUA) reconheceram expressamente o direito
ao casamento civil homoafetivo. Ademais, o fato de “sempre ter sido assim” não significa que não
possa haver mudanças: pode-se citar como exemplo a escravidão – até a abolição, negros sempre
tinham sido escravos de brancos, assim como até a Constituição de 1988 as mulheres sempre tinham
sido inferiores juridicamente a seus maridos (em casamentos civis heteroafetivos).
O fato de se repetir uma mentira por séculos/milênios não a torna verdade. Quando as pessoas se
conscientizam do equívoco de suas atitudes e daquelas de seus antepassados não só podem como devem
mudar seu entendimento sobre diversas questões: no Legislativo, com a aprovação de novas leis; no
Judiciário, com a mudança da interpretação jurídica, em interpretações construtivas do Direito.
Ou seja, considerando que a isonomia veda a discriminação arbitrária; considerando que é
arbitrária a concessão de menos direitos às uniões homoafetivas do que às heteroafetivas; considerando
que a interpretação extensiva e a analogia decorrem da isonomia; então é plenamente possível o
casamento civil homoafetivo pela interpretação extensiva ou pela analogia, tendo em vista que as uniões
homoafetivas formam famílias e que a família contemporânea é formada pelo amor que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura.

4. ALTERNATIVAMENTE: DA INCONSTITUCIONALIDADE DA SUPOSTA “PROIBIÇÃO


IMPLÍCITA” AO CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO
Em que pese todo até o momento discutido, não se ignora que substancial parcela da doutrina e da
jurisprudência entende que haveria uma “proibição implícita” ao casamento civil homoafetivo, ante a
expressão “o homem e a mulher” constante do art. 1.514 do CC/2002. Apesar de não concordar em
nenhum momento com tal posição, especialmente porque em Direito não há nulidade sem texto e,
consequentemente, não há proibição sem texto (art. 5.o, II, da CF/88), donde um regime jurídico só pode
ser negado a determinadas pessoas se a lei assim dispuser de maneira expressa, caso se entenda pela
existência de tal “proibição implícita”, mesmo assim o casamento civil homoafetivo permanece como
pedido juridicamente possível, dada a absoluta inconstitucionalidade de entendimento em sentido
contrário77.
Com efeito, como já amplamente exposto neste trabalho, não há uma motivação lógico-racional que
justifique a concessão de menos direitos às uniões homoafetivas quando comparados àqueles concedidos
às uniões heteroafetivas, tendo em vista que o mesmo elemento protegido nestas existe naquelas, qual
seja o amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua
e duradoura, amor este que é o elemento formador da família contemporânea. Assim, na ausência de
fundamento válido ante a isonomia que justifique a discriminação jurídica pretendida78, com base no
critério diferenciador erigido79, e mesmo de correlação concreta entre dita discriminação e os valores
constitucionalmente consagrados80, tem-se que a lei do casamento civil (assim como a da união estável) é
flagrantemente inconstitucional por ofensa ao princípio da isonomia no que tange à suposta restrição de
dito regime jurídico apenas às uniões heteroafetivas. Dessa forma, ante a ausência de fundamento lógico-
racional para a discriminação das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas e o tratamento
jurídico que se quer impor àquelas (aplicação do Direito das Obrigações e não do Direito de Família), e
mesmo de correlação lógica concreta entre dita discriminação e os valores constitucionalmente
consagrados, tem-se por inconstitucional o art. 1.514 do Código Civil em virtude da suposta “proibição
implícita” do direito ao casamento civil a homossexuais por ofensa direta ao princípio da isonomia81.
Assim, não é passível de compreensão o motivo pelo qual ilustres doutrinadores mantêm um
entendimento no sentido da discriminação aqui combatida, como é o caso de Maria Helena Diniz82, ao
afirmar que:

O casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexo dos nubentes (CC,
arts. 1.514, 1.517, 1.565; CF, art. 226, § 5.o), embora não haja nenhuma referência legislativa a
respeito, ante a sua evidência essa condição impõe-se por si mesma. Se duas pessoas do mesmo
sexo, como aconteceu com Nerus e Sporus, convolarem núpcias, ter-se-á casamento inexistente,
uma farsa. Absurdo seria admitir​-se matrimônio de duas mulheres ou de dois homens tivesse
qualquer efeito jurídico, devendo ser invalidado por sentença judicial (grifos do original).

Pergunta-se: onde está a fundamentação racionalmente lógica que justifique o tratamento jurídico
diferenciado defendido pela autora? Por que a mesma considera “absurda” a hipótese de casamento civil
entre pessoas do mesmo sexo? Em que pese meu respeito à notoriedade da autora e a seu inegável
conhecimento jurídico, como não trouxe ela quaisquer argumentos que justifiquem validamente seu
entendimento ante a isonomia, assim como não trouxe uma correlação concreta dele com os valores
constitucionalmente consagrados, só se pode concluir que foi ela preconceituosa (no sentido de
arbitrária, imotivada) em suas colocações, donde se tem como inconstitucional a discriminação por ela
pretendida, por agredir frontalmente o preceito igualitário de nossa Carta Magna. É interessante notar,
ainda, que a própria autora reconhece que inexiste referência legislativa expressa proibindo o casamento
civil homoafetivo ao mesmo tempo em que defende tal suposta “proibição”. Fica evidente a
arbitrariedade de seu pensamento, que, por isso, não pode ser aceito como válido.
Assim, se nem a doutrina nem a jurisprudência trazem uma correlação lógico​-racional entre a
discriminação jurídica que defendem e o critério de discriminação por elas erigido, então é
flagrantemente inconstitucional a proibição do casamento civil homoafetivo por afrontar o preceito
isonômico.
Aponte-se uma questão que é totalmente ignorada por muitos daqueles que são contrários a esta tese:
cabe aos que pretendem a discriminação provar a sua pertinência, tendo em vista que a igualdade de
tratamento é a regra, ao passo que a diferenciação é a exceção. Em outras palavras: são os opositores
do casamento civil homoafetivo que pleiteiam por uma discriminação, donde são eles que estão
obrigados a provar a pertinência lógico-racional da mesma. Contudo, milênios de pregação homofóbica
institucionalizaram o preconceito contra homossexuais no pensamento social, donde grande parte da
sociedade tornou-se contrária à concessão da igualdade jurídica aos casais homoafetivos. Isso obriga os
defensores da isonomia, como este autor, a elaborarem trabalhos demonstrando a inexistência de
motivação razoável que justifique a discriminação de homossexuais em relação a heterossexuais quando
o ônus de argumentação, em verdade, é daqueles que pleiteiam pelo tratamento diferenciado, como os
opositores do reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo. Ou seja, quem
tem de apresentar provas são os opositores ao casamento civil homoafetivo: eles têm que demonstrar a
necessidade da proibição do mesmo, assim como da união estável. Como não o fazem, o entendimento
jurídico correto é aquele segundo o qual a mesma lei deve ser aplicada a todos, no sentido de que, como
a lei permite o casamento civil, então deve este ser permitido a todos, independentemente da orientação
sexual e da pessoa para quem se direciona o seu amor familiar.
Isso foi reconhecido em todos os países cujos Judiciários declararam a inconstitucionalidade da
proibição ao casamento civil homoafetivo. Ou seja, impuseram aos Estados respectivos que
apresentassem uma fundamentação lógico-racional que justificasse a referida discriminação e, como
estes Estados não conseguiram fazê-lo, declararam aquela inconstitucionalidade.
Veja-se, assim, o caso no qual a Suprema Corte da África do Sul83 declarou tal
inconstitucionalidade do não reconhecimento do casamento civil homoafetivo, após refutar as
argumentações trazidas pelo Estado para tentar se justificar:

Justificação
(110) Tendo aceito que a necessidade de um grau apropriado de respeito aos conceitos
tradicionais de casamento não constitui, nos termos da lei, uma barreira para a defesa dos
direitos constitucionais dos casais formados por pessoas do mesmo sexo, uma ulterior questão
surge: houve demonstração da justificação exigida pela seção 36 da Constituição84 para a violação
da igualdade e da dignidade desses casais? O Estado fez a mera alegação em suas razões escritas
que havia justificação, sem avançar em considerações diferentes daqueles por ele já referidas em
relação à injusta discriminação. O Sr. Smyth, por outro lado, devotou considerável atenção ao
argumento de que existia justificação para a discriminação mesmo se ela tivesse um duro impacto
nos casais formados por pessoas do mesmo sexo. Seu argumento central era que o propósito da
limitação dos direitos dos casais formados por pessoas do mesmo sexo era a manutenção do
casamento como um conhecido pilar da sociedade, e para proteger as crenças religiosas de muitos
Sul-Africanos. A Aliança do Casamento similarmente defendeu que qualquer discriminação à qual
casais formados por pessoas do mesmo sexo estivessem sujeitos era justificável sob o fundamento
de que a exclusão dos casais formados por pessoas do mesmo sexo do casamento era destinada a
proteger e assegurar a existência e a vitalidade do casamento como uma importante instituição
social. Há consequentemente duas proposições inter-relacionadas colocadas como justificativas
que precisam ser consideradas. A primeira é que a inclusão de casais formados por pessoas do
mesmo sexo iria abalar instituição do casamento. A segunda é a de que essa inclusão iria ofender e
impor-se sobre fortes suscetibilidades religiosas de certos setores do público. (111) A primeira
proposição foi enfrentada por pelo Juiz Ackerman em Home Affairs. Referindo-se à possível
justificação relacionada à exclusão de conviventes do mesmo sexo dos benefícios concedidos aos
casais casados pela lei de imigração, ele afirmou: “Não há interesse no outro lado que entre no
processo de ponderação (para justificação). É verdade... que a proteção à família e à vida familiar
em relacionamentos convencionais entre cônjuges é um importante objetivo governamental, mas a
extensão para a qual isso poderia ser feito jamais seria limitada ou afetada se conviventes do
mesmo sexo fossem incluídos de forma apropriada sob a proteção dessa (seção).” As mesmas
considerações se aplicam em relação à permissão de casais formados por pessoas do mesmo sexo
usufruíssem dos benefícios aliados às responsabilidades que a lei do casamento proporciona aos
casais heterossexuais. Garantir acesso aos casais formados por pessoas do mesmo sexo não iria
de forma alguma atenuar a capacidade de casais heterossexuais de se casarem na forma que eles
desejarem e de acordo com os dogmas de suas religiões. (112) A segunda proposição é baseada na
assertiva derivada de particulares crenças religiosas segundo as quais permitir que casais formados
por pessoas do mesmo sexo ingressassem na instituição do casamento iria desvalorizar aquela
instituição. Qualquer que seja a sua origem, objetivamente falando esse argumento é de fato
profundamente degradante de casais formados por pessoas do mesmo sexo, e inconsistente com a
exigência constitucional que todos sejam tratados com igual consideração e respeito. (113)
Conquanto fortes e sinceras as crenças subjacentes à segunda proposição possam ser, essas crenças
não podem, por meio do Estado-lei, ser impostas sobre toda a sociedade e de uma forma que
negue os direitos fundamentais àqueles negativamente afetados. A assertiva expressa ou implícita
segundo a qual trazer os casais formados por pessoas do mesmo sexo sob a proteção da lei do
casamento iria macular aqueles já abrangidos por esta proteção só pode ser baseada em um
prejulgamento, ou preconceito contra a homossexualidade. Isso é exatamente o que a seção 9 da
Constituição [isonomia] protege contra. Pode até ser que aquelas pressuposições negativas sobre a
homossexualidade ainda estejam largamente imiscuídos em certos setores da nossa sociedade. A
ubiquidade do preconceito não pode validar sua legitimidade. Como o Juiz Ngcobo disse em
Hoffmann: “O preconceito nunca pode justificar uma discriminação injusta. Este país emergiu
recentemente de um preconceito institucionalizado. Nossos estudos legais estão repletos de casos
nos quais o preconceito foi levado em consideração na negativa de direitos que hoje nós
consideramos como básicos. Nossa democracia constitucional entrou em uma nova era – é uma
era caracterizada pelo respeito à dignidade humana por todos os seres humanos. Nessa era,
preconceito e estereotipização não têm vez. Realmente, se como uma nação nós pretendemos
atingir o ideal de igualdade que nós estampamos na nossa Constituição, nós nunca deveremos
tolerar o preconceito, seja direta ou indiretamente. (...)” Eu concluo, portanto, que os argumentos
ofertados a amparar a justificação [da proibição do casamento civil homoafetivo] não podem ser
aceitos. (...)

Dessa forma, tem-se por coerente com o atual ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade
jurídica do casamento civil homoafetivo, uma vez que é inconstitucional a suposta restrição contida no
art. 1.514 do CC/200285, que possibilitaria apenas o casamento civil entre pessoas de sexos diversos, na
hipótese de se considerar a validade da teoria das “proibições implícitas” em nosso Direito, com o que,
data maxima venia, não concordo.
Por fim, uma observação: afirmo pela inconstitucionalidade do art. 1.514 do CC/2002 caso se
considere que este traria uma “proibição implícita” ao casamento civil homoafetivo. Poderia, com isso,
surgir a preocupação de dita declaração de inconstitucionalidade expurgar o regime jurídico do
casamento civil do ordenamento jurídico e, portanto, a declaração da inconstitucionalidade trazer uma
situação ainda mais perniciosa do que a existente (pois se homossexuais têm direito a se casar,
obviamente heterossexuais também o têm). Contudo, esse é um falso-problema, pois, muito embora dito
dispositivo traga um conceito legal de casamento civil, é de se notar que inexistia dispositivo similar no
Código Civil de 1916, o que prova ser irrelevante um “conceito legal” de casamento civil para que o
mesmo continue existindo juridicamente. Afinal, todos os contornos e as consequências do mesmo estão
reguladas nos dispositivos legais subsequentes.
Por outro lado, todos sabem muito bem o que é um casamento civil: a união amorosa entre duas
pessoas que assumem reciprocamente direitos e obrigações oriundos de normas cogentes – e que o fazem
formalmente, de papel passado. Isso evidencia que a declaração da inconstitucionalidade do dispositivo
que traz dita definição legal não trará nenhum prejuízo aos cidadãos, que poderão continuar se casando
sem nenhum problema.
De qualquer forma, para evitar inconvenientes, poder-se-ia declarar a inconstitucionalidade do não
reconhecimento do casamento civil homoafetivo por meio das técnicas da interpretação conforme a
Constituição ou da declaração de nulidade sem redução de texto, técnicas de controle de
constitucionalidade que mantêm o dispositivo impugnado em questão e determinam qual interpretação é
ou não (respectivamente) constitucional. O tema será tratado em capítulo próprio.

4.1 Da ação judicial necessária ao casamento civil homoafetivo


Na primeira edição desta obra afirmou-se que, em que pese todo o exposto até o momento, era
notório que os Cartórios competentes se recusavam a celebrar o casamento civil homoafetivo, adotando a
interpretação proibitiva, flagrantemente inconstitucional, que se acabou de expor, razão pela qual se
afirmou que o casal homoafetivo encontrava-se obrigado a ingressar com uma ação declaratória de
possibilidade jurídica de casamento civil pelo procedimento ordinário. Nessa ação86, afirmou-se que
além de serem demonstrados os pressupostos de validade do casamento, deve-se demonstrar,
primeiramente, a possibilidade jurídica do pedido por meio da interpretação extensiva ou da analogia,
por força dos princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da promoção do bem-estar de
todos, da laicidade estatal e da liberdade de consciência. Nesse caso, apontou-se que se deve pleitear
pela aplicação de uma interpretação conforme a Constituição, segundo a qual a única interpretação
válida do art. 1.514 do CC/2002, assim como de todos os outros dispositivos atinentes à matéria, é
aquela em que não se proíbe o casamento civil homoafetivo, sendo absolutamente necessária a aplicação
da interpretação extensiva ou da analogia.
Por outro lado, como pedido alternativo, para o caso de não ser aceita tal tese pelo Judiciário, e este
entender que haveria uma descabida “proibição implícita” ao casamento civil homoafetivo, afirmou-se a
necessidade de se requerer a declaração incidental de inconstitucionalidade do disposto nesses textos
legais, considerando-se que o sistema pátrio de controle de constitucionalidade possui tanto elementos de
controle difuso como de controle concentrado, sendo assim perfeitamente possível a declaração de
inconstitucionalidade por qualquer juiz, e não apenas pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo porque a
eficácia da sentença que declarar a citada inconstitucionalidade terá apenas eficácia inter partes87.
Apontou-se, ainda, que a ação deve ser “declaratória de possibilidade jurídica”, porque o juiz de
Direito não poderia simplesmente constituir o par no estado de casados, tendo em vista que o Código
Civil prevê uma série de formalidades preliminares ao matrimônio civil, como, entre outras, a expedição
de proclamas com a abertura de prazo para objeções. Assim, o magistrado, em sua sentença, determinará
que o Cartório de Registro Civil competente aceite o pedido do casal e inicie os trâmites legais para a
realização do casamento civil, da mesma forma como atualmente age com os casais heteroafetivos.
Recomendou-se, por fim, que se obtenha uma negativa oficial do Cartório de Registro Civil
competente para que não haja o risco de adotar um equivocado entendimento de que não teria sido
comprovado o interesse de agir (a pretensão resistida estatal) – o que constitui uma das condições da
ação (muito embora seja notória tal negativa estatal e fatos notórios não precisem ser comprovados, por
força do art. 334, I, do CPC, trata-se de medida salutar para evitar problemas).
Contudo, como veremos no item 9, abaixo, após a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277,
diversos juízes, em sua competência administrativa, autorizaram a conversão de união estável
homoafetiva em casamento civil e mesmo o casamento civil homoafetivo direto (sem prévia união
estável), o que é maravilhoso e torna desnecessária a ação judicial em questão, a qual só será necessária
caso o Cartório de Registro Civil e/ou o(a) Juiz(íza) respectivo(a) negue tal direito ao casal homoafetivo
em questão.

5. DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO UMA “SOCIEDADE DE AFETO”, MUITO MAIS


SIMILAR À UNIÃO HETEROAFETIVA DO QUE A UMA “SOCIEDADE DE FATO”
Seja qual for a tese a ser adotada, de possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo por
meio da interpretação extensiva ou da analogia, como decorrência dos princípios da isonomia, da
dignidade da pessoa humana88 e inclusive da interpretação conforme a Constituição, ou então pela
declaração da inconstitucionalidade do art. 1.514 do Código Civil ante a arbitrária discriminação
jurídica decorrente de sua interpretação restritiva, deve ficar claro o absoluto equívoco decorrente da
classificação das uniões homoafetivas como meras “sociedades de fato”. Isso porque, enquanto as
sociedades empresariais em geral (sejam elas “de fato” ou “de Direito”) têm como seu elemento
essencial a affectio societatis, que é a afinidade existente entre determinadas pessoas com o intuito
exclusivo de auferir lucro ou então de propiciar uma atividade filantrópica, as uniões homoafetivas,
assim como as heteroafetivas, são baseadas na affectio maritalis – que é o sentimento de amor profundo
que uma pessoa nutre por outra, amor este que visa a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura e que forma, por isso, a família contemporânea – em suma, no amor
familiar.
Como se vê, os elementos fundadores de uma e outra situação são completamente distintos,
impossíveis de serem confundidos, donde a união homoafetiva não poder ser equiparada a uma
“sociedade de fato”, mas à sociedade de afeto consagrada pelas leis do casamento civil e da união
estável, posto serem elas, se não idênticas, no mínimo análogas. Note-se que a união homoafetiva
assemelha​-se muito mais à união matrimonializada consagrada pelo Código Civil do que às “sociedades
de fato” do Direito Comercial. Assim, entendendo-se elas como situações distintas, a analogia que deve
ser aplicada é com o casamento civil, e não com as “sociedades de fato”.
Já se demonstrou neste trabalho que não existe diferença entre as uniões homoafetivas e as
heteroafetivas, e isso pelo simples fato de que não é o sexo de um dos pares e/ou a sexualidade deles que
deve ser levada em conta na comparação de ambas as situações, mas o sentimento que uma pessoa sente
pela outra, a saber o amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, donde é aplicável a interpretação extensiva para possibilitar o
casamento civil homoafetivo. Afinal, o casamento civil e a união estável versam sobre uniões amorosas,
sendo a união homoafetiva possuidora do mesmo amor existente na união heteroafetiva. Mas, por outro
lado, caso se entenda que o sexo de um dos pares e/ou a sexualidade deles caracterizaria uma
“diferença”, com o que, data maxima venia, não concordo, então é inegável que se trata de situações
análogas, visto que baseadas no mesmo elemento essencial, que é aquele amor que forma a entidade
familiar juridicamente protegida, donde é aplicável a analogia para possibilitar o casamento civil
homoafetivo89.
O que se quer exprimir com estas colocações é que, caso se considere que as uniões homoafetivas
não seriam idênticas às heteroafetivas, então é inafastável o reconhecimento de que ambas as situações
são baseadas no mesmo elemento essencial, a saber a affectio maritalis, razão pela qual merecem
aquelas o mesmo tratamento jurídico concedido a estas, como decorrência lógica do princípio da
igualdade constitucionalmente consagrado.

6. DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO DE CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO


A possibilidade jurídica do pedido consubstancia-se pelo fato de ser o pleito formulado admissível
no ordenamento jurídico pátrio, ainda que tal admissibilidade se dê em abstrato. Ou seja, há dois tipos de
pedidos juridicamente possíveis: aquele que a lei expressamente permite e aquele que é implicitamente
permitido pelo ordenamento jurídico. Quanto a esta segunda hipótese (permissão implícita), não pode
haver proibição legal expressa e deve o pedido ser possível por meio das técnicas hermenêuticas de
interpretação, como a interpretação extensiva e a analogia.
Aponte-se, ainda, que a permissão implícita é uma decorrência lógica dos princípios da
interpretação sistemática, da legalidade e da isonomia, pois, respectivamente: (i) em Direito nada se
interpreta de forma isolada e todos são iguais (ou pelo menos fundamentalmente iguais); (ii) ninguém é
obrigado a deixar de fazer algo senão em virtude de lei; e (iii) todos devem receber o mesmo tratamento
jurídico. Por outro lado, a ausência de “proibições implícitas” no Direito brasileiro não enseja a
proibição de permissões implícitas, em decorrência também do art. 5.º, II, da CF/1988, que proíbe a
existência daquelas. Ora, se ninguém está obrigado a deixar de fazer algo senão em virtude de lei, então
pode fazer tudo o que a lei não proíbe, donde está reconhecida a admissibilidade implícita dos atos não
expressamente proibidos. Por outro lado, mas sob o mesmo fundamento, se ninguém está obrigado a
deixar de fazer algo senão em virtude de lei, então só estará proibido de fazê-lo ou só terá expurgados os
efeitos jurídicos do ato praticado no caso em que texto normativo expresso assim o determinar, donde
está reconhecida a inadmissibilidade da “proibição implícita” e a admissibilidade da permissão
implícita. Trata-se do princípio da legalidade lata, que rege a vida dos particulares.
É esse o entendimento consagrado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acerca da
possibilidade jurídica do pedido, ou seja, de que há possibilidade jurídica do pedido sempre que não
haja proibição normativa expressa a tal pleito, ou, sob outro ângulo, só há impossibilidade jurídica do
pedido quando haja proibição normativa a tal pleito90. Essa a lógica que consagrou a virada da
jurisprudência do STJ para reconhecer a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva no REsp
820.475/RJ, DJe 06.10.2008, que pela primeira vez aplicou expressamente tal entendimento para
reconhecer o cabimento da analogia para reconhecer a possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva ao afirmar que “Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união
estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam,
convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois”, em que “Admite-se,
se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente
contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador homens ou duas
mulheres”, entendimento este reiterado no REsp 827.962/RS, DJe 08.08.2011, que peremptoriamente
afirmou que “É juridicamente possível pedido de reconhecimento de união estável de casal homossexual,
uma vez que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação explícita ao ajuizamento de demanda
com tal propósito. Competência do juízo da vara de família para julgar o pedido”.
Percebe-se, portanto, que, ao menos no que tange à possibilidade jurídica do pedido, o STJ
consagrou a máxima de Kelsen91, no sentido de que aquilo que não é expressamente proibido, tem-se por
juridicamente possível.
Em suma: se a lei não proíbe expressamente determinada conduta, então ela pode ser praticada. Da
mesma forma, se a lei não proíbe expressamente determinado regime jurídico a determinado grupo de
pessoas, então ele é aplicável a estas (como os regimes jurídicos do casamento civil e da união estável
aos casais homoafetivos).
Assim, para sintetizar o quanto exposto ao longo deste trabalho: considerando que inexiste
proibição legal e/ou constitucional para o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo; considerando
que a isonomia exige que os iguais ou fundamentalmente iguais recebam o mesmo tratamento jurídico;
considerando que o amor que vise à comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura é o elemento formador da família contemporânea; considerando que o amor familiar existente
nas uniões homoafetivas é idêntico ao que existe nas uniões heteroafetivas, sendo, no mínimo, situações
idênticas no essencial; considerando que é este amor que forma a entidade familiar juridicamente
protegida entre casais; considerando que a interpretação extensiva e a analogia são técnicas
hermenêuticas de integração do ordenamento jurídico que servem para estender o regime jurídico da
situação expressamente prevista para aquela que não foi citada pela lei, seja por se tratar de situações
absolutamente idênticas (no primeiro caso) ou idênticas no essencial (no segundo caso), como
decorrência da interpretação teleológica, da isonomia, da dignidade humana e da Teoria Tridimensional
do Direito; e considerando que a isonomia exige a aplicação da interpretação extensiva ou da analogia
quando for o caso, o mesmo ocorrendo com a interpretação conforme a Constituição; conclui-se que é
possível o casamento civil homoafetivo nos dias de hoje por meio da interpretação extensiva ou, no
mínimo, da analogia, como decorrência lógica da isonomia e da dignidade humana constitucionalmente
consagradas, normas constitucionais de eficácia plena que proíbem discriminações arbitrárias como a
hoje existente com a negação do direito ao casamento civil a casais homoafetivos.

7. DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL


PLEITEANDO PELO RECONHECIMENTO DO CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO
Merece ser aqui destacada a iniciativa do Procurador da República Dr. João Gilberto Gonçalves
Filho, que, em 18 de janeiro de 2005, ingressou com ação civil pública na qual requer o reconhecimento
legal do casamento civil homoafetivo perante o ordenamento jurídico brasileiro.
Nesta ação (cuja petição inicial tem 99 páginas), o Procurador da República, em síntese: a) parte da
premissa fundamental de que “o Estado Brasileiro não pode discriminar pessoas em razão de sua
orientação sexual”92, sendo tal entendimento inferido a partir do princípio da dignidade da pessoa
constitucionalmente consagrado; b) afirma que um Estado Democrático de Direito, que “garante a
inviolabilidade da vida privada como direito fundamental do indivíduo (artigo 5.º, X), não pode (...)
querer manipular os comportamentos íntimos dos seres humanos por um sistema de segregação, tratando-
os de forma diferente e discriminando-os no seu status jurídico apenas em virtude da opção sexual que
escolheram para si93 [especialmente quando veda quaisquer formas de discriminação, nos termos do art.
3.º, IV, da CF/1988]”; c) aduz que a suposta proibição do casamento civil homoafetivo é, na verdade, um
dogma cultural, no sentido de que essa proibição é considerada como certa pelo simples fato de ninguém
questioná-la e pairar a “sensação geral de que as coisas foram assim, são assim e vão ser sempre
assim”94; d) afirma que os arts. 1.517 e 1.565 do CC/2002 e o art. 226, §§ 3.º e 5.º, da CF/1988 devem
ser lidos por meio de interpretação sistemática com outros dispositivos constitucionais e
infraconstitucionais, no sentido de que não trazem eles uma suposta proibição ao casamento civil
homoafetivo, posto ser isso decorrência da interpretação sistemática desses dispositivos com os
princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente consagrados; e) ressalta
que “o próprio preâmbulo da Constituição Federal, que serve para orientar a interpretação de todos os
seus dispositivos, enfatiza o que o Estado Brasileiro destina-se a assegurar ‘a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social (...)’”95, o que não vem ocorrendo em relação
aos homossexuais, ante a não celebração do seu casamento civil; f) afirma que o Brasil fere a isonomia
quando proíbe os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, uma vez que “trata os cidadãos
[homossexuais] de forma diversa, sem que o critério de discriminação esteja apoiado numa relevante
razão lógica. Afinal, o bem jurídico tutelado com essa discriminação é apenas um padrão moral de
conduta, alicerçado sobre a ideia preconceituosa de que o homossexualismo é pecado. Não há problema
algum que as religiões pensem isso e divulguem essa ideia a seus fiéis, já que é admitida a liberdade de
crença religiosa; não há problema algum que as autoridades dos Três Poderes também pensem assim,
intimamente, já que fora garantida a liberdade de pensamento; contudo, o Estado Brasileiro, como pessoa
jurídica que não se confunde com suas autoridades, como instituição que deve velar pelo igual tratamento
dispensado a seus cidadãos, não pode valer-se de um código de ética moral para discriminá-los. A partir
do momento em que vivemos num Estado de Direito, sendo separado de qualquer religião, que preza
pelas liberdades individuais, cabe-lhe abrir os braços para o diferente, com tolerância e inclusão”96; g)
ressalta que a homossexualidade “não se contrapõe à ideia de família. A ideia de família deve sobrepor,
acima de tudo, cooperação, respeito e harmonia. Há tantas famílias de casais heterossexuais que não
têm isso: filhos consumidos pelas drogas, casais atordoados pela quebra do dever de fidelidade,
separações e divórcios que se multiplicam, brigas por dinheiro, abandono e desamparo. O álcool, a
miséria e a exaltação sem limites dos valores materialistas da nossa sociedade, que é explosivamente
consumista, ajudam a engrossar o caldo de desagregação da família, não só no Brasil mas no mundo
inteiro. De outra parte, há casais homossexuais, ainda não devidamente legalizados pelo Estado, que dão
um exemplo de fraternidade e harmonia: mantêm-se fiéis aos parceiros sexuais, dão o apoio necessário
na desgraça, na miséria e na doença, sabem falar e sabem ouvir, fazem da existência em comum uma
fortaleza de cooperação, sem gritos nem brigas, com amor e compaixão (...)”97; h) e, finalmente, aduz
que: “Se é objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, as pessoas devem ter liberdade para escolher seus parceiros sexuais sem que essa escolha
implique injustas restrições de tratamento por parte do aparato administrativo estatal. A solidariedade
pressupõe acolher e dar apoio às escolhas individuais, abrindo oportunidade a qualquer pessoa para que
possa concretizar o seu direito constitucional de ser feliz, mormente quando essas escolhas não
atrapalham em nada os direitos individuais das demais ou os direitos coletivos em geral, como é o caso
do casamento de homossexuais”98.
Como se vê, nessa ação o Procurador da República põe em prática muito do que se expôs no
presente trabalho. Ou seja: partindo do pressuposto de que a homossexualidade não constitui doença,
desvio psicológico, perversão nem nada do gênero, sendo uma das livres manifestações da sexualidade
humana ao lado da heterossexualidade, e de que o atual entendimento proibitivo do casamento civil
homoafetivo configura afronta à isonomia e à dignidade da pessoa humana constitucionalmente
consagradas, requer que o Poder Judiciário obrigue a União, os Estados e o Distrito Federal a
celebrarem o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, para que seja assim respeitada a
Constituição Federal no mister da igualdade entre homossexuais e heterossexuais.
Todavia, Gonçalves Filho se utiliza de alguns termos diversos dos utilizados nesta ação, quais sejam
a adoção do termo “homossexualismo” e a colocação da homossexualidade como uma “opção” do
indivíduo. Quanto ao termo utilizado, em que pese seu uso, o Procurador da República deixa claro que
não considera o sentimento de amor por pessoas do mesmo sexo uma doença, inclusive deixando isso
expresso em sua petição inicial. Por outro lado, apesar de colocar o autor da ação a homossexualidade
como uma “opção” do indivíduo (embora use tal termo de forma sinônima à expressão “orientação
sexual”), o que é um equívoco, sua proposição jurídica é igualmente válida. Isso porque, sendo a
característica em debate (qualquer que seja) uma “opção” ou algo “inerente” ao indivíduo, não pode o
Estado discriminar as pessoas detentoras de dita característica sem um fundamento lógico-racional que
justifique essa diferenciação com base no critério desigualador erigido, fundamento este que deve ainda
estar de acordo com o ordenamento constitucional pátrio, sob pena de afronta aos princípios da isonomia
e da dignidade da pessoa humana, nos termos já expostos neste trabalho.
Entre os pedidos dessa ação, o autor pleiteou a antecipação dos efeitos da tutela pretendida, no
sentido de possibilitar o casamento civil homoafetivo até o trânsito em julgado da decisão da ação. Como
se sabe, para o deferimento da antecipação dos efeitos da tutela é necessário que haja verossimilhança
das alegações (ou seja, fortes indícios de que a ação é procedente) e periculum in mora (que é
configurado pela perda da eficácia da decisão definitiva, caso seus efeitos não sejam concedidos no
momento pleiteado). Com relação à verossimilhança, ela existe, ante os termos dos princípios da
isonomia e da dignidade da pessoa humana, nos termos aqui e naquela ação expostos, e o contrário não
foi dito pelo juiz da ação. Contudo, o periculum in mora não foi reconhecido pelo magistrado, razão pela
qual não foi deferida a antecipação de tutela pleiteada. Na petição inicial, o Procurador da República
expôs que a longa espera pelo julgamento definitivo da ação tornaria impossível remediar a infração ao
direito difuso dos homossexuais que se veem hoje impossibilitados de casar até que tal decisão definitiva
seja proferida. Com outra visão, o magistrado entendeu que esse tipo de decisão somente deve ser
deferida definitivamente, para ser resguardada a ordem social e a segurança jurídica, que no seu entender
restariam prejudicadas no caso de a sentença julgar improcedente a ação (o que resultaria na anulação de
inúmeros casamentos realizados até este momento).
Realmente, era difícil a concessão da antecipação dos efeitos da tutela nesse caso. Isso porque, por
maior que seja a verossimilhança das alegações (que efetivamente existe), o periculum in mora não se
afigura, porque os homossexuais que nunca puderam se casar não terão nenhum prejuízo com a
continuidade dessa proibição. O direito deles resta violado com a proibição, não há dúvida, mas sua
situação não piorará com a espera pela decisão definitiva da ação: apenas continuará como está (o que é
distinto no que tange à união estável, na medida em que é uma situação fática que, finda, deve ensejar a
meação do patrimônio amealhado na constância da união, o que causa um prejuízo efetivo àquele que não
tem a referida divisão patrimonial após o término da união estável).
Na primeira edição desta obra, afirmamos que, sem adentrar profundamente no mérito dessa negativa
da antecipação de tutela pleiteada, este autor tinha a certeza de que um julgamento imparcial, neutro e
despido de quaisquer preconceitos99 deveria julgar totalmente procedente a referida ação civil
pública em seu mérito, sob pena de afronta aos preceitos constitucionais explicitados, ante tudo o que se
falou neste trabalho e na petição inicial daquele processo, mesmo porque todas as contestações
apresentadas neste processo tentam justificar a proibição do casamento civil homoafetivo por meio dos
pontos devidamente impugnados neste trabalho em capítulo próprio (adiante): ausência de lei expressa
permissiva (o que se resolve pela interpretação extensiva ou analogia); ausência de capacidade
procriativa (requisito inexistente, pois não consta dos taxativos impedimentos matrimoniais do art. 1.521
do CC/2002, da mesma forma que não se proíbe o casamento civil entre heterossexuais estéreis); e
“teoria da inexistência” (que não passa de pura invenção doutrinária, sem qualquer embasamento legal
que a fundamente, que se configura como forma de discriminar e de burlar a regra segundo a qual não há
nulidade sem texto , que precisa, assim, respeitar os ditames da isonomia).
Ademais, foi levantada a questão de que o casamento civil seria um “ato administrativo” do Estado,
que seria regido, assim, pelo princípio da legalidade estrita (pelo qual só se pode fazer o que a lei
permite de forma expressa). Contudo, essa posição é evidentemente equivocada, pois a legalidade estrita
existe para limitar a atuação do administrador público, e não dos direitos dos cidadãos. Assim, como o
casamento civil é um direito dos cidadãos, e não do Estado, é ele regido pelo princípio da legalidade
lata, donde a ausência de menção legislativa expressa em nada impede o casamento civil homoafetivo
pela interpretação extensiva ou pela analogia.
Outrossim, aventou-se que a mera existência do Projeto de Lei 1.151/1995, que visa regular a “união
civil” (denominada “parceria civil registrada”) entre casais homoafetivos impediria o reconhecimento da
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo. Todavia, essa posição é igualmente equivocada.
Com efeito, apesar de a justificativa de dito projeto de lei não o equiparar ao casamento civil, isto não
impede que haja uma concomitância entre um e outro. Em outras palavras, nada impede que exista tanto a
parceria civil registrada quanto o casamento civil. Uma prova disso é o que ocorre na França desde
1999. Foi aprovado naquele ano o denominado “Pacto Civil de Solidariedade”, que reconhece uniões
amorosas que não são consagradas pelo casamento civil. Apesar de ter sido claramente criado para
albergar as uniões homoafetivas, é de se ressaltar que é possível tanto a heterossexuais quanto a
homossexuais. Nesse sentido, para a surpresa geral, apesar da óbvia aceitação desse modelo pela
comunidade homossexual francesa, a maioria das pessoas que dele se utiliza é formada por casais
heteroafetivos. Como é de notório conhecimento e já foi citado neste trabalho, a doutrina do Direito das
Famílias ainda está muito longe de chegar a um consenso sobre a natureza jurídica do casamento civil:
uns dizem que é um contrato, outros dizem que é uma instituição, e outros ainda dizem que é um misto de
contrato e instituição. Sem voltar ao mérito dessa discussão, que é irrelevante para os limites do
presente trabalho, é seguro afirmar que o Pacto Civil de Solidariedade francês (assim como o nosso
Projeto de Parceria Civil Registrada) nada mais é do que uma vertente da teoria que consagra o
casamento civil como um contrato. Apesar de não ser equiparado ao casamento civil (pois garante menos
direitos do que este), nada mais é do que um contrato do Direito Obrigacional que rege a vida pessoal de
um casal, assim como faz o casamento civil100.
Destaque-se, ainda, que apesar de não ser permitido que uma pessoa que esteja sob a égide do Pacto
Civil de Solidariedade possa se casar, tanto o PACS quanto o casamento civil são regimes jurídicos
disponibilizados a heterossexuais, sendo que a existência de um não implica a impossibilidade da
existência de outro – o que será o caso da “Parceria Civil Registrada”, caso o projeto de lei em questão
seja aprovado (pois proíbe que pessoas que não sejam solteiras firmem dito contrato – assim como
aquelas que já o tenham firmado com outra pessoa). Assim, resta equivocada a tese da impossibilidade
de existência concomitante da parceria civil registrada e do casamento civil, visto que tais regimes
jurídicos não são excludentes um do outro, como o exemplo francês nos demonstra.
Aponte-se, por oportuno, que este autor atua nesse processo como advogado de duas associações de
defesa dos direitos dos homossexuais que figuram como assistentes do Ministério Público Federal, ao
lado do Dr. Fernando Quaresma de Azevedo (que, em verdade, é o advogado dessas associações e
gentilmente substabeleceu-me, com reserva de iguais, os seus poderes, naquele feito). Dessa forma,
apresentamos uma manifestação sobre as contestações, com base em nosso direito de petição
constitucionalmente assegurado (art. 5.º, XXXIV, alínea “a”, da CF/1988) rechaçando as citadas teses
defensivas apresentadas pelos réus daquela ação, por meio da explicitação do entendimento
contemporâneo sobre a família e da demonstração da possibilidade jurídica do casamento civil
homoafetivo pela interpretação extensiva ou pela analogia, como decorrência dos princípios da
igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Como dito acima, afirmei na primeira edição desta obra que aguardava por uma sentença de
procedência da ação, contudo, não foi o que ocorreu. Redistribuído o processo para a Justiça Federal da
Comarca de São Paulo por força do acolhimento de exceção de incompetência, o magistrado que recebeu
a ação primeiramente disse que deveria aguardar a decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da
ADI 4.277, que versavam sobre o reconhecimento da união estável homoafetiva ou então (o que, para
efeitos práticos, gera o mesmo resultado) o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar
com igualdade de direitos relativamente à união estável heteroafetiva. Julgadas procedentes as ações
pelo STF, no dia 05.05.2011, referido magistrado houve por bem julgar improcedente a demanda.
Embora afirmando que a decisão do Supremo, que reconheceu a união homoafetiva como união estável
ou, caso se prefira, como entidade familiar autônoma com igualdade de direitos relativamente à união
estável heteroafetiva, gera o direito de casais homoafetivos terem acesso ao casamento civil mediante
conversão de sua união estável homoafetiva em casamento civil, uma vez que tanto a lei quanto a
Constituição determinaram a conversibilidade da união estável em casamento civil (art. 226, § 3.º, parte
final, da CF/1988, e art. 1.726 do CC/2002), afirmou que o reconhecimento do direito de casais
homoafetivos ao casamento civil direto (sem prévia união estável) implicaria a necessidade de
declaração de inconstitucionalidade de dispositivos do Código Civil, o que não seria possível em sede
de ação civil pública pelo controle concentrado de constitucionalidade ser de competência do STF, que
extinguiu o processo, sem resolução de mérito, por tal motivo.
Sobre tal decisão, algumas considerações: (i) não deveria o magistrado ter condicionado sua
sentença à decisão do STF, pois além de a ação civil pública em questão versar sobre casamento civil e
as ações perante o STF sobre união estável, o referido magistrado não era obrigado a aguardar a decisão
do STF neste caso; (ii) equivocada sua compreensão sobre necessidade de declaração de
inconstitucionalidade abstrata de artigos do Código Civil para a procedência da ação, seja pelo
cabimento de interpretação extensiva ou analogia para reconhecer a possibilidade jurídica do casamento
civil homoafetivo (tese principal deste trabalho), na medida em que o pedido da ação era de aplicação de
interpretação conforme a Constituição para se reconhecer o direito de casais homoafetivos ao casamento
civil; (iii) ou, alternativamente, por ser possível a declaração de inconstitucionalidade incidental em
sede de ação civil pública, consoante melhor doutrina e jurisprudência acerca do tema – o objeto da ação
não era a inconstitucionalidade abstrata de nenhuma norma, mas o reconhecimento do direito de casais
homoafetivos ao casamento civil, donde possível a declaração da incidental de inconstitucionalidade da
(suposta) proibição implícita ao casamento civil homoafetivo para, assim, possibilitar a procedência da
ação para se reconhecer o direito de casais homoafetivos ao casamento civil. Se é admissível a
declaração incidental de inconstitucionalidade em ações individuais, também deve sê-lo em ações
coletivas, ante a ausência de proibição normativa que impeça tal exegese.
Só resta então esperar para ver se os acórdãos dos Tribunais que vierem a apreciar a ação terão a
coragem de aplicar os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana nesse caso, ou se
continuarão a relegar, por preconceito, as uniões homoafetivas a um segundo plano do contexto social de
uma forma inequivocamente arbitrária, ou seja, ilógica e irracional.

8. SENTENÇA GAÚCHA AFIRMANDO SEREM O CASAMENTO E A UNIÃO ESTÁVEL


APLICÁVEIS AOS CASAIS HOMOAFETIVOS
Em decisão inédita, o Juiz Roberto Arriada Lorea, da 2.ª Vara da Família e Sucessões da Comarca
de Porto Alegre, julgou procedente a ação de dissolução de união estável homoafetiva (Processo
001.181.480-80) formulada pelos autores.
A Justiça Gaúcha se notabilizou por ser vanguardista no que tange à defesa dos direitos
homoafetivos, já sendo comum o reconhecimento da união estável homoafetiva (por analogia) naquele
Estado. Assim, o fato inédito desta decisão foi a declaração do magistrado no sentido de que o
casamento civil (assim como a união estável) é aplicável inclusive a homossexuais, sendo assim vedada
a discriminação por orientação sexual.
Em sua decisão, afastou o juiz a preliminar de mérito do Ministério Público, que alegava que a atual
redação do art. 226, § 3.º, da CF/1988 vedaria a união estável homoafetiva e que haveria falta de
embasamento legal que fundamentasse entendimento diverso, entendimento este que poderia acarretar
“preocupantes” reflexos fáticos. Todavia, como o Ministério Público não explicitou quais seriam esses
“preocupantes” reflexos fáticos, o magistrado descartou essa alegação, ante a ausência de provas acerca
da pertinência da discriminação pretendida por aquele órgão. Ademais, ressaltou o juiz o entendimento
trazido pela Associação Americana de Antropologia101, que em resposta às declarações feitas pelo
presidente estadunidense George W. Bush, contrário ao casamento civil homoafetivo, atestou que:

Os resultados de mais de um século de pesquisas antropológicas sobre unidades domésticas,


relações de parentesco e famílias, em diferentes culturas e ao longo do tempo, não fornecem
qualquer tipo de evidência científica que possa embasar a ideia de que a civilização ou qualquer
ordem social viável dependa do casamento ser uma instituição exclusivamente heterossexual. Ao
contrário, as pesquisas antropológicas fundamentam a conclusão de que um imenso leque de tipos de
famílias, incluindo famílias baseadas em parcerias entre pessoas do mesmo sexo, podem contribuir
na promoção de sociedades estáveis e humanitárias.

Ademais, assevera o magistrado que a redação do art. 226, § 3.º, da CF/1988 não proíbe, em nenhum
momento, que a união estável homoafetiva possa ser protegida pelo ordenamento jurídico, tratando-se tal
questão de lacuna normativa – que, como atesta, de acordo com o art. 4.º da LINDB, deve ser resolvida
pela analogia, pelos costumes e pelos princípios gerais do Direito. Assim, ante a ausência de proibição
expressa na lei, aliada ao princípio da igualdade e ao fato de que deve o Direito interagir com as demais
ciências (que atestam o fato de serem a homossexualidade e a bissexualidade tão normais quanto a
heterossexualidade, conforme amplamente demonstrado neste trabalho), aduz o magistrado que não
merece acolhimento a tese de impossibilidade jurídica do pedido levantada pelo Ministério Público.
Com relação ao mérito, o Ministério Público alegou que não haveria provas suficientes da união
estável dos ex-parceiros homossexuais, argumento este afastado pelo magistrado ante as provas
constantes dos autos (discussão esta que não interessa ao presente trabalho, que aborda a questão da
possibilidade jurídica do pedido, reconhecida pelo magistrado que julgou tal ação).
Mas deve ser aplaudida uma luz no fim do túnel: o magistrado Roberto Lorea Arriada. Já em 2005
proferira sentença que, além de reconhecer a união estável homoafetiva, afirmou que o próprio casamento
civil é possível de ser contraído por homossexuais, por força do princípio da igualdade. O autor é
peremptório: “... à luz do artigo 3.º, inciso IV, da Constituição Federal, conforme fundamentação supra,
tenho que (não apenas a união estável, mas também) o casamento, nos moldes como atualmente regulado
pelo legislador, é um instituto passível de ser acessado por todas as pessoas, independentemente de sua
orientação sexual...”102. Em decisão posterior, afirmou o magistrado com perfeição que: “O casamento
civil é um direito humano – não um privilégio heterossexual”103.
Como se pode ver, nessa sentença o magistrado aplicou na prática parte daquilo que se defende neste
trabalho, qual seja a equiparação dos direitos dos casais homoafetivos em relação aos heteroafetivos,
uma vez que o contrário configura afronta ao princípio da isonomia. Por mais que a ofensa à dignidade
humana constitucionalmente protegida pela não aplicação do ordenamento jurídico-familiar em
dissoluções de uniões homoafetivas não tenha sido referida pelo magistrado, a fundamentação deste é
suficiente para demonstrar a possibilidade jurídica do pedido de aplicação dos preceitos do Direito das
Famílias às uniões homoafetivas.
Assim, espera-se que todos aqueles que vierem a julgar pedidos de casais homoafetivos pleiteando o
acesso ao regime jurídico do casamento civil tenham o mesmo entendimento, pois o contrário configurará
ofensa aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana e se “justificaria”, unicamente, em
razão do preconceito ainda existente quando se trata da homossexualidade.

9. DECISÕES JUDICIAIS QUE RECONHECERAM O DIREITO AO CASAMENTO CIVIL


HOMOAFETIVO APÓS A DECISÃO DO STF NA ADPF 132 E NA ADI 4.277
Como visto, na primeira edição desta obra dei muita ênfase à decisão proferida pelo juiz gaúcho
Roberto Lorea Arriada, na qual este, após reconhecer a possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva, afirmou, em obter dictum, que não só a união estável, mas também o casamento civil estão
à disposição de homossexuais e, portanto, de casais homoafetivos. A ênfase, que gerou a transcrição de
seu inteiro teor (aqui mantida, no tópico anterior), se deu porque, na época, era a única decisão de que
tive ciência que mencionava a possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo – até a notícia que
trouxe dito inteiro teor destacava: juiz dá base legal para casamento homossexual.
Por outro lado, após o histórico julgamento do STF acerca da ADPF 132 e da ADI 4.277, no qual
reconheceu o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas e aplicou a elas o regime jurídico da união
estável (reconhecendo-as, inclusive, no conceito constitucional de união estável, ainda que por analogia),
diversas decisões reconheceram o direito de casais homoafetivos converterem suas uniões estáveis em
casamentos civis e mesmo se casarem diretamente, sem necessidade de prévia união estável. Com efeito,
o ponto comum da fundamentação de tais decisões104 encontra-se no fato de que, tendo o STF
reconhecido a união homoafetiva como união estável e sendo um dos efeitos da união estável a
possibilidade de sua conversão em casamento civil por força da parte final do art. 226, § 3.º, da CF/1988
e do art. 1.526 do CC/2002, tem-se por juridicamente possível – e obrigatória – a possibilidade de
conversão de união estável homoafetiva em casamento civil. Ainda que se prefira entender
(equivocadamente) que o STF não teria reconhecido a união homoafetiva como união estável, mas como
entidade familiar autônoma com igualdade de direitos relativamente à união estável heteroafetiva,
referida igualdade demanda pela possibilidade de conversão da entidade familiar homoafetiva em
casamento civil, sob pena de se afrontar referida igualdade. Ademais, outros juízes reconheceram,
inclusive, a possibilidade do casamento civil homoafetivo de maneira direta, o que foi referendado,
inclusive, pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.183.378/RS, explicitado no
capítulo anterior, o qual, em síntese, afirmou que os dispositivos legais que regulamentam o tema se
limitam a reconhecer o casamento civil entre o homem e a mulher sem, todavia, proibir o casamento civil
entre pessoas do mesmo sexo, donde juridicamente possível o pedido de casamento civil homoafetivo,
que deve ser reconhecido pela união homoafetiva configurar uma família conjugal, que é o objeto
valorativamente protegido pelo regime jurídico do casamento civil (e da união estável). Outras decisões
que permitiram o casamento civil direto a casais homoafetivos entenderam que, por isonomia
relativamente a casais heteroafetivos, se estes podem se casar diretamente (sem necessidade de prévia
união estável), aqueles também devem ter a si reconhecido tal direito.
Analisemos, assim, os fundamentos das decisões que reconheceram o direito ao casamento civil
homoafetivo após a decisão do STF na ADPF 132 e da ADI 4.277. Iniciemos pelas decisões que
deferiram o pedido de conversão de união estável homoafetiva em casamento civil.
O juiz Fernando Henrique Pinto, de Jacareí/SP, foi o primeiro a realizar a conversão de união
estável homoafetiva em casamento civil, em decisão proferida em 27.06.2011, sob o fundamento de que:
(i) o maior e mais repetido princípio constitucional é a igualdade; (ii) a Constituição consagra a
dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III) e veda preconceitos e quaisquer formas de discriminação (art.
3.º, inc. IV); (iii) a Constituição demanda pela conversão da união estável em casamento civil; (iv) o art.
226, § 5.º, ao afirmar a igualdade de direitos entre homens e mulheres na sociedade conjugal, não declara
que o casamento civil se daria necessariamente entre homem e mulher, até porque sociedade conjugal
não é o mesmo que casamento civil, já que a primeira sempre pôde ser dissolvida pela separação
judicial e o segundo somente pelo divórcio;105 (v) a ADPF 132 e a ADI 4.277 pediam o reconhecimento
da união homoafetiva como entidade familiar com extensão de direitos e deveres dos companheiros às
uniões homoafetivas [e tais ações foram julgadas procedentes pelo STF]; (vi) os prováveis entraves a
esse entendimento derivam de posições religiosas que não podem ser acolhidas pelo Brasil ser um
Estado Laico (art. 19, inc. I, da CF/1988), em que o Estado não é vinculado a religião nenhuma, o que é
considerado positivo diante de alguns dogmas religiosos se chocarem contra princípios e garantias da
Constituição; (vii) a discriminação contra homossexuais decorre, ainda, de equívocos de origem psíquica
sobre a homossexualidade, por considerá-la uma “opção” do indivíduo, o que se afirmou equivocado,
pois ninguém escolhe o sexo por quem sente atração, tratando-se de característica individual dos seres
humanos tão independente de sua vontade quanto a cor do cabelo, da pele, o caráter, as aptidões etc.;
(viii) a discriminação contra homossexuais também decorre do entendimento religioso segundo o qual o
casamento se destinaria à procriação, algo descabido em termos de casamento civil, já que “o motivo
maior da união humana é – ou deveria ser – o Amor”, inclusive pregado pela maioria das religiões
como valor e virtude máxima e fundamental; (ix) aqueles que se preocupam com o potencial
envolvimento de crianças e adolescentes na entidade familiar homoafetiva se esquecem que a falta de
planejamento familiar que gera crianças sem a menor condição de sustento e educação e os abomináveis
assassinatos ou abandonos destas em latas de lixo são diariamente protagonizados por casais formados
por pessoas de sexos opostos, ditos “normais” por sua heterossexualidade, bem como que o Brasil tem
situações de fato e de Direito muito mais graves para se preocupar do que com a vida de dois seres
humanos desejosos de paz e de felicidade ao seu modo, sem infringir direitos de ninguém; (x) em
17.05.2011, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma
resolução histórica destinada a promover a igualdade de todos os seres humanos sem distinção de
orientação sexual; (xi) por tais motivos, julgou procedente o pedido.
A juíza Junia de Souza Antunes, de Brasília/DF, também converteu união estável homoafetiva em
casamento civil em decisão proferida em 28.06.2011, relativa a processo no qual figuraram como
advogadas Maria Berenice Dias e Eliene Ferreira de Bastos, que fundamentaram o pedido no fato de o
tratamento constitucional destinado à família não fazer referência ao sexo de seus integrantes, bem como
no fato de a disciplina constitucional do casamento civil nada dizer acerca da identidade sexual dos
cônjuges, uma vez ausente qualquer proibição constitucional ou legal que impeça o tratamento igualitário
dos casais homoafetivos relativamente aos heteroafetivos, ao passo que obstar a conversão da união
estável homoafetiva em casamento civil configuraria discriminação por orientação sexual. A magistrada
julgou procedente o pedido de conversão sob o fundamento de que: (i) a decisão do STF em ações de
controle concentrado de constitucionalidade tem efeito vinculante e eficácia erga omnes, donde ausente
espaço para discricionariedade ou livre convencimento do magistrado; (ii) a decisão do STF no
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277 conferiu interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723
do CC/2002 “para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua,
pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade familiar’, entendida como sinônimo
perfeito de ‘família’. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e mesmas
consequências da união estável heteroafetiva”, donde referida decisão aboliu qualquer interpretação
que pretendesse diferenciar as relações homoafetivas das heteroafetivas, ressaltando que o instituto da
família abarca e protege ambas, uma vez que a união estável homoafetiva existe nos mesmos moldes da
união estável heteroafetiva; (iii) a ressalva do Ministro Lewandowski no sentido de que a integração
analógica em questão não abarcaria as prescrições legais “que exijam a diversidade de sexo para o seu
exercício, até que sobrevenham disposições normativas específicas que regulem tais relações” não foi
encampada pela conclusão da Suprema Corte, que ampliou o conceito de união estável para nele incluir
qualquer relação duradoura, pública e contínua, com o intuito de constituir família, independente do sexo
ou da orientação sexual do casal, destacando, para fundamentar tal conclusão, o voto do Ministro Fux no
trecho que afirma que nada distingue ontologicamente uma união estável heteroafetiva de uma
homoafetiva, de sorte a ambas merecerem o mesmo tratamento diante da inexistência de fundamento
válido ante a isonomia que justifique tratamento diferenciado entre ambas; (iv) a união estável não é um
gênero que se dividiria entre união estável homoafetiva e união estável heteroafetiva, pois não existem
espécies de união estável, que é um instituto uno de requisitos únicos, donde configurada relação
duradoura, pública e contínua com o intuito de constituir família, caracterizada estará a união estável,
seja ela formada por pessoas do mesmo sexo ou de sexos diversos, ou seja, “sem qualquer distinção em
relação à orientação sexual daqueles que a integram”; (v) todos os efeitos e consequências decorrentes
da união estável se aplicam a qualquer união pública, contínua e duradoura, com intuito de constituir
família, formada por duas pessoas, cediço que a possibilidade de conversão em casamento civil é uma
das consequências da união estável; (vi) a Constituição de 1988 conferiu status de autonomia e
independência à família relativamente ao casamento civil; (vii) persistem importantes diferenças entre a
união estável e o casamento civil, havendo diferenças nas relações pessoais, patrimoniais e sucessórias,
bem como quanto à prova da união [mais árdua na união estável, já que no casamento civil basta
apresentação da certidão de casamento], entre outros aspectos, já que, na medida em que o casamento
civil apresenta mais direitos [e facilidades] relativamente à união estável, efeitos estes, inclusive, mais
benéficos, resta evidente o interesse jurídico do pleito de conversão de união estável em casamento civil;
(viii) o casamento civil é um instituto eminentemente jurídico, a despeito de tradições culturais ou
religiosas relativas ao tema; (ix) citando artigo do autor deste livro,106 no sentido da
inconstitucionalidade do não reconhecimento do casamento civil homoafetivo por afronta aos princípios
da igualdade e da dignidade da pessoa humana perante a ausência de motivação lógico-racional que
justifique a discriminação de casais homoafetivos relativamente a casais heteroafetivos por conta
unicamente da orientação sexual e do sexo de um dos membros do casal (pois, se um deles fosse de sexo
oposto ao seu, não se pretenderia obstar seu casamento civil), ante os direitos negados (isonomia) e pelo
arbitrário menosprezo aos casais homoafetivos disso decorrente, que só serão verdadeiramente felizes se
puderem consagrar sua união amorosa pelo casamento civil [para aqueles que isto desejam], afirmou que
não se sustenta mais, após a decisão do STF, excluir os casais homoafetivos do direito ao casamento
civil; (x) um dos interesses do Estado em facilitar a conversão da união estável em casamento civil é
trazer segurança jurídica à família e à sociedade, o que não se obtém pela exclusão de qualquer entidade
familiar do instituto do casamento civil; (xi) o pleito de conversão de união estável homoafetiva em
casamento civil se justifica por força da interpretação conforme à Constituição atribuída pelo STF ao art.
1.723 do CC/2002, já que o referido reconhecimento se deu “segundo as mesmas regras e mesmas
consequências da união estável heteroafetiva”, visto que uma dessas consequências é a possibilidade de
conversão da união estável em casamento civil; (xii) por tais razões, julgou procedente o pedido.
No mesmo sentido, citando essa decisão, o juiz Josmar Gomes de Oliveira, também de Brasília/DF,
converteu união estável homoafetiva em casamento civil, citando os mesmos fundamentos, em decisão
proferida em 30.08.2011, e acrescentando que: (i) “reconhecida a união estável homoafetiva, não há
óbice à conversão daquela em casamento, em conformidade com o disposto no artigo 1.726 do Código
Civil” e que “Essa conformação jurisprudencial exalta o conceito contemporâneo de família assentado na
afetividade de seus integrantes, independentemente da formatação (heteroafetiva, homoafetiva,
matrimonial, monoparental, anaparental, pluraparental etc.)”, donde “mostrando-se legítimas as
pretensões das requerentes, na medida em que se apresentam conforme os preceitos constitucionais que
vedam a discriminação em razão do sexo e sobrelevam a dignidade da pessoa humana” e considerando
que “não estão presentes nenhum dos impedimentos [matrimoniais] relacionados no art. 1.521 do Código
Civil, bem como demonstrada a convivência pública, contínua e duradoura”, a procedência do pedido é
medida de rigor.
O juiz Clicério Bezerra e Silva, de Recife/PE, converteu união estável homoafetiva em casamento
civil em decisão proferida em 02.08.2011, pelos seguintes fundamentos: (i) o tema em discussão
transcende uma simples usurpação principiológica dos princípios da dignidade da pessoa humana, da
cidadania e dos direitos fundamentais à igualdade, liberdade e não discriminação, por resvalar na
própria matriz estruturante do Estado Republicado – a democracia, donde, em uma sociedade
democrática na qual prevalecem o pluralismo e a convivência harmônica dos contrários, não há espaço
para prevalência de normas jurídicas que conduzam a interpretações polissêmicas e/ou excludentes dos
direitos das minorias, “como se dá no bojo das normas que restringem a legitimação estatal às relações
puramente heteroafetivas” [se interpretadas de maneira puramente literal], cujo literalismo acabaria por
“estrangular a democracia e, via oblíqua, o próprio Estado Pluralista de Direito”, pois não mais se
admite, vencida a primeira década do século XXI, que seja negada a plenitude de direitos a uma parcela
significativa dos cidadãos sob torpes justificativas; (ii) um Estado Democrático de Direito é
incompatível com uma cidadania de segunda classe usurpadora da fruição de direitos e garantias
fundamentais a quase cidadãos ou meios cidadãos, “notadamente, o direito personalíssimo à livre
escolha sexual e à constituição de família com acesso direto e/ou indireto ao casamento”; (iii) o Brasil é
um Estado Laico ou não confessional, o que se consolidou desde a proclamação da República com a
separação entre Estado e Igreja (Decreto 119-A, de 17.01.1890), sendo sua premissa básica o
acolhimento de todos os segmentos da sociedade brasileira em uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social, consoante preconizado pelo preâmbulo constitucional; (iv) os
conceitos constitucionais comprovam o mais eloquente atestado de evolução democrática “na qual
preconceitos ancestrais, vertidos às minorias, dentre as quais se incluem os cidadãos homoafetivos,
sejam combatidos e extirpados do seio social”; (v) no presente caso temos dois cidadãos buscando a
pura e simples “progressão de uma sociedade conjugal ‘precária’ para um vínculo civil, com o fito de
obter a devida tutela estatal para a nova entidade familiar, a homoafetiva, no perfil das demais
constelações familiares – tidas como legítimas pela inteligência do ordenamento jurídico posto”; (vi)
temos aqui a consagração de uma marcha social que urge por um denso processo de revisão do
arcabouço jurídico brasileiro, “com vista a garantir o direito personalíssimo à livre orientação sexual e à
proclamação da legitimação ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar”, uma “marcha
de gente digníssima que se lança ao sol da liberdade, após décadas viventes sob o pálio sombrio da
discriminação e do medo (de origens externas e internas) e que parece ter ouvido um chamado audível da
autodeterminação e da busca da felicidade”, donde, diante de tal contexto, o Poder Judiciário, no
exercício de sua função de intérprete da lei, deve estar a isto atento, ciente de que a interpretação de
textos normativos nada mais é do que sua colocação no tempo [atual] ou sua integração à realidade
social, consoante lição de Peter Häberle; (vii) os dispositivos infraconstitucionais em questão
configuram normas de caráter procedimental tendentes a tornar efetivos os direitos constitucionalmente
assegurados; (viii) acurado procedimento hermenêutico, pautado em uma interpretação pluralista e aberta
dos dispositivos constitucionais que guardem correspondência com os princípios fundantes do Estado
Democrático de Direito, deve abolir do sistema jurídico dispositivos [e, acrescento, interpretações de
textos normativos] que constituam embaraço à plena fruição de direitos fundamentais pelos cidadãos,
donde o art. 226, § 3.º, da CF/1988 deve ser interpretado de forma abrangente, à luz de seu próprio
caput, que visa proteger a família, sendo que o conceito de família foi ampliado pela Constituição de
1988, cuja ratio de consagração jurídico-familiar da união estável foi a de “privilegiar a família
socioafetiva à luz da dignidade da pessoa humana”, com superação do ultrapassado modelo patriarcal e
hierarquizado de família do Código Civil de 1916 em prol de um sistema que alberga “múltiplas
formatações de entidades familiares que nele coexistem, desde que estas restem atadas com o laço
mais visceral que permeia as relações humanas – a afetividade”, donde imperiosa a inclusão na esteira
de entidades familiares dessa “nova modalidade de configuração familiar, mantida por pessoas do
mesmo sexo, haja vista, dentre outras razões já esposadas, que estas se fundam, igualmente, nos pilares
da afetividade”; (ix) não parece razoável “à luz da hermenêutica, das considerações históricas,
ideológicas, econômicas, políticas e sociais do Estado Brasileiro, que aos homoafetivos seja
resguardado, tão somente, o direito de ver[em] reconhecidas suas uniões, que, aprioristicamente, são
estáveis, nos requisitos e formas da lei”, por isto trazer “mitigações sérias aos direitos fundamentais dos
homoafetivos (igualdade, liberdade, intimidade, não discriminação, etc.)”, assim, se o Estado já previu a
possibilidade de conversão do precário vínculo de afeto (união estável) ao vínculo institucionalizado
(casamento civil) “em prol da verdadeira e mais abrangente segurança jurídica dos nubentes, no
atendimento aos seus direitos patrimoniais, previdenciários, sucessórios, de procriação, ação, etc.”,
então os arts. 1.723 e 1.726 do CC/2002 devem ser interpretados “de forma arqueável, a fim de trazer
maior robustez à pretensão dos homoafetivos em ver suas vidas e relações familiares albergadas e
reguladas pelas mesmas normas aplicáveis aos seus pares sociais, sem distinção ou discriminação de
qualquer espécie”, de forma a concretizarmos o catálogo de direitos fundamentais que vêm sendo negado
aos homoafetivos há décadas; (x) a decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, de
efeito vinculante e eficácia erga omnes, corrobora o entendimento supraesposado ao excluir do art. 1.723
do CC/2002 qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura
entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida como sinônimo perfeito de família, em
“Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e mesmas consequências da união
estável heteroafetiva”, visto que dita decisão reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo como
entidade familiar e lhes estendeu os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis,
“incluindo, aqui, o direito à conversão da união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento”;
(xi) “Os homoafetivos têm o direito à proteção do Estado às suas relações afetivas do mesmo modo
que os heteroafetivos” e “A questão interessa apenas aos nubentes que buscam a segurança do
ordenamento jurídico para proteção de sua relação afetiva”, consoante afirmado no parecer do Ministério
Público, da lavra da Dra. Fernanda Ferreira Branco, constante dos autos; (xii) por silogismo, afirmou a
premissa maior, segundo a qual o STF instituiu [rectius: reconheceu] uma nova entidade familiar – a
união homoafetiva –, equiparando-a à união estável em decisão de efeito vinculante e eficácia erga
omnes, a premissa menor, segundo a qual a Constituição determina que seja facilitada a conversão da
união estável em casamento civil, e a conclusão, de que, logo, à união homoafetiva também deve ser
facilitada a sua conversão em casamento civil, donde, por atendidos os requisitos legais e
procedimentais da legislação para tanto, julgou procedente o pedido que lhe foi formulado nesse sentido,
findando com célebre citação de Fernando Pessoa, segundo a qual o amor é que é essencial, o sexo é só
um acidente, pode ser igual ou diferente; o homem não é um animal, é uma carne inteligente.
O juiz Bruno Machado Miano, de Dracena/SP, converteu união estável homoafetiva em casamento
civil em decisão proferida em 04.08.2011, pelos seguintes fundamentos: (i) “Só é possível entender a
decisão de nossa Suprema Corte, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 132, tendo em mente – sempre – a interpretação sistemática
que os excelsos Ministros efetuaram ao analisar a regra do art. 226, § 3.º, da Constituição Federal,
cotejando-a com Princípios, Valores e Objetivos maiores e mais caros ao Estado Brasileiro, como o da
dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF); o da promoção do bem de todos, sem preconceitos de
sexo e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3.º, IV, CF); o da igualdade de todos perante a
lei (art. 5.º, caput, CF); e o da vedação de qualquer discriminação atentatória dos direitos
fundamentais (art. 5.º, XLI, CF)”; (ii) assim, “se os Ministros da Suprema Corte entenderam que a
expressão ‘entre o homem e a mulher’, constante no § 3.º do art. 226 da Constituição Federal, é
discriminatória, porque existentes, possíveis e válidas as uniões entre homem e homem bem como entre
mulher e mulher, não parece cabível manter a constitucionalidade das demais regras vigentes no
ordenamento jurídico brasileiro que estabeleçam essa discriminação, verdadeira segregação de alguns
institutos a apenas alguma espécie de seres humanos (os heterossexuais)”, sendo que “O que o Supremo
Tribunal Federal pretendeu, julgando tais ações, foi fazer prevalecer aqueles Valores, Princípios e
Objetivos face às regras discriminatórias existentes em nosso arcabouço jurídico, não permitindo que o
afeto e o amor sirvam como razão de discrímen para institutos como união estável, casamento e adoção,
por exemplo”; (iii) citou as decisões de Jacareí/SP e Brasília/DF, supratranscritas, bem como uma de
Cajamar/SP, que também adotaram essa exegese para permitir a conversão de união estável homoafetiva
em casamento civil; (iv) afirmou que, “Acima de tudo, trata-se do reconhecimento do Amor como Valor
Jurídico extremamente importante, e fundante das sociedades humanas”;107 (iv) com base nessas
razões, julgou procedente o pedido em questão.
O juiz Fernando Dominguez Guiguet Leal, de Franco da Rocha/SP, converteu união estável
homoafetiva em casamento civil em decisão proferida em 19.08.2011, com base nos seguintes
fundamentos: (i) a decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277 “afastou-se qualquer
interpretação do artigo 1.723 do C. Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo
sexo como entidade familiar”, anotando que mostrou-se acertada a decisão, já que no Brasil e no mundo
diversas pessoas vivem em união estável homoafetiva, ao passo que o casamento civil garante mais
direitos que a união estável, razão pela qual entende que, por força dos “princípios da igualdade, da
dignidade humana e da proibição de discriminação, não há justificativa legítima a sustentar a proibição”;
(iii) a laicidade estatal justifica tal posicionamento, já que estamos a tratar de casamento civil e não de
casamento religioso; (iv) irrelevante o argumento da ausência de procriação, já que não se proíbe o
casamento civil entre casais heteroafetivos estéreis; (v) “a redação dos artigos 1.514 e 1.535 do C.
Civil, por se referir ao homem e à mulher e à marido e mulher, respectivamente, não pode servir de
empecilho ao casamento civil homoafetivo, já que tratou da regulamentação do casamento
heteroafetivo, sem, contudo, dispor qualquer proibição ao casamento ora pretendido, permitindo,
portanto, a aplicação da analogia e da interpretação extensiva decorrente dos princípios constitucionais
já citados, que se encontram no topo da hierarquia das normas”; (vi) “a Lei Maria da Penha, em seu
artigo 5.º, inciso II, parágrafo único, traçou novos contornos ao conceito de família, tendo estabelecido
compreender a família como unidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados,
unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa, cujas relações pessoais independem de
orientação sexual”; (vii) para finalizar, afirmou que “para que a sociedade evolua de forma pacífica,
equilibrada e harmoniosa, é que estejam presentes nas famílias, qualquer que seja sua formação, o amor
familiar, o respeito, o entendimento, a compreensão, a orientação e a tolerância, sentimentos e virtudes
imprescindíveis para o sadio desenvolvimento de seus integrantes”; (viii) por esses fundamentos, deferiu
o pedido formulado.
O juiz Mario Sergio de Menezes, da Corregedoria Permanente de Limeira/SP108, converteu união
estável homoafetiva em casamento civil em decisão de 30.08.2011 sob os seguintes fundamentos: (i)
sobre a afirmação do parecer ministerial contrária à possibilidade jurídica da conversão por ausência de
dispositivo legal que a autorize para casais formados por pessoas do mesmo sexo, afirmou que “tal
interpretação tampão é pouco para solucionar algo que envolve direitos fundamentais com muitas
implicações”, pois o sistema normativo consagra a regra segundo a qual todos os comportamentos
humanos ou estão positivamente regulados ou estão negativamente permitidos [Regis de Oliveira], donde
sua atuação judicial não configura ação de “legislador positivo”, mas de respeito à eficácia do direito já
existente, “que é o direito fundamental, previsto na Constituição”; (ii) “Cuida-se, desse modo, de
cumprimento da importante missão conferida aos juízes e tribunais, consistente em zelar pelos direitos
fundamentais dos cidadãos”, donde “Não se trata de ultrapassagem dos limites da atribuição
constitucional da jurisdição”, pois no nosso sistema possui permissivo legal que confere ao julgador o
poder de colmatar lacunas no art. 4.º da LICC [atual LINDB]”; (iii) “o Estado investido de representante
da sociedade paulatinamente passou a reconhecer e conceder direitos civis aos casais do mesmo sexo
vivendo em união habitual”; (iv) o STF, no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, “deu eficácia
jurídica à união estável entre casais do mesmo sexo, equiparando-a a entidade familiar, com efeito
vinculante e normativo segundo a regra do art. 102, §2º, da CR/88”, sendo que “O resultado do
julgamento proferido pela Excelsa Corte passou a constituir disposição jurídica integrada ao sistema,
o que permite ao juiz aplicá-lo através de uma interpretação extensiva, tendo como pressuposto que,
se o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo, dando
interpretação conforme a Constituição Federal (princípios da igualdade e da dignidade da pessoa
humana), para excluir qualquer significado do art. 1.723 do Código Civil que impeça o
reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, é porque o
entendimento consolidado na Corte Maior é de que no nosso atual sistema já não subsiste a diferença
jurídica entre homens, mulheres e homossexuais ou, para ser mais específico, entre heterossexuais e
homossexuais. Portanto, conclui-se que não se justifica tratamento distinto dos dois e que os direitos
civis devem estender-se, por analogia, aos homossexuais”; (iii.1) assim, “Examinando a questão à luz
das considerações de Alf Ross109, é possível sustentar cum grano salis que o Supremo Tribunal Federal
afirmou que não há mais distinção, no âmbito dos direitos civis, entre sujeitos heterossexuais e
homossexuais. É dizer, em outras palavras, se ele disse estar excluído do texto do art. 1.723 do CC
qualquer significado que impeça o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo
como entidade familiar, com efeito vinculante e normativo, permitiu extrair que a nova interpretação
do referido artigo seja compreendida em relação a outros casos, cuja situação equipara-se àquele,
mas não está normatizada”; (iv) embora afirme que tais fundamentos bastassem para a procedência do
pedido, acrescenta que: (iv.1) não cabe o uso de dogmática religiosa para decidir o tema, porque “As
interpretações das religiões em temas de interesse da sociedade são, em sua maioria, muito duras, quando
conflitam com seus dogmas. O problema é que a sociedade se modificou muito no último século,
resultado da Secularização, de modo que ela apresenta novas relações, novas necessidades, que as
religiões, engessadas por dogmas, não conseguem se adaptar”; (iv.2) a gradativa evolução dos direitos
fundamentais está ligada ao poder transformador do Poder Judiciário – diversas mudanças na sociedade
tiveram início nos Tribunais “através da atuação transformadora dos juízes, ante a recusa ou demora na
criação de dispositivos legais”, como no período denominado como crise da sociedade escravista dos
vinte anos finais do Império, decorrente de novas interpretações baseadas no “princípio do direito
natural à liberdade individual”, de sorte a precipitar, também pela via judicial, o fim da escravidão,
interpretação esta acolhida por alguns juízes que reconheceram a liberdade de inúmeras pessoas
escravizadas ilegalmente [André Koerner], donde se percebe que “a atuação dos juízes em prol da
efetividade dos direitos e garantias fundamentais, como se pode observar, desde o Império, precede a
criação de dispositivos legais que depois acabam sendo introduzidos no ordenamento jurídico, mas
sempre e somente após a corajosa atuação de juízes então considerados heterodoxos, outsiders etc., mas
que não se acomodaram em atuar na promoção dos direitos fundamentais”; (iv.3) “No caso desta
temática, é incontestável que, na atualidade, a união entre pessoas do mesmo sexo é uma realidade e toma
conta da sociedade, eu não a repudia, ao contrário, recebeu-a de braços abertos. Em 1975, quando o atual
Código Civil foi redigido, era inconcebível falar em união de pessoas do mesmo sexo e em 1916, ano de
criação do Código Civil revogado talvez isso nem fosse pensado. Até porque, basta lembrar que este
último continha dispositivo que dava ao marido direito de devolver a noiva à casa paterna, se
descobrisse nas núpcias que ela já tinha sido deflorada. Os tempos são outros, e a união estável de
pessoas do mesmo sexo constitui uma realidade imposta ao direito. Seus operadores devem enfrentá-la
desapegados de dogmas religiosos e preconceitos sociais”, pois “Negar o acesso a estas pessoas aos
mesmos direitos civis que gozam as pessoas heterossexuais configura uma forma legalizada de
segregação e isso não representa o espírito da Constituição Federal. Os princípios da igualdade e da
dignidade da pessoa humana foram erigidos à categoria de direitos fundamentais com a finalidade de
agregar e não de excluir, acabar com as desigualdades, não criar barreiras. Na definição de Karl
Engisch, ‘O Direito é, historicamente, produto de interesses’, como tal, deve ser visto como algo que está
a serviço da sociedade. Destinado a resolver e pacificar os interesses particulares e coletivos, não deve
existir constrangimento quando mudanças na sociedade exigem configuração diferente das leis e alteração
da interpretação dos comportamentos. Quase nada há de justo ou injusto que não mude de natureza com a
mudança de clima. (...) Enfim, na atualidade, a promoção da igualdade entre os seres humanos, sem
distinção de orientação sexual, é uma tendência universal o que pode ser entendido com a aprovação
da Resolução ‘Direitos Humanos, orientação sexual e identidade de gênero’, pelo Conselho de Direitos
Humanos das Nações Unidas, apresentada por África do Sul e Brasil”. Por tais razões, converteu a união
estável homoafetiva em questão em casamento civil.
O juiz Wlademir Paes de Lira, da 26ª Vara Cível/Família da Comarca de Alagoas, converteu união
estável homoafetiva em casamento civil em decisão de 25.11.11110 pelos seguintes fundamentos: (i)
afirmou que sempre entendeu a união homoafetiva como entidade familiar autônoma, pelo caráter aberto
(exemplificativo) do rol de entidades familiares do art. 226 da CF/88 e, embora entendesse que
casamento civil e união estável suporiam a diversidade de sexos, por força da “perspectiva de
uniformização ética das decisões [judiciais]” curvou-se ao entendimento do STF que qualificou a união
homoafetiva como união estável, donde reconheceu o direito ao casamento civil a casais homoafetivos,
na medida em que o mesmo raciocínio (de interpretação extensiva) que reconhece a união estável
homoafetiva se aplica para o reconhecimento do casamento civil homoafetivo111; (ii.1) com efeito, “Se
a não inclusão dos casais homossexuais no artigo 1.723, o torna inconstitucional, por ferir direitos
fundamentais como os da igualdade, da proibição de discriminação em função da orientação sexual e o
da liberdade de se constituir em família, entre muitos outros, a não extensão no dispositivo que trata do
casamento, às uniões entre pessoas do mesmo sexo, torna este último igualmente inconstitucional, por
ferir exatamente os mesmos direitos que na decisão da união estável o STF procurou garantir”. Assim,
permitiu a habilitação do casamento em questão.
Na 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Santos/SP foi convertida união estável
homoafetiva em casamento civil em decisão de 12.12.2011112 afirmando que “é de rigor reconhecer a
constituição de união estável e, consequentemente, de entidade familiar entre as correquerentes, desde
31/7/2009, com fundamento nos termos do artigo 226, § 3º, da Constituição da República e no artigo
1.723 do Código Civil, interpretados de acordo com os princípios da dignidade da pessoa humana, da
igualdade, da vedação da discriminação e da busca pela felicidade” e que “O direito das correquerentes
a se casarem civilmente ou terem sua união estável convertida em casamento civil é inequívoco pelos
motivos já expostos no item anterior e pelo fato do já citado § 3º do artigo 226 da Constituição Federal
determinar que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento. Neste sentido, foi o
recente posicionamento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, no julgamento do Recurso
Especial n.º 1183378 do RS, realizado no dia 25/10/2011, proveu recurso de duas mulheres que pediam
para ser habilitadas ao casamento civil e concluiu que a dignidade da pessoa humana, consagrada pela
Constituição, não é aumentada nem diminuída em razão do uso da sexualidade, e que a orientação sexual
não pode servir de pretexto para excluir famílias da proteção jurídica representada pelo casamento”.
A juíza Rafaela de Melo Rolemberg, da Comarca de Guarulhos/SP113, converteu união estável
homoafetiva em casamento civil em decisão de 07.02.2012 sob os seguintes fundamentos: (i) “resta
superada a discussão acerca da aplicação dos direitos oriundos da união estável aos casais do mesmo
sexo” em razão da decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277; (ii) “a decisão acima mencionada,
cujos efeitos são vinculantes e erga omnes, ao afastar qualquer interpretação discriminatória do art. 1.723
do Código Civil que impedia o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar, não só reconheceu como união estável a união contínua, pública e duradoura entre pessoas do
mesmo sexo, como também garantiu todos os efeitos jurídicos dela decorrentes, dentre os quais o
recebimento de pensão e herança, partilha de bens, adoção, mudança de nome e, em especial o direito da
conversão ao casamento civil. Nesse contexto, perfeitamente aplicável o art. 1.726 do Código Civil
Brasileiro, segundo o qual os conviventes podem requerer a conversão da união estável em casamento,
mediante pedido ao juiz para posterior assento no Registro Civil da Circunscrição de seus
domicílios”, especialmente porque “conferir tratamento isonômico à união estável entre pessoas do
mesmo sexo nada mais é do que efetivar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana,
igualdade e da promoção do bem de todos sem discriminação ou preconceito”.
A 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, relator Desembargador Luiz Felipe
Francisco, converteu união estável homoafetiva em casamento civil em decisão de 17.04.2012114 sob o
fundamento de que “O Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida na ADI 4.277/DF, atribuiu
eficácia erga omnes e efeito vinculante à interpretação dada ao art. 1.723, do Código Civil, para excluir
qualquer significado que impeça o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares,
desde que configurada a convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de família. A Constituição da República determina seja facilitada a conversão da união
estável em casamento. Portanto, presentes os requisitos legais do art. 1.723, do Código Civil, não há
como se afastar a recomendação constitucional, conferindo à união estável homoafetiva os mesmos
direitos e deveres dos casais heterossexuais, tal como sua conversão em casamento”, bem como
destacando o “Precedente do STJ [REsp n.º 1.183.378/RS] que admitiu o próprio casamento
homoafetivo, a ser realizado por simples habilitação in casu, forçoso é de concluir que merece reforma a
decisão monocrática, convertendo-se a união estável caracterizada nos autos em casamento”.
O juiz Adonias Barbosa da Silva, da 03ª Vara da Família de Tocantins, converteu união estável
homoafetiva em casamento civil em decisão de 23.04.12115 pelos seguintes fundamentos: (i) “até há
pouco a jurisprudência orientava apenas no sentido de reconhecimento das uniões formadas entre homem
e mulher, mas com o avanço doutrinário e jurisprudencial, passou a considerar a existência, também, de
família entre pessoas do mesmo sexo que buscam a felicidade juntas”; (ii) “O casamento é um ato
festejado tanto pelos poetas, quanto pelos teólogos. É exercitado pelos povos ricos e pelos mais
humildes, porém todos o consideram meio sereno de se alcançar a felicidade”; (iii) cita julgado do TJRS
segundo o qual o caput do art. 226 da CF/88 é uma norma de inclusão, donde não ser lícito excluir
qualquer entidade familiar que preencha os requisitos da efetividade [sic116], estabilidade e notoriedade,
sendo exemplificativo o rol de entidades familiares ali previsto, de sorte a se garantir a inclusão das
entidades familiares implícitas (AC n.º 700039676776); (iv) cita o art. 5.º, §§ 1.º e 2.º, segundo os quais
as normas de direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata e não excluem outras
decorrentes do regime constitucional, dos princípios constitucionais e dos tratados internacionais dos
quais o Brasil faça parte; (v) afirma que está pacificado que a união estável é uma forma de família e,
agora, com a decisão da Suprema Corte, que é possível a constituição de união estável por pessoas do
mesmo sexo, donde, tendo a Constituição garantido às pessoas que vivam em união estável o direito de
convertê-la em casamento civil (art. 226, § 3.º, parte final), tem-se que “o caminho mais seguro é a
procedência do pedido inicial, autorizando assim que as Requerentes exercitem o direito de busca da
felicidade, estando afastados quaisquer óbices à conversão de união estável homoafetiva em casamento
civil entre pessoas do mesmo sexo por força da decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277 [momento
no qual pediu venia a seus ex-alunos por ter dito o contrário quando lecionou a disciplina].
O Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, relator Corregedor
José Renato Nalini, proveu diversos recursos e negou provimento a outro para reconhecer o direito de
casais homoafetivos converterem sua união estável homoafetiva em casamento civil em decisão de
31.05.2012117 sob o fundamento de que a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277 reconheceu como
entidade familiar a união estável homoafetiva em um “Reconhecimento que é de ser feito segundo as
mesmas regras e as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”, donde, sendo uma das
consequências da união estável a possibilidade de conversão em casamento civil, o efeito vinculante da
decisão do STF obriga ao reconhecimento do direito de conversão da união estável homoafetiva em
casamento civil. A decisão destacou, ainda, a decisão do STJ no REsp n.º 1.183.378/RS, que permitiu o
casamento civil a duas mulheres, donde decidiu motivado nestas duas decisões – razão pela qual entendo
que também reconheceu o direito ao casamento civil direto, sem necessidade de prévia união estável.
O Registro Civil de Pessoas Naturais de Florianópolis/SC converteu união estável homoafetiva em
casamento civil em decisão de 11.07.2012118 sob os seguintes fundamentos: (i) “Embora a mencionada
decisão do Supremo Tribunal Federal [ADPF 132 e ADI 4.277] não se refira à possibilidade de
casamento, a própria Constituição da República, art. 226, § 3.º, parte final, menciona que a Lei deverá
facilitar a conversão da união estável em casamento. Portanto, a partir da mesma tônica presente na
razão de decidir do Supremo Tribunal Federal, caso não haja tal conversão, haverá descumprimento
àquela decisão; se o Supremo Tribunal Federal decidiu, com eficácia erga omnes e efeito vinculante,
que casais do mesmo sexo poderão constituir união estável, é possível, dentro da mesma razão de
decidir, autorizar a conversão desta em casamento”; (ii) o STJ, no REsp 1.183.378/RS, reconheceu o
direito a duas mulheres se casarem civilmente porque, “Seguindo o voto do relator, ministro Luis Felipe
Salomão, a Turma concluiu que a dignidade da pessoa humana, consagrada pela Constituição, não é
aumentada nem diminuída em razão do uso da sexualidade, e que a orientação sexual não pode servir de
pretexto para excluir famílias da proteção jurídica representada pelo casamento”, sendo que “o Poder
Legislativo poderia, se quisesse, ter utilizado expressão restritiva, de modo que o casamento entre
pessoas do mesmo sexo ficasse definitivamente excluído da abrangência legal, o que não ocorreu” [e,
segundo o magistrado, “nem poderia” fazer] e na afirmação de que “Por consequência, o mesmo
raciocínio utilizado, tanto pelo STJ quanto pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para conceder aos
pares homoafetivos os direitos decorrentes da união estável, deve ser utilizado para lhes franquear a
via do casamento civil, mesmo porque é a própria Constituição Federal que determina a facilitação da
conversão da união estável em casamento”; (ii.1) destacou o voto do Ministro Marco Buzzi no sentido
de que “a união homoafetiva é reconhecida como família. Se o fundamento de existência das normas
de família consiste precisamente em gerar proteção jurídica ao núcleo familiar, e se o casamento é o
principal instrumento para essa opção, seria despropositado concluir que esse elemento não pode
alcançar os casais homoafetivos. Segundo ele, tolerância e preconceito não se mostram admissíveis no
atual estágio do desenvolvimento humano”; (iii) citou a decisão do TJRJ na AC n.º 007252-
35.2012.8.19.0000 na colocação de que “o ordenamento jurídico não veda expressamente o casamento
entre pessoas do mesmo sexo e que, ‘portanto, ao se enxergar uma vedação implícita ao casamento entre
pessoas do mesmo sexo, estar-se-ia afrontando princípios consagrados na Constituição da República,
quais sejam, os da igualdade, da dignidade da pessoa humana e do pluralismo’” e de que “se a
Constituição da República determina que seja facilitada a conversão da união estável em casamento,
e se o STF determinou que não fosse feita qualquer distinção entre uniões hetero e homoafetivas, ‘não
há que se negar aos requerentes a conversão da união estável em casamento, máxime porque consta
dos autos a prova de convivência contínua, estável e duradoura’. ‘Ressalte-se, por oportuno, que o
Direito não é estático, devendo caminhar com a evolução dos tempos, adaptando-se a uma nova realidade
que permita uma maior abrangência de conceitos, de forma a permitir às gerações que nos sucederão
conquistas dos mais puros e lídimos ideais’”; (iv) citou a lição de Maria Berenice Dias no sentido de que
a família homoafetiva, no contexto das famílias plurais, merece proteção constitucional e a afirmação da
autora de que entre os impedimentos para o casamento, de fato, não se impõe como condição a
diversidade de sexos, donde o argumento de que o pedido não poderia ser conhecido por inexistir lei
sobre o tema colide com a determinação de que o juiz não poderá se omitir de julgar na ausência de lei,
ante a determinação do próprio sistema de que julgue mesmo havendo omissão da lei, segundo a
analogia, os costumes e os princípios gerais do direito, razão pela qual concluiu que, em face das razões
expostas pelo STF da ADPF 132, é de se aplicar tal regra, a fim de reconhecer, analogicamente, a
possibilidade da conversão da união estável homoafetiva em casamento civil; (v) “O parecer do
Ministério Público de f. 61119 beira à homofobia. Não posso no espaço público impor minhas concepções
de mundo, especialmente preconceituosas e discriminatórias. Padrão de normalidade em sexualidade,
conforme apontado pela manifestação, parece ser a autoritária família monogâmica, hetero, machista e
monocromática. Essa decisão aceita a diversidade, o colorido, porque não pode acreditar que o Estado
deve exigir modelo único de felicidade familiar. Aliás, por fim, cabe dizer que o Estado – e a
Constituição da República – deve garantir, conforme Habermas (mas talvez seja querer demais), a
cláusula do Livres e Iguais. E iguais não se distinguem pela cor, idade, sexo ou profissão!”. Por essas
razões, julgou procedente o pedido [grifos nossos].
O juiz Frederico dos Santos Messias, da 4ª Vara Cível da Comarca de Santos/SP, converteu união
estável homoafetiva em casamento civil em decisão de 17.07.2012120 sob os seguintes fundamentos: (i) a
decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277 conferiu interpretação conforme ao art. 1.723 do CC/2002
para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento de união estável entre pessoas do
mesmo sexo, atribuindo-lhe o caráter de “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de
“família”; (ii) “Na esteira da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, sobreveio decisão do
Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1.183.378-RS, com origem na 4ª Turma, por maioria
de votos, para deferir a habilitação de casamento para a hipótese de um relacionamento homoafetivo,
fundada a conclusão no princípio da dignidade da pessoa humana”; (iii) “a entidade familiar formada a
partir de uma união homoafetiva sempre mereceu a proteção conferida pelo artigo 226, ‘caput’, da
Constituição Federal, mesmo antes das decisões proferidas pelos Tribunais Superiores, na medida em
que somente fizeram reconhecer o preexistente caráter familiar do relacionamento homoafetivo”, donde
continuar e concluir da seguinte forma:

Indago: O caráter familiar da relação entre pessoas do mesmo sexo, baseada no princípio da
afetividade, nasceu da decisão judicial? É claro que não! A formação da família, enquanto entidade
fundada na afetividade dos seus membros, nasce do amor, da cooperação mútua, do respeito,
características que independem do sexo das pessoas que a integram. Por isso mesmo, com o devido
acatamento, é desnecessária a edição de qualquer diploma legislativo para reconhecer a
possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos mesmos moldes do casamento entre
pessoas de sexos diferentes. Por que tratar diferente os iguais? Sim, porque não vislumbro
diferença substancial entre relacionamentos formados por pessoas do mesmo sexo ou por pessoas
de sexos diferentes. Ofende o princípio da dignidade humana a decisão judicial que se propõe
omissa ao argumento da falta de lei. As relações estáveis homoafetivas têm direito ao casamento
e não se revela consentâneo com o espírito da igualdade, impregnado no Texto Constitucional,
impedir o casamento baseado no amor. Por fim, anoto que estamos diante uma nova geração, com
valores e conceitos diversos das gerações anteriores, que muitas das vezes oprimiam os
relacionamentos homoafetivos, cabendo-nos agora a função de nos educarmos e de educarmos
nossos filhos a aprender conviver com uma nova família, que em nada difere do modelo até então
conhecido, pois que todas são baseadas no princípio da afetividade. Pelo exposto, DEFIRO A
HABILITAÇÃO” [grifo nosso].
A 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, relatora Desembargadora
Sulamita Bezerra Pacheco, deu provimento a recurso para converter união estável homoafetiva em
casamento civil em decisão de 23.08.12121 pelos seguintes fundamentos: (i) errou o juízo a quo ao
afirmar a impossibilidade jurídica do pedido, “porquanto a ‘possibilidade jurídica do pedido’ decorre
da ausência de proibição legal da conversão da união estável homoafetiva em casamento, o que torna
plenamente aferível a sua procedência ou não, até por interpretação extensiva ou analógica”, donde
passou a decidir o mérito do tema por se tratar de questão exclusivamente de Direito (cf. art. 515, § 1.º,
do CPC/1973); (ii) “como sabido, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, à unanimidade de votos, na
análise conjunta da ADPF 132-RJ e da ADI 4.277, reconheceu a união contínua, pública e duradoura de
pessoas do mesmo sexo como legítima entidade familiar, abolindo quaisquer distinções interpretativas
entre as relações homoafetivas das heteroafetivas. Ou seja, consagrou, no julgado histórico referido, a
igualdade de direitos das pessoas independentemente de sexo ou orientação, garantindo as mesmas
regras e consequências das uniões estáveis heteroafetivas às homoafetivas, equiparando-as, pois, de
modo igualitário (isonômico) sem quaisquer diferenciações. Nele, a Corte Maior Constitucional,
esteando-se nos princípios, direitos e garantias fundamentais (preâmbulo, arts. 1.º III, 3.º, I e IV e 5.º,
caput, I, II e X, da CF) explicou o verdadeiro sentido axiológico do art. 226, § 3.º, da CF, bem como deu
ao art. 1.723 do CC interpretação conforme à Constituição, dissipando quaisquer questionamentos em
contrário, ante a eficácia erga omnes e efeito vinculante da orientação içada em sede de controle abstrato
de constitucionalidade (§ 2.º, do art. 102 da CF e parágrafo único, do art. 28, da Lei 9.868/1999)”,
momento no qual transcreveu a ementa e trechos dos votos dos Ministros Ayres Britto e Fux – aquele na
vedação a discriminações por sexo e na vedação à discriminação dos heteroafetivos relativamente aos
homoafetivos (do que se destaca a “proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares
homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação
de uma autonomizada família” e a afirmação de que o “Casamento civil, aliás, [é] regrado pela
Constituição Federal sem a menor referência aos substantivos ‘homem’ e ‘mulher’”), este na afirmação
de que nada distingue ontologicamente as uniões estáveis heteroafetivas das homoafetivas por ambas
manterem entre si uma relação de afeto, suporte e assistência recíprocos criadora, em comunhão, de
projetos de vida duradoura em comum, donde merecer esta a mesma proteção constitucional conferida
àquela; (iii) “Desta feita, inafastável a decisão suprema da aludida Augusta Casa, a qual expressou
peremptoriamente a condição igualitária de tratamentos da união estável homoafetiva com a
heteroafetiva, e as caracterizou, de forma equiparada, como ‘núcleo familiar’. E, como positivado no art.
226, § 3.º, da CF, a conversão da união estável em casamento deve ser facilitada pela lei. (...) De mais a
mais, não há no Código Civil qualquer imposição restritiva no sentido de que o casamento civil se
perfectibilize apenas com sexos diversos, isto é, não há proibição para a sua concretização entre
pessoas do mesmo sexo. Contrariamente, a possível omissão legislativa é suprível pela Lei de
Introdução as Normas do Direito Brasileiro (antiga Lei de Introdução ao Código Civil),
especificamente no seu art. 4º: (...) Logo, perfeitamente admissível no nosso ordenamento jurídico
brasileiro o pleito communis consensus de Conversão da União Estável Homoafetiva em Casamento
Civil, de modo identicamente permitido a de natureza Heteroafetiva. Doutro turno, o STJ, Órgão
competente máximo para análise da legislação infraconstitucional do País, aí inserida o Código Civil,
recentemente (j. 01.02.2012), elucidou mais ainda a matéria, textualmente proclamando, de forma
incisiva, no REsp 1.183.378/RS (j. 25.10.2011, p. 01.02.2012) que ‘...os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535
e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do
mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta
a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da
pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar ...’”; (iv) “Aliás, pensar de modo
diferente, é o mesmo que fomentar insegurança jurídica a estas situações (dirimidas pelos Guardiões
Máximos Constitucional e Infraconstitucional), afrontar a dignidade da pessoa humana, discriminar
preconceituosamente o optante [sic] pelo mesmo sexo, vilipendiar os princípios da isonomia e da
liberdade, e retirar da família constituída pelo casal homoafetivo a proteção Estatal arraigada na Carta
Magna, reduzindo-a a uma subcategoria de cidadão e conduzindo-a ao vale do ostracismo. (...) Frise-se
que o Conselho de Direitos Humanos da ONU, no dia 17/06/11, elaborou a Resolução A/HRC/17/19 (na
qual o Brasil, inclusive, votou pela sua aprovação) objetivando promover a igualdade das pessoas sem
distinção da orientação sexual e encontrar meios para estancar a violência e a violação dos direitos
humanos cometidas por motivo de orientação sexual e identidade de gênero (...)”; (v) “a família é a base
da sociedade e sua concretização formal se dá de forma mais ampla através do casamento, buscado por
muitos no incessante almejo do bem maior da vida, ‘O AMOR’, desaguador da sonhada
‘FELICIDADE’”122; (vi) “Ademais, a opção sexual [sic] do ser humano voltada à formação da família,
não deve ser motivo de críticas destrutivas, mas sim de integral proteção estatal, até porque, como há
muito apregou o poeta Machado de Assis em seu primeiro romance denominado Ressurreição ‘Cada
qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o essencial é que saiba amar’. (...). Por
derradeiro, sob a ótica da justiça e do respeito real ao Estado Democrático de Direito, é de se focar a
sempre lembrada doutrinadora Maria Berenice Dias: ‘... O caminho está aberto. Basta que os juízes
cumpram com sua verdadeira missão: fazer justiça. Acima de tudo, precisam ter sensibilidade para
tratar de temas tão delicados como as relações afetivas, cujas demandas precisam ser julgadas com
mais sensibilidade e menos preconceito. Os princípios da justiça, igualdade e humanidade devem
presidir as decisões judiciais. Afinal, o símbolo da imparcialidade não pode servir de empecilho para
o reconhecimento de que a diversidade necessita ser respeitada, Não mais se concebe conviver com a
exclusão e com o preconceito em um Estado Democrático de Direito...’ (Revista Magister de Direito
Civil e Processual Civil, 32 – set./out. 2009, p. 47/60)”. [grifos nossos]. Assim, deferiu a conversão da
união estável homoafetiva em casamento civil em questão.
Analisemos, agora, as decisões que deferiram casamento civil homoafetivo diretamente, sem que
houvesse prévia união estável.
A juíza Gardênia Carmelo Prado, da 02ª Vara Privativa de Assistência Judiciária da Comarca de
Sergipe, permitiu habilitação em casamento civil (direto) a um casal homoafetivo em decisão de
03.05.12123 sob os seguintes fundamentos: (i) não vislumbra dificuldade “no trato jurídico de um aspecto
tão inerente à condição humana: amar e ser amado. Afinal, o amar entre pessoas adultas e em plena
capacidade de pensar e de determinar-se de acordo com isso deve ser sempre respeitado e honrado”124;
(i.1); (ii) “A diversidade dos papéis socioculturais, e em especial a orientação sexual dos indivíduos não
deve importar a colocação dos casais homossexuais à margem da lei. Eles, como os casais
heterossexuais, são tão destinatários dos princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa
humana, da nuclearização da família, da intimidade, da privacidade, e de outros atrelados à condição dos
indivíduos em relação a si mesmo[s] e em relações entre si e com a sociedade, como quaisquer outros
cidadãos”; (iii) “A par da necessidade de interpretar a norma constitucional conforme ela própria, não
devemos deslembrar que, em que pese a previsão constitucional não haver expressado,
linguisticamente, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em nenhuma passagem proibiu tal
‘modalidade’ (pedindo permissão pelas aspas porque, na verdade, não há mesmo modalidade, mas um
único instituto, num trato que deve ser uniforme e linear, único) casamento. E isso é juridicamente (muito)
significativo. Assim, a interpretação das normas, no âmbito exclusivamente da própria constituição,
deve ser inclusiva e integrativa, à vista dos princípios que ela traz, como acima citamos alguns, e das
circunstâncias sociais e históricas da época da promulgação da Carta Federal em 1988, e dos dias
atuais”125; (iii) após citar a decisão do STJ no REsp 1.183.378/RS, afirmou que “Não obstante a Carta
Federal crie uma certa igualdade de tratamento entre casamento e união estável, o primeiro,
inegavelmente, ainda tem muito mais aspectos de proteção jurídica imediatos que a segunda. (...) as
requerentes querem estabelecer o contrato de casamento se submetendo apenas e tão somente às mesmas
exigências que quaisquer outros tipos de pares que são admitidos ao processo de habilitação. Elas
pleiteiam ser tratadas com igualdade em relação a quaisquer outros cidadãos nas mesmas condições civis
e humanas que elas. Por isso a questão, como acima já destacamos, é tão simples, e deve ser encarada
nessa exata medida”, donde destacando a ausência de prejuízo aos heteroafetivos pelo reconhecimento de
direitos dos homoafetivos (voto do Ministro Ayres Britto), afirmou que “se há reconhecimento da
família formada por casais homoafetivos, se a união homoafetiva foi equiparada à união estável entre
pessoas de sexo diferente, e se inexiste vedação constitucional discriminatória, segundo orientação e
interpretação das questões pela Corte Máxima do país, o Supremo Tribunal Federal, guardião da
Constituição, razão não há para que os cidadãos, independentemente de gênero, tenham o seu direito
reconhecido e garantido de realizar o seu casamento civil diretamente, sem submissão à via prévia da
união estável (a fim de que consigam a conversão de tal união estável em casamento). Por fim, cabe
lembrar que a V Jornada de Direito Civil realizada pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do
Conselho da Justiça Federal (CJF) concluiu, no informativo 525, que ‘é possível a conversão de união
estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento, observados os requisitos exigidos para a referida
habilitação’, o que fortifica ainda mais a possibilidade de realização do casamento civil pela via direta”.
Assim, permitiu a habilitação do casamento em questão. [grifos nossos]
O juiz Áureo Virgílio Queiroz, da Comarca de Cacoal/RO, permitiu habilitação em casamento civil
(direto) a casal homoafetivo em decisão de 25.01.2012126, seguindo parecer do Ministério Público,
segundo o qual, com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277 e do STJ no REsp n.º 1.183.378/RS,
“não há argumentos jurídicos​-constitucionais aptos a impedir que duas pessoas do mesmo sexo busquem
a sua realização pessoal através da constituição de uma família, direito que não é restrito aos casais
heteroafetivos, mas sim a todo ser humano”, parecer este que aduziu que “os mesmos argumentos tecidos
pelo STF em relação à união estável são aplicáveis ao casamento entre pessoas do mesmo sexo”, e “com
fundamento no artigo 1.526 do Código Civil”, razão pela qual permitiu a habilitação do casamento em
questão.
A juíza Lindalva Soares Silva, da 6ª Zona do Registro Civil de Pessoas Naturais – 12ª
Circunscrição do Rio de Janeiro, em decisão de 26.01.12127, permitiu habilitação de casamento civil
(direto) a casal homoafetivo sob afirmando que, “Quanto à redação dos artigos 1514 e 1535 do Código
Civil se referir ao homem e à mulher e a marido e mulher, respectivamente, não vislumbro como
obstáculo ao casamento entre os requerentes, já que as normas trataram da regulamentação do
casamento heterossexual não havendo disposição proibitiva expressa ao casamento ora requerido
permitindo-se a aplicação da analogia e da interpretação extensiva decorrente do princípio
constitucional da dignidade, que se encontra no topo da hierarquia das normas”128, razão pela qual
permitiu a habilitação do casamento em questão.
O juiz Antonio C.A. Nascimento e Silva, da Vara de Registros Públicos da Comarca de Porto
Alegre/RS, homologou pedido de habilitação em casamento civil (direto) a casal homoafetivo em
decisão de 23.03.2012129 sob o seguinte fundamento: “Considerando que a decisão do STF no julgamento
da ADI nº 4.277 e, principalmente, do STJ no julgamento do Recurso Especial nº 1.18[3].378/RS,
homologo a presente habilitação, sem necessidade de acrescer outra fundamentação”, pois “foram
atendidos todos os preceitos legais do art. 1525 da Lei n.º 10.406/02 [Código Civil]”.
O juiz Walteir José da Silva, da Comarca de Manhaçu/MG, homologou habilitação de casamento
civil (direto) a casal homoafetivo em decisão de 26.03.2012130, sob os seguintes fundamentos: “Essa
decisão do STF fez com que todos os direitos que são dados aos companheiros heterossexuais em nosso
sistema legislativo sejam estendidos às pessoas que vivem em união estável homoafetiva”, donde,
destacando a afirmação do STF segundo a qual “o reconhecimento da união homoafetiva deve ser feito
segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”, afirmou,
sobre a possibilidade do casamento civil homoafetivo, que “Concordamos com essa possibilidade, haja
vista que se os homossexuais podem se casar, convertendo a união estável homoafetiva em casamento,
devem, também, poder casar independentemente de viverem previamente em união estável, em veneração
ao princípio da isonomia, consagrado no art. 5º, caput, da Constituição Federal, pois as pessoas que
estão em situações iguais (homossexuais), não podem ser tratados de forma desigual (quem vive em união
homoafetiva casa e quem não vive está proibido)”, pois “não há nenhum artigo no Código Civil que
estabeleça ser a diversidade de sexo um pressuposto do casamento. Esse requisito sempre foi colocado
pela doutrina (e não pela lei), em razão do costume histórico exigir tal requisito”. Concluiu com as
seguintes colocações: “Embora a decisão do Supremo não aborde casamento, porque este não fazia parte
do pedido, a sentença foi muito importante para que eu tomasse a minha decisão nesta oportunidade. O
que ficaria difícil seria fundamentar o indeferimento do casamento e não o seu deferimento, ante os
argumentos legais ora expendidos. Fico feliz em contribuir para que os direitos humanos e a igualdade
prevaleçam, de acordo com as Normas Constitucionais vigentes”. Com tais colocações, permitiu o
casamento civil homoafetivo em questão. [grifo nosso]
A 6ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, relator Desembargador Jair Soares,
em decisão de 11.04.2012131, afirmou que “Reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar –
desde a decisão proferida na ADPF n.º 132 e ADI n.º 4.277, a qual conferiu-se efeito vinculante e
eficácia erga omnes - não há razão para não conferir igual proteção legal ao casamento entre pessoas
do mesmo sexo, legalmente realizado no estrangeiro, sobretudo para efeitos de comprovação de
relacionamento afetivo com a finalidade de obtenção de visto permanente do cônjuge estrangeiro”, donde
“descabida qualquer interpretação, pautada em critérios discriminatórios em razão do sexo dos
contraentes do casamento no exterior, que enseje a recusa de direitos conferidos aos contraentes
heterossexuais de casamento ou uniões estáveis, sejam esses nacionais ou estrangeiros. Se os autores
são legalmente casados no estrangeiro, ausente a inevitabilidade de sujeição ao Poder Judiciário para
que obtenham a situação jurídica favorável que pretendem, bem como ineficaz o procedimento eleito”132.
[grifos nossos]
O juiz corregedor Renato Bariani Neves, da Corregedoria do Serviço Extrajudicial da Comarca de
Mogi das Cruzes133, permitiu habilitação em casamento civil (direto) a casal homoafetivo em decisão de
17.05.2012, a qual merece ser integralmente transcrita:

O ato civil deve ser autorizado. A Constituição Federal não estabelece nenhum conceito de
casamento. Limita-se a disciplinar que a família é a base da sociedade, recebendo especial proteção
do Estado, e que o casamento é civil, sendo gratuita a sua celebração (art. 226 e § 1.º). Por tais
razões, muitos concluem que o regime jurídico do casamento e o seu conteúdo são integralmente
regidos em lei ordinária. Neste âmbito, o Código Civil (Lei nº 10.406, de 10.01.2002),
especialmente nos artigos 1.514 e 1.565, restringe a noção de casamento às uniões entre homem e
mulher. Qualquer alteração neste conceito dependeria de necessária inovação legislativa
infraconstitucional. A referida interpretação, contudo, é inconstitucional. Se é certo que a
Constituição Federal não define casamento, é igualmente certo que ela impõe respeito aos direitos
fundamentais do indivíduo, que merecem tutela do Estado, pelo Estado e até mesmo contra o Estado
e a sociedade civil. O legislador ordinário, enquanto autoridade estatal, não tem a liberdade integral
para reger a matéria de casamento, pois também se submete ao respeito ao estatuto dos direitos
fundamentais. Daí porque qualquer norma infraconstitucional ou interpretação de texto legal que
afronte direitos fundamentais deve ser afastada. Em primeiro lugar, seguindo regras de
interpretação sistemática, para além dos grilhões da leitura meramente gramatical daqueles
artigos já referidos, o Código Civil não proíbe o casamento entre homossexuais, uma vez que o
art. 1.521 não prevê qualquer impedimento para tanto. Daí porque a menção a ‘homem e mulher’
constante dos artigos 1.514 e 1.565 do Código Civil não merece leitura restritiva, tal como se
pretende emprestar àquelas normas, sendo apenas o caso de se conferir uma interpretação
conforme ao texto constitucional. A ausência de referência às pessoas do mesmo sexo não significa
um silêncio eloquente do Código Civil, a ponto de se interpretar haja uma proibição ao casamento
homossexual. O fato de o texto omitir qualquer alusão à união entre pessoas do mesmo sexo não
implica, necessariamente, que não se assegure o seu reconhecimento. Mas ainda que se admita,
por epítrope, a restrição legal, tem-se que o Estado Legislativo, na medida em que limita o
casamento às pessoas de sexos opostos, pratica, em verdade, violência legal não consentida pela
carta constitucional, que expressamente prevê a dignidade da pessoa humana como um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1.º, inc. III), que tem por objetivos
fundamentais a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras forma de discriminação (art. 3.º, inc. IV). A liberdade, a autodeterminação, a
igualdade, o pluralismo e a intimidade são outros princípios de igual status constitucional que
impõem o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual e da legitimidade ético-
jurídica da união homossexual como entidade familiar. A lei civil veicula um tratamento
discriminatório, uma vez que o sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou
implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica (ADPF 132/RJ).
Por idênticas razões, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ, julgada
em 05.05.2011, Relator Min. Ayres Britto, o E. Supremo Tribunal Federal reconheceu a
possibilidade de união estável entre pessoas do mesmo sexo. Referido julgamento histórico
consagrou, em verdade, a possibilidade de homossexuais constituírem família na acepção
jurídica do termo, e não institutos de direito das obrigações que teriam aplicação artificial ao
caso, como sociedade de fato ou sociedade empresária. A garantia da espécie de entidade familiar
que a união estável representa configura, em verdade, a garantia de pertencer ao próprio gênero
familiar, o que não afasta, portanto, outras espécies de constituição de família, tal como o
casamento. Pouco importa, portanto, a roupagem jurídica que a união homossexual ganhe para
fins de constituição de família: união estável ou casamento. Uma vez que homossexuais podem
constituir família, podem igualmente fazer uso de quaisquer das modalidades garantidas na lei
civil para tanto. Aliás, a própria Constituição Federal prevê que deverá ser facilitada a
conversão da união estável em casamento, uma vez que esta última espécie de família é aquela
que confere mais segurança jurídica e publicidade aos envolvidos no ato. Assim, pode-se dizer
que o casamento homossexual entrou pela porta dos fundos do ordenamento jurídico. Permitiu-se,
em um primeiro momento, por julgamento da corte suprema, uma modalidade menos controversa de
constituição de família (união estável), incumbindo à primeira instância do judiciário consagrar a
máxima eficácia da interpretação constitucional, cumprindo com a sua missão histórica de conferir o
tratamento jurídico-familiar mais amplo possível àquelas uniões, agora pela via do casamento. A
Constituição Federal de 1988 em muito se notabilizou no avanço jurídico no plano dos costumes.
Resta garantir ainda mais este progresso, de modo a reduzir a distância entre a constituição
escrita e a vivida, em prol da efetivação dos direitos humanos, ainda que esta missão envolva a
releitura de uma das mais clássicas instituições de direito civil: o casamento. A distinção entre
moral e direito é premissa fundamental do garantismo constitucional, de tal modo que o direito não
deve ser nunca utilizado como um instrumento de coação moral. Que certas concepções morais e
religiosas condenem esta forma de união não significa que o direito não possa consagrá-la. A
união de casais homossexuais é um fato social cada vez mais evidente, que necessita de
reconhecimento jurídico, sob pena de se condenar à marginalidade legal a minoria homossexual,
pelo não reconhecimento dos direitos civis emergentes de uma entidade familiar. Dentre estes
direitos estão o casamento, a meação, a pensão alimentícia, o direito real de habitação, a herança, a
adoção, além de outros, como o reconhecimento de dependência econômica para fins
previdenciários (pensão por morte) e fiscais (imposto de renda), dependência esta há muito já
reconhecida em diversos julgados pelo país afora, responsáveis por uma verdadeira revolução
silenciosa na esfera do direito de família. Numa democracia constitucional como a nossa, os
direitos fundamentais constituem o próprio fundamento do Estado, legitimando, definindo e
limitando a atuação deste. Os direitos fundamentais são direitos de todos e de cada um, e não
podem ser suprimidos nem reduzidos pela maioria, ainda que esta ganhe expressão pela via
legislativa. Daí a função contramajoritária que ao Poder Judiciário incumbe no âmbito do
Estado democrático de direito, em ordem a conferir efetiva proteção às minorias. No plano da
jurisdição das liberdades, o Judiciário é o órgão investido do poder e da responsabilidade
institucional de proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria ou, ainda, contra
omissões que, imputáveis aos grupos majoritários, tornem-se lesivas, em face da inércia do
Estado, aos direitos daqueles que sofrem os efeitos perversos do preconceito, da discriminação e
da exclusão jurídica. É preciso, pois, por um ponto final no banimento civil em que casais
homossexuais sempre foram condenados a viver, em razão tão só de sua orientação sexual e
conceder-lhes a necessária segurança jurídica que reivindicam ao estado de fato em que já
vivem. Assim, ainda que pesquisas indiquem que a maioria da população seja contrária à união
homossexual, cabe ao Poder Judiciário, enquanto agente de transformação social, desempenhar
aquela função contramajoritária e didática, indicando à sociedade civil os rumos essenciais à
convivência necessária entre a maioria e as minorias existentes, rumos que devem caracterizar uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (preâmbulo da Constituição Federal). Dispositivo.
Ante o exposto, autorizo a habilitação para que, observados os demais requisitos e procedimentos
legais, seja ao final celebrado o casamento entre as requerentes. [grifos parcialmente nossos]

O juiz corregedor Guilherme da Costa Manso Vasconcellos, da Corregedoria Permanente do


Registro Civil da Comarca de São Vicente/SP, permitiu habilitação em casamento civil (direto) a casal
homoafetivo em decisão de 20.05.12134, sob o fundamento de que, por força do julgamento do STF na
ADPF 132 e na ADI 4277 e do STJ no REsp 1.183.378/RS, “Diante das tão contundentes conclusões dos
acima citados julgamentos, há de se curvar esta Corregedoria Permanente ao que foi decidido pelas duas
mais altas cortes de Justiça do país para reconhecer e endossar as decisões por seus próprios, extensos e
aprofundados fundamentos, não ousando deles discordar. O STJ decretou com todas as letras, no corpo e
na ementa do acórdão, a inconstitucionalidade dos artigos 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565 na parte em
que vedam implicitamente o casamento civil entre duas pessoas do mesmo sexo. Ignorar essa decisão,
considerando-a apenas ‘um julgado a mais’ seria desprestigiar por completo, e de maneira obtusa, o
trabalho jurídico hercúleo levado a efeito por ambas as cortes nos citados julgamentos. Se é certo que o
STF não declarou com todas as letras a possibilidade do casamento civil homoafetivo, limitando-se a
reconhecer a união estável homoafetiva como instituto de família nos exatos termos dos artigos 226
da CF e 1.723 do Código Civil, à semelhança da união estável heteroafetiva, o STJ o fez, logo na
sequência, deixando explícito o que o STF não fizera, tal seja, reconhecendo e declarando a extensão
da decisão do STF para o instituto do casamento civil. Quem não interpretar o acórdão do STJ desta
maneira estará agindo como o avestruz em caso de sensação de perigo: enterrando a cabeça na areia
para não ver a realidade, imaginando-a de outra forma”, referendou a decisão do STJ também na parte
em que afirma que a omissão legislativa não pode significar negativa de direitos fundamentais, de que a
função contramajoritária do Poder Judiciário deve garantir os direitos fundamentais de todos, mesmo das
minorias e de que “Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua
coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode
o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é
‘democrático’ formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da
universalização dos direitos civis”. Assim, por entender que, a depender do atual Congresso Nacional,
“tão cedo não teremos reformas modernizadoras do Código Civil para explicitar o casamento civil
homoafetivo, [tal] tarefa [resta] delegada pelo tempo ao Judiciário que, corajosamente, no exercício do
legítimo ativismo jurídico a defender a sociedade da inércia dos legisladores, pronunciou-se de forma
efetiva e definitiva através de suas mais altas cortes, a quem rendo minhas homenagens”135, razão pela
qual autorizou o casamento civil homoafetivo em questão.
O juiz Luís Antônio de Abreu Johnson, do Ofício das Pessoas Naturais da Comarca de Lajeado//RS,
deferiu pedido de registro de união civil homoafetiva formalizada na Inglaterra em decisão de
31.05.2012136 sob os seguintes fundamentos, oriundos do parecer do Ministério Público elaborado pela
Promotora Velocy Melo Pivatto: (i) embora na Inglaterra tenha sido lavrada união civil e não casamento
civil, “deve ser reconhecida a equivalência dos institutos para fins registrais no Brasil. Isso porque no
Reino Unido, Estado no qual foi celebrado o ato, não há diferença, em perspectivas jurídicas, entre o
casamento e a união civil. A única razão pelo não emprego naquele Estado do mesmo termo é que foi
dada a nomenclatura de ‘união civil’ para o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo para não haver
impasses religiosos, posto que somente casais heterossexuais podem confirmá-lo frente à autoridade
eclesiástica”, pois “os direitos e obrigações são os mesmos”; “Assim, ao contrário do Brasil, em que
normalmente se emprega o termo ‘união civil’ apenas para as ‘uniões estáveis’137, as quais possuem
tratamento legal um pouco diferenciado do casamento, não há divergência jurídica com o regime
matrimonial. O ato, portanto, a ser reconhecido neste território soberano, é o casamento do requerente,
cujo debate é imperioso de ser feito através de uma abordagem não exclusivamente jurídica, mas também
social, psicológica e histórica”; (ii) “A família não é apenas um instituto social, mas também jurídico,
tanto que tem proteção especial iniciada com a Carta Magna e decorrente na legislação
infraconstitucional. Em análise do ordenamento jurídico, extrai-se que tanto o constituinte como o
legislador ordinário buscaram dar guarida à entidade familiar através da formação de um escudo dos
laços de afetividade, elos que geram, assim, consequentes direitos e deveres entre os integrantes da
célula social. A partir desse pressuposto, demonstra-se que o Direito de Família, ao contrário dos
demais ramos do direito civil, ultrapassa o tratamento patrimonial, porquanto blinda os vínculos
familiares, no intuito de respeitar o preceito constitucional máximo que irradia todos os demais direitos
fundamentais do indivíduo: a dignidade da pessoa humana. Portanto, o enfoque da proteção constitucional
e legal tem como base a relação pessoal, sentimental, psicológica, social e afetiva, muito além da
tradicional relação puramente biológica antes preservada nas Leis Fundamentais e legislações
infraconstitucionais anteriores. Com o advento do recente Código Civil, em 2002, essa nova visão de
família foi apenas ratificada e ampliada. A concepção de família unida pelo afeto permitiu o
reconhecimento dessas diversas novas famílias que hoje circulam na contemporaneidade: uniões
estáveis, monoparentais, avoengas e – como no caso em tela – as construídas a partir de casais
homossexuais, hoje definidas pela doutrina e jurisprudência como homoafetivas, termo cunhado e
defendido por Maria Berenice Dias, expoente notável na literatura e na produção jurisdicional quando
desenvolvia a atividade da magistratura junto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Com efeito,
nota-se que, ao contrário das famílias anteriormente referidas, o legislador não cuidou em dar tratamento
especial às relações homoafetivas. Tanto a Constituição Federal quanto o Código Civil hodierno expõem
em seus textos as alcunhas de ‘homem e mulher’ quando abordam o casamento e a união estável. Muito
embora haja textualmente uma diferenciação, tal fato não implica a atribuição de [menos] direitos aos
casais homoafetivos, eis que o ordenamento jurídico não é apenas cunhado por letras, mas, sobretudo,
por normas principiológicas e fatores sociais, o que exige do intérprete da lei não uma abordagem
literal, mas também uma leitura teleológica e de acordo com todos os preceitos relacionados à
dignidade. Seguindo a linha de se falar em dignidade, mister que seja compreendido o conceito
histórico da Constituição Federal. A atual Carta Magna é fruto de processo social objetivando a
isonomia de direito, em um combate com os diversos panoramas discriminatórios havidos nos anos
deste país. Vale lembrar que a história brasileira é marcada por casos de opressão de minorias étnicas,
escravidão de povos, marginalização de casais formados em casamentos que à época eram indissolúveis,
destrato em relação a filhos adotados ou tidos fora do matrimônio, a ineficiência da tutela jurisdicional
no combate a violência doméstica. (...) Outrossim, inegável não dizer que a inserção da terminologia
exclusivamente heteroafetiva nos textos legais e na própria Constituição é resultado de grupos
conservadores, em grande parte atrelados às instituições religiosas. Em que pese legítimo e livre o
exercício de suas convicções políticas e teológicas, respeito igual merece ser dado àqueles que não
compartilham com a mesma visão do mundo. Se há liberdade de escolha de credo, idêntica liberdade é
conferida à formação das relações afetivas. Ademais, nossa atual forma de Estado preserva a
laicidade, separando-o de qualquer religião, ainda mais nesse país, em que há um incontável número
de crenças”, donde “fica cristalino que o não reconhecimento desta união obtida pelas partes em
território estrangeiro estaria contrariando todos os princípios estabelecidos em nosso país no que tange
ao combate ao preconceito diante da opção sexual adquirida por cada cidadão e, principalmente, a
questão das inúmeras agressões praticadas por pessoas, hoje identificadas como ‘homofóbicas’.
Reconhecer tal situação, trata-se de mero ato de formalizar o que de fato já existe, pois o casal
homoafetivo já vive e se comporta como duas pessoas casadas, que além do afeto e da harmonia, acabam
construindo um lar e vivendo toda a rotina que um casal heteroafetivo vivencia, e muitas vezes fazendo
valer de forma mais significativa as questões que envolvem um casamento”; (iii) “aqueles que optam
pelas relações homoafetivas possuem os mesmos deveres e obrigações de qualquer cidadão: pagam
tributos, prestam concurso público, são condenados ao cometerem algum ilícito penal, votam
obrigatoriamente em seus representantes políticos etc. Se esse grupo é considerado cidadão para o
cumprimento de obrigações, igualmente assim deve ser considerado para o reconhecimento de seus
direitos”; (iv) referendando a lição de Gabriela Soares Balestro, afirmou que “diante do reconhecimento
constitucional da homoafetividade pelo Supremo Tribunal Federal, as relações homoafetivas foram
inseridas no conceito de entidade familiar, havendo, portanto, a possibilidade da conversão das
uniões civis entre pessoas do mesmo sexo em casamento, tendo em vista que, se os mesmos direitos
civis e efeitos patrimoniais e sucessórios que regulamentam as uniões estáveis heteroafetivas, com o
atual entendimento do STF, devem ser estendidos aos casais homoafetivos, o casamento, sendo instituo
de direito civil também é juridicamente possível”, pois “as relações homoafetivas devem ter igual
tratamento e proteção legal que as relações heteroafetivas em prol do respeito ao princípio da
igualdade e à dignidade da pessoa humana, sendo o casamento um direito civil fundamental de todo
ser humano”138, razão pela qual permitiu o registro da união civil homoafetiva firmada na Inglaterra no
Brasil como casamento civil. [grifos nossos]
O juiz Menandro Taufner Gomes, da Vara da Fazenda Pública, Registros Públicos e Meio Ambiente
da Comarca de Colatina/ES, permitiu habilitação em casamento civil (direto) a casal homoafetivo em
decisão de 30.07.12139, sob os seguintes fundamentos: “À prima facie, é necessário entender a natureza
jurídica das normas constitucionais e infraconstitucionais, que conceituaram os institutos da família e do
casamento. Teriam estas, estabelecido de lege ferenda, que o casamento civil só poderia ser realizado
entre homem e mulher, e que o termo família englobaria apenas um conglomerado humano composto entre
os descendentes e qualquer um dos seus ascendentes? Absolutamente não. As relações íntimas, quais
sejam, aquelas que decorrem dos vínculos de afetividade, não podem ser constituídas por leis.
Encontra-se além do poder legiferante estatal, a possibilidade de criar, estabelecer, restringir ou
modificar uma relação interpessoal. Em suma, o Legislador e o Estado não dispõem de poder para
impor às pessoas maiores e capazes, a forma, o modo e com quem poderão se relacionar. O Estado não
pode intervir em órbita exclusivamente privada, numa questão que atine puramente à intimidade
pessoal. Logo, o poder estatal não cria as relações emocionais, amorosas ou de afeto, porque tais são
frutos da cultura, da sociedade, e da orientação de cada indivíduo, no âmbito sociológico e
antropológico. Nesta esteira, a função estatal, como dito, não seria capaz de criar, transformar, e nem
extinguir as relações íntimas, conjugais, sexuais e familiares entre indivíduos, mas apenas de reconhecê-
las e declará-las, para fins de direitos e obrigações. As relações homoafetivas são uma realidade, e esta
realidade não pode ficar à margem da proteção legal e social. Sequer pode ser restringida ou
minimizada, à pretexto da orientação sexual. Interpretar que a legislação tupiniquim estabeleceu de
forma taxativa e exaustiva, (e não de lege lata), o conceito de família e casamento, seria admitir que o
Legislador tivesse o poder de engessar e estagnar as transformações sociais as quais vivenciamos. O
conceito de família está em constante evolução. Prova disto é a paternidade socioafetiva. Até alguns anos
atrás, seria inconcebível, em nossa ordem jurídica, a proclamação de uma paternidade não biológica.
Diante disto, indaga-se: Poderia o Legislador restringir a evolução social e deixar de reconhecer a união
homoafetiva como entidade familiar?”, o que responde, com base no fato de a Constituição de 1988 ter
consagrado a ideia de família plural e não mais um modelo único de família [doutrina Cezar Fiuza e de
Farias e Rosenvald], no sentido de que “o Legislador não poderia tolher ou restringir em um único
modelo, as entidades familiares que se estabeleceram através das mutações culturais, ideológicas e
sociais”; (ii) assim, “A alegação do Ministério Público de que a Ação de Declaração de Preceito
Fundamental nº 132/RJ e a ADI 4277/DF, permitiriam somente a união estável homoafetiva e a conversão
desta em casamento, não prospera. A Ação de Declaração de Preceito Fundamental nº 132/RJ e a ADI
4277/DF embora não tenham enfrentado expressamente o tema aqui proposto, ou seja, da
possibilidade da realização direta do casamento entre pessoas do mesmo sexo, deu importante passo
rumo à aceitação da união civil homoafetiva, apesar do § 3.º, do art. 226, e o Código Civil, trazerem
como protagonistas da união estável e do casamento, os gêneros homem e mulher. No julgamento da
ADPF, que tem efeito erga omnes, reconheceu-se a vedação do Estado em fazer qualquer acepção de
reconhecimento de direitos civis, sob o argumento de se tratarem de pessoas do mesmo sexo,
prestigiando assim, aos princípios da paridade e da isonomia real, além da dignidade da pessoa
humana, da intimidade e da autonomia da vontade nas relações afetivas”, donde “O que a
Constituição e Código Civil construíram, em termos dogmáticos, sobre a definição de casamento e
entidade familiar, foi apenas um modelo básico e tradicional, não implicando que fosse o único. O fato
dos arts. 1.514 e 1.565 do Código Civil, preconizarem a realização do casamento civil entre homem e
mulher, deve ser interpretado de forma harmônica e sistemática com a Constituição Federal em seu
artigo 5º, caput, inciso I, do qual emerge o comando normativo, que não haverá qualquer restrição ou
impedimento ao exercício de direitos ou garantias fundamentais, em razão do sexo ou da orientação
sexual, conforme anotado na ADPF acima citada. Neste compasso, mesmo à míngua de norma
expressa permissiva, deixar à margem da proteção estatal as relações homoafetivas, justo por serem
homoafetivas, implicaria em violar os princípios da paridade e da isonomia, além da garantia
fundamental da dignidade e da não violação à intimidade. O Estado, na hipótese de não reconhecer a
união civil e o vínculo matrimonial entre pessoas do mesmo sexo, estaria determinando com quem os
indivíduos poderiam se relacionar amorosa, afetiva e sexualmente. Sendo maiores e capazes, não tem
o Estado o poder de interferir no relacionamento individual, e nem lhes negar proteção legal,
prevalecendo o princípio da autonomia das vontades. O que se pretende é [que] o Estado declare os
integrantes da união homoafetiva, como detentores de direitos e obrigações recíprocas, e para com
terceiros. Neste âmbito, não há nenhum impedimento legal para que o Estado assim o faça. À luz do
Estado Brasileiro, a união de pessoas com a finalidade de estabelecimento de uma vida em comum,
deverá ser tutelada pelo ente estatal, independente de ser heteroafetiva ou homoafetiva. A lavratura do
casamento não se confunde com a conversão de união estável em casamento, já que são dois institutos
totalmente distintos. Nesta esteira, a interpretação do Ministério Público, de que para realizar o
casamento civil homoafetivo, haveria necessidade da prévia existência de união estável, deverá se
restringir apenas a hipótese de conversão desta em casamento. Aliás, esse requisito é tanto para união
hetero quanto homoafetiva, pois, do contrário, pelo princípio da isonomia, também o casamento civil
entre pessoas de sexo oposto, só poderia se realizar havendo prévia união estável, seguindo esta ótica.
Por fim, finalizo expondo que o reconhecimento da possibilidade de matrimônio para pessoa do mesmo
sexo, vem para evitar que injustiças sociais continuem acontecendo, como por exemplo, o não
reconhecimento de direitos previdenciário; alimentos; direitos sucessórios; direito de habitação, e
principalmente, o tratamento digno no âmbito social e familiar. Do exposto, REJEITO a impugnação
Ministerial, DEFERINDO a permissão para o registro do casamento civil, decorrente de relação
homoafetiva, após deferida a Habilitação junto à autoridade competente. Ressalvo, entretanto, que esta
decisão restringe-se apenas ao permissivo para a realização do CASAMENTO CIVIL, sendo que as
celebrações de casamento NO ÂMBITO RELIGIOSO, deverão respeitar ao direito de crença e credo”.
Outras decisões foram proferidas, embora a elas não tenha tido acesso. Não é possível atingir a
completude, embora ela fosse desejável. De qualquer forma, o que todas essas decisões demonstram com
seus argumentos, que se complementam reciprocamente, é que não há como deixar de entender que o
reconhecimento da união homoafetiva como família conjugal pela decisão do STF no julgamento da
ADPF 132 e da ADI 4.277 torna obrigatório o reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento
civil homoafetivo, principalmente mediante conversão de união estável homoafetiva em casamento civil,
já que a família conjugal é o objeto valorativamente protegido pelos regimes jurídicos do casamento
civil e da união estável (é ela o fato jurígeno por eles regulamentado), donde ausente proibição legal, de
rigor o reconhecimento do direito de casais homoafetivos ao casamento civil.
Ademais, especificamente quanto à questão da conversão de união estável em casamento civil, foi
bem anotado pela juíza Junia de Souza Antunes que a união estável é um instituto uno que não se divide
em “união estável homoafetiva” e “união estável heteroafetiva”, uma vez caracterizado que o casal vive
uma união pública, contínua e duradoura com o intuito de constituir família, ela será reconhecido como
“união estável”, seja formada por um casal homoafetivo ou por um casal heteroafetivo. Quando se fala
em união estável homoafetiva e união estável heteroafetiva visa-se apenas destacar, com o adjetivo, se
ela é formada por duas pessoas do mesmo sexo ou por duas pessoas de sexos diversos, mas isso não tem
o condão de significar que a uma seria devido um regime jurídico e, a outra, um outro, mais ou menos
amplo. Reconhecida a união como união estável, a ela serão devidos todos os direitos e deveres do
regime jurídico da união estável, sem distinções. A única distinção que havia na legislação, na época da
existência da separação judicial, consistia na impossibilidade de conversão em casamento civil da união
estável existente entre uma pessoa casada, mas separada de fato do(a) cônjuge, mas isso pela lógica
atinente ao fato de não ser permitida a bigamia no Brasil. Afora este caso, não se pode falar em nenhuma
diferença entre uniões estáveis, donde descabido alguém defender que parte dos direitos garantidos pela
legislação à união estável seria devida apenas à união estável heteroafetiva e não à união estável
homoafetiva.
Ainda sobre a conversão da união estável homoafetiva em casamento civil, publiquei parecer
discorrendo sobre um argumento formal e um argumento material que isto justifica140: o argumento formal
consiste no fato de que tanto a Constituição (art. 226, § 3.º, parte final, da CF/1988) quanto o Código
Civil (art. 1.726 do CC/2002) determinam a possibilidade de conversão de união estável em casamento
civil, visto que reconhecida a união homoafetiva como união estável ou, como preferem alguns, como
entidade familiar autônoma com igualdade de direitos à união estável heteroafetiva, de rigor o
reconhecimento do direito de casais homoafetivos que vivam em união estável converterem-na em
casamento civil; o argumento material consiste em uma questão de lógica: o casamento civil e a união
estável são regimes jurídicos destinados a proteger/regulamentar as famílias conjugais, donde, sendo a
união homoafetiva uma família conjugal, ela deve ter a si garantidos tanto o casamento civil quanto a
união estável, pois não faz sentido jurídico nenhum dizer que a união homoafetiva é uma família
conjugal e, por isso, forma uma união estável constitucionalmente protegida ou tem direito ao mesmo
regime jurídico da união estável, por analogia, mas que não poderia ser consagrada pelo casamento civil,
pois, repita-se, tanto o casamento civil quanto a união estável destinam-se a proteger/regulamentar as
famílias conjugais, donde é contraditório o não reconhecimento do casamento civil homoafetivo quando
se reconhece a união estável homoafetiva – afinal, a redação constitucional sobre união estável e a
redação dos artigos do Código Civil que tratam do casamento civil são análogas relativamente à menção
a homem e mulher ou marido e mulher – em ambos os casos, cita-se o fato heteroafetivo (homem e
mulher) sem, contudo, proibir o reconhecimento do fato homoafetivo (homem e homem ou mulher e
mulher) como casamento civil ou união estável.
Decisões que negaram a conversão de união estável homoafetiva em casamento civil afirmaram, em
síntese, que o STF se limitou a tratar do tema da união estável, sem julgar o tema do casamento civil, bem
como que a não conversão da união estável homoafetiva em casamento civil não implicaria
hierarquização de entidades familiares, já que a união homoafetiva restaria devidamente protegida pela
aplicação a ela do regime jurídico da união estável, ao passo que seria necessária alteração legislativa
para se poder reconhecer o casamento civil homoafetivo. Contudo, essa linha argumentativa não se
sustenta. Além de todos os argumentos das decisões que converteram uniões estáveis homoafetivas em
casamento civil, que por si demonstram o descabimento dessa exegese discriminatória das decisões que
indeferiram pleitos idênticos, cabe anotar o seguinte: afirmar que o STF tratou da união estável, mas não
do casamento civil, demonstra que o(a) magistrado(a) em questão não entendeu ou não quis entender toda
a lógica e a teleologia da decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277: como dito pelo
Ministro Gilmar Mendes, o fato de a Constituição reconhecer a união estável entre o homem e a mulher
não significa negativa de proteção à união estável ou à união civil entre pessoas do mesmo sexo – ora,
pelo mesmíssimo fundamento, o fato de a legislação reconhecer o casamento civil entre o homem e a
mulher não significa o não reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, até porque
ele não se encontra proibido pelos taxativos impedimentos matrimoniais do art. 1.521 do CC/2002.
Como se vê, a argumentação para o reconhecimento do casamento civil homoafetivo é a mesma utilizada
para o reconhecimento da união estável homoafetiva. É uma profunda incoerência reconhecer-se a união
estável homoafetiva, mas não o casamento civil homoafetivo, já que ambos os regimes jurídicos visam
regulamentar a família conjugal, uma vez que, reconhecida a união homoafetiva como família conjugal, a
ela são devidos ambos os regimes jurídicos. Por outro lado, essa exegese discriminatória efetivamente
hierarquiza a entidade familiar heteroafetiva acima da entidade familiar homoafetiva, já que àquela
reconhece o direito ao casamento civil, que resta negado a esta (por tal exegese discriminatória). Até
porque o casamento civil traz maior segurança jurídica ao casal do que a união estável, já que a singela
apresentação da certidão de casamento constitui prova absoluta de que o casal em questão forma uma
família conjugal, comprovação esta mais dificultosa a um casal que vive em união estável, sendo que
cada empresa/pessoa exige diferentes documentos para comprovação da união estável (não bastando, em
muitos casos, mera declaração notarial feita por tabelião de notas, por exemplo). Sem falar que o
casamento civil, ao menos na redação original do Código Civil de 2002, garante mais direitos do que a
união estável para fins sucessórios (o cônjuge herda mais bens que o herdeiro, o tema ainda carece de
enfrentamento pelo STJ e pelo STF no que tange à sua constitucionalidade, ante o dever de tratamento
igualitário pela legislação às entidades familiares). Logo, ao menos por questão de segurança jurídica, o
casamento civil traz maiores comodidades do que a união estável, donde há efetiva discriminação
jurídica pela negativa de acesso ao casamento civil a casais em união estável, consoante bem
demonstrado pela juíza Junia de Souza Antunes, de Brasília/DF, na decisão supraexplicitada.
Argumento curioso apresentado por uma juíza de Bauru na negativa de conversão de união estável
homoafetiva em casamento civil foi o de que “não cabe ao juiz instituir ou alargar previsão legal a
situação não normatizada” (sic). Contudo, como inclusive argumentei em recurso que ainda carece de
julgamento pelo TJ/SP, alargar previsão legal é precisamente o que a analogia faz! Interpretação
extensiva e analogia destinam-se justamente para alargar previsão legal a situação não normatizada, por
esta ser idêntica, ou idêntica no essencial, à situação normatizada pelo texto da norma, respectivamente.
É um absurdo afirmar que o juiz não poderia alargar previsão legal, já que isto é o que os arts. 4.º da
LINDB e 126 do CPC/1973 permitem141.
Por outro lado, apesar das referidas decisões terem autorizado o casamento civil homoafetivo
basicamente por força da decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277 (inclusive como
decorrência obrigatória do efeito vinculante e da eficácia erga omnes dela relativamente à conversão de
união estável homoafetiva em casamento civil), vale lembrar o posicionamento desta obra, cuja primeira
edição é anterior à referida decisão, no sentido de que o fato de a legislação dizer que o casamento é o
ato realizado quando “o homem e a mulher” comparecem perante o juiz de paz e que este declarará os
cônjuges “marido e mulher” não significa “proibição implícita” ao casamento civil homoafetivo, mas
mera regulamentação do fato heteroafetivo (união entre homem e mulher como casamento civil) sem
proibição do fato homoafetivo (união entre duas pessoas do mesmo sexo como casamento civil), o que
caracteriza lacuna normativa passível de colmatação por interpretação extensiva ou analogia, por força
do princípio da igualdade142 – como, aliás, referido pelo juiz Fernando Dominguez Guiguet Leal, de
Franco da Rocha/SP, bem como pelo Ministro Luís Felipe Salomão no julgamento do REsp
1.183.378/RS. Logo, deve-se destacar que mesmo que não tivesse sido proferida a decisão da ADPF 132
e da ADI 4.277, o casamento civil homoafetivo já seria juridicamente possível.
Fato inegável é que referidas decisões se tornaram tão corriqueiras porque os(as) magistrados(as)
respectivos(as) se sentiram encorajados(as) a reconhecer o direito ao casamento civil homoafetivo por
conta da histórica decisão do STF, muito embora evidentemente pudessem ter sido proferidas
independentemente da mesma. Claro que referidas decisões são importantíssimas, na medida em que a
decisão do STF realmente não tratou do tema do casamento civil pelo fato de a ADPF 132 e da ADI
4.277 terem como objeto apenas o regime jurídico da união estável – sendo que eu tinha “certeza” de que
a maioria da magistratura adotaria justamente a simplória fundamentação (usada por aqueles/as que
negam o casamento civil homoafetivo) segundo a qual “o STF tratou da união estável homoafetiva e não
do casamento civil homoafetivo” – trata-se de um (data maxima venia) simplismo acrítico inacreditável
de pessoas que não entenderam ou não quiseram entender a lógica e a teleologia da referida decisão (já
que, tendo ela reconhecido a união homoafetiva como família conjugal e sendo a família conjugal o
objeto de proteção também do casamento civil, é absolutamente contraditório com referida decisão não
reconhecer o direito de casais homoafetivos também ao casamento civil, pois as mesmas razões do
referido julgado justificam o direito dito direito), mas eu sinceramente temia que essa absurda exegese
restritiva fosse prevalecer. Foi com grande (e agradabilíssima) surpresa que vi que a maioria das
decisões não adotou essa exegese restritiva. Assim, merecem aplausos as magistradas e os magistrados
que fizeram a leitura adequada da decisão do STF para reconhecer o direito ao casamento civil
homoafetivo – elas e elas certamente merecem ser reconhecidas(os) pela história, sendo este o motivo
pelo qual fiz questão de citar seus nomes neste tópico quando da explicação de suas decisões143. De
qualquer forma, o que faço questão de anotar é que o direito ao casamento civil homoafetivo não depende
unicamente de uma decisão com força de lei do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a união
homoafetiva como família conjugal – ele pode (e deve) ser reconhecido independentemente disto,
obviamente com base no mesmo raciocínio. Mas, como se viu, o caráter vinculante e a eficácia erga
omnes da decisão do STF serviu de norte seguro à magistratura brasileira para reconhecer este direito
por acabar com a possibilidade de entendimentos contrários ao reconhecimento da união homoafetiva
como família conjugal, donde jamais se poderá menosprezar a extrema importância do histórico
julgamento de nossa Suprema Corte dos dias 04 e 05 de maio de 2011.

10. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O casamento civil homoafetivo é um pedido juridicamente possível no ordenamento jurídico
brasileiro na medida em que inexiste disposição legal expressa que o proíba. Além disso, é possível
também por uma interpretação sistemática do Direito (que afinal é a única interpretação juridicamente
válida), visto ser a união amorosa formada por pessoas do mesmo sexo idêntica ou, no mínimo, análoga à
união heteroafetiva, o que demanda por um tratamento jurídico igualitário de acordo com os princípios da
igualdade e da dignidade da pessoa humana, direitos humanos fundamentais e normas constitucionais de
eficácia plena que são. A ausência de menção legislativa expressa que o permita é irrelevante, em razão
da existência da interpretação extensiva e da analogia previstas nos arts. 4.º da LINDB e 126 do CPC.
Entendendo-se que a união homoafetiva é idêntica à heteroafetiva, como entende este autor, deve ser
aplicada a interpretação extensiva do art. 1.514 do Código Civil, tendo em vista que a situação
(casamento civil) encontra-se devidamente regulamentada e permitida a todos. Por outro lado,
entendendo-se ser ela diferente da união amorosa heteroafetiva pelo simples fato de termos, em um caso,
duas pessoas de sexos diversos e, em outro, duas pessoas do mesmo sexo (com o que não se concorda),
deve-se reconhecer que se trata de duas situações idênticas no essencial, pois ambas são fundadas no
amor romântico que visa a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, sentimento este que é o elemento formador da família contemporânea (amor familiar) –
sendo evidente que a lei do casamento civil visa proteger a família conjugal, donde ela também deve ser
aplicada para resguardar a família conjugal homoafetiva. Afinal, ela é muito mais próxima da união
matrimonializada (affectio maritalis) do que da “sociedade de fato” (affectio societatis), devendo ser
aplicada analogia com aquela e não com esta.
De qualquer forma, caso prevaleça o equivocado entendimento restritivo do casamento civil apenas
a casais heteroafetivos em razão da expressão “o homem e a mulher” existente nos dispositivos legais
(entendimento este que ignora as questões supra-apontadas, tendo em vista que não as enfrenta), resta
evidente a inconstitucionalidade do art. 1.514 do Código Civil (assim como de todos os outros
dispositivos legais que tragam tal expressão), tendo em vista a ausência de motivação lógico​-racional
que justifique a necessidade da discriminação dos casais homoafetivos em relação aos heteroafetivos
quando considerado o critério diferenciador erigido, que é a homogeneidade de sexos em um caso e
diversidade de sexos em outro, caracterizadora da orientação sexual do par. Assim, declarada a referida
inconstitucionalidade, deverá ser o casamento civil reconhecido tanto a duas pessoas de sexos diversos
quanto a duas pessoas do mesmo sexo, em interpretação conforme a Constituição.
Ressalte-se, ainda, que a declaração da inconstitucionalidade desse dispositivo legal não trará
nenhum prejuízo aos cidadãos, pois traz um mero conceito legal de casamento civil – conceito este
dispensável, visto todos saberem que o casamento civil é a união amorosa entre duas pessoas que
assumem reciprocamente direitos e obrigações oriundos de normas cogentes.
Não obstante, tendo em vista o fato notório de que os Cartórios de Registro Civil se recusam a
celebrar o casamento civil homoafetivo, o par interessado em se casar encontra-se obrigado a ingressar
com uma ação declaratória de possibilidade jurídica de casamento civil homoafetivo, pelo rito ordinário,
onde demonstre os requisitos de validade do casamento e apresente a fundamentação supraexposta no
sentido de sua possibilidade jurídica decorrente da interpretação extensiva ou da analogia. Por outro
lado, deve constar pedido alternativo de declaração de inconstitucionalidade do art. 1.514 do Código
Civil, caso o Judiciário entenda pela suposta “proibição implícita” do casamento civil homoafetivo em
atenção à redação do citado dispositivo legal.

1 AC 70012836755, TJ/RS, Relatora: Dra. Maria Berenice Dias, v.u., julgamento 21.12.2005.
2 Cf. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. O cuidado de si. 9. ed. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque.
São Paulo: Graal, 2007, p. 79 e 81. v. III.
3 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 79-81.
4 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 81-82.
5 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 82-83. Outrossim, “(...) A institucionalização do casamento por consentimento mútuo, escreve Cl.
Vatin, faz ‘nascer a ideia de que existia uma comunidade conjugal e que essa realidade, constituída pelo casal, tem um valor
superior ao de seus componentes. É uma evolução análoga que P. Veyne ressalta na sociedade romana: ‘Cada um dos
esposos tinha, sob a República, um papel definido a ser desempenhado, e uma vez realizado esse papel, as relações
afetivas entre esposos eram o que pudessem ser... Sob o Império... o próprio funcionamento do casamento supostamente
repousa no bom entendimento e na lei do coração. (...) Múltiplos serão, portanto, os paradoxos na evolução dessa prática
matrimonial. Ela busca suas cauções do lado da autoridade pública; e torna-se algo cada vez mais importante na vida
privada. Libera-se dos objetivos econômicos e sociais que a valorizavam; e ao mesmo tempo se generaliza. Passa a ser
para os esposos cada vez mais coercitiva e, ao mesmo tempo, suscita atitudes cada vez mais favoráveis como se, quanto
mais exigia mais ela atraísse. O casamento passaria a ser mais geral enquanto prática, mais público enquanto instituição,
mais privado enquanto modo de existência, mais forte para ligar os cônjuges e, portanto, mais eficaz para isolar o casal no
campo das outras relações sociais. (...) E por casamento não se deve entender somente a instituição útil para a família ou
para a cidade, nem a atividade doméstica que se desenrola no quadro e segundo as regras de uma boa casa, mas sim o
‘estado’ de casamento como forma de vida, existência compartilhada, vínculo pessoal e posição respectiva dos parceiros
nessa relação. (...)” (FOUCAULT, op. cit., p. 83-84 – grifos nossos).
6 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 101.
7 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 86-87.
8 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 153-155.
9 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 149-151.
10 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 152.
11 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 160.
12 “A arte da conjugalidade faz parte integrante da cultura de si” (FOUCAULT, op. cit., p. 164).
13 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 161-164.
14 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 167.
15 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 169.
16 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 171.
17 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 171-172.
18 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 173.
19 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 173-174. Sobre a questão dos prazeres no casamento (como eles eram admitidos, as
recomendações de não se tratar a esposa com a devassidão que se trata uma cortesã, para, ao contrário, tratá-la com
honestidade e comedimento, por se entender na época que os prazeres do casamento deveriam servir apenas para
propagar a espécie), com destaque às recomendações de austeridade intraconjugal nas práticas dos prazeres sexuais,
vide FOUCAULT, op. cit., p. 177-186.
20 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 186 e 192.
21 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 189-191.
22 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 200-201.
23 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 203-204.
24 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 204-205.
25 “O prazer sexual está, portanto, no coração da relação matrimonial como princípio e como garantia da relação de amor e
de amizade. Ele a fundamenta ou, em todo caso, dá-lhe novo vigor como a um pacto de existência (...) para a constituição
de uma unidade conjugal, viva, sólida e durável. (...)” (FOUCAULT, op. cit., p. 206-207).
26 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 205.
27 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 207-208. Daí “vermos constituir-se em Plutarco uma nova estilística do amor: ela é monista, na
medida em que inclui os aphrodisia, mas faz dessa inclusão um critério que lhe possibilita reter apenas o amor conjugal, e
excluir as relações com os rapazes, por causa da falta que as marca: elas não podem mais ter lugar nessa grande, única e
integrativa cadeira onde o amor se vivifica na reciprocidade do prazer” (FOUCAULT, op. cit., p. 208).
28 Foucault assim explica essa crença dos pensadores dos dois primeiros séculos da era cristã em prol da virgindade: “Vê-
se: a virgindade não é simplesmente uma abstenção preliminar à prática sexual. Ela é uma escolha, um estilo de vida, uma
forma elevada de existência que o herói escolhe, no cuidado que tem consigo mesmo. Quando as mais extraordinárias
peripécias (...) [entre os] piores perigos, o mais grave será, evidentemente, estar às voltas com a concupiscência sexual
dos outros; e a mais elevada prova de seu próprio valor e de seu amor recíproco será a de resistir a todo custo e de salvar
essa essencial virgindade. Essencial para a relação consigo mesmo, essencial para a relação com o outro. (...)”
(FOUCAULT, op. cit., p. 227).
29 FOUCAULT, op. cit., p. 228 e 233-235.
30 WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters. America, Equality and Gay People’s Right to Marry. New York, London, Toronto
e Sidney: Simon & Schuster Paperbacks, 2004, p. 03-05. Tradução livre.
31 WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters…, p. 08-09. Tradução livre. Grifos nossos.
32 In: Baehr v. Miike (1996).
33 Como o Brasil – art. 19, inc. I, da CF/1988.
34 In: Lawrence v. Texas (2003, voto vencido). Vale destacar, contudo, que a leitura do voto do Justice Scalia deixa claro que
ele proferiu tais palavras para inflamar a opinião pública estadunidense contra a decisão majoritária da Suprema Corte neste
caso, de declarar a inconstitucionalidade de leis que criminalizassem a chamada “sodomia homossexual” (ato sexual não
procriativo entre pessoas do mesmo sexo), mediante a afirmação de que, tendo a Suprema Corte (finalmente) afirmado que
a mera desaprovação moral, isoladamente considerada, não justifica racionalmente uma lei perante o princípio da
igualdade, então nada obstaria que ela impusesse o casamento civil homoafetivo, como fez o Canadá. Embora certo no
raciocínio, Scalia o utilizou claramente com o nefasto intuito de desacreditar a decisão da Suprema Corte naquele caso, por
força dos preconceitos sociais homofóbicos contra o casamento civil homoafetivo...
35 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 144.
36 WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters…, p. 4 (tradução livre, grifo nosso).
37 A saber (seguindo-se a lista do Grupo Leões do Norte): (01) Não podem se casar; (02) Não têm reconhecida a união
estável; (03) Não adotam sobrenome do parceiro; (04) Não podem somar renda para aprovar financiamentos; (05) Não
somam renda para alugar imóvel; (06) Não inscrevem parceiro como dependente de servidor público; (07) Não podem
incluir parceiros como dependentes no plano de saúde; (08) Não participam de programas do Estado vinculados à família;
(09) Não inscrevem parceiros como dependentes da previdência; (10) Não podem acompanhar o parceiro servidor público
transferido; (11) Não têm a impenhorabilidade do imóvel em que o casal reside; (12) Não têm garantia de pensão alimentícia
em caso de separação; (13) Não têm garantia à metade dos bens em caso de separação [precisando comprovar quanto
efetivamente contribuíram, por meio da “teoria das sociedades de fato”]; (14) Não podem assumir a guarda do filho do
cônjuge; (15) Não adotam filhos em conjunto; (16) Não podem adotar o filho da parceira; (17) Não têm licença-maternidade
para nascimento de filho da parceira; (18) Não têm licença maternidade ou paternidade se o parceiro adota um filho; (19)
Não recebem abono-família; (20) Não têm licença​-luto, para faltar ao trabalho na morte do parceiro; (21) Não recebem
auxílio-funeral; (22) Não podem ser inventariantes do parceiro falecido; (23) Não têm direito à herança; (24) Não têm
garantida a permanência no lar quando o parceiro morre; (25) Não têm usufruto dos bens do parceiro; (26) Não podem
alegar dano moral se o parceiro for vítima de um crime [embora isso seja, no mínimo, discutível]; (27) Não têm direito à
visita íntima na prisão; (28) Não acompanham a parceira no parto; (29) Não podem autorizar cirurgia de risco; (30) Não
podem ser curadores do parceiro declarado judicialmente incapaz; (31) Não podem declarar o parceiro como dependente
do Imposto de Renda (IR); (32) Não fazem declaração conjunta do IR; (33) Não abatem do IR gastos médicos e
educacionais do parceiro; (34) Não podem deduzir no IR o imposto pago em nome do parceiro; (35) Não dividem no IR os
rendimentos recebidos em comum pelos parceiros; (36) Não são reconhecidos como entidade familiar, mas sim como
sócios [por meio da citada “teoria das sociedades de fato”, fato este que não lhes permite a meação patrimonial sem prova
efetiva da contribuição à construção do patrimônio do(a) parceiro(a), o que não é exigido dos casais heteroafetivos]; (37)
Não têm suas ações legais julgadas pelas varas de família [que estão mais habituadas a tratar das questões envolvendo as
famílias, ou seja, as questões oriundas de agrupamentos humanos ligados pelo amor familiar]; (38) Não têm direito real de
habitação, decorrente da união (art.1831 CC); (39) Não têm direito de converter união estável em casamento; (40) Não têm
direito a exercer a administração da família quando do desaparecimento do companheiro (art.1570 CC); (41) Não têm direito
à indispensabilidade do consentimento quando da alienação ou gravar de ônus reais bens imóveis ou alienar direitos reais
(art.235 CC); (42) Não têm direito a formal dissolução da sociedade conjugal, resguardada pela lei; (43) Não têm direito a
exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos na hipótese do companheiro
falecido (art.12, Par. Único, CC); (44) Não têm direito a proibir a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a
publicação, a exposição ou a utilização da imagem do companheiro falecido ou ausente (art.20 CC); (45) Não têm direito a
posse do bem do companheiro ausente (art.30, par. 2º CC); (46) Não têm direito a deixar de correr prazo de prescrição
durante a união (art,197, I, CC); (47) Não têm direito a anular a doação do companheiro adúltero a seu cúmplice (art.550,
CC); (48) Não têm direito a revogar a doação, por ingratidão, quando o companheiro for o ofendido (art.558, CC); (49) Não
têm direito a proteção legal que determina que o companheiro deve declarar interessa na preservação de sua vida, na
hipótese de seguro de vida (art.790, parág. único); (50) Não têm direito a figurar como beneficiário do prêmio do seguro na
falta de indicação de beneficiário (art.792, CC); (51) Não têm direito de incluir o companheiro nas necessidades de sua
família para exercício do direito de uso da coisa e perceber os seus frutos (art.1412, par. 2º, CC); (52) Não têm direito de
remir o imóvel hipotecado, oferecendo o valor da avaliação, até a assinatura do auto de arrematação ou até que seja
publicada a sentença de adjudicação (art.1482 CC); (53) Não têm direito a ser considerado aliado aos parentes do outro
pelo vínculo da afinidade (art.1595 CC); (54) Não têm direito a demandar a rescisão dos contratos de fiança e doação, ou a
invalidação do aval, realizados pelo outro (art.1641, IV CC); (55) Não têm direito a reivindicar os bens comuns, móveis ou
imóveis, doados ou transferidos pelo outro companheiro ao amante (art.1641, V CC); (56) Não têm direito a garantia da
exigência da autorização do outro, para salvaguardar os bens comuns, nas hipóteses previstas no artigo 1647 do CC; (57)
Não têm direito a gerir os bens comuns e os do companheiro, nem alienar bens comuns e/ou alienar imóveis comuns e os
móveis e imóveis do companheiro, quando este não puder exercer a administração dos bens que lhe incumbe (art.1651 do
CC); (58) Não têm direito, caso esteja na posse dos bens particular do companheiro, a ser responsável como depositário,
nem usufrutuário (se o rendimento for comum), tampouco procurador (se tiver mandato expresso ou tácito para os
administrar) – (art.1652 CC); (59) Não têm direito a escolher o regime de bens que deseja que regule em sua união; (60)
Não têm direito a assistência alimentar (art.1694 CC); (61) Não têm direito a instituir parte de bens, por escritura, como bem
de família (art.1711 CC); (62) Não têm direito a promover a interdição do companheiro (art.1768, II CC); (63) Não têm direito
a isenção de prestação de contas na qualidade de curadora do companheiro (art,1783 CC); (64) Não têm direito de excluir
herdeiro legítimo da sua herança por indignidade, na hipótese de tal herdeiro ter sido autor, coautor ou partícipe de homicídio
doloso, ou tentativa deste contra seu companheiro (art.1814, I CC); (65) Não têm direito de excluir um herdeiro legítimo de
sua herança por indignidade, na hipótese de tal herdeiro ter incorrido em crime contra a honra de seu companheiro
(art.1814, II CC); (66) Não têm direito a Ordem da Vocação Hereditária na sucessão legítima (art.1829 CC); (67) Não têm
direito a concorrer a herança com os pais do companheiro, na falta de descendentes destes (1836 CC); (68) Não têm
direito ser deferida a sucessão por inteiro ao companheiro sobrevivente, na falta de descendentes e ascendentes do
companheiro falecido (art.1838 CC); (69) Não têm direito a ser considerado herdeiro “necessário” do companheiro (art.1845
CC); (70) Não têm direito a remoção/transferê ncia de servidor público sob justificativa da absoluta prioridade do direito à
convivência familiar (art.226 e 227 da CF) com companheiro; (71) Não têm direito a transferência obrigatória de seu
companheiro estudante, entre universidades, previstas na Lei 8112/90, no caso, ser servidor público federal civil ou militar
estudante ou dependente do servidor; (72) Não têm direito a licença para acompanhar companheiro quando for exercer
mandato eletivo ou, sendo militar ou servidor da Administração Direta, de autarquia, de empresa pública, de sociedade de
economia mista ou de fundação instituída pelo Poder Público, for mandado servir, ex-officio, em outro ponto do território
estadual, nacional ou no exterior; (73) Não têm direito a receber os eventuais direitos de férias e outros benefícios do vínculo
empregatício se o companheiro falecer; (74) Não têm direito ao DPVAT (Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados
por Veículos Automotores de Vias Terrestres, ou por sua Carga, a Pessoas Transportadas ou Não), no caso de morte do
companheiro em acidente com veículos; (75) Não têm direito a licença gala, quando o trabalhador for celebrar sua união,
podendo deixar de comparecer ao serviço, pelo prazo três dias (art.473, II da CLT) e se professor, período de nove dias (§
3º., do art. 320 da CLT); (76) Não têm direito, de oferecer queixa ou de prosseguir na ação penal, caso o companheiro seja o
ofendido e morra ou seja declarado ausente (art.100 § 4º CP); (77) Não têm direito as inúmeras previsões criminais que
agravam ou aumentam a pena contra os crimes praticados contra o seu companheiro; (78) Não têm direito a isenção de
pena no caso do crime contra o patrimônio praticado pelo companheiro (art.181 CP) e nem na hipótese do auxílio a subtrair-
se a ação da autoridade policial (art.348 § 2º CP). Cf. http://mixbrasil.uol.com.br/pride/seus-direitos/grupo-pernambucano-
lista-direitos-negados-a-gays-no-brasil.html#rmcl (último acesso em 30 set. 2012). Ressalte-se que o fato de eventualmente
se conseguir esses direitos por decisão judicial (por analogia) não afasta a discriminação, pois eles são reconhecidos
automaticamente a casais heteroafetivos, ao passo que não se pode considerar existente igualdade se os homoafetivos
precisam contratar advogado, pagar honorários advocatícios e custas judiciais para, após longos anos, conseguir o
reconhecimento judicial de direitos para ter a si reconhecidos direitos automaticamente reconhecidos aos heteroafetivos.
38 Goodridge v. Department of Public Health, p. 9. Disponível
em: http://www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodridge.html. Acesso em: fev. 2007.
Sem grifos e destaques no original.
39 WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters…, p. 15. Tradução livre.
40 Nesse sentido, afirma Maria Berenice Dias que: “O fato de a atenção ser direcionada a alguém do mesmo ou de distinto
sexo não pode ser alvo de tratamento discriminatório, pois tem por base o próprio sexo da pessoa que faz a escolha. A
decisão judicial que adote por critério, não afetiva conjunção das pessoas, de suas próprias vidas, mas a mera coincidência
de sexos parte de um preconceito social. A espécie humana é a única em que há a separação psíquica e física entre o ato
sexual prazeroso e a função procriativa. Dessa separação, e na medida em que ela ocorre, nasce a liberdade de orientação
sexual, que se tornou inerente ao homem. Indivíduos de ambos os sexos têm o direito de entreter uma relação sexual além
da simples necessidade de reprodução, inclusive com pessoa do mesmo sexo, o que não afronta os conceitos das
sociedades historicamente desenvolvidas. Não cabe mais desfigurar para desproteger, senão por preconceitos que, presos
ao passado, distorcem no presente a evolução e a história da humanidade. Todos dispõem da liberdade de escolha,
desimportando o sexo da pessoa eleita, se igual ou diferente do seu. Se um indivíduo nada sofre ao se vincular a uma
pessoa do sexo oposto, mas recebe o repúdio social por dirigir seu desejo a alguém do mesmo sexo, está sendo
discriminado em função de sua orientação sexual. O tratamento diferenciado, pela inclinação a um ou a outro sexo,
evidencia uma clara discriminação à própria pessoa, em função de sua identidade sexual. Como a orientação sexual só é
passível de distinção diante do sexo da pessoa eleita escolhida, é direito que goza de proteção constitucional em face da
vedação de discriminação por motivo de sexo. O gênero da pessoa eleita não pode gerar tratamento desigualitário com
relação a quem escolhe, sob pena de se estar diferenciando alguém pelo sexo que possui: se igual ou diferente do sexo da
pessoa escolhida” (DIAS, Maria Berenice. União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2006, p. 76 – sem grifos no original). Destaque-se, apenas, que a sexualidade da pessoa independe
de escolha: a pessoa não tem como mudar sua orientação sexual. O que a autora quis dizer nesse trecho foi que, a partir
do momento em que alguém que direciona seu amor a alguém de sexo diverso não é discriminada juridicamente, também
não pode sê-lo uma pessoa que direciona seu amor a outra do mesmo sexo.
41 Denominada como “Parceria Civil Registrada” no substitutivo apresentado, projeto este que se encontra “engavetado” na
Câmara dos Deputados ante a absoluta falta de interesse político dos parlamentares em votá-lo, a uma pelo preconceito de
muitos em relação ao tema (em especial das bancadas religiosas que entendem que a Bíblia condenaria a
homossexualidade, e cuja decisão de não comparecer às votações por esse motivo caracteriza ampla afronta ao princípio
do Estado Laico, da mesma forma que o seria um voto pela não aprovação em decorrência do mesmo motivo), e a outra
pelo medo que muitos têm de, ao votar e especialmente aprovar esse projeto, perderem votos dos setores “conservadores”
(leia-se, preconceituosos) da população.
42 No mesmo sentido é a lição de Ana Carla Harmatiuk Matos, que aduz: “O casamento, hoje, não é mais uma instituição. Sua
função deve ser instrumento para a realização personalística de seus membros na formação familiar, ao lado das demais
possibilidades de entidades familiares. Por esses motivos, utiliza-se a expressão Família Eudemonista, traduzindo-se o
modelo de família voltado para a realização personalística de seus membros. Sobre o tema, João Batista Villela aduz a
‘passagem de um organismo preordenado a fins externos para um núcleo de companheirismo a serviço das próprias
pessoas que a constituem’. A família instaura-se prioritariamente como um núcleo de apoio e solidariedade. Percebe-se,
em consequência, no Direito de Família, um reconhecimento cada vez mais amplo dos efeitos jurídicos do afeto” (MATOS,
Ana Carla Harmatiuk. Uniões entre pessoas do mesmo sexo: aspectos jurídicos e sociais, 1.a Edição, Belo Horizonte:
Editora Del Rey, 2004, p. 27 – sem grifos no original).
43 Nesse sentido, ensina-nos Andrew Sullivan: “Alguns podem argumentar que casamento é, por definição, entre homem e
mulher; e que é difícil contrapor-se a uma definição. Mas, se o casamento for articulado mais além desse decreto circular,
então o motivo de ser exclusivo a um homem e a uma mulher desaparece. O cerne do contrato público [de casamento
civil] é um vínculo emocional, financeiro e psicológico entre duas pessoas; nesse aspecto, héteros e homos são idênticos”
(SULLIVAN, Andrew, Praticamente normal: um estudo sobre a construção social da conjugalidade homossexual, p. 151,
apud MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo: aspectos jurídicos e sociais, 1.a Edição, Belo
Horizonte: Editora Del Rey, 2004, p. 64-65 – sem grifos no original).
44 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 142.
45 Nesse sentido, afirma Alexandre de Moraes que: “O princípio da igualdade consagrado pela Constituição opera em dois
planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos
normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que
encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública,
de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião,
convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social. (...) Importante, igualmente, apontar a tríplice finalidade limitadora do
princípio da igualdade: ‘limitação ao legislador, ao intérprete/autoridade pública e ao particular’. O legislador, no exercício de
sua função constitucional de edição normativa, não poderá afastar-se do princípio da igualdade, sob pena de flagrante
inconstitucionalidade. Assim, normas que criem diferenciações abusivas, arbitrárias, sem qualquer finalidade lícita, serão
incompatíveis com a Constituição Federal. O intérprete/autoridade pública não poderá aplicar as leis e atos normativos aos
casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias. Ressalte-se que, em especial o Poder Judiciário,
no exercício de sua função jurisdicional de dizer o direito no caso concreto, deverá utilizar os mecanismos constitucionais
no sentido de dar uma interpretação única e igualitária às normas jurídicas. Nesse sentido a intenção do legislador
constituinte ao prever o recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (uniformização na interpretação da Constituição
Federal) e o recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça (uniformização na interpretação da legislação federal). Além
disso, sempre em respeito ao princípio da igualdade, a legislação processual deverá estabelecer mecanismos de
uniformização de jurisprudência a todos os Tribunais. Finalmente, o particular não poderá pautar-se por condutas
discriminatórias, preconceituosas ou racistas, sob pena de responsabilidade civil e penal, nos termos da legislação em
vigor” (MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional. 20.ª Edição, São Paulo: Editora Atlas, 2006, p. 65 – sem grifos no
original). No mesmo sentido, pode-se citar, como um todo, a obra clássica de José Joaquim Gomes Canotilho (Constituição
Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas, 2.a
Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2001), na qual o constitucionalista português demonstra que todas as normas
constitucionais, mesmo as programáticas, vinculam materialmente o legislador democrático, ainda que apenas de forma
negativa (conforme o caso).
46 “(...) é obrigatório afirmar, como diretriz geral para todos os casos, que a dimensão material do princípio da igualdade torna
inconstitucional qualquer discriminação que utilize preconceitos ou lance mão de juízos mal fundamentados a respeito da
homossexualidade. Vale dizer, em cada uma das questões onde surgir a indagação sobre a possibilidade da equiparação
ou da diferenciação em função da orientação sexual, é de rigor a igualdade de tratamento, a não ser que fundamentos
racionais possam demonstrar suficientemente a necessidade de tratamento desigual, cujo ônus de argumentação será
tanto maior quanto mais intensa a distinção examinada. No caso da homossexualidade (...) constata-se que o estágio do
conhecimento humano que hoje compartilhamos desautoriza juízos discriminatórios com base exclusiva no critério da
orientação sexual. Com efeito, a evolução experimentada pelas ciências humanas e biológicas desde a metade do século
XX já é suficiente para a superação dos preconceitos que anteriormente turvavam a mentalidade contemporânea diante da
homossexualidade” (RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: A
Homossexualidade no Direito Brasileiro e Norte-Americano. 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.
136 – sem grifos no original).
47 “Esclarecendo melhor: tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro, se há
justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em
função da desigualdade afirmada. (...) Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que
exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de
supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos
dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo
jurídico do princípio da igualdade. 3.ª Edição, 11.ª Tiragem, São Paulo: Malheiros Editores, 2004, Maio 2003, p. 37-39 – sem
grifos no original).
48 “Assim, diante da ausência de uma justificação racionalmente lógica, o que exige um alto grau de fundamentação para
embasar o tratamento diferenciado, a obrigatoriedade do tratamento isonômico se impõe na medida em que essa aplicação
pode significar restrição e mesmo afronta direta ao direito fundamental da igualdade (...)” (GIRARDI, Viviane. Famílias
Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005, p. 80 – sem grifo no original).
49 Goodridge v. Department of Public Health, p. 9. Disponível
em: http://www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodridge.html. Acesso em: fev. 2007.
Sem destaques no original.
50 Apenas para evitar eventuais mal-entendidos, não tive tal compreensão quando elaborei minha monografia de conclusão do
curso de Direito no Instituto Presbiteriano Mackenzie, intitulada Homoafetividade & Família: Da Possibilidade Jurídica do
Casamento, da União Estável e da Adoção por Homossexuais, na qual acreditei acriticamente na existência de “proibições
implícitas” ante a redação do art. 1.514 do CC/2002, pelo que me penitencio. Em outras palavras, o pensamento deste autor
evoluiu ao constatar a inexistência de proibições implícitas em Direito ante o teor do art. 5.o, II, da CF/1988.
51 Quanto à definição da interpretação extensiva e sua diferença da analogia, cite-se a saudosa lição de Miguel Reale: “(...) o
pressuposto do processo analógico é a existência reconhecida de uma lacuna na lei [ao passo que] Na interpretação
extensiva, ao contrário, parte-se da admissão de que a norma existe, sendo suscetível de ser aplicada ao caso, desde que
estendido o seu entendimento além do que usualmente se faz. É a razão pela qual se diz que entre uma e outra há um grau
a mais na amplitude do processo integrativo” (REALE, Miguel, Lições preliminares de direito, 27.ª Edição, 4.ª tiragem, São
Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 298 – sem grifos no original).
52 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 143.
53 Cf. DIAS, op. cit., p. 144.
54 Ibidem, p. 145.
55 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas, 8.a Edição, São Paulo: Editora Renovar,
2006, p. 78.
56 Nesse sentido, vide: Maria Helena Diniz (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, 11.ª Edição, São Paulo:
Editora Saraiva, 2005, p. 112-114): “Para integrar a lacuna, o juiz recorre, preliminarmente, à analogia, que consiste em
aplicar, a um caso não contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma prevista para uma
hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado. É a analogia um procedimento quase lógico, que envolve
duas fases: ‘a constatação (empírica), por comparação, de que há uma semelhança entre fatos-tipos diferentes e um juízo
de valor que mostra a relevância das semelhanças sobre as diferenças, tendo em vista uma decisão jurídica procurada’. A
nosso ver, a analogia é um instrumento lógico-decisional, pois sua aplicação leva à decisão do magistrado, sem, contudo,
haver interferências lógico-silogísticas, implicando uma seleção, um juízo avaliativo, por parte do órgão judicante, dos
elementos relevantes. (...) Percebe-se que o problema da aplicação analógica não está na averiguação das notas comuns
entre o fato-tipo e o não previsto, mas sim em verificar se essa coincidência sobreleva, em termos valorativos, de maneira
a justificar plenamente um tratamento jurídico idêntico para os fatos ora em exame (AJ, 30:156, 51:87, 53:156; RF, 128:998;
RT, 131:569, 209:262, 433:178, 446:154, 635:263). A analogia é apenas um processo revelador de normas implícitas. O
fundamento da analogia encontra-se na ‘igualdade jurídica’, já que o processo analógico constitui um raciocínio ‘baseado em
razões relevantes de similitude’, fundando-se na identidade de razão, que é o elemento justificador da aplicabilidade da
norma a casos não previstos, mas substancialmente semelhantes, sem contudo ter por objetivo perscrutar o exato
significado da norma, partindo, tão só, do pressuposto de que a questão sub judice, apesar de não se enquadrar no
dispositivo legal, deve cair sob sua égide por semelhança de razão. É necessário, portanto, que além da semelhança entre
o caso previsto e o não regulado haja a mesma razão, para que o caso não contemplado seja decidido de igual modo. Daí o
célebre adágio romano: ubi eadem legis ratio, ibi eadem dispositio” (sem grifos no original). Ressalte-se, ainda, que o fato
de a referida autora defender em sua obra que o casamento civil homoafetivo seria “absurdo” é irrelevante, pois não traz ela
uma motivação lógico-racional que justifique a pertinência de dita discriminação, limitando-se apenas a propagá-la, o que
não atende ao aspecto material da isonomia e, por isso, não pode ser considerado como válido – mesmo porque, como se
diz na esfera contenciosa, “alegar sem provar é o mesmo que não alegar”. Está ela certa quando trata da analogia,
conforme o trecho ora transcrito, mas não quando defende que o casamento civil homoafetivo seria um “absurdo”, pelas
razões expostas neste trabalho.
57 Goodridge v. Department of Public Health, p. 9. Disponível
em: http://www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodridge.html. Acesso em: fev. 2007.
Sem destaques no original.
58 Com relação ao ordenamento jurídico português, a inconstitucionalidade da proibição do casamento civil homoafetivo é
ainda mais evidente, na medida em que, além de consagrar a isonomia genericamente considerada, a Constituição
Portuguesa possui cláusula expressa de proibição de discriminação por orientação sexual ao dispor que: “Ninguém pode
ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de (...)
orientação sexual” (art. 13, item 2). Além de dispor que: “Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento
em condições de plena igualdade” (art. 20, item 1). Que a negativa do casamento civil homoafetivo constitui discriminação
por orientação sexual e/ou por motivo de sexo é questão já demonstrada neste trabalho. Mas, no ordenamento jurídico
português, isso fica ainda mais evidente na medida em que a Constituição Portuguesa aduz expressamente que o
casamento civil é um direito de todos, logo um direito também dos homossexuais. Contudo, é de se anotar que Canotilho e
Vital Moreira têm posição diversa, com a qual não se pode concordar. Aduzem os autores que “o alargamento do âmbito de
protecção do preceito à realidade de comunidades familiares diversas e plurais não se transfere de plano para o casamento
de pessoas do mesmo sexo. Seguramente, basta o princípio do Estado de direito democrático e o princípio da liberdade e
autonomia pessoal, a proibição de discriminação em razão da orientação homossexual, o direito ao desenvolvimento da
personalidade, que lhe vai naturalmente associado, para garantir o direito individual de cada pessoa a estabelecer vida em
comum com qualquer parceiro de sua escolha (cfr. anotação ao art. 13.o) (embora sempre com a limitação dos
impedimentos impedientes do casamento em sentido restrito, o que leva a proibir, é óbvio, uniões homossexuais de irmãs,
irmãos, mães-filhos, pais-filhos etc. e de pessoas sem idade nupcial). Mas a recepção constitucional do conceito histórico
de casamento como união entre duas pessoas de sexo diferente radicado intersubjectivamente na comunidade como
instituição não permite retirar da Constituição um reconhecimento directo e obrigatório dos casamentos entre pessoas do
mesmo sexo (como querem alguns a partir da nova redacção do art. 13.o-2), sem todavia proibir necessariamente o
legislador de proceder ao seu reconhecimento ou à sua equiparação aos casamentos (como querem outros)”
(CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. CRP – Constituição Portuguesa Anotada, 1.a Edição Brasileira, 4.a
Edição Portuguesa, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, vol. I, p. 567-568). Todavia, equivocam-se os autores.
Primeiramente, a liberdade e autonomia pessoal para permitir uniões fáticas com quem se pretenda não afasta o citado
conteúdo discriminatório, na medida em que o casamento civil é o único regime jurídico que confere integral proteção do
Direito às uniões amorosas, donde configura inequívoca discriminação o não reconhecimento do casamento civil de
determinados grupos, que, como dito, precisa respeitar o aspecto material da isonomia para ser válido. Por outro lado (e em
especial), a mera existência de dispositivo aduzindo expressamente ser o casamento civil um direito de todos já permite
extrair um reconhecimento direitamente constitucional do casamento civil homoafetivo, na medida em que, se o casamento
civil é um direito de todos, então evidentemente é também um direito de homossexuais, que podem se casar, obviamente,
com pessoas do mesmo sexo. A conjugação desse dispositivo com aquele relativo à proibição de discriminação por
orientação sexual torna isso ainda mais evidente, pois tal cláusula constitucional já torna suspeita qualquer diferenciação
por esse motivo (assim como pelos demais arrolados no citado art. 13, item 2, da Constituição Portuguesa, conforme
explicitei no capítulo em que tratei da isonomia), havendo presunção de inconstitucionalidade de diferenciações com base
nesse critério, donde necessária uma motivação lógico-racional que justificasse sua necessidade como forma de se
alcançar um importante fim estatal – motivação esta inexistente. Por outro lado, inexiste “recepção constitucional” do
conceito de casamento civil como entre pessoas de sexos diversos – a Constituição Portuguesa (e a Brasileira) nada
dispõe nesse sentido, limitando-se a tratar do “casamento” de forma genérica, sem limitá-lo a heterossexuais em nenhum
momento. Ainda que se considere o casamento civil como “instituição” (o que é um equívoco, pois ele é tão somente um
contrato típico de Direito das Famílias), é de se notar que mesmo instituições milenares, quando ingressam em um
ordenamento jurídico, devem respeitar a sua sistemática, donde, havendo proibição à arbitrariedade pela cláusula da
isonomia, então o reconhecimento da possibilidade do casamento civil homoafetivo passa a ser inafastável na medida em
que configura arbitrariedade o seu não reconhecimento – donde o arbitrário caráter pré-jurídico do casamento, que o
limitava apenas a pessoas de sexos diversos, não é válido nas ordens constitucionais que vedam a arbitrariedade. Assim, é
de se notar o equívoco de Canotilho e Vital Moreira nesse ponto, sendo que a função social do princípio da igualdade, tão
bem explicitada por Canotilho, impõe o reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo também (e
especialmente) no ordenamento jurídico português, por força da interpretação extensiva ou da analogia, que, afinal,
decorrem da própria isonomia no sentido de tratar-se igualmente os iguais ou fundamentalmente iguais, respectivamente.
Lamentavelmente, o Tribunal Constitucional Português, em 2009, afirmou ser constitucional dita proibição ao casamento
civil homoafetivo do Código Civil Português, rasgando assim sua Constituição sobre o ponto. O tema não será, todavia, aqui
analisado.
59 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica
e familiar contra a mulher, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p. 35-36.
60 ARRIADA, Roberto Lorea. A influência religiosa no enfrentamento jurídico de questões ligadas à cidadania sexual: Análise
de um acórdão do Tribunal de Justiça do RS, in: RIOS, Roger Raupp (org.). Em defesa dos direitos sexuais, 1a Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 192 (para todas as citações).
61 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, p. 45-48 – grifos nossos.
62 Idem, p. 36-37.
63 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 11 e 17.
64 ADPF 132 e ADI 4.277, aditamento ao voto do Ministro Luiz Fux, p. 5-6.
65 MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. Interpretar a Constituição não é ativismo judicial (ou “ADPF 132 e ADPF 178 buscam
uma interpretação adequada de direitos já existentes na Constituição”). Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?
artigos&artigo=554> (publicado em 7 out. 2009; último acesso em: 1º jan. 2012).
66 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial. Parâmetros Dogmáticos. 1ª edição, 2ª tiragem, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 107.
67 LEAL, Saul Tourinho. Ativismo ou Altivez? O Outro Lado do Supremo Tribunal Federal, 1ª edição, Belo Horizonte: Fórum,
2010, p. 18.
68 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 44. No original: “O fato de a Constituição proteger, como já
destacado pelo eminente Relator, a união estável entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção – nem
poderia ser – à união civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo”.
69 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 54.
70 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, p. 45-48 – grifos nossos.
71 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 54-55.
72 ROTHENBURG, Walter Claudius. Inconstitucionalidade por Omissão e Troca de Sujeito. A perda de competência como
sanção à inconstitucionalidade por omissão. 1.ed. São Paulo: RT, 2005, pp. 13 e 90-91. Grifos nossos.
73 Muito embora pareça haver prevalência do entendimento intermediário, que coloca o casamento civil como um misto entre
contrato e instituição. Apenas para não deixar de me posicionar sobre o tema, entendo que o casamento civil nada mais é
do que um contrato, assim como qualquer outro, com a peculiaridade de ser um contrato típico, ou seja, ter seus contornos
totalmente regulados pelo Código Civil, sendo que a vontade das partes praticamente só tem relevância na decisão de
contrair o matrimônio, na escolha do regime de bens, na escolha do domicílio do casal, na forma de criação de eventuais
filhos (naturais ou adotivos) e, por fim, no momento da dissolução da sociedade conjugal. Como bem diz Maria Berenice
Dias, “quase se poderia dizer que o casamento é um contrato de adesão, pois os efeitos e formas estão previamente
estabelecidos, não havendo espaço para a vontade dos noivos, que se limitam a dizer ‘sim’ diante da autoridade civil, o que
tem o alcance da concordância com os deveres do casamento” (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 1.a
Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 145), embora conclua a autora ser descabido tentar identificar o
casamento com institutos com finalidade exclusivamente de ordem obrigacional, sob o fundamento de o casamento ser um
negócio jurídico que não está afeito à teoria dos atos jurídicos, razão pela qual opina pela qualificação deste como “negócio
de direito de família” para diferenciá-lo dos demais negócios de Direito Privado (ibidem, p. 145).
74 Por “preferência” deve-se entender preferência arbitrária, não pautada pela lógica e racionalidade. Afinal, considerando que
a isonomia permite diferenciações lógico-racionais, o referido dispositivo constitucional só faz sentido quando interpretado
de forma a vedar a instituição de preferências arbitrárias dos brasileiros entre si, ou seja, de forma a proibir preferências
entre cidadãos idênticos ou então idênticos no essencial. Exemplo de preferência válida é a instituição de preferência do
idoso no que tange a determinados assentos nos transportes públicos e no atendimento em instituições financeiras e
estabelecimentos públicos em geral.
75 Como se sabe, há três correntes acerca da natureza jurídica do preâmbulo constitucional. A primeira nega-lhe qualquer
eficácia jurídica; a segunda atribui-lhe a mesma natureza das normas constitucionais; e a terceira, intermediária,
reconhece-lhe eficácia interpretativa da Constituição, embora reconheça que na contradição entre preâmbulo e norma
constitucional prevaleça esta. Este autor adere à terceira corrente, visto que os valores que inspiraram a elaboração de uma
carta constitucional não podem ser desprezados, embora, contudo, não constituam norma constitucional propriamente dita,
donde devem ser tidos como paradigmas interpretativos da Carta Constitucional (ressalto que não desconheço que o
Supremo Tribunal Federal adotou a concepção que nega qualquer eficácia jurídica ao preâmbulo quando do julgamento da
ADIn 2.076. Contudo, entendo que o Supremo errou na referida posição, pois se é verdade, como é, que o preâmbulo não
prevalece sobre o texto normativo de artigos da Constituição, ele não pode ter negada qualquer força jurídica, sob pena de
ser tido como juridicamente inútil, o que se afigura contraditório na medida em que o preâmbulo faz parte do texto
constitucional e, ainda, em atenção ao célebre princípio hermenêutico segundo a qual a lei não pode ter palavras inúteis –
no que inclusa também a lei constitucional, evidentemente –, aspectos estes não considerados pelo Supremo). Ainda no
que tange ao preâmbulo, é de se notar que a expressão “sob a proteção de Deus” não significa que as religiões poderiam
influir na interpretação constitucional: visto que o princípio do Estado Laico veda a utilização de fundamentações religiosas
para embasar discriminações juridicamente válidas, donde a contraposição entre dita expressão e o art. 19, I, da CF/1988
só pode levar à prevalência deste em relação à expressão preambular. Ademais, mesmo isoladamente considerada, dita
expressão somente expressa que o Brasil não é um Estado Ateísta, proibidor de qualquer crença teísta, mas um Estado
Laico, que permite a liberdade religiosa embora vede, por força do citado dispositivo constitucional, a utilização de
fundamentações religiosas para embasar discriminações juridicamente válidas. Note-se, por fim, que o Supremo deixou
claro no julgamento da referida ADIn 2.076 que a expressão “sob a proteção de Deus”, além de não ser texto normativo de
repetição obrigatória, não é juridicamente relevante, nos termos do voto Sepúlveda Pertence, que não foi contestado pelos
demais Ministros, quando disse que tal expressão não constitui norma jurídica na medida em que não se pode obrigar a
divindade a cumprir com a promessa supostamente feita (!).
76 Este parágrafo é baseado em espirituosa manifestação de uma amiga jurista, cuja modéstia fez com que pedisse que seu
nome não fosse citado neste trabalho.
77 Esta foi justamente a tese que defendi em minha citada monografia de conclusão do curso de Direito do Instituto
Presbiteriano Mackenzie, nominada Homoafetividade & Família: Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União
Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, na qual, como dito anteriormente, tive como pressuposto a existência de tal
“proibição implícita” por uma aceitação acrítica do quanto defendido pela doutrina nesse sentido.
78 Qual seja a concessão de menos direitos às uniões homoafetivas quando comparadas às heteroafetivas.
79 Que é a identidade de sexos em um caso e a diversidade de sexos em outro, caracterizadoras da orientação sexual não
heteroafetiva do casal.
80 Como a dignidade humana (art. 1.º, III), a promoção do bem-estar de todos (art. 3.º, IV, parte final); a sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos (preâmbulo); a liberdade de consciência (art. 5.º, VI); e a proibição da criação de distinções
(arbitrárias) entre brasileiros ou preferências entre si (art. 19, III).
81 Nesse sentido, é oportuna a lição de Viviane Girardi, para quem: “Olhando a questão da homossexualidade pelo prisma do
princípio da igualdade na lei, não há como se negar a quem possui identidade homossexual os mesmos direitos concedidos
aos heterossexuais, unicamente por causa da orientação sexual daqueles. De fato, o princípio da igualdade será violado
sempre que o fator diferencial utilizado para embasar o tratamento diferenciado for única e exclusivamente a orientação
sexual do indivíduo. Ou seja, quando este fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamento
jurídico dispensado, estar-se-á diante de uma arbitrariedade, e não de um tratamento legitimamente diferenciado. O
princípio isonômico em relação aos homossexuais estará violado quando a homossexualidade for utilizada como um
critério discriminatório, sem justificativas racionais, as quais encontram sua base nos valores estabelecidos na ordem
constitucional, especialmente nos direitos fundamentais” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A
Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 80-81
– sem grifos no original).
82 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família, 22.a Edição, 2.a tiragem, São Paulo: Editora
Saraiva, 2007, p. 52.
83 Case CCT 60/04 e Case CCT 10/05. Disponível em: http://www.constitutionalcourt.org.za (link “Judgments”, “Search”,
Keyword “homosexual” – caso “Minister of Home Affairs and Another v Fourie and Another (Doctors for Life International
and Others, Amicus Curiae); Lesbian and Gay Equality Project and Others v Minister of Home Affairs and Others”). Acesso
em: 13 out. 2006.
84 Que exige fundamentação lógico-racional para a limitação dos direitos constitucionais por meio da consideração de cinco
critérios: a natureza do direito, a importância do propósito da limitação, a natureza e a extensão da limitação, a relação entre
a limitação e o seu propósito e a forma menos restritiva de se chegar àquele propósito – critérios estes utilizados, ainda que
com outras palavras, pela doutrina e pela jurisprudência brasileiras no que tange aos nossos princípios da igualdade
material e da proporcionalidade.
85 Restrição esta que só existirá para aqueles que, contrariando o art. 5.o, II, da CF/1988, admitam a existência de “proibições
implícitas” em Direito.
86 Na 1ª edição desta obra, afirmamos que nesta ação deveriam constar como réus a União Federal (que é a responsável por
legislar sobre Direito Civil – art. 22, I, da CF/1988); o Estado-Membro onde morem os(as) autores(as), na qualidade de
litisconsorte necessário (ou, no mínimo, facultativo), pelo casamento civil ter de ser celebrado no Estado onde morem
eles(as). Tive tal entendimento em razão da Ação Civil Pública 2005.61.18.000028-6, movida pelo Ministério Público Federal
contra a União, todos os Estados e o Distrito Federal pleiteando pelo reconhecimento do direito de casais homoafetivos
terem acesso ao casamento civil. Contudo, atualmente penso de forma distinta. Entendo que o casal deve se dirigir ao
cartório de registro civil e, caso haja negativa do juiz de Direito responsável pela circunscrição em questão em celebrar seu
casamento civil por conta de processo de dúvida suscitado pelo tabelião, deve o casal ingressar com a referida ação
perante uma das varas de família, colocando o Juízo no polo passivo da ação, pleiteando a nulidade de dita decisão que
negou seu direito de acesso ao casamento civil. Isso supõe que o cartório de registro civil tenha recebido o pedido de
habilitação em casamento homoafetivo, o remeteu ao juiz de Direito e este efetivou a recusa, caso em que será o juízo o
polo passivo da ação. Contudo, se próprio cartório se recusar a receber o pedido de habilitação em casamento civil do
casal homoafetivo, como alguns têm absurdamente feito após a decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277 (ou seja, após 05.05.2011), então o próprio cartório de registro civil deverá constar do polo passivo da ação, mediante
prova da recusa (negativa formal fornecida por este, notificação extrajudicial não respondida no prazo nela solicitado,
depoimento de testemunhas de tal negativa etc.).
87 Demonstrando o controle misto de controle de constitucionalidade vigente no Brasil e a questão da eficácia da sentença
nesse sentido, é pacífica a doutrina constitucionalista pátria, da qual se cita, exemplificativamente, José Afonso da Silva:
“Em suma, à vista da Constituição vigente, temos a inconstitucionalidade por ação ou por omissão, e o controle de
constitucionalidade é o jurisdicional, combinando os critérios difuso e concentrado, este de competência do Supremo
Tribunal Federal. Portanto, temos o exercício do controle por via de exceção e por ação direta de inconstitucionalidade e
ainda por ação declaratória de constitucionalidade. De acordo com o controle por exceção, qualquer interessado poderá
suscitar a questão da inconstitucionalidade, em qualquer processo, seja de que natureza for, qualquer que seja o juízo. (...)
Em primeiro lugar, temos que discutir a eficácia da sentença que decide a inconstitucionalidade na via de exceção, e que se
resolve pelos princípios processuais. Nesse caso, a arguição de inconstitucionalidade é questão prejudicial e gera um
procedimento incider tantum, que busca a simples verificação da existência ou não do vício alegado. E a sentença é
declaratória. Faz coisa julgada no caso e entre as partes. Mas, no sistema brasileiro, qualquer que seja o tribunal que a
proferiu, não faz ela coisa julgada em relação à lei declarada inconstitucional, porque qualquer tribunal ou juiz, em princípio,
poderá aplicá-la por entendê-la constitucional, enquanto o Senado Federal, por resolução, não suspender sua
executoriedade, como já vimos. O problema deve ser decidido, pois, considerando-se dois aspectos. No que tange ao caso
concreto, a declaração surte efeitos ex tunc, isto é, fulmina a relação jurídica fundada na lei inconstitucional desde o seu
nascimento. No entanto, a lei continua eficaz e aplicável até que o Senado suspenda sua executoriedade; essa
manifestação do Senado, que não revoga nem anula a lei, mas simplesmente lhe retira a eficácia, só tem efeitos, daí por
diante, ex nunc. Pois, até então, a lei existiu. Se existiu, foi aplicada, revelou eficácia, produziu validamente seus efeitos”
(SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 25.ª Edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 51, 53
e 54 – sem grifos no original).
88 Princípio este que será enfocado no próximo capítulo.
89 Nessa mesma linha de raciocínio, a saber o fato de que a conceituação de uma união amorosa como uma “sociedade de
fato obrigacional” estar muito longe de abarcar toda a complexidade de uma relação amorosa, ensina-nos Roger Raupp
Rios: “A razão da pertinência de tais uniões ao direito de família é o reconhecimento da importância e da especificidade
delas, uma vez que outras figuras jurídicas, mesmo aproximadas, não se mostrariam adequadas para retratá-las. De fato,
se se quiser subsumir relações desta espécie ao quadro conceitual, onde sobreleva o elemento econômico, ignorar-se-á
gravemente o elemento afetivo que diferencia a união estável constitucionalmente protegida, pertinente ao direito de família,
da sociedade de fato, prevista no direito obrigacional. Pode-se argumentar, atento para o magistério de Clóvis do Couto e
Silva, que as relações humanas, permeadas de intensa intimidade, constituintes de tal comunhão de vida, não se ajustam
aos conceitos clássicos de direito subjetivo, tendo em vista o elemento afetivo que as informa. Como visto, o direito de
família caminha cada vez mais em direção ao reconhecimento da natureza familiar de relações humanas, estáveis e
duradouras, fundadas na sexualidade e no afeto, com a intenção de estabelecer-se uma plena comunhão de vida. Aí a
marcha histórica e dogmática que indiscutivelmente fez adentrar no texto constitucional a enumeração das comunidades
familiares acima mencionada. Neste rumo, foram superados antigos dogmas relativos às finalidades reprodutivas destas
comunidades, antes apresentadas como condições necessárias para o reconhecimento da entidade familiar; também
foram ultrapassadas exigências formais, antes satisfeitas unicamente pela celebração do casamento civil ou religioso. As
chamadas ‘uniões homossexuais’, onde vínculos afetivos e sexuais constroem uma comunhão de vida estável e durável,
satisfazem, portanto, estas notas distintivas requeridas pela regulação jurídica da família estampada na Constituição de
1988. Com efeito, diante do perfil destas relações, faz-se necessário o seu acolhimento no âmbito do direito de família, uma
vez que é este o domínio jurídico adequado para a juridicização desta modalidade de relação social. Como apontou Luiz
Edson Fachin, no direito de família a afetividade sobrepuja a patrimonialidade” (RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade
no direito. Porto Alegre: RT, 2001, p. 108-109 – sem grifos no original). No mesmo sentido, conclui Maria Berenice Dias: “As
uniões de duas pessoas do mesmo sexo – agora chamadas de união homoafetiva – merecem ser abrigadas no Direito de
Família, e não relegadas ao campo dos negócios, pois não são sociedades de fato cujos sócios visam ao lucro, são
sociedades de afeto (DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre a Homoafetividade. Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2004, p. 22 – grifo nosso).
90 Cf., v.g., STJ, REsp 827.962/RS, DJe de 08.08.2011; MS 14.050/DF, DJe 21.05.2010; REsp 782.601/RS, DJe 15.12.2009;
AR 3.387/RS, DJe 01.03.2010; MS 13.17/DF, DJe 29.06.2009; AgRg no REsp 853.234/RJ, DJe de 19.12.2008; REsp
820.475/RJ, DJe 06.10.2008; AgRg no REsp 863.073/RS, DJe 24.03.2008; REsp 797.387/MG, DJ 16.08.2007, p. 289; MS
11.513/DF, DJ 07.05.2007, p. 274; RMS 13.684/DF, DJ 25.02.2002, p. 406; REsp 220.983/SP, DJ 25.09.2000, p. 72.
91 A qual, como visto, define que o que não é juridicamente proibido é juridicamente permitido, cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura
do Direito. Tradução:João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 46-48 e 270.
92 Processo 2005.61.18.000028-6, p. 8. Dita ação foi distribuída perante a Justiça Federal da Comarca de Guaratinguetá/SP,
mas foi redistribuída para a Justiça Federal da Comarca de São Paulo/SP, ante acolhimento de exceção de incompetência
respectiva.
93 Ibidem, p. 8.
94 Ibidem, p. 9.
95 Processo 2005.61.18.000028-6, p. 8.
96 Ibidem, p. 16 (grifo do original).
97 Ibidem, p. 20 (sem grifo no original).
98 Loc. cit.
99 Como se exige do julgamento realizado por um juiz de Direito.
100 Quanto ao conteúdo jurídico do PACS, ensinam-nos Maria Berenice Dias e Débora Vanessa Caús Brandão, assim citadas
por Taísa Ribeiro Fernandes (Uniões homossexuais: efeitos jurídicos, 1.ª Edição, São Paulo: Editora Método, 2004, p. 126-
127): “Trata-se de declaração conjunta em cartório, cujo registro marca o início de sua vigência. É livre a deliberação de
caráter patrimonial e, em caso de omissão, presumem-se comuns os bens adquiridos durante sua vigência. O contrato é
oponível a terceiros, gerando obrigações solidárias. O acordo, que pode ser alterado consensualmente a qualquer tempo,
cria a obrigação de auxílio mútuo, a ser livremente regulada entre as partes. É vedada sua estipulação entre ascendentes e
descendentes, bem como entre afins em linha reta e colaterais até o 3.º grau inclusive. Tampouco pode ser firmado por
pessoas casadas ou por quem esteja vinculado por outro pacto. A dissolução consensual é feita por declaração conjunta ao
cartório do registro ou unilateralmente, mediante comunicação ao outro e ao cartório, passando a vigorar após o decurso do
prazo de três meses. O casamento de um dos parceiros põe fim ao ajuste, bastando haver a comunicação acompanhada
da certidão do casamento. Ocorrida a morte de um, o sobrevivente ou qualquer interessado pode comunicar o fato ao
cartório. Não havendo consenso sobre a liquidação dos direitos e obrigações, cabe a dissolução judicial, independente da
reparação de danos eventualmente sofridos [lição de Maria Berenice Dias]. (...) Conforme o art. 515-3 do Código Civil
francês, o PACS deve ser apresentado por escrito em duas vias, mencionando, expressamente, que as cláusulas ali
contidas reger-se-ão pela Lei 944, de 15.11.1999. Além da qualificação das partes, é mister a descrição da forma com a
qual cada celebrante contribuirá para a vida em comum (divisão das despesas do aluguel, por exemplo); sobrevindo ruptura
do Pacto, a forma de divisão dos bens também já estará prevista. O procedimento para que o PACS passe a produzir
efeitos jurídicos almejados é bastante simples. As partes deverão comparecer ao cartório do tribunal de instância da
localidade onde tenham fixado a residência comum e apresentar todos os documentos pertinentes à prova da idade,
residência, nacionalidade, inexistência de impedimento matrimonial etc. Note-se que a competência é fixada pelo critério
territorial. Sendo uma das partes de nacionalidade estrangeira, o PACS será celebrado no consulado ou embaixada
correspondente. Após a homologação pelo tribunal de instância, as partes deverão registrar o PACS no cartório do tribunal
de instância do local de nascimento de cada uma das partes (se uma delas for estrangeira, o PACS deverá ser levado a
registro no tribunal de grande instância de Paris [lição de Débora Vanessa Caús Brandão].”
101 LOREA, Roberto Arriada. União estável: Sentença dá base legal para casamento entre gays. Fev. 2005, Seção Notícias.
Disponível em: http://conjur.uol.com.br/textos/252505/. Acesso em: 20 fev. 2005 (sem destaque no original). Vale a pena
conferir-se o original: “Em relação à impossibilidade jurídica do pedido, ponderou o representante do Parquet, em suas
manifestações, que o art. 226, § 3.º, da CF, vedaria a possibilidade de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo
sexo. Salientou, também, a falta de embasamento legal para fundamentar entendimento diverso, explicitando em seu
parecer a necessidade de cautela por parte do julgador, porquanto o reconhecimento de união estável entre pessoas do
mesmo sexo poderia se traduzir no reconhecimento do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que
implicaria em reflexos ‘preocupantes’ no mundo dos fatos. Cabe referir, quanto a essa preocupação manifestada pelo
Ministério Público, a necessidade de que fossem explicitadas as preocupações mencionadas, para o fim de que pudessem
ser adequadamente enfrentadas todas as questões afetas ao pedido posto em lide. Nesse sentido, buscando contemplar
ditas preocupações, trago à colação a importante manifestação da Associação Americana de Antropologia [1], objetivando
esclarecer uma série de equívocos consagrados pelo senso comum acerca dos reflexos sociais decorrentes do
casamento entre pessoas do mesmo sexo. Declaração sobre o Casamento e a Família feita pela Associação Americana de
Antropologia (AAA). Arlington, Virgínia; o Comitê Executivo da Associação Americana de Antropologia, a maior organização
do mundo de antropólogos, que são as pessoas que estudam a cultura, vem a público fazer a seguinte declaração em
resposta à chamada feita pelo Presidente Bush para uma emenda constitucional proibindo o casamento gay por entender
que este seja uma ameaça à civilização. ‘Os resultados de mais de um século de pesquisas antropológicas sobre unidades
domésticas, relações de parentesco e famílias, em diferentes culturas e ao longo do tempo, não fornecem qualquer tipo de
evidência científica que possa embasar a ideia de que a civilização ou qualquer ordem social viável dependa do casamento
ser uma instituição exclusivamente heterossexual. Ao contrário, as pesquisas antropológicas fundamentam a conclusão de
que um imenso leque de tipos de famílias, incluindo famílias baseadas em parcerias entre pessoas do mesmo sexo, podem
contribuir na promoção de sociedades estáveis e humanitárias.’ De resto, para além dessa contundente nota, é importante
salientar que a demanda deverá ser enfrentada à luz do ordenamento jurídico pátrio, postas de lado convicções pessoais,
moral religiosa, ou qualquer outra instância argumentativa que se afaste do direito vigente entre nós, sem que com isso se
despreze uma interpretação criativa do arsenal jurídico posto à disposição da sociedade brasileira, sem perder de vista que
ao direito convém agregar outros saberes, como já ensinava Caio Mário [2]: A todos vós posso afirmar com irrefutável
segurança que o Direito deve buscar, também em outras ciências, sobretudo sociais e humanas, apoio e parceria para
afirmar seus princípios, reorganizando, metodologicamente, estudos e pesquisas. (...) Outras ciências indicam novos
rumos ao Direito’. De fato, outras fontes de saber oportunizam que se reflita sobre a resistência dos operadores jurídicos
em garantir o direito constitucionalmente assegurado àquelas pessoas cuja orientação sexual se dirige a indivíduos do
mesmo sexo. Dados esses pressupostos, adentro à análise da preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, a qual, em
consonância com os ensinamentos de Nelson Nery Junior [3], apenas poderia ocorrer nos casos em que o nosso
ordenamento jurídico proíbe, expressamente, o objeto da pretensão. Da leitura do art. 226, § 3.º, da CF, não decorre a
conclusão ‘somente entre homens e mulheres’ adotada no parecer do fiscal da lei (fl. 11). Ao contrário, conclui-se que este
dispositivo não veda a possibilidade da proteção jurídica das relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Vislumbra-
se neste dispositivo uma lacuna, eis que não há norma expressa sobre este ponto específico, não existindo, portanto, a
impossibilidade de ocorrência das referidas uniões estáveis entre homossexuais. Nos casos de vazio normativo deve o juiz
decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (art. 4.º, da Lei de Introdução ao Código
Civil). Assim, consoante o art. 3.º, inciso IV, da Carta Magna, que preconiza o princípio da igualdade, não há óbice para que
esta regra constitucional, hierarquicamente superior, possa suprir a lacuna acima referida. O princípio da igualdade,
estampado no artigo supramencionado, possibilita que o pedido formulado pelo autor seja analisado, não podendo este ser
fulminado pela preliminar levantada à luz do art. 267 do CPC. Cumpre ressalvar que este princípio não possui um rol
taxativo de casos para sua ocorrência. O mesmo se perfectibiliza não pelo questionamento sobre se os direitos são válidos
apenas para uns ou para outros, mas pela simples aplicação ampla destes a todos, ou seja, a obtenção da igualdade
material. O desrespeito a este princípio constitucional fundamental também foi ressaltado no artigo “Direitos fundamentais,
homossexualidade e uniões homoafetivas” do doutrinador Romualdo Flávio Dropa [4], que afirmou: ‘A questão envolvendo
os direitos relativos às uniões homossexuais pertence, realmente, à esfera moral. Mas não à falsa moral de alguns
conservadores e retrógrados que insistem em negar a proteção e salvaguarda da justiça a seres humanos que escolheram
conviver embasados em sentimentos de amor e afeto fora dos ‘padrões’ socialmente convencionados, numa tentativa
frustrante de tentar demonstrar que a sociedade e seus valores são estáticos no tempo e no espaço. Ao falar em moral,
deve-se ter em mente que esta deve, sobretudo, enfatizar a guarda e respeito da justiça de maneira igual para todos. Quem
quer que seja privado daquilo que lhe é devido estará sofrendo a agressão de um ato imoral. E os parceiros homossexuais,
ao não terem seus direitos respeitados e salvaguardados, estão sendo vítimas de uma imoralidade que, no mínimo, deve
ser reformulada ou revista, sob pena do Judiciário brasileiro atravessar décadas enaltecendo a injustiça para alguns em prol
da falsa moral de outros’. Portanto, o reconhecimento da impossibilidade jurídica do pedido, pela falta de expressa
disposição legal, configuraria uma resistência imotivada para a efetiva análise do tema. Ademais, como referido acima,
existem normas que possibilitam a admissão deste questionamento. O Direito não é uma ciência exata, possibilitando que
as regras existentes em nosso ordenamento sejam interpretadas e complementadas, objetivando amparar todos os casos
concretos em consonância com as constantes modificações sociais. Neste sentido, o Des. José Carlos Teixeira Giorgis [5],
no artigo “A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica”, referiu: ‘As uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e
não podem ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciário solver os conflitos trazidos. É incabível
que as convicções subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de seus efeitos, relegando à margem
determinadas relações sociais, pois a mais cruel consequência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças’. O
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem firmado posicionamento no sentido de entender possível o pedido de
reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo, senão vejamos: ‘Homossexuais. União estável. Possibilidade
jurídica do pedido. É possível o processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais, ante princípios
fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao mesmo sexo,
sendo descabida discriminação quanto à união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se
estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos arcaicos, modificando conceitos e
impondo a serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e
amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e coletividades possam andar
seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja instruído
o feito. Apelação provida’ (Apelação n. 598362655, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Rel. Des.
José Trindade, data do julgamento 01/03/2000). Não se desconhece que neste mesmo Tribunal (Apelação n. 599348562) já
houve pedido de reconhecimento de união entre pessoas de mesmo sexo que foi julgado extinto, sob o argumento de
ausência de regulamentação sobre a matéria. Entretanto, não parece ser esta a interpretação jurídica mais acertada,
conforme, aliás, destacado na fundamentação do voto vencido naquela oportunidade, da lavra do Des. José Trindade, que
sustentava: ‘Sobre odiosa discriminação e preconceitos que possam ser lançados sobre qualquer pessoa em relação a sua
orientação sexual serve como paradigma a passagem do voto proferido quando do julgamento da Apelação Cível n. tal, na
terceira Câmara Cível deste Tribunal, sendo o relator o Desembargador Luiz Gonzaga Pilla Hofmeister, que transcrevo: ‘É
preciso, inicialmente, dizer que o homem e a mulher pertencem à raça humana. Ninguém é superior. Sexo é contingência.
Discriminar um homem é tão abominável como odiar um negro, um judeu, um palestino, um alemão ou um homossexual.
As opções de cada pessoa, principalmente no campo sexual, hão de ser respeitadas, desde que não façam mal a terceiros.
O direito à identidade pessoal é um dos direitos fundamentais da pessoa humana. A identidade pessoal é a maneira de ser,
como uma pessoa se realiza em sociedade, com seus atributos e defeitos, com suas características e aspirações, com
sua bagagem cultural e ideológica. É o direito que tem todo o sujeito de ser ele mesmo. A identidade sexual, considerada
como um dos aspectos mais importantes e complexos compreendidos destro da identidade pessoal forma-se em estrita
conexão com a pluralidade de direitos, como são aqueles atinentes ao livre desenvolvimento da personalidade, etc. para
dizer assim ao final: se bem que não é ampla, nem rica a doutrina jurídica sobre o particular, é possível comprovar que a
temática não tem sido alienada para o Direito vivo, quer dizer, para a jurisprudência comparada. Com efeito, em Direito vivo,
tem sido buscado, correspondido e atendido pelos juízes na falta de exposições legais expressas. No Brasil aí está o art. 4.º
da Lei de Introdução ao Código Civil a permitir a equidade e a busca da justiça’. Ainda acerca da falta de regulamentação do
casamento entre pessoas do mesmo sexo, oportuno referir que o Ministério Público Federal, através de seu procurador em
Guaratinguetá, SP, vem de ajuizar ação civil pública contra os entes federados, no sentido de assegurar em todo o país a
possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, justamente sob o argumento de que não é possível interpretar
restritivamente os dispositivos que regulam o casamento entre pessoas de sexos diferentes. Nem poderia ser de outro
modo, na medida em que a jurisprudência vem consagrando a possibilidade de que se vejam reconhecidas as uniões
estáveis entre pessoas do mesmo sexo, sem embargo de que o artigo 1.723, do Novo Código Civil ainda refira ser
reconhecida como entidade familiar a união estável ‘entre o homem e a mulher’ (...). Ora, deixando de referir aqui dezenas
de outras decisões de Tribunais Regionais e Estaduais, até mesmo o Tribunal Superior Eleitoral já se manifestou sobre
esse tema, reconhecendo a possibilidade de união estável entre duas pessoas do mesmo sexo, quando determinou a
inelegibilidade de candidata nas recentes eleições municipais de 2004 ao equiparar a união estável heterossexual à
homossexual: ‘Ementa Registro de candidato. Candidata ao cargo de prefeito. Relação estável homossexual com a prefeita
reeleita do município. Inelegibilidade. Art. 14, § 7.º, da Constituição Federal. Os sujeitos de uma relação estável
homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à
regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7.º, da Constituição Federal. Recurso a que se dá provimento. Decisão: O
Tribunal, por unanimidade, conheceu do recurso e lhe deu provimento, nos termos do voto do relator. (Acórdão 24564 Viseu-
PA 01/10/2004 Relator(a) Gilmar Ferreira Mendes Relator(a) designado(a) Publicação PSESS – Publicado em Sessão, Data
01/10/2004’. Assim, à luz do artigo 3.º, inciso IV, da Constituição Federal, conforme fundamentação supra, tenho que (não
apenas a união estável, mas também) o casamento, nos moldes como atualmente regulado pelo legislador, é um instituto
passível de ser acessado por todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual, razão pela qual rejeito a
preliminar de impossibilidade jurídica do pedido. No mérito, não deve prosperar a manifestação do Ministério Público, no
sentido de não existirem nos autos provas suficientes para configurar a existência da união estável objeto da pretensão
inicial. Primeiramente, verifica-se que todos os requisitos básicos para configuração da união estável, quais sejam:
publicidade, continuidade, perenidade e o objetivo de constituir família são facilmente identificáveis no caso em exame. A
globalidade da prova produzida: a escritura pública firmada pelas partes (fl. 06), o posterior contrato particular de dissolução
de união estável (fls. 07/08), a ratificação feita pelos autores, tanto em audiência quanto por declarações escritas, das
afirmações feitas na peça inicial (fl. 16) e as demais provas acostadas (fls. 24/29), demonstram que as partes mantiveram
a união estável alegada. Paralelamente a este fato, o procedimento adotado no presente feito nada difere de quando o objeto
da lide é uma união estável heterossexual. Nestas, tem-se como base, para a homologação pretendida, as afirmações
feitas na peça inicial e a posterior confirmação destas em audiência, adotando-se como praxe,a juntada de declarações em
substituição aos testemunhos prestados em audiência. Tais declarações, no caso dos autos, estão acostadas a fls. 17 e
18, ambas com firma reconhecida. Portanto, atribuir-se tratamento diferenciado aos jurisdicionados homossexuais seria um
desrespeito ao analisado princípio da igualdade. Nesse sentido, seria um absurdo aceitar que o Poder Judiciário fechasse
seus olhos não só para as modificações de nossa sociedade, como para a Constituição Federal que rege nossa nação.
Buscando na ‘falta de legislação expressa’ razão suficiente para julgar injustamente fatos que ocorrem entre ‘minorias
sociais’ que já são constantemente discriminadas. Isto posto, afastada a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido,
julgo procedente o pedido inicial e decreto a dissolução de união estável, nos moldes em que pretendida. NOTAS: [1] Texto
livremente traduzido do inglês, cujo original se encontra no site da entidade: http://www.aaanet.org. [2] Citado por Mauro
Nicolau Júnior in Revista Brasileira de Direito de Família n. 21, pág. 124. Síntese, Porto Alegre, dez/jan 2004. [3] Nery Junior,
Nelson. Código de Processo Civil Comentado: e legislação extravagante. Atualizado até 7 de julho de 2003. 7. ed. rev. e
ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. [4] Dropa, Romualdo Flávio, “Direitos fundamentais,
homossexualidade e uniões homoafetivas”, texto publicado no site http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5229,
09/02/2005, 18h. [5] Giorgis, José Carlos Teixeira, “A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica”, texto publicado no
site http://www.revistapersona.com.ar/8Giorgis.htm, 09/02/2005, 19h”.
102 Sentença proferida no Processo 001.181.480-80, perante a 2.ª Vara da Família e Sucessões da Comarca de Porto Alegre,
in: LOREA, Roberto Arriada. União estável: Sentença dá base legal para casamento entre gays. Fev. 2005, Seção Notícias.
Disponível em: http://conjur.uol.com.br/textos/252505/. Acesso em: 20 fev. 2005.
103 Cf. “Reconhecida a união estável durante 25 anos entre duas mulheres”. Disponível em: site Universo Jurídico
(www.uj.com.br). Acesso em: 8 jan. 2008. mesmo dia (sem grifo no original).
104 A íntegra das decisões aqui comentadas encontra-se no site: <www.direitohomoafetivo.com.br> (links
jurisprudência/casamento; especificamente no link: <http://www.direitohomoafetivo.com.br/JurisprudenciaList.php?
idJurisAssunto=4&idJurisSubAssunto=62>; último acesso: 5 jan. 2012).
105 Com a EC 66, que aboliu a separação judicial do mundo jurídico ao permitir o divórcio direto, esse argumento específico
perdeu força.
106 O artigo citado é: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família. Casamento civil, união estável e adoção por
casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade humana. Uma resposta a Rafael D’Ávila Barros Pereira. Jus
Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1824, 29 jun. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11441>. Acesso em: 6 jan.
2012.
107 Vale citar a íntegra das transcrições doutrinárias feitas pelo magistrado: “Discorrendo sobre o assunto, ensina Silvio de
Macedo, verbis: “(...) O amor é um valor vital, estético, metafísico, ético, social, jurídico como consequência. O sistema
jurídico, aberto, permite certa permeabilidade do amor. Daí se caracterizar também como valor jurídico. Se o amor pode
sacudir as estruturas sociais e se estas só mantêm estabilidade pelo direito, então amor e direito se aglutinam no sistema
jurídico, formando o valor jurídico. Polivalente e tocando os diversos níveis da escala axiológica, o AMOR é idôneo para tocar
e sensibilizar as demais estruturas sociais, a heterorrealização social, onde se aperfeiçoa e se realiza, instaurando a ordem
não apenas jurídica, mas metajurídica. Grandes contatos do direito com o amor, em determinadas circunstâncias históricas
e individuais, mostram não só a subjetividade, mas a objetividade da fé, da esperança e do amor no plano das realizações
sociais, daí não se justificando a não inclusão do amor como valor social, ao lado dos demais valores” (Curso de Axiologia
Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 93). “E se o Amor é não apenas um Valor jurídico, como também a causa das
causas de todos os direitos e da própria Convivência Humana, não há razão para indeferir o pedido ora formulado, baseado
justamente nesse valor, tão raro nos dias atuais. ‘O amor pelo próximo é princípio subliminar da ordem. É o sentimento
primeiríssimo, o primeiríssimo elã da alma, dos que são levados a conviver numa comunidade. Mesmo quando obumbrado,
não bem percebido ou expresso, ele é o cimento subjacente da união dos seres na sociedade. É o elo tácito da comunhão
humana numa Nação. Em verdade, o amor constitui, no imo da consciência de legisladores e intérpretes, a matriz
silenciosa, o submerso manancial, a inspiração geradora da Disciplina da Convivência. É a origem mais pura, mais
profunda da legislação: a causa das suas causas. É a fonte natural do Direito’” (O primeiro mandamento, Estudos... São
Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p. 7).
108 Processo 3.859/2009.
109 “O problema subjacente à interpretação extensiva (interpretação por analogia) pode ser descrito da maneira que se segue.
Se segundo seu sentido linguístico natural uma regra se aplica à esfera A), sua extensão à esfera B) pressupõe: 1) Que
atua uma valoração jurídica em favor da aplicação da regra à esfera B). Essa valoração pode fundar-se em particular na
concepção de que a regra é uma formulação parcial, uma revelação incompleta e esporádica de um ponto de vista mais
geral. 2) Que não há diferenças entre A) e B) que possam justificar o tratamento distinto dos dois casos. Se, por exemplo,
uma lei antiga utiliza palavras tais como ‘ele’ e ‘homem’, pode-se sustentar que no direito atual não subsiste a diferenciação
jurídica entre ‘homens’ e ‘mulheres’, e que a lei, portanto, deve estender-se, por analogia, às ‘mulheres’” (Alf Ross, Direito e
Justiça. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2007, p. 179. Referência do original; aspas simples nossas).
110 Processo não informado.
111 “Como disse, sempre estive entre os que entende a união homossexual como entidade familiar específica, interpretando​-
se o artigo 226, da Constituição Federal, sistematicamente com os demais dispositivos da Lei Maior, principalmente com o
catálogo de direitos fundamentais previsto no artigo 5o, visando a efetivação da dignidade da pessoa humana pela
concretização dos referidos direitos, e neste diapasão, tanto a união estável quanto o casamento estariam vinculados
constitucionalmente a necessidade de diferenciação de sexos, embora fosse a união homossexual também uma entidade
familiar. Não me parece ser de grande relevância o meu entendimento pessoal, se o STF já decidiu, em caráter erga
omnes, que o artigo que trata da união estável, previsto no Código Civil, se estende aos casais do mesmo sexo. Sendo
essa a decisão do Supremo, me parece inafastável a possibilidade de se reconhecer a possibilidade de casamento civil
entre tais casais, até porque, a mesma linha de raciocínio utilizada para uma hipótese se aplica integralmente à outra. (...)
Não podemos esquecer que no voto vencedor no STF, o Ministro Carlos Ayres conclui que deve ser interpretado
extensivamente o artigo 1723 do Código Civil, para alcançar as uniões homoafetivas, sob pena de inconstitucionalidade.
Não há como se dar interpretação diferente ao artigo 1.514, que trata do casamento, sob pena de incorrer em semelhante
inconstitucionalidade”. Sobre o tema, anote-se apenas que, embora louvando o magistrado por se curvar ao
posicionamento do STF sobre o tema, o mesmo se equivoca[va] ao dizer que casamento civil e união estável estariam
“vinculados constitucionalmente à necessidade de diferenciação de sexos”, pois a Constituição e o Código Civil não dizem
que união estável e casamento civil se dão “apenas” entre homem e mulher, donde o fato de citarem a expressão “o
homem e a mulher” significa a regulamentação do fato heteroafetivo como união estável e casamento civil sem proibição do
fato homoafetivo como tal, donde caracterizada lacuna colmatável por interpretação extensiva ou analogia.
112 Processo 562.01.2011.036208-2 (2136/2011).
113 Processo 224.01.2011.081916-6.
114 AC 0007252-35.21012.8.19.0000.
115 Processo n.º 5003849-43.2011.827.2729.
116 Provavelmente o magistrado quis dizer “afetividade” e não “efetividade”.
117 Apelações Cíveis (AC) n.º 0034412-55.2011.8.26.0071, 0001093-72.2011.8.26.0564, 0001545-82.2011.8.26.0564, 0004335-
34.2012.8.26.0037 e 0000050-38.2011.8.26.0326, julgadas conjuntamente (a primeira de autoria deste autor, que realizou
sustentação oral no referido julgamento).
118 Processo não informado. Para a íntegra de minha sustentação oral, vide
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/06/01/sustentacao-oral-no-tjsp-em-prol-da-conversao-de-uniao-estavel-homoafetiva-
em-casamento-civil/ (último acesso em: 2 out. 2012).
119 No relatório, a decisão assim descreveu os fundamentos do parecer: “O Ministério Público se manifestou
desfavoravelmente ao pleito, aduzindo que, nos termos da letra da Constituição da República, e da lei, seria impossível o
deferimento do pleito (fl. 61)”.
120 Processo não informado.
121 Apelação Cível (AC) 2012.003093-8.
122 Aqui o Tribunal trouxe argumentações religiosas que consideramos que não deveriam ser apresentadas em uma decisão
judicial pelo Estado ser Laico, a significar que fundamentações religiosas não podem embasar decisões jurídicas, mas,
como foi apenas um complemento da decisão, transcrevemos seu teor, até para mostrar aos religiosos em geral como
conjugalidade homoafetiva é condizente com os valores divinos (no caso das transcrições abaixo, valores cristãos) da
mesma forma que a conjugalidade heteroafetiva: “Neste aspecto, me escoro aos ensinamentos de Cristiane Bicca
(praticante da doutrina espírita), promanados em palestras difundidas no site ‘www.espirito.org.Br’: ‘... Deus não nos
castiga, não nos premia, nós é que construímos através do livre-arbítrio. É aí que entra a felicidade de servir. A arte de viver
é a arte de servir. Feliz é quem ama, não aquele que se faz amado. Felicidade é a arte de exalar alegria, a proposta da
felicidade é esta autossuperação, da dominação das nossas más inclinações. Somos filhos de Deus. A felicidade é possível
e já, não precisamos transferi-la. Quando buscamos e achamos Deus, não reclamamo-no mais, podemos dizer a este Pai
que amamos a vida, amamos o amor. Encaremos a vida com os olhos do bem, com a visão do amor e com o concreto
desejo de olharmos à nossa volta e verificarmos que o Pai tudo nos legou para que a nossa felicidade se efetive já.
Abençoemos o trabalho em que a vida nos situou; santifiquemos a família terrena do jeito que os familiares são;
enfrentemos com dinamismo e alegria os obstáculos da vida e assim, amando e servindo, haveremos de encontrar a
felicidade que há muito tempo espera por nós ...’. ‘... Com uma convivência aberta, cada um vai ficando menos egoísta,
porque aceita o outro como ele é e acredita que também pode aprender algo com o outro. É um processo de muita
interação, que só ocorre quando aceitamos os outros e quando saímos da condição de ‘certinhos’, de perfeitos. Todos nós
precisamos de contrastes, das adversidades, por isso é que o benfeitor Emmanuel afirmou ser o lar o purificador das almas
individadas [sic]. As carências de hoje representam os abusos do passado. É preciso, pois, estar atento ao aprendizado
que a vida familiar está lhe oferecendo. Só a família é capaz de propiciar essa experiência tão enriquecedora. Sem
esquecer, ainda, que na família é que nós encontramos as nossas melhores companhias... Portanto vamos amar nossa
família do jeito que ela é. E se eles não são aquilo que gostaríamos que fossem, lembrem-se de que nós também não
somos o que eles gostariam que fôssemos. Sem esquecer, ainda, que provavelmente já convivemos com eles em vidas
passadas e devemos ter nossa parcela de responsabilidade nessa história de capítulos tristes, mas cujo final poderá ser
muito feliz, se soubermos amá-los como nossos irmãos. Eles, nossos familiares, são nossos próximos mais próximos.
Não adianta querer amar o mundo, se ainda não somos capazes de amá-los. Se houver muito ódio, perdoe. Esqueça as
ofensas. Seja você aquele que ama. Não guarde o amor dos outros nem o reconhecimento pelos seus gestos. Dê o
primeiro passo para a sua família ser mais feliz ...’. (...) E, como dito por Chico Xavier, ‘O Cristo não pediu muita coisa, não
exigiu que as pessoas escalassem o Everest ou fizessem grandes sacrifícios. Ele só pediu que nos amássemos uns aos
outros’” (BACCELLI, Carlos. O Evangelho de Chico Xavier. São Paulo: Didier, 2000, p. 109)”.
123 Processo 201230200270.
124 Explicou que “a simplicidade da questão fática não retira a necessidade de se expor as razões do julgamento, que são
jurídicas, e as quais a sociedade tem o direito de conhecer, a par do dever da Julgadora de expor os fundamentos de suas
decisões”, pois embora não apresente uma tal fundamentação para casamentos civis heteroafetivos, tal é aqui realizado
“por necessidade de fincar um marco de inauguração de uma nova vertente de pensamento, de mais um passo de
consolidação de tratamento igualitário entre iguais nesta Vara Judicial, e (quem sabe) de fomentar a proibição de que as
cercas da desigualdade se levantem, ou teimem em ficar em pé, em outros rincões, sempre respeitando os sentires e
olhares diferentes do meu”.
125 Continuo a magistrada sobre o tema: “as instituições humanas, ainda carentes de certos elementos externos de
referência coletiva e individual, são sempre as últimas a se adequarem a essas mudanças, apesar de testemunharmos um
movimento salutar e crescente que prioriza a afetividade nas relações humanas, que se desloca silenciosa e
constantemente do ter para o ser, da periferia para o núcleo dos seres dotados de alma e inteligência”, sendo que “apesar
do tremendo avanço, a Carta Federal/1988 não teve como, onipresentemente, prever tudo, usar todas as expressões,
esgotar todas as possibilidades, usar todas as palavras para todos os casos possíveis, abarcar todos os fenômenos que a
sociedade nem suspeitava poder existir ou se estabelecer naquele contexto temporal. Querer diferente seria lançar a lei
máxima do país à condição de mero arquivo linguístico de regulamentação, de mero repertório prescritivo, e de uma
espécie de oráculo pós-moderno, o que é um absurdo em todas as perspectivas que se adote. Havia uma novidade a
caminho, em todo o mundo, em todos os âmbitos, talvez apenas ao alcance da percepção ou do vislumbre de uns poucos
visionários. Por isso o trabalho de integração e de interpretação da norma é contínuo”. Sobre a união homoafetiva na
jurisprudência, afirmou que “Primeiro foi considerada pelos Tribunais como mera sociedade de fato (enquanto muitos juízes
já avançavam para o sentido da união estável mesma), e depois como uma espécie de união onde apenas alguns direitos
do companheirismo eram reconhecidos, até se chegar ao reconhecimento da união estável propriamente dita, igual à
existente entre pessoas de sexo diferente; e, por fim, chegou-se à histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, em 5 de
maio de 2011, afastou as especulações e estabeleceu as bases de tratamento da questão para todos os demais
julgamentos semelhantes no país (o efeito vinculante)
126 Processo não informado.
127 Processo 16.249/11.
128 Ademais, afirmou o magistrado que “A união entre pessoas do mesmo sexo não é fato novo, havendo lenta e custosa
aceitação social tendo como base a fundamentação de que a dignidade de uma pessoa não está atrelada à sua orientação
sexual. Neste início de século XXI a sociedade brasileira vem sendo movida por novos parâmetros de liberdade quanto
àqueles que exercitam a própria sexualidade. Não restam dúvidas de que a orientação sexual é um direito de cada um
devendo a todos, mesmo aqueles contrários por motivos pessoais e religiosos, respeitar e tolerar para que haja uma
convivência harmoniosa sem conflitos sectários típicos de sociedades antigas. A tolerância é um sinal de sabedoria e quem
não pensa igual a mim não pode ser tratado com desprezo como lamentavelmente ainda verificamos todos os dias na
imprensa. O Juiz brasileiro, mesmo aqueles com formação religiosa mais rigorosa trabalha em um Estado laico com os
princípios e normas jurídicas laicas cujo valor principal é a dignidade humana. Não podemos com base em valores morais
pessoais de formação distinguir indivíduos pela sua orientação sexual. (...) Ouvido o Ministério Público, este manifestou
desfavoravelmente ao argumento de ausência de menção expressa na norma civil que regula o casamento entre pessoas
do mesmo sexo. Com a devida vênia compreendo sua opinião baseada na nossa cansada tradição romano-germânica de
ver o Direito. Na verdade todo este problema hermenêutico decorre da inércia legislativa que devido a interesses diversos
não cumpre seu papel constitucional de pacificar relações sociais conflituosas deixando para o Judiciário essa função
positiva. Para evitar conflitos a interpretação do Direito deve sucumbir à visão mais abrangente da realidade, examinando e
debatendo os diversos aspectos jurídicos que emergem das novas formas de entidades familiares”
129 Processo não informado.
130 Processo não informado.
131 Recurso 2011.01.1.194803-2 (acórdão 578.792).
132 A curiosidade deste caso é a de que o Tribunal extinguiu o processo sem resolução de mérito porque, como se tratava de
ação de reconhecimento de união estável para fins de concessão de visto de permanência no Brasil, a Corte entendeu que,
como não há óbice ao deferimento do casamento civil a casais homoafetivos, o casal deveria homologar seu casamento
civil no Brasil, donde não teria “interesse de agir” para mover ação de reconhecimento de união estável porque o visto de
permanência seria uma decorrência lógica do casamento civil [só admitindo a ação caso isso fosse negado pelas
autoridades brasileiras].
133 Processo 92/2012.
134 Processo não informado.
135 Afirmou o magistrado, contudo, que se não tivesse sido publicada a íntegra da decisão do STJ no REsp n.º 1.183.378/RS
no dia 01.02.2012, teria concordado com o Ministério Público acerca da necessidade de ação judicial do casal homoafetivo
para garantir seu direito de acesso ao casamento civil, donde fica claro que o permitiu por força do posicionamento do STJ.
136 Processo (RD) 00802.00355/2011.
137 Entendo que “união civil” não é sinônimo de “união estável”. União civil é um contrato formal ao qual o Estado reconhece
direitos e deveres; “união estável” é a união informal (sem necessidade de formalizações contratuais) pública, contínua e
duradoura com o intuito de constituir família, nos termos do art. 1.723 do CC/02.
138 Cf. https://exch2007.tj.rs.gov.br/owa/?ae=Item&a=New&t=IPM.Note#sdfootnote6sym (fonte do original).
139 Processo não informado.
140 Cf. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Possibilidade de Conversão de União Estável Homoafetiva em Casamento Civil,
2011b. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=767>. Acesso em: 5 jan. 2012 (argumentos aqui
explicados no corpo do texto). Ditos argumentos já tinham sido afirmados em outro artigo, que criticou decisões do TJRS
que negaram o direito ao casamento civil homoafetivo apesar de afirmarem que reconheciam o direito à união estável
homoafetiva, a saber: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. A Família Juridicamente Protegida, a Lei Maria da Penha e a
Proteção Constitucional da Família Homoafetiva – Equívocos dos Julgamentos do TJRS que Negaram o Direito ao
Casamento Civil Homoafetivo. Revista do Direito das Famílias e Sucessões, n.º 16, Jun-Jul/2010, pp. 93-117. No mesmo
sentido, mas de forma sintética: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O STF e a união estável homoafetiva. Resposta aos
críticos, primeiras impressões, agradecimentos e a consagração da homoafetividade no Direito das Famílias. Jus
Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2870, 11 maio 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19086>. Acesso em: 4
jan. 2012.
141 Referida decisão foi reformada pelo Conselho Superior de Magistratura do TJSP, em decisão de 31/05/12, em recurso de
autoria deste autor, julgado conjuntamente com outros sobre o mesmo tema.
142 Cf., na primeira edição desta obra, o Capítulo 6, item 3 – “A Interpretação Extensiva, a Analogia e a Possibilidade Jurídica
do Casamento Civil Homoafetivo” (VECCHIATTI, 2008, p. 257-271), bem como, no mesmo capítulo, o item 6 – “Da
Possibilidade Jurídica do Pedido de Casamento Civil Homoafetivo” (VECCHIATTI, 2008, p. 288-290) – tópicos mantidos
(com acréscimos) nesta nova edição.
143 Cabe reiterar que as decisões aqui não citadas não o foram por eu não ter localizado seu inteiro teor, mas evidentemente
as magistradas e magistrados que as proferiram também merecem o reconhecimento histórico mencionado no corpo do
texto.
Capítulo 7

UNIÕES HOMOAFETIVAS E ISONOMIA: UNIÃO ESTÁVEL

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DA UNIÃO ESTÁVEL. INTRODUÇÃO AO


TEMA DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA
A Constituição Federal de 1988, ao manter a família como base da sociedade, garantiu proteção à
união estável mantida como entidade familiar, enunciando que a lei deve facilitar a sua conversão em
casamento (art. 226, caput e § 3.º, da CF/1988).
Cabe aqui a primeira ressalva acerca da união estável: tem-se que a Carta Magna, ao definir a
família como base da sociedade brasileira, deu ao casamento civil o status maior do Direito de Família,
colocando-o como a situação ideal para uma entidade familiar – disso, porém, não se deve admitir que o
Estado conceda mais direitos ao casamento civil relativamente à união estável, por força do princípio da
igualdade, na medida em que são situações inequivocamente análogas. Embora a afirmação constitucional
de que a lei deve permitir a conversão da união estável em casamento civil indique uma preferência
constitucional pela situação de casamento civil relativamente à situação de união estável, ela deve ser
entendida em razão de o casamento civil trazer maior segurança jurídica ao casal e ao Estado, na medida
em que a certidão de casamento civil constitui prova absoluta de que o casal em questão forma uma
família conjugal, o que não ocorre na união estável, que precisa ser provada pelo casal para que ele faça
jus aos direitos (e obrigações) inerentes a uma família conjugal (a declaração notarial de união estável
não tem a mesma força legal da certidão de casamento civil, donde empresas distintas exigem
documentos distintos para a prova da união estável do casal – como declaração de dependência em
Imposto de Renda, em plano de saúde, conta bancária conjunta etc.). Assim, devem ser consideradas
inconstitucionais quaisquer regulamentações que venham a conceder menos direitos à união estável do
que aqueles relativos ao casamento civil.
A grande problemática no que tange ao reconhecimento da união estável homoafetiva encontra-se na
redação do § 3.º do art. 226 da CF/1988, que, na visão de muitos, restringiria sua aplicação apenas
àquela união estabelecida entre o homem e a mulher, estando portanto excluídas as homoafetivas. É o que
defende, por exemplo, Débora Vanessa Caús Brandão, ao comentar a posição doutrinária de Rainer
Czajkowski, da dupla José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz e de
Guilherme Calmon Nogueira da Gama, no sentido de que: “Ao referir-se, entretanto, à diferença entre
sexos, não possui em nenhum momento o intuito de admitir uma terceira posição, relacionada às
preferências homossexuais, preservadas contra a discriminação, ante a ausência de lei que a vede, mas
sem proteção especificamente orientada pelo exercício da opção de relacionamento sexual feita por cada
um”1.
Note-se pela primeira parte do texto transcrito que a autora adere firmemente à teoria de que a
homossexualidade seria uma “opção” do indivíduo, como aquela que se faz ao prestar vestibular para
Direito e não para Engenharia. Em primeiro lugar, conforme já demonstrado neste trabalho, tal posição
está muito longe de corresponder à realidade dos fatos, uma vez que não há uma “escolha” do indivíduo:
ele simplesmente é homossexual, heterossexual ou bissexual, sem nunca ter “optado” por esse estado. O
indivíduo simplesmente descobre que tem desejo sexual por pessoas do mesmo sexo, de sexo diverso ou
de ambos os sexos, sem, entretanto, ter havido “opção” alguma. Ademais, ante a posição da Organização
Mundial da Saúde2 e do nosso Conselho Federal de Psicologia3, tem-se que tanto a homossexualidade
quanto a bissexualidade não configuram doença, desvio psicológico, perversão nem nada do gênero,
tratando-se ambas de simples variações da rica sexualidade humana, sendo assim tão naturais quanto a
heterossexualidade. Assim, não há que se falar em uma “terceira posição” sexual, como faz Débora
Vanessa Caús Brandão: há indiscutivelmente dois sexos na comunidade humana – o masculino e o
feminino. Aqui se está tratando das orientações sexuais de cada indivíduo, que pode ser tanto homo
quanto hétero ou bissexual.
Destarte, não há que se falar em possibilidade de aplicação do instituto da união estável somente aos
casais heteroafetivos, tendo em vista que tal entendimento afronta diretamente o princípio da isonomia,
protegido constitucionalmente, inclusive como cláusula pétrea de nossa Carta Magna. Isso porque o não
reconhecimento da união estável homoafetiva caracteriza discriminação por orientação sexual e mesmo
discriminação sexual, tendo em vista que, se não fosse especificamente ele (ou ela) do seu sexo, mas
alguém do sexo oposto em sua situação, não haveria discussão alguma quanto ao reconhecimento do
Direito das Famílias como o aplicável à sua relação, com todas as consequências benéficas que dito
reconhecimento traz – como o direito a alimentos, meação patrimonial de acordo com o regime de bens
escolhido etc. Afinal, a orientação sexual do indivíduo só pode ser verificada quando da exteriorização
do amor dele para com aquele(a) com quem mantém um relacionamento amoroso, ou seja, pela
verificação do sexo da pessoa para com a qual exterioriza seu amor romântico.
Assim, ante a clara existência de verdadeira discriminação sexual contra o indivíduo que se
relaciona com outro do mesmo sexo, discriminação esta totalmente arbitrária e sem qualquer fundamento
lógico-racional com relação ao critério desigualador erigido, é imperiosa a aplicação do instituto da
interpretação extensiva ou da analogia no caso de uniões estáveis homoafetivas, para evitar a total
inconstitucionalidade ou incompatibilidade do disposto no § 3.º do art. 226 da Constituição Federal em
relação aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana. O termo (inconstitucionalidade ou
incompatibilidade) dependerá da tese a que se adere (se possível ou não a declaração da
inconstitucionalidade de normas oriundas do Poder Constituinte Originário), o que, sem embargo, na
prática, leva ao mesmo resultado, como se passa a analisar.

2. DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA


Enuncia o art. 226, § 3.º, da CF/1988 que: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento”.
Pelas mesmas razões expostas quanto ao casamento civil homoafetivo, tem-se por inequívoca a
possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por interpretação extensiva ou analogia, que são
técnicas interpretativas que visam justamente suprir lacunas da legislação (constitucional e
infraconstitucional). Afinal, é inegável que a família contemporânea constituída por casais forma-se pelo
amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura
(amor familiar), que é o elemento valorativamente protegido pelas normas que consagram a união
estável (amor romântico/conjugal, no caso do casamento civil e da união estável). Em outras palavras,
considerando que as uniões heteroafetivas são protegidas pelo regime jurídico da união estável em
virtude de formarem famílias conjugais, e que ditas famílias formam-se pelo amor familiar, então as
uniões homoafetivas merecem a mesma proteção jurídica, devendo ser reconhecidas como uniões
estáveis por meio da interpretação extensiva ou da analogia, em virtude de serem pautadas pelo mesmo
amor familiar existente nas uniões heteroafetivas, tratando-se, pois, de situações idênticas ou, no
mínimo, idênticas no essencial a estas.
Contudo, a não aceitação dessa proposição ensejará uma tensão entre o dispositivo constitucional da
união estável e outras normas constitucionais, como as da isonomia e da dignidade da pessoa humana,
tensão que precisará ser resolvida – seja mediante a adoção da tese dos “conflitos aparentes” entre as
normas constitucionais, seja pela adoção da tese dos “conflitos efetivos” entre elas, teorias estas abaixo
explicitadas.

2.1 Da incompatibilidade do art. 226, § 3.º, com a isonomia e a dignidade humana em caso de
negação da união estável homoafetiva. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
Da mesma forma que no capítulo anterior, não se ignora que há muitas vozes na doutrina e na
jurisprudência que consideram que a redação do art. 226, § 3.º, da CF/1988 restringiria o regime jurídico
da união estável apenas aos casais heteroafetivos. Que isso configura uma interpretação simplista,
baseada em um legalismo positivista de há muito ultrapassado, não resta a menor dúvida. Contudo, a
questão é que tal posição é adotada por considerável parte dos juristas, que se limitam a dizer que o
Constituinte teria sido “claro” ao permitir a união estável supostamente “apenas” a casais heteroafetivos
e, pelo caráter ilimitado e incondicionado do Poder Constituinte Originário, isso se afiguraria possível
em qualquer hipótese. Todavia, fato é que a absoluta arbitrariedade dessa posição afronta o próprio
núcleo essencial da isonomia, que veda discriminações arbitrárias – e, como se sabe, as restrições a
direitos fundamentais nunca podem afrontar o núcleo essencial de tais direitos.
Nesse sentido, vale citar a manifestação do Ministro Luiz Fux no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277 para destacar o descabimento da invocação da lacuna normativa para fins de negação do direito de
casais homoafetivos ao casamento civil (e à união estável):

Diante disso, ignorar a existência e a validade jurídica das uniões homoafetivas é o mesmo que
as por em situação de injustificada desvantagem em relação às uniões estáveis heterossexuais.
Compete ao Estado assegurar que a lei conceda a todos a igualdade de oportunidades, de modo que
cada um possa conduzir sua vida autonomamente segundo seus próprios desígnios e que a orientação
sexual não constitua óbice à persecução dos objetivos pessoais. O raciocínio se aplica, decerto, em
todos os aspectos da vida e não apenas os materiais ou profissionais – sob esse prisma, submeter
um indivíduo homossexual ao constrangimento de ter que ocultar seu convívio com o(a) parceiro(a)
ou de não poder esperar de suas relações os efeitos legalmente decorrentes das uniões estáveis é,
sem dúvida, reduzir arbitrariamente as suas oportunidades.

Assim, poder-se-ia, a princípio, dizer que o § 3.o do art. 226 da CF/1988 está carreado de
inconstitucionalidade parcial por permitir o regime jurídico da união estável somente às uniões
heteroafetivas, em uma suposta “vedação implícita” às uniões homoafetivas. Afinal, não há qualquer
fundamento lógico-racional para a discriminação das uniões entre pessoas do mesmo sexo em relação às
uniões entre pessoas de sexos diversos, estando inclusive ausente qualquer correlação lógica concreta
entre dita discriminação e os valores constitucionalmente consagrados. Dessa forma, assim como no caso
do casamento civil, há afronta aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana no tocante a
tal interpretação discriminatória.
Contudo, a doutrina constitucionalista é amplamente majoritária ao não admitir a possibilidade de
declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais oriundas do Poder Constituinte Originário,
por considerar como absoluto e ilimitado o caráter de dito poder, que assim poderia instituir o regime
jurídico que considerasse mais apropriado para o país por meio da Constituição que elabora, além de,
supostamente, tal situação ferir o princípio da unidade constitucional. O Supremo Tribunal Federal,
inclusive, manifestou tal entendimento no julgamento da ADIn 815-3/DF, relatada pelo Ministro Moreira
Alves4.
Dessa forma, a doutrina constitucionalista pátria não tem aceito integralmente a teoria das normas
constitucionais inconstitucionais de Otto Bachoff 5, admitindo apenas a eventual declaração de
inconstitucionalidade de normas constitucionais decorrentes do Poder Constituinte Derivado e do
Legislador Ordinário, limitados e relativizados que são pelo Constituinte Originário pelas cláusulas
pétreas da Constituição (e pela Constituição como um todo, no caso do legislador ordinário).
Por outro lado, também não se pode permitir que normas incompatíveis entre si subsistam em um
mesmo corpo normativo, especialmente na Constituição Federal, que condiciona a validade de toda a
legislação infraconstitucional devido à hierarquia das normas vigentes em ordenamentos jurídicos como
o nosso. Isso porque um texto normativo deve sempre ser interpretado sistematicamente, isto é, nunca se
deve interpretar um dispositivo normativo de forma isolada, mas sim de forma sistêmica, em consonância
com os demais textos normativos que visam reger a matéria em questão, sob pena de eventuais
incompatibilidades entre dispositivos pertencentes à mesma lei, o que é inaceitável em um sistema
jurídico (pois um sistema supõe um conjunto harmônico de normas).
Assim, em casos tais de incompatibilidade entre normas de uma mesma lei (constitucional ou
infraconstitucional), tem-se duas alternativas: ou altera-se/revoga-se parte dos dispositivos legais
contraditórios para resolver dita incompatibilidade ou então se utilizam os princípios gerais de
hermenêutica para a resolução da mesma. Esta é, a propósito, a orientação de nossa doutrina
constitucionalista, que entende que nunca existiriam conflitos efetivos entre normas constitucionais
oriundas do Poder Constituinte Originário entre si, dado o citado caráter absoluto e ilimitado do mesmo.
Consideram que eventuais conflitos entre ditas normas seriam, na verdade, meros conflitos aparentes,
ante a presunção absoluta de que as regras dali emanadas são todas compatíveis entre si, solucionáveis
pela utilização de ditos princípios gerais de hermenêutica, dentre os quais se encontram a analogia e a
interpretação extensiva.
Tal entendimento decorre do princípio da unidade da Constituição, que impõe ao intérprete que
harmonize as tensões existentes entre as normas constitucionais originárias entre si sempre que possível.
Dito princípio exige, ainda, a aplicação de uma interpretação sistemática à Constituição, justamente no
intuito de se harmonizarem as tensões existentes entre distintos preceitos constitucionais originários6.
No caso aqui analisado, são inegáveis a tensão e a incompatibilidade entre o art. 226, § 3.o, da
CF/1988 e diversos outros princípios constitucionais quando interpretado de forma que não reconheça a
união estável homoafetiva, a saber:
a) o princípio da isonomia estabelece que qualquer discriminação jurídica que se pretenda
introduzir deve ser uma decorrência lógico-racional do critério diferenciador erigido e que, ainda, deve
tal discriminação ser condizente com os valores constitucionalmente consagrados por nossa Carta Magna,
ao passo que o art. 226, § 3.º, da CF/1988, quando interpretado de uma forma que proíba a união estável
homoafetiva, traz um critério de diferenciação (por sexo/orientação sexual) que não contém uma
correlação lógico-racional com a discriminação jurídica que efetivamente introduz (diferenciação dos
regimes jurídicos aplicáveis à união estável homoafetiva e à heteroafetiva em razão da orientação sexual
– e, consequentemente, do sexo – dos companheiros) e, ainda, que não é condizente com outros valores
constitucionalmente consagrados, como:
a.1.) o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF/1988), que estabelece que
todos são merecedores de igual proteção de sua dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas,
garantindo a todos o direito à felicidade7. Isso porque tal discriminação implica, indiretamente, a
reprovação do Estado ao amor homoafetivo, o que é incompatível com o direito de respeito à dignidade,
que necessariamente implica a liberdade de envolvimento afetivo com quem se quiser, sem que isso seja
motivo para ser menosprezado jurídica ou socialmente;
a.2.) o princípio de que constitui um dos objetivos fundamentais da Constituição a promoção do
bem-estar de todos (art. 3.º, IV, da CF/1988), donde se infere que se busca inclusive o bem-estar de
homossexuais, o que fica impossibilitado pelo não reconhecimento tanto do casamento civil quanto da
união estável aos mesmos, pelo desprezo à conjugalidade homoafetiva inerente a tal postura estatal;
a.3.) o princípio da liberdade de consciência (art. 5.º, VI, da CF/1988), que garante a todos o direito
à autonomia moral, ou seja, a viver da forma como são, no sentido de agirem em conformidade com o seu
íntimo, vivendo a vida da forma que entendem correta8, uma vez que a homossexualidade e a
bissexualidade são características inerentes aos seres humanos que as possuem, sendo assim parte
integrante de sua personalidade, tendo eles o direito a não ser discriminados jurídica ou socialmente em
razão de sua consciência homoafetiva, visto não causar prejuízos a terceiros.
a.4.) o princípio da liberdade, que garante o direito à autonomia moral ao indivíduo, para que este
viva sua vida da forma que mais sentido lhe faça, desde que não prejudique terceiros, prejuízo este que
inexiste no que tange à homoafetividade9. Destaque-se que é a liberdade real, substancial que resta
afrontada, na medida em que não adianta existir uma liberdade formal de escolha se o Estado dificulta a
vida daquele que escolhe viver sua vida de forma diversa da pretendida pelo Estado (ressaltando-se que
a escolha existente no que tange à homossexualidade é a de vivenciar sua orientação sexual em sua
plenitude, como fazem heterossexuais, ou reprimi-la, não no sentido de decisão sobre amar pessoas do
mesmo sexo ou de sexo diverso).
Dessa forma, ante o entendimento acerca da impossibilidade de declaração de inconstitucionalidade
de normas constitucionais derivadas do Poder Constituinte Originário, é claro o conflito “aparente” do
art. 226, § 3.º, da CF/1988 em relação ao princípio da isonomia e todos os outros supraexplicitados
quando se considera cabível o regime jurídico da união estável apenas às uniões heteroafetivas, deixando
assim desamparadas as homoafetivas.
Quanto à forma de resolver os conflitos aparentes de normas constitucionais, leciona Alexandre de
Moraes10, aderindo às posições de Canotilho e Jorge Miranda:

“Canotilho enumera diversos princípios e regras interpretativas das normas constitucionais:


– da unidade da constituição: a interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a
evitar contradições entre suas normas;
(...)
– da máxima efetividade ou da eficiência: a uma norma constitucional deve ser atribuído o
sentido que maior eficácia lhe conceda;
(...)
– da concordância prática ou da harmonização: exige-se a coordenação e combinação dos
bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros;
– da força normativa da constituição: entre as interpretações possíveis, deve ser adotada
aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.
Aponta, igualmente, com Vital Moreira, a necessidade de delimitação do âmbito normativo de
cada norma constitucional, vislumbrando-se sua razão de existência, finalidade e extensão.
Esses princípios são perfeitamente completados por algumas regras propostas por Jorge
Miranda:
– a ‘contradição dos princípios’ deve ser superada, ou por meio da redução proporcional do
âmbito de alcance de cada um deles, ou, em alguns casos, mediante a preferência ou a prioridade
de certos princípios;
– deve ser fixada a premissa de que todas as normas constitucionais desempenham uma
função útil no ordenamento, sendo vedada e interpretação que lhe suprima ou diminua a
finalidade;
– os preceitos constitucionais deverão ser interpretados tanto explicitamente quanto
implicitamente, a fim de colher-se seu verdadeiro significado.
A aplicação dessas regras deverá, em síntese, buscar a harmonia do texto constitucional
com suas finalidades precípuas, adequando-as à realidade e pleiteando a maior aplicabilidade
dos direitos, garantias e liberdades públicas” (grifos nossos).

Verifica-se claramente que todas essas premissas encontram-se desrespeitadas pelo não
reconhecimento da união estável homoafetiva, visto que tal interpretação restritiva: (i) estará criando
uma tensão entre normas constitucionais; (ii) não estará dando máxima efetividade, eficiência,
aplicabilidade e permanência ao texto normativo da união estável, visto que exclui a hipótese da união
estável homoafetiva, plenamente compatível com dito texto normativo, por intermédio da interpretação
extensiva ou da analogia; (iii) estará sacrificando integralmente o princípio da isonomia, que terá seu
significado suprimido dada a afronta a seu núcleo essencial, que veda o estabelecimento de distinções
arbitrárias; (iv) estará afrontando a razão de existência, finalidade e extensão da união estável, que visa
proteger famílias conjugais não matrimonializadas pautadas pelo amor familiar, conceito este no qual se
enquadram as uniões homoafetivas; (v) consagrará afronta a um princípio, que é mandamento nuclear do
sistema, por parte de uma regra, que é necessariamente uma concretização dos princípios do documento
normativo em questão11.
Torna-se inequívoco, portanto, que a única forma de solucionar dito conflito “aparente” de normas é
mediante: (i) a aplicação da interpretação extensiva, reconhecendo-se que ambas as situações fáticas
são idênticas, uma vez que baseadas no mesmo elemento valorativamente protegido pelas normas que
regem a união estável (amor familiar), donde merecem, portanto, o mesmo tratamento jurídico; ou (ii) a
aplicação da analogia, no sentido de se reconhecer que, se não forem idênticas, as uniões homoafetivas
guardam extrema similitude em relação às heteroafetivas, visto que a elas são idênticas naquilo que lhes
é fundamental (e é igualmente fundamental à união estável), que é a existência do amor romântico que
vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o
elemento formador da família conjugal contemporânea. Vista a questão de outra forma, tem-se por
cabível a analogia pelo fato de que a única “diferença” entre as uniões estáveis heteroafetivas e
homoafetivas configurar-se-ia, tão somente, pelo sexo dos parceiros, que, em um caso, são diversos e, em
outro, homogêneos, além da orientação sexual de ambos, não havendo ademais nenhum fundamento
lógico​-racional entre a discriminação pretendida (não aplicação do Direito das Famílias) com relação ao
critério de desigualação erigido (orientação sexual e sexo do par), e muito menos correlação lógica
concreta entre tal diferenciação e os preceitos constitucionais vigentes.
Assim, tanto se admitindo a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade parcial do § 3.º do
art. 226 da CF/1988 no que tange à expressão “entre o homem e a mulher” por afrontar diretamente os
princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da liberdade de consciência e o de que constitui
objetivo do Estado promover o bem-estar de todos12, quanto se admitindo que não se declara a
inconstitucionalidade de normas constitucionais derivadas do Poder Constituinte Originário13, tem-se que
a união estável é um regime jurídico que deve ser aplicado tanto às uniões heteroafetivas quanto às
uniões homoafetivas, uma vez satisfeitas as condições de convivência pública, contínua e duradoura, seja
esta situação decorrente de interpretação extensiva seja de analogia ante a atual redação do citado
dispositivo legal.
Que fique claro: não considero existir proibição à união estável homoafetiva na redação do art. 226,
§ 3.º, da CF/1988, pelo simples fato de ali constar a expressão “entre o homem e a mulher”, na medida
em que, como manifestei perante o Supremo Tribunal Federal em sustentação oral na ADPF 132 e na ADI
4.277, dizer que a união estável é reconhecida “entre o homem e a mulher” não é o mesmo que dizer que
ela é reconhecida “apenas entre o homem e a mulher” – como o apenas não está escrito, não há limites
semânticos no texto que impeçam a exegese constitucional inclusiva da união estável homoafetiva por
interpretação extensiva ou analogia, donde a união homoafetiva enquadra-se no conceito constitucional
de união estável por formar uma família conjugal, que é o elemento valorativamente protegido pelo
regime jurídico da união estável (e, também, do casamento civil). Não há limites semânticos no texto
porque não se diz em nenhum momento que a expressão “entre o homem e a mulher” abarcaria a união
homoafetiva – o que se defende é que tal expressão não tem o condão de criar uma proibição implícita à
união estável homoafetiva, mas de simplesmente informar que a Constituição reconheceu a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar sem nada dispor sobre a união estável entre duas
pessoas do mesmo sexo, o que, consoante lições de Direito Civil Clássico, configura lacuna normativa
passível de colmatação por interpretação extensiva ou analogia, que é a solução aplicável pelo fato de a
união homoafetiva formar uma família conjugal, que é o elemento valorativamente protegido pela união
estável e pelo casamento civil.
É perfeitamente cabível, portanto, que casais homoafetivos ingressem no Judiciário com ações
declaratórias de união estável alegando a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por
interpretação extensiva ou analogia, ou, alternativamente, por incompatibilidade da interpretação
discriminatória que limite a união estável apenas a casais heteroafetivos com a principiologia
constitucional supraexplicitada, ou, caso assim não entenda o juiz, requerer incidentalmente a
inconstitucionalidade da suposta “vedação implícita” à união estável homoafetiva supostamente erigida
pelo art. 226, § 3.º, da Carta Magna. Em se aderindo à teoria da inconstitucionalidade, note-se que se
tratará de inconstitucionalidade parcial, acerca da expressão “entre o homem e a mulher”, visto que a
sua ausência não prejudicará em nada o regime jurídico da união estável.
Nessa linha, leciona Taísa Ribeiro Fernandes14 no sentido de que há identidade de situações entre as
uniões homoafetivas e heteroafetivas, visto que ambas são pautadas pela vida em comum, respeito, afeto,
solidariedade, mútua assistência e tantos outros, donde, superada a letra fria da norma e tendo em conta a
sua substância, seu fim social (em suma, acrescento, sua interpretação teleológica), percebe-se que as
uniões homoafetivas representam efetivas entidades familiares e têm, portanto, que receber o mesmo
tratamento jurídico dispensado às uniões heteroafetivas, razão pela qual é cabível o tratamento analógico
para que isto seja possível.
Maria Berenice Dias15 tem idêntica conclusão, no sentido de que em nada se diferencia a
convivência homoafetiva da união estável atualmente reconhecida a casais heteroafetivos, donde
imperiosa uma interpretação analógica que leve à aplicação do regramento legal conferido a
heterossexuais também a homossexuais, visto que em ambos os casos temos relacionamentos pautados
pelo amor romântico/conjugal.
A lição de Maria Berenice Dias16 é paradigmática a esse respeito, no sentido de que o silêncio
constitucional e a omissão legiferante não podem levar à negativa de efeitos jurídicos aos vínculos
homoafetivos em atenção às disposições normativas dos arts. 4.o da LINDB e 126 do CPC, donde não há
como fugir da analogia com as demais relações que têm o afeto por causa e, assim, reconhecer a
existência de uma entidade familiar à semelhança daquela existente entre casais heteroafetivos, visto que
presentes nas relações homoafetivas os mesmos pressupostos hoje valorizados pelo Direito das Famílias
e consagrados pela Constituição. Nesse sentido, arremata Berenice17 no sentido de que não é
dezarrazoado ter-se a união homoafetiva como forma de união estável por força dos princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, afirmando ainda que uma visão unitária
e coerente do texto constitucional demanda pela aplicação da analogia nesse caso.
Note-se, ainda, a posição de Luís Roberto Barroso18. Em parecer monográfico sobre o tema, o
constitucionalista demonstrou categoricamente como restam afrontados os princípios da isonomia19, da
liberdade pessoal20, da dignidade da pessoa humana21 e da segurança jurídica22 quando se interpreta o
art. 226, § 3.o, da CF/1988 de forma proibitiva da união estável homoafetiva, concluindo no sentido da
possibilidade jurídica do reconhecimento da união estável homoafetiva, (i) pelo fato do texto normativo
da união estável ser uma norma de inclusão, criada com o intuito de acabar com a discriminação antes
ocorrida em relação às uniões extramatrimoniais, donde uma norma de inclusão não pode ser interpretada
de forma discriminatória, sob pena de contrariar os princípios constitucionais e os fins que a
justificaram, além do que os citados princípios impõem o reconhecimento da possibilidade jurídica da
união estável homoafetiva23; ou, não aceita esta tese e admitindo-se a existência de lacuna no referido
texto normativo, entende (ii) pelo inequívoco cabimento da analogia, visto que presentes na união
homoafetiva os mesmos elementos essenciais configuradores da união estável, a saber a convivência
pacífica e duradoura, caracterizada pela afetividade, comunhão de vida e assistência mútua, emocional e
prática, com o intuito de constituir família24.
Como se vê, a doutrina de Luís Roberto Barroso acerca da função ordenadora dos princípios na
interpretação constitucional demanda pelo reconhecimento das uniões homoafetivas como uniões
estáveis, visto que, como normas de hierarquia axiológica superior à das regras, os princípios
condicionam a interpretação das demais normas constitucionais, no sentido de que as regras devem ser
interpretadas obrigatoriamente em consonância com os princípios, justamente por serem estes
axiologicamente superiores às regras25. Ou seja, mesmo para aqueles que não aceitam a hierarquização
de normas constitucionais entre si, a compreensão dos princípios constitucionais como vetores
interpretativos da Constituição não implica hierarquização vertical (formal) de certas normas
constitucionais sobre outras. Ao contrário, justamente em atenção ao princípio da unidade constitucional
é que se deve realizar uma ponderação dos valores em jogo para que o “conflito aparente” em questão
seja realmente só “aparente”, e não “real”, sendo dita ponderação a única forma de evitar um choque
entre normas constitucionais originárias.
Assim, uma vez afrontadas a isonomia, a dignidade humana e outros princípios constitucionais pelo
não reconhecimento da união estável homoafetiva, isso significa que tal interpretação discriminatória
mostra-se inadequada justamente por contrariar os citados princípios constitucionais, axiologicamente
superiores que são às regras, donde a regra da união estável deve ser interpretada em consonância com
eles e, portanto, ser reconhecida a união estável homoafetiva pela interpretação extensiva ou pela
analogia.
No mesmo sentido do parecer de Luís Roberto Barroso, tem-se a Representação de Daniel
Sarmento e outros visando à impetração de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para
o reconhecimento da união estável homoafetiva26, que com desenvolvimentos próprios também alega
afronta aos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança
jurídica para, em seguida, defender uma interpretação teleológica do art. 226, § 3.o, da CF/1988, norma
de inclusão que é, de forma a reconhecer a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva – seja
pela aplicação direta das referidas normas constitucionais, seja pela aplicação da analogia. Dita
representação, claramente, foi o norte utilizado para a elaboração da ADPF 178, posteriormente
convertida em ADIn 4.277, julgada pelo STF em conjunto com a ADPF 132 para o reconhecimento da
união estável homoafetiva, cujos argumentos seguem infraexplicitados.
Ademais, no mesmo sentido do aqui defendido, manifestaram-se diversas vozes na Jurisprudência,
embora de forma minoritária antes do julgamento do STF de 05.05.2011 (que reconheceu a união estável
homoafetiva – ADPF 132 e ADI 4.277), reconhecendo (i) o direito fundamental à felicidade (TJ/RS27),
inequivocamente decorrente da dignidade da pessoa humana; (ii) que as uniões homoafetivas baseiam-se
no mesmo amor familiar existente nas uniões heteroafetivas e, portanto, merecem aquelas o mesmo
tratamento a estas dispensado por força da isonomia e da dignidade humana, configurando verdadeiro
farisaísmo (TJ/RS28) e preconceito (TJ/BA29) entendimento em sentido contrário; (iii) que a natureza da
relação amorosa, de afeto e peculiar confiança, se coaduna muito mais com o Direito de Família do que
com o Direito das Obrigações (TJ/RS30); já há jurisprudência reconhecendo o caráter jurídico-familiar
das uniões homoafetivas e enquadrando-as, portanto, no conceito jurídico de união estável, por analogia.
Essa linha jurisprudencial (não limitada ao Rio Grande do Sul) admitiu que o reconhecimento da união
estável homoafetiva configura medida necessária ao respeito das cláusulas constitucionais da isonomia,
da dignidade humana, da liberdade (TJ/MG31 e TJ/RS32) e da proibição de preconceitos (TJ/RJ33), assim
como defendem a prevalência dos princípios constitucionais sobre as regras da própria Constituição
(TJ/RJ34).
Vale a consulta ao site www.direitohomoafetivo.com.br para se vislumbrar a enorme quantidade de
decisões acerca do tema.
No presente caso, dada a tensão entre os dispositivos constitucionais da união estável e da isonomia,
verificada a verdadeira lacuna constitucional no que tange à união estável homoafetiva, considerando a
inexistência de motivação lógico-racional na negação do regime jurídico da união estável às uniões
homoafetivas (afronta à isonomia) e considerando que a união estável heteroafetiva não será prejudicada
pela extensão de dito regime jurídico aos casais homoafetivos, o princípio da unidade constitucional
exige a extensão da união estável aos casais homoafetivos, seja pela interpretação extensiva, seja pela
analogia (conforme se considerem as situações idênticas ou idênticas no essencial).
Assim, é cabível a união estável homoafetiva pela interpretação extensiva ou pela analogia, visto ser
a união homoafetiva idêntica ou, no mínimo, análoga à união estável heteroafetiva constitucionalmente
reconhecida, e serem ambas pautadas pelo amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da família conjugal
contemporânea (amor familiar).
2.1.1 A ADPF 132 e a ADI 4.277

2.1.1.1 Argumentações expostas nas ações


Em 27.02.2008, o Governador do Estado do Rio de Janeiro Sérgio Cabral impetrou Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 13235, visando ao reconhecimento da união estável
homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal.
Na petição inicial (aparentemente baseada no parecer de Luís Roberto Barroso e na representação
constantes do tópico anterior, por trazer sinteticamente, senão todos, diversos dos argumentos ali
expostos), após justificar o cabimento da ADPF36, demonstrou a violação:
(i) ao princípio da igualdade, pela Constituição proibir todas as formas de preconceito e
discriminação arbitrária (irrazoável), o que abrange a desequiparação fundada na orientação sexual das
pessoas, implícita que está no gênero (sexo) da pessoa – que, como a origem e a cor de pele, configura
classificação suspeita, assim erigida pelo constituinte (art. 3.o, IV), discriminação esta que afronta o
núcleo essencial da isonomia na medida em que trata diferentemente situações substancialmente iguais, o
que demanda a interpretação das leis em conformidade com a Constituição, com interpretações corretivas
delas quando respeitado seu conteúdo semântico. Afirmou, ainda, que não é necessário elencar razões
para impedir o tratamento diferenciado, pois a lógica é inversa: onde não existem motivos legítimos a
exigir a distinção, a regra há de ser o tratamento igualitário, apontando que, em um Estado democrático e
pluralista, tais motivos devem ser pautados por argumentos de razão pública e não por visões de mundo
particulares, de ordem moral ou religiosa pois estas, ainda quando majoritárias, não são obrigatórias e,
portanto, não podem ser impostas pelo Poder Público. Nesse sentido, anotou que nenhum princípio ou
valor constitucional é promovido pelo não reconhecimento das uniões homoafetivas, mas, ao contrário,
esse não reconhecimento implica a violação direta do propósito constitucional de construir uma
sociedade pluralista e refratária do preconceito, ao passo que argumentos de ordem religiosa são
inadmissíveis para justificar práticas discriminatórias pelo Brasil ser um Estado Laico (art. 19, inc. I, da
CF/1988). Apontou também que a união estável visa ao respeito e ao apoio mútuos e não à procriação,
que, se exigida, deveria servir para negar reconhecimento também às uniões formadas por casais estéreis
ou àqueles que simplesmente não desejem ter filhos e, a rigor, mesmo às famílias monoparentais [o que
não ocorre];
(ii) ao direito à liberdade e o decorrente à autonomia privada, pois um Estado Democrático de
Direito deve não apenas formalmente assegurar aos indivíduos direito de escolha entre diferentes
projetos de vida lícitos, mas também propiciar condições efetivas para que estes possam se concretizar,
destacando que, no caso da orientação sexual, a escolha não reside no estabelecimento de relações com
pessoas do mesmo sexo ou de sexo diverso, mas entre se abster de sua orientação sexual ou vivê-la
clandestinamente, sendo que as pessoas devem ter liberdades individuais que não podem ser cerceadas
pela maioria (Dworkin). Justifica-se apontando que a liberdade é pressuposto para o desenvolvimento da
personalidade, como a liberdade de escolher a pessoa com quem manter relações de afeto e
companheirismo de maneira plena, não clandestina, donde não reconhecer a um indivíduo o direito de
viver sua orientação sexual em todos os seus desdobramentos significa privá-lo de uma das dimensões
que dão sentido à sua existência, na medida em que a exclusão das uniões homoafetivas do regime
jurídico da união estável implica não apenas uma lacuna (omissão), mas também uma forma comissiva de
embaraçar o exercício da liberdade e o desenvolvimento da personalidade de um número expressivo de
pessoas, depreciando a qualidade de seus projetos de vida e dos seus afetos, fazendo que sejam menos
livres para fazer suas escolhas, donde afronta a autonomia privada das mesmas. Aponta que, embora a
autonomia privada dos cidadãos possa ser restringida, tal não pode ocorrer caprichosamente, mas
somente com base no princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade (sic37), de forma que ditas
restrições visem à promoção de outros bens jurídicos de mesma hierarquia, o que não ocorre na espécie,
pois nenhum outro bem constitucional resta promovido com o não reconhecimento da união estável
homoafetiva, mas apenas a concepções (subjetivas) particulares, ainda que majoritárias, que não são
vinculantes em uma sociedade democrática e pluralista, donde esta restrição gera (ou decorre de) um
autoritarismo moral, próprio de regimes totalitários, que não se limitam a organizar e promover a
convivência pacífica, mas têm a pretensão de moldar indivíduos adequados, razão pela qual tal postura
afronta os direitos à liberdade e à autonomia privada de homossexuais;
(iii) ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois ninguém pode ser tratado como meio,
devendo cada indivíduo ser tratado como um fim em si mesmo, ao mesmo tempo em que todos os
projetos pessoais e coletivos de vida, quando razoáveis, são dignos de igual respeito e consideração e,
portanto, merecedores de igual reconhecimento, ao passo que o não reconhecimento das uniões
homoafetivas viola esses dois núcleos da dignidade humana. Isso porque (iii.1) tal exclusão funcionaliza
as relações afetivas a um projeto determinado de sociedade que, embora majoritário, não é juridicamente
obrigatório, tratando o indivíduo como um meio para a realização desse projeto, só sendo reconhecido
aquele que se molda ao papel designado pela tradição, no caso o papel de membro de família
heteroafetiva destinada à procriação; e (iii.2) a discriminação das uniões homoafetivas equivale a não
atribuir igual respeito a uma identidade individual (homoafetiva) ao afirmar que esse determinado estilo
de vida não mereceria ser tratado com a mesma dignidade e consideração dos demais, porque o não
reconhecimento se converte em desconforto, levando muitos indivíduos a negarem sua própria identidade
à custa de grande sofrimento pessoal, distinção esta que perpetua a dramática exclusão e estigmatização
que homossexuais têm sofrido ao longo da história, caracterizando verdadeira política oficial de
discriminação;
(iv) ao princípio da segurança jurídica, que envolve a tutela de valores como a previsibilidade de
condutas, a estabilidade das relações jurídicas e a proteção da confiança, indispensáveis à paz de
espírito e, portanto, à paz social, sendo que a exclusão das uniões homoafetivas do regime jurídico da
união estável implica insegurança jurídica, pois ditas uniões são lícitas e continuarão a existir ainda que
persistam dúvidas sobre seu enquadramento jurídico, dúvidas estas que geram um quadro de incerteza –
inclusive com decisões judiciais conflitantes, de modo a afetar a segurança jurídica tanto do casal
homoafetivo entre si como em suas relações com terceiros, criando assim problemas tanto para as
pessoas diretamente envolvidas como para a sociedade. Afirma que o desenvolvimento de um projeto de
vida em comum tende a produzir reflexos existenciais e patrimoniais, donde querem os parceiros ter
previsibilidade em temas envolvendo herança, partilha de bens, deveres de assistência recíproca,
alimentos etc., todos equacionados no Código Civil por meio da regulamentação da união estável, donde
sua extensão às uniões homoafetivas teria o condão de superar a insegurança jurídica na matéria. Por
outro lado, a indefinição sobre o regime aplicável às uniões homoafetivas também afeta terceiros que
com elas mantenham relações estatutárias ou comerciais – no primeiro caso, nas relações entre Estado e
servidores públicos, o que envolve uma série de direitos atribuídos aos servidores e seus familiares,
como direito a licenças por motivo de doenças do companheiro ou para acompanhá-lo em caso de
transferência, do direito à inclusão do companheiro no plano de saúde funcional, auxílio funeral etc.,
direitos estes já reconhecidos às relações heteroafetivas estáveis, de modo que a discussão se restringe à
(i)legitimidade de se discriminar homossexuais em função de sua orientação sexual. No segundo,
considerando que as relações negociais realizadas por companheiros em união estável necessitam da
anuência do outro, como para alienar bens e conceder garantias, dúvidas existem quanto a tais questões,
assim como quanto à responsabilidade por dívidas individuais ou comuns aos companheiros
homoafetivos. Aponta que tais constatações demonstram incertezas jurídicas quanto a formalidades e
aspectos de Direito Material envolvendo os companheiros homoafetivos e terceiros, razão pela qual se
faz necessário dar um verdadeiro enquadramento jurídico às uniões homoafetivas, sendo perfeitamente
possível interpretar o Direito posto de forma a obter esse resultado dada a ausência de qualquer outro
valor constitucional que aponte em outro sentido.
Em razão do exposto, concluiu pela inclusão das uniões homoafetivas no regime jurídico da união
estável, atribuindo-se interpretação conforme a Constituição ao Estatuto dos Servidores Públicos do
Rio de Janeiro para reconhecer que os direitos ali previstos também se estendem aos companheiros
homoafetivos, assim como a declaração pelo STF de que, à luz da ordem constitucional e legal em vigor,
as uniões homoafetivas devem receber o mesmo tratamento jurídico das uniões estáveis convencionais
(leia-se, heteroafetivas), sob pena de serem violados os citados preceitos fundamentais.
Apontou, por oportuno, que esta conclusão não é afetada pelo teor do art. 226, § 3.o, da CF/1988,
que protege expressamente a união estável entre o homem e a mulher, pois dito dispositivo foi cunhado
para afastar qualquer discriminação contra as companheiras (caracterizando-se, portanto, como norma de
inclusão), consolidando uma longa evolução que teve início, sintomaticamente, com decisões judiciais,
razão pela qual não faria nenhum sentido interpretar dito dispositivo a contrario sensu, de modo a
expandir seu sentido e convertê-lo em norma de exclusão, pois tal interpretação seria incompatível com
os preceitos fundamentais referidos, razão pela qual deve ser rejeitada.
Alternativamente, pleiteia pelo reconhecimento de uma lacuna normativa a ser colmatada pela
analogia, pois, ainda que o STF entendesse impossível a aplicação direta dos referidos preceitos
fundamentais para reconhecer a união homoafetiva como união estável, afirma que parece inegável que há
uma situação de fato a exigir tratamento jurídico, pois a orientação homoafetiva, que é indiscutivelmente
lícita, gera como consequência inevitável o surgimento de relacionamentos homoafetivos igualmente
lícitos, que possuem relações existenciais e patrimoniais, com repercussões no casal e perante terceiros,
que demandam por regulamentação. Assim, afirma que seria no mínimo anacrônico fingir que tal situação
inexiste, mantendo os casais homoafetivos e aqueles que com eles estabelecem relações (comerciais) em
um verdadeiro limbo jurídico, razão pela qual a utilização do método de integração da analogia é
intuitivo, pois as duas situações apresentam os mesmos elementos essenciais, elementos estes
identificados no Código Civil, a saber: convivência pacífica e duradoura, movida pelo intuito de
constituir entidade familiar, destacando a doutrina e a jurisprudência contemporâneas que a família
deve servir de ambiente adequado para o desenvolvimento de seus membros, apresentando como traços
característicos a comunhão de vida e a assistência mútua entre os envolvidos, emocional e prática,
parecendo impossível negar a existência desses elementos nas uniões homoafetivas sem incorrer em
preconceito contra os indivíduos homossexuais, pois isto implicaria dizer que estes não seriam capazes
de estabelecer vínculos afetivos e de confiança, ou que seriam incapazes de amor e companheirismo,
embora nenhum argumento de ordem pública embase essas assertivas.
Dessa forma, apontou pelo cabimento da aplicação de analogia ao art. 1.723 do CC/2002 (que trata
da união estável), destacando que não se trata de mera interpretação da lei, mas de interpretação da
legislação ordinária em conformidade com a Constituição.
Ante o exposto, formulou:
(i) pedido cautelar para que o STF declare, liminarmente, a validade das decisões administrativas
que equiparem as uniões homoafetivas às uniões estáveis e, ainda, suspenda os processos e os efeitos das
decisões judiciais que hajam se pronunciado em sentido contrário, apontando como fumus boni iuris
(fumaça do bom Direito) a exposição supra e como periculum in mora (perigo na demora) os riscos a
que está sujeito o Estado ao tomar decisões que podem ser impugnadas judicialmente e, também, a
frustração dos direitos fundamentais dos companheiros homoafetivos até o julgamento definitivo da
demanda;
(ii) pedido principal para que o STF declare o regime jurídico da união estável como aplicável às
uniões homoafetivas, seja como decorrência direta dos preceitos fundamentais de igualdade, liberdade,
dignidade e segurança jurídica, seja pela aplicação analógica do art. 1.723 do CC/2002, interpretado
conforme a Constituição, bem como aplique a mesma interpretação conforme aos arts. 19, II e V, do
Estatuto dos Servidores Públicos do Rio de Janeiro.
No mesmo sentido, foi proposta a ADPF 178, posteriormente convertida em ADI 4.277, a qual
apresentou argumentos análogos a estes (que nos parece claramente baseada no supra citado parecer de
Daniel Sarmento e outros), invocando os mesmos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa
humana, da liberdade e da segurança jurídica para pleitear por uma interpretação sistemático-teleológica
da Constituição apta a reconhecer o reconhecimento da união homoafetiva como união estável
constitucionalmente protegida.

2.1.1.2 Comentários sobre a ADPF 132 e sobre a ADI 4.277


Merece aplausos Sérgio Cabral pela impetração da ADPF 132, por visar acabar com a
discriminação sofrida por homossexuais em virtude do não reconhecimento de sua união estável, por
interpretação extensiva ou analogia.
Preliminarmente, cumpre reconhecer o cabimento formal da ação, visto que cumpridos os requisitos
constitucionais de versar ela sobre preceitos fundamentais (como o são a isonomia, a liberdade, a
dignidade e a segurança jurídica), assim como pela efetiva existência de decisões judiciais contraditórias
a respeito do tema – como as transcritas na petição inicial e aqui neste trabalho em contraposição a
outras que negam reconhecimento à união estável homoafetiva (como as do STJ, enfrentadas em capítulo
próprio).
No mérito, as ações eram inequivocamente procedentes. Como se percebe, a sua argumentação tem
muitos traços em comum com as do presente trabalho, em especial no que tange aos argumentos de
afronta aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana pela discriminação sofrida por
homossexuais ao negar reconhecimento a sua união estável (muito embora este trabalho vá além e
defenda o mesmo com relação ao casamento civil e à adoção conjunta por casais homoafetivos). Por
outro lado, os argumentos de afronta aos princípios da liberdade e da segurança jurídica, que coincidem
com a posição de Luís Roberto Barroso, supra​-analisada38, são altamente pertinentes e procedentes.
No mesmo sentido, merece aplausos a então Procuradora-Geral da República Deborah Duprat, pela
propositura da ADPF 178, convertida em ADI 4.277, o que foi feito provavelmente pela discussão que se
iniciou sobre se a decisão do STF na ADPF 132 teria efeito vinculante e eficácia erga omnes apenas no
Estado do Rio de Janeiro, já que proposta contra uma lei estadual carioca, donde proposta esta ação
contra o disposto no art. 1.723 do CC/2002 para que não restasse dúvida de que uma decisão favorável
do STF seria de cumprimento obrigatório em todo o país.
Nesse processo, tivemos sete amici curiae que se manifestaram favoravelmente à procedência das
ações e dois que a elas foram contrários, tendo este autor tido o privilégio histórico de poder participar
deste julgamento, representando a Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo (AIESSP),
por intermédio de manifestação de amicus curiae e sustentação oral no dia 04/05/11, a qual consta do
Anexo 2 desta obra.
Proferido o voto do relator, favorável à procedência das ações, o julgamento foi suspenso para o dia
seguinte (05.05.2011), no qual, por fantástica unanimidade, as ações foram julgadas procedentes pelo
Supremo Tribunal Federal, tendo nossa Suprema Corte reconhecido que o art. 1.723 do CC/2002 não
pode ser interpretado de forma a impedir o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar,
ante a inconstitucionalidade de tal interpretação discriminatória, razão pela qual determinou a aplicação
de interpretação conforme a Constituição do referido dispositivo legal para dele afastar qualquer
interpretação que negue reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. A explicação de
cada um dos votos dos ministros do STF será feita no capítulo 13, que analisa todas as decisões
proferidas pelo STF acerca do tema da união homoafetiva proferidas até o lançamento desta 2ª edição.

2.1.2 Inexistência de limites semânticos no texto do art. 226, § 3.º, da CF/1988 impeditivos do
reconhecimento da união estável homoafetiva, por interpretação extensiva ou analogia.
Possibilidade jurídica do pedido de união estável homoafetiva
Os críticos do reconhecimento da união estável homoafetiva, desde muito antes da decisão do STF
na ADPF 132 e na ADI 4.277, sempre afirmaram que isso não seria possível pela redação do art. 226, §
3.º, da CF/1988. Sempre alegaram que a Constituição teria reconhecido a união estável “apenas” (sic)
entre o homem e a mulher, de sorte que o reconhecimento da união estável entre duas pessoas do mesmo
sexo demandaria emenda constitucional que a isto autorizasse. Contudo, o argumento não se sustenta.
Analisemos o tema do início.
Como se sabe, texto e norma não se confundem. A norma é o fruto da interpretação do texto
normativo. Com a superação da visão do juiz como mera boca que pronuncia as palavras da lei
(Montesquieu), a ciência jurídica reconheceu a participação ativa do intérprete na criação da norma
jurídica por intermédio de suas valorações e pré-compreensões, respeitados, todavia, os limites
semânticos do texto. Ou seja, a despeito de a norma ser fruto da interpretação do texto normativo, a
norma oriunda de tal interpretação não pode desrespeitar os limites semânticos do texto, a saber, o
significado das palavras e o significado semântico das expressões linguísticas constantes dos textos
normativos.
Com base nessa correta compreensão, os opositores da união estável homoafetiva defendem a
incorreta tese segundo a qual haveria limites semânticos no texto do art. 226, § 3.º, da CF/1988 que
impossibilitariam do reconhecimento da união estável homoafetiva por conta de dito dispositivo
constitucional afirmar que “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar”. Contudo, equivocada tal compreensão, pois, como tive a oportunidade de dizer perante a
tribuna do STF em sustentação oral do julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, dizer que “é
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher” é diferente de dizer que ela é
reconhecida “‘apenas’ entre o homem e a mulher”, pois o “apenas” não está escrito e, assim, se não está
escrito, não há limites semânticos no texto que impeçam a exegese constitucional inclusiva pleiteada
pelas duas ações, de sorte a se permitir a perquirição sobre o cabimento de interpretação extensiva ou
analogia, caso se considere as situações idênticas ou, a despeito de alguma diferença vislumbrada,
idênticas naquilo que é essencial, respectivamente, ante a caracterização da possibilidade jurídica do
pedido de união estável homoafetiva oriunda da ausência de texto normativo expresso que a proibisse ou
limitasse a união estável apenas/somente/unicamente à união heteroafetiva, texto normativo este que não
existe – pois a possibilidade jurídica do pedido existe sempre que não haja texto normativo (expresso)
que proíba o pedido formulado, consoante reconhecido pelo STJ no REsp 820.475/RJ39, leading case do
tema em termos de união estável homoafetiva, por se tratar de julgado que reconheceu a união estável
homoafetiva, por analogia – valendo ainda citar o maravilhoso voto da Ministra Nancy Andrighi, seguido
pelos demais ministros julgadores, no REsp 1.026.981/RJ40, segundo o qual “O manejo da analogia
frente à lacuna da lei é perfeitamente aceitável para alavancar, como entidade familiar, na mais pura
acepção da igualdade jurídica, as uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo”, visto que “Os
princípios da igualdade e da dignidade humana, que têm como função principal a promoção da
autodeterminação e impõem tratamento igualitário entre as diferentes estruturas de convívio sob o âmbito
do direito de família, justificam o reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais como mais
uma das várias modalidades de entidade familiar” (STJ, REsp 930.460/PR, DJe de 03.10.2011; no
mesmo sentido: REsp 1.085.646/RS, DJe de 26.09.2011 e REsp 1.199.667/MT, DJe de 04.08.2011).
O advogado da CNBB, Dr. Hugo Sarubbi Cysneiros, que realizou sustentação oral logo após minha
fala, tentou me contestar, dizendo que a falta deste “apenas” não poderia significar necessariamente a
procedência das ações – contudo, o nobre patrono não compreendeu ou não quis compreender o que eu
disse, pois afirmei que a ausência do “apenas” afasta a existência de limites semânticos do texto, de
sorte a permitir que se investigue se a união estável homoafetiva é idêntica ou análoga à união estável
heteroafetiva e, portanto, permitir a equiparação pretendida caso se considere a união homoafetiva
idêntica ou análoga à união heteroafetiva para fins de união estável. Logo, a ausência do “apenas” não
traz a procedência automática da tese da união estável homoafetiva, mas permite que se faça a
averiguação de sua identidade ou caráter análogo com a união estável heteroafetiva, tornando
juridicamente possível o pedido formulado.
Analisemos isso sob outro (mas complementar) enfoque. Segundo Gadamer41 e sua hermenêutica
filosófica, na interpretação de um texto precisamos deixar que o texto nos diga algo, pois, como diz
Streck, o intérprete não pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa42, o que se coaduna com a lição
supra de que a norma precisa respeitar os limites semânticos do texto normativo interpretado. Com isso
em mente, analisemos o art. 226, § 3.º, da CF/1988: o que ele nos diz? Parece claro que ele diz que está
normatizada a união estável heteroafetiva, ponto – ele nos diz apenas isso. O texto normativo do art. 226,
§ 3.º, da CF/1988 não “diz” que estaria “proibida” a união estável homoafetiva ou que a união estável
seria juridicamente possível ou viável “apenas/somente/unicamente” entre um homem e uma mulher. Essa
“proibição/limitação” não está no texto; logo, se não está escrito (no texto) que a união estável seria
reconhecida “apenas/somente/unicamente” entre homem e mulher, não se pode dizer que haveria limites
semânticos no texto impeditivos do reconhecimento da união estável homoafetiva, por interpretação
extensiva ou analogia. Como se vê, tomar o texto a sério não traz uma suposta (e inexistente)
impossibilidade jurídica da união estável homoafetiva – quem o faz são os intérpretes a ela contrários ou
então pautados em um legalismo cego avalorativo que só entende como juridicamente possível aquilo que
está expressamente escrito no texto normativo, postura esta já, felizmente, superada pela ciência jurídica
contemporânea.
Logo, “É juridicamente possível pedido de reconhecimento de união estável de casal homossexual,
uma vez que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação explícita ao ajuizamento de
demanda com tal propósito”, ao passo que “Os arts. 4.º e 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil
autorizam o julgador a reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo”, visto que “A extensão,
aos relacionamentos homoafetivos, dos efeitos do regime de união estável aplicável aos casais
heterossexuais traduz a corporificação dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da
pessoa humana” (STJ, REsp 827.962/RS, DJe de 08.08.2011). Afinal, “a impossibilidade jurídica do
pedido configura-se quando há vedação no direito positivo a que se instaure a relação processual em
torno da pretensão do autor”, donde, como a lei “limitou-se a prever a possibilidade de união estável
entre homem e mulher, desde que observados os requisitos nela estabelecidos, mas não proibiu que tal
união se desse entre pessoas do mesmo sexo”, razão pela qual “se a pretensão de ver declarada a união
estável homoafetiva não é vedada pelo ordenamento jurídico, deve ser afastada a impossibilidade
jurídica do pedido deduzido na petição inicial, devendo o juiz, após regular processamento da causa,
apreciar o mérito à luz do ordenamento jurídico vigente” (STJ, AgRg no REsp 805.582/MG, DJe de
08.08.2011, voto da Ministra Maria Isabel Gallotti).

2.1.2.1 Votos da ADPF 132 e da ADI 4.277 sobre a questão de ausência de limites semânticos no texto
Para o Ministro Ayres Britto: “que não se faça uso da letra da Constituição para matar o seu
espírito, no fluxo de uma postura interpretativa que faz ressuscitar o mencionado caput do art. 175 da
Constituição de 1967/1969. Ou como diria Sérgio da Silva Mendes, que não se separe por um parágrafo
(esse de n.º 3) o que a vida uniu pelo afeto. Numa nova metáfora, não se pode fazer rolar a cabeça do
artigo 226 no patíbulo do seu § 3.º, pois esse tipo acanhado ou reducionista de interpretação jurídica
seria o modo mais eficaz de tornar a Constituição ineficaz...”43.
Para o Ministro Luiz Fux44:

Os fatos concretos, como antes afirmado, apontam para o enquadramento jurídico – e, com
isso, o oferecimento de segurança jurídica às uniões homoafetivas – na moldura jurídica
estabelecida para as uniões heterossexuais, à míngua de qualquer distinção. E, especificamente
quanto aos dispositivos de legislação estadual assinalados, é até mesmo uma questão de coerência,
pois o próprio Estado do Rio de Janeiro, posteriormente, editou as leis acima mencionadas que
reconhecem, para os fins do regime próprio de previdência social de seus servidores, a união
homoafetiva.
Saliente-se, ainda, que não se há de objetar que o art. 226, § 3.º, constituiria obstáculo à
equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis heterossexuais, por força da previsão literal
(“entre homem e mulher”). Assiste razão aos proponentes das ações em exame em seus comentários
à redação do referido dispositivo constitucional. A norma foi inserida no texto constitucional para
tirar da sombra as uniões estáveis e incluí-las no conceito de família. Seria perverso conferir a
norma de cunho indiscutivelmente emancipatório interpretação restritiva, a ponto de concluir que
nela existe impeditivo à legitimação jurídica das uniões homoafetivas, lógica que se há de estender
ao art. 1.723 do Código Civil.
Urge, pois, renovar esse mesmo espírito emancipatório e, nesta quadra histórica, estender a
garantia institucional da família também às uniões homoafetivas.
É importante que se diga que o próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou
favoravelmente à produção válida de efeitos de relações homoafetivas, em decisões monocráticas
multicitadas nestes autos (Pet 1.984, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 10.02.2003 e ADI 3.300, Rel. Min.
Celso de Mello).

Para a Ministra Cármen Lúcia45:


Sistema que é, a Constituição haverá de ser interpretada como um conjunto harmônico de
normas, no qual se põe uma finalidade voltada à concretização de valores nela adotados como
princípios.
(...)
No exercício desta tarefa interpretativa, não me parece razoável supor que qualquer norma
constitucional possa ser interpretada fora do contexto das palavras e do espírito que se põe no
sistema.
É exato que o § 3.º do art. 226 da Constituição é taxativo ao identificar que “Para efeito da
proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar”.
Tanto não pode significar, entretanto, que a união homoafetiva, a dizer, de pessoas do mesmo
sexo seja, constitucionalmente, intolerável e intolerada, dando azo a que seja, socialmente, alvo de
intolerância, abrigada pelo Estado Democrático de Direito. Esse se concebe sob o pálio de
Constituição que firma os seus pilares normativos no princípio da dignidade da pessoa humana, que
impõe a tolerância e a convivência harmônica de todos, com integral respeito às livres escolhas das
pessoas.
(...)
Mas é exato que a referência expressa a homem e mulher garante a eles, às expressas, o
reconhecimento da união estável como entidade familiar, com os consectários jurídicos próprios.
Não significa, a meu ver, contudo, que se não for um homem e uma mulher, a união não possa vir a
ser também fonte de iguais direitos. Bem ao contrário, o que se extrai dos princípios constitucionais
é que todos, homens e mulheres, qualquer que seja a escolha do seu modo de vida, têm os seus
direitos fundamentais à liberdade, a ser tratado com igualdade em sua humanidade, ao respeito, à
intimidade devidamente garantidos.
(...)
Se a República põe, entre os seus objetivos, que o bem de todos haverá de ser promovido sem
preconceito e de qualquer forma de discriminação, como se permitir, paralelamente, seja tida como
válida a inteligência de regra legal, que se pretenda aplicada segundo tais princípios, a conduzir ao
preconceito e à discriminação?
(...)
Aqueles que fazem opção pela união homoafetiva não pode[m] ser desigualado[s] em sua
cidadania. Ninguém pode ser tido como cidadão de segunda classe porque, como ser humano, não
aquiesceu em adotar modelo de vida não coerente com o que a maioria tenha como certo ou válido
ou legítimo.
E a igual cidadania é direito fundamental posta na própria estrutura do Estado Democrático de
Direito (art. 1.º, inc. III, da Constituição). Seria de se indagar se qualquer forma de preconceito
poderia acanhar a cidadania de quem, por razões de afeto e opções de vida segundo o sentir,
resolvesse adotar modo de convivência estável com outrem que não o figurino tido como “o
comum”.
(...)
A interpretação correta da norma constitucional parece-me, portanto, na sequência dos vetores
constitucionais, ser a que conduz ao reconhecimento do direito à liberdade de que cada ser humano
é titular para escolher o seu modo de vida, aí incluído a vida afetiva com o outro, constituindo uma
instituição que tenha dignidade jurídica, garantindo-se, assim, a integridade humana de cada qual.
(...)
Daí a escolha da vida em comum de duas pessoas do mesmo sexo não poder ser tolhida, por
força de interpretação atribuída a uma norma legal, porque tanto contrariaria os princípios
constitucionais que fundamentam o pluralismo político e social.
As escolhas pessoais livres e legítimas, segundo o sistema jurídico vigente, são plurais na
sociedade e, assim, terão de ser entendidas como válidas.
Para o Ministro Lewandowski46:
Convém esclarecer que não se está, aqui, a reconhecer uma “união estável homoafetiva”, por
interpretação extensiva do § 3.º do art. 226, mas uma “união homoafetiva estável”, mediante um
processo de integração analógica. Quer dizer, revela-se, por esse método, outra espécie de entidade
familiar, que se coloca ao lado daquelas formadas pelo casamento, pela união estável entre um
homem e uma mulher e por qualquer dos pais e seus descendentes, explicitadas no texto
constitucional.
Cuida-se, enfim, a meu juízo, de uma entidade familiar que, embora não esteja expressamente
prevista no art. 226, precisa ter a sua existência reconhecida pelo Direito, tendo em conta a
ocorrência de uma lacuna legal que impede que o Estado, exercendo o indeclinável papel de
protetor dos grupos minoritários, coloque sob seu amparo as relações afetivas públicas e
duradouras que se formam entre pessoas do mesmo sexo.
Em suma, reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar, aplicam-se a ela as regras
do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos
aspectos em que são assemelhados, descartando-se aqueles que são próprios da relação entre
pessoas de sexo distinto, segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi idem ius, que fundamenta o
emprego da analogia no âmbito jurídico.

Para o Ministro Joaquim Barbosa47:

Comungo do entendimento do relator, em seu brilhante voto, de que a Constituição Federal de


1988 prima pela proteção dos direitos fundamentais e deu acolhida generosa ao princípio da
vedação de todo tipo de discriminação. São inúmeros os dispositivos constitucionais que afirmam e
reafirmam o princípio da igualdade e da vedação da discriminação, como todos sabemos. Como já
tive oportunidade de mencionar, a Constituição Federal de 1988 fez uma clara opção pela igualdade
material ou substantiva, assumindo o compromisso de extinguir ou, pelo menos, de mitigar o peso
das desigualdades sociais, das desigualdades fundadas no preconceito, estabelecendo de forma
cristalina o objetivo de promover a justiça social e a igualdade de tratamento entre os cidadãos48.
Este é, a meu ver, o sentido claramente concebido no art. 3.º da Constituição, quando inclui dentre
os objetivos fundamentais da República promover o bem de todos, sem preconceitos de raça, sexo,
cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação.
Assim, nessa ordem de ideias, eu concordo com o que foi sustentado da tribuna pelo ilustre
professor Luís Roberto Barroso, isto é, creio que o fundamento constitucional para o
reconhecimento da união homoafetiva não está no art. 226, § 3.º, da Constituição, que claramente se
destina a regulamentar as uniões entre homem e mulher não submetidas aos rigores do casamento
civil. Dispositivo que, segundo Gustavo Tepedino, representa o coroamento de um processo
histórico surgido na jurisprudência cível e que objetivava a inclusão social e a superação do
preconceito existente contra os casais heterossexuais que convivam sem a formalização de sua união
pelo casamento.
Entendo, pois, que o reconhecimento dos direitos oriundos de uniões homoafetivas encontra
fundamento em todos os dispositivos constitucionais que estabelecem a proteção dos direitos
fundamentais, no princípio da dignidade da pessoa humana, no princípio da igualdade e da não
discriminação. Normas, estas, autoaplicáveis, que incidem diretamente sobre essas relações de
natureza privada, irradiando sobre elas toda a força garantidora que emana do nosso sistema de
proteção dos direitos fundamentais.

Para o Ministro Gilmar Mendes: “O fato de a Constituição proteger, como já destacado pelo
eminente Relator, a união estável entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção – nem
poderia ser – a união civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo”. Vejamos o trecho integral da
manifestação do Ministro acerca do tema49:

E o texto, em si mesmo, nessa linha, não é excludente – pelo menos essa foi a minha primeira
pré-compreensão – da possibilidade de se reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo,
não com base no texto legal (art. 1.723 do Código Civil) nem na norma constitucional (art. 226, §
3.º), mas com suporte em outros princípios constitucionais.
(...)
A rigor, a pretensão que se formula aqui tem base nos direitos fundamentais, na proteção de
direitos de minorias, a partir da própria ideia do direito de liberdade. Trata​-se da afirmação do
reconhecimento constitucional da união de pessoas do mesmo sexo, como concretização do direito
de liberdade – no sentido de exercício de uma liberdade fundamental, de livre desenvolvimento da
personalidade do indivíduo.
(...)
Portanto, parto da premissa de que aqui há outros fundamentos e direitos envolvidos, direitos
de perfil fundamental associados ao desenvolvimento da personalidade, que justificam e
justificariam a criação de um modelo de proteção jurídica para essas relações existentes, com base
no princípio da igualdade no princípio da liberdade, de autodesenvolvimento e no princípio da não
discriminação por razão de opção sexual.
(...)
(...) O fato de a Constituição proteger, como já destacado pelo eminente Relator, a união
estável entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção – nem poderia ser – a
união civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo.
(...)
A meu ver, se não fosse possível resolver a controvérsia aqui posta à luz da aplicação direta da
disposição citada, do artigo 226, § 3.º, poderíamos, sem dúvida, encaminhar a solução de
reconhecimento da constitucionalidade da união homoafetiva a partir da aplicação do direito
fundamental à liberdade de livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo e da garantia de
não discriminação dessa liberdade de opção, em concordância com outros princípios e garantias
constitucionais que destaquei na fundamentação deste voto, a saber: os fundamentos da cidadania e
da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, II e III); os objetivos fundamentais de se construir uma
sociedade livre, justa e solidária e de se promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3.º, I e IV); a prevalência dos
direitos humanos (art. 4.º, II); a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantida a inviolabilidade do direito à liberdade e à igualdade (art. 5.º, caput); a punição a
qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5.º, XLI); bem como
a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5.º, § 1.º) e a não exclusão de outros
direitos e garantias decorrentes do regime constitucional e dos princípios por ela adotados ou
incorporados por tratados internacionais (art. 5.º, § 2.º).
Além disso, é a falta (lacuna) de um modelo normativo de proteção institucional para a união
homoafetiva que torna adequada a utilização do pensamento do possível para se aplicar norma
existente – em termos de um modelo de proteção institucional semelhante – no que for cabível.
Então, a meu ver, é preciso que nós, pelo menos, explicitemos essa questão delicada, porque ela se
faz presente no nosso sistema.
(...)
É que, como já mencionei aqui, entendo existirem fundamentos jurídicos suficientes e
expressos que autorizam o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo, não com base no
texto legal (art. 1723 do Código Civil), nem com base na norma constitucional (art. 226, § 3.º), mas,
sim, como decorrência de direitos de minorias, de direitos fundamentais básicos em nossa
Constituição, do direito fundamental à liberdade de livre desenvolvimento da personalidade do
indivíduo e da garantia de não discriminação dessa liberdade de opção (art. 5.º, XLI, CF) – dentre
outros explicitados em minha fundamentação –, os quais exigem um correspondente dever de
proteção, por meio de um modelo de proteção institucional que até hoje não foi regulamentado pelo
Congresso.
Nesse sentido, diferentemente do que expôs o Ministro Relator Ayres Britto – ao assentar que
não haveria lacuna e que se trataria apenas de um tipo de interpretação que supera a literalidade do
disposto no art. 226, § 3.º, da Constituição e conclui pela paridade de situações jurídicas –,
evidenciei o problema da constatação de uma lacuna valorativa ou axiológica quanto a um sistema
de proteção da união homoafetiva, que, de certa forma, demanda uma solução provisória desta
Corte, a partir da aplicação, por exemplo, do dispositivo que trata da união estável entre homem e
mulher, naquilo que for cabível, ou seja, em conformidade com a ideia da aplicação do pensamento
do possível.
Destaco que a decisão do Supremo não significa óbice à atuação do Poder Legislativo. Pelo
contrário, a nossa decisão deve ser entendida como um imperativo de regulação da união
homoafetiva, como decorrência da necessidade de concretização de um dever de proteção de
direitos fundamentais relacionados a essa relação jurídica. Trata-se de um estímulo institucional
para que, de fato, as mais diversas situações jurídicas que envolvem a união entre pessoas do
mesmo sexo venham a ser disciplinadas.

Para o Ministro Marco Aurélio50:

Consubstancia objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de


todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação (inciso IV do artigo 3.º da Carta Federal). Não é dado interpretar o arcabouço
normativo de maneira a chegar-se a enfoque que contrarie esse princípio basilar, agasalhando-se
preconceito constitucionalmente vedado. Mostra-se inviável, porque despreza a sistemática
integrativa presentes princípios maiores, a interpretação do artigo 226, § 3.º, também da Carta
Federal, no que revela o reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, até porque o dispositivo não proíbe esse reconhecimento a pessoas de gênero igual.
(...)
Quanto à equiparação das uniões homoafetivas ao regime das uniões estáveis, previsto no
artigo 1.723 do Código Civil de 2002, o óbice gramatical pode ser contornado com o recurso a
instrumento presente nas ferramentas tradicionais de hermenêutica. Não é recente a evolução
doutrinária relativa à teoria das normas jurídicas, nas quais se ampliou a compreensão da função e
do papel dos princípios no ordenamento jurídico. Ana Paula de Barcellos (A eficácia dos
princípios constitucionais, 2010) relembra que os princípios são dotados de múltiplas
possibilidades de eficácia jurídica, destacando​-se a utilização como vetor hermenêutico-
interpretativo. Casos há em que os princípios possuem eficácia positiva, o que ocorre precisamente
quando o núcleo essencial de sentido deles é violado. Por isso Celso Antônio Bandeira de Mello,
em Elementos de direito administrativo, 1980, p. 14, ressalta: “Violar um princípio é muito mais
grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um
específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de
ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa
insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível
a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”.
Extraio do núcleo do princípio da dignidade da pessoa humana a obrigação de reconhecimento
das uniões homoafetivas. Inexiste vedação constitucional à aplicação do regime da união estável
a essas uniões, não se podendo vislumbrar silêncio eloquente em virtude da redação do § 3.º do
artigo 226. Há, isso sim, a obrigação constitucional de não discriminação e de respeito à dignidade
humana, às diferenças, à liberdade de orientação sexual, o que impõe o tratamento equânime entre
homossexuais e heterossexuais. Nesse contexto, a literalidade do artigo 1.723 do Código Civil está
muito aquém do que consagrado pela Carta de 1988. Não retrata fielmente o propósito
constitucional de reconhecer direitos a grupos minoritários.
Por isso, Senhor Presidente, julgo procedente o pedido formulado para conferir interpretação
conforme à Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil, veiculado pela Lei 10.406/2002, a fim de
declarar a aplicabilidade do regime da união estável às uniões entre pessoas de sexo igual.

Para o Ministro Celso de Mello51:

Também não vislumbro, no texto normativo da Constituição, no que concerne ao


reconhecimento da proteção do Estado às uniões entre pessoas do mesmo sexo, a existência de
lacuna voluntária ou consciente (NORBERTO BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico, p.
143/145, item n. 7, 1989, UnB/Polis), de caráter axiológico, cuja constatação evidenciaria a
existência de “silêncio eloquente”, capaz de comprometer a interpretação exposta neste voto, no
sentido de que a união estável homoafetiva qualifica-se, constitucionalmente, “como entidade
familiar” (CF, art. 226, § 3.º).
Extremamente precisa, quanto a esse aspecto, a autorizada observação de DANIEL
SARMENTO (“Casamento e União Estável entre Pessoas do mesmo Sexo: Perspectivas
Constitucionais”, Igualdade, Diferença e Direitos Humanos, p. 619/659, 649/652, 2008, Lumen
Juris), cuja lição, apoiando-se em consistente interpretação sistemática e teleológica do art. 226, §
3.º, da Constituição, corretamente enuncia o exato sentido da norma constitucional em referência:
“Um obstáculo bastante invocado contra a possibilidade de reconhecimento da união estável entre
pessoas do mesmo sexo é a redação do art. 226, § 3.º, da Constituição, segundo o qual “para o efeito
de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”. Os adversários da medida alegam
que o preceito em questão teria barrado a possibilidade do reconhecimento da união homoafetiva no
Brasil, pelo menos enquanto não fosse aprovada emenda alterando o texto constitucional. Contudo, o
argumento, que se apega exclusivamente na literalidade do texto, não procede. Com efeito, sabe-
se que a Constituição, em que pese o seu caráter compromissório, não é apenas um amontoado de
normas isoladas. Pelo contrário, trata​-se de um sistema aberto de princípios e regras, em que cada
um dos elementos deve ser compreendido à luz dos demais. A noção de sistema traduz-se num
importantíssimo princípio de hermenêutica constitucional, que é o da unidade da Constituição.
(...) No sistema constitucional, existem princípios fundamentais que desempenham um valor mais
destacado no sistema, compondo a sua estrutura básica. (...). No caso brasileiro, nem é preciso
muito esforço exegético para identificá-los. O constituinte já tratou de fazê-lo no Título I da Carta,
que se intitula exatamente “Dos Princípios Fundamentais”. E é lá que vão ser recolhidas as
cláusulas essenciais para a nossa empreitada hermenêutica: princípios da dignidade da pessoa
humana, do Estado Democrático de Direito, da construção de uma sociedade livre, justa e solidária,
livre de preconceitos e discriminações, dentre outros. Estes vetores apontam firmemente no sentido
de que a exegese das normas setoriais da Constituição – como o nosso § 3.º do art. 226 –, deve
buscar a inclusão e não a exclusão dos estigmatizados; a emancipação dos grupos vulneráveis e
não a perenização do preconceito e da desigualdade. (...) Da leitura do enunciado normativo
reproduzido, verifica-se que ele assegurou expressamente o reconhecimento da união estável entre
homem e mulher, mas nada disse sobre a união civil dos homossexuais. Esta ausência de referência
não significa, porém, silêncio eloquente da Constituição. O fato de que o texto omitiu qualquer
alusão à união entre pessoas do mesmo sexo não implica, necessariamente, que a Constituição
não assegure o seu reconhecimento. Não bastasse, o elemento teleológico da interpretação
constitucional também não é compatível com a leitura do art. 226, § 3.º, da Constituição, segundo o
qual do referido preceito decorreria, “a contrario sensu”, o banimento constitucional da união entre
pessoas do mesmo sexo. Com efeito, o referido preceito foi inserido no texto constitucional no afã
de proteger os companheiros das uniões não matrimonializadas, coroando um processo histórico
que teve início na jurisprudência cível, e que se voltava à inclusão social e à superação do
preconceito. Por isso, é um contrassenso interpretar este dispositivo constitucional, que se
destina a “inclusão”, como uma cláusula de exclusão social, que tenha como efeito discriminar
os homossexuais.
O eminente Professor (e Advogado) Luís Roberto Barroso, por sua vez, expondo esse mesmo
entendimento e ao também afastar a objeção fundada na estrita literalidade do texto normativo
inscrito no § 3.º do art. 226 da Constituição (que se refere à união estável “entre o homem e a
mulher”), expendeu, a meu juízo, considerações que corretamente enfatizam a alusão à diversidade
de gênero, “não traduz uma vedação de extensão do mesmo regime às relações homoafetivas”, pois
– segundo assinala esse ilustre jurista –, “Extrair desse preceito tal consequência seria desvirtuar a
sua natureza: a de uma norma de inclusão. De fato, ela foi introduzida na Constituição para superar a
discriminação que, historicamente, incidira sobre as relações entre homem e mulher que não
decorressem do casamento”. E aduz, ainda, em seu douto magistério: “Insista-se, para que não haja
margem a dúvida: não tem pertinência a invocação do argumento de que o emprego da expressão
‘união estável entre o homem e a mulher’ importa, ‘a contrario sensu’, em proibição à extensão do
mesmo regime a uma outra hipótese. Tal norma foi o ponto culminante de uma longa evolução que
levou à equiparação entre companheira e esposa. Nela não se pode vislumbrar uma restrição – e
uma restrição preconceituosa – de direito. Seria como condenar alguém com base na lei de anistia.
O Código Civil, por sua vez, contém apenas uma norma de reprodução, na parte em que se refere a
homem e mulher, e não uma norma de exclusão. Exclusão que, de resto, seria inconstitucional”.
Nesse perspectiva, Senhor Presidente, entendo que a extensão, às uniões homoafetivas, do
mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e
legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da
liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra
o direito à busca da felicidade, os quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido
de inclusão decorrente da própria Constituição da República (art. 1.º, III, e art. 3.º, IV), fundamentos
autônomos e suficientes aptos a conferir suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre
pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar.

Para o Ministro Peluso52:

E a segunda consequência é que, na disciplina dessa entidade familiar recognoscível à vista de


uma interpretação sistemática das normas constitucionais, não se pode deixar de reconhecer – e este
é o meu fundamento, a cujo respeito eu peço vênia para divergir da posição do ilustre Relator e de
outros que o acompanharam nesse passo – que há uma lacuna normativa, a qual precisa de ser
preenchida. E se deve preenchê-la, segundo as regras tradicionais, pela aplicação da analogia,
diante, basicamente, da similitude – não da igualdade –, da similitude factual entre ambas as
entidades de que cogitamos: a união estável entre o homem e a mulher e a união entre pessoas do
mesmo sexo. E essa similitude entre ambas é que me autoriza dizer que a lacuna consequente tem
que ser preenchida por algumas normas. (...) E fui o primeiro a aplicar, no Tribunal de Justiça de
São Paulo, em caso de união estável, as normas de Direito de Família. Por quê? Porque realmente
essas uniões, ou essas associações, ou essas relações marcadas sobretudo por afetividade,
evidentemente não podem ser submetidas às normas que regulam sociedades de ordem comercial ou
de ordem econômica. De modo que, na solução da questão posta, a meu ver e de todos os Ministros
da Corte, só podem ser aplicadas as normas correspondentes àquelas que, no Direito de Família, se
aplicam à união estável entre o homem e a mulher. (...)

2.2 Alternativamente: da inconstitucionalidade do art. 226, § 3.º, da CF/1988 por afronta aos
princípios fundamentais da Constituição Federal
Com o julgamento do STF de 04 e 05.05.2011 (ADPF 132 e ADI 4.277), poder-se-ia dizer que a
manutenção deste tópico neste livro seria desnecessária, contudo, decidi mantê-lo aqui diante do fato de
ser possível, embora improvável, que ocorra mudança de posicionamento de nossa Suprema Corte acerca
do tema (ao menos quando a maioria dos ministros que participaram de tal julgamento não mais estiver
na Corte).
Aqueles que não aceitam a hierarquização de normas constitucionais entre si com base no princípio
da unidade da Constituição se limitam a afirmar que não seria crível admitirem-se conflitos entre normas
constitucionais originárias, e, portanto, eventuais tensões configurariam meros “conflitos aparentes”,
solucionáveis por técnicas hermenêuticas de interpretação. Ou seja, negam categoricamente a
possibilidade abstrata de conflitos entre normas constitucionais entre si e determinam que se resolvam as
tensões existentes pela hermenêutica jurídica, ou então pelo princípio da proporcionalidade.
Contudo, na hipótese de não se admitir a aplicação do regime jurídico da união estável aos casais
homoafetivos pela interpretação extensiva ou pela analogia, estar-se-á afrontando o núcleo essencial do
princípio constitucional da isonomia, por estar-se perpetrando uma arbitrariedade jurídica, visto inexistir
fundamento lógico​-racional que justifique a discriminação das uniões homoafetivas em relação às uniões
heteroafetivas (já que ambas são baseadas no mesmo amor familiar), além de se ofender diretamente
outros valores constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, a promoção do bem-estar de todos, a
liberdade de consciência e a vedação da criação de preferências de brasileiros entre si. Assim, verifica-
se que a negativa do reconhecimento da possibilidade jurídica da união estável homoafetiva implica um
inevitável conflito efetivo, uma antinomia real entre normas constitucionais originárias: art. 226, § 3.º
com o art. 5.o, caput, e o art. 3.o, IV (isonomia), com o art. 1.o, III (dignidade humana), além dos valores
constitucionais da liberdade de consciência e da vedação de criação de preferências de brasileiros entre
si.
Dada esta situação, não será de nenhuma validade uma afirmação genérica, de cunho puramente
ideológico, de que seria inadmissível o conflito entre normas constitucionais entre si, pois, nessa
hipótese, o conflito existe e é inegável. Dizer o contrário implicará fechar os olhos à realidade. Assim,
resta procurar uma solução para dito conflito em vez de fechar os olhos a ele, pois isto não fará que
desapareça.
Primeiramente, é de se concordar com a tese esposada por Virgílio Afonso da Silva no sentido da
efetiva existência de uma hierarquia formal das cláusulas pétreas em relação às demais normas
constitucionais, na medida em que, considerando que a superior hierarquia das normas constitucionais em
relação às normas infraconstitucionais é aferida em função da maior dificuldade de alteração daquelas
em relação a estas, o critério de hierarquia formal reside na dificuldade de alteração do texto normativo.
Nesse sentido, se a maior dificuldade na alteração de textos normativos enseja supremacia formal destes
sobre os textos normativos mais facilmente modificáveis, então é inegável que as cláusulas pétreas,
imodificáveis (ao menos em seu núcleo essencial) encontram-se em superior hierarquia às cláusulas
constitucionais modificáveis pela via da emenda constitucional, já que aquelas são imodificáveis e estas,
modificáveis53. Assim, reconhecendo-se a hierarquia formalmente superior das cláusulas pétreas em
relação às demais normas constitucionais, a interpretação restritiva do art. 226, § 3.o, da CF/1988, que
impossibilita o reconhecimento da união estável homoafetiva, por contrariar cláusulas pétreas, implica
inconstitucionalidade da referida restrição, por afronta a norma constitucional hierarquicamente
superior54. Assim, resolvido ficaria o problema com a declaração da inconstitucionalidade da expressão
“entre o homem e a mulher” constante do § 3.o do art. 226 da CF/1988.
Mas há outros enfoques que podem ser dados à questão.
Há quem defenda que o Constituinte Originário, por seu caráter absoluto e ilimitado, poderia ele
próprio excepcionar seus próprios princípios constitucionais – ou seja, consagrada a isonomia como
regra, poderia perpetrar uma arbitrariedade como exceção. Todavia, data maxima venia, tal
entendimento é absurdo, sendo inadmissível em um sistema jurídico. Ora, se em Direito nada se
interpreta de forma isolada, mas sempre sistêmica, isto significa que uma lei não pode ser contraditória
consigo mesma, donde as regras excepcionais serão válidas apenas no caso de não afrontarem o núcleo
essencial dos princípios do documento normativo do qual fazem parte. A interpretação sistemática supõe
necessariamente que haja coerência das normas de um documento legislativo entre si. Não é demais
lembrar a lição do Ministro Eros Roberto Grau, no sentido de que “as regras são concreções, são
aplicações dos princípios (Boulanger)”, donde “por isso mesmo não se manifesta jamais antinomia
jurídica entre princípios e regras jurídicas. [pois] Estas operam a concreção daqueles”55.
Assim, é inadmissível a premissa segundo a qual seria válida uma arbitrariedade jurídica constante
do corpo da Constituição pelo simples fato de ter sido perpetrada deliberadamente pelo Constituinte
Originário. Isso porque o próprio Constituinte Originário deliberou no sentido de que toda a Constituição
deve estar pautada pelos princípios que iniciam seu corpo normativo – como a dignidade humana, a
isonomia, a liberdade, a democracia etc. – razão pela qual deve-se entender que o Constituinte Originário
encontra-se autonomamente vinculado pelos princípios que ele livremente erigiu para a Constituição.
Afinal, os princípios devem ser respeitados pelas regras constantes do corpo do documento normativo
que instruem, justamente por ditarem os parâmetros a serem seguidos por este documento legislativo.
Nesse sentido, é clássica a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello56 no sentido de que:

3. Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema,


verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência
exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a
tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das
diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.
4. Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma [rectius: regra]
qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento
obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência
contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu
arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.
Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura neles
esforçada.

Assim, caso a interpretação que se dê a um caso concreto leve à constatação de colisão efetiva entre
um princípio e uma regra, o princípio deverá prevalecer, justamente por caracterizar aquilo que deve ser
seguido por todo o documento legislativo, ou seja, por todas as regras constantes da lei ou Constituição
em questão. Tal é o que ocorrerá mesmo em se tratando de normas constitucionais originárias, visto que
foi o próprio Constituinte Originário que determinou que o ordenamento jurídico-constitucional deve ser
regido pelos princípios que consagra. Afinal, tomar a sério a teoria dos princípios como mandamentos
nucleares do sistema implica, necessariamente, a colocação destes em patamar hierarquicamente superior
(formalmente falando) ao das regras.
Ademais, vale conferir a opinião de Jorge Miranda57, que, muito embora aponte seu entendimento no
sentido de que, no interior de uma mesma Constituição originária, obra do mesmo poder constituinte
formal, não vê como poderiam existir normas inconstitucionais, afirma adiante que, se a Constituição é
um conjunto de regras e princípios, tem de ser tomada como um todo, devendo-se procurar definir as
relações entre suas normas de forma harmônica, então “quando pelos processos lógicos de trabalho dos
juristas não for possível superar um conflito de normas, será, porventura, legítimo recorrer a
interpretação corretiva ou ab-rogante (...) sem embargo de, quando a Constituição não se reduzir à mera
Constituição instrumental ou legal e fizer apelo a princípios suprapositivos (...) ser obrigatório tomá-los
em consideração e buscar um sentido e um alcance para os desvios ou as excepções aos princípios que,
dentro do razoável, sejam os menos desconformes possíveis com o sentido e o alcance dos princípios
fundamentais da Constituição”. Embora o autor seja partidário de uma corrente que propugna um “Direito
Natural” por meio de uma “axiologia transpositiva”58, com o que não se concorda pelo subjetivismo
inerente a tais concepções jusnaturalistas, que não possuem critérios objetivos a controlá-las, sua lição é
pertinente no sentido da admissão da interpretação corretiva ou ab-rogante das normas constitucionais
quando sejam conflitantes entre si, em antinomia real.
Nesse sentido, Maria Helena Diniz admite a existência de antinomias reais mesmo entre normas
constitucionais originárias. Afirma que a ocorrência de uma antinomia real, que supõe necessariamente a
presença de absoluta incompatibilidade, indecidibilidade pelos critérios hermenêuticos tradicionais
(hierarquia, cronologia e especialidade) e necessidade de decisão59 demandará pela correção do Direito,
visto que sua solução é indispensável à manutenção da coerência do sistema jurídico, correção esta que
deverá ocorrer pela prevalência do valor justum, ou seja, pela prevalência do princípio supremo de
Justiça, donde prevalecerá a norma mais justa, aquela mais razoável ao caso concreto, o que se definirá
com base nos critérios da plena sabedoria, justiça, prudência, eficiência e coerência com seus princípios.
Justifica sua posição com base no art. 5.o da LINDB, que permite ao juiz a interpretação conforme os fins
sociais a que a norma se destine e às exigências do bem comum60. Segundo a autora, a correção do
Direito deverá se dar por intermédio da interpretação corretivo-equitativa pautada pela lógica do
razoável, conforme os fins e valores que inspiraram a norma61. Em suma, da lição da autora extrai-se
que, na resolução de antinomias reais, o que deve ser levado em conta são apenas os fins e valores que
inspiraram a norma62. É a posição que aqui se adota quanto ao tema.
Sobre o restante da posição de Maria Helena Diniz, algumas considerações são necessárias. Ao
longo de sua lição, a autora afirma que primeiramente se deve verificar se não seria o caso de uma
antinomia de primeiro grau, solucionável pelos critérios hierárquico, cronológico ou da especialidade.
Em seguida, afirma ser necessária a verificação de não ser o caso de uma antinomia de segundo grau – ou
seja, conflito entre os critérios (hierarquia x cronologia, hierarquia x especialidade ou cronologia x
especialidade). Nenhuma das hipóteses ocorre no presente caso, por tratar-se de normas constitucionais
originárias em conflito – norma-princípio x regra (que deve necessariamente ser a concretização do
princípio).
Assim, verifica-se a existência de uma antinomia real entre a regra da união estável e a norma-
princípio da isonomia quando negada a aplicação da união estável aos casais homoafetivos. Nesse
sentido, um princípio supremo de justiça inequivocamente demanda a prevalência da isonomia no caso
concreto, com a supressão, no caso concreto, da (suposta) restrição da mesma apenas aos casais
heteroafetivos, de forma a possibilitar tal regime jurídico às uniões homoafetivas, dada a absoluta
arbitrariedade da referida restrição, que afronta o núcleo essencial da isonomia. Mesmo porque, como
dito, uma norma-princípio prevalece sobre uma regra por esta dever sempre respeito àquela, para
manutenção da lógica do sistema. Ou, seguindo o raciocínio da autora, pelo fato de que a aplicação da
isonomia de forma a permitir a união estável homoafetiva resguarda os fins sociais aos quais a norma da
união estável se destina, a saber: a proteção da família, formada pelo amor romântico que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento
formador da família conjugal contemporânea.
Mas nem seria preciso ir tão longe a ponto de buscar um princípio supremo de justiça para tal
resultado. É inegável que a própria Constituição Federal hierarquizou suas normas entre si ao definir
quais seriam seus “princípios fundamentais” e os “direitos fundamentais” dos cidadãos (devendo-se
atribuir o mesmo grau de fundamentalidade aos direitos fundamentais implícitos, passíveis de
identificação consoante o art. 5.º, § 2.º, da CF/1988). Ora, se estas são normas fundamentais, então as
demais normas constitucionais não são da mesma hierarquia delas, por não terem sido reconhecidas
como fundamentais ao sistema jurídico brasileiro pelo Constituinte Originário (ou por não se
configurarem como direitos fundamentais implícitos). Note-se, ainda, que a união estável é um direito
fundamental fora do catálogo do art. 5.o da CF/1988; contudo, a discriminação oriunda da interpretação
restritiva que venha a não reconhecer a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva não pode ser
tida como fundamental, pois: (a) discriminar não é um direito; (b) inexiste manifestação do Constituinte
Originário nesse sentido; (c) essa suposta restrição não se encontra embasada em nenhum outro princípio
fundamental; (d) dita restrição não tem um fundamento lógico-racional que a sustente.
Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana é princípio fundamental da República Federativa do
Brasil, ao passo que a isonomia é direito fundamental dos brasileiros – assim hierarquizados pelas
palavras do próprio Constituinte Originário. Dessa forma, tais normas fundamentais63 devem prevalecer
em um conflito efetivo com regras constitucionais64, como a regra da união estável na parte em que
estaria supostamente “vedando implicitamente” a união estável homoafetiva65.
É de se notar que o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento da citada ADIn 815-3/DF,
reconheceu que é válida a hierarquização efetivada expressamente pelo Constituinte Originário, citando
nesse sentido o art. 178 da Constituição do Império, que dizia que só era constitucional aquilo que se
referisse ao que entendia por normas materialmente constitucionais, sendo as demais modificáveis pelo
procedimento ordinário de reforma legislativa. Tem-se, assim, que as palavras positivadas do
Constituinte Originário podem hierarquizar dispositivos constitucionais originários entre si (a mesma
hierarquia devendo ser admitida entre normas implícitas que tenham a si reconhecido o caráter de
fundamentalidade).
Ou seja, há hierarquia na Constituição Federal de 1988, pois evidentemente um texto normativo que
é classificado como fundamental foi inequivocamente valorado de forma superior a um texto normativo
que não foi classificado como fundamental66 e que não tenha a si atribuído o caráter de fundamentalidade
implícita. Assim, considerando que a isonomia é um direito fundamental e a restrição supostamente
constante do § 3.o do art. 226 da CF/1988 não é algo fundamental à Constituição Federal, tem-se
igualmente supremacia formal a justificar a invalidade da expressão “entre o homem e a mulher”, se
interpretada de forma proibitiva da união estável homoafetiva.
Também admitindo a hierarquia abstrata de normas constitucionais entre si, Maria Berenice Dias
afirma que a eleição de fator sexista para subtrair de homossexuais os direitos deferidos aos
heterossexuais (pois a exigência de diversidade de sexos para a união estável revela dissimulada
discriminação por orientação sexual), além de desrespeitar a dignidade humana, a liberdade pessoal e a
liberdade sexual, afronta a isonomia em virtude de tal discriminação não guardar relação de pertinência
lógica com a exclusão do benefício deferido a heterossexuais, em afronta ao mais elementar princípio
constitucional, donde, adotando a posição de Bachof, classifica a isonomia e a dignidade humana como
normas de Direito Suprapositivo a prevalecerem no conflito com a restrição supostamente existente no
texto normativo da união estável, afirmando ser esta também a posição de Rios, Suannes e, inclusive, da
Suprema Corte dos EUA, que atestou a ilegitimidade de norma constitucional discriminatória ante seu
caráter arbitrário. Apontou, por fim, que Krüger e Giese foram além de Bachof, no sentido de admitirem
hierarquia entre normas constitucionais meramente positivas entre si67. Como se vê, a autora adere à
teoria das normas suprapositivas, que teriam sido positivadas pelo Constituinte Originário e que,
portanto, teriam grau superior às demais normas constitucionais.
É de se notar, contudo, que não é preciso chegar a tanto. Há normas de diferentes hierarquias no
corpo constitucional, não por algumas serem “suprapositivas” e outras não, mas simplesmente por umas
serem mais importantes do que outras, ressalvando-se que essa maior importância depende de
manifestação expressa do próprio Constituinte Originário nesse sentido ou do caráter implicitamente
fundamental de uma norma relativamente a outra não fundamental. Como se averigua a importância de
cada norma constitucional afora das cláusulas pétreas? Ora, pela forma como o Constituinte as positivou
– e é inegável que a positivação de uma norma como fundamental a coloca em um grau superior a uma
norma não positivada como fundamental, pois isto significa que esta última foi positivada como norma
“não fundamental” – ressalvando-se tal exegese positivista apenas no que tange aos direitos
fundamentais implícitos, que são aqueles aos quais, apesar de não expressamente reconhecidos pelo
texto constitucional como fundamentais, têm relação direta com o princípio da dignidade da pessoa
humana e, portanto, têm a si reconhecida a fundamentalidade constitucional.
Assim, de uma forma ou de outra, ao não admitir a interpretação extensiva ou a analogia para
reconhecer a união estável homoafetiva, ter-se-á um conflito efetivo (uma antinomia real) entre normas
constitucionais originárias (união estável x isonomia/dignidade humana) que redundará inegavelmente na
prevalência da regra isonômica, por ter espectro inequivocamente superior ao da regra supostamente
restritiva da união estável. Reitere-se que a isonomia é superior à regra constitucional da união estável:
(a) por ser ela (isonomia) um mandamento nuclear do sistema, que, portanto, deve ser respeitado por
todas as regras constitucionais; e (b) por ser ela (isonomia) um princípio denominado fundamental pelo
Constituinte Originário, o que a coloca inegavelmente em grau superior à suposta restrição constante do §
3.o do art. 226 da CF/1988, que não foi denominada como fundamental (pois é o mesmo que denominá-la
como “não fundamental”); (c) pelo fato de uma discriminação arbitrária não poder ser considerada
como algo “fundamental” ao sistema jurídico – a união estável é um direito fundamental fora do catálogo,
mas a interpretação restritiva da união estável apenas a casais heteroafetivos não pode ser tida como
fundamental por não resguardar nenhum bem/valor constitucionalmente relevante (consoante exposto no
Capítulo 9, quando se trata do princípio instrumental da proporcionalidade).
Por outro lado, a inconstitucionalidade da interpretação proibitiva da união estável homoafetiva
também afronta os princípios da dignidade da pessoa humana, da promoção do bem-estar de todos, da
liberdade de consciência e da liberdade (autonomia moral), conforme exposto no item 2.1 (supra), donde
também por esses princípios constitucionais afigura-se correta a invalidação parcial do § 3.o do art. 226
da CF/1988, na hipótese aqui debatida.
Dessa forma, fica clara a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva nos dias de hoje, seja
através da interpretação extensiva ou da analogia, seja pela hierarquização da isonomia e dos demais
princípios fundamentais sobre a (suposta) regra restritiva da união estável, por sua hierarquia superior,
sendo absolutamente inconstitucional (ou então, incompatível com os valores constitucionais expressos)
entendimento em sentido contrário.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Na mesma linha defendida quanto ao casamento civil, a união estável é um regime jurídico possível
de ser reconhecido às uniões homoafetivas, uma vez que o valor inerente a ela, que configura o objeto de
proteção da(s) lei(s) da união estável, é o amor familiar, ou seja, o amor romântico que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento
formador da família contemporânea no que tange a casais. Isso é possível pela interpretação extensiva,
em se considerando idênticas as uniões heteroafetivas e homoafetivas, visto serem formadas por aquele
mesmo amor, ou então pela analogia, na hipótese de se as considerar como situações diferentes que,
todavia, possuem o mesmo elemento essencial, a saber: o amor familiar.
Todavia, muitos na doutrina e na jurisprudência em geral ainda não aceitam tal tese, apesar de não
cumprirem o encargo de justificar lógica e racionalmente a pertinência da discriminação por elas
pretendida, como lhes impõe o aspecto material da isonomia, donde aplicam uma interpretação
restritiva/discriminatória à união estável em decorrência da expressão “entre o homem e a mulher”,
constante do art. 226, § 3.º, da CF/1988 (e mesmo das leis que regem a união estável). Assim, poder-se​-
ia, a princípio, defender a inconstitucionalidade dessa discriminação por afronta à isonomia e à
dignidade humana, normas constitucionais igualmente originárias que são os valores-guia de nossa Carta
Magna.
Todavia, considerando que o Supremo Tribunal Federal não tem admitido a declaração da
inconstitucionalidade/invalidade de normas constitucionais originárias e mesmo o reconhecimento de
hierarquia dessas normas entre si, essa ausência de fundamentação válida ante o preceito igualitário faz
que a proibição tácita da união estável homoafetiva imposta pelo § 3.º do art. 226 da CF/1988 seja
incompatível com os princípios da isonomia (que proíbe discriminações arbitrárias), da dignidade da
pessoa humana (que declara que todos são merecedores de igual proteção de sua dignidade pelo simples
fato de serem pessoas humanas, e que tem na isonomia a única forma válida de sua relativização), da
promoção do bem-estar de todos, da liberdade de consciência e da vedação de instituição de
preferências de brasileiros entre si, em clara “tensão” com esses princípios.
Assim, a única forma de evitar que esse conflito “aparente” se torne um conflito real entre normas
constitucionais originárias é a aplicação do regime jurídico conferido às uniões estáveis heteroafetivas
às homoafetivas por meio: (i) da interpretação extensiva, reconhecendo-se que ambas as situações
fáticas são idênticas, uma vez que baseadas no mesmo valor protegido pelas normas que regem a união
estável (amor familiar), donde merecem, portanto, o mesmo tratamento jurídico; ou (ii) da analogia, no
sentido de se reconhecer que, se não são idênticas, as uniões homoafetivas guardam extrema similitude
em relação às heteroafetivas naquilo que lhes é fundamental (e é igualmente fundamental à união estável),
que é a existência do amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, que é o sentimento que forma a família conjugal contemporânea (que
independe de futura existência de filhos, mesmo porque a capacidade procriativa do casal não é
fundamental à configuração de dito regime jurídico, da mesma forma que não o é para o casamento civil).
Ambas as soluções, como se pode ver, têm o mesmo resultado prático, sendo elas as únicas formas
de evitar que o conflito hoje considerado como “aparente”, qual seja o do art. 226, § 3.º (proibição da
união estável homoafetiva), com os art. 1.º, III (dignidade da pessoa humana), 3.º, IV (bem-estar de todos
e proibição de discriminações de qualquer natureza), 5.º, caput (isonomia) e VI (liberdade de
consciência), assim como 19, III (vedação da criação de preferências de brasileiros entre si), todos da
Constituição Federal, se transforme em um conflito efetivo de normas.
Contudo, na hipótese de não se admitir a aplicação do regime jurídico da união estável aos casais
homoafetivos pela interpretação extensiva ou pela analogia, estar-se-á incorrendo em antinomia real
entre o texto normativo da união estável e o núcleo essencial princípio constitucional da isonomia, que
estará afrontado por estar-se perpetrando uma arbitrariedade jurídica, visto inexistir fundamento lógico​-
racional que justifique a discriminação das uniões homoafetivas em relação às uniões heteroafetivas (já
que ambas são baseadas no mesmo amor familiar), além de se ofender diretamente valores
constitucionalmente consagrados, como a dignidade da pessoa humana, a promoção do bem-estar de
todos, a liberdade de consciência e a vedação da criação de preferências de brasileiros entre si.
Dada essa situação, não será de nenhuma validade uma afirmação genérica, de cunho puramente
ideológico, de que seria inadmissível o conflito entre normas constitucionais entre si, pois nessa hipótese
o conflito existe e é inegável. Dizer o contrário implicará fechar os olhos à realidade. Assim, resta
procurar uma solução a dito conflito em vez de ignorá-lo, pois isso não fará que ele desapareça.
Nesse sentido, essa antinomia real redundará inegavelmente na prevalência do princípio isonômico,
por ter espectro inequivocamente superior ao da regra supostamente restritiva da união estável, por meio
de uma interpretação corretiva do art. 226, § 3.o, da CF/1988. Reitere-se que a isonomia é superior à
regra constitucional da união estável: (a) por ser ela (isonomia) um mandamento nuclear do sistema, que
portanto deve ser respeitado por todas as regras constitucionais; e (b) por ser ela (isonomia) um
princípio denominado fundamental pelo Constituinte Originário, o que o coloca inegavelmente em grau
superior à suposta restrição constante do § 3.o do art. 226 da CF/1988, que não foi denominada como
fundamental (pois é o mesmo que denominá-la como “não fundamental”) e que não tem a si reconhecido
o caráter de fundamentalidade implícita. O mesmo se diga quanto aos demais princípios constitucionais
apontados: eles prevalecerão sobre a regra supostamente restritiva da união estável (ou melhor, à
exegese restritiva atribuída a tal regra). Aderindo-se a tal teoria da inconstitucionalidade, será ela uma
inconstitucionalidade parcial, relativa à expressão “entre o homem e a mulher” do citado dispositivo
constitucional, visto que a ausência desta não prejudicará em nada o regime jurídico da união estável.
Assim, fica clara a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva nos dias de hoje, seja por
meio da interpretação extensiva ou da analogia, seja pela hierarquização da isonomia e dos demais
valores constitucionais invocados sobre a (suposta) regra restritiva da união estável, por seu espectro
superior, sendo absolutamente inconstitucional (ou, então, incompatível com os valores constitucionais
expressos) entendimento em sentido contrário.

1 BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais: Aspectos Jurídicos, 1.ª Edição, São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2002, p. 82.
2 Por intermédio da CID 10/1993.
3 Por intermédio da Resolução 1/1999.
4 A decisão, unânime, fundamentou-se no sentido de que: “Essa tese – a de que há hierarquia entre normas constitucionais
originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras – se me afigura incompossível com
o sistema de Constituição rígida”, donde “na atual Carta Magna ‘compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a
guarda da Constituição’ (art. 102, caput), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se
desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do poder constituinte
originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído
no texto da mesma Constituição”. Nesse aresto, o Supremo também rejeitou a tese de que as cláusulas pétreas teriam
uma hierarquia superior às demais normas constitucionais sob o argumento de que “as cláusulas pétreas não podem ser
invocadas para a sustentação da tese de inconstitucionalidade de normas inferiores em face das normas constitucionais
superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado de rever ou ao emendar
a Constituição elaborada pelo Constituinte originário com relação às outras que não sejam consideradas como cláusulas
pétreas”.
5 A polêmica formulação do autor alemão, oriunda de sua obra Normas constitucionais inconstitucionais?, consiste na
afirmação de que haveria preceitos de Direito suprapositivo, positivados ou não, que deveriam ser respeitados sempre,
inclusive pelo Constituinte Originário, em colocação que inequivocamente remete à adesão à teoria do Direito Natural no
que tange a tais preceitos pretensamente suprapositivos, que seriam aqueles que supostamente existiriam em qualquer
ordem jurídica, fundados no ideal abstrato de Justiça que deveria sempre guiar o Direito. Supõe, ainda, a compreensão que
as normas constitucionais positivadas de Direito suprapositivo seriam meramente declaratórias, e não constitutivas, visto
que não estariam criando, mas meramente reconhecendo direitos preexistentes.
6 Sobre o que usualmente se entende sobre o conteúdo jurídico do princípio da unidade da Constituição, vide, por todos, a
lição de Luís Roberto Barroso, que afirma: “(...) O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e
impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas. Deverá fazê-lo guiado pela grande
bússola da interpretação constitucional: os princípios fundamentais, gerais e setoriais inscritos ou decorrentes da Lei Maior.
(...) O fim primário do princípio da unidade é procurar determinar o ponto de equilíbrio diante das discrepâncias que possam
surgir na aplicação das normas constitucionais, cuidando de administrar eventuais superposições. (...) Mais que isso: do
ponto de vista lógico, as normas constitucionais, frutos de uma vontade unitária e geradas simultaneamente, não podem
jamais estar em conflito no momento de sua concretização. Portanto, ao intérprete da Constituição só resta buscar a
conciliação possível entre proposições aparentemente antagônicas, cuidando, todavia, de jamais anular integralmente uma
em favor da outra. (...) O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as contradições e tensões – reais ou imaginárias
– que existam entre normas constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe-lhe,
portanto, o papel de harmonização ou ‘otimização’ das normas, na medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem
jamais negar por completo a eficácia de qualquer delas. (...) A doutrina mais tradicional divulga como mecanismo adequado
à solução de tensões entre normas a chamada ponderação de bens ou valores. Trata-se de uma linha de raciocínio que
procura identificar o bem jurídico tutelado por cada uma delas, associá-lo a um determinado valor, isto é, ao princípio
constitucional ao qual se reconduz, para, então, traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre tendo como
referência máxima as decisões fundamentais do constituinte (...)” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da
Constituição, 6.a Edição, 3.a tiragem, São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 196, 197, 198 e 200-201).
7 O que foi expressamente afirmado pelo Ministro Celso de Mello em seu voto no julgamento de 05.05.2011, que reconheceu a
união estável homoafetiva (ADPF 132 e ADI 4.277).
8 Como já mencionado, é o sentido, por eles mais bem trabalhado, que lhe dão José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira
(CRP – Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.a Edição brasileira, 4.a Edição portuguesa, Coimbra: Coimbra
Editora e São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 609), para os quais a liberdade de consciência “é a convicção
ética e a autónoma responsabilidade reivindicada por qualquer indivíduo para justificar o seu comportamento”, ou seja, “a
liberdade de formação das próprias convicções (forum internum)” e a “exteriorização da decisão de consciência (forum
externum)”.
9 No que tange ao conteúdo jurídico da liberdade jurídica, assim como seu enquadramento nos chamados “direitos sexuais”, a
meu ver melhor entendidos como direitos a determinar sua vida amorosa, leciona José Reinaldo de Lima Lopes (Liberdade
e direitos sexuais – o problema a partir da moral moderna, in: RIOS, Roger Raupp (org.), Em defesa dos Direitos Sexuais,
1.a Edição, Porto Alegre: Editora Revista do Advogado, 2007, p. 43, 46, 47, 52, 53, 56, 57, 64 e 69-71): “Liberdade jurídica
indica a existência de um campo de ação em que o sujeito está imune às imposições alheias, de um igual ou de um
superior. (...) Liberdade, criticamente compreendida, significa dar à vida de cada um o valor de algo insubstituível. Essa vida,
porque é capaz de se desenvolver até certo ponto por si mesma, pode ser valorizada como algo em si mesmo bom. (...) a
imunidade ou liberdade jurídica serve para proteger uma outra coisa valiosa em si mesma que é a autonomia. A autonomia
consiste na faculdade de cada um ser um ser suficientemente capaz de conduzir sua vida e fazer suas escolhas. (...) O
que dizer no campo da própria vida sexual? Posso dispor de mim da mesma maneira? Sim: a resposta é que cada um
pode conduzir sua vida como quiser, e que o paternalismo não tem lugar apoiado no sistema jurídico. Pode-se recomendar,
pode-se aconselhar, mas não se pode impor a cada um o bom [Mill]. (...) A direção que nosso argumento toma é, pois, que
a liberdade fundamental de cuidar de sua vida e conduzir sua atividade sexual é uma liberdade civil, fundada por seu turno
na liberdade moral ou autonomia dos indivíduos. (...) o direito de liberdade, e de liberdade fundamental na forma da
constituição, significa que as pessoas podem viver mais ou menos como bem lhes aprouver, garantida igual e simultânea
liberdade para todos. Dentro dessa perspectiva, os direitos sexuais não parecem oferecer maior dificuldade. ‘Cada um
cuide de sua vida’, como princípio legítimo de liberdade e mesmo de justiça (Lucas, 1999). A liberdade moral (cada um se
desenvolve para tornar-se dono de sua vida e de suas escolhas) e a liberdade civil (todos têm igual liberdade até o limite do
dano causado a outrem) dão suficiente apoio ao ponto de partida da tese de que os direitos sexuais são perfeitamente
reconhecíveis como liberdades fundamentais na esfera da vida sexual. (...) ‘A única liberdade que merece o nome é a de
buscar nosso próprio bem de nosso próprio jeito, desde que não tentemos privar os outros dos seus ou impedir seus
esforços para obtê-los’ (Mill, 1974, 138). (...) Sem autonomia, não há liberdade. Logo, é preciso combater também as
restrições desnecessárias à liberdade, aquelas que impedem a autonomia dos sujeitos. (...) ‘A única parte da conduta de
qualquer um que deve ser aberta à sociedade é a que diz respeito aos outros. (...) Sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo
e mente, o indivíduo é soberano’ (Mill, 1974, 135) (...). Mill afasta o paternalismo (obrigar as pessoas a fazerem o que é bom
para si, mesmo que não queiram) e a condução da consciência alheia. A ação moral só tem valor se for realizada
livremente; logo, aquilo que é bom para alguém ou para algum modo de vida não pode ser legalmente obrigatório. Somente
aquilo que prejudica os outros deve ser proibido. (...) Direitos sexuais significam primeiramente a liberdade de o indivíduo
conduzir sua atividade ou vida sexual de tal maneira que não lese igual liberdade dos outros. Trata​-se do conceito mais
corriqueiro de liberdade que se pode ter. Na mesma medida da liberdade alheia, é a liberdade de conduzir-se. (...) Assim, a
forma de experimentar sua sexualidade, por aqueles que não se subordinam a credos religiosos ou à moral convencional,
desde que exercida de forma que respeite a liberdade e o consentimento dos que com eles se engajam em atividades
sexuais, não pode ser impedida porque ela é considerada ‘ofensiva’ a alguém, ou a algum grupo. É que esta ofensa ao
sentimento alheio não prejudica absolutamente a vida alheia, a não ser que a vida alheia incorpore um direito a determinar
para os outros, e não para si, a forma de viver. (...) Claro que entre as liberdades do outro não se conta sua liberdade de
continuar negando a autonomia dos que pensam diferente de si, pois nesse caso sua liberdade seria excludente das
liberdades alheias.
10 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20.ª Edição, São Paulo: Editora Atlas, 2006, p. 10-11.
11 Sendo o princípio um mandamento nuclear do sistema (como efetivamente é), a regra tem necessariamente que ser uma
concretização do princípio, sob pena de afronta à lógica, pois é inadmissível que a concretização do abstrato afronte a ideia
defendida pelo abstrato.
12 O que resultaria em procedimento similar ao exposto no caso do casamento civil, qual seja o ingresso com ação
declaratória de união estável, com pedido incidental de declaração da inconstitucionalidade desse dispositivo, sendo que a
união estável aí declarada teria eficácia reconhecida desde o início da relação fática – como inclusive ocorre com as
heteroafetivas após o término da união fática. Aponte-se, por oportuno, que é muito estranha a negativa geral da doutrina
constitucionalista acerca da impossibilidade absoluta de conflitos efetivos entre normas constitucionais originárias. Isso
porque os defensores dessa tese se limitam a dizer que não seria admissível tal hipótese pelo princípio da unidade
constitucional e ponto final, sem analisar o Direito Positivo concreto – contudo, dita postura ideológica não tem o condão de
afastar eventuais conflitos entre normas constitucionais conflitantes. É evidente que o intérprete deve se esforçar para
tentar atribuir uma interpretação harmoniosa a todos os dispositivos constitucionais, no que a noção de princípios como
mandamentos nucleares do sistema auxilia no sentido de que a interpretação das regras é necessariamente condicionada
pelo conteúdo jurídico dos princípios, donde uma regra deve necessariamente ser interpretada de forma a não afrontar os
princípios do documento jurídico em questão. Contudo, é igualmente evidente que a interpretação de um texto normativo
não pode alterar o significado de suas palavras, donde, caso a interpretação definitiva da regra constitucional afronte o
princípio também constitucional da igualdade, este deverá prevalecer sobre aquela. Afinal, o princípio (a norma-princípio) de
um documento normativo (como a Constituição) condiciona as regras de dito sistema de normas, donde se uma regra
constitucional for interpretada de forma a colidir abstratamente com o princípio da igualdade, então este deverá prevalecer,
seja por ele ser um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3.o, IV, da CF/1988), seja pelo fato de
as normas-princípio condicionarem as regras do documento normativo em questão. Verifique-se que a tese aqui defendida
não afronta o significado das palavras do § 3.o do art. 226 da CF/1988, visto que não se está alterando o significado da
expressão “o homem e a mulher”, apenas dizendo que isso não implica proibição implícita à união estável homoafetiva,
restando configurada uma lacuna, suprimível pela interpretação extensiva ou pela analogia. Note-se, por fim, que não estou
aderindo a nenhuma teoria de “Direito Natural” nem mesmo aceitando que o princípio da igualdade (entre outros) teria
caráter suprapositivo: apenas estou dizendo que as normas-princípio condicionam as regras de determinado documento
normativo, visto que aquelas são mandamentos nucleares do sistema, ao passo que estas têm que ser necessariamente
concretizações de tais mandamentos, donde, na hipótese de preponderar uma interpretação das regras que afronte os
princípios de tal forma a gerar um conflito abstrato entre tais espécies normativas, a norma-princípio deverá prevalecer.
Tomar a sério a teoria dos princípios como mandamentos nucleares do sistema leva, inevitavelmente, a colocações dos
princípios como hierarquicamente superiores às regras.
13 Por não se admitir hierarquia entre normas constitucionais originárias, hipótese na qual se deve usar a interpretação
extensiva ou a analogia para se estender às uniões homoafetivas o regime jurídico da união estável, como única forma
hermenêutica de evitar que tal “tensão” se transforme em antinomia real.
14 FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais: efeitos jurídicos. 1.ª Edição, São Paulo: Editora Método, 2004, p. 68 a
70. No original: “Argumenta-se, numa leitura literal do art. 226, § 3.º, da CF, que ele reconhece e protege a união estável
entre homem e mulher como entidade familiar. E somente esta! (...) [Mas] Isto [a atual redação do art. 226 da Constituição
Federal] não quer dizer, absolutamente, que a Lei Fundamental rejeite, proíba ou discrimine as relações afetivas
homossexuais. (...) Tais parcerias representam, sim, uniões estáveis; só não são, é claro, as uniões estáveis entre homem
e mulher de que trata a Constituição naquele dispositivo. Mas todo o regramento sobre as uniões estáveis heterossexuais
pode ser estendido às parcerias homossexuais, dada a identidade das situações, ou seja, estão presentes tanto em uma
quanto em outra, os requisitos de uma vida em comum, como respeito, afeto, solidariedade, assistência mútua e tantos
outros. Portanto, clamam por um tratamento analógico. Pondera Virgílio de Sá Pereira: ‘O homem quer obedecer ao
legislador, mas não pode desobedecer à natureza, e por toda parte ele constitui a família, dentro da lei, se é possível, fora
dela, se é necessário’. Pensar diferente é não estar atento para os vários princípios e normas constitucionais que se
aplicam ao tema, desde o da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da não discriminação em razão do sexo e outros.
As uniões entre pessoas do mesmo sexo, ou com o nome de uniões estáveis, ou de uniões homoafetivas, ou ainda de
parcerias homoafetivas, representam, realmente, entidades familiares, e têm de receber o tratamento que as entidades
familiares merecem receber. Ou a República é democrática para todos, menos para os que têm uma orientação sexual
diferente da maioria? Pelo exposto, se dois parceiros homossexuais, com nítido interesse processual, ingressarem na
justiça com uma ação declaratória, para que seja reconhecida a união estável que eles mantêm (CPC, art. 4.º, I), não deve
o juiz, de plano, considerar inepta a petição e decidir pela impossibilidade jurídica do pedido (CPC, art. 295, parágrafo único,
III), alegando que, nos termos da Constituição Federal (art. 226, § 3.º) e do Código Civil (art. 723), a união estável é o nomen
juris do relacionamento afetivo entre o homem e a mulher, uma união heterossexual, portanto. Tendo em vista, menos, a
letra fria das normas e procurando a substância das mesmas, o fim social a que se dirigem, numa interpretação evolutiva,
coincidente com os fatos e as exigências sociais, recorrendo, ademais, à analogia, o juiz pode, sim – e a nosso ver, com
certeza, deve –, declarar a existência da relação jurídica, do relacionamento qualificado, diante das provas dos fatos
constitutivos que lhe foram apresentados, estando configuradas a convivência duradoura, pública, contínua entre os
requerentes, e a relação afetiva, constitutiva de família. E, se num resíduo de excesso formalístico, estando convencido do
pedido, o juiz não se sentir à vontade para proclamar que ali existe uma ‘união estável’, que declare, então, que a situação
configura uma entidade familiar, uma relação inequívoca, uma união homossexual, em que os efeitos, praticamente, serão
os mesmos, atendendo-se sobretudo o fundamento constitucional que rejeita o preconceito em razão do sexo – ou de
orientação sexual, como preferimos (art. 3.º, IV)” (sem grifos no original).
15 DIAS (Efeitos patrimoniais das relações de afeto, p. 293-294) apud BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias
homossexuais: Aspectos Jurídicos, 1.ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 80. No original: “Em nada
se diferencia a convivência homossexual da união estável. Não pode ser vista exclusivamente pela restrição contida na
Carta Maior, mas imperioso é que, através de uma interpretação analógica, se passe a aplicar o mesmo regramento legal,
pois inquestionavelmente que se trata de um relacionamento, tendo por base o amor” (sem grifos no original).
16 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: O Preconceito & a Justiça, 3a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2006, p. 93. No original: “O silêncio constitucional e a omissão legiferante não podem levar à negativa de se
extraírem efeitos jurídicos de tais vínculos [homoafetivos], devendo o juiz atender à determinação do art. 4.o da Lei de
Introdução ao Código Civil, e fazer uso da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito. Não há como fugir da
analogia com as demais relações que têm o afeto por causa e, assim, reconhecer a existência de uma entidade familiar à
semelhança do casamento e da união estável. O óbice constitucional, estabelecendo a distinção de sexos ao definir a união
estável, não impede o uso dessa forma integrativa de um fato existente e não regulamentado no sistema jurídico. A
identidade sexual não serve de justificativa para se buscar qualquer outro ramo do Direito que não o Direito das Famílias.
Não há dúvida de que a analogia tem o mérito de reconhecer o caráter familiar das uniões homossexuais que satisfazem
os pressupostos hoje valorizados pelo direito de família e consagrados pela Constituição” (sem grifos no original). É de se
notar que, quando a autora faz referência ao “óbice constitucional”, ela se refere ao fato de a definição constitucional referir-
se à união heteroafetiva ao mencionar a união estável. Contudo, é notório no meio jurídico que o fato de termos uma
definição constante em um texto normativo que abarque um fato e não outro não implica impossibilidade de utilização da
interpretação extensiva ou da analogia (como aqui se defende), sendo que afirmação em sentido contrário denota profundo
desconhecimento a respeito de hermenêutica jurídica ou então má-fé de quem a propugna – é da essência da interpretação
extensiva e da analogia que o texto da norma cite um fato e não o outro, pois é justamente essa omissão normativa que
justificou a criação de tais técnicas interpretativas pela ciência jurídica!
17 Ibidem, p. 82. No original: “Não é desarrazoado, firme nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da
igualdade, considerada a visão unitária e coerente da Constituição, com o uso da analogia e suporte nos princípios gerais
do direito, ter-se a união homoerótica como forma de união estável. Indispensável é reconhecer que os vínculos
homoafetivos são muito mais do que meras relações homossexuais. Em verdade, configuram uma categoria social que
não pode mais ser discriminada ou marginalizada pelo preconceito, sob pena de o Direito falhar como Ciência e, o que é
pior, como Justiça”.
18 BARROSO, Luís Roberto. “Diferentes mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil”, Revista
de Direito do Estado, n. 5, p. 167 e ss, 2007. Aproveito a oportunidade para agradecer ao Professor Luís Roberto Barroso
por ter-me enviado cópia do parecer, via e-mail, antes mesmo dele ter sido publicado. Assim, em que pese esse excelente
trabalho ter sido publicado na referida revista, as páginas citadas nas próximas notas de rodapé a tal parecer referem-se à
paginação em folhas de tamanho A4 – p. 01-41. O trabalho está disponível, neste formato, no seguinte
link: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/grupos-de-trabalho/dir-sexuais-
reprodutivos/docs_atuacao/ParecerBarroso%20uniao%20homossexuais.pdf. Acesso em: 28 set. 2007.
19 Ibidem, p. 16-21, no sentido de que: “a Constituição é refratária a todas as formas de preconceito e discriminação, binômio
no qual hão de estar abrangidos o menosprezo ou a desequiparação fundada na orientação sexual das pessoas”, donde
demonstra inexistir razoabilidade e legitimidade na negação de direitos em virtude da orientação sexual das pessoas em
virtude de que: (i) “A impossibilidade de procriação não é uma justificativa para o tratamento desigual”, visto que “no cerne
da noção contemporânea de família está a afetividade, o projeto de comunhão de vidas, independentemente da sexualidade”
e em especial porque, no conceito de união estável, “não há qualquer referência à procriação”; (ii) “Em uma sociedade
democrática e pluralista, deve-se reconhecer a legitimidade de identidades alternativas ao padrão majoritário”,
especialmente porque “o estabelecimento de standards de moralidade já justificou, ao longo da história, variadas formas de
exclusão social e política, valendo-se do discurso médico, religioso ou da repressão direta do poder”, donde “não há razão
para reproduzir o erro”; (iii) A questão dos valores cristãos “pode ter importância no debate que se instaura no interior das
confissões religiosas. Mas, como intuitivo, não pode prevalecer no espaço público de um Estado laico”, muito embora seria
de se discutir “se os valores cristãos não seriam realizados de forma melhor pela compreensão, pela tolerância e pelo
amparo, em lugar da negação”.
20 Ibidem, p. 22-23. Ressalta o autor que “não reconhecer a um indivíduo a possibilidade de viver sua orientação sexual em
todos os seus desdobramentos é privá-lo de uma das dimensões que dão sentido a sua existência”, ressaltando
corretamente que “para um indivíduo de orientação homossexual, a escolha não é entre estabelecer relações com pessoas
do mesmo sexo ou de sexo diferente, mas entre abster-se de sua orientação sexual ou vivê-la clandestinamente”, no
sentido de que “a exclusão das relações homoafetivas do regime da união estável não daria causa, simplesmente, a uma
lacuna, a um espaço não regulado pelo Direito”, mas a “uma forma comissiva de embaraçar o exercício da liberdade e o
desenvolvimento da personalidade de um número expressivo de pessoas, depreciando a qualidade dos seus projetos de
vida e dos seus afetos. Isto é: fazendo que sejam menos livres para viver as suas escolhas”.
21 Ibidem, p. 26-27. Isso porque “a discriminação das uniões homoafetivas equivale a não atribuir igual respeito a uma
identidade individual, a se afirmar que determinado estilo de vida não merece ser tratado com a mesma dignidade e
consideração atribuída aos demais”, pois “as identidades particulares, ainda que minoritárias, são dignas de
reconhecimento”, uma vez que “tal exclusão funcionaliza as relações afetivas a um projeto determinado de sociedade, que
é majoritário, por certo, mas não juridicamente obrigatório”, visto que “as relações afetivas são vistas como meio para a
realização de um modelo idealizado, estruturado à imagem e semelhança de concepções morais ou religiosas
particulares”, com o indivíduo sendo “tratado, então, como meio para a realização de um projeto de sociedade”, só sendo
reconhecido “na medida em que se molda ao papel social que lhe é designado pela tradição: o papel de membro da família
heterossexual, dedicada à reprodução e à criação de filhos”.
22 Ibidem, p. 27-29. Afirma o autor que: “A exclusão das relações homoafetivas do regime jurídico da união estável, sem que
exista um outro regime específico aplicável, é inequivocamente geradora de insegurança jurídica”, visto que “as uniões entre
pessoas do mesmo sexo são lícitas e continuarão a existir, ainda que persistam as dúvidas a respeito do seu
enquadramento jurídico”, donde “esse quadro de incerteza – alimentado por manifestações díspares do Poder Público,
inclusive decisões judiciais conflitantes – afeta o princípio da segurança jurídica, tanto do ponto de vista das relações entre
os parceiros quanto das relações com terceiros”, o que significa que “criam-se problemas para as pessoas diretamente
envolvidas e para a sociedade”. Isso porque “o desenvolvimento de um projeto de vida em comum tende a produzir reflexos
existenciais e patrimoniais”, diante do que “é natural que as partes queiram ter previsibilidade em temas envolvendo
herança, partilha de bens, deveres de assistência recíproca e alimentos, dentre outros”, aspectos estes equacionados no
tratamento dispensado pelo Código Civil às uniões estáveis, donde “sua extensão às relações homoafetivas teria o condão
de superar a insegurança jurídica na matéria”. Por outro lado, “a indefinição sobre o regime aplicável pode afetar,
igualmente, terceiros que venham a estabelecer relações negociais com algum dos envolvidos na parceria homoafetiva”,
uma vez que “como regra, pessoas que vivem em união estável necessitam de anuência do companheiro, por exemplo,
para alienar bens e conceder garantia”, donde “se é possível interpretar o direito posto de modo a prestigiar o princípio da
segurança jurídica, e inexistindo outro valor de estatura constitucional que a ele se oponha, será contrária à Constituição a
interpretação que frustre a concretização de tal bem jurídico”.
23 Ibidem, p. 34-36. No original: “Insista-se, para que não haja margem a dúvida: não tem pertinência a invocação do
argumento de que o emprego da expressão ‘união estável entre o homem e a mulher’ importa, a contrario sensu, em
proibição à extensão do mesmo regime a uma outra hipótese. Tal norma foi o ponto culminante de uma longa evolução que
levou à equiparação entre companheira e esposa. Nela não se pode vislumbrar uma restrição – e uma restrição
preconceituosa – de direito. Seria como condenar alguém com base na lei de anistia. O Código Civil, por sua vez, contém
apenas uma norma de reprodução, na parte em que se refere a homem e mulher, e não uma norma de exclusão. Exclusão
que, de resto, seria inconstitucional”. Termina o autor essa tese no sentido de que sequer há lacuna normativa uma vez que
os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança jurídica impõem a extensão do
regime jurídico da união estável às relações homoafetivas.
24 Ibidem, p. 37. No original: “De fato, os elementos essenciais da união estável, identificados pelo próprio Código Civil –
convivência pacífica e duradoura com o intuito de constituir família – estão presentes tanto nas uniões heterossexuais
quanto nas uniões homoafetivas. Os elementos nucleares do conceito de entidade familiar – afetividade, comunhão de vida
e assistência mútua, emocional e prática – são igualmente encontrados nas duas situações. Diante disso, nada mais
natural do que o regime jurídico de uma ser estendido à outra. Admitida a analogia, chegar-se-ia à seguinte conclusão: a
Constituição teria reconhecido expressamente três tipos de família: a decorrente do casamento (art. 226, §§ 1.o e 2.o); a
decorrente de união estável entre pessoas de sexos diferentes (art. 226, § 3.o); e a família monoparental, ou seja, aquela
formada por apenas um dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4.o). Haveria, contudo, um tipo comum de família não
expressamente reconhecido: a união homoafetiva. Apesar da falta de norma específica, o reconhecimento dessa quarta
modalidade seria imposto pelo conjunto da ordem jurídica e pela presença dos elementos essenciais que caracterizam as
uniões estáveis e as entidades familiares”.
25 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 6.a Edição, 3.a tiragem, São Paulo: Editora Saraiva,
2006, p. 202-203. No original: “Tudo o que se viu até aqui em nome da unidade constitucional reforça ‘o papel dos princípios
constitucionais como condicionantes da interpretação das normas da Lei Maior’. São eles que conferem unidade e
coerência ao sistema e é a eles que se recorre na solução das tensões normativas. A grande premissa sobre a qual se
alicerça o raciocínio desenvolvido é a de que inexiste hierarquia normativa entre as normas constitucionais, sem qualquer
distinção entre normas materiais ou formais ou entre normas-princípio e normas-regra. Isso porque, em direito, hierarquia
traduz a ideia de que uma norma colhe o seu fundamento de validade em outra, que lhe é superior. Não é isso que se passa
entre normas promulgadas originariamente com a Constituição. Não obstante isso, é inegável o destaque de algumas
normas, quer por expressa eleição do constituinte, quer pela lógica do sistema. No direito constitucional positivo brasileiro,
foram expressamente prestigiadas as normas que cuidam das matérias integrantes do núcleo imodificável da Constituição,
que reúne as chamadas cláusulas pétreas. Consoante o elenco do § 4.o do art. 60, não podem ser afetadas por emendas
que tendam a abolir os valores que abrigam as normas que cuidam: a) da forma federativa do Estado; b) do voto direto,
secreto, universal e periódico; c) da separação dos Poderes; d) dos direitos e garantias individuais. Todos os itens acima,
não é difícil constatar, estão ligados a algum dos princípios fundamentais do ordenamento, a saber: o princípio federativo, o
princípio democrático e o princípio republicano (periodicidade de voto). Aliás, ao menos idealmente, a Democracia, a
República e a Federação constituem, de longa data, o trinômio essencial do Estado brasileiro. É natural que esses
princípios fundamentais, notadamente os que foram objeto de distinção especial no § 4.o do art. 60, sejam os grandes
vetores interpretativos do Texto Constitucional. Em seguida, vêm os princípios gerais e setoriais. Porque assim é, deve-se
reconhecer a existência, no Texto Constitucional, de uma hierarquia axiológica, resultado da ordenação dos valores
constitucionais, a ser utilizada sempre que se constatarem tensões que envolvam duas regras entre si, uma regra e um
princípio ou dois princípios” (sem grifos no original).
26 Dita representação foi assinada pelos Procuradores Regionais da República Daniel Sarmento, Luiza Cristina Frischeisen,
Paulo Gilberto Cogo Leivas, pelo Procurador Regional dos Direitos do Cidadão Sérgio Gardenghi Suiama, pelos
Procuradores da República Renato de Freitas Souza Machado e Caroline Maciel da Costa, por Antônio Luiz Martins dos
Reis (da ABGLT), por Nelson Matias Pereira (pela Associação da Parada do Orgulho GLBT/SP), pelo advogado Paulo
Tavares Mariante (pelo Identidade – Grupo de Ação pela Cidadania Homossexual) e por Edmilson Alves de Medeiros (do
grupo CORSA – Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor).
27 Ementa: Homossexuais. União estável. Possibilidade jurídica do pedido. É possível o processamento e o reconhecimento
de união estável entre homossexuais, ante os princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam
qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo
mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo
serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e
amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e coletividades possam andar
seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja instruído
o feito (TJ/RS, Apelação Cível 598362655, 8.ª Câmara Cível, Relator Desembargador José Trindade, em 01.03.2000, v.u.)
(sem grifos e destaques no original).
28 Ementa: União homossexual. Reconhecimento. Partilha do patrimônio. Meação. Paradigma. Não se permite mais o
farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos
derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode
ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem consequências semelhantes às que vigoram nas
relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os
princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do
relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica.
Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros (TJ/RS, Apelação Cível
70001388982, 7.ª Câmara Cível, Relator Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, por maioria – grifos nossos).
29 Ementa: Apelação cível. Ação de reconhecimento de dissolução de sociedade de fato cumulada com partilha. Demanda
julgada procedente. Recurso improvido. Aplicando-se analogicamente a Lei 9.278/1996, a recorrente e sua companheira
têm direito assegurado de partilhar os bens adquiridos durante a convivência, ainda que tratando-se de pessoas do mesmo
sexo, desde que dissolvida a união estável. O Judiciário não deve distanciar-se de questões pulsantes, revestidas de
preconceitos só porque desprovidas de norma legal. A relação homossexual deve ter a mesma atenção dispensada às
outras relações. Comprovado o esforço comum para a ampliação ao patrimônio das conviventes, os bens devem ser
partilhados. Recurso Improvido (TJ/BA, Apelação Cível 16313-9/99, 3.ª Câmara Cível, Relator Desembargador Mário Albiani,
v.u., julgado em 04.04.2001 – grifos nossos).
30 Ementa: Justificação judicial. Convivência homossexual. Competência. Possibilidade jurídica do pedido. 1. É competente a
Justiça Estadual para julgar a justificação de convivência entre homossexuais pois os efeitos pretendidos não são
meramente previdenciários, mas também patrimoniais. 2. São competentes as Varas de Família, e também as Câmaras
Especializadas em Direito de Família, para o exame das questões jurídicas decorrentes da convivência homossexual pois,
ainda que não constituam entidade familiar, mas mera sociedade de fato, clamam, pela natureza da relação, permeada de
afeto e peculiar carga de confiança entre o par, um tratamento diferenciado daquele próprio do direito das obrigações.
Essas relações encontram espaço próprio dentro do Direito de Família, na parte assistencial, ao lado da tutela, curatela e
ausência, que são relações de cunho protetivo, ainda que também com conteúdo patrimonial. 3. É viável juridicamente a
justificação pretendida pois a sua finalidade é comprovar o fato da convivência entre duas pessoas homossexuais, seja
para documentá-la, seja para uso futuro em processo judicial, onde poderá ser buscado efeito patrimonial ou até
previdenciário. Inteligência do art. 861 do CPC. Recurso conhecido e provido (TJ/RS, Apelação Cível 70002355204, 7.ª
Câmara Cível, Relator Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, v.u., julgado em 11.04.2001 – grifos
nossos).
31 Ementa: União homoafetiva. Pensão. Sobrevivente. Prova da relação. Possibilidade. À união homoafetiva que irradia
pressupostos de união estável deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo reconhecer os direitos
decorrentes deste vínculo, pena de ofensa aos princípios constitucionais da liberdade, da proibição de preconceitos, da
igualdade e dignidade da pessoa humana (TJ/MG, Apelação Cível 1.0024.05.750258-5/002(1), Relator Desembargador
Belizário de Lacerda, v.u., julgado em 04.09.2007 – grifos nossos).
32 Ementa: apelação cível. União estável. Relação entre pessoas do mesmo sexo. Alegação de incompetência da vara de
família e de impossibilidade jurídica do pedido. Inocorrência de nulidade da sentença. Precedentes. (...) 3. Não há falar em
impossibilidade jurídica do pedido, pois a Constituição Federal assegura a todos os cidadãos a igualdade de direitos e o
sistema jurídico encaminha o julgador ao uso da analogia e dos princípios gerais para decidir situações fáticas que se
formam pela transformação dos costumes sociais. 4. Não obstante a nomenclatura adotada para a ação, é incontroverso
que o autor relatou a existência de uma vida familiar com o companheiro homossexual. Este relacionamento sequer é
negado pela mãe do falecido. 5. (...) Por fim, uma vez reconhecida que a convivência formou entre eles uma entidade
familiar, aplicam-se, por analogia, ao caso os efeitos pessoais e patrimoniais comuns às uniões estáveis com presunção
de formação patrimonial que dispensa prova da contribuição econômica do parceiro. Afastadas as preliminares, negaram
provimento, por maioria (TJ/RS, Apelação Cível 70015169626, Relator Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, por
maioria, julgado em 02.08.2006) (grifos nossos).
33 Ementa: Constitucional. Civil. Família. União estável. Pessoas do mesmo sexo. Relação homoafetiva. Artigo 3.o inciso IV,
da Constituição Federal. A Constituição Federal é expressa no sentido de que constitui objetivo fundamental da República a
promoção do bem de todos, tornando defeso qualquer tipo de preconceito ou discriminação ligada a condições que sejam
inerentes à pessoa humana (TJ/RJ, Apelação Cível 2006.001.06195, Relator Desembargador Marco Antonio Ibrahim,
julgado em 04.07.2006) (sem grifos e destaques no original). No inteiro teor, afirmou o Relator que, “de acordo com
disposição expressa da própria Constituição Federal, um dos fundamentos da República é o de promover o bem de todos,
sem discriminação. Esta norma, evidentemente, é dirigida não apenas às pessoas físicas e jurídicas, mas, também, aos
poderes constituídos. Não pode, portanto, o legislador criar leis, nem o juiz interpretar as que existem, de forma contrária a
um dispositivo programático da Constituição. Considerar que uma relação estável homoafetiva, amplamente caracterizada,
não pode ser juridicamente reconhecida, é o mesmo que dizer que não se está a promover o bem por óbvia discriminação
pela opção (rectius: determinismo) sexual de um ser humano. Que bem faz o legislador a um homossexual ao lhe vedar o
reconhecimento de um direito que a qualquer outra pessoa é garantido? Que bem faz o juiz ao interpretar de forma
discriminatória uma lei que se encontra frontalmente contrária a um princípio fundamental da República? Releia-se o
dispositivo acima referido. Poderia a lei vedar o reconhecimento de sociedade estável entre negros ou entre judeus, ou entre
idosos, ou entre paraplégicos?”.
34 TJ/RJ, Apelação Cível 2005.001.22849, Relator Desembargador Ferdinaldo Nascimento, v.u., julgado em 11.04.2006. A
ementa nada diz sobre a tese, razão pela qual se extrai do inteiro teor o seguinte trecho: “(...) não obstante respeitáveis os
posicionamentos em sentido contrário, entendo perfeitamente cabível o processamento e o reconhecimento de uma união
estável entre homossexuais. É certo que a Constituição Federal, consagrando princípios democráticos de direito, proíbe
qualquer espécie de discriminação, principalmente quanto a sexo, sendo incabível, pois, discriminação quanto à união
homossexual. Com efeito, a Carta Magna traz como princípio fundamental da República Federativa do Brasil a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.o, I) e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3.o, IV). Como direito e garantia fundamental, dispõe a
Constituição Federal que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5.o, caput). Conforme
ensinamento mais básico do Direito Constitucional, tais regras, por retratarem princípios, direitos e garantias fundamentais,
se sobrepõem a quaisquer outras, inclusive àquela esculpida no art. 226, § 3.o., CF/1988, que prevê o reconhecimento da
união estável entre o homem e a mulher” (...).Não é preciso esperar a aprovação no Congresso Nacional do Projeto de Lei
1.151/1995, que disciplina a ‘parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo’, para reconhecer-se a possibilidade de
reconhecimento de uma união estável entre homossexuais, porque, além dos dispositivos legais elencados, nossa
legislação permite que o juiz decida o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (art. 4.o
da LICC). O direito tem caminhado com segurança ao retratar o descabimento de preconceitos e discriminações” (sem
grifos no original).
35 O inteiro teor da petição inicial encontra-se disponível no site do Supremo Tribunal Federal (www.stf.gov.br), link
“processos”, no qual basta colocar o número “132”, selecionar a “ADPF 132” e, em seguida, o link “petição inicial” para que
se possa ter acesso ao arquivo em “.pdf”.
36 Em síntese, pela invocação dos preceitos fundamentais da igualdade, liberdade, dignidade e segurança jurídica, assim
como pela existência de decisões contraditórias a respeito do tema.
37 Aponto que não equiparo os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, entendendo que ambos possuem
conteúdos jurídicos distintos, conforme demonstrado no Capítulo 3, quando explicitado o princípio instrumental da
proporcionalidade.
38 No parecer “Diferentes mas iguais...”.
39 DJe de 06.10.2008.
40 DJe de 23.02.2010.
41 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. Tradução de Flávio
Paulo Meurer. Nova revisão da tradução por Enio Paulo Giachini. 7. ed. Petrópolis: Vozes/Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2005, p. 358.
42 A afirmação tem origem na lição de Gadamer, citada na nota anterior.
43 Voto do Ministro Ayres Britto, p. 29.
44 Voto do Ministro Fux, p. 23.
45 Voto da Ministra Cármen Lúcia, pp. 4-5, 6, 7, 8 e 9-10.
46 Voto do Ministro Lewandowski, p. 12.
47 Voto do Ministro Joaquim Barbosa, p. 4.
48 Em momento anterior, afirmou o Ministro Joaquim Barbosa: “Quanto à Constituição Federal, muitos poderão dizer que ela é
silente sobre a matéria. Porém, cumpre indagar o seguinte: o silêncio da Constituição deve ser interpretado como
indiferença, desprezo ou hostilidade? Quis mesmo o constituinte de 1988 manter em ostracismo, numa espécie de limbo
jurídico, juridicamente banidas, as escolhas afetivas feitas por um número apreciável de cidadãos, com as consequências
jurídicas e materiais daí decorrentes? Creio que não. E por acreditar que não foi esta a intenção do legislador constituinte,
eu entendo que cumpre a esta Corte buscar na rica pallette axiológica que informa todo o arcabouço constitucional criado
em 1988; verificar se o desprezo jurídico que se pretende dar a essas relações é compatível com a Constituição. Aí, sim,
estará a Corte a desempenhar uma das suas mais nobres missões: a de impedir o sufocamento, o desprezo, a
discriminação pura e dura de um grupo minoritário pelas maiorias estabelecidas. Nessa linha de pensamento, é imperioso
notar, de início, que não há, no texto constitucional, qualquer alusão ou mesmo proibição ao reconhecimento jurídico das
uniões homoafetivas. Mas não podemos esquecer, por outro lado, que a própria Constituição estabelece que o rol de
direitos fundamentais não se esgota naqueles expressamente por ela elencados. Isto é, outros direitos podem emergir a
partir do regime e dos princípios que ela própria, Constituição, adotou, ou dos tratados internacionais firmados pelo Brasil”
(voto do Ministro Joaquim Barbosa, pp. 2-3).
49 Voto do Ministro Gilmar Mendes, pp. 16, 30, 31, 44, 50-51, 52 e 53 – grifo nosso.
50 Voto do Ministro Marco Aurélio, pp. 13 e 14-15 – grifos nossos.
51 Voto do Ministro Celso de Mello, pp. 19-23 – grifos nossos.
52 Voto do Ministro Peluso, pp. 2-3.
53 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico, in: SILVA, Luís Virgílio Afonso da
(org.), Interpretação Constitucional, São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 122. Ressalto que parafraseei a lição do autor.
54 Aponte-se, contudo, que esta não é a conclusão do próprio Luís Virgílio Afonso da Silva. Isso porque o autor diz,
textualmente, que “É claro que se poderá argumentar que, quando se aceita uma hierarquia formal no seio da constituição,
necessário seria também aceitar a possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais. Não há, contudo, razão para
tanto. Como ficou claro acima, essa hierarquia a que me refiro somente tem consequências quando do processo de
mudança constitucional – o que só autorizaria um juízo de inconstitucionalidade de normas constitucionais supervenientes,
e não entre as normas da constituição ‘original’. Essa ressalva não impede, todavia, que se fale em hierarquia formal no
seio da constituição” (ibidem, p. 122-123). Data maxima venia, penso que o autor foi contraditório, pois, existente hierarquia
formalmente superior de uma norma em relação a outra, então a incompatibilidade entre elas enseja necessariamente a
invalidade desta, por hierarquicamente inferior àquela (formalmente falando). A posição de uma hierarquia de normas
constitucionais sobre outras sem consequência de invalidade (inconstitucionalidade) das hierarquicamente inferiores
afigura-se-me coerente apenas com a noção de hierarquia axiológica de Luís Roberto Barroso, também citada em nota de
rodapé. Dessa forma, adotada a posição aqui defendida, fica evidente o equívoco do Supremo Tribunal Federal no
julgamento da ADIn 815-3/DF, na medida em que as cláusulas pétreas são hierarquicamente superiores às demais
cláusulas constitucionais e, em razão disso, afigura-se possível juridicamente a declaração de invalidade
(inconstitucionalidade) das normas constitucionais hierarquicamente inferiores às cláusulas pétreas.
55 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do direito, 4.a Edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p.
53. Acrescento, apenas, que as regras são concretizações dos princípios quando ambas as normas estejam contidas em
um mesmo documento legislativo, visto que a declaração de inconstitucionalidade de uma regra legal por afronta a um
princípio constitucional comprova a existência de normas infralegais contraditórias às normas constitucionais, a elas
hierarquicamente superiores.
56 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19.a Edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p.
888-889 – grifos nossos.
57 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: inconstitucionalidade e garantia da Constituição, 2.a Edição, Coimbra:
Coimbra Editora, 2005, tomo VI, p. 18-19 (grifo nosso).
58 Ibidem, p. 17, onde consta: “Também nós perfilhamos uma ‘axiologia transpositiva que não está na disponibilidade do
positivo constitucional ou de que não é titular sem limites o poder constituinte’; e, por conseguinte, temos afirmado a
existência de um Direito natural, tal como, em cada época e em cada lugar, este se refrange na vida social”.
59 Ou seja: “(a) ambas as normas devem ser jurídicas; (...) (b) ambas sejam vigentes e pertencentes a um mesmo
ordenamento jurídico; (...) (c) ambas devem emanar de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo,
prescrevendo ordens ao mesmo sujeito; (...) (d) ambas devem ter operadores opostos (uma permite, outra obriga) e os
seus conteúdos (atos e omissões) devem ser a negação interna um do outro; (v) o sujeito, a quem se dirigem as normas
conflitantes, deve ficar numa posição insustentável, isto é, ensina-nos Tercio Sampaio Ferraz Jr., não deve ter meios para
se livrar dela, por faltarem critérios (...)” (DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas, 8.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva,
2008, p. 21-24).
60 Cf. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 1. Teoria Geral do Direito Civil, 24.a Edição, São Paulo: Editora
Saraiva, 2007, p. 85, 89, 92-95. Em outra obra, afirma a autora: “A lógica do razoável ajusta-se à solução das antinomias,
ante o disposto no art. 5.o da nossa Lei de Introdução ao Código Civil [atualmente denominada ‘Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro’], que prescreve que, na aplicação da lei, deverá atender-se aos fins sociais a que se dirige e às
exigências do bem comum. O órgão judicante deverá verificar os resultados práticos que a aplicação da norma produziria
em determinado caso concreto, pois somente se esses resultados concordarem com os fins e valores que inspiram a
norma, em que se funda, é que ela deverá ser aplicada. Assim, se produzir efeitos contraditórios às valorações e fins
conforme os quais se modela a ordem jurídica, a norma, então, não deverá ser aplicada àquele caso. De modo que entre
duas normas plenamente justificáveis deve-se opinar pela que permitir a aplicação do direito com sabedoria, justiça,
prudência, eficiência e coerência com seus princípios. Na aplicação do direito deve haver flexibilidade do entendimento
razoável do preceito e não a uniformidade lógica do raciocínio matemático. O art. 5.o da Lei de Introdução ao Código Civil,
por fornecer critérios hermenêuticos assinalando o modo de aplicação e entendimento das normas, estendendo-se a toda a
ordenação jurídica, permite corrigir o conflito que se apresenta nas normas, adaptando a que for mais razoável à solução do
caso concreto, constituindo uma válvula de segurança que possibilita aliviar a antinomia e a revolta dos fatos contra as
normas” (DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas, 8.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 57-58).
61 DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas, 8.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 56 e ss.
62 A dúvida surge pelo fato de a autora dizer que é a ideologia, a experiência ideológica do momento atual que deve reger o
magistrado na compreensão dos fatos e valores sob análise no momento de optar pela que for mais favorável (DINIZ, Maria
Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 1. Teoria Geral do Direito Civil, 24.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p.
94). Não poderei concordar com tal afirmação se com isto a autora quis dizer que é o entendimento acriticamente
majoritário que deve prevalecer (diz-se acriticamente para o caso do entendimento ideológico ser adotado apenas por ser
majoritário) – pois o termo ideologia pode ser entendido como “sistema de ideias (crenças, tradições, princípios e mitos)
interdependentes, sustentadas por um grupo social de qualquer natureza ou dimensão, as quais refletem, racionalizam e
defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos
(...); conjunto de convicções filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos” (Dicionário Houaiss
da língua portuguesa, 2.a reimpressão com alterações, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2007, p. 1565 – sem grifos no
original). Afinal, o que deve ser levado em conta na interpretação do Direito (e, portanto, na resolução de antinomias reais)
são apenas os fins e valores que inspiraram o texto normativo sob análise, não a ideologia dominante, tendo em vista que
esta, por vezes, é arbitrária e age por motivos puramente preconceituosos na interpretação dos fatos e atos da vida.
Somente um entendimento lógico-racional, inerente à razoabilidade, deve pautar a interpretação jurídica, mesmo que
contrariamente ao entendimento majoritário. Mesmo porque é de todo descabido pretender investigar a vontade do
legislador, pois o texto normativo ganha autonomia do legislador assim que aprovado, independendo sua interpretação da
vontade subjetiva daquele, sendo a interpretação dependente apenas da finalidade do texto normativo, dos valores que
pretendeu proteger (para um aprofundamento nesta crítica, vide o capítulo 11, item 6.2. Irrelevância da vontade subjetiva do
legislador. Prevalência da ratio legis sobre a mens legislatoris).
63 Que são princípios naturalmente superiores às regras, nos termos já expostos.
64 Note-se, contudo, que isso ocorre apenas no conflito entre ditos princípios fundamentais e regras. Na hipótese de
colidência com outros direitos fundamentais, estar-se-á diante de um conflito entre normas-princípio de mesma hierarquia,
o que só é solucionável pela aplicação do princípio instrumental da proporcionalidade, por meio de seu subprincípio da
proporcionalidade em sentido estrito (ponderação).
65 Consignado, sempre, o entendimento deste autor contrariamente à existência de “proibições implícitas” em Direito, por
força do art. 5.o, II, da CF/1988.
66 Nesse sentido, afigura-se ilógica a posição do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn 815-3/DF, quando disse
que as cláusulas pétreas não seriam hierarquicamente superiores às demais disposições constitucionais visto que
implicariam meramente a proibição de sua abolição pelo Constituinte Derivado. Ora, as cláusulas pétreas foram alçadas a
núcleo intangível da Constituição justamente por serem mais relevantes que as cláusulas assim não consideradas, visto
que constituem (as cláusulas pétreas) o núcleo essencial, intangível, logo hierarquicamente superior da Constituição,
aspecto este não considerado por aquela decisão (não considerado porque não refutado). Assim, errou o Supremo Tribunal
Federal neste ponto.
67 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: O Preconceito & a Justiça, 3.a Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2006, p. 79-83 – parafraseei. É de se notar, contudo, que a tese primária de Berenice consiste na aplicação da analogia, de
forma a evitar a antinomia real por ela enfrentada, conforme inclusive citação de sua obra constante de item anterior deste
trabalho.
Capítulo 8

UNIÕES HOMOAFETIVAS E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA:


CASAMENTO CIVIL E UNIÃO ESTÁVEL

“Com efeito, é por meio da dignidade da pessoa humana, alicerce concreto do direito
fundamental à liberdade, neste incluso o direito subjetivo à liberdade de orientação sexual,
que a nova concepção de família será gerada.” –
Luiz Edson Fachin1 (Professor Titular de Direito
Civil da Universidade Federal do Paraná).

1. DA DIGNIDADE HUMANA E AS UNIÕES HOMOAFETIVAS. AFRONTA À DIGNIDADE


HUMANA DE HOMOSSEXUAIS PELO NÃO RECONHECIMENTO DO CASAMENTO
CIVIL HOMOAFETIVO E DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. STF, ADPF 132 E ADI
4.277
Já foi exposto que o princípio da dignidade humana garante a todos o direito à felicidade, sempre de
acordo com suas opções e características (ressalte-se, novamente, que a sexualidade não constitui
escolha, mas mera característica humana). Sob esse prisma, percebe-se que todas as pessoas humanas
devem ter exatamente os mesmos direitos, só se admitindo discriminações jurídicas quando pautadas por
uma motivação lógico-racional que lhes justifique, como sucedâneo do princípio da igualdade, que
configura a única forma válida de se relativizar a dignidade de uns em relação à de outros.
Por outro lado, ao não se admitir a realização do casamento civil e ao não se reconhecer a união
estável entre pessoas do mesmo sexo, está quem o faz a afirmar que a união homoafetiva não possuiria o
mesmo valor de dignidade que a união heteroafetiva. Afinal, é inegável que o casamento civil sempre foi
colocado ao longo dos séculos como a consagração máxima da união amorosa entre duas pessoas, no
sentido de dar uma condição de legitimidade a essa união afetiva, tanto que o Código Civil de 1916 só
considerava como legítima a família consagrada pelo casamento civil, assim como legítimos somente
eram os filhos que fossem oriundos do casal que tivesse contraído o matrimônio entre si. Há um
verdadeiro arquétipo social construído em torno da consagração da união amorosa pelo casamento civil,
pois desde pequenos ouvimos direta e subliminarmente que só seremos felizes quando nos casarmos com
a pessoa que amamos.
Assim, quando o ordenamento jurídico proíbe uma união amorosa ou, mesmo que não a proíba, não
lhe garante os mesmos direitos conferidos a outra2, está a dizer que essa união proibida/tolhida de
direitos não é tão digna quanto a outra ou, em outras palavras, que se encontra em inferior condição de
dignidade que aquela à qual se garantem uma série de direitos a ela vedados.
No caso das uniões homoafetivas, em se aderindo à tese da “proibição implícita” do casamento civil
e da união estável a casais homoafetivos, estar-se-á vedando a eles, de maneira implícita, os direitos e a
dignidade conferidos às uniões heteroafetivas pela não extensão dos benefícios do Direito das Famílias.
Agora, cabe indagar: qual motivo justifica tal discriminação? E, principalmente: é este motivo uma
decorrência lógico-racional do critério desigualador erigido?
Como o leitor pode perceber, a questão volta ao aspecto material da isonomia, que é o único critério
válido que pode ser usado para se relativizar a dignidade de uns em relação à de outros, tendo em vista
que a arbitrariedade de tratamento não é só vedada pela isonomia, mas também pela dignidade da pessoa
humana. Afinal, não há como se cogitar de uma vida digna quando a pessoa é discriminada negativamente
de forma arbitrária (preconceituosa)3.
Portanto, o que deve ser considerado no presente caso é que as uniões homoafetivas são formadas
pelo mesmo valor existente nas uniões heteroafetivas, que é o amor romântico que vise a uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, amor este que é o elemento
formador da família conjugal contemporânea. Assim, a partir do momento em que as uniões amorosas
formadas por pessoas do mesmo sexo têm em si o valor protegido pelas leis do casamento civil e da
união estável, nota-se que são elas dignas de proteção por ditas leis, da mesma forma que as uniões
amorosas formadas por pessoas de sexos diversos4.
Já foi utilizada toda essa fundamentação quando colocado o problema sob o prisma do princípio da
igualdade. Todavia, dita questão se repete quando analisada sob a ótica da dignidade da pessoa humana,
uma vez que: (a) todas as pessoas humanas são igualmente dignas, não por quaisquer atitudes ou
características suas, mas pelo simples fato de serem pessoas humanas; e (a.1) em se tratando de
relativização da dignidade humana de uns quando em confronto com a de outros, tem-se que essa
relativização somente pode ser aceitável quando utilizado o critério estabelecido pelo preceito
isonômico, ou seja, pela existência de um motivo lógico-racional entre o critério desigualador erigido e a
discriminação efetivamente pretendida, o que não ocorre no caso de discriminação negativa das uniões
homoafetivas em relação às heteroafetivas, para que não se caia em arbitrariedade/despotismo daquele
que decide por esta.
Analisem-se agora os dois pontos que se acabou de expor. Em primeiro lugar, a pessoa humana é
considerada merecedora de uma dignidade especial com relação aos demais seres vivos, pelas
qualidades que a diferenciam deles. Ou seja, é merecedora de proteção especial de sua dignidade pelo
simples fato de ser uma pessoa humana. Nesse sentido, tem-se que tanto homossexuais como
heterossexuais são pessoas humanas dotadas das mesmas capacidades potenciais, razão pela qual
merecem que lhes seja garantido o mesmo direito ao respeito de sua dignidade. Outrossim, a isonomia é,
em verdade, uma exteriorização da proteção que se confere à dignidade humana, ainda que esta última
possua um núcleo de dignidade distinto daquele existente nos demais direitos fundamentais (assim como
todos os direitos alçados à condição de fundamentais).
Dessa forma, uma afronta à isonomia configura, simultaneamente, uma afronta à dignidade da pessoa
humana – não por terem elas o mesmo núcleo essencial a ser protegido, mas pelo fato de ser a isonomia
uma exteriorização da dignidade humana, uma vez que seu núcleo essencial é o de garantir que todos
sejam tratados igualmente, a menos que haja pelo menos um motivo logicamente racional que justifique o
tratamento diferenciado com base no critério diferenciador erigido, ao passo que a dignidade humana tem
como núcleo essencial garantir que todos tenham sua dignidade integralmente respeitada, o que, conforme
se percebe, é algo muito mais amplo que o defendido pela isonomia e todos os demais direitos
fundamentais5.
Assim, a colocação das uniões homoafetivas em condição de inferior dignidade em relação às uniões
heteroafetivas configura afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, daí a sua
inconstitucionalidade6.
Veja-se, a esse respeito, a posição da Suprema Corte do Estado de Ontário (Canadá)7, ao declarar
a inconstitucionalidade do não reconhecimento do casamento civil homoafetivo:

(199) Argumenta-se que pela exclusão de pessoas gays e lésbicas do casamento há uma
negativa da sua oportunidade de participação igualitária em nossa sociedade. Ou seja, sustenta-se
que há um direito fundamental ao casamento reconhecido na jurisprudência canadense,
estadunidense e internacional. Eu aceito totalmente esse argumento e concordo que:
... a decisão de se casar ou não se casar pode, realmente, ser uma das decisões mais
pessoais que um indivíduo tomará no curso de sua vida. Ela pode ser tão fundamental quanto
importante e pessoal como uma escolha referente, por exemplo, à cidadania ou mesmo à religião.
[Miron v. Trudel, 1995, CanLII 97 (S.C.C.) (...)]
(200) O primeiro fator contextual que eu preciso considerar através dessa análise é a decisão
sobre a existência na sociedade canadense de uma ‘desvantagem, vulnerabilidade, estereotipização
ou preconceito preexistente’ experimentada por pessoas gays e lésbicas. Na minha opinião, essa
questão tem poucos argumentos contrários, ou mesmo nenhum – ela seguramente existe.
(201) Nossas cortes têm frequentemente reconhecido que os relacionamentos formados por
pessoas do mesmo sexo não têm recebido a mesma preocupação, o mesmo respeito e a mesma
consideração. Eu concordo com a visão segundo a qual ‘a negativa de casamento igualitário
pode – e sem dúvida o faz – refletir e reforçar os existentes entendimentos incorretos sobre o
mérito, as capacidades e o valor dos relacionamentos entre lésbicas e gays na sociedade
canadense. Ademais, eu concordo que, dada a sua ocorrência, ela deve ter um efeito que resulta
em maior estigmatização’.
(202) A exclusão de gays e lésbicas do casamento desconsidera as necessidades,
capacidades e circunstâncias de companheiros(as) do mesmo sexo e de seus filhos. Ela declara
toda uma classe de pessoas como não merecedoras de reconhecimento e apoio da sanção estatal
aos seus casamentos. Em suma, o casamento – como atualmente definido – falha na
harmonização ou na consideração das questões de gays e lésbicas. (grifos nossos)

Por outro lado, a dignidade humana de homossexuais também resta afrontada pelo não
reconhecimento de seu status jurídico-familiar, uma vez que isto é uma forma de instrumentalizar as
pessoas para se atingir a finalidade pretendida pelo Estado8, a saber: o projeto de vida por ele tido como
correto (heteroafetivo), em clara afronta à liberdade, à autonomia moral de homossexuais conduzirem sua
vida da forma que lhes faça mais sentido (mesmo porque não podem simplesmente “se transformar” em
heterossexuais). Isso ocorre porque a não concessão da isonomia às relações homoafetivas visa a
demonstrar que o Estado somente valoriza as uniões heteroafetivas, razão pela qual a isonomia e igual
dignidade do reconhecimento são medidas de rigor para se evitar afronta ao princípio da dignidade da
pessoa humana neste caso.
É a posição defendida na petição inicial da ADPF 132 e da ADI 4.277, que afirmaram
(parafraseando aqui a primeira) que afrontada a dignidade humana de homossexuais pelo não
reconhecimento da união estável homoafetiva sob o fundamento de que ninguém pode ser tratado como
meio, devendo cada indivíduo ser tratado como um fim em si mesmo, ao mesmo tempo em que todos os
projetos pessoais e coletivos de vida, quando razoáveis, são dignos de igual respeito e consideração e,
portanto, merecedores de igual reconhecimento, ao passo que o não reconhecimento das uniões
homoafetivas viola esses dois núcleos da dignidade humana porque (iii.1) tal exclusão funcionaliza as
relações afetivas a um projeto determinado de sociedade que, embora majoritário, não é juridicamente
obrigatório, tratando o indivíduo como um meio para a realização desse projeto, só sendo reconhecido
aquele que se molda ao papel designado pela tradição, no caso o papel de membro de família
heteroafetiva destinada à procriação; e (iii.2) a discriminação das uniões homoafetivas equivale a não
atribuir igual respeito a uma identidade individual (homoafetiva) ao afirmar que esse determinado estilo
de vida não mereceria ser tratado com a mesma dignidade e consideração dos demais, porque o não
reconhecimento se converte em desconforto, levando muitos indivíduos a negarem sua própria identidade
à custa de grande sofrimento pessoal, distinção esta que perpetua a dramática exclusão e estigmatização
que homossexuais têm sofrido ao longo da história, caracterizando verdadeira política oficial de
discriminação
É essa também a posição de Daniel Sarmento9, para quem “subjacente à negação ao reconhecimento
jurídico da união entre pessoas do mesmo sexo, seja sob a forma do casamento, seja a da união estável,
existe o mal-disfarçado propósito de subordinar as escolhas existenciais do indivíduo, no que tange
aos seus relacionamentos afetivos mais duradouros e profundos, a um determinado modelo tradicional
de sociedade e de família. Trata-se a pessoa humana como um meio para a garantia de fins que ela
não partilha, nem pode ser obrigada a compartilhar: a manutenção de valores sociais tradicionais e o
engessamento de uma sociedade estruturada sobre famílias heterossexuais, dedicadas basicamente à
reprodução e à criação da prole”. Ademais, aponta o autor que, em razão da negativa de direitos
relativos a condições básicas de existência oriunda do não reconhecimento do tatus jurídico-familiar das
uniões homoafetivas (como pensão alimentícia, previdenciária etc.), tem-se que constatar que “privar os
membros de uniões afetivas destes e de outros direitos, atenta contra a sua dignidade, expondo​-os a
situações de risco social injustificado, em que pode haver comprometimento às suas condições materiais
mínimas de subsistência”, além do que este não reconhecimento estatal das uniões homoafetivas tem “um
significado muito claro: simboliza a posição do Estado de que a afetividade dos homossexuais não tem
valor e não merece respeito social”, o que é inadmissível porque “a desvalorização social das
características típicas e do modo de vida dos integrantes de determinados grupos, como os homossexuais,
tende a gerar nos seus membros conflitos psíquicos sérios, infligindo dor, angústia e crise na sua própria
identidade”, sendo isso inaceitável porque “ao negar reconhecimento à união entre pessoas do mesmo
sexo, o Estado atenta profundamente contra a identidade dos homossexuais, alimentando e legitimando
uma cultura homofóbica de sociedade”, pois “De fato, o que caracteriza o homossexual é exatamente o
fato de que a sua afetividade e sexualidade são dirigidas às pessoas do mesmo sexo. Assim, rejeitar o
valor das relações amorosas entre iguais é o mesmo que desprezar um traço essencial da sua
personalidade”.
Perfeitas as palavras do autor. Conforme mencionado, negar o reconhecimento do status jurídico-
familiar das uniões homoafetivas implica pura e simplesmente na afirmação estatal de que as pessoas
deveriam adotar o projeto de vida heteroafetivo, por ele referendado, para que obtenham pleno
reconhecimento estatal, o que acaba por instrumentalizar a pessoa humana para que se consiga atingir
uma finalidade, a saber, a prevalência do modelo familiar heteroafetivo. Isso é inaceitável em um Estado
Democrático e Social de Direito pautado pelo pluralismo social por significar um profundo desrespeito
àquelas pessoas que não são heterossexuais e, portanto, não têm como formar vínculos familiares
heteroafetivos sem um profundo sofrimento subjetivo de sua parte, visto que um homossexual não sente
atração erótico-afetiva por pessoas de sexo oposto e, portanto, não deseja se relacionar de forma
conjugal com uma pessoa do outro sexo, mas apenas com uma pessoa do mesmo sexo. Somente o medo
do preconceito social faz com que homossexuais mantenham uma relação conjugal com uma pessoa de
sexo diverso, mesmo sem sentirem um desejo romântico genuíno por tal pessoa, o que demonstra a
absoluta arbitrariedade de quem deseja que homossexuais se relacionem de forma conjugal com pessoas
de sexo diverso. Por outro lado, é inaceitável a preferência estatal pelo modelo familiar heteroafetivo
pela profunda arbitrariedade de tal posição, que implicaria o estabelecimento de preferência entre os
brasileiros heterossexuais relativamente aos brasileiros homossexuais pela preferência atribuída à
família conjugal heteroafetiva sobre a família conjugal homoafetiva, o que viola o art. 19, inc. III, da
CF/1988.
Nesse sentido, o voto do Ministro Marco Aurélio neste histórico julgamento, o qual, após afirmar a
vedação de instrumentalizações (aspecto negativo) e a proteção da busca da realização do projeto de
vida (aspecto positivo) como integrantes do princípio da dignidade da pessoa humana10, afirmou o
seguinte: “Extraio do núcleo do princípio da dignidade da pessoa humana a obrigação de reconhecimento
das uniões homoafetivas. Inexiste vedação constitucional à aplicação do regime da união estável a essas
uniões, não se podendo vislumbrar silêncio eloquente em virtude da redação do § 3.º do artigo 226. Há,
isso sim, a obrigação constitucional de não discriminação e de respeito à dignidade humana, às
diferenças, à liberdade de orientação sexual, o que impõe o tratamento equânime entre homossexuais e
heterossexuais. Nesse contexto, a literalidade do artigo 1.723 do Código Civil está muito aquém do que
consagrado pela Carta de 1988. Não retrata fielmente o propósito constitucional de reconhecer direitos a
grupos minoritários. Por isso, Senhor Presidente, julgo procedente o pedido formulado para conferir
interpretação conforme à Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil, veiculado pela Lei 10.406/2002,
a fim de declarar a aplicabilidade do regime da união estável às uniões entre pessoas de sexo igual”.
Valem, ainda, as palavras do Ministro Celso de Mello no referido julgamento relativamente ao
direito fundamental implícito à busca da felicidade, implícito à dignidade da pessoa humana, diante da
compreensão de que o governo de uma sociedade racional existe para proteger o direito da pessoa de ir
em busca da felicidade ou bem-estar11, no sentido de que, “o postulado constitucional da busca da
felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o princípio da dignidade da pessoa
humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos
fundamentais, qualificando-se em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de
práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar
direitos e franquias individuais”, em que parece “irrecusável, desse modo, considerado o objetivo
fundamental da República de ‘promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação’ (CF, art. 3.º, IV), que o reconhecimento do direito à
busca da felicidade, enquanto ideia​-força que emana, diretamente, do postulado constitucional da
dignidade da pessoa humana, autoriza, presente o contexto em exame, o rompimento dos obstáculos que
impedem a pretendida qualificação da união civil homossexual como entidade familiar” (considerando
especialmente a ausência de limites semânticos no texto do art. 226, § 3.º, da CF/1988 que impedissem
tal exegese inclusive, consoante demonstrado pelo Ministro em momento anterior de seu voto).
Cite-se, ainda, a precisa lição de Luís Roberto Barroso12 acerca do tema:

A análise do casamento entre pessoas do mesmo sexo à luz da ideia de dignidade humana
apresentada neste artigo é muito menos complexa do que uma tal análise relativamente ao aborto.
Realmente, no nível do valor intrínseco, há um direito fundamental em favor da legalização do
casamento entre pessoas do mesmo sexo: a igualdade perante a lei. Negar aos casais do mesmo
sexo o acesso ao casamento – e a todas as consequências sociais e legais dele decorrentes –
representa uma forma de discriminação por orientação sexual. Não há nenhum argumento relativo ao
valor intrínseco [do ser humano] que poderia ser razoavelmente empregado para se contrapor ao
direito dos homossexuais à igual proteção e respeito. Quanto à autonomia, o casamento entre
pessoas do mesmo sexo envolve dois adultos em consenso que escolhem, sem coerção ou
manipulação, como exercitar o seu afeto e sexualidade. Não há violação à autonomia de nenhuma
outra pessoa nem prejuízo a quem quer que seja que pudesse justificar uma proibição. Finalmente,
no nível do valor comunitário, não se pode deixar de reconhecer que números segmentos da
sociedade civil, e particularmente grupos religiosos, desaprovam o comportamento homossexual e o
casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas negar o direito de casais gays de se casarem seria
uma restrição não autorizada à sua autonomia em prol de um impróprio moralismo ou da tirania da
maioria. Primeiramente, há um direito fundamental envolvido, seja o direito à igualdade ou à
privacidade (liberdade de escolha). Se esse não fosse o caso, o fato inegável é que não há nenhum
prejuízo a terceiros ou a quem quer que seja em questão aqui. E finalmente, não se pode mais
encontrar um forte nível de consenso social contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo em um
mundo aonde, pelos menos na maioria das sociedades ocidentais, a homossexualidade é largamente
aceita. Claro, qualquer pessoa tem o direito de advogar contra o casamento entre pessoas do mesmo
sexo e tentar convencer as pessoas a se absterem de dele participar. Mas isso é diferente de pedir ao
Estado a que não reconheça um legítimo exercício de autonomia pessoal por cidadãos livres e
iguais.

Assim, é evidente que a negativa do casamento civil homoafetivo (assim como da união estável
homoafetiva) implica na colocação das uniões amorosas formadas por pessoas do mesmo sexo em uma
posição de menor dignidade do que aquela conferida às uniões amorosas formadas por pessoas de sexos
diversos por motivos arbitrários, irracionais, razão pela qual dita desconsideração da dignidade
homoafetiva é inconstitucional por afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana
constitucionalmente consagrado.

2. DA IMPORTÂNCIA DO TERMO “CASAMENTO”


Demonstrada, em capítulo anterior, a absoluta necessidade de se estender o casamento civil às
uniões homoafetivas em virtude de ser ele o único regime jurídico que confere às uniões amorosas a
totalidade da proteção do Direito das Famílias, fundamentação relativa à isonomia, passo agora a
demonstrar a necessidade de dito termo para fins da proteção da dignidade humana dos casais
homoafetivos.
Como já mencionado, os opositores do casamento civil homoafetivo reivindicam uma suposta
“exclusividade” deste termo para as uniões heteroafetivas, por entenderem que, historicamente, se tem
entendido ele como exclusivo das uniões entre pessoas de sexos diversos. No máximo, chegam a afirmar
que devem elas ser regulamentadas de forma diversa pelo Legislativo, deixando-se o “casamento” apenas
para os casais heteroafetivos. Contudo, essas colocações são inaceitáveis.
Em primeiro lugar, cumpre relembrar que tais afirmações são completamente arbitrárias.
Aparentemente, seus defensores pregam que o simples fato de se ter agido de forma preconceituosa por
milênios justificaria a continuidade de dita discriminação, o que obviamente não pode ser aceito como
válido. Afinal, após a institucionalização da homofobia pela Igreja Católica, as pessoas passaram a ter a
errônea compreensão de que a homossexualidade consistiria em um “pecado” ou, posteriormente, em uma
“doença”, razão pela qual as uniões homoafetivas não receberam a mesma dignidade conferida às uniões
heteroafetivas.
Todavia, esse entendimento encontra-se superado, tendo a ciência médica demonstrado que a
homossexualidade não constitui doença, desvio psicológico, perversão nem nada do gênero, sendo assim
uma das livres manifestações da sexualidade humana ao lado da heterossexualidade, além do fato de
vivermos em um Estado Laico, no qual fundamentações religiosas não podem justificar discriminações
jurídicas e/ou políticas. Assim, fica claro que o fundamento que supostamente justificava a segregação
dos casais homoafetivos no passado não existe mais, razão pela qual o simples fato de “sempre ter sido
assim” não pode servir de justificação válida para a continuidade desta discriminação.
Atualmente, não se questiona seriamente o fato de que as uniões homoafetivas são baseadas no
mesmo amor existente nas uniões heteroafetivas, a saber: o amor romântico que vise a uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da
família conjugal contemporânea (amor familiar). Isso, per si, justifica a concessão dos mesmos direitos
e, especialmente, da mesma dignidade conferida às uniões heteroafetivas.
Ademais, é de se notar que o casamento civil é tido pela sociedade como a consagração máxima
de uma união amorosa, praticamente como um selo de qualidade e de respeitabilidade da referida união.
Desde crianças ouvimos que só seremos felizes se encontrarmos nossa “alma gêmea”, nos casarmos e
tivermos filhos (próprios ou adotivos). Esse é o ideal de família existente em nossa sociedade, sendo que
somos estimulados a atingi-lo desde nossa infância.
Pois bem, homossexuais também desejam essa família ideal, tendo em vista terem crescido ouvindo
esse mesmo ideal de família. Há um verdadeiro arquétipo social voltado para o casamento civil, razão
pela qual a sua negativa aos casais homoafetivos implica em afronta à dignidade humana deles. A única
diferença é que querem essa família ideal com um companheiro do mesmo sexo.

Como discutido ao longo deste livro, há o sempre importante uso geral [currency] da palavra
casamento. Quando se trata do entendimento das pessoas sobre o que significa estar em um casal –
apaixonado, comprometido e responsável um pelo outro – as palavras união civil simplesmente
não podem ser comparadas, mesmo se eles de alguma forma englobarem todos os direitos
tangíveis e sistêmicos e as responsabilidade conferidas pelo casamento. Como dito por Beth
Robinson, que sustentou o caso de Vermont perante a suprema corte estadual, “ninguém escreve
músicas sobre” uniões civis. Enquanto todo mundo sabe o que você quer dizer quando fala “Nós nos
casamos”, a união civil não tem sequer um verbo. Willian Safire, que se descreve como um
conservador liberal, fez um bom trabalho ao descrever essa distinção na sua coluna no [jornal] New
York Times: “O conservador em mim imagina: se direitos iguais podem ser garantidos por uma união
civil, porque estão alguns gays pressionando tanto pela palavra ‘casamento?’”, escreveu em
dezembro de 2003. “A resposta é que a antiga palavra traz uma poderosa mensagem. A união civil
denota tolerância à homossexualidade, com o seu reconhecimento dos direitos civis de um
indivíduo; mas o casamento denota a total aprovação social à homossexualidade, com a reversão
de prévios julgamentos morais”.13

Veja-se, nesse sentido, a colocação feita pela Suprema Corte do Estado de Massachussets (EUA)14,
quando julgou inconstitucional o não reconhecimento do casamento civil homoafetivo:

Sem o direito ao casamento – ou mais adequadamente, o direito à escolha de com quem se


casar – a pessoa é excluída de uma totalidade de experiências humanas e negada a total proteção
das leis para o ‘declarado comprometimento a uma relação humana íntima e duradoura’. Baker
v. State (...). ‘Nossas leis assiduamente protegem o direito individual ao casamento contra a
indevida incursão governamental porque o casamento civil é central nas vidas dos indivíduos e ao
bem-estar da comunidade’. Zablocki v. Redhall (...) Perez v. Sharp (...) (‘Não pode haver
proibição ao casamento a não ser por um importante objetivo social e por meios razoáveis’).

Outrossim, são esclarecedoras as colocações da Suprema Corte de Ontário (Canadá)15, também ao


julgar inconstitucional o não reconhecimento do casamento civil homoafetivo:

(206) O último fator contextual a ser analisado foca-se no exame da natureza e da finalidade do
interesse afetado pela lei impugnada. Isto é, quão duramente a lei do casamento afeta gays e
lésbicas pela exclusão destes de seu regime jurídico? Essa análise inclui um exame da natureza
fundamental e do alcance da finalidade do casamento, em contrapartida ao impacto discriminatório
da negativa de casamento igualitário aos Requerentes. Como notado no caso Law:
O calibre discriminatório do tratamento diferencial não pode ser totalmente apreciado sem
a avaliação não apenas do significado econômico, mas também do significado constitucional e
social atribuído ao interesse ou aos interesses afetados de forma adversa pela legislação em
questão. Ademais, é relevante considerar se a distinção restringe o acesso a uma instituição
social fundamental, ou afeta “um aspecto básico da total participação da sociedade canadense”,
ou “constitui um completo não reconhecimento de um grupo em particular” [Law (...); Egan (...)].
(207) Como apontado previamente, parece ser universalmente aceito que a liberdade de se
casar com aquele a quem se escolhe e o direito de ter aquele relacionamento reconhecido pela
sociedade é de fundamental importância na nossa sociedade. Como comparação, no caso M. v. H.,
o Juiz Cory reconheceu tanto os aspectos tangíveis quanto o impacto simbólico da negativa de
acesso às proteções do sistema de auxílio esponsal:
O significado social do benefício conferido pela legislação não pode ser demasiadamente
enfatizado. “A exclusão dos parceiros do mesmo sexo dos benefícios da legislação do casamento
civil promove a visão que M., e indivíduos em relacionamentos formados por pessoas do mesmo
sexo em geral, seriam menos merecedoras de reconhecimento e proteção. Isso implica que eles
são julgados como incapazes na formação de relações íntimas de interdependência econômica
quando comparadas a casais formados por pessoas de sexos diversos, sem considerar as suas
efetivas circunstâncias”. Como o interveniente EGALE apontou, dita exclusão perpetua as
desvantagens sofridas pelos indivíduos nos relacionamentos formados por pessoas do mesmo sexo e
contribui para a erradicação da sua existência. (...)
(208) Eu imagino que poucos poderiam, ou iriam, discordar da noção de que o acesso
igualitário ao casamento é pelo menos equiparável com apoio esponsal, e talvez ainda mais
fundamental e importante do que ele [obs.: trata-se de outra legislação que disciplina uniões
amorosas não matrimonializadas]. Há benefícios distintos e profundos no casamento, direitos e
obrigações entre alguns outros expedientes. Tais métodos alternativos simplesmente não têm o
mesmo sentido ou significado como o acesso a eles pelo direito de entrada em uma basilar
instituição social e cultural.
(209) A título ilustrativo, a Juíza L’Heureux-Dubé, em sua opinião divergente no caso Egan,
entendeu que os postulantes do mesmo sexo daquele caso não sofreram preconceito econômico na
sua distinção em relação à legislação da Seguridade da Terceira Idade. Contudo, ela entendeu que,
por causa da exclusão dos postulantes “como um casal” daqueles em relacionamentos “análogos
ao casamento” – isso implicava em um interesse merecedor da proteção da Carta de Direitos. Ela
expressou dito interesse como sendo:
… “uma faceta importante de total e igual admissão na sociedade canadense. Dada a posição
marginal de homossexuais na sociedade, a mensagem que flui quase inevitavelmente da exclusão
dos casais formados por pessoas do mesmo sexo desta importante instituição social é
essencialmente que a sociedade considera tais relacionamentos como menos merecedores de
respeito, preocupação e consideração do que os relacionamentos envolvendo membros de sexos
opostos.” Esse interesse fundamental é consequentemente afetado de forma severa e palpável pela
impugnada distinção.
(210) Se a conclusão da Juíza L’Heureux-Dubé no caso Egan é válida nas circunstâncias
daquele caso – e eu concordo que seja – então deve ser mais do que igualmente correto para a
instituição social do casamento. Eu consequentemente entendo que a negativa do casamento
igualitário viola a seção 15 da Carta de Direitos. Especificamente, eu entendo que ela implica uma
distinção substantiva que nega o igual benefício da lei, com base em sexo e orientação sexual, de
uma maneira que ofende a dignidade de gays, lésbicas e bissexuais.

O que faz com que haja oposição à extensão da palavra casamento para casais homoafetivos decorre
da noção de que casais homoafetivos seriam inferiores/menos dignos do que os casais heteroafetivos, o
que denota uma descabida noção de superioridade de heterossexuais sobre homossexuais, por força do
heterossexismo social. Ou seja, relegar as uniões homoafetivas a uniões civis configura puro e simples
racismo (entendido como toda ideologia segregacionista que pregue a superioridade/inferioridade de um
grupo relativamente a outro, entendimento este esposado também por Guilherme de Souza Nucci16, com
base em precedente do Supremo Tribunal Federal (STF, HC 82.424/RS). É o que pensa a jurista
estadunidense Barbara J. Cox17, para quem:

O heterossexismo inerente a relegar os casais do mesmo sexo apenas às uniões civis é uma
reminiscência do racismo que relegou os afro-americanos em vagões de trens separados e em
escolas separadas, e do sexismo que relegou mulheres a escolas separadas. Nossas experiências
sociais com o “separados, mas iguais” têm repetidamente mostrado que dita separação nunca pode
resultar em igualdade porque a separação é pautada na crença da distância necessária a ser mantida
entre aqueles que ocupam a posição privilegiada e aqueles colocados na posição inferior.

Sobre o tema do chamado casamento inter-racial, a Suprema Corte dos EUA declarou a
inconstitucionalidade das leis que o proibiam no julgamento do caso Loving v. Virginia, por reconhecer
que tal restrição se pautava na premissa da superioridade da “raça” branca sobre as demais “raças” da
humanidade, o que ficou evidente porque o que se vedava era o casamento de pessoas da “raça” branca
com pessoas de outras “raças”, mas não destas entre si. Logo, temos aqui uma analogia perfeita, pois da
mesma forma que a proibição do chamado casamento inter-racial se pautava na premissa da
superioridade de brancos relativamente às pessoas de outras “raças”, relegar as uniões homoafetivas a
uniões civis e não lhes permitir o acesso ao casamento civil decorre unicamente da noção de que as
uniões heteroafetivas seriam superiores e, portanto, detentoras de maior dignidade quando comparadas às
uniões homoafetivas, em um raciocínio racista totalmente incompatível com a dignidade da pessoa
humana constitucionalmente consagrada.
Dessa forma, resta evidente que a dignidade dos casais homoafetivos é afrontada quando não se
permite que eles se casem civilmente, em virtude da importância cultural do casamento (civil), visto que
nossa sociedade entende-o como legitimador das uniões amorosas, razão pela qual é inconstitucional a
sua proibição por afronta à dignidade humana dos pares homoafetivos.

2.1 Do casamento civil como um direito fundamental implícito


Ante as considerações dos tópicos anteriores, no sentido da especial dignidade conferida ao
casamento civil em relação às demais espécies de uniões amorosas, verifica-se que este é um direito
fundamental implícito oriundo do princípio da dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana é o pilar do ordenamento constitucional brasileiro, sendo o elemento
fundante dos direitos fundamentais, seja de forma direta ou indireta. O Constituinte os considera
fundamentais porque configuram diferentes exteriorizações da dignidade humana, no sentido de que uma
pessoa natural só poderá ter uma vida digna e feliz se tiver respeitados os direitos fundamentais.
Nesse sentido, independente da possibilidade de se sustentar que o reconhecimento de direitos
fundamentais implícitos é inerente ao nosso sistema constitucional (com o que concordo), visto que
implícitos são os direitos já existentes, mas não expressos, é de se notar que o art. 5.º, § 2.º, da CF/1988
reconheceu expressamente tal possibilidade, ao enunciar que “Os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Assim, considerando que o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana constitui um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil, então é evidente que, por força do art. 5.º, § 2.º, da
Carta Magna, podem ser extraídos direitos fundamentais implícitos oriundos da dignidade humana.
Nessa linha de raciocínio, considerando que o princípio da dignidade da pessoa humana garante a
todos o direito à felicidade e a uma vida digna e considerando que, em virtude do arquétipo social
existente em torno do casamento civil, as pessoas que querem se casar somente serão felizes se
puderem se casar civilmente, então verifica-se que o casamento civil é um direito fundamental
implícito decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana. Afinal, como bem apontado pela
Suprema Corte dos EUA no caso Loving vs. Virginia (1967), a liberdade de casar tem sido
historicamente reconhecida como um dos direitos vitais mais essenciais para a busca da felicidade entre
as pessoas, (tido por muitos como) fundamental à própria existência e sobrevivência, donde declarou
inconstitucional a restrição legal que impedia a pessoa de escolher com quem ela desejava se casar, no
contexto do casamento inter-racial – sendo a lógica da decisão plenamente aplicável ao tema do
casamento civil homoafetivo, pois da mesma forma que a proibição do casamento inter-racial visava,
implicitamente, manter um sistema de supremacia de brancos sobre negros, a negativa do casamento civil
homoafetivo implicitamente acaba por consagrar um heterossexismo social que prega a união
heteroafetiva mais digna que a união homoafetiva, de sorte a garantir apenas à primeira o direito de
acesso ao casamento civil por ser este tido como a consagração máxima da união entre duas pessoas, em
exclusão que se pauta em profundos preconceitos, por irracionalmente negar igual dignidade da união
homoafetiva relativamente à união heteroafetiva). Ressalte-se que o caráter de direito fundamental do
casamento civil foi reiterado pela Suprema Corte dos EUA nos casos Zablocki vs. Redhail (1978, que
declarou inconstitucional a negativa de casamento civil a quem não comprovasse pagamento de pensões
alimentícias, afirmando que o poder estatal de regulamentar o casamento civil não garante o poder de
excluir pessoas dele) e Turner vs. Safley (1987, que declarou inconstitucional a restrição de direito ao
casamento civil de presos por entender que legítimas preocupações de segurança prisional não
justificavam, no caso concreto, as restrições concretamente impostas, tidas como exageradas). De tudo
isso, conclui-se que a Constituição garante a todos o direito de se casar com uma pessoa de sua
escolha, salvo se houver motivação válida ante a isonomia ou a razoabilidade (ou seja, motivação
lógico-racional) que justifique a discriminação oriunda da negativa de acesso ao direito fundamental ao
casamento civil18, o que não existe no presente caso.
Dessa forma, o casamento civil é um direito fundamental de todos os cidadãos brasileiros e,
portanto, também dos homossexuais, razão pela qual a sua negativa arbitrária aos casais homoafetivos
configura inconstitucionalidade por afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana (além de afronta
a dito direito fundamental implícito).

2.2 Da insuficiência de uma “Lei de União Civil” para a proteção da dignidade humana de
homossexuais
Muito se fala no Brasil acerca do Projeto de Lei 1.151/1995, de autoria da ex-deputada Marta
Suplicy, cujo substitutivo visa a instituir a chamada Parceria Civil Registrada entre pessoas do mesmo
sexo. Contudo, ignorando que dito projeto encontra-se engavetado no Congresso Nacional, devido ao
preconceito de muitos parlamentares, que não têm interesse político em sua votação pelo medo de
perderem votos dos setores conservadores da sociedade, mesmo a sua aprovação não seria suficiente
para afastar as questões levantadas nesta obra.
Em primeiro lugar, dito projeto de lei não garante, nem de longe, os mesmos direitos que o
casamento civil e mesmo a união estável garantem atualmente. Na 1ª edição desta obra afirmei que a
aprovação desse projeto melhoraria em muito a vida dos casais homoafetivos em comparação à omissão
legislativa a eles imposta (pois é melhor ter poucos direitos reconhecidos do que não ter nenhum),
todavia estes ainda estariam em situação de menor proteção que os casais heteroafetivos, possuindo
menos direitos que eles, pois a isonomia, assim, continuaria afrontada mesmo com a aprovação do
referido projeto de lei. Contudo, com a decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, a
aprovação de dito projeto de lei configuraria flagrante retrocesso jurídico para a união homoafetiva, na
medida em que a esta foram reconhecidos os mesmos direitos da união estável (heteroafetiva), razão pela
qual a aprovação de dito projeto, que trata a união homoafetiva como mera sociedade de fato do Direito
Obrigacional, geraria uma lei inconstitucional por afronta ao princípio da vedação do retrocesso,
vedando a aprovação de leis que retirem direitos de pessoas e/ou grupos sociais quando tais direitos
sejam fundamentais – e o direito à constituição de família conjugal com igualdade de direitos às demais
famílias conjugais configura inequivocamente um direito fundamental.
Por outro lado, ainda que dito projeto (ou outro similar) garantisse os mesmos direitos do casamento
civil, hipótese na qual a questão da isonomia estaria superada, ainda assim a dignidade humana dos
casais homoafetivos estaria afrontada. Isso em decorrência daquilo que foi supraexplanado, ou seja, do
verdadeiro arquétipo social existente em torno da figura do casamento em nossa sociedade, que o vê
como consagração máxima de uma união amorosa.
Afinal, a consagração das uniões homoafetivas por intermédio de parcerias civis registradas e não
por meio do casamento (civil) implicaria, obviamente, na sua rotulação como menos dignas do que as
uniões matrimonializadas. Afinal, a parceria civil registrada nada mais é do que um contrato do Direito
Obrigacional, ao contrário do casamento civil, que é um regime jurídico do Direito das Famílias. Só
neste ponto já se percebe como o casamento civil tem a si atribuída uma dignidade muito maior do que
aquela que se pretende conferir à parceria civil registrada.
Isso porque a exclusão dos casais formados por pessoas do mesmo sexo do regime jurídico do
casamento civil traz implícita a ideia de que a relação homoafetiva não seria tão digna quanto a
heteroafetiva; que ela não mereceria o mesmo respeito, a mesma preocupação e a mesma consideração
que se garantem às uniões formadas por pessoas de sexos diversos (conforme citado na decisão
canadense supra transcrita). Contudo, qualquer afirmação nesse sentido (de menor dignidade das uniões
homoafetivas em relação às heteroafetivas) é inconstitucional pela sua arbitrariedade, tendo em vista a
inexistência de motivação lógico-racional que corrobore com este deturpado entendimento acerca do
amor homoafetivo.
Outrossim, não se pode deixar de concordar com a Jurisprudência de Direito Comparado que, ao
julgar inconstitucional o não reconhecimento do casamento civil homoafetivo por afronta à isonomia e à
dignidade da pessoa humana, afirma que, quanto a esta, a instituição de uma lei paralela àquela do
casamento civil apenas para os casais homoafetivos implicaria na volta à política do “separate but
equal” (separados, mas iguais) que tanto assolou a convivência entre negros e brancos nos Estados
Unidos e na África do Sul e que só serviu para estigmatizar ainda mais os negros19.
Veja-se, nesse sentido, a decisão da Suprema Corte de Ontário (Canadá)20, ao declarar a
inconstitucionalidade do não reconhecimento do casamento civil homoafetivo:

(187) A essência da primeira parte das colocações do Estado requer que esta corte aceite que
“casamento” é uma palavra que meramente identifica uma instituição única. Aquele argumento
implica que, se os Requerentes tiverem a si garantidos todos os direitos, privilégios e benefícios da
instituição do casamento – mas sob outra nomenclatura – então não haverá nenhuma discriminação
porque não haveria nenhuma diferença de tratamento. Isso, na minha opinião, está errado.
(188) “Casamento é mais que uma nomenclatura – mais que apenas uma palavra”. Poderia
ser dito que o primeiro indicador da sua importância é o fato que esse longo e complexo processo
aparentemente tivesse que ocorrer. Na minha opinião, “a paixão e sinceridade de todos que
arguiram perante esta corte é um testemunho às profundamente nutridas visões do casamento”.
Os Requerentes fervorosamente pleiteiam por sua inclusão naquela instituição; os Contestantes
pleiteiam intensamente pela proteção da sua exclusividade. Eu estou totalmente convencido que
“casamento é muito mais que uma palavra e eu concordo com a observação de que o casamento –
para a maior parte da sociedade canadense é”:
... a instituição que concede a uma união o profundo selo social de aprovação e aceitação do
relacionamento como sendo do maior valor. [MacDougall, B. “A Celebração do Casamento entre
Pessoas do Mesmo Sexo” (2000) 32:2 Ottawa Law Rev. 235 at 242].
(189) Eu também concordo com aqueles outros que o descrevem como:
... legal, religioso, social, vocacional e pessoal ... O poder do casamento vem não do que ele é
em abstrato, ou como ele é definido, ou ainda no que ele simboliza, mas de como ele é
transubstanciado pelo foco social na condição marital como o elemento chave na definição de
todas as pessoas. [ibid, MacDougall aponta que essa opinião é de alguém que pretende excluir os
casais formados por pessoas do mesmo sexo do casamento. A citação é de L. S. Eckols, “A
Miragem do Casamento: As Implicações nas Identidades Pessoais e Sociais do Matrimônio entre
Pessoas do Mesmo Sexo”. (1995) 5 Mich. J. of Gender and L. 353 at 354 (notas de rodapé
omitidas)].
(190) No caso Egan, os Juízes Cory e Iacobucci foram da opinião que a lei que oferece uma
“escolha significante” pode também oferecer um “valoroso benefício”. E onde a definição daquela
lei confere o estado de reconhecimento e legitimidade de um status particular, a negação da
habilidade de escolher aquele status a lésbicas e gays implica em violação à seção 15(1) da Carta
de Direitos. Isso, eu acredito, é o que ocorreu no caso em tela.
(191) Em apoio à minha conclusão eu volto mais uma vez à decisão da Juíza Greer no caso
Layland para assistência e em particular onde ela examinou alguns pronunciamentos judiciais
existentes em 1993 sobre a seção 15(1). Confiando na linguagem do Juiz Wilson no caso R. v.
Turpin, a Juíza Greer expressou a conclusão com a qual eu concordo, nomeadamente:
Não se pode levar em consideração apenas o que os casos Pré-Carta de Direitos sustentaram
que era o casamento. É importante que o tema seja adequadamente colocado no amplo contexto da
nossa sociedade moderna e seus costumes e expectativas.
Os casos referentes à Carta de Direitos mostram que nossas cortes entenderam que “escolha” é
um benefício da lei. No caso em tela, os requerentes tiveram negado seu direito à escolha de com
quem eles querem se casar. Na minha visão, o direito à escolha é um direito fundamental e se
aplica ao contexto do casamento na nossa sociedade.
É uma teoria básica na nossa sociedade que o Estado respeitará as escolhas feitas pelos
indivíduos e o Estado evitará subordinar essas escolhas a qualquer outra concepção. As garantias
individuais da seção 15 são designadas para proteger o direito de escolha dos indivíduos. Nossas
cortes e o Estado sempre se empenharam a separar o preconceito histórico e a intolerância através
da aplicação da lei. Na minha visão, isso é o que a Carta de Direitos visou fazer.
Eu também rejeito o argumento do Estado segundo o qual os benefícios proporcionados
através da instituição do casamento podem ser remediados por alteração na legislação que de
outra forma concedam ditos benefícios aos casais coabitantes. Na minha opinião aquela
colocação remonta ao argumento do “separados mas iguais” que foi há tanto rejeitado no Canadá
como justificativa para uma lei outrora discriminatória.
(193) Eu entendo que não responde às preocupações dos Requerentes simplesmente dizer a
eles que os casais formados por pessoas do mesmo sexo têm – ou terão – todos os benefícios que os
casais casados têm através de outras medidas legislativas tais como “parcerias domésticas”.
(194) Aceitar aquele argumento significaria que eu concordo que os casais formados por
pessoas do mesmo sexo têm direito a todos os benefícios e privilégios que os casais formados por
pessoas de sexos diversos têm garantidos através do casamento, mas não o direito a serem
reconhecidos como casados. Em outras palavras, eu teria que abraçar o conceito segundo o qual
casais formados por pessoas do mesmo sexo têm o direito de se casar; eles apenas não poderiam
se apropriar da palavra casamento porque ela pertenceria exclusivamente a casais
heterossexuais. Isso seria um conceito equivocado para essa corte abraçar.
(195) Deve ser lembrado que em algum momento afrodescendentes tinham o direito a sentar no
mesmo ônibus dos ‘brancos’ e em assentos que eram igualmente confortáveis aos outros assentos.
Eles apenas não poderiam sentar na parte da frente do ônibus porque aqueles assentos iguais eram
reservados para ‘pessoas brancas’. Da mesma forma, afrodescendentes tinham o direito a beber
água e a usar banheiros que eram em todos os aspectos iguais àqueles usados por pessoas brancas.
Mais uma vez, eles não poderiam fazê-lo na mesma fonte ou usar o mesmo banheiro dos brancos.
Cada um dos quais eram – apesar de serem conceitos aparentemente merecedores de crédito –
desconsiderados e rejeitados pelas cortes nos Estados Unidos.
(196) No caso Andrews a nossa Suprema Corte – com igual ênfase judicial – rejeitou dita
doutrina no Canadá. Naquela questão eu concordo com a fala de Linden J. A. no seu voto divergente
no caso Egan v. Canadá que entendeu que:
“Não se pode fugir da conclusão segundo a qual o oferecimento de benefícios às parcerias de
gays e lésbicas através de um esquema diferente daquele conferido às parcerias heterossexuais é
uma versão da doutrina do ‘separados mas iguais’”. Aquela doutrina estarrecedora não deve ser
ressuscitada no Canadá quatro décadas após a sua tão proclamada morte nos Estados Unidos.
(197) Em conclusão, eu entendo que a resposta a este primeiro aspecto da análise da seção
15(1) da Carta de Direitos é que a regra tradicional do casamento sujeita os Requerentes a um
tratamento diferenciado daquele conferido a outros. Isso significa dizer que eu considero que
lésbicas e gays são tratados diferentemente de heterossexuais quando é-lhes negados o direito de
entrada na instituição social do casamento.

Verifica-se, assim, sob todos os ângulos, que a única forma de não se afrontar arbitrariamente a
dignidade dos casais homoafetivos é pelo reconhecimento da possibilidade jurídica de seu casamento
civil e de sua união estável, razão pela qual se têm por possível juridicamente o casamento civil e a
união estável por pessoas do mesmo sexo (por meio da interpretação extensiva ou da analogia), uma vez
que a proibição da consagração dessas uniões mediante matrimônio civil e da união estável é
inconstitucional/incompatível com os princípios da igualdade e da dignidade humana, direitos humanos
fundamentais e normas constitucionais de eficácia plena que são.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O princípio da dignidade da pessoa humana garante a todos o direito à felicidade, além de conferir
aos seres humanos o direito à mesma dignidade, pelo simples fato de serem pessoas humanas,
independentemente de quaisquer diferenças existentes entre si. Só se admite a relativização da dignidade
de uns em relação à de outros na existência de uma motivação lógico-racional que justifique a
relativização de uns em relação a outros (aspecto material da isonomia). Assim, a ausência de motivação
válida ante a isonomia leva à afronta do princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que o
preceito igualitário é a única forma válida de se relativizar esse princípio, visto que não se concebe uma
existência digna se a pessoa vier a ser tratada de forma arbitrária (preconceituosa).
Nesse sentido, a partir do momento em que as uniões homoafetivas têm em si o elemento protegido
pelas leis do casamento civil e da união estável, que é o amor romântico que vise à comunhão plena de
vida e interesses, de caráter público, contínuo e duradouro (amor familiar), então nota-se que são elas
tão dignas quanto as uniões heteroafetivas, merecendo, portanto, os regimes jurídicos de maior dignidade
existentes em nosso ordenamento jurídico para lhes proteger, a saber, o casamento civil e a união estável,
tendo em vista que estes são conferidos às uniões heteroafetivas.
Ademais, considerando que o princípio da dignidade da pessoa humana garante a todos o direito à
felicidade e a uma vida digna e que, em virtude do arquétipo social existente em torno do casamento
civil, as pessoas que querem se casar somente serão felizes se puderem se casar civilmente, verifica-se
que o casamento civil é um direito fundamental implícito decorrente do princípio da dignidade da pessoa
humana, por força do art. 5.º, § 2.º, da CF/1988, razão pela qual a sua negativa arbitrária aos casais
homoafetivos configura inconstitucionalidade por afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana e a
dito direito fundamental implícito. Negar igual tratamento aos casais homoafetivos significa
instrumentalizá-los para que o Estado consiga um nefasto intuito de impor o padrão conjugal
heteroafetivo a todos, em postura que atenta contra a dignidade humana e a liberdade de consciência de
homossexuais.
É de se notar, ainda, que a nomenclatura casamento (civil) é da máxima importância, não apenas por
ser, atualmente, a única forma de obtenção de todos os direitos conferidos pelo Direito das Famílias
(questão da isonomia), mas, especialmente, pelo verdadeiro arquétipo social existente no que tange ao
desejo que as pessoas em geral têm de se casar (dentre as quais, obviamente, os homossexuais). Ou seja,
mesmo que uma outra lei visasse a garantir exatamente os mesmos direitos do casamento civil aos casais
homoafetivos (o que não é o caso do atual projeto de Parceria Civil Registrada, que visa a conferir
menos direitos do que os conferidos pelo casamento civil e mesmo pela união estável), isso resolveria
apenas a questão da isonomia, mas não a da dignidade humana, tendo em vista que o casamento civil é
tido pela sociedade como a consagração máxima das uniões amorosas, ou, ainda, como legitimador
destas (tanto que o Código Civil de 1916 só considerava como “legítimas” as famílias formadas pelo
casamento civil).
Outrossim, a elaboração de uma lei paralela à do casamento civil para abarcar unicamente as uniões
homoafetivas implicaria em uma política de segregação idêntica àquela dos “separados, mas iguais” que
assolou a convivência entre negros e brancos em diversos países do mundo, só servindo para aumentar a
estigmatização daqueles, donde incompatível com o princípio da dignidade da pessoa humana. Afinal,
considerando o entendimento social no sentido de que o casamento civil é a consagração máxima da
dignidade e do valor das uniões amorosas, instituir uma lei com nomenclatura diferenciada apenas para
os casais homoafetivos implicaria inegavelmente em rotulá-las como menos valorosas do que as uniões
heteroafetivas, o que não é verdade e seria feito apenas sob a égide do preconceito, visto que o mesmo
amor familiar existente nas uniões heteroafetivas existe nas homoafetivas, não havendo justificação
válida, perante a isonomia, que justifique diferenciá-las legalmente.
Dessa forma, considerando que não há fundamento lógico-racional que justifique a discriminação
das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas, não pode o Direito pátrio colocar as uniões entre
pessoas do mesmo sexo em situação de menor dignidade do que as uniões entre pessoas de sexos
diversos, sob pena de inconstitucionalidade deste ato por afronta ao princípio da dignidade da pessoa
humana.

1 In GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1ª
Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005 – Prefácio.
2 Como é o caso das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas, quando se nega àquelas os regimes jurídicos do
casamento civil e da união estável, bem como o direito à adoção conjunta.
3 Veja-se, nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 6a Edição, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, p. 121-122, onde o autor afirma: “(...) Neste sentido, diz-se que, para a preservação da dignidade da
pessoa humana, se torna indispensável não tratar as pessoas de tal modo que se lhes torne impossível representar a
contingência de seu corpo como momento de sua própria, autônoma e responsável individualidade. Uma outra dimensão
intimamente associada ao valor da dignidade da pessoa humana consiste na garantia de condições justas e adequadas de
vida para o indivíduo e sua família, contexto no qual assumem relevo de modo especial os direitos sociais ao trabalho, a um
sistema efetivo de seguridade social, em última análise, à proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e
à asseguração de uma existência com dignidade. Para além disso, constitui pressuposto essencial para o respeito da
dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que não podem ser submetidos a
tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual são intoleráveis a escravidão, a discriminação racial, perseguições
em virtude de motivos religiosos, etc. Também a garantia da identidade (no sentido de autonomia e integridade psíquica e
intelectual) pessoal do indivíduo constitui uma das principais expressões do princípio da dignidade da pessoa humana,
concretizando-se, dentre outros aspectos, na liberdade de consciência, de pensamento, de culto, na proteção da intimidade,
da honra, da esfera privada, enfim, de tudo que esteja associado ao livre desenvolvimento de sua personalidade, bem como
ao direito de autodeterminação sobre os assuntos que dizem respeito à sua esfera particular, assim como à garantia de um
espaço privativo no âmbito do qual o indivíduo se encontra resguardado contra ingerências na sua esfera pessoal. (...)”
(grifos nossos).
4 Dessa forma, conforme já demonstrado anteriormente, não há hoje uma motivação aceitável ante a isonomia que justifique a
discriminação das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas. Isto, considerando que o mesmo amor familiar
existente nas uniões heteroafetivas existe nas uniões homoafetivas; considerando que a capacidade procriativa do casal
não é essencial à configuração do casamento civil e mesmo da união estável (porque, se assim o fosse, também se
vedaria o casamento civil e a união estável entre casais heteroafetivos estéreis); considerando que motivos de ordem
religiosa são inaceitáveis para justificar uma discriminação jurídica pelo fato de vivermos em um Estado Laico; e
considerando especialmente que a diversidade de sexos não pode ser considerada como essencial à proteção jurídico-
familiar do Direito das Famílias, por não haver motivação lógico-racional que justifique a colocação das uniões
heteroafetivas em condição superior à das homoafetivas; tem-se por inconstitucional a discriminação negativa das uniões
homoafetivas para com as heteroafetivas, tanto por afronta ao princípio da igualdade quanto por ofensa ao princípio da
dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, sendo inconstitucional a interpretação proibitiva da consagração das uniões
homoafetivas pelo casamento civil e, inclusive, o não reconhecimento destas como uniões estáveis, tem-se que a única
interpretação juridicamente válida é aquela que permita o casamento civil homoafetivo e reconheça a união estável
homoafetiva, em decorrência dos citados princípios constitucionais, para que se evite um conflito efetivo entre as normas
jurídicas em questão (de um lado, os dispositivos legais que regulam o casamento civil e a união estável, e, de outro,
aqueles que preveem a isonomia e a dignidade da pessoa humana).
5 Sem adentrar profundamente em tal discussão, que foge aos limites do presente trabalho, pode-se dizer que isto que se
acabou de expor se justifica pelo fato de não ser o rol de direitos fundamentais trazidos pela Constituição Federal taxativo
(mesmo quando já considerados os direitos fundamentais implícitos), no que implica reconhecer a necessidade de
proteção da dignidade humana mesmo onde não esteja ela positivada, em que pese ser inequivocamente mais fácil a sua
defesa onde esteja ela efetivamente consagrada pelo ordenamento jurídico. Tal é, inclusive, o que defende SARLET, Ingo
Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2ª Edição, Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 41 e ss.
6 São oportunas, ainda, as colocações de Viviane Girardi, ao afirmar que: “A razão da inclusão da reivindicação dos direitos
relativos às uniões [homoafetivas] ou mesmo do direito ao exercício da homossexualidade se justifica no fato de, por
pertencer à comunidade humana, as pessoas de orientação sexual homossexual devem ter o direito à realização de suas
capacidades e necessidades humanas respeitadas, tanto pelos demais membros da comunidade como pelo próprio
Estado. Trata-se de se assegurar no plano individual a tutela ao direito personalíssimo de orientação sexual e, no plano
público, o respeito a esse direito, com práticas jurídicas e políticas legislativas que vedem qualquer forma de discriminação
por conta de preferência ou orientação sexual de cada pessoa. A efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana,
estampado na Carta Constitucional brasileira, confere a cada cidadão o poder de autodeterminar o que parece essencial à
realização plena da sua personalidade. Nesse sentido, é a afirmação de Ingo Wolfgang Sarlet ao citar o pensamento de G.
Dürig, segundo o qual ‘cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o
capacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar a sua conduta,
bem como de formatar a sua existência e o meio que o circunda’. O princípio da dignidade da pessoa humana assegura a
toda e a qualquer pessoa o direito de tratamento igualitário, que no seu reverso é o direito a não ser discriminado”
(GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1ª
Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 200, p. 52-53 – sem grifos no original).
7 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.).
Inhttp://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html (acesso em 20/10/2006 – tradução livre. Sem grifos e
destaques no original).
8 Como bem enfatizado pela representação apresentada ao Procurador-Geral da República, visando à impetração de
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental pleiteando o reconhecimento da possibilidade jurídica da união
estável homoafetiva, já analisada no capítulo relativo à união estável.
9 SARMENTO, Daniel. Casamento e União Estável entre Pessoas do Mesmo Sexo. Perspectivas Constitucionais. Igualdade,
Diferença e Direitos Humanos. 1ª ed. 2ª Tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 643-646.
10 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Marco Aurélio, pp. 11-12 (trecho transcrito no capítulo 4, item 1.5 “Posição
Pessoal. Dignidade da Pessoa Humana e o Direito à Felicidade”).
11 Neste ponto, do governo de uma sociedade racional existir para garantir o direito à busca da felicidade ou bem-estar, o
Ministro se baseou na lição de Stephanie Schwartz Driver.
12 BARROSO, Luís Roberto. “Here, there and everywhere”. Human Dignity in contemporary law and in the transnational
discourse, pp. 63-64. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1945741> (último acesso em: 08 jan. 2012).
13 WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters..., p. 134. Tradução livre.
14 Goodridge v. Department of Public Health, p. 9, in
http://www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodridge.html (acesso em fev./2007; sem
grifos e destaques no original).
15 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.). In
http://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html (acesso em 20/10/2006 – tradução livre; sem grifos no
original).
16 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Comentadas. 5. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 305, aonde se afirma
que “Racismo é o pensamento voltado à existência de divisão dentre seres humanos, por qualquer pretensa virtude ou
qualidade, aleatoriamente eleita, a outros, cultivando-se um objetivo segregacionista, apartando-se a sociedade em
camadas e estratos, merecedores de vivência distinta (...) o racismo, como acabamos de expor, é, basicamente, uma
mentalidade segregacionista (...)”. O autor afirma, ainda, com base no mesmo precedente do STF, que “raça é termo infeliz
e ambíguo, pois quer dizer tanto um conjunto de pessoas com os mesmos caracteres somáticos como também um grupo
de indivíduos de mesma origem étnica, linguística ou social. Raça, enfim, um grupo de pessoas que comunga de ideais ou
comportamentos comuns, ajuntando-se para defendê-los, sem que, necessariamente, constituam um homogêneo conjunto
de pessoas fisicamente parecidas. Aliás, assim pensando, homossexuais discriminados podem ser, para os fins de
aplicação desta Lei [de Racismo], considerados como grupo racial. (...) Ora, se o STF considerou racismo, para efeito de
considerar imprescritível o art. 20 desta Lei, atitudes de antissemitismo são imprescritíveis, mesmo se considerando que o
judeu é o adepto da religião denominada judaísmo, podendo ser qualquer pessoa, inclusive o que nasceu e se formou
católico, mas, posteriormente, converteu-se. Dessa forma, parece-nos possível, igualmente, considerar racismo a busca
da exclusão de outros grupos sociais homogêneos, exteriormente identificados por qualquer razão. E mais, podemos incluir
nessa possibilidade a discriminação ao ateu – aquele que não acredita em Deus e em nenhuma força sobrenatural, regente
do Universo ou das relações humanas. (...) Parece-nos que é racismo, desde que, na esteira da interpretação dada pelo
STF, qualquer forma de fobia, dirigida ao ser humano, pode ser manifestação racista. (...) Nem se fale em utilização de
analogia in malam partem. Não se está buscando, em um processo de equiparação por semelhança, considerar o ateu ou
o homossexual alguém parecido com o integrante de determinada raça. Ao contrário, está-se negando existir um conceito
de raça, válido para definir qualquer agrupamento humano, de forma que racismo ou, se for preferível, a discriminação ou o
preconceito de raça é somente uma manifestação de pensamento segregacionista, voltado a dividir os seres humanos,
conforme qualquer critério leviano e arbitrariamente eleito, em castas, privilegiando umas em detrimento de outras. (...)
Logo, ser ateu, homossexual, pobre, entre outros fatores, também pode ser elemento de valoração razoável para evidenciar
a busca de um grupo hegemônico qualquer de extirpar da convivência social indivíduos indesejáveis. (...) raça é um termo
enigmático e ambíguo, merecedor, pois, de uma interpretação segundo os preceitos da igualdade, apregoada pela
Constituição Federal, em função do Estado Democrático de Direito” (Ibidem, pp. 304-305).
17 COX apud WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters…, p. 135. Tradução livre.
18 Cf. GERSTMANN, Evan. Same-Sex Marriage and the Constitution. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2008,
pp. 73-90.
19 Para contextualizar o leitor que não esteja familiarizado com aquela nefasta e vetusta política, o “separate but equal” visava
a garantir aos negros os mesmos direitos conferidos aos brancos com a diferença de que os negros não poderiam ocupar
os mesmos espaços que os brancos. Por exemplo, nos ônibus, os negros teriam assentos da mesma qualidade que
aqueles dos brancos, mas só poderiam sentar nos assentos da parte de trás dos ônibus (sendo, aliás, intuitivo que sentar-
se atrás tem uma menor dignidade do que sentar-se à frente); nos tribunais, teriam direito a um local idêntico àquele
conferido aos brancos, mas jamais poderiam utilizar o local destinado aos brancos.
20 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.). In
http://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html (acesso em 20/10/2006 – tradução livre; sem grifos e
destaques no original).
Capítulo 9

INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO E UNIÕES


HOMOAFETIVAS

“O axioma jurídico de que em sendo o texto claro, não existe interpretação, certamente não
corresponde à realidade do processo intelectivo através do qual o operador do sistema jurídico
e, mais especificamente, o julgador da causa, concebe a solução para o problema que lhe é
exposto. Tal ideologia, de matriz essencialmente racionalista, vez que derivada do iluminismo
francês do século XVIII, desconsidera dados de capital importância na análise do processo
decisional, dentre os quais avulta de interesse a chamada ‘fusão de horizontes’ entre o texto
legal e seu intérprete, através da qual o intérprete não se desliga de suas pré-compreensões
acerca da realidade estudada: muito ao contrário, utiliza-a cônscio de que impossível
conceber o intérprete como uma mera ‘longa manus’ do legislador.” – Eduardo Fernando
Appio.1

1. A INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO REALIZADA PELO SUPREMO


TRIBUNAL FEDERAL NA ADPF 132 E NA ADI 4.277. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
AO CAPÍTULO.
No histórico julgamento de 05.05.2011, o Supremo Tribunal Federal julgou procedentes a ADPF 132
e a ADI 4.277 para atribuir interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil para
dele excluir qualquer interpretação que implique o não reconhecimento da união homoafetiva como
entidade familiar: nas palavras do Tribunal: “para dele excluir qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar, entendida como sinônimo perfeito de família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as
mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”2.
Desde a primeira edição desta obra defendi a possibilidade de atribuição de interpretação
conforme aos dispositivos legais atinentes ao casamento civil e à união estável para se possibilitar o
casamento civil e a união estável entre casais homoafetivos, na medida em que é a única interpretação
constitucionalmente válida acerca do tema.
Nesse sentido, se na primeira edição este capítulo visava demonstrar a possibilidade do uso da
referida técnica (ou, no mínimo, da técnica da declaração de nulidade sem redução de texto para excluir
dos dispositivos do casamento civil e da união estável interpretações que não reconhecessem o direito ao
casamento civil e à união estável por casais homoafetivos), nesta segunda edição ele visa, ainda,
justificar a correção da decisão do STF acerca do tema.

2. DA NECESSIDADE DE UMA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO EM TODAS


AS HIPÓTESES
Os opositores ao reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo e da
união estável homoafetiva por vezes alegam que uma interpretação nesse sentido, ainda que fundada na
isonomia e na dignidade humana, direitos humanos fundamentais e normas constitucionais originárias de
eficácia plena que são, implicaria na “subversão” do atual sistema jurídico pátrio, que exigiria, a seu ver,
a heterossexualidade como “condição” de ditos regimes jurídicos. Todavia, este posicionamento é muito
estranho. Afinal, a interpretação de quaisquer normas deve ser feita em conformidade com a
Constituição, pois ela é a lei das leis, devendo toda lei infraconstitucional (como o Código Civil)
respeitá-la.
Mesmo no que tange à interpretação de normas constitucionais, elas devem ser lidas em consonância
com os princípios consagrados pela Lei Maior. Afinal, os princípios indicam o ponto de partida do
legislador (especialmente do constituinte), mostrando o que ele preza acima de tudo. Isso nada mais é do
que decorrência da interpretação conforme a Constituição – ora, se a Carta Magna erige princípios
como normas jurídicas de eficácia plena, ainda mais na qualidade de direitos humanos fundamentais
(como a isonomia e a dignidade humana), então toda a leitura constitucional e infraconstitucional deve
ser feita com base neles, ainda que seja necessária a interpretação extensiva ou a analogia para tanto.
No caso de nossa Constituição, o Constituinte alçou a dignidade da pessoa humana e a isonomia à
qualidade de princípios basilares fundamentais, donde todas as normas da Carta Magna devem ser lidas
de acordo com esses princípios, o mesmo valendo, com muito mais razão, no que tange às normas
infraconstitucionais. Assim, se o Constituinte erigiu princípios que vedam o preconceito (como a
isonomia e a dignidade da pessoa humana) como o norte constitucional, então não podem os demais
textos normativos constitucionais e infraconstitucionais ser interpretados de uma forma preconceituosa,
sob pena de afronta à interpretação sistemática exigida de toda leitura de um sistema jurídico. Não se lê
um dispositivo isoladamente, mas sempre de forma sistemática, sob pena de se desvirtuar o sistema
jurídico.
Dessa forma, a leitura dos dispositivos que tratam da família constitucional deve ser feita de acordo
com a isonomia e a dignidade da pessoa humana, pois este foi o intuito do Constituinte: garantir uma
legislação (constitucional e infraconstitucional) que não seja preconceituosa. Nesse sentido, defender que
o casamento civil seria possível de ser contraído apenas por heterossexuais significa em proclamar o
preconceito, que é constitucionalmente vedado pela isonomia e pela dignidade da pessoa humana, donde
é equivocado este posicionamento.
Ou seja, o que os opositores do reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas
aparentemente ignoram (e por vezes negam) é o fato de que os princípios constitucionais, especialmente
quando configuram direitos humanos fundamentais, como a isonomia e a dignidade da pessoa humana,
configuram o verdadeiro método de interpretação constitucional e infraconstitucional. Com efeito, em
Direito nada se interpreta de forma isolada, mas sempre sistêmica. A célebre lição jurídica de que “a lei
não possui palavras inúteis” vem justamente corroborar esta afirmação. Ora, se nada nos textos
normativos é inútil, então não pode haver um conflito efetivo entre dois textos normativos de um mesmo
documento, sob pena de uma contradição que é defesa pelo Direito e que, por isso, é inadmissível –
contradição esta que, se ocorrer entre regras e princípios, deverá ser solucionada com a prevalência
destes sobre aquelas, visto serem eles mandamentos nucleares do sistema que condicionam a
interpretação e mesmo a validade das regras do mesmo documento legislativo (seja ele uma lei, a
Constituição etc.).
Nesse sentido, dada a imperfeição do legislador, pessoa humana que é, os textos normativos não
abarcam todas as situações possíveis existentes na sociedade. Por vezes não se trata de exclusão
premeditada, e por vezes é uma exclusão oriunda de um equívoco conceitual: simplesmente, o legislador
não prevê todas as hipóteses possíveis em seu texto de lei ou protege apenas uma situação, quando outra
também se insere no mesmo contexto axiológico.
No caso específico aqui discutido, claramente o legislador pretendeu proteger o amor familiar com
o casamento civil e com a união estável. Para tanto, visualizou apenas a forma heteroafetiva como família
digna de proteção. Esta concepção decorreu, ressalte-se, da equivocada compreensão que perdurou até o
final do século XX, no sentido de que a homossexualidade seria uma “doença”, um “desvio” ou uma
“perversão”. Contudo, esse entendimento foi ultrapassado pela Organização Mundial da Saúde e pelos
nossos Conselhos Federais de Medicina e Psicologia, que aduzem não ser a homossexualidade uma
doença, um desvio psicológico nem uma perversão, mas uma das livres manifestações da sexualidade
humana, ao lado da heterossexualidade. Se o legislador tivesse esta compreensão, certamente teria
deixado expresso que as uniões homoafetivas são protegidas pelo casamento civil e pela união estável,
uma vez que formam entidades familiares da mesma forma que o fazem as uniões heteroafetivas. Assim,
temos aqui uma lacuna normativa oriunda da ignorância conceitual do legislador acerca do tema da
homossexualidade.
Nesse sentido, desde sempre são utilizadas técnicas de integração do Direito para os casos de
lacunas normativas, que visam justamente a evitar que as omissões cometidas pelo legislador, quando
regulou determinada matéria, não venham a prejudicar as pessoas que se encontram aparentemente
excluídas da norma legal/constitucional. Essas técnicas, como já se disse, são a interpretação extensiva e
a analogia, que são decorrentes da isonomia – ou seja, visam a tratar igualmente os que se encontram em
situações idênticas ou análogas. Em outras palavras, como em Direito nada se interpreta de forma
isolada, mas sempre sistêmica, não se pode afirmar que os dispositivos que usam a expressão “o homem
e a mulher” para se referir ao casamento civil e à união estável estariam “vedando implicitamente” que
as uniões homoafetivas fossem assim definidas, uma vez que isso configura uma discriminação
preconceituosa3, que é vedada pela isonomia e pela dignidade humana. Mesmo porque não existem
proibições implícitas em Direito, em decorrência do art. 5.º, II, da CF/1988, que aduz que “ninguém será
obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, donde somente a lei
expressa pode restringir os direitos das pessoas, o que não ocorre com relação às uniões homoafetivas.
Assim, a partir do momento em que é possível interpretar-se uma norma jurídica de duas formas e
uma delas é inconstitucional, é obrigatória a utilização da outra, para se evitar um conflito efetivo entre
ditos dispositivos normativos4.
Ou seja, os princípios constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana, que possuem a
qualidade de efetivas normas de eficácia plena, devem ser usados como paradigma na interpretação tanto
das normas constitucionais quanto das infraconstitucionais. Afinal, ditos princípios demonstram a
vontade primordial do constituinte, a saber, a proibição de discriminações arbitrárias, donde só se pode
ter como possível a extensão dos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável aos casais
homoafetivos.

3. DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS DO CASAMENTO CIVIL E DA UNIÃO ESTÁVEL EM


CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO
Ante os conceitos supra expostos, verifica-se que uma norma não pode ser interpretada de forma
preconceituosa, pois isto implica em discriminação arbitrária, vedada que é pelos princípios da isonomia
e da dignidade da pessoa humana constitucionalmente consagrados. Assim, se um texto normativo possui
uma interpretação preconceituosa e outra não preconceituosa, esta última deverá ser a adotada, sob pena
de afronta à Constituição.
Dessa forma, em termos de interpretação conforme, os dispositivos legais e constitucionais que
versam sobre a família, o casamento civil e a união estável só podem ser interpretados de uma forma que
não proíba o reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas, mesmo porque dito
status não é proibido pelo ordenamento jurídico de forma expressa, lembrando-se que inexistem
“proibições implícitas” em Direito (art. 5.º, II, da CF/1988). Ou seja, a expressão “o homem e a mulher”,
existente nos dispositivos legais que regulam o casamento civil e a união estável, não pode ser
interpretada de forma proibitiva do casamento civil e da união estável entre pessoas do mesmo sexo,
tendo em vista que estas são pautadas pelo mesmo amor familiar que aquelas. A única interpretação
constitucionalmente válida em termos de interpretação conforme para ditos dispositivos é aquela
segundo a qual aquela expressão se limita a regulamentar expressamente o direito de duas pessoas de
sexos diversos se casarem e manterem união estável sem que isso signifique o não reconhecimento de
tais direitos aos casais homoafetivos.
O mesmo pode ser dito quanto ao art. 226, § 3.º, da CF/1988, mesmo que não se aceite a tese da
inconstitucionalidade/invalidade de normas constitucionais originárias, para que ele seja interpretado no
sentido de que meramente normatizou a união estável heteroafetiva, sem que isso signifique que proibiu a
união estável homoafetiva. Isso porque, nesse caso, parte-se do pressuposto segundo o qual inexistiriam
conflitos efetivos entre normas constitucionais originárias entre si, mas meros conflitos aparentes
solucionáveis pelos princípios gerais de hermenêutica. Consequentemente, a única forma hermenêutica de
evitar que o “conflito aparente” entre o art. 226, § 3.º (união estável) e os arts. 5.º, caput (isonomia), 1.º,
III (dignidade humana), 3.º, IV (promoção do bem-estar de todos) e 5.º, VI (liberdade de consciência),
todos da Constituição, é por meio de uma interpretação extensiva ou de uma analogia que reconheça a
possibilidade jurídica da união estável homoafetiva.
Raciocínio idêntico, novamente, aplica-se ao art. 226, § 5.º, da CF/1988: a única forma de ele não
colidir com os citados preceitos constitucionais originários é na sua interpretação, de forma meramente
normatizante, do casamento civil heteroafetivo, sem que isso signifique a proibição do casamento civil
homoafetivo, no sentido de que ele apenas estabelece a igualdade de direitos entre o homem e a mulher
em um casamento civil heteroafetivo, o que não implica em nenhuma proibição àquele.
Note-se, por oportuno, que se trata de hipótese de interpretação conforme e não de declaração de
nulidade sem redução de texto. Isso porque a única interpretação constitucional dos dispositivos que
regulam o casamento civil e a união estável é aquela que reconheça o direito dos casais homoafetivos a
ditos regimes jurídicos – não há nenhuma outra interpretação possível que não conflite com a isonomia e
a dignidade humana (além dos princípios da promoção do bem-estar de todos e da liberdade de
consciência), razão pela qual se aplica a interpretação conforme para o caso aqui explicitado.
Assim, considerando que a união homoafetiva possui o mesmo elemento valorativamente protegido
que enseja a regulamentação da união heteroafetiva pelas leis do casamento civil e da união estável, a
saber, o amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura, que é o elemento formador da família contemporânea no que tange a casais (amor
familiar), então a interpretação conforme exige que seja aplicada a interpretação extensiva ou a
analogia, para que tais regimes jurídicos sejam disponibilizados às uniões amorosas entre pessoas do
mesmo sexo, como sucedâneo dos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade
de consciência, da promoção do bem-estar de todos.
Ressalte-se, por fim, que tal interpretação não ultrapassa o proclamado limite da “literalidade” dos
referidos textos normativos: (i) primeiramente porque a literalidade destes textos normativos realmente
se limita a normatizar aspectos das uniões heteroafetivas sem, em nenhum momento, proibir a extensão
dos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável às uniões homoafetivas; (ii) ademais, os
textos normativos (e, com mais razão, as normas jurídicas) não protegem fatos isoladamente
considerados, mas valores a eles inerentes, donde se uma situação fática não citada pelo texto normativo
possuir o mesmo elemento essencial, valorativamente protegido, que se visou regulamentação na situação
fática expressamente citada pelo mesmo, então a interpretação conforme a Constituição demandará pela
aplicação da interpretação extensiva ou da analogia para que o fato não citado ou não regulamentado
receba o mesmo tratamento jurídico daquele outro expressamente citado/regulamentado, em virtude de
ambos possuírem o mesmo elemento que ensejou a proteção normativa em questão – ao passo que a união
homoafetiva possui o mesmo elemento valorativamente protegido pelas leis do casamento civil e da
união estável, que é o amor familiar.

3.1 Não caracterização do art. 1.723 do Código Civil como norma de mera repetição do art. 226, §
3.º, da Constituição. Possibilidade de interpretação conforme. A posição do STF na ADPF 132 e
na ADI 4.277
No julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, o Supremo Tribunal Federal enfrentou questão
preliminar relativamente à possibilidade de aplicação da técnica de interpretação conforme à
Constituição no art. 1.723 do CC/2002, objeto do pedido de interpretação conforme de ditas ações, ante
a preocupação de alguns ministros (em especial, do Ministro Gilmar Mendes) sobre a possibilidade de
referido dispositivo legal se caracterizar, ou não, como norma de mera repetição do art. 226, § 3.º, da
CF/1988. Levantou-se o tema porque, se referido dispositivo legal fosse mera repetição do disposto na
Constituição Federal, ele não poderia ser objeto de interpretação conforme porque isto implicaria, por
via transversa, a aplicação de interpretação conforme a Constituição de um dispositivo da própria
Constituição Federal, o que se entendeu não ser possível.
Os ministros que se manifestaram sobre o tema entenderam que o art. 1.723 do CC/2002 não se
configura como mera repetição do art. 226, § 3.º, da CF/1988 e que, por aquele dispositivo legal estar
sendo interpretado por muitos como impeditivo do reconhecimento da união [estável] entre pessoas do
mesmo sexo, o que entenderam ser descabido por conta da interpretação sistemático-teleológica da
Constituição.
Nesse sentido, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que entende possível a aplicação de
interpretação conforme nesse caso porque o art. 1.723 do CC/2002 estava sendo interpretado por muitos
juízes e tribunais como impeditivo do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar,
razão pela qual entendeu pertinente a aplicação de interpretação conforme para afastar tal exegese das
possibilidades interpretativas do referido dispositivo legal, por (corretamente) entender que a afirmação
normativa de que é protegida a união estável entre o homem e a mulher não implica necessariamente a
ausência de proteção à união estável entre duas pessoas do mesmo sexo5. Afinal, em sua conclusão
peremptória sobre o tema: “O fato de a Constituição proteger, como já destacado pelo eminente Relator,
a união estável entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção – nem poderia ser – à união
civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo”6.
No mesmo sentido, afirmou o Ministro Peluso que entende possível o pedido por não ser referido
dispositivo legal uma norma de mera repetição da Constituição, razão pela qual entendeu possível a
aplicação de interpretação conforme ao caso7.
Nas palavras do relator, Ministro Ayres Britto: “Ante a possibilidade de interpretação em sentido
preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do CC, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se
necessária a utilização da técnica de ‘interpretação conforme à Constituição’. Isso para excluir do
dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e
duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as
mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”.
Perfeita a exegese dos Ministros sobre o tema. Com efeito, o art. 1.723 do CC/2002 tanto não é uma
norma de mera repetição do art. 226, § 3.º, da CF/1988, que tem uma redação maior e traz os requisitos
para a caracterização da união estável, a saber, os requisitos da publicidade, continuidade, durabilidade
e do intuito de constituir família, não constantes do citado dispositivo constitucional. Aliás, tanto não é
norma de mera repetição que, se fosse, o art. 226, § 3.º, da CF/1988 seria uma norma autoaplicável, mas
não foi essa a exegese que lhe atribuiu o Supremo Tribunal Federal quando analisou o tema8. Ora, a se
entender que dita norma dependia de regulamentação infraconstitucional para produzir efeitos, então não
se pode concluir que a norma do art. 1.723 do CC/2002 seria mera repetição do art. 226, § 3.º, da
CF/1988, pois se a norma constitucional dependia de regulamentação infraconstitucional para produzir
efeitos por se entender que a lei precisaria trazer os requisitos caracterizadores da união estável, então
não se pode dizer que o texto normativo legal que traz tais requisitos seria mera repetição do texto
normativo constitucional que não menciona tais requisitos. Por outro lado, mesmo que se entenda
(corretamente) que a união estável deveria produzir efeitos positivos desde a promulgação da
Constituição de 1988, ainda assim não se pode concluir que o art. 1.723 do CC/2002 seria mera
repetição do art. 226, § 3.º, da CF/1988, pois o texto normativo legal que traz requisitos caracterizadores
do texto normativo constitucional que não menciona tais requisitos não pode ser tido como mera
repetição deste último, pela óbvia constatação de que ele não menciona tais requisitos.
Nem se diga que o fato de constar a expressão entre o homem e a mulher em ambos os dispositivos
inviabilizaria a utilização de interpretação conforme no caso. Primeiro porque para um texto normativo
legal ser considerado como de mera repetição do constitucional, ambos têm que ser totalmente idênticos,
o que não é o caso. Contudo, mesmo que assim não fosse, não se pode esquecer que o pedido de
interpretação conforme a Constituição supõe necessariamente uma interpretação prévia da Constituição
para uma posterior interpretação do dispositivo legal em análise para a este atribuir uma interpretação
conforme a Constituição: logo, se o pedido das ações era para que se excluísse do art. 1.723 do
CC/2002 qualquer interpretação que impedisse o reconhecimento da união pública, contínua e duradoura
entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, então evidentemente o STF teria que interpretar o
art. 226, § 3.º, da CF/1988 para saber se sua redação eventualmente impediria a proteção estatal à
família conjugal homoafetiva. Logo, tendo corretamente decidido que a afirmação do art. 226, § 3.º, da
CF/1988, de que é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher não significa que não é
reconhecida a união estável entre pessoas do mesmo sexo, então o Tribunal evidentemente podia atribuir
interpretação conforme ao art. 1.723 do CC/2002 para dizer que ele deveria ser interpretado em
conformidade com aquele dispositivo constitucional, no sentido da norma legal não poder ser
interpretada para proibir o reconhecimento da união estável homoafetiva justamente porque a referida
norma constitucional não proíbe o reconhecimento da união estável homoafetiva ou, no mínimo, da união
homoafetiva como família conjugal com igualdade de direitos em relação à união estável heteroafetiva.
Sobre o tema, o Tribunal pertinentemente afirmou a “Competência do Supremo Tribunal Federal para
manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo de coerência, o que
passa pela eliminação de preconceito à orientação sexual da pessoa”. Ora, considerando que o princípio
instrumental da concordância prática das normas constitucionais traz a necessidade destas serem
interpretadas de forma harmônica/não contraditória e considerando a competência precípua do STF para
dar a palavra final na interpretação da Constituição, então evidentemente que o STF tem competência e
legitimidade para interpretar o art. 226, § 3.º, da CF/1988 de forma sistemática com os princípios da
igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança jurídica para dele afastar
exegese discriminatória relativamente à união homoafetiva (que não decorre de seu texto normativo)
para, ato contínuo, atribuir ao art. 1.723 do CC/2002 interpretação conforme ao art. 226, § 3.º, da
CF/1988 para dele excluir qualquer interpretação que impedisse o reconhecimento da união pública,
contínua e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, mediante as mesmas regras e
requisitos impostos à união estável heteroafetiva.
Entendo, inclusive, que o Tribunal poderia fazê-lo ainda que considerasse o art. 1.723 do CC/2002
como norma de “mera repetição” do art. 226, § 3.º, da CF/1988, pois poderia o STF, interpretando a
“norma repetida”, afirmar que ela não poderia ser interpretada desta ou daquela maneira (ou que deveria
ser interpretada unicamente de determinada maneira) para, assim, aplicar interpretação conforme a
norma que repete no sentido de que ela deve ser interpretada da mesma maneira. Logo, não há motivos
para se excluir o cabimento da interpretação conforme pelo simples fato de se tratar de “norma de mera
repetição”, ao menos no contexto citado – o que, de qualquer forma, não é o caso ora analisado, já que o
art. 1.723 do CC/2002, como visto, não constitui “mera repetição” do art. 226, § 3.º, da CF/1988, diante
da não identidade entre seus textos normativos (são parcialmente coincidentes, mas não idênticos).
Logo, não há nada a criticar na posição do STF de entender possível aplicar a técnica da
interpretação conforme ao disposto no art. 1.723 do CC/2002, tanto por não ser ele mera reprodução do
disposto do art. 226, § 3.º, da CF/1988, quanto por ser inerente à aplicação da interpretação conforme a
interpretação das normas constitucionais paradigmas para, com base nela, interpretar-se a norma legal em
questão para a ela atribuir interpretação em conformidade com a Constituição Federal.

3.1.1 Seria o caso de declaração de nulidade parcial sem redução de texto e não de interpretação
conforme? Irrelevância da discussão
Como visto no capítulo 4, a diferença entre a interpretação conforme a Constituição e a declaração
de nulidade sem redução de texto é que, na primeira, o juiz ou tribunal atribui uma única interpretação
possível ao texto normativo, ao passo que, na segunda, o juiz ou tribunal exclui uma ou mais
interpretações possíveis do texto normativo, donde, no segundo caso, podem (em tese) haver mais de uma
interpretação juridicamente válida ao texto normativo.
Pela linguagem utilizada pelo STF no julgamento da ADPF 132 e na ADI 4.277, deve-se “excluir
qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas
do mesmo sexo como entidade familiar, entendida como sinônimo perfeito de família. Reconhecimento
que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável
heteroafetiva”9, assim, pode-se indagar se o STF deveria ter aplicado a técnica da declaração de
nulidade parcial sem redução de texto em vez da técnica da interpretação conforme.
Entendo correto o uso da interpretação conforme, pois o tema discutido era saber qual, das duas
interpretações possíveis (“proibição implícita” ou ausência de proibição à união estável homoafetiva),
seria a única constitucionalmente válida. Logo, sendo a interpretação conforme a técnica válida para
atribuir, entre diversas variantes, a única interpretação constitucionalmente válida, cabível seu uso para
afirmar que o art. 1.723 do CC/2002 não pode ser interpretado de forma a impedir o reconhecimento da
união estável homoafetiva, por interpretação extensiva ou analogia.
De qualquer forma, essa discussão beira o tecnicismo da “forma pela forma”. Quem eventualmente
entender que o STF teria sido “atécnico” ao invocar a interpretação conforme em vez da nulidade parcial
sem redução de texto não pode dizer que, apenas por isso, a decisão de mérito do Tribunal tenha sido
equivocada. Seria absurdo defender que o Tribunal deveria ter deixado de conhecer a ação pelo pedido
ser de interpretação conforme e não de declaração de nulidade sem redução de texto – o formalismo
exacerbado (da “forma pela forma”) de determinada posição seria simplesmente inacreditável. No
mínimo, que se reconheça a fungibilidade entre as técnicas decisórias da interpretação conforme e da
declaração de nulidade parcial sem redução de texto para se entender que, tendo a parte requerido uma
quando seria o caso de outra, o juiz ou Tribunal conhecer do pedido e aplicar a correta. Ora, reconhecida
a fungibilidade entre ações (por exemplo, entre ADIn e ADPF), com maior acerto o reconhecimento da
fungibilidade entre pedidos tão análogos. Se reconhecida a fungibilidade entre o mais (as ações), há de
ser reconhecida a fungibilidade entre o menos (os pedidos de uso de técnicas interpretativas). Logo, nada
aqui poderia ser seriamente invocado para defender o não conhecimento da ADPF 132 e da ADI 4.277
pelo STF.

4. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Com relação às leis do casamento civil e da união estável, tem-se que a única interpretação
constitucionalmente válida dos referidos dispositivos legais e constitucionais é aquela segundo a qual a
expressão “o homem e a mulher” deles constante significa meramente a normatização das uniões
heteroafetivas, sem que isto signifique que estariam proibidos o casamento civil e a união estável entre
pessoas do mesmo sexo, tendo em vista que a discriminação decorrente de entendimento em sentido
contrário é arbitrária, pois afronta a isonomia e a dignidade humana, além dos princípios da promoção do
bem-estar de todos e da liberdade de consciência, dispositivos estes que se configuram como direitos
humanos fundamentais e normas constitucionais de eficácia plena. Trata-se, assim, de hipótese de
interpretação conforme e não de declaração de nulidade sem redução de texto ante a existência de
apenas uma interpretação constitucionalmente válida – esta que se acabou de expor.
Raciocínio idêntico aplica-se aos §§ 3.º e 5.º do art. 226 da CF/1988: a única forma de eles não
colidirem com os citados preceitos constitucionais originários é na sua interpretação de forma meramente
normatizadora das uniões heteroafetivas, sem que isto signifique que estariam proibidos o casamento
civil e a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Isso porque, considerando que a doutrina
majoritária, apesar de não aceitar a tese da inconstitucionalidade/invalidade de normas constitucionais
originárias, afirma igualmente que não haveria conflitos efetivos entre estas, mas meros “conflitos
aparentes” solucionáveis pelos princípios gerais de hermenêutica, donde a única forma de se evitar que o
“conflito aparente” entre os dispositivos supracitados se transforme em conflito efetivo, é por meio de
uma interpretação extensiva ou analogia que possibilite o casamento civil e a união estável a pessoas do
mesmo sexo, pois a discriminação em sentido contrário é arbitrária, irracional, conflitante com o núcleo
essencial da isonomia e da dignidade humana (além dos princípios da promoção do bem-estar de todos e
da liberdade de consciência).
Dessa forma, considerando que a união homoafetiva possui o mesmo elemento valorativamente
protegido que enseja a regulamentação da união heteroafetiva pelas leis do casamento civil e da união
estável, a saber: o amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da família contemporânea no que tange às
uniões amorosas (casais), então, a interpretação conforme exige que seja aplicada a interpretação
extensiva ou a analogia para que tais regimes jurídicos sejam disponibilizados às uniões amorosas entre
pessoas do mesmo sexo, como sucedâneo dos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana,
da liberdade de consciência e da promoção do bem-estar de todos.
Ressalte-se, por fim, que tal interpretação não ultrapassa o proclamado limite da “literalidade” dos
referidos textos normativos: (i) primeiramente, porque a literalidade destes textos normativos realmente
se limita a normatizar aspectos das uniões heteroafetivas sem, em nenhum momento, proibir a extensão
dos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável às uniões homoafetivas; (ii) ademais, os
textos normativos (e, com mais razão, as normas jurídicas) não protegem fatos isoladamente
considerados, mas valores a eles inerentes, donde se uma situação fática não citada pelo texto normativo
possuir o mesmo elemento essencial, valorativamente protegido, que se visou regulamentação na situação
fática expressamente citada pelo mesmo, então a interpretação conforme a Constituição demandará pela
aplicação da interpretação extensiva ou da analogia (conforme o caso) para que o fato não citado ou não
regulamentado receba o mesmo tratamento jurídico daquele outro expressamente citado/regulamentado,
em virtude de ambos possuírem o mesmo elemento que ensejou a proteção normativa em questão – ao
passo que a união homoafetiva possui o mesmo elemento valorativamente protegido pelas leis do
casamento civil e da união estável, que é o amor familiar.
Consoante afirmado pelo STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, possível a aplicação de
interpretação conforme para permitir a união estável homoafetiva porque o art. 1.723 do CC/2002
estava sendo interpretado por muitos juízes e tribunais como impeditivo do reconhecimento da união
homoafetiva como entidade familiar, razão pela qual entendeu pertinente a aplicação de interpretação
conforme para afastar tal exegese das possibilidades interpretativas do referido dispositivo legal, por
(corretamente) entender que a afirmação normativa do art. 226, § 3.º, da CF/1988, de que é protegida a
união estável entre o homem e a mulher, não implica necessariamente na ausência de proteção à união
estável entre duas pessoas do mesmo sexo.
Ademais, entendo correto o uso da interpretação conforme em detrimento da declaração de nulidade
parcial sem redução de texto, pois o tema discutido era saber qual, das duas interpretações possíveis
(“proibição implícita” ou ausência de proibição à união estável homoafetiva), seria a única
constitucionalmente válida. Logo, sendo a interpretação conforme a técnica válida para atribuir, entre
diversas variantes, a única interpretação constitucionalmente válida, cabível seu uso para afirmar que o
art. 1.723 do CC/2002 não pode ser interpretado de forma a impedir o reconhecimento da união estável
homoafetiva, por interpretação extensiva ou analogia. De qualquer forma, para quem entender correto o
cabimento da declaração de nulidade parcial sem redução de texto, considerando que seria absurdo
defender que o Tribunal deveria ter deixado de conhecer a ação pelo pedido ser de interpretação
conforme e não de declaração de nulidade sem redução de texto ante o formalismo exacerbado (da
“forma pela forma”) de uma tal posição (simplesmente inacreditável), então seria o caso de
reconhecimento da fungibilidade entre as técnicas decisórias da interpretação conforme e da declaração
de nulidade parcial sem redução de texto para se entender que, tendo a parte requerido uma quando seria
o caso de outra, o juiz ou Tribunal conhecer do pedido e aplicar a correta.
1 APPIO, Eduardo Fernando. Interpretação Conforme a Constituição: Instrumentos de Tutela Jurisdicional dos Direitos
Fundamentais, 1ª Edição (ano 2002), 3ª tiragem, Curitiba: Juruá Editora, 2004, p. 17.
2 Cf. voto do relator, Ministro Ayres Britto, p. 32 do acórdão.
3 Isso porque toda discriminação que não seja fundamentada em uma motivação lógico-racional é preconceituosa.
4 Quanto ao valor hermenêutico do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (no que se estende esse
entendimento aos demais), afirma Viviane Girardi, citando Ingo Wolfgag Sarlet: “(...) ainda que considerada a mudança do
eixo central da codificação para a ordem constitucional e a proliferação de estatutos normativos específicos, o sistema
jurídico guarda sua unidade, exigindo diante dessa aparente fragmentação uma interpretação coerente com os valores
atuais que informam e possibilitam a leitura sistematizada da ordem legal positivada. E, nesse aspecto, a normativa
constitucional é imperativa. (...)Poder-se-ia, então, afirmar que as decisões jurisprudenciais no que concerne ao
reconhecimento e respeito à homossexualidade estariam concretizando a base antropológica da Carta Constitucional, que
tem sua raiz no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e sua irradiação na efetivação e concretude dos
direitos e garantias fundamentais, os quais, segundo Ingo Wolfgang Sarlet ‘(...) constituem parâmetro hermenêutico e
valores superiores de toda a ordem constitucional e jurídica (...)’. Significa, em última análise, o reconhecimento da
singularidade do potencial humano, na medida em que todas as pessoas merecem o tratamento isonômico porque ‘são
iguais em dignidade’”. (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção
por Homossexuais, 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 38 e 51).
5 O Ministro Gilmar Mendes foi o que mais se alongou na análise do tema. Em suas palavras: “Desde o começo deste
julgamento, eu fiquei preocupado com essa questão e cheguei até a comentar com o Ministro Relator Ayres Britto, tendo em
vista, como amplamente confirmado, que o texto do Código Civil reproduz, em linhas básicas, aquilo que consta do texto
constitucional. E, de alguma forma, a meu ver, eu cheguei a pensar que isso era um tipo de construto meramente
intelectual-processual, que levava os autores a propor a ação, uma vez que o texto, em princípio, reproduzindo a
Constituição, não comportaria esse modelo de interpretação conforme. Ele não se destinava a disciplinar outra instituição
que não fosse a união estável entre homem e mulher, na linha do que estava no texto constitucional. Daí não ter polissemia,
daí não ter outro entendimento que não aquele constante do texto constitucional. Talvez o único argumento que pudesse
justificar a tese da aplicação ao caso da técnica da interpretação conforme à Constituição seria a invocação daquela
previsão normativa de união estável entre homem e mulher como óbice ao reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo, como uma proibição decorrente daquele dispositivo. E, de fato, é com base nesse argumento que entendo
pertinente o pleito trazido nas ações diretas de inconstitucionalidade. É preciso, portanto, que deixemos essa questão muito
clara, porque ela terá implicações neste e em outros casos quanto à utilização e, eventualmente, à manipulação da
interpretação conforme, que se trata inclusive de uma interpretação conforme com muita peculiaridade, porque o texto é
quase um decalque da norma constitucional e, portanto, não há nenhuma dúvida quanto àquilo que o legislador quis dizer,
na linha daquilo que tinha positivado o constituinte. E o texto, em si mesmo, nessas linhas, não é excludente – pelo menos
essa foi a minha primeira pré-compreensão – da possibilidade de se reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo
sexo, não com base no texto legal (art. 1.723 do Código Civil), nem na norma constitucional (art. 226, §3), mas com suporte
em outros princípios constitucionais. Todavia eu não diria que isso decorre do texto legal nem que está nele albergada
alguma proibição, mas tão somente – por isso que me parece e pelo menos esse seria o meu juízo neste momento – que o
único argumento forte a justificar aqui a interpretação conforme à Constituição é o fato de o dispositivo do Código Civil estar
sendo invocado para impossibilitar o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo. Do contrário, nós
estaríamos a fazer um tipo de interpretação conforme muito extravagante. É, dessa forma, portanto, que fundamento neste
julgamento a possibilidade de utilização da interpretação conforme à Constituição. Colhe-se dos elementos dos autos e das
sustentações orais dos amici curiae, bem como do conteúdo do voto do Eminente Ministro Relator Ayres Britto e dos votos
daqueles que o sucederam, que o argumento determinante da ação é o de que essa norma legal tem servido para
fundamentar decisões no sentido negativo à pretensão formulada em juízo, com o objetivo de se reconhecer a formalização
da união entre pessoas do mesmo sexo. Assim, o entendimento que autoriza a interpretação conforme à Constituição é
que o dispositivo impugnado está sendo aplicado de forma generalizada para a proibição do reconhecimento da união entre
pessoas do mesmo sexo. Tanto é que, no pedido do Governador do Estado do Rio de Janeiro, formulou-se a impugnação
das próprias decisões judiciais que assim teriam decidido” (voto do Ministro Gilmar Mendes, pp. 15-17. Grifos nossos).
6 Voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 44.
7 Segundo o Ministro Peluso: “Começo por dizer que teria alguma dificuldade de ordem teórica para conhecer das demandas
como ações diretas de inconstitucionalidade, não fosse o fato de que o disposto no artigo 1.723 do Código Civil não é
reprodução estrita do artigo 226, § 3.º, da Constituição Federal. Porque, se o fosse, obstáculo teórico e, a meu ver,
constitucional, estaria em que não seria possível cogitar-se de interpretação conforme à Constituição de norma
infraconstitucional que se limitaria, nessa hipótese, a reproduzir texto constitucional. Estaríamos, sim, diante de um caso de
pura interpretação constitucional, que não poderia ser objeto de ação de inconstitucionalidade sob pretexto de que teríamos
que interpretar a própria Constituição de acordo com a Constituição. Mas a diversidade de redação das normas permite, e
acho que isto é, de modo muito consistente, a sua racionalidade, a decisão da Corte de conhecer das demandas,
exatamente com base na não coincidência semântica entre as duas normas, de tal modo que é possível enxergar o
disposto no artigo 1723 como preceito susceptível de revisão à luz do artigo 226, § 3.º, e de outras normas constitucionais,
que constam, aliás, como causa de pedir de ambas as demandas” (voto do Ministro Peluso, p. 1. Grifo nosso).
8 STF, RE 158.700, DJ de 22/02/2002, segundo o qual “Não seria, entretanto, possível, desde logo, extrair da regra do art. 226
e seu § 3.º, da Constituição, consequência no sentido de reconhecer-se, desde logo, sem disciplina legislativa específica,
determinação de comunhão de bens entre homem e mulher, em união estável, de tal forma que a morte de um deles
importe o recolhimento automático de meação pelo sobrevivente” No mesmo sentido: STF, MS 21.449, DJ de 17/11/05, que
chega a afirmar que “a norma do § 3.º do art. 226 da Constituição de 1988, que, além de haver entrado em vigor após o
óbito do instituidor, coloca, em plano inferior ao do casamento, a chamada união estável, tanto que deve a lei facilitar a
conversão desta naquele”, em posição superada pelo julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, que afirmou a igualdade das
entidades familiares constitucionalmente previstas (logo, a igualdade da união estável relativamente ao casamento civil, que
não é “superior” àquela (vide capítulo 07, item 1). Seguindo a classificação de José Afonso da Silva, o Supremo entendeu
que dito dispositivo seria uma norma de eficácia limitada, dependente de regulamentação legislativa para produzir efeitos
(embora seja um erro dizer que a norma não teria “entrado em vigor” antes de tal regulamentação – era estava em vigor,
mas, segundo tal entendimento, não seria passível de produzir efeitos positivos, apenas negativos – não garantia direitos a
uniões de fato pela ausência de regulamentação, mas tornaria inconstitucionais leis que viessem a negar direitos à união
estável). Embora criticável (pois poderia entende​-lo como norma de eficácia contida, já que havia legislação previdenciária
prévia que garantia direitos à concubina quando a união tivesse pelo menos cinco anos de duração, o que poderia ser
usado como parâmetro suplementar à Súmula 380 do STF referente à comprovação da sociedade de fato entre os
concubinos para a divisão dos bens comprovadamente adquiridos na constância da mesma), essa foi a posição do STF
que prevaleceu até 1994, quando promulgada a primeira das leis de união estável. Assim, somente com a promulgação da
Lei 8.971/1994, a primeira a regulamentar o art. 226, § 3.º, da CF/88, donde, devido a tal posicionamento do STF, foi
somente em 1994 que a união estável passou a ser efetivamente protegida pelo Estado. Posteriormente, foi promulgada a
Lei 9.278/1996, que também regulamentou a união estável e, portanto, derrogou a Lei 8.971/1994 naquilo em que fossem
incompatíveis. Com a promulgação do Código Civil de 2002, que entrou em vigor em 11/01/03, surgiu o entendimento de
que o Código Civil revogou tacitamente as referidas leis de união estável por tratar de forma específica do tema – foi a
posição esposada pelo Ministro Celso de Mello na ADIn 3.300, em sua decisão monocrática que julgou extinta referida ação
por ter atacado o art. 1.º da Lei 9.278/1996, que o Ministro entendeu revogado pelo art. 1.723 do CC/02. O tema, contudo,
não é pacífico – Silvio de Salvo Venosa entende que as Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 continuam em vigor, juntamente com
os dispositivos do Código Civil que também regulamentam a união estável, naquilo em que aquelas não forem
incompatíveis com a regulamentação disposta neste último, discussão esta que, todavia, supera os limites deste trabalho
(embora valha anotar que concordamos com Venosa sobre o tema).
9 Cf. voto do relator, Ministro Ayres Britto, p. 32 do acórdão.
Capítulo 10

O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E OS DIREITOS DOS


CASAIS HOMOAFETIVOS

1. DA AUSÊNCIA DE RELAÇÃO RACIONAL ENTRE A FINALIDADE DE SE PROTEGER A


PROCRIAÇÃO COM A PROIBIÇÃO DO CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO E A
DISCRIMINAÇÃO (SUBPRINCÍPIOS DA ADEQUAÇÃO E DA NECESSIDADE)
Como se verá em capítulo posterior, no qual demonstro o completo descabimento das argumentações
trazidas pela doutrina em geral para negar a extensão do casamento civil e da união estável a casais
homoafetivos, em verdade se tem apenas uma única tentativa de argumentação material, a saber, a questão
da procriação, no sentido de que, por mais que o amor existente nas uniões homoafetivas seja idêntico ao
das uniões heteroafetivas, a ideia de família jamais poderia perder de vista a noção de procriação, pois,
do contrário, a sociedade humana chegaria à sua extinção. Ou seja, segundo os opositores da tese aqui
perfilhada, a finalidade da vedação ao casamento civil e à união estável entre casais homoafetivos seria
a proteção da procriação.
Contudo, mesmo essa argumentação é completamente arbitrária, não sendo pautada pela lógica e
pela racionalidade. Em primeiro lugar, é ilógica essa argumentação, tendo em vista que não se proíbe o
casamento civil de heterossexuais estéreis, que não possuem capacidade procriativa, nem mesmo
potencial. Ou seja, argumenta-se, de um lado, que casais homoafetivos não poderiam se casar em virtude
de sua incapacidade de ter prole biológica ao mesmo tempo em que não se levanta nenhum óbice ao
casamento civil a casais heteroafetivos estéreis, que são igualmente incapazes de procriar... Admitir essa
argumentação implicaria a aceitação de se tratar desigualmente os iguais, tendo em vista que o critério de
discriminação que seus defensores dizem levarem conta é a capacidade procriativa, e tanto casais
homoafetivos quanto casais heteroafetivos estéreis não possuem capacidade procriativa, sendo
absolutamente iguais neste quesito.
A ausência de lógica desta argumentação também pode ser aferida pelo fato de que não constitui
causa para anulação do casamento civil heteroafetivo a infertilidade do cônjuge, ou ainda a sua recusa em
manter relações sexuais sem preservativos ou mesmo a sua recusa em manter qualquer tipo de relações
sexuais. Essas questões podem eventualmente ocasionar o divórcio injustificado (sem culpa), mas jamais
anulação do casamento. Talvez pudesse ser defendido que dito casamento poderia ser anulado por “erro
quanto à pessoa” do outro cônjuge, caso o outro tivesse se casado com o único intuito de procriar.
Contudo, esta seria uma hipótese excepcional, que teria que ser fartamente comprovada nos autos por
meio de testemunhas e/ou ampla dilação probatória para que pudesse ser defendida.
Isso será demonstrado em capítulo posterior. A questão, aqui, refere-se ao fato de que, ainda que se
admitisse que a proibição do casamento civil homoafetivo seria pautada unicamente na intenção de se
proteger a procriação, com o intuito de proteger os relacionamentos amorosos dos quais possam nascer
descendentes, mesmo assim verificar-se-ia a inconstitucionalidade dessa discriminação, desta vez por
afronta ao princípio da proporcionalidade, especificamente pelo subprincípio da adequação.
Afinal, o não reconhecimento do casamento civil homoafetivo não trará nenhum benefício para as
uniões heteroafetivas – a possibilidade ou impossibilidade do mesmo é absolutamente irrelevante a
estas. É absurdo pensar que a mera regulamentação do casamento civil homoafetivo faria que menos
pessoas se engajassem em relacionamentos heteroafetivos e, consequentemente, houvesse algum risco à
perpetuação da espécie humana (que é a conclusão a que se chega com o argumento ad terrorem ora
rebatido) – reitere-se: é completamente absurda essa ideia, totalmente irracional, ilógica e inaceitável
por quem tenha um mínimo de bom-senso e conhecimento acerca da orientação sexual humana, pois esta
não decorre de uma “escolha” do indivíduo: as pessoas simplesmente se descobrem homo, hétero ou
bissexuais, inexistindo “opção” nessa seara. Assim, a regulamentação do casamento civil homoafetivo
não traria nenhum risco à espécie humana, sendo completamente irracionais argumentações em sentido
contrário, especialmente porque ditos “argumentos” não são acompanhados de provas, sendo baseados
em meros subjetivismos daqueles que o defendem. Mas, por mero amor ao debate, ainda que fosse
considerada esta absurda hipótese, atualmente existem técnicas de fertilização artificial que poderiam
perfeitamente superar os temores desse absurdo argumento ad terrorem.
Por outro lado, as pessoas que defendem essa pseudoargumentação aparentemente menosprezam a
força da heterossexualidade, pois claramente partem do pressuposto de que a mera regulamentação do
casamento civil homoafetivo faria que todas as pessoas, ou a sua maioria, passassem a manter
exclusivamente relacionamentos homoafetivos... Como dito, essa hipótese é absurda, não merecendo
outras considerações, sendo ela ainda inacreditável justamente pelo absurdo que propugna.
Em outras palavras, para fins do princípio da proporcionalidade, é absolutamente inadequada a
medida utilizada (não reconhecimento do casamento civil homoafetivo) com a finalidade pretendida
(defesa da procriação), ante a inutilidade daquela medida para alcançar essa pretensa finalidade,
restando, portanto, afrontado o subprincípio da adequação.
Nesse sentido, veja-se a decisão da Suprema Corte de Ontário (Canadá)1, ao julgar inconstitucional
o não reconhecimento do casamento civil homoafetivo:

(a) Relação racional


(248) Admitindo que parte do que constitua o propósito do casamento seja a criação de
apoio institucional a relacionamentos adultos que permita a possibilidade da procriação e da
educação infantil – ‘a restrição contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a meu ver, não
tem uma relação racional com este objetivo’.
(249) Casais formados por pessoas do mesmo sexo têm e criam crianças como resultado de
uma variedade de arranjos reprodutivos e parentais, nenhum dos quais seja único de parceiros do
mesmo sexo. Tanto casais formados por pessoas do mesmo sexo quanto heterossexuais criam,
adotam e concebem crianças através de reprodução assistida e disposições testamentárias, formando
combinações familiares com crianças de prévios relacionamentos. O fato de que muitos casais
heterossexuais também concebem crianças através de sexo heterossexual não é, a meu ver, uma
base racional para a distinção entre todos os heterossexuais e os casais formados por pessoas do
mesmo sexo pela concessão apenas àqueles de acesso aos amparos institucionais do casamento
[M. v. H. (…)].
(250) Eu acato o pedido e considero que a restrição contra o casamento entre pessoas do
mesmo sexo falha no teste da relação racional porque ela tanto:
– é muito inclusiva quando permite que heterossexuais inférteis se casem; e
– é pouco inclusiva ao negar aos pais do mesmo sexo e pretensos pais o direito ao
casamento [ibidem].

Ademais, a inadequação da medida a torna, evidentemente, desnecessária, em afronta ao


subprincípio da necessidade. Ou seja, considerando que o não reconhecimento do casamento civil
homoafetivo não trará nenhum benefício aos relacionamentos heteroafetivos férteis, então obviamente
existem outras medidas menos gravosas aos direitos dos casais homoafetivos do que o não
reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil ou da união estável entre pessoas do
mesmo sexo. Qualquer outra medida seria menos gravosa e seria muito mais adequada para que se atinja
o propagado objetivo de estímulo aos relacionamentos dos quais possam advir filhos biológicos, tendo
em vista que o não reconhecimento do casamento civil homoafetivo não ajudará em nada na busca de dito
objetivo, razão pela qual resta evidente que o subprincípio da necessidade resta igualmente violado pela
proibição do casamento civil homoafetivo, donde inconstitucional tal medida restritiva também por esse
fundamento.
Essa é uma constatação objetiva, que não precisa de maiores elucubrações ou constatações
empírico-probantes para ser aferida. Assim, plenamente cabível o reconhecimento desta
inconstitucionalidade por afronta aos subprincípios da adequação e da necessidade.
Aponte-se, por oportuno, que mesmo a aprovação do Projeto de Lei 1.151/1995, cujo substitutivo
visa instituir a Parceria Civil Registrada entre pessoas do mesmo sexo, não resolve nem a questão da
isonomia (porque concede menos direitos que o casamento civil) nem a da dignidade humana (pois as
“parcerias civis” ou “uniões civis” paralelas ao casamento civil inegavelmente seriam vistas como
menos dignas que os “casamentos civis”), razão pela qual o reconhecimento de tais direitos aos casais
homoafetivos é medida adequada e necessária a atingir o fim pretendido.

2. DA ADEQUAÇÃO E DA NECESSIDADE DO RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE


JURÍDICA DO CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO PARA O RESGUARDO DA
ISONOMIA E DA DIGNIDADE HUMANA DOS CASAIS HOMOAFETIVOS
Demonstrou-se acima a absoluta inadequação e desnecessidade do não reconhecimento do
casamento civil homoafetivo para que se atinja o propagado objetivo que se diz que se visa proteger, a
saber, a procriação. Neste subtópico, por sua vez, restará demonstrado que o reconhecimento do direito
ao casamento civil e à união estável aos casais homoafetivos é medida adequada e necessária para
resguardar a isonomia e a dignidade humana destes – que é o objetivo deste trabalho.
Em verdade, isso já foi demonstrado nos capítulos anteriores. Ou seja, no que tange ao princípio da
igualdade, considerando que o casamento civil é o único regime jurídico que confere todos os benefícios
do Direito das Famílias às uniões amorosas, a isonomia só será respeitada, ou seja, os casais
homoafetivos só terão os mesmos direitos conferidos aos casais heteroafetivos caso seja reconhecido o
direito destes ao casamento civil. Da mesma forma, aqueles pares homoafetivos que não desejem se
casar só terão os mesmos direitos conferidos aos pares heteroafetivos que também não desejam se casar
caso seja reconhecida a sua união estável.
Por outro lado, com relação ao princípio da dignidade da pessoa humana, considerando o arquétipo
social existente em torno do casamento civil, que faz as pessoas em geral acreditarem que só serão
verdadeiramente felizes ao se casarem, do que decorre que a sociedade em geral considera que as uniões
matrimonializadas se encontram em grau de superior dignidade do que aquelas não matrimonializadas, a
única maneira de não afrontar a dignidade humana dos casais homoafetivos é pelo reconhecimento de seu
direito ao casamento civil.
Quanto à união estável, é indubitável que o status de “união estável” é tido como muito mais digno
do que o status de “sociedade de fato” atualmente atribuído às uniões homoafetivas, que recebem o
tratamento das uniões concubinárias. Ora, enquanto a união estável é tratada pelo Direito das Famílias, a
“sociedade de fato” é regida pelo Direito das Obrigações, justamente porque nesta se desconsidera o fato
relevantíssimo de que se trata de uma união amorosa para considerar o par como uma “sociedade
empresarial de fato”, que precisa ser dissolvida judicialmente para se apurar o patrimônio de cada um.
Assim, a única forma de resguardar a dignidade humana dos pares homoafetivos que não desejem se
casar, garantindo-lhes a mesma dignidade conferida aos pares heteroafetivos que também não desejem se
casar, é por meio do reconhecimento da união estável homoafetiva.
Inexiste outra medida apta a gerar tais resultados. Somente o reconhecimento do casamento civil e da
união estável entre casais homoafetivos é capaz de chegar a tal resultado.
Dessa forma, o reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil e da união estável entre
pessoas do mesmo sexo revela-se como medida adequada e necessária para resguardar os direitos
materiais (isonomia) e imateriais (dignidade humana) das uniões homoafetivas, sendo dito
reconhecimento coerente com os subprincípios da adequação e da necessidade, oriundos do princípio da
proporcionalidade.

3. DA AUSÊNCIA DE DIREITO DE HETEROSSEXUAIS E CASAIS HETEROAFETIVOS


PREJUDICADO PELA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO CASAMENTO CIVIL E DA
UNIÃO ESTÁVEL ENTRE CASAIS HOMOAFETIVOS – SUBPRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO. STF, ADPF 132 E ADI 4.277
Como demonstrado em capítulo anterior, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito
determina que, sendo a medida perseguida adequada e necessária, deve ser feita uma ponderação entre o
bem que se visa proteger com dita medida e aquele que é por ela atingido ou sacrificado, de forma a
harmonizar os interesses constitucionalmente consagrados, se possível, ou estabelecer uma hierarquia
entre eles no caso concreto, o que se faz com vistas a proferir a decisão mais justa possível em casos de
tensão entre direitos, no sentido de que o que se ganha com a restrição ou sacrifício deve ser mais
relevante do que o que se perde.
Nessa linha, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito só poderia ser utilizado para
proibir o casamento civil homoafetivo caso houvesse algum direito dos casais heteroafetivos em conflito
com o direito dos casais homoafetivos a se casarem civilmente para que fosse feita uma ponderação entre
os mesmos e se concluísse que o direito daqueles seria mais relevante que o direito destes. Contudo,
inexiste qualquer direito dos casais heteroafetivos em conflito com o direito dos casais homoafetivos
de consagrarem suas uniões amorosas pelo casamento civil. Afinal, o não reconhecimento do
casamento civil homoafetivo não traz nenhum prejuízo aos casais heteroafetivos, donde inexiste
conflito de direitos no caso aqui discutido; assim, não há que se falar em ponderação para justificar o
não reconhecimento do casamento civil e da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Nesse sentido, verifica-se que inexiste direito de heterossexuais e de casais heteroafetivos
prejudicado pela possibilidade jurídica do casamento civil e da união estável entre casais homoafetivos.
Afinal, o fato de estes serem reconhecidos não impedirá que heterossexuais continuem se casando
heteroafetivamente e não trará nenhum prejuízo ao que se entende por casamento civil, tendo em vista
que os casais homoafetivos que pretendem se casar intencionam exatamente o mesmo que os casais
heteroafetivos: uma união baseada na fidelidade e na comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, ou seja, pautada pelo amor familiar.
Nesse sentido, a decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, que destacou a
ausência de prejuízos a heterossexuais e casais heteroafetivos pelo simples reconhecimento do direito de
homossexuais e casais homoafetivos terem suas uniões conjugais reconhecidas como entidades familiares
(como famílias conjugais).
Nas palavras do relator Ministro Ayres Britto: “não assiste às pessoas heteroafetivas o direito de se
contrapor à sua equivalência jurídica perante os sujeitos homoafetivos”, mas, ao contrário, assiste “o
direito dos homoafetivos a tratamento isonômico com os heteroafetivos”2, pois “não se pode alegar que
os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham”, donde, dada a ausência de proibição normativa à
união estável homoafetiva, é de se reconhecer o regime jurídico da união estável a casais homoafetivos,
porque “não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de
outrem”3.
No mesmo sentido, o voto do Ministro Celso de Mello, ao afirmar que esta decisão “não é nem pode
ser qualificada como decisão proferida contra alguém”4.
Ou seja, nas peremptórias palavras do Ministro Luiz Fux: “uma união estável homoafetiva, por si só,
não tem o condão de lesar a ninguém, pelo que não se justifica qualquer restrição ou, como é ainda pior, a
limitação velada, disfarçada de indiferença”5 [o mesmo valendo, acrescento, para o casamento civil].
Prevaleceu, assim, tese esposada na ADI 4.277, expressamente referendado pelo voto do Ministro
Celso de Mello, segundo a qual “não há qualquer interesse legítimo que justifique o não reconhecimento
da união entre pessoas do mesmo sexo. O reconhecimento em questão não afeta qualquer direito de
terceiros ou bem jurídico que mereça proteção constitucional. A sua recusa consubstancia medida
autoritária, que busca impor uma concepção moral tradicionalista e excludente a quem não a professa,
vitimizando os integrantes de uma minoria que sofre com o preconceito social e a intolerância. Daí a
grave ofensa ao princípio constitucional de proteção da liberdade”6.
Ademais, as convicções religiosas de quem quer que seja não podem servir de justificativa em
sentido contrário, tendo em vista que: (a) o que se pleiteia é o casamento civil, não ficando nenhuma
religião obrigada a abençoar as uniões homoafetivas pelo seu matrimônio religioso; (b) existem muitas
pessoas que entendem que Deus não condena a homossexualidade, pessoas estas que também merecem ter
sua liberdade de religião e crença respeitada; e, especialmente, (c) a liberdade religiosa é um direito
criado para que as minorias religiosas sejam respeitadas e não para que a vontade da maioria religiosa
possa ser arbitrariamente imposta, lembrando-se aqui a lição de Canotilho e de Vital Moreira no sentido
de que a liberdade religiosa significa o direito de não ter sua vida influenciada pela religião alheia7; (d)
o princípio do Estado Laico veda que argumentos religiosos influenciem nos rumos políticos e jurídicos
da nação.
Assim, fica evidente que, em verdade, não existe conflito de direitos em discussão: temos apenas
que o direito de os casais homoafetivos serem tratados de forma isonômica e igualmente digna
desrespeitado pelo não reconhecimento do casamento ‘civil’ e da união estável entre eles (visto que
tais direitos são conferidos aos casais heteroafetivos), em flagrante desrespeito ao Estado Laico (ante o
inequívoco fundo religioso subjacente a tal discriminação) e, ainda, em posição que acaba criando
diferenças arbitrárias e preferências de brasileiros entre si, o que resulta em afronta direta ao já citado
art. 19, III, da CF/19888.
Dessa forma, não há que se invocar o princípio da proporcionalidade para justificar o atual
preconceito jurídico existente contra os casais homoafetivos, tendo em vista que nem sequer há direito
dos casais heteroafetivos em conflito com o direito dos casais homoafetivos que justifique tal posição.
Ao contrário, é a posição arbitrariamente discriminatória que não reconhece tais direitos que afronta
o princípio da proporcionalidade, dada a completa inexistência de correlação lógico-racional que
justifique a concessão de menos direitos aos casais homoafetivos do que aos casais heteroafetivos, o
que denota a completa irrazoabilidade de tal discriminação negativa.
Por outro lado, é de se lembrar que o casamento civil é o único regime jurídico que confere a uma
união amorosa a totalidade da proteção e segurança jurídica do Direito das Famílias, assim como a união
estável é o único regime jurídico que garante o Direito das Famílias às uniões amorosas não
matrimonializadas. Assim, a isonomia exige o reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento
civil e da união estável entre pessoas do mesmo sexo pela interpretação extensiva ou pela analogia. Da
mesma forma, a dignidade humana também exige o reconhecimento do casamento civil homoafetivo
devido ao arquétipo social existente em torno do mesmo, ou seja, pelo fato de as pessoas em geral
acreditarem que é somente por meio dele que se atingirá a verdadeira felicidade e pelo fato de ele ser
visto como legitimação máxima de uma união amorosa, donde mesmo uma lei de união civil seria
insuficiente para garantir a proteção da dignidade humana dos casais homoafetivos. Quanto à união
estável, considerando que garante muito mais dignidade do que a teoria das “sociedades de fato”
atualmente aplicada pela maioria da jurisprudência às uniões homoafetivas, o princípio da dignidade da
pessoa humana também exige o reconhecimento desse regime jurídico aos casais homoafetivos.
Veja-se, nesse sentido, a decisão da Suprema Corte de Ontário (Canadá),9 que declarou a
inconstitucionalidade do não reconhecimento do casamento civil homoafetivo:

(c) Ponderação entre os efeitos danosos e benéficos


(257) Sob este título esta corte deve decidir “se as consequências da violação são tamanhas
quando comparadas aos benefícios que pretende atingir” [Thompson Newspaper (...)]. Nesse
sentido, os benefícios que ela pretende atingir, afirma o Estado, incluem a assertiva de que as
preocupações sociais relativas ao casamento – como instituição fundante na sociedade moderna –
são extremamente complexas. Afirma que quando os benefícios são comparados contra a exclusão
de gays e lésbicas daquela instituição, as consequências aos mesmos não são muito grandes.
(258) A essência das alegações do Estado no tema dos efeitos danosos a gays e lésbicas é
centrada na noção de que a marginalização e a desvantagem histórica sofrida pelos mesmos não
decorre da sua incapacidade de se casar. Ao contrário, afirma, o preconceito que eles têm sofrido
não lhes tem sido direcionado por não poderem se casar – mas por causa das atitudes sociais ante a
homossexualidade.
(259) O Estado afirma que os benefícios historicamente negados a gays e lésbicas como
resultado da sua exclusão do casamento agora lhes estão disponíveis pela legislação federal e em
algumas províncias. Em virtude da concessão dos benefícios materiais do casamento, o Estado
contende que o argumento dos Requerentes quanto aos efeitos danosos da exclusão é reduzido ao
mero reconhecimento que atualmente é conferido aos casais formados por pessoas de sexos
diversos.
(260) Como já apontado em diversas ocasiões nessas razões, aquela proposição é
simplesmente errada. Para repetir, esse não é um caso que envolve meramente nomenclatura, e
ainda que se pudesse dizer que se trata de “mero reconhecimento” – o reconhecimento em
questão que está sendo perseguido é por igualdade. ‘A essência do que o Estado afirma já existir,
e que ele diz que garante reconhecimento legislativo às uniões de gays e lésbicas – realmente
implica nada mais do que tolerância – não se trata de total aceitação legislativa’.
(261) No caso em tela, assim como no caso Vriend, “os efeitos danosos da exclusão... são
numerosos e claros” [Vriend v. Alberta]. A restrição contra o casamento entre pessoas do mesmo
sexo é uma ofensa à dignidade de lésbicas e gays porque ela limita o alcance das opções de
relacionamentos disponíveis a eles. ‘O resultado é que lhes é negada a autonomia para decidir se
querem se casar’. Isso, ainda, implica a sinistra mensagem de que eles não seriam merecedores
do casamento. Para aqueles casais formados por pessoas do mesmo sexo que desejam se casar, a
restrição impugnada representa uma rejeição a suas aspirações pessoais e a negativa de seus
sonhos.
(262) ‘Não há nenhuma evidência significativa que aponte para qualquer benefício legítimo
oriundo da negativa de direitos’. Nesse caso, um impedimento absoluto à liberdade de casais
formados por pessoas do mesmo sexo se casarem não constitui o meio ‘menos intrusivo’ pelo qual
o Estado poderia atingir o proclamado objetivo de prover apoio institucional aos casais que têm
e criam crianças. Ao contrário, esse objetivo é facilmente atingível sem a negativa da liberdade
de casamento aos casais formados por pessoas do mesmo sexo.
(263) Ademais, não há nenhum mérito no argumento de que os direitos e interesses de
heterossexuais seria afetado pela concessão da liberdade de se casar aos casais formados por
pessoas do mesmo sexo. Ao contrário da afirmação da Coalizão Interfé, ‘não se pode concluir que
a liberdade de religião seria ameaçada ou prejudicada pela sanção legal ao casamento entre pessoas
do mesmo sexo. Nenhuma instituição religiosa seria compelida a solenizar um casamento entre
pessoas do mesmo sexo contra seus desejos e todas as pessoas religiosas – de qualquer fé –
continuariam a desfrutar da liberdade de manter e adotar suas crenças. Outrossim, não há nenhuma
necessidade de quaisquer violações aos direitos igualitários de lésbicas e gays que decorram da
restrição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo’.
(264) Neste caso, estou convencido de que, mesmo que a exclusão dos casais formados por
pessoas do mesmo sexo do reconhecimento pelo casamento fosse, ao contrário, apropriada, ‘os
danos da exclusão são tão severos que a violação dos seus direitos e liberdades não poderia ser
justificada’. Dadas as sérias violações de direitos e liberdades fundamentais, e à evidência de
numerosos efeitos danosos para um segmento já em desvantagem na sociedade, ‘eu não vislumbro
nenhum benefício que seja da exclusão’.

No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso afirma restar afrontada a proporcionalidade em sentido
estrito pela restrição de direitos em virtude da orientação sexual por ela não promover nenhum bem
jurídico relevante, mas mero moralismo totalitário de determinado grupo, que, embora numeroso, não
pode impor seus subjetivismos à ordem pluralista e democrática em que vivemos10 – acrescento, ainda,
que democracia não significa ditadura da maioria, mas governo voltado ao respeito aos direitos
fundamentais, mesmo e especialmente quando se trate de direitos de grupos minoritários. O autor é
peremptório: “O não reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas não beneficia, em nenhuma
medida, as uniões convencionais e tampouco promove qualquer valor constitucionalmente
protegido”11.
Assim, enquanto a proporcionalidade em sentido estrito, de um lado, não justifica o não
reconhecimento do casamento civil e da união estável entre pessoas do mesmo sexo pela ausência de
direito de casais heteroafetivos em conflito com tais direitos dos casais homoafetivos, de outro impõe o
reconhecimento desses direitos pelo mesmo motivo, razão pela qual é novamente inconstitucional o não
reconhecimento do casamento civil e da união estável entre pessoas do mesmo sexo, por afronta ao
subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito.

4. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Não se justifica o não reconhecimento do casamento civil e da união estável entre pessoas do mesmo
sexo sob o fundamento do princípio da proporcionalidade em quaisquer de seus subprincípios, em
virtude de:

a) inadequação, por não haver relação lógico-racional entre a medida tomada (não
reconhecimento daqueles direitos) e o fim que se diz que se visa proteger (uniões amorosas que
tenham capacidade procriativa);
b) desnecessidade, pois, se a medida é inadequada, obviamente existem outras menos gravosas
para atingir o propagado objetivo; e
c) desproporção em sentido estrito, em virtude da ausência de direito dos casais
heteroafetivos em conflito com o direito dos casais homoafetivos de terem reconhecidos seus
direitos ao casamento civil e à união estável.

Por outro lado, no que tange ao direito dos casais homoafetivos de terem seu relacionamento
amoroso regulamentado de forma isonômica em relação ao dos casais heteroafetivos, deve-se lembrar:
que o casamento civil e a união estável são os únicos meios aptos a obter tal fim; que inexiste meio
menos gravoso para a sua obtenção (mesmo porque não há que se falar em “gravame/prejuízo” a
heterossexuais e a casais heteroafetivos em virtude do reconhecimento de tais direitos); e, ainda, que
inexiste direito de casais heteroafetivos em conflito com o direito dos casais homoafetivos de receberem
um tratamento isonômico, o que só será possível mediante a celebração de seu casamento civil e o
reconhecimento de sua união estável.
Por outro lado, a aprovação do Projeto de Lei 1.151/1995, cujo substitutivo visa instituir a “Parceria
Civil Registrada” entre pessoas do mesmo sexo, não resolve nem a questão da isonomia (porque concede
menos direitos que o casamento civil) nem a da dignidade humana (pois “parcerias civis” e “uniões
civis” paralelas ao casamento civil inegavelmente seriam vistas como menos dignas que os “casamentos
civis”), razão pela qual o reconhecimento de tais direitos aos casais homoafetivos é medida adequada e
necessária a atingir o fim pretendido.
Assim, é a posição discriminatória que não reconhece tais direitos que afronta o princípio da
proporcionalidade, dada a completa inexistência de correlação lógico​-racional que justifique a
concessão de menos direitos aos casais homoafetivos do que aqueles conferidos aos casais
heteroafetivos, o que denota a completa irrazoabilidade de tal discriminação negativa.
É, inclusive, o que restou reconhecido pelo STF no julgamento da ADPF 132 e na ADI 4.277, pois,
nas palavras do Ministro Ayres Britto, “não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os
homoafetivos ganham” 12, ao passo que, nas peremptórias palavras do Ministro Luiz Fux: “uma união
estável homoafetiva, por si só, não tem o condão de lesar a ninguém, pelo que não se justifica qualquer
restrição ou, como é ainda pior, a limitação velada, disfarçada de indiferença”13 [o mesmo valendo,
acrescento, para o casamento civil].
1 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.). Disponível
em: http://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html . Acesso em: 20 out. 2006 (tradução livre; sem grifos
e destaques no original).
2 Vejamos o trecho integral dessa pertinente fala do relator: “Não se prestando como fator de merecimento inato ou de
intrínseco desmerecimento do ser humano, o pertencer ao sexo masculino ou então ao sexo feminino é apenas um fato ou
acontecimento que se inscreve nas tramas do imponderável. Do incognoscível. Da química da própria natureza. Quem
sabe, algo que se passa nas secretíssimas confabulações do óvulo feminino e do espermatozoide masculino que o
fecunda, pois o tema se expõe, em sua facticidade mesma, a todo tipo de especulação metajurídica. Mas é preciso aduzir,
já agora no espaço da cognição jurídica propriamente dita, que a vedação e o preconceito em razão da compostura
masculina ou então feminina das pessoas também incide quanto à possibilidade do concreto uso da sexualidade de que
eles são necessários portadores. Logo, é tão proibido discriminar as pessoas em razão da sua espécie masculina ou
feminina quanto em função da respectiva preferência sexual. Numa frase: há um direito constitucional líquido e certo à
isonomia entre homem e mulher: a) de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta conformação anátomo-
fisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva sexualidade; c) de, nas situações de uso emparceirado da
sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo, ou não; quer dizer, assim como não assiste ao espécime
masculino o direito de não ser juridicamente equiparado ao espécime feminino – tirante suas diferenças biológicas –,
também não assiste às pessoas heteroafetivas o direito de se contrapor à sua equivalência jurídica perante sujeitos
homoafetivos. O que existe é precisamente o contrário: o direito da mulher a tratamento igualitário com os homens, assim
como o direito dos homoafetivos a tratamento isonômico com os heteroafetivos” (voto do Ministro Ayres Britto, pp. 16-17.
Grifos nossos).
3 Observemos o trecho integral dessa relevante fala do relator, sobre o § 3.º do art. 226 da CF/88: “As diferenças nodulares
entre ‘união estável’ e ‘casamento civil’ já são antecipadas pela própria Constituição, como, por ilustração, a submissão da
união estável à prova dessa estabilidade (que só pode ser um requisito de natureza temporal), exigência que não é feita
para o casamento. Ou quando a Constituição cuida da forma de dissolução do casamento civil (divórcio), deixando de fazê-
lo quanto à união estável (§ 6.º do art. 226). Mas tanto numa quanto noutra modalidade de legítima constituição da família,
nenhuma referência é feita à interdição, ou à possibilidade de protagonização por pessoas do mesmo sexo. Desde que
preenchidas, também por evidente, as condições legalmente impostas aos casais heteroafetivos. Inteligência que se
robustece com a proposição de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um
interesse de outrem. E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto jurídico dos sujeitos homoafetivos só
podem ser os indivíduos heteroafetivos, e o fato é que a tais indivíduos não assiste o direito a não equiparação jurídica com
os primeiros. Visto que sua heteroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os beneficia com a titularidade
exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que
os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham. E quanto à sociedade como um todo, sua estruturação é de se dar,
já o dissemos, com fincas na fraternidade, no pluralismo e na proibição do preconceito, conforme os expressos dizeres do
preâmbulo da nossa Constituição [e] do inciso IV do seu art. 3.º” (voto do Ministro Ayres Britto, pp. 30-31. Grifos nossos).
4 Vejamos, de forma integral, essa pertinente fala do Ministro Celso de Mello: “Esta decisão – que torna efetivo o princípio da
igualdade, que assegura respeito à liberdade pessoal e à autonomia individual, que confere primazia à dignidade da pessoa
humana e que, rompendo paradigmas históricos e culturais, remove obstáculos que, até agora, inviabilizavam a busca da
felicidade por parte de homossexuais vítimas de tratamento discriminatório – não é nem pode ser qualificada como decisão
proferida contra alguém, da mesma forma que não pode ser considerada um julgamento a favor de alguns. Com este
julgamento, o Brasil dá um passo significativo contra a discriminação e contra o tratamento excludente que têm
marginalizado grupos minoritários em nosso País, o que torna imperioso acolher novos valores e consagrar uma nova
concepção de Direito fundada em nova visão de mundo, superando os desafios impostos pela necessidade de mudança de
paradigmas, em ordem a viabilizar, como política de Estado, a instauração e a consolidação de uma ordem jurídica
genuinamente inclusiva” (voto do Ministro Celso de Mello, pp. 13-14. Grifos nossos).
5 Como complemento e fundamento de tal afirmação, o Ministro Fux citou a lição da espanhola María Martín Sánchez em sua
tese de doutoramento (Matrimonio Homosexual y Constituición. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2008, p. 115), para quem “limitar
a liberdade de atuação do indivíduo através do não reconhecimento – como, até há muito pouco, no caso de contrair
matrimônio entre pessoas do mesmo sexo – ou através de omissão na Lei – neste caso, nas leis que, até há pouco,
vinham disciplinando o casamento – só teria justificação se se argumentasse que dita limitação ou restrição da liberdade
obedece à proteção de algum valor, princípio ou bem constitucional, de modo que, efetuada uma ponderação de bens em
jogo, seria conveniente estabelecer essa limitação. No entanto, não parece existir nenhum valor, princípio ou bem
constitucional em risco, cuja proteção necessite de tal restrição. A esse respeito, faz-se preciso, ademais, ter presentes o
resto de argumentos e fundamentos constitucionais já aportados anteriormente, tais como a igualdade e a proibição de
discriminação, e a dignidade da pessoa, para além desse direito genérico à liberdade individual” (voto do Ministro Luiz Fux,
pp. 19-20. Grifos, tradução e fonte do original).
6 Cf. voto do Ministro Celso de Mello, p. 33.
7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição Portuguesa Anotada, 1.a Edição Brasileira, 4.a Edição
Portuguesa, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais e Coimbra: Coimbra Editora, 2007, vol. I, p. 609. No original: “(...) A
liberdade de religião é a liberdade de adoptar ou não uma religião, de escolher uma determinada religião, de fazer
proselitismo num sentido ou noutro, de não ser prejudicado por qualquer posição ou atitude religiosa ou antirreligiosa. (...)”
(sem grifo no original).
8 “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III – criar distinções entre brasileiros ou
preferências entre si.”
9 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.). Disponível
em: http://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html. Acesso em: 20 out. 2006 (tradução livre; grifos
nossos).
10 BARROSO, Luís Roberto. Diferentes mas iguais: O reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no brasil, Revista
de Direito do Estado, n. 5, p. 167 e ss, 2007. No original: “Ocorre, porém, que o não reconhecimento das uniões estáveis
entre pessoas do mesmo sexo não promove bem jurídico que mereça proteção em um ambiente republicano. Ao contrário,
atende apenas a uma determinada concepção moral, que pode até contar com muitos adeptos, mas que não se impõe
como juridicamente vinculante em uma sociedade democrática e pluralista, regida por uma Constituição que condena toda
e qualquer forma de preconceito. Esta seria uma forma de perfeccionismo ou autoritarismo moral, próprio dos regimes
totalitários, que não se limitam a organizar e promover a convivência pacífica, tendo a pretensão de moldar indivíduos
adequados. Em suma, o que se perde em liberdade não reverte em favor de qualquer outro princípio constitucionalmente
protegido” (sem grifos e destaques no original).
11 Ibidem, p. 33.
12 Voto do Ministro Ayres Britto, p. 31.
13 Voto do Ministro Luiz Fux, p. 19.
Capítulo 11

DA INCOERÊNCIA DAS JUSTIFICAÇÕES DA DOUTRINA PARA O


NÃO RECONHECIMENTO DA FAMÍLIA/ENTIDADE FAMILIAR
HOMOAFETIVA

“A lei não acolhe razões que têm por fundamento o preconceito e a discriminação, portanto o
que a lei não proíbe não pode o intérprete inovar.” – Siro Darlan, Magistrado da 1.ª Vara da
Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, em sentença proferida no Processo 97/1/03710-8, em
20.01.1998.

Deixa-se de manter a íntegra de tal capítulo nesta versão impressa para que não se aumentasse
consideravelmente o número de páginas do livro por força das atualizações e, portanto, seu preço
aumentasse. O que aqui consta é o equivalente à síntese conclusiva da 1ª Edição, com as devidas
atualizações. A ideia é disponibilizar a íntegra das considerações aqui sintetizadas em versão online –
para maiores informações, remete-se o leitor para o seguinte link:
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-da-homoafetividade-segunda-edicao-capitulos-
online/
A doutrina e a jurisprudência em nenhum momento provam a necessidade e a pertinência da
discriminação das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas. O máximo que fazem é alegar que a
ausência de capacidade procriativa potencial nas uniões entre pessoas do mesmo sexo impossibilitaria a
sua colocação como entidades familiares. Todavia, não constando do rol taxativo do art. 1.521 do
Código Civil que pessoas estéreis não podem se casar, e considerando especialmente que nenhum óbice
se levanta quando casais heteroafetivos inférteis pretendem o reconhecimento de sua condição jurídico-
familiar, assim como tendo em conta a ausência de prejuízos à criação de crianças e adolescentes por
casais homoafetivos (como diversos estudos empíricos já demonstraram), fica evidente que o elemento
discriminador erigido não é a capacidade procriativa, mas a homogeneidade/diversidade de sexos do
casal. Nessa linha, considerando que não há fundamentação válida ante a isonomia [lógico-racional] que
justifique a discriminação negativa de casais homoafetivos em relação aos heteroafetivos, e mesmo de
casais sem capacidade procriativa em relação àqueles que a possuem, é inconstitucional qualquer
interpretação que vise vedar o casamento civil e a união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Não há que se invocar a definição tradicional de casamento para se dizer que casamento só poderia
ocorrer entre homem e mulher, pois é preciso analisar se discriminação às uniões homoafetivas daí
decorrente é compatível ou não com o princípio da igualdade – e, como não é pela absoluta
arbitrariedade de tal discriminação, tem-se que essa “definição tradicional” é inconstitucional e,
portanto, não pode ser aceita. Ademais, o cabimento de interpretação extensiva ou analogia por termos
situações idênticas ou, no mínimo, equivalentes por ambas formarem uma família conjugal demanda pelo
reconhecimento do direito de casais homoafetivos ao casamento civil, tanto por lições de Direito Civil
Clássico (colmatação de lacunas por interpretação extensiva ou analogia) quanto pela irradiação das
normas constitucionais na interpretação das leis, donde o princípio da igualdade impõe o reconhecimento
do direito ao casamento civil a casais homoafetivos por tais técnicas hermenêuticas de interpretação. Até
porque o “conceito de casamento” já foi alterado diversas vezes para permitir, por exemplo, que as
mulheres pudessem escolher seus maridos (sem ficarem submissas à vontade de seus pais nesse tema),
para se admitir o casamento entre pessoas de “raças” diferentes (o casamento entre brancos e negros já
foi criminalizado no passado, nos EUA), a igualdade de direitos entre homens e mulheres na sociedade
conjugal heteroafetiva e a igualdade entre filhos advindos da relação matrimonial e de relações
extramatrimoniais, questões estas vedadas pelo “conceito de casamento” do passado1.
Nesse sentido, considerando que homossexuais em geral crescem no mesmo contexto social cujo
inconsciente coletivo que prega como “ideal de família” aquela consagrada pelos laços do casamento
civil, o direito à busca da felicidade dos mesmos demanda pelo reconhecimento do direito daqueles
casais homoafetivos que o desejarem de consagrarem suas uniões pelo casamento civil. É irrelevante ser
incorreta tal percepção acerca do “ideal de família” pela igual dignidade dos diversos modelos
familiares que não gerem prejuízos e opressões a terceiros: fato é que uma concepção não totalitária de
mundo demanda que se reconheça aos casais homoafetivos que o quiserem consagrarem suas uniões
amorosas pelo regime jurídico do casamento civil e o análogo regime jurídico da união estável. Até
porque o casamento não é um modelo heterossexual/heteroafetivo, o casamento é um modelo humano de
relações romântico-conjugais que, por motivos arbitrários e preconceituosos, teve sua aplicação restrita
apenas a casais heteroafetivos ao longo da história humana até a sua extensão pontual a casais
homoafetivos em alguns lugares do mundo a partir da década de 1990. Nessa linha, é absolutamente
natural que homossexuais desejem consagrar suas uniões amorosas pelo casamento, na medida em que
são criados no interior do mesmo inconsciente coletivo no qual são criados os heterossexuais, segundo o
qual a pessoa só atingirá a genuína felicidade se consagrar sua união amorosa pelo casamento e se tiver
filhos (biológicos ou adotivos, via sexualidade heteroafetiva ou via inseminação artificial). Certa ou
errada, essa é a concepção na qual estamos inseridos e na qual somos moldados a acreditar pelo
inconsciente coletivo social respectivo. Logo, é absolutamente inadequado defender que homossexuais
deveriam procurar modelos próprios de família (seja lá o que isso queira dizer) e não aderir ao modelo
humano de família romântico-conjugal do casamento civil (que não é exclusivamente heterossexual) –
quem quiser a este aderir, tem que ter o direito de fazê-lo, pois, como bem diz Roberto Lorea Arriada,
“O casamento civil é um direito humano, não um privilégio heterossexual” 2.
Ademais, é de se notar que inexiste afronta à liberdade de crença e de religião de pessoa nenhuma
com o reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo. Afinal, nenhuma
religião estará obrigada a celebrar um casamento religioso homoafetivo se tal não estiver em
consonância com seus dogmas. Consequentemente, não há que se falar nem sequer em “conflito de
direitos” e, assim, em ponderação, visto que inexiste tensão entre tais direitos no caso aqui discutido.
Isso porque o reconhecimento do direito dos casais homoafetivos a consagrarem suas uniões pelo
casamento civil não prejudicará o direito dos casais heteroafetivos a igualmente se casarem. Em outras
palavras, ao contrário do que muitos aparentam defender, o reconhecimento do direito de homossexuais
se casarem civilmente com pessoas do mesmo sexo não impedirá que heterossexuais se casem com
pessoas de sexo oposto e muito menos influenciará estes a se casarem com pessoas do mesmo sexo – é
absurda essa ideia, inconcebível a quem tenha um mínimo de bom senso e de conhecimento acerca do
tema da orientação sexual (justamente pela sexualidade não ser uma “opção” do indivíduo, pois ninguém
escolhe ser homo, hétero ou bissexual: as pessoas simplesmente se descobrem de uma forma ou de outra).
Ao revés, é a liberdade religiosa de homossexuais que resta afrontada, na medida em que estes têm
sua vida ditada pela religião alheia, o que caracteriza inequívoca afronta à sua liberdade religiosa, nos
termos da lição de Canotilho e Vital Moreira3, segundo os quais a liberdade religiosa garante o direito a
não ter sua vida regida pela religião alheia.
Ademais, a sociedade não terá nenhum prejuízo pelo reconhecimento do direito de casais
homoafetivos ao casamento civil, na medida em que isto não obrigará heterossexuais a se casarem com
uma pessoa do mesmo sexo e, portanto, não impedirá que heterossexuais continuem a manter
relacionamentos conjugais heteroafetivos, donde o mundo não acabará pelo simples fato de se reconhecer
a união homoafetiva como família conjugal merecedora da proteção dos regimes jurídicos do casamento
civil e da união estável, como inacreditavelmente algumas pessoas aparentam sustentar ao se oporem a
tanto sob o “fundamento” de que o mundo pode acabar se homens passarem a se relacionar com homens e
mulheres com mulheres (argumento absurdo que parece presumir que o simples reconhecimento do
direito ao casamento civil a casais homoafetivos faria com que heterossexuais deixassem de desejar
manter relacionamentos heteroafetivos e fossem preferir os homoafetivos, “temor” este manifestamente
descabido pela obviedade segundo a qual heterossexuais não deixarão de sê-lo pelo simples fato de se
reconhecer a casais homoafetivos o direito aos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável).
Chega a ser desrespeitoso à própria heterossexualidade a noção de que o reconhecimento estatal do
casamento civil homoafetivo traria o risco de o mundo acabar (!), pois uma tal concepção denota uma
fragilidade da heterossexualidade, no sentido de que o simples reconhecimento do direito ao casamento
civil homoafetivo faria com que heterossexuais desejassem manter relacionamentos conjugais
homoafetivos... logo, absolutamente descabida a absurda argumentação ad terrorem aqui criticada.
Descabido, ainda, pretender-se conceder a casais homoafetivos os mesmos direitos do casamento
civil mediante uma “união civil” paralela, pois isto implicaria em institucionalizar a nefasta política do
“separados, mas iguais”, que tanto assolou a convivência entre negros e brancos no passado mediante a
garantia àqueles de direitos equivalentes aos destes, mas em locais separados (assentos separados,
escolas separadas etc). Parafraseando decisão da Suprema Corte de Ontário/Canadá que reconheceu o
direito ao casamento civil homoafetivo, estabelecer-se uma união civil paralela específica para casais
homoafetivos implicaria em o Estado difundir a sinistra mensagem segundo a qual estes não seriam
dignos do casamento civil, de sorte a se classificar as uniões heteroafetivas como “mais dignas” e/ou
“mais iguais” do que as uniões homoafetivas, algo absolutamente inaceitável pelo dever de igual respeito
e consideração devido às pessoas em geral (logo, também a homossexuais e casais homoafetivos
relativamente a heterossexuais e casais heteroafetivos) decorrente dos princípios da isonomia e da
dignidade da pessoa humana (direito ao igual respeito e consideração), já que aquele veda
diferenciações arbitrárias e esta garante igual dignidade a todas as pessoas humanas por sua mera
humanidade, bem como veda a instrumentalização das pessoas no sentido de se garantir-lhes direitos
apenas caso adotem um modo de vida específico, considerado como “mais adequado” pelo Estado. O
direito ao respeito às individualidades decorrente do princípio da igualdade material demanda por igual
respeito e consideração às uniões homoafetivas relativamente às heteroafetivas, o que supõe o
reconhecimento do direito ao casamento civil àquelas.
No que tange à “teoria da inexistência do ato jurídico”, ela nada mais é do de uma forma disfarçada
de discriminação, cuja consequência é idêntica à de declaração de nulidade (extirpação dos efeitos
jurídicos do ato em questão), sendo, assim, uma tentativa de burlar a regra de que não há nulidade sem
texto. Trata-se, ainda, de uma construção puramente doutrinária, sem nenhum amparo legal/normativo que
a fundamente. Em suma, é uma invenção doutrinária que visa burlar a regra segundo a qual não há
nulidade sem texto (oriunda do art. 5.o, II, da CF/1988, em interpretação teleológica) para atribuir ao ato
tachado de “inexistente” a mesma punição atribuída ao ato nulo, a saber, a extirpação dos efeitos por ele
produzidos, com a enorme diferença que as “condições de validade” que geram a nulidade precisam estar
previstas em lei, ao passo que as supostas “condições de existência” não estão previstas em texto
normativo nenhum, donde se percebe ser absurda dita teoria, porque atribui ao subjetivismo do intérprete
o poder de fazê-lo ao mesmo tempo em que erigiu a regra segundo a qual não há nulidade sem texto
justamente para fins de segurança jurídica, que resta inequivocamente afrontada por essa despótica e
arbitrária teoria da inexistência de atos existentes, além de afrontar o princípio da separação dos poderes
ao atribuir ao intérprete o poder de legislação positiva para vedar situações não vedadas pela lei.
Ou seja: a partir do momento em que a consequência final da declaração judicial de inexistência é a
mesma da declaração judicial de nulidade, tem-se por absolutamente descabida aquela teoria no que
tange a fatos que efetivamente existiram, visto implicar em afronta direta ao preceito de que não há
nulidade sem texto, que é oriundo do princípio da legalidade (art. 5.o, II, da Constituição Federal).
Admitir o contrário implica dar ao intérprete e ao juiz o poder de extirpar do ordenamento jurídico um
ato ou negócio unicamente de acordo com o seu subjetivismo pessoal, o que é inaceitável em um Estado
que se considere de Direito e, especialmente, Democrático e Social, como o brasileiro.
Desta feita, como em nenhum momento o Direito das Famílias pátrio consagra a “teoria da
inexistência de atos faticamente existentes”, tem-se que ela nada mais é do que uma forma criada pela
doutrina para burlar o princípio geral de Direito de que não há nulidade sem texto. Sendo assim, como
toda forma de discriminação, para que seja válida há que estar de acordo com o princípio da isonomia, o
que não ocorre no presente caso, ante a ausência de motivação lógico-racional que justifique a
discriminação negativa das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas com base, unicamente, na
homogeneidade/diversidade de sexos do casal, donde se tem por inconstitucional dita teoria.
No mesmo sentido, nem se avente invocar um suposto “silêncio eloquente” do art. 226, § 3.o, da
CF/1988 para negar a união estável homoafetiva (e mesmo o casamento civil homoafetivo) em virtude de
ser tal teoria inaceitável, na medida em que: (i) afronta o art. 5.o, II, da CF/1988, que determina que
somente texto expresso pode proibir determinada situação ou conduta [no máximo, norma implícita
decorrente de texto expresso]; (ii) contraria histórica praxe legislativa nesse sentido [de que, quando o
legislador quer proibir algo, ele o faz – expressamente]; (iii) parte de puro subjetivismo do intérprete
para definir quais situações teriam sido deliberadamente não regulamentadas pelo legislador. Mas, ainda
que aceita a referida teoria, é de se notar que inexistem provas que demonstrem que teria havido um
“silêncio eloquente” do Constituinte Originário no que tange às uniões homoafetivas: há mero
subjetivismo de intérpretes nesse sentido, pois dita teoria é inaplicável na ausência de prova robusta no
sentido do suposto silêncio intencional do Constituinte. Com efeito, ainda que se adote o originalismo
interpretativo que o Ministro Lewandowski aplicou no seu voto no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4277, para se interpretar a Constituição apenas de acordo com a vontade dos Constituintes e se entenda
como ele que o Constituinte de 1988 teria decidido não abarcar a união homoafetiva no conceito de união
estável (voto vencido neste ponto, por tal tese não ter sido acolhida pela maioria dos demais Ministros e
Ministras), deve-se considerar que dita “proibição implícita” impediria somente o reconhecimento da
união homoafetiva como “união estável”, sem que se proíba o reconhecimento da mesma como “entidade
familiar autônoma” (que foi o que fez o Ministro Lewandowski: reconheceu a “união homoafetiva
estável” como entidade familiar autônoma pelo fato de o rol de entidades familiares do art. 226 da CF/88
ser meramente exemplificativo e não taxativo).
Nesse sentido, sendo a família conjugal o objeto de proteção dos regimes jurídicos do casamento
civil e da união estável, a teoria das garantias institucionais não justifica o não reconhecimento de tais
direitos aos casais homoafetivos. Com efeito, considerando que o que dita teoria impede é que o núcleo
de determinados institutos jurídicos seja afrontado pelo legislador, considerando que o núcleo dos
regimes jurídicos do casamento civil e da união estável é a proteção das famílias conjugais, tem-se que
o fato de a união homoafetiva constituir-se, fática e materialmente, uma família conjugal significa que o
reconhecimento do direito ao casamento civil e à união estável por casais homoafetivos não afronta a
teoria das garantias institucionais, justamente pelo fato de tal reconhecimento ser coerente com o núcleo
de tais regimes jurídicos, que é a proteção das famílias conjugais. Logo, absolutamente lícito o
reconhecimento do casamento civil e da união estável a casais homoafetivos por estes se enquadrarem no
suporte fático das normas respectivos, no fato jurígeno que as mesmas visam regulamentar, que é a
família conjugal.
Ressalte-se, ainda, que a decisão nesse sentido não implica usurpação da competência do Congresso
Nacional e, consequentemente, afronta ao princípio da separação dos poderes decorrente de “legislação
positiva” do Poder Judiciário. Afinal, reconhecer a possibilidade jurídica do casamento civil
homoafetivo com base na interpretação extensiva ou na analogia (que não são formas de legislação
positiva, mas de integração do ordenamento jurídico no caso concreto) implica apenas reconhecer o real
objeto de proteção das leis do casamento civil e da união estável, a saber, a família conjugal, formada
pelo amor familiar (o amor romântico que vise à comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura), amor este que é o elemento formador da família conjugal
contemporânea. Isso porque, a partir do momento em que temos textos normativos expressos que
permitem a utilização da interpretação extensiva e da analogia para colmatar lacunas normativas (art. 4º
da LINDB e art. 126 do CPC), tem-se que o ordenamento jurídico defere ao Judiciário o dever-poder de
garantir à situação não citada ou não regulamentada pela norma o regime jurídico desta, como
consequência do princípio constitucional da igualdade, que demanda por tratamento igual a situações
idênticas ou equivalente. Nesse sentido, se o próprio Poder Legislativo permitiu ao Poder Judiciário
integrar as lacunas normativas pela interpretação extensiva ou pela analogia, então não há que se falar em
afronta ao princípio da separação dos poderes quando dita integração é efetivamente realizada. A lei já
existe: a questão é que determinada situação (fato), que se encontra no objeto de proteção da norma
(interpretação teleológica – valor) não foi por ela citada, razão pela qual deve ela ser protegida por ditas
técnicas de integração do sistema jurídico e motivo este que demonstra inexistir “criação de lei” pelo
Judiciário ao fazê-lo. Entendimento em sentido contrário significa nada menos do que negar vigência aos
dispositivos legais que consagram a interpretação extensiva e a analogia ou então considera-los
“inconstitucionais”, o que claramente não é o posicionamento correto por serem tais técnicas integrativas
de lacunas concretizações da isonomia. Afinal, o ordenamento jurídico brasileiro admite a integração de
lacunas normativas pela interpretação extensiva ou pela analogia, inclusive por imposição da isonomia –
qualquer que seja a natureza da norma, mesmo que de ordem pública, dada a ausência de proibição
quanto a colmatação de lacunas de normas de ordem pública.
Relativamente à hermenêutica jurídico-filosófica4, tem-se que, considerando a inexistência de texto
normativo expresso que proíba o reconhecimento do casamento civil e da união estável a casais
homoafetivos, tem-se que referida hermenêutica nos faz reconhecer que é ilegítima a tradição social que
interpreta restritivamente o art. 226, §3º, da CF/88 e os arts. 1514 e 1723 do CC/02 para não reconhecer
tais regimes jurídicos a casais homoafetivos, visto que a razão crítica demonstra que a união
homoafetiva é pautada pelo mesmo elemento valorativamente protegido pelos regimes jurídicos do
casamento civil e da união estável quando citam o fato heteroafetivo em sua literalidade normativa, a
saber, o amor familiar, o amor conjugal que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, o que ocorre justamente pela situação de estranhamento oriunda de
tratamento desigual a situações idênticas ou, no mínimo, análogas, a saber, o fato homoafetivo (união
homoafetiva) relativamente ao fato heteroafetivo (união heteroafetiva). A questão se resume no fato de
que não há nada no texto normativo do art. 226, §3º, da CF/88 que impossibilite a aplicação da
interpretação extensiva ou da analogia para reconhecer a possibilidade jurídica do casamento civil e da
união estável a casais homoafetivos.
Ainda sobre a hermenêutica filosófica, é perfeitamente aplicável aqui a lição de Konrad Hesse5 no
sentido de que “A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o
sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada
situação”, razão pela qual “uma mudança das relações fáticas pode - ou deve - provocar mudanças na
interpretação da Constituição”. Claro, Hesse fala a seguir que o sentido da proposição jurídica
estabelece o limite de qualquer mutação normativa, o que significa, como diz Gadamer, que não está
autorizado o intérprete a “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”6. Contudo, a lição de Hesse é
aplicável na medida em que dizer que é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher é diferente
de dizer que ela é reconhecida apenas entre o homem e a mulher - o apenas só é “lido” por quem entende
que a união homoafetiva não configura (materialmente) uma união estável. Eis a questão: a união estável
é um conceito jurídico indeterminado (assim como é a família, do caput do art. 226 da CF/88), sendo
que dizer que a expressão entre o homem e a mulher impossibilitaria por si, por esta mera literalidade
normativa, o reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil e da união estável entre casais
homoafetivos significa adotar (ainda que apenas neste caso) um puro legalismo acrítico, ou seja, aquele
que só reconhece como juridicamente possível aquilo que está expressamente previsto na legislação, algo
descabido pelo notório e inegável cabimento de interpretação extensiva ou analogia para se estender tais
regimes jurídicos a casais homoafetivos por força do art. 4º da LINDB e do art. 126 do CPC/73. Esse
legalismo cego avalorativo negador da tese aqui defendida significa deixar de compreender a união
estável e o casamento civil em seu ser​-no-mundo por conta da mera literalidade normativa do texto legal
e constitucional, ignorando a lição basilar da hermenêutica filosófica de que todo ser é o ser de um ente7
por se deixar de interrogar os entes da união estável e do casamento civil em seu ser8 no contexto do
mundo contemporâneo (que abarca da união homoafetiva) para compreendê-los enquanto entes abstratos
e imutáveis que arbitrariamente se limitariam à união entre homem e mulher, em clara contradição com os
pressupostos da hermenêutica filosófica aqui enfocada; significa entificar o ser a união estável e o
casamento civil dentro da união entre o homem e a mulher por mais que o ser​-no-mundo de união estável
e casamento civil do mundo contemporâneo demandem a inclusão da união homoafetiva em seus âmbitos
de proteção ante a ausência de proibição normativa que isto impeça.
Em outras palavras, como o conceito de união estável e do casamento civil não está ligado
indissociavelmente à diversidade de sexos pelo texto constitucional (o que ocorreria se estivesse escrito
nos textos normativos que tais regimes jurídicos são reconhecidos “apenas entre” o homem e a mulher
ou algo do gênero), não há afronta ao conteúdo mínimo-estrutural do texto jurídico da união estável e
do casamento civil9 na sua extensão a casais homoafetivos, donde não parece que haja algo que o texto
diga que impossibilite o intérprete de adotar a tese aqui defendida (não há
discricionariedade/decisionismo nesta conclusão, mas mera constatação de ausência de proibição
explícita a tal exegese, o que possibilita o uso da interpretação extensiva ou da analogia) - pois a união
estável enquanto entidade familiar e o casamento civil enquanto entidade familiar, em seu sentido
estrutural mínimo, devem ser compreendidos como a união de fato pautada pelo amor conjugal que vise
a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, pela qual os
companheiros vivem como se casados fossem (o amor tem que ser conjugal para evitar que afetos
fraternos sejam enquadrados no regime jurídico da união estável e do casamento civil, o que não se
afigura correto pela ratio normativa, embora aquelas uniões, se pautadas por um amor familiar fraterno,
devam ser entendidas como entidades familiares).
Anote-se, ainda, a inexistência de quaisquer prejuízos a crianças e adolescentes pelo simples fato de
serem criados por um casal homoafetivo e não por um casal heteroafetivo, na medida em que diversos
estudos psicológicos e sociais já comprovaram que tais crianças e adolescentes têm a mesma capacidade
de adaptação social e estabilidade emocional relativamente àquelas criadas por casais heteroafetivos.
Cite-se, sobre o tema, o posicionamento da Academia Americana de Pediatria10, segundo o qual:

As crianças merecem saber que o seu relacionamento com ambos os seus pais é estável e
legalmente reconhecida. Isso se aplica a todas as crianças, sejam seus pais do mesmo sexo ou de
sexos opostos. A Academia Americana de Pediatria reconhece que um considerável corpo de
literatura profissional traz evidências de que crianças com pais que são homossexuais podem ter as
mesmas vantagens e as mesmas expectativas para saúde, ajustamento e desenvolvimento que aquelas
crianças cujos pais são heterossexuais. Quando dois adultos participam da criação de uma criança,
eles e essa criança merecem a serenidade decorrente do reconhecimento legal. Crianças nascidas ou
adotadas em famílias encabeçadas por parceiros que são do mesmo sexo geralmente têm,
legalmente, apenas um pai biológico ou adotivo. O outro parceiro na função parental é chamado de
‘co-pai/mãe’ [co-parent] ou ‘segundo(a)-pai/mãe’ [second parent]. Em razão dessas famílias e
crianças necessitarem da permanência e segurança providas mediante a presença de dois pais
totalmente definidos e reconhecidos [two fully sanctioned and legally defined parents], a
Academia apoia a adoção legal de crianças por copais/mães ou segundos(as)-pais/mães. Negar o
status de ascendente legal através da adoção a copais/mães ou segundos(as)-pais/mães impede
essas crianças de se beneficiarem da segurança psicológica e legal que decorre de ter dois pais que
têm desejo, capacidade e amor a dar a seus filhos [two willingly, capable and loving parents].

Segundo Evan Wolfson, essa é também a posição também esposada pela Academia Americana de
Médicos Familiares, pela Associação Americana de Psiquiatria, pela Associação Americana de
Psicanálise, pela Liga Americana de Bem-Estar Infantil, pelo Conselho Norte-Americano de Crianças
Adotivas, pela Associação de Educação Nacional [dos EUA] e pela Associação Nacional de
Trabalhadores Sociais [dos EUA]11.

Wald resumiu as evidências: nenhum dos estudos constatou que crianças de mães lésbicas ou
pais gays [lesbian or gay parents] experimentaram ‘problemas emocionais, intelectuais ou sociais
por causa da orientação sexual de seus pais’. Nenhuma das crianças de pais gays [gay parents]
estudadas tiveram maiores problemas em seus relacionamentos familiares, tiveram qualquer
dificuldade na escola, sofreram quaisquer problemas adicionais de autoestima ou estiveram de
qualquer forma mais propensas a engajar em comportamentos autodestrutivos do que as crianças
criadas por pais heterossexuais. Ademais, um estudo que acompanhou as crianças de pais gays e
mães lésbicas do nascimento à fase adulta concluíram que a habilidade dessas crianças para a
transição à idade adulta [transition to adulthood] e de encontrar emprego de forma alguma diferiu
das crianças criadas por pais heterossexuais12.

Esse tema será retomado no Capítulo 16, relativamente à adoção por homossexuais e casais
homoafetivos.
Por fim, é de se notar que o amor existente na relação é relevante, na medida em que é o amor
romântico/conjugal que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura o elemento formador da família contemporânea formada por casais. Assim, é completamente
descabida a desconsideração do amor familiar existente na união homoafetiva, visto ser ele o diferencial
entre as relações de amizade e as relações familiares oriundas de uniões amorosas.

1 Com efeito, os argumentos ad terrorem utilizados pelos opositores do casamento civil homoafetivo são rigorosamente os
mesmos que os fundamentalistas religiosos do passado utilizavam para se opor ao casamento entre pessoas brancas e
pessoas negras ou de distintos grupos étnicos. É o que demonstrou, em 1996, Eric Zoom, colunista do jornal Chicago
Tribune’s, que substituiu as referências a raças por referências à orientação sexual, nos seguintes termos, transcritos por
Evan Wolfson (Cf. WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters..., pp. 57-59. Tradução livre): “Considere-se, por exemplo,
esses outros exemplos de tristeza e tragédia compilados em uma coluna de Eric Zorn, em 1996, no Chicago Tribune’s: ‘1.
Um senador Republicano de Wisconsin disse que casamentos entre casais gays devem ser proibidos ‘simplesmente
porque o instinto natural se revolta contra isso por considerá-lo algo errado’. 2. Um grupo antigay declarou que a extensão
do direito ao casamento a casais gays iria resultar em ‘uma população degradada e ignóbil incapaz de desenvolvimento
moral e intelectual’. Membros deste grupo disseram que eles baseiam a sua posição na ‘superioridade natural que Deus
conferiu a heterossexuais’. 3. Um psicólogo disse que ‘a tendência a classificar as pessoas que se opõem ao casamento
gay como ‘preconceituosas’ é em si um preconceito’. Ele adicionou: ‘Nada de qualquer significado se ganha por tal
casamento’. 4. Um legislador da Geórgia declarou que permitir às pessoas gays se casarem ‘necessariamente envolve a
degradação’ do casamento tradicional, uma instituição que ‘merece admiração ao invés de execração’.5. Um congressista
do Kentucky advertiu, ‘O próximo passo será que gays e lésbicas irão demandar uma lei autorizando-os, sem restrição, a ...
ter livres e irrestritos atos sexuais com seus filhos e filhas não casados. Ele adicionou: ‘Inevitavelmente chegaremos a isso.
Não há distinção entre tais fatos. E quanto mais cedo o alarme seja dado e as pessoas tomem alguma atitude, melhor será
para a nossa civilização’. 6. Um juiz do Missouri decidiu, ‘Quando pessoas do mesmo sexo se casam, eles não podem ter
descendentes [progeny]... E tal é um fato que suficientemente justifica aquelas leis que proíbem o seu casamento. 7. Uma
lei estadual da Virginia diz que casamentos entre casais gays são ‘abomináveis’ e iriam ‘poluir’ a sociedade Americana. 8.
Ao negar uma apelação de casais do mesmo sexo que tentaram se casar, uma corte da Geórgia decidiu que tais
casamentos ‘não são apenas antinaturais, mas sempre produzem resultados deploráveis’, tais como o aumento de
comportamento efeminado na população. ‘Eles são o produto do mal, e apenas do mal, sem o correspondente bem... (de
acordo com) o Deus da natureza’. 9. Um congressista de Illinois opinou no sentido de que os banimentos contra a liberdade
de casar não são inconstitucionais porque eles se aplicam ‘igualmente entre homens e mulheres’. 10. Advogados do estado
do Tenessee disseram que casais gays e lésbicos deveriam ser proibidos de se casar porque eles são ‘desagradáveis ao
nosso povo e inadequados para produzir a raça humana...’. A suprema corte estadual concordou, decidindo que a extensão
da liberdade de casar iria ser ‘uma calamidade cheia do mais triste e melancólico presságio para as gerações que estão
para vir (‘a calamity full of the saddest and gloomiest portent to the generations that are to come after us’). 11. Advogados do
estado da Califórnia disseram que uma lei que previna casais gays de se casarem é necessária para prevenir que ‘o
casamento tradicional seja contaminado pelo reconhecimento dos relacionamentos que são fisicamente e mentalmente
inferiores (e formados pela) escória da sociedade [gregs of society]. 12. Em resposta a uma ação judicial desafiando a lei
anticasamento gay da Virginia, um juiz estadual decidiu, ‘A lei concernente ao casamento deve ser entendida apenas em
relação àquelas pessoas que aquela lei se relaciona... e não a uma classe de pessoas claramente fora da ideia da
legislatura quando esta contemplou o tema do casamento’. A sacada da coluna de Zorn é que essas doze declarações não
foram, de fato, feitas sobre a liberdade de casar das pessoas gays. Na verdade, elas foram feitas entre 1823 e 1964 por
oponentes do casamento inter-racional e da igual cidadania de Afro-Americanos. Zorn substituiu as referências a raça por
referências à orientação sexual para demonstrar como a batalha contemporânea sobre a liberdade de casar das pessoas
gays não se limita a pessoas gays e lésbicas. Ela é um capítulo em uma luta por direitos civis tão antiga quanto a própria
instituição do casamento, uma luta que também foi enfrentada por mulheres buscando a igualdade, pessoas procurando
fazer as suas próprias decisões sobre parentalidade e sexo [planejamento familiar por contraceptivos] e por casais casados
procurando encerrar as suas uniões falidas ou abusivas [divórcio]” (tradução livre). Ou seja, os opositores do casamento
civil homoafetivo utilizam rigorosamente os mesmos argumentos que eram utilizados, no passado, para as pessoas se
oporem ao casamento entre pessoas de “raças” distintas. Troque o leitor as referências a gays e lésbicas por brancos e
negros e verá o quão absurdos são tais argumentos.
2 Cf. notícia do site Universo Jurídico (www.uj.com.br) , notícia de 08/01/2008, nominada “Reconhecida a união estável durante
25 anos entre duas mulheres” (acesso no mesmo dia; grifo nosso).
3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição Portuguesa Anotada, 1.a Edição Brasileira, 4.a Edição
Portuguesa, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais e Coimbra: Coimbra Editora, 2007, vol. I, p. 609.
4 Oriunda das obras de Heidegger e Gadamer, bem como, no Brasil, das obras de Lenio Streck, a qual, a meu ver, pode ser
sintetizada na seguinte explicação: Interpreta-se porque se compreende, compreende-se por conta da pré​-compreensão,
pré-compreensão esta decorrente da tradição social, tradição esta que, portanto, define o conteúdo da interpretação, sendo
que a tradição pode ser superada caso não resista à análise da razão crítica (caso no qual será tida como tradição
ilegítima). Ressalte-se que tal necessidade de superar a interpretação oriunda da tradição quando a razão crítica demonstra
sua arbitrariedade decorre da necessidade do que Gadamer designa como consciência histórico-hermenêutica, pois “Uma
compreensão guiada por uma consciência metodológica procurará não simplesmente realizar suas antecipações, mas,
antes, torná-las conscientes para poder controlá-las e ganhar assim uma compreensão correta a partir das próprias coisas.
É isso o que Heidegger quer dizer quando exige que se ‘assegure’ o tema científico na elaboração de posição prévia, visão
prévia e concepção prévia, a partir das coisas, elas mesmas”, donde “A questão, portanto, não está em assegurar-se frente
à tradição que faz ouvir sua voz a partir do texto, mas, ao contrário, trata-se de manter afastado de tudo que possa impedir
alguém de compreendê-la a partir da própria coisa em questão” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Traços
Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica, Tradução de Flávio Paulo Meurer. Nova revisão da tradução por Enio Paulo
Giachini, 7ª Edição, Petrópolis: Editora Vozes e Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005, p. 359).
Nesse sentido, afirma Gadamer que “entre a tradição e a razão não existe nenhuma oposição que seja assim tão
incondicional. (...) a tradição sempre é um momento da liberdade e da própria história. Também a tradição mais autêntica e
a tradição melhor estabelecida não se realizam naturalmente em virtude da capacidade de inércia que permite ao que está
aí persistir, mas necessita ser afirmada, assumida e cultivada. A tradição é essencialmente conservação e como tal sempre
está atuante nas mudanças históricas. Mas a conservação é um ato da razão, e se caracteriza por não atrair a atenção
sobre si. Essa é a razão por que as inovações, os planejamentos aparecem como as únicas ações e realizações da razão.
(...) Em outras palavras, o que importa é reconhecer o momento da tradição no comportamento histórico e indagar pela sua
produtividade hermenêutica” (idem, pp. 373-375).
5 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição, Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, 1a Edição, Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 22-23.
6 GADAMER, Op. Cit., p. 358).
7 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito, 1ª Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2002, p. 214.
8 Streck, idem.
9 Expressão de Lenio Streck.
10 Apud WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters..., pp. 93-94. Tradução livre. O autor informa que a declaração constou do
documento nominado Coparent or Second-Parent Adoption by Same-Sex Parents (em tradução livre: Adoção coparental ou
por segundos-pais por pais do mesmo sexo). Anote-se, no que tange à tradução, que o termo “parent” se refere tanto ao pai
quanto à mãe, o que dificulta a tradução para o português pela ausência de uma palavra unissex em nosso idioma (que não
seja “ascendente”, que não me pareceu adequada, pois o equivalente, em português, a parent é “pai/mãe”, conforme a
pessoa seja do sexo masculino ou feminino.
11 Cf. WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters..., p. 93. Os nomes originais, na lingua inglesa, são os seguintes: American
Academy of Family Physicians, American Psychiatric Association, American Psicoanalytic Association, Child Welfare
League of America, North American Council on Adoptable Children e National Education Association.
12 Apud WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters..., p. 92. Tradução livre. A referência citada em nota de rodapé foi “Michael
S. Wald. ‘Same-Sex Couples: Marriage, Families and Children’ [Casais do Mesmo-Sexo: Casamento, Famílias e Crianças].
Capítulo 12

A POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Deixa-se de manter a íntegra de tal capítulo nesta versão impressa para que não se aumentasse
consideravelmente o número de páginas do livro por força das atualizações e, portanto, seu preço
aumentasse. O que aqui consta é o equivalente à síntese conclusiva da 1ª Edição, com as devidas
atualizações. A ideia é disponibilizar a íntegra das considerações aqui sintetizadas em versão online –
para maiores informações, remete-se o leitor para o seguinte link:
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-da-homoafetividade-segunda-edicao-capitulos-
online/
Em seus primeiros julgados sobre o tema, o STJ enquadrou a união homoafetiva como uma mera
“sociedade de fato” e não como união estável, muito embora não tenha se dignado a explicar qual seria a
“diferença” entre a união heteroafetiva e a união homoafetiva de sorte a “justificar” a discriminação
desta relativamente àquela consubstanciada na negativa do regime jurídico da união estável a ela
(homoafetiva). Tal postura começou a mudar com julgado do ano de 2008, que reconheceu o cabimento
da analogia para reconhecimento da união estável homoafetiva, e a viragem da jurisprudência do STJ
ocorreu em definitivo no ano de 2011, com diversos julgados que consolidaram esse entendimento.
Analisemos brevemente tais julgados.
Os posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que as uniões homoafetivas não
estariam abrangidas no conceito de união estável (e, consequentemente deveriam ter suas causas julgadas
nas varas cíveis)1 encontram-se equivocados, uma vez que se utilizaram do argumento simplista de não
estarem elas expressamente regulamentadas para discriminá-las em relação às heteroafetivas. Ou seja, se
ativeram à letra fria da lei e ignoraram completamente os princípios da isonomia e da dignidade da
pessoa humana, bem como das técnicas hermenêuticas da interpretação extensiva e da analogia – sequer
se manifestaram sobre o tema, não trazendo uma fundamentação válida ante a isonomia para justificar a
discriminação por eles perpetrada (negação do Direito de Família aos casais homoafetivos). Sobre a
interpretação extensiva e a analogia, cabe lembrar que lições de Direito Civil Clássico justificam o
reconhecimento da união estável (e do casamento civil) a casais homoafetivos, visto que o fato de a letra
da lei citar um fato (união entre homem e mulher) sem nada dispor sobre outro (união entre pessoas do
mesmo sexo) significa lacuna normativa colmatável por interpretação extensiva ou analogia e não
“proibição implícita”, razão pela qual a posição de tais julgados do STJ negam vigência ao art. 4º da
LINDB e ao art. 126 do CPC, que possibilitam a colmatação de lacunas por tais técnicas hermenêuticas.
Por outro lado, pelo menos um desses julgados aparentemente partiu do pressuposto de que a
orientação homossexual dos pais influiria no desenvolvimento da orientação sexual das crianças por eles
criadas, o que é absolutamente falso, pois a vida social demonstra que existem tanto filhos heterossexuais
como homossexuais criados por famílias heteroafetivas, homoafetivas e monoparentais. Se a orientação
sexual dos pais influísse na dos filhos, casais heteroafetivos só gerariam pessoas heterossexuais, ao
passo que casais homoafetivos e famílias monoparentais só gerariam homossexuais, pela ausência de uma
pessoa de outro sexo na criação do menor – o que não corresponde à verdade e inclusive é notório (tema
que será tratado detidamente no capítulo atinente à adoção por homossexuais e casais homoafetivos). Por
outro lado, não há nada de errado na orientação sexual homoafetiva, razão pela qual ter aquele
fundamento como decisivo implica discriminação arbitrária e, consequentemente, inconstitucional, além
de casais homoafetivos serem tão aptos quanto casais heteroafetivos para criar adequadamente crianças e
adolescentes, como também será amplamente demonstrado no capítulo 16, sobre adoção.
Assim, os princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da promoção do bem-estar de
todos, da liberdade de consciência e da laicidade estatal exigem que seja aplicada a interpretação
extensiva ou pelo menos a analogia quando se analisam as uniões estáveis homo e heteroafetivas,
garantindo-se àquelas os mesmos direitos conferidos a estas.
Nota-se, em verdade, que o STJ acabou por negar vigência aos arts. 4.º da LINDB e 126 do CPC
quando não reconheceu a união estável homoafetiva, em razão da identidade ou, no mínimo, da
equivalência existente entre as situações (união estável heteroafetiva e homoafetiva). Por se tratar de
situações idênticas ou, no mínimo, idênticas no essencial, sendo nesse caso os únicos diferenciais a
orientação sexual e o sexo dos casais, são competentes as varas de família para o julgamento de causas
envolvendo uniões homoafetivas e, consequentemente, aplicável, ainda que por analogia, o Direito das
Famílias no que tange ao julgamento dessas causas, haja vista ser o amor familiar o elemento essencial à
configuração da entidade familiar, afeto este existente tanto nas uniões entre heterossexuais quanto
naquelas entre homossexuais. Pouco importam as convicções pessoais dos julgadores no que tange à
aceitação ou não da homossexualidade: a imposição de neutralidade ao Judiciário obriga os magistrados
a aplicarem o Direito ainda que com ele não concordem. Nesse ponto, ao contrário do quanto defendido
pelo Ministro Barros Monteiro no julgamento do Recurso Especial 323.370/RS, a lei da união estável foi
omissa quanto à união homoafetiva: não a mencionou mas igualmente não a proibiu, visto que inexistem
“proibições implícitas” em Direito (art. 5.o, II, da CF/1988). Assim, em casos como este, é obrigatória a
utilização das citadas técnicas hermenêuticas quando a situação omitida é idêntica ou, no mínimo,
fundamentalmente idêntica à situação expressamente regulamentada, como é a união homoafetiva em
relação à heteroafetiva.
Note-se, por outro lado, que foi no Direito Previdenciário que o STJ começou a garantir ao
companheiro homoafetivo o direito ao benefício previdenciário por força da analogia, fazendo menção
expressa à analogia e, consequentemente, ao art. 4.o da LINDB e ao princípio da igualdade2. Destaque-se,
apenas, que realizar uma interpretação teleológica que leva em conta o princípio da igualdade no que
tange ao Direito Previdenciário, mas não fazê-lo com relação ao Direito das Famílias (como feito pelo
Ministro Carlos Alberto Menezes Direito neste julgado) configura posição contraditória e injustificável,
afinal a situação é absolutamente a mesma no Direito das Famílias: existe uma lacuna que deve ser
suprida pela interpretação extensiva ou pela analogia. Trata-se, não obstante, de um considerável avanço
(o reconhecimento da analogia nos casos previdenciários).
Com o julgamento do REsp n.º 820.475/RJ, o STJ finalmente reconheceu a ausência de proibição
normativa ao reconhecimento da união estável homoafetiva, afirmando assim a possibilidade jurídica de
tal pleito e a procedência do mesmo quando preenchidos os requisitos legais impostos para a
caracterização da união estável (união pública, contínua e duradoura, com o intuito de constituir família),
afirmando ser isto possível pela ausência de proibição legal a tal exegese3, com o que o tribunal iniciou a
viragem de sua jurisprudência para reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar, ratificada
pelos REsp n.º 1.026.981/RJ, 1.085.646/RS, 930.460/PR e 1.199.667/MT, que, com diversos outros
fundamentos, afirmaram ser a analogia mecanismo adequado para concretizar a igualdade jurídica de
sorte a alavancar a união homoafetiva à condição de união estável, algo possível [também] porque o art.
4º da LINDB permite a busca da equidade na Justiça, sem falar que “Os princípios da igualdade e da
dignidade humana, que têm como função principal a promoção da autodeterminação e impõem tratamento
igualitário entre as diferentes estruturas de convívio sob o âmbito do direito de família, justificam o
reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais como mais uma das várias modalidades de
entidade familiar” (REsp n.º 1.085.646/RS, 930.460/PR e 1.199.667/MT). Afinal, “O Direito não regula
sentimentos, mas define as relações com base neles geradas, o que não permite que a própria norma, que
veda a discriminação de qualquer ordem, seja revestida de conteúdo discriminatório. O núcleo do
sistema jurídico deve, portanto, muito mais garantir liberdades do que impor limitações na esfera pessoal
dos seres humanos”, donde “Enquanto a lei civil permanecer inerte, as novas estruturas de convívio que
batem às portas dos Tribunais devem ter sua tutela jurisdicional prestada com base nas leis existentes e
nos parâmetros humanitários que norteiam não só o direito constitucional, mas a maioria dos
ordenamentos jurídicos existentes no mundo. Especificamente quanto ao tema em foco, é de ser atribuída
normatividade idêntica à da união estável ao relacionamento afetivo entre pessoas do mesmo sexo, com
os efeitos jurídicos daí derivados, evitando-se que, por conta do preconceito, sejam suprimidos direitos
fundamentais das pessoas envolvidas”, razão pela qual “O manejo da analogia frente à lacuna da lei é
perfeitamente aceitável para alavancar, como entidade familiar, na mais pura acepção da igualdade
jurídica, as uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo” desde que atendidos os mesmos requisitos
legais exigidos para o reconhecimento da união estável entre pessoas de sexos diversos, donde
“Demonstrada a convivência, entre duas pessoas do mesmo sexo, pública, contínua e duradoura,
estabelecida com o objetivo de constituição de família, haverá, por consequência, o reconhecimento de
tal união como entidade familiar, com a respectiva atribuição dos efeitos jurídicos dela advindos” (REsp
n.º 1.026.981/RJ – grifo nosso).
Assim, como bem afirmado pelo REsp n.º 827.962/RS, a ausência de proibição normativa torna
juridicamente possível o pedido de reconhecimento de união estável homoafetiva, por analogia, ante o
caráter jurídico-familiar da união homoafetiva, donde, consoante as lições de Luís Roberto Barroso e
Daniel Sarmento (citadas pelo Ministro Celso de Mello no julgamento do STF da ADPF 132 e ADI
4277), “A regra do art. 226, § 3º da Constituição, que se refere ao reconhecimento da união estável entre
homem e mulher, representou a superação da distinção que se fazia anteriormente entre o casamento e as
relações de companheirismo. Trata-se de norma inclusiva, de inspiração antidiscriminatória, que não
deve ser interpretada como norma excludente e discriminatória, voltada a impedir a aplicação do regime
da união estável às relações homoafetivas”. Assim, como bem afirmado pelo REsp n.º 932.653/RS, “A
regulamentação das famílias homoafetivas [por intermédio da analogia] é medida que se impõe no atual
cenário social, não podendo o Poder Judiciário, nesse momento, furtar-se a oferecer as proteções legais
que tais relações demandam, porquanto são geradoras de importantes efeitos afetivos e patrimoniais na
vida de muitos cidadãos”.
Nesse sentido, também o AgRg no REsp n.º 805.582/MG, no qual a relatora, Ministra Maria Isabel
Gallotti, afirmou que “a impossibilidade jurídica do pedido configura-se quando há vedação no direito
positivo a que se instaure a relação processual em torno da pretensão do autor”, ao passo que “No
caso presente, a Lei 9.278/96 limitou-se a prever a possibilidade de união estável entre homem e
mulher, desde que observados os requisitos nela estabelecidos, mas não proibiu que tal união se desse
entre pessoas do mesmo sexo, como poderia tê-lo feito, caso fosse essa a vontade do legislador [o
mesmo podendo ser afirmado quanto ao art. 1.723 do CC/02]. Ora, se a pretensão de ver declarada a
união estável homoafetiva não é vedada pelo ordenamento jurídico, deve ser afastada a
impossibilidade jurídica do pedido deduzido na petição inicial, devendo o juiz, após regular
processamento da causa, apreciar o mérito à luz do ordenamento jurídico vigente” e que assina, “por fim,
que a decisão agravada encontra apoio em precedente específico desta 4ª Turma no REsp. 820.475,
relator o Ministro Luís Felipe Salomão, DJe 6.10.2008”.
Agora uma nota sobre as manifestações de alguns votos do STJ nos citados julgados pela aplicação
do regime jurídico da união estável à união homoafetiva que atenda os requisitos legais da publicidade,
continuidade, durabilidade e intuito de constituir família do art. 1.723 do CC/02: afirmaram o cabimento
da analogia no que tange ao regime patrimonial da união estável à união homoafetiva, mas não na
caracterização da mesma como união estável por supostamente serem situações diferentes. Tal raciocínio
não merece prosperar, tanto pelo fato de ser a união homoafetiva uma família conjugal, donde inclusa no
âmbito de proteção de casamento civil e de união estável, quanto por não terem atendido o ônus
argumentativo imposto pela isonomia no sentido de explicitarem em que a união homoafetiva seria
“diferente” da união heteroafetiva, já que ambas formam famílias conjugais, na medida em que a mera
homogeneidade de sexos em um caso e diversidade de sexos em outro parece irrelevante já que em
ambos os casos temos uma família conjugal – se homoafetiva ou heteroafetiva, isso é irrelevante, já que
a família conjugal é formada pelo amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses,
de forma pública, contínua e duradoura (amor familiar), razão pela qual, existente dito amor familiar,
teremos uma família conjugal, sendo assim idênticas a família conjugal homoafetiva e a família conjugal
heteroafetiva (ou, no mínimo, análogas – e, sendo análogas, enquadram-se no mesmo conceito jurídico).
Trata-se de questão secundária, praticamente uma discussão terminológica, mas que me parece relevante
do ponto de vista do enquadramento de situações oriundas de lacunas normativas nos conceitos jurídicos
normatizados. Parece-me aqui ocorrer uma incompreensão sobre o instituto da analogia: estender um
regime jurídico por analogia pelo fato de a letra da lei/Constituição citar um fato e nada dispor sobre
outro não significa que este fato não citado pelo texto normativo não se enquadraria no conceito jurídico
aí normatizado. Ou seja, o fato de a lei e da Constituição citarem a expressão “o homem e a mulher” na
sua literalidade normativa ao tratar da união estável e do casamento civil não significa que só possa ser
caracterizada como união estável e como casamento civil a união entre um homem e uma mulher: o
reconhecimento do cabimento de interpretação extensiva ou analogia para a regulamentação judicial da
união homoafetiva significa que esta, por ser idêntica ou equivalente à união heteroafetiva se inclui nos
conceitos de união estável e de casamento civil.
Sobre a adoção conjunta por casais homoafetivos, em decisão que confirmou decisão do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, há o paradigmático REsp n.º 889.852/RS, no qual o relator, Ministro Luís
Felipe Salomão afirmou ser “Mister observar a imprescindibilidade da prevalência dos interesses dos
menores sobre quaisquer outros, até porque está em jogo o próprio direito de filiação, do qual decorrem
as mais diversas consequências que refletem por toda a vida de qualquer indivíduo”, razão pela qual “A
matéria relativa à possibilidade de adoção de menores por casais homossexuais vincula-se
obrigatoriamente à necessidade de verificar qual é a melhor solução a ser dada para a proteção dos
direitos das crianças, pois são questões indissociáveis entre si”, ao passo que “Os diversos e respeitados
estudos especializados sobre o tema, fundados em fortes bases científicas (realizados na Universidade de
Virgínia, na Universidade de Valência, na Academia Americana de Pediatria), ‘não indicam qualquer
inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do
vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga a seus cuidadores’”.
Assim, considerando a “Existência de consistente relatório social elaborado por assistente social
favorável ao pedido da requerente, ante a constatação da estabilidade da família” e por ser
“incontroverso que existem fortes vínculos afetivos entre a recorrida e os menores – sendo a afetividade
o aspecto preponderante a ser sopesado numa situação como a que ora se coloca em julgamento”, tem-se
que, “Se os estudos científicos não sinalizam qualquer prejuízo de qualquer natureza para as crianças, se
elas vêm sendo criadas com amor e se cabe ao Estado, ao mesmo tempo, assegurar seus direitos, o
deferimento da adoção é medida que se impõe”, pois “O Judiciário não pode fechar os olhos para a
realidade fenomênica. Vale dizer, no plano da ‘realidade’, são ambas, a requerente e sua companheira,
responsáveis pela criação e educação dos dois infantes, de modo que a elas, solidariamente, compete a
responsabilidade”. Ademais, afirmou-se, em reforço argumentativo, que “Não se pode olvidar que se
trata de situação fática consolidada, pois as crianças já chamam as duas mulheres de mães e são cuidadas
por ambas como filhos. Existe dupla maternidade desde o nascimento das crianças, e não houve qualquer
prejuízo em suas criações”. Assim, “Com o deferimento da adoção, fica preservado o direito de convívio
dos filhos com a requerente no caso de separação ou falecimento de sua companheira. Asseguram-se os
direitos relativos a alimentos e sucessão, viabilizando-se, ainda, a inclusão dos adotandos em convênios
de saúde da requerente e no ensino básico e superior, por ela ser professora universitária”, destacando-se
que “A adoção, antes de mais nada, representa um ato de amor, desprendimento. Quando efetivada com o
objetivo de atender aos interesses do menor, é um gesto de humanidade. Hipótese em que ainda se foi
além, pretendendo-se a adoção de dois menores, irmãos biológicos, quando, segundo dados do Conselho
Nacional de Justiça, que criou, em 29 de abril de 2008, o Cadastro Nacional de Adoção, 86% das
pessoas que desejavam adotar limitavam sua intenção a apenas uma criança”, donde “Por qualquer
ângulo que se analise a questão, seja em relação à situação fática consolidada, seja no tocante à expressa
previsão legal de primazia à proteção integral das crianças, chega-se à conclusão de que, no caso dos
autos, há mais do que reais vantagens para os adotandos, conforme preceitua o artigo 43 do ECA. Na
verdade, ocorrerá verdadeiro prejuízo aos menores caso não deferida a medida”.
Sobre o casamento civil, há o também paradigmático REsp n.º 1.183.378/RS, que reconheceu a um
casal de mulheres o direito ao casamento civil.
Tive o privilégio histórico de poder participar deste julgamento, por intermédio de sustentação
oral4, na qual afirmei que a ausência de artigo de lei/texto normativo proibitivo ao casamento civil
homoafetivo caracteriza possibilidade jurídica do pedido respectivo5 por força da lacuna normativa que
decorre desta ausência de proibição, lacuna esta passível de colmatação por interpretação extensiva ou
analogia6, decorrentes do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e do artigo
126 do Código de Processo Civil, o que deve ser feito porque o casamento civil visa regulamentar a
família conjugal, que se forma pelo amor familiar, ou seja, pelo amor romântico que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura7, consoante evolução
sociológica da família conjugal8 e pela interpretação teleológica dos artigos 1.511 e 1.723 do Código
Civil9, consoante, inclusive, reconhecido pelo STF – pois a decisão do Supremo reconheceu a união
homoafetiva como família conjugal consoante o conceito ontológico de família10 para, com base nisto, a
ela estender o regime jurídico da união estável, por analogia, ante a absoluta igualdade devida a ela
relativamente à união estável heteroafetiva11. Assim, destaquei da tribuna que caso não se considere
inconstitucional a teoria da inexistência do ato jurídico por sua flagrante afronta ao disposto no art. 5º,
inc. II, da CF/8812 e sua ilicitude por visar criar hipóteses de proibições de casamentos civis fora das
taxativas hipóteses do artigo 1.521 do Código Civil, tem-se que concluir que a “condição de
existência” do casamento civil e da união estável é a família conjugal, formada pelo amor familiar, não
a diversidade de sexos, donde juridicamente possível o pedido de casamento civil homoafetivo pela
ausência de proibição normativa ao mesmo e procedente ele no mérito, ante a união homoafetiva formar
uma família conjugal, que é o elemento valorativamente protegido e, portanto, o suporte fático dos
regimes jurídicos do casamento civil e da união estável, ante a ausência de motivação válida ante a
isonomia que justifique a discriminação da família conjugal homoafetiva relativamente à família conjugal
heteroafetiva.
Ou seja, apresentei argumentos puramente civilistas que permitem o reconhecimento da
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo, a saber, as clássicas interpretação extensiva ou
analogia, consagradas na legislação infraconstitucional pelo art. 4º da LINDB e pelo art. 126 do CPC!
A despeito de minha vocação constitucionalista, realizei uma sustentação oral destacando quase
exclusivamente os argumentos civilistas da interpretação extensiva e da analogia com base no art. 4º da
LINDB e no art. 126 do CPC, bem como no entendimento da possibilidade jurídica do pedido oriundo da
jurisprudência do STJ justamente por saber que há Ministros que entendem que o STJ não poderia
interpretar normas constitucionais ao cumprir sua tarefa de intérprete máximo da legislação
infraconstitucional (que foi a linha adotada pelo Ministro Raul Araujo, o qual, lamentavelmente, não se
dignou a enfrentar meus argumentos em seu voto vencido). O intuito foi justamente o de dar bases
puramente civilistas e infraconstitucionais para o reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento
civil homoafetivo, a saber: regulamentação de um fato não significa “proibição implícita” de outro
não citado pela norma, mas lacuna normativa que pode ser colmatada por interpretação extensiva ou
analogia.
De qualquer forma, para minha surpresa (por conta da citada postura de diversos integrantes do
STJ), o relator, Ministro Luís Felipe Salomão, proferiu um voto rico em fundamentação constitucional
sobre o tema, a favor do direito ao casamento civil a casais homoafetivos. Inicialmente, cabe destacar a
utilização da mesma argumentação relativa ao reconhecimento da possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva também para se reconhecer a possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo:
segundo o relator, “a interpretação conferida pelo acórdão recorrido aos arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535
e 1.565, todos do Código Civil de 2002, observada a máxima vênia, não é a mais acertada. [pois] Os
mencionados dispositivos não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não
há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios
constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os
do pluralismo e livre planejamento familiar”.
Para fundamentar tal conclusão (a meu ver, apenas reforça-la), o relator se pautou em grande gama
de argumentos, dos quais podemos destacar os seguintes: afirmou Sua Excelência que, considerando a
evolução do tratamento dispensado pela legislação ao casamento civil, que tinha como foco de proteção
o casamento em si, abstraindo-se por completo as pessoas integrantes do núcleo matrimonializado
individualmente consideradas (salvo a figura do marido), em detrimento de valores posteriormente
reconhecidos como os mais caros à pessoa humana, como dignidade e igualdade, passou-se, com a
Constituição de 1988, a consagrar uma “revolução normativa, com reconhecimento expresso de outros
arranjos familiares, rompendo-se, assim, com uma tradição secular de se considerar o casamento – civil
ou religioso –, com exclusividade, o instrumento por excelência vocacionado à formação de uma
família”, inaugurando uma nova fase do Direito das Famílias, mediante “adoção de um explícito
poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo
doméstico chamado ‘família’, recebendo todos eles a ‘especial proteção do Estado’” (art. 226, caput, da
CF/88), donde, com a Constituição de 1988, a família foi vista com um novo olhar, mais humanizado,
cujo foco, que antes era o casamento, voltou-se para a dignidade de seus membros.
Assim, afirmou o relator que “é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional
do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família
e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da
pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento – diferentemente do que ocorria com os
diplomas superados –, deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e,
ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o
intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável
dignidade. A fundamentação do casamento hoje não pode simplesmente emergir de seu traço histórico,
mas deve ser extraída de sua função constitucional instrumentalizadora da dignidade da pessoa
humana. Por isso não se pode examinar o casamento de hoje como exatamente o mesmo de dois
séculos passados, cuja união entre Estado e Igreja engendrou um casamento civil sacramental, de núcleo
essencial fincado na procriação, na indissolubilidade e na heterossexualidade”, donde “Com a
transformação e evolução da sociedade, necessariamente também se transformam as instituições sociais,
devendo, a reboque, transformar-se a análise jurídica desses fenômenos. O direito é fato, norma e valor -
qual clássica teoria tridimensional de Miguel Reale -, razão pela qual a alteração substancial do fato
deve necessariamente conduzir a uma releitura do fenômeno jurídico, à luz dos novos valores” (grifos
nossos).
Dessa forma, afirmou o relator que considerando que o casamento civil é o instituto jurídico que
maior segurança confere às famílias [conjugais], entendeu que a especial proteção que o Estado deve à
família impede que seja negado a qualquer dos diversos arranjos familiares – e isso “independentemente
de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos
possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a
dignidade das pessoas de seus membros e o afeto”13, pois entendimento em sentido contrário violaria o
princípio constitucional do livre planejamento familiar (art. 226, §7º), visto que “o planejamento familiar
se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e
desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará
a união”.
Destacou, ainda, que no julgamento pelo STF da ADPF 132 e da ADI 4277, acolheu-se o “princípio
geral de que, inexistindo vedação expressa na lei ou na Constituição, descabe cogitar-se de
impossibilidade jurídica do pedido”, donde “o mesmo raciocínio utilizado, tanto pelo STJ quanto pelo
STF, para conceder aos pares homoafetivos os direitos decorrentes da união estável, deve ser utilizado
para lhes franquear a via do casamento civil, mesmo porque é a própria Constituição Federal que
determina a facilitação da conversão da união estável em casamento (art. 226, § 3º)”, até porque “é
interessante notar que, se às uniões homoafetivas opunha-se o óbice da literalidade do art. 226, §3º,
CF/88, que faz expressa referência a ‘homem e mulher’, é bem de ver que não há a mesma alusão quando
a Carta trata do casamento civil (226, § 1º)” [“óbice” inexistente a meu ver, pois superável pela
interpretação extensiva ou analogia]. Os demais ministros da maioria (vencido o Ministro Araujo), em
síntese, entenderam que, se o STF entendeu que a expressão “entre o homem e a mulher” não impede o
reconhecimento da união estável homoafetiva, referida expressão do art. 1.514 do CC/02 também não
impede o reconhecimento do casamento civil homoafetivo [por interpretação extensiva ou analogia].
Como se vê, o STJ saiu de uma posição simplista que se limitava à letra fria da lei para não
reconhecer a união homoafetiva como união estável pelo simples fato de sua literalidade não a citar para
consolidar sua jurisprudência no sentido do cabimento da analogia para se reconhecer a união estável
homoafetiva (ou, caso se prefira, à união homoafetiva o regime jurídico da união estável, do que
discordo, por entender que o uso da analogia inclui a situação em questão no conceito jurídico em
questão, portanto, no conceito de união estável) e, ainda, possuir um julgado que reconhece o direito à
adoção conjunta um julgado que reconhece o direito ao casamento civil a casais homoafetivos, por se
reconhecer a união homoafetiva como família conjugal da mesma forma que se reconhece como tal a
união heteroafetiva. É, sem dúvida, um grande avanço jurisprudencial que reconhece a igualdade entre
casais homoafetivos e casais heteroafetivos.

1 Cf. STJ, REsp n.º 148.897/MG, 323.370/RS, 502.995/RN, 773.136/RJ e 648.763/RS. Em uma breve análise crítica desses
julgados, pode-se dizer que: (i) no REsp 148.897/MG, o STJ afirmou pela primeira vez a união homoafetiva como uma
“sociedade de fato” regida pelo Direito das Obrigações. Em que pese ter sido um avanço, pois na época mesmo a
aplicação da teoria das sociedades de fato às uniões homoafetivas poderia ser questionada, os Ministros aduziram que
entendiam que a situação não era idêntica à da união estável constitucionalizada, mas não explicitaram os motivos para
tanto. Neste caso não houve polêmica, pois os pedidos da ação originária requeriam apenas a aplicação do Direito
Obrigacional, mas os Ministros espontaneamente manifestaram-se nesse sentido, embora não tenham cumprido a
obrigação de apresentarem o motivo que justificaria essa diferença de tratamento jurídico às uniões homoafetivas em
relação às heteroafetivas, como determina a isonomia (que exige que aquele que pretende um tratamento diferenciado
justifica de maneira lógico-racional a pertinência dessa diferenciação); (ii) no REsp 323.370/RS, o Ministro Barros Monteiro
afirmou que a lei e a Constituição seriam “claras” ao dispor a união estável como a relação entre um homem e uma mulher
e, portanto, não haveria que se falar em lacuna na legislação. Ao que parece, foi uma forma de evitar enfrentar a questão
sob o enfoque da analogia. Contudo, o equívoco do Ministro foi gigantesco, pois o fato de um texto normativo citar uma
situação fática (no caso, a união entre o homem e a mulher) não leva à conclusão de inexistência de lacuna – a lacuna
existe justamente porque não há nenhum texto normativo que trate da outra situação (união homoafetiva, ou seja, entre
pessoas do mesmo sexo), seja para regulamenta-la ou para proibi-la. Para se acolher o raciocínio do Ministro ter-se-ia que
se reconhecer a inexistência de lacunas na legislação como um todo, negando-se a possibilidade de uso da analogia –
afinal, todo texto normativo cita uma situação fática, donde, pelo raciocínio do Ministro, isso faria com que se extinguisse a
possibilidade de existência de lacunas na legislação, o que evidentemente não é o caso. A aplicação da analogia em
decisões judiciais comprova o descabimento da posição exarada neste acórdão; (iii) no REsp 502.995/RN, o Ministro Jorge
Scartezzini citou a lição de Rainer Czajkowski, para quem a união homoafetiva não poderia formar uma entidade familiar por
não ter capacidade procriativa, assim como um artigo de Thiago Hauptmann Borelli Thomaz. Sobre a capacidade
procriativa, ela tanto não é requisito para a configuração de uma família e, assim, para o casamento civil e à união estável
que casais heteroafetivos estéreis, que não a possuem, são reconhecidos como entidades familiares e, portanto, a eles são
reconhecidos os regimes jurídicos do casamento civil e da união estável, donde percebe-se o equívoco do argumento. Mas
o curioso deste julgado encontra-se na citação do artigo de Thiago Hauptmann Borelli Thomaz, pois este autor, apesar de
reconhecer que, no plano fático, as uniões homoafetivas formam famílias, pensa que no plano jurídico elas não o
configurariam, embora ele não apresente a justificação para tanto. Ora, se uma união amorosa forma uma família conjugal
no plano fático (como a união homoafetiva forma), então ela deve ser protegida pelo Direito de Família e, portanto, ter a si
reconhecido o direito ao casamento civil e à união estável quando não incluída nos taxativos impedimentos matrimoniais
(constantes do artigo 1.521 do Código Civil), o que não é o caso das uniões homoafetivas. Percebe-se, assim, o equívoco
das premissas deste julgado; (iv) no REsp 773.136/RJ, a Ministra Nancy Andrighi relatou o posicionamento do STJ no REsp
148.897/MG e, posteriormente, afirmou que o acórdão do TJ/RJ que aplicou a analogia para reconhecer a união estável à
união homoafetiva daquele caso (tendo invocado, para tanto, os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana)
teria violado o art. 1o da Lei 9.278/1996 (que trata da união estável, mencionando a expressão “o homem e a mulher”) ao
conceder os efeitos jurídicos da união estável a situação jurídica supostamente “dessemelhante” (sic), razão pela qual deu
provimento ao recurso para negar o regime jurídico da união estável à união homoafetiva. Contudo, a Ministra não se dignou
a dizer porque ela considera a união homoafetiva uma situação jurídica supostamente “dessemelhante” à união
heteroafetiva. Como mencionado, a isonomia exige que aquele que pretenda um tratamento diferenciado apresente uma
fundamentação lógico-racional para justificar essa diferença de tratamento, ônus este não cumprido pela Ministra. O
simples fato de termos duas pessoas do mesmo sexo em um caso e duas pessoas de sexos diversos em outro não
justifica que se neguem os direitos da união estável àquela primeira situação, ante a ausência de motivação lógico-racional
a isso justificar, donde cabível a interpretação extensiva ou a analogia para suprir dita lacuna. Assim, considerando que a
Ministra não se dignou a explicitar uma motivação lógico-racional a justificar a discriminação jurídica perpetrada por sua
decisão (ante os direitos negados à união homoafetiva em razão da negativa de aplicação do regime jurídico da união
estável à hipótese), a referida decisão demonstrou-se inconstitucional e, portanto, inválida; (v) no REsp 648.763/RS, muito
embora tenha o relator trazido a fundamentação do Tribunal de 2o grau no sentido de que “em face de lacuna normativa
sobre o tema, dever-se-ia dispensar à situação, por analogia, o mesmo tratamento dado à união estável, vale dizer, a
divisão igualitária do acervo adquirido durante a constância da sociedade, presumindo-se tê-lo sido amealhado com o
esforço comum das partes”, o Ministro César Asfor Rocha se limitou a citar os precedentes supra enfrentados, sem
enfrentar o cerne da questão (cabimento ou não da analogia neste caso), o que não foi enfrentado, ao menos
adequadamente, nos precedentes anteriores (diz-se “adequadamente” porque no REsp 773.136/RJ a Ministra Nancy
Andrighi afastou a analogia ao afirmar que as situações seriam “dessemelhantes” mas não demonstrou em que elas seriam
“dessemelhantes”, donde inadequada a fundamentação). Assim, as mesmas críticas feitas àqueles arestos cabem a este,
donde não se pode aceitar também a sua conclusão quanto ao tema (note-se, apenas, que neste caso houve uma divisão
de 50% do patrimônio porque o companheiro homoafetivo provou ter contribuído com 50% do patrimônio, o que foi suficiente
à “teoria das sociedades de fato”, efetivamente aplicada). Anote-se que fizemos tais considerações sobre estes julgados
(bem como sobre todos os do STJ até o empate em 2x2 no REsp 820.475/RJ, adiante explicitado no corpo do texto e na
terceira nota de rodapé deste capítulo) em VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família. Casamento civil,
união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade humana. Uma resposta a Rafael D’Ávila
Barros Pereira. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1824, 29 jun. 2008. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/11441>. Acesso em: 2 out. 2012.
2 Com efeito: (i) no REsp 238.715/RS, o Ministro Humberto Gomes de Barros aduziu que é grande a celeuma em torno da
regulamentação da união homoafetiva, pois nada em nosso ordenamento jurídico disciplina os direitos oriundos dessa
relação tão corriqueira e notória nos dias atuais, e que, para casos tais, o art. 4o da LINDB impõe ao juiz exercer a analogia
quando da lacuna da lei, donde, por ser a relação homoafetiva análoga à união estável (embora dela diferente) em virtude do
seu caráter estável, duradouro e afetivo, é cabível a aplicação da analogia para estender o regime jurídico da união estável
às uniões homoafetivas. O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito ressalvou que seguia o relator apenas por se tratar de
caso de dependência econômica em planos de saúde, já que o Tribunal inferior desqualificou a aplicação do art. 226, §3o da
CF/88 – posição esta aparentemente contraditória, já que o Ministro superou a letra fria da lei para aplicar a analogia no
caso de dependência econômica para planos de saúde, mas deixou claro que não o faria para o caso da união estável.
Penso que faltou ao Ministro explicitar o motivo dessa diferença de posturas (aplicação da analogia em um caso, mas não
aplicação dela em outro), que se afigura amplamente contraditória por se tratarem de casos idênticos (superação de lacuna
na lei, que cita apenas a união heteroafetiva mas não a união homoafetiva, que são idênticas ou, no mínimo, análogas, o
que justifica o posicionamento do Ministro relator). Já o Ministro Castro Filho afirmou que o caso era de verificar a afronta
aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana e, a seu ver, não poderia o STJ fazê-lo, por ser a
interpretação da Constituição supostamente excluída da competência do STJ. Contudo, esse posicionamento (de parte da
doutrina) é equivocado, já que em nosso sistema misto de controle de constitucionalidade todo e qualquer tribunal (donde,
portanto, também o STJ) tem competência para analisar incidentalmente (no caso concreto) a constitucionalidade das leis –
como diversos julgados do STJ já comprovaram (ao analisar a constitucionalidade de leis), donde é este tribunal
competente para tanto; (ii) no REsp 395.904/RS, que versou sobre caso previdenciário, manifestou-se o Ministro Hélio
Quaglia Barbosa no sentido de que não merece prosperar a tese no sentido de suposta impossibilidade de concessão de
pensão por morte a companheiro homossexual em razão da ausência de previsão legal, na medida em que a matéria versa
exclusivamente sobre Direito Previdenciário e não sobre Direito de Família, donde não é apenas o art. 226, §3o da CF/88
que deve ser analisado, mas também o princípio da igualdade, que jamais pode estar dissociado do princípio da justiça, em
seu sentido mais puro. Ademais, apontou o Ministro que não há igualdade jurídica no não​-direito, donde, a negativa de
direitos fundamentais, entre eles o de sobrevivência, mediante percebimento de benefícios previdenciários a pessoas que,
se fossem de sexos diferentes, lograriam êxito em auferi-los, implica o surgimento de um não direito, situação que fere a
isonomia constitucional. Apontou, ainda, que o teor do art. 226, §3o da CF/88 conceituou a união estável sem, contudo,
excluir a relação homoafetiva, assim como inexiste tal espécie de exclusão no campo do Direito Previdenciário, que não se
identifica com o Direito de Família. Assim, reconheceu a existência de uma lacuna que deve ser preenchida mediante
acesso a outras fontes do Direito, nos termos do art. 4o da LINDB, incumbindo ao Judiciário, através dos princípios
hermenêuticos, preencher as lacunas existentes na lei, adequando-as às necessidades sociais. Apontou que pretender,
com esteio em regras estratificadas, alijar parte da sociedade – inserida nas relações homoafetivas, da tutela do Poder
Judiciário, por falta de previsão legal expressa, constituirá ato discriminatório, inaceitável à luz do princípio insculpido no art.
5o, caput, da Constituição Federal. Afirmou que, apesar de o Direito não regular sentimentos, dispõe ele sobre os efeitos
que a conduta determinada por esse afeto pode representar como fonte de direitos e deveres, criadores de relações
jurídicas previstas nos diversos ramos do ordenamento, algumas interessando no Direito de Família, como o matrimônio
civil e, hoje, a união estável, outras ficando a margem dele, lembrando que a própria mulher, por séculos a fio, era tratada
pelo sistema jurídico como relativamente incapaz. Dessa forma, reconheceu como suficientemente preenchidas as
exigências da Lei n. 8.213/91, comprovadas a qualidade de segurado do de cujus e a convivência afetiva e duradoura entre
o segurado e o autor, donde, por analogia, negou provimento ao recurso. Em voto-vista, o Ministro Paulo Medina iniciou seu
voto apontando que o recorrente apontou violação ao conceito de companheiro(a) disposto pelo artigo 16, §3o da Lei
8.213/91 que, por sua vez, se reporta ao artigo 226, §3o da Constituição Federal. Ato contínuo, seguindo a lição de Luís
Roberto Barroso, apontou que toda interpretação é produto de sua época, donde entendeu que não se trata o conceito de
companheiro de um conceito jurídico hermético, que não possa se interpretar de maneira extensiva para melhor atender a
uma realidade que não foge aos olhos (a realidade homoafetiva), apontando ainda para a necessidade das normas
infraconstitucionais serem interpretadas tendo em vista a Constituição Federal como uma unidade, ao passo que não se
pode negar que se está diante de uma tensão e contradição com a negativa do reconhecimento da pensão por morte ao
companheiro homoafetivo. Mas aponta que, de um lado, a Lei 8.213/91 adotou como conceito de entidade familiar o modelo
da união estável entre homem e mulher, sem, entretanto excluir expressamente a união homoafetiva e, de outro, que há
uma realidade em que o segurado contribuiu uma vida toda para a Previdência Social e tinha como seu dependente um
companheiro do mesmo sexo, constituindo assim, de acordo com as provas carreadas aos autos, uma verdadeira entidade
familiar. Assim, destacou que o princípio da igualdade impõe igual tratamento, além de ressaltar que onde o legislador não
determinou uma exclusão expressa, não cabe ao intérprete do Direito fazê-la, sob pena de se descumprir preceito
fundamental da Constituição, que é a igualdade entre homens e mulheres. Assim, concluiu que a Lei 8.213/91, deve ser
interpretada conforme a Constituição, empregando-se uma interpretação extensiva, onde há uma verdadeira lacuna pelo
legislador, razão pela qual também negou provimento ao recurso do INSS [note-se, apenas, que nestes julgados, a LINDB –
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro foi citada como LICC – Lei de Introdução ao Código Civil, pois este era o
nome então atribuído a dita legislação). Anote-se que fizemos considerações mais sintéticas sobre este julgado (bem como
sobre todos os do STJ até o empate em 2x2 no REsp 820.475/RJ, adiante explicitado no corpo do texto e na próxima nota
de rodapé) em VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família. Casamento civil, união estável e adoção por
casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade humana. Uma resposta a Rafael D’Ávila Barros Pereira. Jus
Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1824, 29 jun. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11441>. Acesso em: 2 out.
2012.
3 No REsp 820.475/RJ prevaleceu a posição do Ministro Antônio de Pádua Ribeiro (seguida pelos Ministros Massami Uyeda e
Luís Felipe Salomão), no sentido de que os precedentes do STJ que classificam a união homoafetiva como mera
“sociedade de fato” devem evoluir para alcançar novas possibilidades, tendo em vista que “Não há norma no ordenamento
jurídico que regule o direto na relação homossexual, mas não é por isso que este caso ficará sem resposta”, tendo em vista
que somente há impossibilidade jurídica do pedido quando há texto normativo que isto afirme expressamente. Assim,
concluiu no sentido de que inexiste dita proibição no que tange à união homoafetiva e, dado o caráter análogo desta em
relação à união estável constitucionalmente consagrada, aplicou a analogia para estender à união homoafetiva em questão
os benefícios da legislação da união estável. Até porque, como citado pelo Ministro Massami Uyeda, os fatos da vida são
dinâmicos e muitas vezes não previstos em lei, afirmando ainda que quando a lei for omissa o juiz pode decidir por analogia
a regras já estabelecidas, donde reconheceu o cabimento da união estável homoafetiva, por analogia. Descabida a
afirmação dos votos vencidos (Ministros Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Neto) no sentido de que a Constituição
teria sido “bem clara” ao tratar da união estável mencionando apenas a expressão “entre o homem e a mulher” porque isto
configura lacuna normativa (texto normativo dispor sobre um fato sem nada falar sobre outro) passível de colmatação por
interpretação extensiva ou analogia, visto inexistir texto normativo que restrinja a união estável à união entre um homem e
uma mulher mediante um termo como “apenas/somente/unicamente” ou equivalente, de sorte a ser possível e necessária a
colmatação de tal lacuna normativa mediante interpretação extensiva ou analogia, tanto por lições de Direito Civil Clássico
quanto, especialmente, por força da isonomia, que demanda tratamento igual a situações idênticas ou equivalentes, dada a
inexistência de motivação lógico-racional que justifique entendimento em sentido contrário. Assim, como dito pelo Ministro
Luís Felipe Salomão, “Os dispositivos mencionados limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem
e mulher que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem
restringir eventual união entre dois homens ou duas mulheres”, donde ““Admite-se a integração mediante o uso da analogia,
a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo
legislador”.
4 Escrevi um relato de dez páginas com todos os detalhes da minha experiência no caso, desde minha descoberta do mesmo
(não era o advogado delas) até o teor da sustentação oral e algumas repercussões:
http://pauloriv71.wordpress.com/2011/11/07/o-stj-e-o-casamento-civil-homoafetivo-relato-n-%C2%BA-2/. Em síntese, soube
por acaso do julgamento dois dias antes dele por notícia do site do STJ, descobri o número do processo pela internet,
contatei o advogado delas, ele e elas me autorizaram a realizar a sustentação oral, muito elogiada pelos ministros e por
elas, e concedi algumas entrevistas após o primeiro e o último dia do julgamento, sempre destacando o trabalho dos outros
advogados do casal e do Grupo SOMOS, do Rio Grande do Sul, organização não governamental de defesa dos direitos da
população LGBT que deu o suporte jurídico ao casal até o referido julgamento do STJ. Aproveito, aqui, para homenagear o
Dr. Gustavo Bernardes, advogado e militante LGBT que tenho o prazer de conhecer que foi quem elaborou a petição inicial,
a apelação e o recurso especial em favor do casal e foi, assim, quem possibilitou o conhecimento do caso pelo Superior
Tribunal de Justiça. O Dr. Gustavo também elaborou um relato de sua experiência neste caso, que pode ser localizado no
seguinte link: http://pauloriv71.wordpress.com/2011/11/07/o-stj-e-o-casamento-civil-homoafetivo-relato-n-%C2%BA-1/
5 Consoante jurisprudência pacífica do STJ, que exige texto normativo expresso que proíba determinado pedido para que ele
seja considerado juridicamente impossível, entendimento este expressamente aplicado pelo Tribunal para reconhecer a
possibilidade jurídica da união estável homoafetiva no REsp n.º 820.475/RJ e no REsp n.º 827.962/RS (entre outros, que
não o citaram).
6 Rememorando: interpretação extensiva caso se considere as situações idênticas, por ambas formarem uma família
conjugal, ou analogia caso se considere que a identidade de sexos em um caso e a diversidade de sexos em outro
configuraria uma “diferença”, pois neste caso ter-se-á que concluir que ambas são idênticas no essencial, que é o fato de
formarem uma família conjugal, objeto valorativamente protegido pelo casamento civil e pela união estável.
7 Cf. Capítulo 5, pp. 196-211 (“2.4.1. O Amor Familiar como o Elemento formador da Família Contemporânea”).
8 Sobre o tema, vide a excelente lição de RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no Direito, Porto Alegre: Editora Livraria
do Advogado, 2001, pp. 103-105, que explica a superação da opressora família hierárquico-patriarcal [na qual o homem
mandava despoticamente na sociedade conjugal heteroafetiva], sua evolução para a família fusional [que se forma e se
mantém apenas se houver afeto romântico na relação conjugal] e a chegada da família pós-moderna, do final do século XXI,
na qual as relações se pautam muito mais na solidariedade e no afeto do que na mera função procriativa da família [família
eudemonista, a que se forma e se mantém unicamente se isto trouxer felicidade aos seus membros].
9 Afinal, o art. 1.511 aduz que o casamento civil estabelece a comunhão plena de vida entre os cônjuges e o art. 1.723 afirma
que a união estável é a união pública, contínua e duradoura, com o intuito de constituir família, sendo que “constituir família”
não significa “ter filhos”, “querer ter filhos” nem “poder ter filhos”, mas manter a citada comunhão plena de vida e interesses
(capacidade procriativa não é requisito para reconhecimento de uma união conjugal como entidade familiar ante a não
proibição do casamento civil e da união estável a casais heteroafetivos estéreis, que não possuem capacidade procriativa –
afinal, se ela fosse requisito do casamento civil e da união estável, casais heteroafetivos estéreis não teriam a si
reconhecidos tais regimes jurídicos).
10 Cf. voto do Ministro Fux na ADPF 132 e na ADI 4277, pp. 11-14.
11 Cf. voto do Ministro Ayres Britto na ADPF 132 e na ADI 4277, pp. 46-47, ao afirmar que aqui o reino é da “igualdade pura e
simples” entre casais homoafetivos e casais heteroafetivos, tanto em termos de casamento civil quanto da união estável,
por afirmar que em nenhum momento há interdição a que casais homoafetivos consagrem sua união pelo casamento civil
ou tenham-na reconhecida como união estável (segundo o Ministro, “tanto numa quanto noutra modalidade de legítima
constituição da família, nenhuma referência é feita à interdição, ou à possibilidade,de protagonização por pessoas do
mesmo sexo”, o que, acrescente-se, caracteriza a lacuna normativa passível de colmatação por interpretação extensiva ou
analogia).
12 Afinal, ao atribuir ao ato taxado de “inexistente” a mesma pena do ato nulo, que é a destruição de todos os efeitos
eventualmente produzidos com eficácia ex tunc (retroativa), a “teoria da inexistência” visa atribuir a ele a mesma pena do
ato nulo, com a enorme diferença segunda a qual a nulidade supõe condições de validade expressamente erigidas pela
legislação por enunciado normativo expresso ante a regra segundo a qual não há nulidade sem texto, que tem seu
fundamento teleológico no art. 5º, inc. II, da CF/88, ao passo que as supostas “condições de existência” decorrem do puro
subjetivismo do intérprete e não de texto expresso de lei (v.g., o que alguém considera como “essencial/da natureza” do
casamento civil não é necessariamente o que outro assim considera), o que afronta inclusive os princípios da legalidade e
da segurança jurídica, tratando-se de teoria que claramente visa burlar a regra segundo a qual não há nulidade sem texto ao
pretender atribuir ao ato taxado de inexistente a mesma pena do ato nulo a despeito de inexistir enunciado normativo que
isto justifique.
13 Segundo o relator: “O que importa agora, expressa a Constituição Brasileira de 1988, é que essas famílias multiformes
recebam efetivamente a ‘especial proteção do Estado’, e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que
a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor
protege esse núcleo doméstico chamado família. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o
Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os ‘arranjos’ familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser
negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que
as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais
heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto”.
Capítulo 13

A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Na primeira edição desta obra, afirmei que ainda não se podia falar da existência de um
posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade jurídica do casamento civil, da
união estável e da adoção conjunta por casais homoafetivos pela ausência de manifestação por parte do
órgão pleno de nossa Suprema Corte – se isso continua verdadeiro sobre casamento civil e sobre adoção
conjunta, já não é mais relativamente à união estável, na medida em que o histórico julgamento da ADPF
132 e da ADI 4.277, em 05.05.2011, reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar merecedora
de igualdade de direitos relativamente à união heteroafetiva, aplicando-se interpretação conforme à
Constituição ao art. 1.723 do CC/2002 para “excluir do dispositivo em causa qualquer significado que
impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como
família”; e, como dito dispositivo legal versa sobre a união estável, então referida interpretação
conforme efetivamente reconheceu a união homoafetiva como união estável, por interpretação extensiva
ou analogia à literalidade normativa. Ora, se a união estável é o regime jurídico objeto de dito texto
normativo e se a união estável visa regulamentar a família conjugal, então o afastamento de qualquer
significado tendente a excluir o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do
mesmo sexo como família [conjugal], então é correto concluir que o STF estendeu o regime jurídico da
união estável a casais homoafetivos que atendam os requisitos legais de continuidade, publicidade,
durabilidade e intuito de constituir família (requisitos estes impostos por dito dispositivo legal para a
caracterização da união estável).
Sobre o casamento civil, temos a manifestação monocrática do Ministro Ayres Britto no citado
julgamento, ao passo que temos manifestação monocrática do Ministro Marco Aurélio negando
seguimento a recurso extraordinário que impugnava decisão paranaense concessiva de adoção a casal
homoafetivo.
Analisemos, assim, os posicionamentos do STF acerca da conjugalidade homoafetiva e da adoção
por casais homoafetivos.

2. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 406.837/SP (RELATOR MINISTRO EROS GRAU)


Ao apreciar o recurso extraordinário em comento, no qual a recorrente alegou afronta ao princípio
da igualdade em razão de não lhe ser deferido o regime jurídico da união estável sob a equivocada
fundamentação de que tal regime só seria possível na relação de um homem e uma mulher, o Ministro
Eros Grau não conheceu do recurso por entender que não foi atendido o requisito do prequestionamento
da matéria. Não enfrentarei essa questão puramente processual – o que enseja este tópico é a breve
manifestação do Ministro acerca do tema de mérito, pois, muito embora não tenha conhecido do recurso,
ele manifestou sua opinião acerca da matéria de fundo.
Nesse sentido, afirmou o Ministro-Relator1 que seria “insubsistente, também, a pretensão de ver
aplicada à hipótese destes autos – pagamento de pensão estatutária em virtude de união homossexual – o
disposto no artigo 226, § 3.º, da Constituição do Brasil”, pois “este preceito, embora represente avanço
na esfera do direito social, somente reconhece como entidade familiar, para efeito de proteção do Estado,
a união estável entre o homem e a mulher, desde que entre esses não se verifique nenhum impedimento
legal à conversão dessa união em casamento”.
Como se vê, o Ministro não entrou no cerne da questão, a saber, a apreciação da discriminação
decorrente da negação do regime jurídico da união estável sob o enfoque do princípio da igualdade. Em
verdade, não o fez deliberadamente, pois, por entender que não foi cumprido o requisito do
prequestionamento, afirmou em trecho imediatamente anterior ao supratranscrito que, “por constituir-se
questão de mérito, a controvérsia pertinente à aplicação do princípio da isonomia não pode ser
submetida à apreciação desta Corte”2. Isso porque, inexistindo prequestionamento, o Supremo não
aprecia a alegação de mérito respectiva.
Não obstante, o Ministro Eros Grau deixou a entender que não considera a união estável um regime
jurídico aplicável às uniões homoafetivas ante o argumento simplista de que a redação do dispositivo
constitucional se refere exclusivamente à relação entre o homem e a mulher. Nesse sentido, conforme já
demonstrado pormenorizadamente neste trabalho, a fundamentação é equivocada, justamente por não
analisar o conteúdo jurídico do princípio da igualdade, que veda discriminações arbitrárias e exige uma
motivação lógico-racional que justifique a discriminação permitida com base no critério discriminador
erigido, exigindo a aplicação da interpretação extensiva ou da analogia caso a situação não citada seja
idêntica ou fundamentalmente idêntica à citada – como ocorre com a união homoafetiva em relação à
heteroafetiva, de uma forma ou de outra.
Por outro lado, a fundamentação é equivocada quando afirma que o art. 226, § 3º, da CF/1988 teria
reconhecido somente a união estável entre o homem e a mulher – este somente não está escrito, donde
não há limites semânticos no texto que impeçam o reconhecimento da exegese analógica inclusiva da
união homoafetiva no conceito jurídico-constitucional de união estável3 – e, como não há limites
semânticos no texto, considerando que os princípios constitucionais condicionam a interpretação das
regras constitucionais por sua hierarquia axiológica sobre estas4, afigura-se completamente descabida
uma interpretação do § 3º do art. 226 da CF/1988 de forma discriminatória, por isto não se
compatibilizar com os princípios da igualdade (art. 5.º), da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III) e
com a vedação constitucional de preconceitos de qualquer natureza (art. 3.º, IV), sucedâneo da isonomia
expressamente positivado pela Carta Magna.
O que parece, em verdade, é que o Ministro adiantou a sua pré-compreensão sobre o tema – uma
pré-compreensão arbitrária, por desprovida de uma fundamentação lógico-racional que a justifique.
A conclusão do Ministro é, ainda, contrária a uma tese geral dele próprio, a saber, aquela segundo a
qual jamais existiria contradição entre princípios e regras em virtude de estas serem sempre
concretizações daqueles5. A contradição existe na medida em que interpretar a regra da união estável de
forma a excluir desse conceito a união estável homoafetiva implica contradição entre a regra da união
estável e o princípio da isonomia, que não foi enfrentado pelo Ministro, donde aquela regra jamais pode
ser interpretada de forma a contrariar esse princípio6.
De qualquer forma, como o Ministro não se manifestou acerca do cerne da questão (isonomia) e não
apresentou, assim, os motivos que lhe fazem considerar incabível a interpretação extensiva ou a analogia
no caso concreto, verifica-se que sua opinião manifestada naquele julgamento é equivocada, visto que a
união homoafetiva constitui uma família que merece proteção jurídica por ser formada pelo amor
romântico que visa a comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, da
mesma forma que as uniões heteroafetivas, o que obriga a utilização da interpretação extensiva ou então
da analogia no caso em questão.

3. A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.300/DF (RELATOR MINISTRO


CELSO DE MELLO) E A PETIÇÃO 1.984/RS (RELATOR MINISTRO MARCO AURÉLIO)
A Pet. n.º 1.984/RS, analisada pelo Ministro Marco Aurélio, então Presidente do STF, referia-se a
suspensão de segurança pleiteada pelo INSS contra decisão proferida na ação civil pública n.º
2000.71.00.009347-0, que havia deferido antecipação de tutela para obrigá-lo a reconhecer o(a)
companheiro(a) homoafetivo(a) como dependente de benefícios previdenciários.
Após afirmar que o exame de pedidos de suspensão de segurança não pode prescindir do exame do
fundamento jurídico do pedido, o Ministro Marco Aurélio assim se manifestou: “Constitui objetivo
fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV do art. 3º da Carta Federal).
Vale dizer, impossível é interpretar o arcabouço normativo de maneira a chegar-se a enfoque que
contrarie esse princípio basilar, agasalhando-se preconceito constitucionalmente vedado. O tema foi bem
explorado na sentença (folhas 351 à 423), ressaltando o Juízo a inviabilidade de adotar-se interpretação
isolada em relação ao art. 226, § 3º, também do Diploma Maior, no que revela o reconhecimento da
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. Considerou-se, mais, a impossibilidade
de, à luz do art. 5º da Lei Máxima, distinguir-se ante a opção sexual. Levou-se em conta o fato de o
sistema da Previdência Social ser contributivo, prevendo a Constituição o direito à pensão por morte do
segurado, homem ou mulher, não só ao cônjuge, como também ao companheiro, sem distinção quanto ao
sexo, e dependentes – inciso V do artigo 201. Ora, diante desse quadro, não surge excepcionalidade
maior a direcionar à queima de etapas. A sentença, na delicada análise efetuada, dispôs sobre a
obrigação de o Instituto, dado o regime geral de Previdência Social, ter o companheiro ou companheira
homossexual como dependente preferencial. Tudo recomenda que se aguarde a tramitação do processo,
atendendo-se às fases recursais próprias, com o exame aprofundado da matéria. Sob o ângulo da tutela,
em si, da eficácia imediata da sentença, sopesaram-se valores, priorizando-se a própria subsistência do
beneficiário do direito reconhecido. É certo que restou salientada a eficácia da sentença em todo o
território nacional. Todavia este é um tema que deve ser apreciado mediante os recursos próprios, até
mesmo em face da circunstância de a Justiça Federal atuar a partir do envolvimento, na hipótese, da
União. Assim, não parece extravagante a óptica da inaplicabilidade da restrição criada inicialmente pela
Medida Provisória nº 1.570/97 e, posteriormente, pela Lei nº 9.497/97 à eficácia erga omnes, mormente
tendo em conta a possibilidade de enquadrar-se a espécie no Código de Defesa do Consumidor. 3.
Indefiro a suspensão pretendida”.
Ou seja, neste precedente o Ministro Marco Aurélio reconheceu a plausibilidade do pedido de
reconhecimento do direito de companheiros(as) homoafetivos(as) como dependentes da seguridade
social. Do contrário, não teria feito referência à necessidade de se analisar os fundamentos jurídicos do
pedido no julgamento de suspensões de segurança. É o que demonstra sua menção ao fato de a
Constituição ter como objetivo fundamental o bem de todos, sem preconceitos (art. 3º, inc. IV, da
CF/1988) e que o arcabouço normativo vigente (aí incluído o art. 226, § 3º, da CF/1988, citado pela
decisão) não poderia ser interpretado isoladamente, mas em consonância com este princípio basilar
contrários a preconceitos diversos. Logo, tenho que este foi o primeiro posicionamento favorável ao
reconhecimento dos direitos de casais homoafetivos no âmbito do Supremo Tribunal Federal (por ter
sido proferido antes do voto do Ministro Celso de Mello na ADIn n.º 3.300, de maior notoriedade,
infraexplicitada), ainda que de forma sumária, por ser um julgamento de suspensão de segurança (que não
supõe profunda análise do mérito da ação originária, mas apenas a análise da plausibilidade jurídica dos
pedidos).
Analisemos, agora, a ADIn 3.300/DF.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.300, apresentada por associações de defesa dos
direitos dos homossexuais, impugnou o art. 1.º da Lei 9.278/1996 no que tange à expressão “o homem e a
mulher”, requerendo a declaração da inconstitucionalidade parcial da mesma, por afronta ao princípio da
igualdade, para que fosse permitida a união estável homoafetiva. Contudo, a ação acabou não sendo
apreciada pelo Órgão Pleno do Supremo Tribunal Federal. Isso porque o Relator Ministro Celso de
Mello acabou extinguindo o processo, sem resolução de mérito, por entender que a Lei 9.278/1996 (que
regulamentou a união estável) acabou sendo derrogada pelo Código Civil de 2002, que igualmente tratou
da união estável em seus arts. 1.723 a 1.727, razão pela qual se impunha a extinção do processo em razão
de a Jurisprudência do Supremo não admitir Ação Direta de Inconstitucionalidade em face de textos
normativos revogados.
Essa questão da eventual derrogação das Leis de União Estável pelo Novo Código Civil ainda
divide a doutrina, pois há quem entenda que o Código Civil, por ser lei geral, não poderia derrogar a
referida lei, por se tratar de legislação especial. Por outro lado, os adeptos da tese da derrogação
afirmam que o Diploma Civil, ao tratar especificamente do tema, efetivamente revogou tacitamente
aquela lei por ter elaborado disposições especiais sobre o assunto.
Mas não cabe entrar nesse ponto do debate. Isso porque o interessante dessa decisão monocrática do
Ministro Celso de Mello encontra-se em suas ponderações acerca do mérito da demanda – muito embora
tenha extinguido o processo, manifestou seu entendimento sobre a questão. Apontou inicialmente que se
trata de questão constitucional de alta relevância social e jurídico-constitucional, referente à qualificação
jurídica das uniões homoafetivas como entidades familiares. Registrou, “quanto à tese sustentada pelas
entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva,
utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana,
da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e
da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto
o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da
legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir
que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes consequências no plano do Direito e na
esfera das relações sociais”. Anotou que “essa visão do tema, que tem a virtude de superar, neste início
de terceiro milênio, incompreensíveis resistências sociais e institucionais fundadas em fórmulas
preconceituosas inadmissíveis, vem sendo externada, como anteriormente enfatizado, por eminentes
autores, cuja análise de tão significativas questões tem colocado em evidência, com absoluta correção, a
necessidade de se atribuir verdadeiro estatuto de cidadania às uniões estáveis homoafetivas”. Citou as
obras de Luis Edson Fachin, Luis Salem Varella e Irene Innwilkl Salem Varella, Roger Raupp Rios, Ana
Carla Harmatiuk Matos, Viviane Girardi, Taísa Ribeiro Fernandes e José Carlos Teixeira Giorgis, mas
deu especial realce à “notável lição ministrada pela eminente Desembargadora Maria Berenice Dias
(União Homossexual: O Preconceito & a Justiça, 2.ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2001, p. 71-83 e p. 85-99), destacando da obra da autora a lição segundo a qual a família não se define
exclusivamente em razão do vínculo entre um homem e uma mulher ou da convivência dos ascendentes
com seus descendentes, pois também o convívio de pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes,
ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, cabe ser reconhecido como entidade familiar, além
de não serem a prole ou a capacidade procriativa essenciais para que a convivência de duas pessoas
mereça a proteção legal, descabendo deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas,
donde, presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem
os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas
características. Destacando, ainda, o fato de que não se pode fechar os olhos a essas novas realidades,
não se podendo confundir questões jurídicas com questões de caráter moral ou meramente religioso,
donde se deve reconhecer que formam as relações homoafetivas vínculos em que há comprometimento
amoroso e, portanto, a elas estender o regime jurídico da união estável, por analogia. Cita o Ministro,
ainda, julgados do TJ/RS e do TRF da 4.a Região que aplicaram a analogia às uniões homoafetivas: o
primeiro por força dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade (TJ/RS,
Apelação Cível 70005488812, Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, 7.ª Câmara Civil); e o segundo
pela constatação de que a exclusão dos benefícios previdenciários em razão da orientação sexual, além
de constituir prática discriminatória, retira da proteção estatal pessoas que, por imperativo
constitucional, deveriam encontrar-se por ela abrangidas, discriminação esta que implica dispensar
tratamento indigno ao ser humano (Revista do TRF/4.ª Região, vol. 57/309-348, 310, Rel. Des. Federal
João Batista Pinto Silveira).
Como se pode ver, o Ministro Celso de Mello, muito embora se tenha visto obrigado a extinguir o
processo por uma questão insuperável de ordem formal, posicionou-se no sentido da possibilidade
jurídica da união estável homoafetiva nos dias de hoje, por meio da analogia e dos princípios da
dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da
intimidade, da não discriminação (todos estes constitucionalmente consagrados) e da busca da felicidade
(inerente ao da dignidade humana). O fato de ter citado e prestigiado as lições de Maria Berenice Dias,
já citada por diversas vezes neste trabalho, assim como de decisões jurisprudenciais do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, que reconhece dita possibilidade jurídica, denota claramente que ele
concorda com as teses por estes esposadas.
Deve-se aplaudir o Ministro Celso de Mello por ter tido a coragem de se manifestar favoravelmente
ao tema da união estável homoafetiva mesmo não estando obrigado a tanto, tendo em vista que extinguiu o
processo sem apreciação do mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade em comento. Mas o
importante foi ele ter apreciado diretamente a questão dos princípios da isonomia e da dignidade da
pessoa humana, assim como os da liberdade, da autodeterminação, do pluralismo, da intimidade e da
busca da felicidade.
Falo isso porque minha maior crítica às decisões jurisprudenciais que negam a extensão da união
estável aos casais homoafetivos é o fato de não se manifestarem a respeito dos citados princípios,
limitando-se a usar o argumento simplista de que a letra fria da lei cita apenas o fato heteroafetivo (união
amorosa entre o homem e a mulher) – o que é irrelevante, pois se a situação fática não citada pela norma
possui o mesmo valor protegido pela situação fática por ela citada/regulamentada, então é obrigatória a
aplicação da interpretação extensiva ou da analogia para garantir o mesmo regime jurídico àquela
situação não expressada (que, no caso, é o fato homoafetivo, a saber, a união amorosa entre dois homens
ou duas mulheres), o que deixa a impressão de que ditos opositores do status jurídico-familiar das
uniões homoafetivas não enfrentam a questão sob o enfoque da isonomia por não saberem como
justificar de forma lógico-racional a discriminação por eles pretendida, embora continuem
arbitrariamente a perpetrá-la...
Ou seja, por mais que venha a discordar de eventuais alegações no sentido da suposta (e inexistente)
pertinência da exclusão das uniões homoafetivas do âmbito do Direito das Famílias, pelo menos
respeitarei aqueles justifiquem sua posição, no sentido de explicar o porquê de pensarem assim. Afinal,
dizer que a letra da lei não cita a situação defendida não significa absolutamente nada, implicando um
legalismo positivista de há muito ultrapassado pela ciência jurídica, pois a interpretação extensiva e a
analogia existem justamente para garantir que situações que não foram citadas/regulamentadas pelo texto
normativo, mas que sejam idênticas ou fundamentalmente idênticas às efetivamente
citadas/regulamentadas, tenham a si garantido o mesmo regime jurídico das expressadas pela norma, em
decorrência do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado.
Em outras palavras, negar um regime jurídico a determinadas pessoas sob o fundamento da falta de
menção expressa pela lei, sem justificar o porquê da não extensão daquele Direito à situação omitida
pela interpretação extensiva ou pela analogia, implica negativa de vigência ao quanto disposto nos arts.
4.º da LINDB e 126 do CPC, que afirmam que a analogia e os princípios gerais do Direito devem ser
utilizados no caso da omissão legislativa como forma de integração das lacunas da lei, não se eximindo o
juiz de sentenciar e, consequentemente, analisar o mérito da questão pelo simples fato de a lei não tê-la
citado expressamente. Tal postura arbitrária implica, ainda, afronta direta ao art. 5.o, II, da CF/1988, pois
deixa de aplicar uma lei sem justificar essa postura, ao passo que aquele dispositivo constitucional, ao
consagrar o princípio da legalidade, determina que as leis sejam aplicadas7. Além, é claro, de dita
negativa ensejar inconstitucionalidade por afronta aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa
humana, da liberdade de consciência, da promoção do bem-estar de todos, da laicidade estatal e da
vedação de criação de distinções de brasileiros entre si.
Perfeito tal entendimento, por se caracterizar como o único que pode evitar a perpetração da
inconstitucionalidade atinente à negação do direito à união estável (e, pelos mesmos fundamentos, ao
casamento civil) às uniões homoafetivas (ou incompatibilidade com os demais valores constitucionais).
Aplaude-se, assim, a decisão do Ministro Celso de Mello, pois certamente esta manifestação
monocrática instigou os demais ministros do STF a se debruçarem sobre o tema do status jurídico-
familiar da união homoafetiva, podendo ser caracterizada como primeiro passo da Suprema Corte para o
reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar no julgamento, aproximadamente sete anos
depois, da ADPF n.º 132 e da ADI n.º 4.277, infra-analisado.

4. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL 24.564 (RELATOR MINISTRO GILMAR FERREIRA


MENDES)
O Ministro Gilmar Ferreira Mendes teve a oportunidade de enfrentar uma questão relativa à
homoafetividade quando do julgamento de um recurso especial eleitoral, em sua função de Ministro do
Tribunal Superior Eleitoral.
O caso versou sobre o registro de candidatura da companheira homoafetiva de uma deputada de
Viseu/PA à prefeitura daquela cidade, que foi impugnado sob o fundamento de ela manter uma união
estável com dita deputada, argumentação esta que foi acolhida pelo juiz eleitoral respectivo sob o
fundamento de afronta ao art. 14, § 7.o, da CF/1988, que proíbe aos cônjuges de Presidente da República,
Governadores e Prefeitos concorrerem nas eleições a qualquer cargo eletivo. Contra essa decisão foi
interposto recurso pela candidata, que foi acolhido pelo Tribunal Regional Eleitoral, nos seguintes
termos8:
Recurso eleitoral ordinário. Eleição majoritária. Registro de candidato. Inelegibilidade.
Impugnação. Parentesco por afinidade. Procedência. Artigo 14, § 7.º, da Constituição Federal e art.
1.º, § 3.º, da Lei 64/1990. Relação homoafetiva. Candidata e prefeita reeleita. União estável.
Omissão legislativa e constitucional. Impossibilidade de dilação das vedações legais. Princípio da
reserva legal. Princípio da legalidade. Princípio da isonomia material. 1. Considera-se união
estável, para a proteção do Estado, aquela que decorre de união entre homem e mulher como
entidade familiar, a teor do que dispõe a Lei Civil em vigor. 2. Inexistência de previsão
constitucional e infraconstitucional. A regra de inelegibilidade inserida no art. 14, § 7.o, da
Constituição Federal não atinge, nem mesmo de maneira reflexa, as relações homoafetivas, por não
se enquadrar no conceito de relação estável, diante do silêncio eloquente contido no seu artigo 226,
§ 3.o. 3. A omissão do ordenamento jurídico que regulamente as relações homoafetivas e
consequentemente as inelegibilidades decorrentes de tais relações, não autoriza a aplicação por
analogia das proibições decorrentes dos limites advindos das relações de parentesco para o
exercício de mandato eletivo, previstas na Constituição Federal e na Lei n. 64/1990. 4.
Considerando o Princípio da Legalidade, não incumbe ao intérprete ampliar o elenco de
inelegibilidades, o que conduziria a se imiscuir na vontade do legislador. De igual modo, há de ser
observado o Princípio da Isonomia Material, não podendo ser restringidos direitos, sob pena de, a
despeito da omissão legal, incorrer em inadmissível e inconcebível discriminação (TER-PA, REO
993, Relator Juiz Hind Ghassan Kayath, julgado em 04.09.2004).

Interposto Recurso Especial Eleitoral, o TSE, em 19.10.2004, reconheceu a inelegibilidade da


companheira de uma deputada de Belém do Pará por esta não ter se licenciado seis meses antes da data
do pleito, através de analogia com o disposto no art. 14, § 7.o, da CF/1988, que proíbe aos cônjuges de
Presidente da República, Governadores e Prefeitos concorrerem nas eleições a qualquer cargo efetivo,
sob o fundamento de que essa salutar vedação visa não perpetuar no poder um mesmo grupo familiar e
evitar a constituição de oligarquias que deem ensejo ao que se chama de continuísmo, razão pela qual a
jurisprudência passou a reconhecer que não só o casamento, mas também o concubinato e a união estável,
impõem a mesma limitação, em face da presença de forte vínculo afetivo9.
Analisemos a ementa do referido julgado:

Registro de candidato. Candidata ao cargo de prefeito. Relação estável homossexual com a


prefeita reeleita do município. Inelegibilidade. Art. 14, § 7.o, da Constituição Federal. Os sujeitos
de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de
concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7.o, da
Constituição Federal. Recurso a que se dá provimento. (TSE – REsp Eleitoral 24.564, Relator
Ministro Gilmar Ferreira Mendes, julgado em 01.10.2004 – sem destaque no original).

Essa decisão do TSE foi imediatamente comemorada pela doutrina que defende a possibilidade
jurídica da união estável homoafetiva sob o fundamento de que, a partir do momento em que se
reconhecem obrigações jurídico-familiares às uniões homoafetivas oriundas de suas relações de afeto,
não há como deixar de se reconhecer que ditas uniões formam entidades familiares sob o fundamento da
inexistência de lei expressa que o consagre, pois igualmente inexiste lei que preveja dita restrição de
direito que foi, não obstante, reconhecida10, em especial pela analogia perpetrada por dito aresto
contrariar princípio geral de Direito segundo o qual restrições de direitos devem ser interpretadas
restritivamente, e não ampliativamente – e foi efetivamente ampliada a restrição constante do art. 14, §
7.o, da CF/1988, visto que ali não consta a inelegibilidade de companheiros, sejam eles hétero ou
homoafetivos.
Contudo, deve ficar claro que os Ministros que julgaram dito recurso especial lamentavelmente não
reconheceram o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas. Eles fizeram uma interpretação
teleológica do art. 14, § 7.o, da CF/1988 no sentido de que o seu intuito “é mesmo evitar a utilização da
máquina administrativa ou evitar que seja utilizada em favor do parente, evitar a formação de
oligarquias, evitar o continuísmo, que não presta obséquio à República”, donde entenderam que haveria
uma “ofensa à ratio legis se, numa atitude conservadora, não reconhecêssemos, no âmbito do Direito
Público Eleitoral, a existência dessa união homoafetiva nos moldes de uma união estável” (palavras do
então Ministro Carlos Velloso).
Nas palavras do Ministro Gilmar Ferreira Mendes:

Ao longo dos tempos, o TSE tem entendido que o concubinato, assim como a união estável,
enseja a inelegibilidade prevista no referido dispositivo constitucional. (...) Em todas essas
situações – concubinato, união estável, casamento e parentesco – está presente, pelo menos em tese,
forte vínculo afetivo, capaz de unir pessoas em torno de interesses políticos comuns. Por essa razão,
sujeitam-se à regra constitucional do art. 14, § 7.o, da Constituição Federal. Em que pese o
ordenamento jurídico brasileiro ainda não ter admitido a comunhão de vidas entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar, acredito que esse relacionamento tenha reflexo na esfera
eleitoral. (...) É um dado da vida real a existência de relações homossexuais em que, assim como na
união estável, no casamento ou no concubinato, presume-se que haja fortes laços afetivos. Assim,
entendo que os sujeitos de uma relação estável homossexual (denominação adotada pelo Código
Civil alemão), à semelhança do que ocorre com os sujeitos de união estável, de concubinato e de
casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7.o, da Constituição
Federal.

Duas questões devem ser colocadas, e que devem ser tidas como inerentemente vinculadas: (i)
concordo com essa interpretação teleológica efetivada pelo TSE; (ii) dita interpretação teleológica deve
ser realizada quanto ao disposto no art. 226, § 3.o, da CF/1988 para, vislumbrando-se que o elemento
formador da família conjugal contemporânea é o amor romântico que vise a uma comunhão plena de
vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, estender o regime jurídico da união estável
às uniões homoafetivas por força da interpretação extensiva ou da analogia, visto que estas são baseadas
em dito amor, da mesma forma que as uniões heteroafetivas. Analisem-se as duas colocações:
Como é basilar em hermenêutica jurídica, a interpretação teleológica prevalece sobre a puramente
literal. Muito embora o enunciado linguístico constante do texto normativo seja (além do início) o limite
da atividade interpretativa, a partir do momento em que a interpretação de um dispositivo aponta que sua
ratio (finalidade) é uma, mas a sua literalidade aponta em sentido diverso, a sua finalidade deve ser a
respeitada, desde que não afronte o significado das palavras constantes do enunciado normativo em
questão. Certamente os opositores da união estável homoafetiva alegarão, com base justamente no que se
acabou de expor, que não seria possível interpretar o art. 226, § 3.o, da CF/1988 de forma a permitir a
união estável homoafetiva por força de este utilizar a expressão “o homem e a mulher”. Contudo, esse
raciocínio é equivocado, na medida em que não se defende em nenhum momento neste trabalho que a
união homoafetiva estaria abarcada na expressão “o homem e a mulher”, mas que dito dispositivo
constitucional é omisso em relação à união homoafetiva (por não regulá-la, mas também não proibi-la),
donde cabível uma interpretação extensiva ou uma analogia para estender o regime jurídico da união
estável às uniões homoafetivas por meio de interpretação teleológica de dito dispositivo constitucional,
que sem dúvida leva à conclusão de que sua finalidade foi consagrar como famílias as uniões pautadas
pelo amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua
e duradoura.
Isso significa que seria inegavelmente contraditório reconhecer que a união homoafetiva deveria
sofrer as mesmas restrições que sofrem as uniões heteroafetivas (no âmbito eleitoral ou em qualquer
outro), mas não receber os benefícios garantidos a ditas uniões sob o fundamento de que inexistiria lei a
prevê-los. Ora, a restrição eleitoral imposta às uniões homoafetivas no REsp 24.564 também não está
expressa em lei e mesmo assim foi reconhecida, por força de interpretação teleológica e, posteriormente,
pela analogia. Dessa forma, deve ser feito o mesmo procedimento no que tange à união estável:
reconhecer que sua ratio é regulamentar entidades familiares, reconhecer que as uniões homoafetivas
possuem a mesma ratio da entidade familiar exemplificativamente citada no art. 226, § 3.o, da CF/1988 e,
em seguida, estender o regime jurídico da união estável às uniões homoafetivas pela interpretação
extensiva ou pela analogia.
Ressalte-se que a única solução para aqueles que se apegam unicamente a uma cega e acrítica
literalidade normativa para defender que inexistiria possibilidade de reconhecimento da união estável
homoafetiva pela mera ausência de previsão normativa expressa a reconhecê-la seria adotar a
fundamentação constante da decisão reformada pelo TSE e igualmente não reconhecer a inelegibilidade
de companheiros homoafetivos igualmente pela ausência de disposição normativa expressa nesse sentido.
Em outras palavras: dizer que não se reconhece a união estável homoafetiva pela ausência de lei ou
dispositivo constitucional que a consagre, ao mesmo tempo em que se impõe às uniões homoafetivas
restrições que a Constituição expressamente apôs apenas a casais heteroafetivos, implica uma
inacreditável aplicação de dois pesos e duas medidas a dois julgamentos idênticos, julgamentos estes
consistentes na análise de lacunas da legislação (constitucional ou infraconstitucional), em postura
claramente arbitrária, por desprovida de uma fundamentação lógico-racional que a justifique.
Por outro lado, e com todo o respeito que merece o Ministro Carlos Velloso, afigura-se incoerente a
colocação no sentido de que seria conservador não reconhecer a existência da união homoafetiva no
âmbito do Direito Eleitoral para impor obrigações aos homossexuais ao mesmo tempo em que não se
reconhece o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas. Afinal, afronta a ratio legis a atitude
conservadora de não reconhecer, no âmbito do Direito das Famílias, a existência da união homoafetiva
nos moldes de uma união estável. Afigura-se, ainda, incoerente considerara união homoafetiva como
união estável apenas para se lhe reconhecer obrigações (como as inelegibilidades), mas não reconhecê-la
como união estável para atribuir-lhe direitos oriundos do status jurídico-familiar – ou seja, do Direito
das Famílias.
Sobre a manifestação do Ministro Gilmar Mendes de que o ordenamento jurídico brasileiro ainda
não admite a comunhão de vidas entre duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, sempre
defendi que ela poderia significar ausência de reconhecimento expresso, ou seja, que ele poderia ter
intencionado dizer que a legislação brasileira ainda não teria disciplinado (expressamente) o tema da
união homoafetiva, sem que isso significasse necessariamente que ele tivesse intencionado dizer que a
união homoafetiva não configuraria entidade familiar. Na verdade, este julgado sempre foi ambíguo em
termos de Direito das Famílias (e talvez isso tenha sido proposital, já que o foco era Direito Eleitoral e
não Direito Familiar), pois a ementa afirma o regime das inelegibilidades para hipóteses de casamento
civil, união estável e concubinato, equiparando as situações pelas fortes relações afetivas existentes no
casal em qualquer destas hipóteses para justificar as inelegibilidades em todas elas, a despeito da
omissão normativa, para evitar a formação de oligarquias. Contudo, em termos de Direito das Famílias, o
julgado não afirmou se considerava a união homoafetiva como entidade familiar ou como equiparável à
união concubinária (antigo concubinato impuro, do atual art. 1.727 do CC/2002), que não é uma entidade
familiar.
Felizmente, o Ministro Gilmar Mendes reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar no
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, afirmando, sobre a literalidade do art. 226, § 3.º, da CF/1988,
que o fato de a Constituição proteger a união estável entre homem e mulher não significa uma
negativa de proteção à união civil ou estável entre pessoas do mesmo sexo, donde possível o manejo da
analogia para reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar. O tema será desenvolvido adiante,
quando analisarmos esse paradigmático julgado.
Aponte-se, por fim, que minha refutação à suposta existência de um “silêncio eloquente” no art. 226,
§ 3.o, da CF/1988 no que tange à união homoafetiva consta no Anexo 1 desta obra, razão pela qual se
reiteram aqui as colocações ali expendidas.

5. RE 615.261/PR. ADOÇÃO POR CASAL HOMOAFETIVO


Juiz de Direito do Paraná deferiu pedido de adoção por casal homoafetivo masculino, embora
limitando a adoção a adolescentes do sexo feminino a partir dos doze anos de idade. Apelaram os autores
contra tal restrição, tendo sido dado provimento ao recurso pelo Tribunal de Justiça do Paraná para
afastar essa restrição discriminatória. Contra essa decisão, foi interposto recurso extraordinário pelo
Ministério Público, ao fundamento de que a união homoafetiva não se constituiria como união estável.
Sobre o tema, o Ministro Marco Aurélio negou seguimento ao recurso, sob o fundamento de que “Há
flagrante descompasso entre o que foi decidido pela Corte de origem e as razões do recurso interposto
pelo Ministério Público do Estado do Paraná”, pois “O Tribunal local limitou-se a apreciar a questão
relativa à idade e ao sexo das crianças a serem adotadas”, ao passo que “No extraordinário, o recorrente
aponta violado o artigo 226 da Constituição Federal, alegando a impossibilidade de configuração de
união estável entre pessoas do mesmo sexo, questão não debatida pela Corte de origem”, razão pela qual
negou seguimento ao recurso extraordinário.
Vejamos a ementa deste julgado:

Recurso Extraordinário 615.261


Origem: AC – 5.299.761 – Tribunal de Justiça Estadual
Decisão: Recurso Extraordinário – Razões – Descompasso com o acórdão impugnado –
Negativa de seguimento. 1. Contra a sentença proferida pelo Juízo, houve a interposição de recurso
somente pelos autores. Pleitearam a reforma do decidido a fim de que fosse afastada a limitação
imposta quanto ao sexo e à idade das crianças a serem adotadas. A apelação foi provida,
declarando-se terem os recorrentes direito a adotarem crianças de ambos os sexos e menores de 10
anos. Eis o teor da emenda contida à folha 257: “... 2. Delimitar o sexo e a idade da criança a ser
adotada por casal homoafetivo é transformar a sublime relação de filiação, sem vínculo
biológicos, em ato de caridade provido de obrigações sociais e totalmente desprovido de amor e
comprometimento”. 2. Há flagrante descompasso entre o que foi decidido pela Corte de origem e as
razões do recurso interposto pelo Ministério Público do Estado do Paraná. O Tribunal local limitou-
se a apreciar a questão relativa à idade e ao sexo das crianças a serem adotadas. No extraordinário,
o recorrente aponta violado o art. 226 da Constituição Federal, alegando a impossibilidade de
configuração de união estável entre pessoas do mesmo sexo, questão não debatida pela Corte de
origem. 3. Nego seguimento ao extraordinário. 4. Publiquem.
Brasília, 16 de agosto de 2010.
Ministro Marco Aurélio
Relator11

A presente decisão não entrou no mérito da possibilidade jurídica da adoção por casais
homoafetivos, tendo sido negado seguimento ao recurso por questão meramente formal, a saber, a
ausência de prequestionamento acerca do fundamento jurídico invocado pelo recurso, pela ausência de
enfrentamento pelo Tribunal Paranaense do disposto no art. 226 da CF/1988, consoante a ementa
supratranscrita. De qualquer forma, o fato de a ementa de uma decisão puramente formal como esta
transcrever a posição do Tribunal Paranaense no sentido de que “‘Delimitar o sexo e a idade da criança
a ser adotada por casal homoafetivo é transformar a sublime relação de filiação, sem vínculo
biológicos, em ato de caridade provido de obrigações sociais e totalmente desprovido de amor e
comprometimento’” denota que o Ministro Marco Aurélio concorda com tal posição. Do contrário,
provavelmente não teria transcrito tal trecho, já que a não refutação ou a ausência de ressalva denota
concordância com este. De qualquer forma, cabe aguardar uma posição expressa da Corte acerca do
tema.

6. ADPF 132 E ADI 4.277. O HISTÓRICO RECONHECIMENTO DO STATUS JURÍDICO-


FAMILIAR DA UNIÃO HOMOAFETIVA
Como visto anteriormente, as ações foram propostas objetivando a extensão do regime jurídico da
união estável a casais homoafetivos por força dos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa
humana, da liberdade e da segurança jurídica. Remeto o leitor ao capítulo 7 para análise dos argumentos
das ações.
O relator, Ministro Ayres Britto, destacou que o fato de o art. 3º, inc. IV, da CF/1988 ter equiparado
a discriminação por motivo de sexo à discriminação por origem, raça, cor e idade significa que ele
reconheceu que, como estes outros, o sexo é algo que não depende da vontade da pessoa, mas do puro
acaso, e que, portanto, é injusto que uma pessoa seja discriminada por seu sexo e, pelo mesmo motivo,
por sua sexualidade, o que é constitucionalmente inadmissível ante a ausência de permissão
constitucional a tal discriminação. Assim, vislumbrando um silêncio intencional da Constituição
relativamente à forma como as pessoas utilizam sua sexualidade, afirmou que as relações homoafetivas12
são lícitas por força do art. 5º, inc. II, da CF/1988 consagrar a máxima kelseniana segundo a qual aquilo
que não é proibido tem-se por permitido. Logo, reconhecendo um direito de todos ao uso da própria
sexualidade desde que não a use para oprimir a sexualidade alheia (opressão que ocorre no estupro e na
pedofilia), afirmou que deve ser reconhecida igualdade pura e simples entre as uniões homoafetivas
relativamente às uniões heteroafetivas, o que só será possível caso se reconheça que aquelas formam
entidades familiares da mesma forma que estas, entendendo “entidade familiar” como sinônimo perfeito
de “família”, compreendida como núcleo doméstico e como “vocacionalmente amorosa, parental e
protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas,
solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada”. Sobre o § 3º do art. 226 da CF/1988,
afirmou que tal dispositivo visou estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre
homens e mulheres, em razão de se saber que ainda hoje a mulher que se une em companheirismo com um
homem sem papel passado ainda é vítima de comentários desairosos de sua honra objetiva como ranço
do patriarcalismo entre nós, “nada tendo a ver com a dicotomia da heteroafetividade e da
homoafetividade”13, oportunidade na qual faz a advertência para “que não se faça uso da letra da
Constituição para matar o seu espírito, no fluxo de uma postura interpretativa que faz ressuscitar o
mencionado caput do art. 175 da Constituição de 1967/1969 (cuja afirmação de que “a família é
constituída pelo casamento...” gerou entendimento prevalecente de que ele protegia “apenas” a família
matrimonializada). Ou como diria Sérgio da Silva Mendes, “que não se separe por um parágrafo (esse
de nº 3) o que a vida uniu pelo afeto”. Assim, julgou procedente a ação para atribuir “ao art. 1.723 do
Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade
familiar’, entendida esta como sinônimo perfeito de ‘família’. Reconhecimento que é de ser feito segundo
as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva” (parte dispositiva da
decisão do STF).
Excelente o voto do Ministro. Entendo, apenas, que não deveria se preocupar em afirmar um que o
silêncio constitucional seria “intencional”, pois, data venia, intencional ou não, o silêncio normativo
implica lacuna passível de colmatação por interpretação extensiva ou analogia, o que afirmo por entender
inconstitucional a teoria do silêncio eloquente, que visa atribuir a um silêncio supostamente intencional o
mesmo caráter de uma proibição explícita, o que contraria frontalmente o art. 5º, inc. II, da CF/1988, que,
ao afirmar que ninguém será obrigado a algo senão em virtude de lei, exige texto normativo expresso ou,
no mínimo, norma jurídica implícita para se reconhecer que haveria a proibição em questão (ressalva
esta que reitero para os demais votos que também mencionaram, embora rejeitando, neste caso, a teoria
do silêncio eloquente). Feita esta ressalva, o voto é paradigmático e preciso em seus demais
fundamentos.
O Ministro Luiz Fux afirmou inicialmente o dever do Estado atuar positivamente para garantir os
direitos fundamentais dos cidadãos deles necessitados para, em seguida, reconhecendo a
homossexualidade como um fato da vida que independe da vontade dos próprios homossexuais14, afirmar
que o conceito ontológico de família é formado pelo “amor familiar, que estabelece relações de afeto,
assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo”, pela “comunhão, a existência de um
projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum” e pela “identidade, a certeza de seus
integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os
outros e cada um deles perante a sociedade”, e concluir no sentido de que “Presentes esses três
requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional”. Assim,
afirmando que a união homoafetiva se enquadra neste conceito ontológico de família da mesma forma que
a união heteroafetiva, e por constatar a existência de lacuna normativa na Constituição por força da não
regulamentação aliada à não proibição da união homoafetiva no Direito Brasileiro, reconheceu a união
homoafetiva como entidade familiar merecedora da proteção do regime jurídico da união estável15, ante a
inexistência de motivação válida ante a isonomia a justificar tratamento diferenciado a ela relativamente
àquele dispensado à união heteroafetiva16, inclusive mediante o exercício da função contramajoritária do
Poder Judiciário na guarda dos direitos fundamentais em face da ação da maioria ou, como neste caso,
para impor a ação do Poder Público na promoção desses direitos na medida em que, embora canetas de
magistrados não sejam capazes de acabar com o preconceito, detêm o poder de determinar ao aparato
estatal a atuação positiva na garantia da igualdade material entre os indivíduos e no combate ostensivo às
discriminações odiosas. Rechaçou a anacrônica teoria da inexistência do ato jurídico com base no
célebre brocardo romano segundo o qual “ubi societas, ibi ius”, ou seja, onde está a sociedade, está o
Direito, no sentido de que o Direito deve seguir a evolução social, estabelecendo normas para a
disciplina dos fenômenos já postos, em que “o ato de constituição da união homoafetiva existe, ocorre
e gera efeitos juridicamente relevantes, que, portanto, merecem tratamento pelo direito”, no caso,
tratamento jurídico enquanto entidade familiar constitucionalmente protegida. Assim, por não vislumbrar
nada no art. 226, § 3º, da CF/1988 que impedisse a equiparação das uniões estáveis homoafetivas às
uniões estáveis heteroafetivas por sua mera literalidade, por entender que se trata de norma de caráter
nitidamente emancipatório que não deve ser interpretada de forma restritiva17, votou pela procedência
das ações para reconhecer a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva.
Precisas as colocações do Ministro Fux na medida em que a definição do conceito ontológico de
família é fundamental para a análise do caso, pois sendo a família conjugal o objeto valorativamente
protegido pelos regimes jurídicos da união estável e do casamento civil, a ausência de proibição
normativa à união estável homoafetiva e ao casamento civil homoafetivo caracteriza lacuna normativa
colmatável por interpretação extensiva ou analogia, colmatação decorrente do enquadramento da união
homoafetiva no conceito ontológico de família, precisamente definido pelo Ministro – e que é análogo ao
amor familiar defendido nesta obra, que defino como aquela que visa uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura. Logo, considerando que a união homoafetiva forma
uma família conjugal da mesma forma que a união heteroafetiva, tem-se por cabível interpretação
extensiva ou analogia para se reconhecer a união estável homoafetiva (e o casamento civil homoafetivo).
Excelente, ainda, sua refutação da esdrúxula “teoria da inexistência do ato jurídico” (ato este existente
no mundo fático), teoria esta flagrantemente inconstitucional por afronta ao art. 5º, inc. II, da CF/1988.
Com efeito, ela se trata de uma inacreditável invenção doutrinária que objetiva burlar a regra segundo a
qual não há nulidade sem texto (regra esta que tem seu fundamento teleológico no art. 5º, inc. II, da
CF/1988, no sentido de exigir norma jurídica para se reconhecer uma proibição/restrição), pois visa
atribuir ao ato taxado de inexistente a mesma consequência atribuída ao ato nulo (destruição dos efeitos
produzidos com eficácia ex tunc – e expurgar do mundo jurídico um ato com eficácia ex tunc equivale a
dizer que dito ato é proibido pelo Direito), com a enorme diferença de que as condições de validade
(cuja afronta gera nulidade) estão expressamente previstas pela lei, ao passo que as supostas “condições
de existência” (cuja afronta ensejaria a inexistência jurídica de atos que existiram faticamente) não o
são, ficando a cargo do subjetivismo do intérprete a sua definição. A própria doutrina não tem o menor
pudor de reconhecer que dita teoria da inexistência surgiu na época do Código Napoleônico como forma
de se proibir o casamento civil homoafetivo em um sistema legal que não o vedava e segundo o qual tudo
que não estava proibido tinha-se como permitido18. Logo, trata-se de teoria inaceitável, sendo
inacreditável que tenha sido aceita sem reservas pela doutrina em geral, mesmo a teor daquele caráter
fraudulento de sua formulação, visto que foi criada para se burlar a regra segundo a qual não há nulidade
sem texto, de forma a se proibir o casamento civil homoafetivo. Contudo, mesmo abstraindo desta
discussão e aceitando-se a validade da esdrúxula teoria da inexistência de atos que existiram no mundo
fático, o entendimento do amor familiar como o elemento formador da família contemporânea afasta a
colocação da diversidade de sexos como “essencial” ao casamento civil e à união estável, pois, a
partir do momento em que se percebe que as uniões homoafetivas são famílias conjugais pautadas pelo
amor familiar e que casamento civil e união estável são regimes jurídicos que visam proteger as famílias
conjugais, percebe-se que ele (amor familiar) é a condição essencial para o casamento civil e não a
diversidade de sexos.
A Ministra Cármen Lúcia afirmou que, sobre o art. 226, § 3.º, da CF/1988, deve ser interpretado
sistematicamente com os demais dispositivos constitucionais, por não parecer razoável supor que
qualquer norma constitucional possa ser interpretada fora do contexto das palavras e do espírito que se
põe no sistema, donde o fato de o citado dispositivo constitucional usar a expressão “entre o homem e a
mulher” não pode significar que a união homoafetiva seria constitucionalmente intolerável e intolerada,
por isto contrariar os pilares normativo-constitucionais do princípio da dignidade da pessoa humana, que
impõe a tolerância e a convivência harmônica de todos, com “integral respeito às livres escolhas das
pessoas”19. A Ministra realçou o princípio da igualdade sob o fundamento de que as pessoas têm o
direito de ser tratadas igualmente no que diz com a própria humanidade e o direito de serem respeitadas
como diferentes em tudo que configure a individualidade de cada um, donde afirmou que “a escolha da
vida em comum com quem quer que seja” é uma “eleição” que concerne à própria condição humana,
pois a afeição nutrida por alguém é o que pode haver de mais humano e de mais íntimo de cada um, razão
pela qual aqueles que “fazem opção pela união homoafetiva” não podem ser desigualados em sua
cidadania, pois ninguém pode ser tido como cidadão de segunda classe porque, como ser humano, não
aquiesceu em adotar modelo de vida coerente com o que a maioria tenha como certo, válido ou legítimo,
não podendo o preconceito diminuir a cidadania de quem, por razões de afeto e “opções de vida”
resolvesse adotar modo de convivência estável com outrem que não o figurino tido como o comum.
Dessa forma, parece-lhe que a interpretação correta da norma constitucional é a que conduz ao
reconhecimento do direito à liberdade de que “cada ser humano é titular para escolher o seu modo de
vida”, aí incluída a vida afetiva com o outro como uma instituição que tenha dignidade jurídica,
garantindo-se, assim, a sua integridade humana, razão pela qual, com base no direito fundamental à
intimidade (para proteger a eleição sentimental feita pelas pessoas sem discriminações [arbitrárias]) e ao
pluralismo social (possibilidade de manifestação de todas as “opções livres dos indivíduos”, que podem
viver segundo suas tendências, vocações e opções sem discriminações arbitrárias), afirmou que a
“escolha da vida em comum de duas pessoas do mesmo sexo” não pode ser tolhida, por força de
interpretação atribuída a uma norma legal, porque isso contrariaria os princípios constitucionais que
fundamentam o pluralismo político e social na medida em que as “escolhas pessoais livres e legítimas”,
segundo o sistema jurídico vigente, são plurais na sociedade e, assim, terão de ser entendidas como
válidas. Dessa forma, julgou procedentes as ações para reconhecer a família conjugal homoafetiva com
os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis heteroafetivas.
O voto da Ministra Cármen Lúcia é interessante porque, apesar de partir de um erro conceitual por
considerar a orientação sexual uma “opção” embora ninguém escolha a sua própria orientação sexual20,
aponta para algo que deveria ser uma obviedade jurídica, a saber, que as opções/escolhas de alguém não
devem ser reprimidas ou menosprezadas pelo Direito quando não tragam prejuízos a terceiros – e o fato
de uma parte da população ser homossexual e desejar manter relações conjugais homoafetivas não traz
prejuízo nenhum às pessoas heterossexuais e que desejam manter relações conjugais heteroafetivas, uma
vez ausente fundamentação lógico-racional que justifique a discriminação negativa das uniões
homoafetivas relativamente às uniões heteroafetivas, donde inconstitucional por afronta ao princípio da
igualdade. Assim, precisa a afirmação da Ministra no sentido de que a interpretação sistemática do art.
226, § 3.º, da CF/1988 com as demais normas constitucionais, como a atinente à isonomia, demanda pelo
reconhecimento de que a ausência de proibição normativa à união estável homoafetiva implica o
reconhecimento da possibilidade jurídica desta, por interpretação extensiva ou analogia.
O Ministro Lewandowski afirmou entender não ser cabível o uso da analogia para reconhecer a
união homoafetiva como união estável por entender que os constituintes de 1988 visaram limitar a união
estável apenas à união heteroafetiva (entre o homem e a mulher) e que ainda que o juiz possa trabalhar
para atualizar a norma ao zeitgeist [espírito do tempo] contemporâneo, a interpretação não pode
ultrapassar os “limites objetivos do direito posto” e que “a interpretação jurídica não pode desbordar
dos lindes objetivamente delineados nos parâmetros normativos, porquanto, como ensinavam os antigos,
[porque] in claris cessat interpretatio” [na clareza, cessa a interpretação], razão pela qual entendeu que
a Constituição reconhece a união estável “só” entre homem e a mulher [o que merece críticas, pois este
“só” não está escrito no dispositivo constitucional...]. Contudo, reconheceu a união homoafetiva como
entidade familiar autônoma, pelo caráter exemplificativo do rol de famílias listado pelos parágrafos do
art. 226 da CF/198821 (diante do fato de que este não repetiu a redação do art. 175 da Constituição
anterior, que afirmava que “a família é constituída pelo casamento...”), afirmando-a como um novo
gênero de família, fora do rol do art. 226, oriundo de leitura sistemática do texto constitucional para se
dar concreção aos princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade e não discriminação
por orientação sexual. Afirmou que “as uniões de pessoas do mesmo sexo que se projetam no tempo e
ostentam a marca da publicidade, na medida em que constituem um dado da realidade fenomênica e,
de resto, não são proibidas pelo ordenamento jurídico, devem ser reconhecidas pelo Direito, pois,
como já diziam os jurisconsultos romanos, ex facto oritur jus”, donde entendeu cabível o
reconhecimento à união homoafetiva dos mesmos direitos concedidos à união heteroafetiva por
analogia22, “naquilo em que não seja indispensável à diversidade de sexos”23, embora não tenha
afirmado em que casos a diversidade de sexos seria necessária.
O voto do Ministro Lewandowski merece críticas em sua exegese de não cabimento de analogia para
reconhecer a união homoafetiva como “união estável”, na medida em que se pautou por um originalismo
interpretativo, entendido como método de interpretação que visa interpretar determinado dispositivo
constitucional com base na suposta intenção dos “pais fundadores” da Constituição – no caso, dos
Constituintes de 1988. Primeiramente, por ignorar que esta forma de julgar impede qualquer uso efetivo
do cânone da mutação constitucional, pois se o dispositivo constitucional tiver que ser interpretado
sempre de acordo apenas com a intenção de seus elaboradores, então será impossível concluir que a
norma imaginada por seu elaborador atingiria um fato distinto daquele por ele imaginado, o que é
profundamente anacrônico24. Por outro lado, ignora a teoria objetiva da interpretação, segundo a qual “a
lei é mais sábia que o legislador”, o que significa que não importa o que o elaborador da lei quis dizer,
considera-se apenas o que ele disse, no sentido de que aquilo que se interpreta é o texto concretamente
aprovado e vigente e não a suposta “intenção” daquele que a elaborou. Vale aqui a célebre frase de
Geraldo Ataliba25, segundo a qual a eventual intenção do legislador nada vale para a interpretação
jurídica, pois a Constituição é muito mais do que os constituintes quiseram: ela é o que eles fizeram,
pois, como diz Luís Roberto Barroso26, “uma vez posta em vigor, a lei se despreende do complexo de
pensamentos e tendências que animaram seus autores”, donde “O intérprete, ensinou Ferrara, deve
buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens
legis e não a mens legislatoris”. Mesmo para fins de interpretação histórica, não é a mens legislatoris
fator relevante: o que importa ser investigado na interpretação histórica é a occasio legis, isto é, a
circunstancia histórica que gerou o nascimento do texto normativo e que constitui sua finalidade
imediata27, atuando a occasio legis como forma de se localizar a ratio legis, ou seja, a finalidade do
texto normativo28. Ademais, a fala do Ministro no sentido de que isso não significaria afirmar o juiz
como mera boca que pronuncia as palavras da lei, mas reconhecer os limites objetivos do direito posto
não merece acolhida, pois os limites objetivos da interpretação jurídica estão apenas no texto da norma,
não na suposta intenção de seus elaboradores. É lição assente na doutrina constitucionalista que, a
despeito da norma ser fruto da interpretação do texto normativo, a interpretação deve respeitar os limites
semânticos do texto, não os supostos limites da intenção dos elaboradores do texto normativo (aliás, até
a menção ao anacrônico brocardo in claris cessat interpretativo foi equivocada, pois este visava
impedir a interpretação de textos claros, não impedir a evolução da interpretação normativa com base na
intenção do legislador, que foi o que o Ministro defendeu no caso). Em suma, são irrelevantes as
concepções dos legisladores que aprovaram os textos normativos quando respeitados os conceitos
regulamentados por estes, o que significa que, tendo o art. 226, § 3º, da CF/1988 visado reconhecer o
conceito de família conjugal não matrimonializada como união estável, o julgador deve investigar o
que constitui o conceito de família conjugal contemporâneo, não a concepção que o legislador
constituinte tinha de família conjugal, sob pena de petrificarmos a interpretação da norma jurídica de
forma a impedir qualquer evolução em sua concepção.
Por outro lado, merece aplausos o Ministro por reconhecer a união homoafetiva como entidade
familiar autônoma a despeito de (equivocadamente) não reconhecê-la como união estável. Foi precisa a
lição do Ministro no sentido do caráter meramente exemplificativo do rol de famílias reconhecido pelos
parágrafos do art. 226 da CF/1988, o que se dá pelo fato de não ter dito dispositivo constitucional
afirmado que eram reconhecidas “apenas” aquelas entidades familiares, bem como pela diferença de
redações deste dispositivo com o correspondente art. 175 da CF 1967/1969, que afirmava que era a
família constituída pelo casamento aquela reconhecida pelo Estado. Como o art. 226 da CF/1988
reconheceu que a família merece especial proteção do Estado, então visou proteger qualquer família,
não uma determinada forma de família ou algumas formas específicas, consoante a precisa lição de Paulo
Lôbo29, pertinentemente citada pelo Ministro em seu voto. Assim, ainda que se entenda que a suposta
intenção do Constituinte de 1988 teria sido a de limitar a união estável apenas a casais heteroafetivos
para, assim, caracterizar-se uma “proibição implícita” ao reconhecimento da união homoafetiva como
união estável, a caracterização da união homoafetiva como entidade familiar autônoma relativamente
àquelas expressamente previstas não resta abrangido por esta suposta “proibição implícita” (que abarca
somente a união estável e, assim, implica efetivamente a permissão de uso da analogia para garantir a ela
os mesmos direitos conferidos à união estável heteroafetiva, visto ser o instituto jurídico mais próximo à
união homoafetiva já que ambas as hipóteses versam sobre uma família conjugal).
A Ministra Ellen Gracie iniciou sua fala30 ressaltando a proteção da família pelo Direito Brasileiro
e aduzindo que a família existe quando haja durabilidade, não clandestinidade, continuidade e ausência
de impedimentos matrimoniais na relação. Afirmou que a evolução acerca da compreensão sobre a
homossexualidade se iniciou com o Código Napoleônico, que a descriminalizou, mas que tal evolução
ainda precisa superar barreiras para que se alcance a igualdade plena entre homossexuais e
heterossexuais, o que o STF faz mediante o reconhecimento judicial das uniões homoafetivas, como feito
no Canadá e África do Sul por suas Cortes Supremas. Citou as palavras do premiê espanhol Jose Luis
Zapatero no sentido de que não estamos tratando de pessoas distantes e desconhecidas, mas que estamos
alargando as oportunidades de felicidade para nossos vizinhos, nossos colegas de trabalho, nossos
amigos e nossa família, pois uma sociedade decente é aquela que não humilha seus integrantes. Por fim,
afirmou que esta decisão do Supremo restitui aos homossexuais o respeito que merecem, reconhece seus
direitos, restaura a sua dignidade, afirma a sua identidade e restaura a sua liberdade.
Inexplicavelmente, o voto da Ministra Ellen Gracie, que se aposentou logo após o julgamento, não
foi disponibilizado no inteiro teor do acórdão, publicado após sua aposentadoria... Dito isso, cumpre
aplaudir as palavras da Ministra, bem como destacar que o conceito de família por ela citado abarca as
uniões homoafetivas (união pública, contínua e duradoura despida de impedimentos matrimoniais), o que,
aliado à lacuna normativa oriunda da ausência de proibição a ela, demanda pelo seu reconhecimento
enquanto entidade familiar por interpretação extensiva ou analogia ou, ainda que assim não se entendesse,
como entidade familiar autônoma justamente por se enquadrar no conceito ontológico de família
protegido pela Constituição, como bem demonstrado pelo voto do Min. Luiz Fux, pelo rol do art. 226 da
CF/1988 ser meramente exemplificativo, como destacado pelo voto do Ministro Lewandowski.
O Ministro Gilmar Mendes proferiu um longo voto cuja essência se consubstancia no seguinte:
quando a omissão normativa gera discriminações em temas de direitos fundamentais, cabe à jurisdição
constitucional atuar positivamente para garantir ao grupo discriminado o gozo de tais direitos, estendendo
o regime constitucional ou, na impossibilidade semântica de tal extensão, mediante a garantia de tais
direitos por analogia ou interpretação extensiva31. Analisemos as razões desenvolvidas para tanto.
Iniciou seu voto ressaltando que viu com alguma preocupação a formulação do pedido de
interpretação conforme porque, em princípio, o texto legal parecia não fazer nada mais do que
reproduzir a norma constitucional que prevê a união estável entre homem e mulher, mas se curva ao
argumento trazido de que essa norma tem servido para fundamentar decisões jurisprudenciais no sentido
negativo à pretensão formulada em juízo, ou seja, com o objetivo de se negar reconhecimento à da união
homoafetiva [o que não considera admissível]. Aplaude a atuação positiva do STF no caso por ser um
crítico ferrenho do argumento de que o Tribunal não poderia fazer isso porque assim se comportaria
como um “legislador positivo” (argumento este que o Ministro Marco Aurélio afirmou considerar uma
visão míope da atuação da Suprema Corte), por aqui ser inequívoco que o Tribunal está assumindo um
papel de caráter positivo, ainda que de caráter provisório (se o legislador eventualmente atuar),
destacando seu entendimento no sentido de que tal vedação à atuação positiva do Tribunal deve ser
relativizada diante de prestações que envolvam a produção de norma ou de mecanismo de proteção, nos
quais deve haver uma resposta de caráter positivo, pois se o sistema falha de alguma forma na
composição dessa resposta e o Judiciário é chamado, de alguma forma, a substituir o sistema político, é
óbvio que a resposta só poderá ser de caráter positivo.
Afirmou que nas sustentações orais formuladas se aventou o tema sob o enfoque do reconhecimento
do direito das minorias, oportunidade na qual destacou seu entendimento esposado em votos anteriores
sobre este ser o ethos fundamental da jurisdição constitucional, sendo que no caso específico o que se
pede é um modelo mínimo de proteção institucional como instrumento para evitar uma caracterização
continuada de discriminação32. A respeito da indagação sobre dever ou não da jurisdição constitucional
deixar o Congresso Nacional encaminhar o tema diante das acusações de ativismo judicial/excesso de
atuação jurisdicional, considera que o quadro que se tem é de inércia, de não decisão (em que cabe ao
Tribunal atuar para garantir o direito fundamental em questão). Assim, parece-lhe evidente que não
estamos a falar apenas de uma falta de disciplina que permita o desenvolvimento de uma política pública,
mas sim de direitos fundamentais básicos. Entende-se que a doutrina nacional não tem se ocupado como
deveria do direito que cada indivíduo tem de autodesenvolvimento de sua personalidade, direito
existente no nosso sistema a partir do direito de liberdade, entendendo que o direito à orientação sexual
está contemplado nessa ideia de autodesenvolvimento, de exercício de liberdade, sendo que a falta de um
modelo institucional que abrigue essa “opção” acaba militando/contribuindo para o quadro de
discriminação, donde a rigor a pretensão que se formula perante o Tribunal tem base nos direitos
fundamentais a partir da própria ideia do direito de liberdade, de igualdade, apontando que aqueles que
fazem essa “opção”, se não encontrarem o modelo institucional adequado, acabarão sofrendo as mais
diversas formas de discriminação, uma vez que, nesse contexto, o Estado tem um dever de proteção,
correspectivo a esses direitos elencados.
Explicitou o que considerou como outra dificuldade a se vencer: afirmou que a legitimação do STF
enquanto Corte Constitucional decorre da aplicação da Constituição enquanto norma e, para isso, não se
pode ler no texto constitucional o que se queira, razão pela qual, ante a literalidade do art. 226, § 3º, da
CF/1988, o Tribunal tem a obrigação de explicitar os fundamentos que justificam uma leitura inclusiva da
união entre pessoas do mesmo sexo “diante de um texto tão claro”33 que declara a união estável entre um
homem e a mulher, texto este que inclusive faz com que alguns vislumbrem um silêncio eloquente a vedar
tal reconhecimento, o que não considera como consequência inevitável pois também entende que há aqui
outros direitos fundamentais envolvidos, associados ao livre desenvolvimento da personalidade, que
justificam e justificariam a criação de um modelo idêntico ou semelhante àquele da união estável para
essas relações existentes, com base nos princípios da igualdade, da liberdade e da não discriminação,
por estes demandarem um dever de proteção. Contudo, considera que é preciso dizê-lo de forma clara
para o Tribunal não passar a impressão de que estaria a decidir com base em um voluntarismo, em uma
interpretação apelativa a denotar que o Tribunal estaria interpretando o texto constitucional de certa
forma por sua mera vontade, o que levaria à sua deslegitimação34. Assim, diante da “clareza” do texto
constitucional, chegou até a especular sobre a existência de uma possível lacuna, pois se o Tribunal
reconhecer que há direitos a uma proteção que encontre todos os seus correspectivos deveres de proteção
e que há essa lacuna ou essa não disciplina, impõe-se algum tipo de solução, em razão da importância
desse modelo de proteção institucional na vida social35. Não considera fáceis todos os problemas que
decorrem dessa “opção”, considerando muito difícil para a Corte fazer todo o elenco de distinções que
poderia ocorrer entre a união estável entre homem e mulher e pessoas do mesmo sexo. Lembrou que toda
a construção jurisprudencial feita ao longo dos anos sempre foi feita em questões tópicas [pontuais], de
direitos da concubina, de equiparações de situações funcionais etc., com a jurisprudência antecipando de
alguma forma as legislações, mas sempre de caráter tópico.
Entende que diante de um texto constitucional aberto, que evolui e exige novas aplicações em
situações de lacunas, se não puder o Tribunal aplicar a norma tal como está posta, poderia fazê-lo numa
perspectiva estritamente analógica, aplicando​-a naquilo que coubesse, naquilo que fosse possível36. Esta
foi a solução por ele encontrada para o presente caso, ante sua afirmação no sentido de que o fato de a
Constituição proteger a união estável entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção à
união civil ou estável entre pessoas do mesmo sexo37, razão pela qual, se não fosse possível resolver a
controvérsia aqui posta à luz da aplicação da disposição citada (art. 226, § 3º), poderia o Tribunal sem
dúvida encaminhar a solução, como fez o Ministro Lewandowski, a partir da aplicação da analogia.
Assim, concluiu seu voto dizendo que, em linhas gerais, está de acordo com o pronunciamento do relator
quanto ao resultado, embora com ressalvas acerca da fundamentação. Contudo, anotou que tem certo
temor de que a equiparação pura e simples das relações, tendo em vista a complexidade do fenômeno
social envolvido, pode preparar surpresas das mais diversas; entende que um exercício de imaginação
institucional, embora estimulante, também desanima, pois quando se começam a fazer equiparações e
elucubrações com base em paradigmas, percebe-se que regular o tema como poderia fazê-lo o legislador
seria exacerbar demais essa vocação da Corte de legisladora positiva, com sério risco de o Tribunal
descarrilhar mediante a produção de lacunas; ao passo que considera que fazer a mera equiparação
poderia fazer com que o Tribunal estivesse a equiparar situações reveladoras de diversidades, como
apontado pelo Ministro Lewandowski. Desse modo, limita-se a reconhecer a existência dessa união, por
aplicação analógica ou, se não houver outra possibilidade, por uma aplicação extensiva do texto
constitucional, sem se pronunciar sobre outros desdobramentos.
O voto do Ministro Gilmar Mendes é preciso quando afirma que a jurisdição constitucional deve
atuar para garantir o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos quando a omissão do legislador
enseja negativa de fruição de tais direitos. Nesse sentido, em razão da ausência de regulamentação acerca
da família conjugal homoafetiva e do fato de isto ter sido interpretado (equivocadamente) por muitos
como forma de não reconhecimento desta, cabe à Suprema Corte atuar para garantir a fruição destes
direitos, seja elaborando a norma faltante para garantia de tal direito como forma de suprir a omissão
inconstitucional do legislador (como feito pelo Tribunal na regulamentação da greve do serviço público
ante a respectiva omissão inconstitucional – STF, MI n.º 670, 708 e 712), seja pela colmatação da lacuna
normativa por interpretação extensiva ou analogia, por força do princípio da igualdade.
O Ministro Joaquim Barbosa afirmou que o fundamento da controvérsia não está unicamente no art.
226, § 3º, da CF/1988, mas em todos os dispositivos constitucionais que estabelecem a proteção dos
direitos fundamentais. Ressaltou que as uniões homoafetivas constituem uma realidade social
incontestável porque sempre existiram e sempre existirão. Assim, quanto ao pedido de reconhecimento
das relações homoafetivas da mesma forma que se reconhecem as relações heteroafetivas, considerando
que a Constituição deseja extinguir ou ao menos mitigar o preconceito mediante o estabelecimento da
justiça social e da igualdade entre os cidadãos em uma sociedade livre, justa e solidária sem
preconceitos de qualquer espécie, considerando que a Constituição não proibiu o reconhecimento
jurídico das uniões homoafetivas e que o rol de direitos fundamentais não se limita àqueles
expressamente reconhecidos, havendo outros decorrentes dos princípios e tratados internacionais dos
quais o Brasil faça parte (art. 5º, § 2º, da CF/1988), entende que o reconhecimento dos direitos das
pessoas que mantêm relações homoafetivas decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, que
garante o direito à igual consideração, na medida em que o não reconhecimento dessas relações
simboliza que o Estado não atribui o mesmo respeito e valor à afetividade dos homossexuais, o que viola
o direito de reconhecimento inerente à dignidade humana. Entendeu que o reconhecimento dos direitos
oriundos de uniões homoafetivas encontra fundamento em todos os dispositivos constitucionais que
estabelecem a proteção dos direitos fundamentais, a saber, nos princípios da dignidade da pessoa
humana, da igualdade e da não discriminação, normas autoaplicáveis que incidem diretamente sobre
essas relações de natureza privada, irradiando sobre elas toda força garantidora que emana do nosso
sistema de proteção de direitos fundamentais, razão pela qual também julgou as ações procedentes.
O Ministro Marco Aurélio iniciou seu voto aduzindo que a questão apresentada é saber se a
convivência pública com o intuito de constituir família entre duas pessoas do mesmo sexo pode ser
admitida como entidade familiar pela Constituição diante da omissão legislativa e, em caso positivo, se é
cabível a aplicação a ela do regime previsto no art. 1.723 do CC/2002. Entendeu que a solução do tema
independe do legislador, pois decorre diretamente dos direitos fundamentais, em especial do princípio da
dignidade da pessoa humana, que permitiu a reformulação do conceito de família por meio da zona de
certeza positiva sobre o conteúdo jurídico de tal princípio, que veda instrumentalizações de
determinadas pessoas ou grupos em prol de um projeto de sociedade alheio38, superando-se assim o
modelo hierárquico-patriarcal de família conjugal, fundado na hierarquia do pai e na proteção do
patrimônio do mesmo, para se chegar ao modelo consagrado pela Constituição Federal de 1988: de
reconhecimento jurídico de outras formas familiares.
Sobre o art. 226, § 3º, da CF/1988, afirmou que ele expressamente impôs ao Estado o
reconhecimento de efeitos jurídicos às uniões estáveis, dando fim à ideia de que somente no casamento
seria possível a instituição de família, donde consagrado o Direito “das Famílias”, “isto é, das famílias
plurais, e não somente da família matrimonial, resultante do casamento. Em detrimento do
patrimônio, elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os membros como elementos centrais
de caracterização da entidade familiar”, razão pela qual “Alterou-se a visão tradicional sobre a
família, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a existir para que os respectivos
membros possam ter uma vida plena comum”, deixando de se considerar o conceito de família enquanto
“instituição-fim em si mesmo” para nela identificar a qualidade de instrumento a serviço da dignidade de
cada um de seus membros, por força do fenômeno da repersonalização do Direito Civil oriundo da sua
constitucionalização, que consagrou o direito de ser em detrimento do mero direito de ter (no âmbito do
Direito Civil em geral e, em especial, do Direito das Famílias). Assim, afirmou que relegar as uniões
homoafetivas à disciplina da sociedade de fato é não reconhecer essa modificação paradigmática no
Direito Civil levada a cabo pela Constituição da República ante a categoria da sociedade de fato refletir
um intuito patrimonial/empresarial e não afetivo ou emocional, além de ser vislumbrada pelo Direito
Comercial como uma sociedade irregular eivada por vícios, donde esta categoria jurídica está em
flagrante descompasso com a essência da união homoafetiva, que revela o compartilhamento de vidas39 e
não a obtenção de lucros por intermédio de atividade negocial. Nesse sentido, reconhecendo a proteção
jurídica conferida ao projeto de vida como integrante do conteúdo existencial do princípio da dignidade
da pessoa humana e como um valor essencialmente existencial que visa a realização integral da pessoa
concretamente considerada mediante as escolhas que lhe pareçam mais acertadas na busca por seu
projeto de vida40, afirmou que “Certamente, o projeto de vida daqueles que têm atração pelo mesmo
sexo resultaria prejudicado com a impossibilidade absoluta de formar família”, donde “Exigir-lhes a
mudança na orientação sexual para que estejam aptos a alcançar tal situação jurídica demonstra
menosprezo à dignidade. Esbarra ainda no óbice constitucional ao preconceito em razão da
orientação sexual”. Já sobre a interpretação do § 3º do art. 226 da CF/1988 no caso em julgamento,
afirmou que considerando que o objetivo da República Federativa do Brasil é a construção de uma
sociedade sem preconceitos, “Não é dado interpretar o arcabouço normativo de maneira a chegar-se a
enfoque que contrarie esse princípio basilar, agasalhando-se preconceito constitucionalmente vedado”,
pois isto “despreza a sistemática integrativa presentes princípios maiores, a interpretação isolada do
artigo 226, § 3º, também do Diploma Maior, no que revela o reconhecimento da união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, até porque o dispositivo não proíbe esse reconhecimento
entre pessoas de gênero igual”, razão pela qual o teor meramente literal do dispositivo “pode ser
contornado com o recurso a instrumento presente nas ferramentas tradicionais de hermenêutica”.
Assim, extraindo do princípio da dignidade da pessoa humana a obrigação de reconhecimento estatal da
união homoafetiva, reconheceu que inexiste vedação constitucional à aplicação do regime da união
estável às uniões homoafetivas, não se podendo vislumbrar silêncio eloquente em virtude da redação do
§ 3º do artigo 226” porque, ao contrário, há “obrigação constitucional de não discriminação e de
respeito à dignidade humana, às diferenças, à liberdade de orientação sexual, o que impõe o
tratamento equânime entre homossexuais e heterossexuais”, donde deve ser superada a mera
literalidade do art. 1.723 do CC/2002 por ela não retratar fielmente o propósito constitucional de
reconhecer direitos a grupos minoritários. Assim, concluiu que “Se o reconhecimento da entidade
familiar depende apenas da opção livre e responsável de constituição de vida comum para promover a
dignidade dos partícipes, regida pelo afeto existente entre eles, então não parece haver dúvida de que
a Constituição Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva admitida como tal”, por ser essa a
leitura normativa que faz dos valores constitucionais consagrados nos arts. 1º, inc. III, 3º, incs. II e IV, e
5º, caput e inc. I, da CF/1988 ante a ausência de prejuízo a quem quer que seja pelo reconhecimento
estatal da união homoafetiva41, razão pela qual julgou procedentes as ações para declarar a
aplicabilidade do regime jurídico da união estável às uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Os votos dos Ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa comprovam que a interpretação
sistemático-teleológica da Constituição demonstra que a ausência de vedação constitucional ao
reconhecimento da união estável homoafetiva demanda pelo reconhecimento do status jurídico-familiar
desta, ante a inadequação de se equipará-la a uma sociedade de fato por se ter aqui um intuito familiar e
não empresarial, bem como pelo princípio da dignidade da pessoa humana demandar o reconhecimento
da família conjugal homoafetiva em razão deste princípio vedar o menosprezo dela relativamente à
família conjugal heteroafetiva, o que só é possível mediante o reconhecimento da igual dignidade jurídica
e social delas mediante a extensão do regime jurídico da união estável (e do casamento civil) à união
conjugal entre pessoas do mesmo sexo, por interpretação extensiva ou analogia.
O Ministro Celso de Mello iniciou seu voto ressaltando a pluralização do debate constitucional
permitida pela participação dos amici curiae42, para, após relatar o histórico de legislações que
reprimiam duramente os chamados atos de sodomia com evidente hostilidade e gravíssimas punições
(inclusive com a morte, equiparando-os ao crime de lesa-majestade), defender a existência de imperativo
constitucional de reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar em razão: (i) de
ninguém poder ser privado de seus direitos em razão de sua orientação sexual, a significar que também os
homossexuais têm o direito de receber igual proteção das leis e do sistema político-jurídico instituído
pela Constituição, donde intolerável a punição, exclusão ou discriminação que desiguale as pessoas em
razão de sua orientação sexual, na medida em que o Estado não pode formular prescrições normativas
que provoquem, por seu conteúdo discriminatório, a exclusão de grupos, minoritários ou não, que
integram a comunhão nacional; (ii) da incumbência da Suprema Corte de garantir tais valores da
liberdade, da igualdade, da tolerância, da autodeterminação, do pluralismo, da intimidade e da não
discriminação, que representam fundamentos essenciais à configuração de uma sociedade
verdadeiramente democrática, donde cabe ao Tribunal por termo à injusta divisão em debate, por pautada
em preconceitos inaceitáveis que não mais resistem ao espírito do tempo; (iii) de tal decisão tornar
efetivo o princípio da igualdade, que assegura respeito à liberdade pessoal e à autonomia individual,
confere primazia à dignidade da pessoa humana e que rompe paradigmas históricos e culturais e remove
obstáculos que, até agora, inviabilizavam a busca da felicidade por parte de homossexuais vítimas de
tratamento discriminatório, afirmando ainda que o reconhecimento do direito à busca da felicidade,
enquanto ideia-força que emana do princípio da dignidade da pessoa humana43, autoriza o rompimento
dos obstáculos que impedem a pretendida qualificação da união estável homoafetiva como entidade
familiar.
Sobre o art. 226, § 3.º, da CF/1988, afirmou não vislumbrar neste texto normativo uma lacuna
voluntária ou consciente evidenciadora de um “silêncio eloquente” relativamente às uniões entre pessoas
do mesmo sexo, o que faz com base nas lições de Daniel Sarmento e de Luís Roberto Barroso: (a)
Sarmento, invocando o princípio instrumental da unidade da Constituição para defender que os
princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, do Estado Democrático de Direito, da
construção de uma sociedade livre, justa e solidária livre de preconceitos e discriminações configuram
vetores que apontam firmemente no sentido de que a interpretação do art. 226, § 3º, deve buscar a
inclusão e não a exclusão dos estigmatizados, a emancipação dos grupos vulneráveis e não a perenização
do preconceito e da desigualdade, donde se tem que concluir que esse dispositivo constitucional
assegurou reconhecimento à união entre o homem e a mulher sem que a ausência de referência à união
entre duas pessoas do mesmo sexo possa configurar silêncio eloquente em razão de a mera omissão à
alusão à união homoafetiva não significar necessariamente que a Constituição não asseguraria o
reconhecimento desta, em especial por força do elemento teleológico de dito dispositivo, que foi incluído
na Constituição para garantir proteção jurídica às uniões não matrimonializadas, de sorte a coroar um
processo histórico de inclusão social e superação do preconceito, visto que seria um contrassenso
interpretar este dispositivo constitucional, que visa a inclusão, como uma cláusula de exclusão
discriminatória de homossexuais; (b) Barroso, apontando que essa alusão à diversidade de gênero não
traduz vedação de extensão de tal regime às relações homoafetivas, pois extrair tal consequência deste
preceito seria desvirtuar a natureza da norma, que é de inclusão, por ter sido introduzida para superar a
histórica discriminação sobre relações heteroafetivas que não decorressem do casamento, donde em tal
norma inclusiva não se pode vislumbrar uma restrição preconceituosa de um direito. Dessa forma,
entendeu o Ministro que “a extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à
união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre
outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica
e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, os quais
configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria
Constituição da República (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a
conferir suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como
espécie do gênero entidade familiar”. Chegou a tal conclusão, ainda, com base no entendimento de que o
reconhecimento das conjugalidades homoafetivas, por repousarem a sua existência nos vínculos de
solidariedade, de amor e de projetos de vida em comum, implica o reconhecimento do dever do Estado
de lhes dispensar o mesmo tratamento atribuído às uniões estáveis heteroafetivas, em razão de ser
indiscutível que o novo paradigma no plano das relações familiares é o afeto, que se tornou um dos
fundamentos mais significativos da família moderna, qualificando-se, para além de sua dimensão ética,
como valor jurídico impregnado de perfil constitucional.
Nesse momento, o Ministro Celso de Mello honrou-me com citação de trecho deste livro, no qual
defendi: que mudou o paradigma da família contemporânea que, de uma entidade fechada e válida por si
mesma, passou a existir somente por força do amor entre os cônjuges/companheiros, em razão de a
sociedade ter dado mais relevância à felicidade e, assim, à afetividade amorosa do que à mera
formalidade do casamento civil ou qualquer outra forma preconcebida de família; que o reconhecimento
do status jurídico-familiar da união estável alçou o afeto à condição de princípio jurídico implícito à
dignidade humana no que tange às relações familiares (ante o art. 5º, § 2º, da CF/1988 permitir a
perquirição de direitos fundamentais implícitos), o que decorre do fato de ser o afeto romântico o motivo
que faz duas pessoas decidirem formar uma união estável – pois, embora seja o amor familiar o
elemento formador da família contemporânea (ou seja, a afetividade conectada com a publicidade,
durabilidade e continuidade da união em uma comunhão plena de vida e interesses), é o amor romântico
que dá o passo inicial para a constituição de uma união estável; que, considerando que a única diferença
do casamento civil para a união estável é o papel passado (a certidão de casamento), ou seja, o
casamento ser uma situação formalizada e a união estável uma situação de fato, tal equiparação denota
que foi atribuída significação jurídica ao afeto conjugal existente na relação, de sorte a consagrá-lo como
princípio jurídico-constitucional; e que o afeto é um princípio constitucional implícito à dignidade da
pessoa humana no que tange às relações familiares porque estas, para garantir o direito à felicidade e a
uma vida digna (inerentes à dignidade humana), precisam ser pautadas pelo afeto, independentemente de
quaisquer formalidades, como a do casamento civil44.
Destacou o Ministro, ainda, a função contramajoritária da Suprema Corte enquanto “órgão investido
do poder e da responsabilidade institucional de proteger as minorias contra eventuais excessos da
maioria ou, ainda, contra omissões que, imputáveis aos grupos majoritários, tornem-se lesivas, em
face da inércia do Estado, aos direitos daqueles que sofrem os efeitos perversos do preconceito, da
discriminação e da exclusão jurídica”, ou seja, a função de proteger as minorias contra imposições
desarrazoadas ou indignas das maiorias, o que invocou em razão de a resistência do Poder Legislativo
em enquadrar a união estável homoafetiva como entidade familiar culminar em um quadro de submissão
deste grupo minoritário à vontade hegemônica da maioria (por isto excluir, marginalizar e diminuir o
papel social dos indivíduos que mantêm relações homoafetivas45), de sorte a comprometer o próprio
coeficiente de legitimidade democrática da instituição parlamentar, na medida em que o regime
democrático não tolera nem admite a opressão da minoria por grupos majoritários, pois a despeito da
importância do princípio majoritário, em uma perspectiva de uma concepção material de democracia
constitucional, ele não pode ensejar a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais,
como o livre exercício da igualdade e da liberdade, sob pena de descaracterização da própria essência
que qualifica o Estado Democrático de Direito. Daí a necessidade de assegurar-se proteção às minorias e
aos grupos vulneráveis como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado
Democrático de Direito46, pois, em uma democracia constitucional, “ninguém se sobrepõe, nem mesmo
os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República”, de
modo que “torna-se necessário assegurar, às minorias, notadamente em sede jurisdicional, quando tal
se impuser, a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, os direitos fundamentais
que a todos, sem distinção, são assegurados”, por ser uma das funções básicas do constitucionalismo a
proteção dos direitos das minorias diante do arbítrio ou do descaso das maiorias, donde, concordando
com a petição inicial, considera essencial a intervenção da jurisdição constitucional para garantir aos
homossexuais a possibilidade, que decorre da Constituição, de verem reconhecidas oficialmente as suas
uniões afetivas, com todas as consequências jurídicas patrimoniais e extrapatrimoniais disso decorrentes,
por não haver qualquer interesse legítimo que justifique o não reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar. Sobre a colmatação de lacunas normativas inconstitucionais,
afirmou que “o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais
e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos poderes do
Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão constitucional e demonstrar, com esse gesto, o
respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República”47. Por todos esses
fundamentos, julgou procedentes as ações “para, com efeito vinculante, declarar a obrigatoriedade do
reconhecimento, como entidade familiar, da união entre pessoas do mesmo sexo, desde que atendidos os
mesmos requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher, além de também
reconhecer, com idêntica eficácia vinculante, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas
uniões estáveis estendem-se aos companheiros na união entre pessoas do mesmo sexo”.
O voto do Ministro Celso de Mello é paradigmático em todos os sentidos, em especial na menção ao
fato de que uma democracia constitucional só existe realmente se os direitos fundamentais de todos forem
respeitados, inclusive os das minorias, mesmo contra a vontade da maioria quando não haja uma
fundamentação lógico-racional que justifique a discriminação respectiva perante a isonomia, o que
inexiste no presente caso. Uma verdadeira aula sobre hermenêutica e sobre a função da Suprema Corte
em uma democracia constitucional.
O Ministro Peluso afirmou inicialmente que é possível o pedido de interpretação conforme em
razão da diversidade das redações entre os arts. 226, § 3.º, e 1.723 do CC/2002 para, em seguida,
afirmar que estamos em um caso típico de lacuna normativa passível de colmatação por analogia,
técnica hermenêutica apta a garantir os direitos de uma situação normatizada a uma situação a ela
equivalente, ressaltando que o caso não seria, a seu ver, de hipóteses idênticas, mas de proteção da união
homoafetiva por equiparação à união heteroafetiva48. O fez por concluir que as normas constitucionais,
em particular a do art. 226, § 3º, não excluem outras modalidades de entidade familiar não expressas no
texto constitucional, por não se tratar de um rol taxativo, donde, por força dos princípios constitucionais
da dignidade, da igualdade e da não discriminação (“e outros”), deve-se admitir uma interpretação
segundo a qual, além das entidades familiares catalogadas na Constituição, podem ser reconhecidas
outras, como no caso, pois os elementos comuns de ordem afetiva em sentido genérico e material unindo
pessoas do mesmo sexo guardam exatamente uma comunidade com certos elementos da união estável
entre o homem e a mulher, daí a admissibilidade da consideração da união de duas pessoas do mesmo
sexo de serem consideradas como entidades familiares para efeitos constitucionais e legais. Em razão do
raciocínio analógico a ser empregado, indagou-se sobre quais normas deveriam ser invocadas para
colmatar a lacuna em questão, momento no qual também defendeu a aplicação das normas do Direito das
Famílias ao caso, porque realmente estas uniões/relações, marcadas sobretudo por afetividade,
evidentemente não podem ser submetidas às normas que regulam sociedades de ordem comercial,
econômica etc.49 Ressalta, contudo, que, a seu ver, nem todas as normas relativas à união estável entre
homem e mulher poderiam ser aplicadas à união homoafetiva, por não considerar que se tratem de
situações absolutamente idênticas, mas equiparadas, sendo preciso respeitar o que cada instituição tem
si tem de particular, não apenas por sua natureza extrajurídica, mas pela sua própria natureza normativa.
Daí que, também julgando procedente a ação, reiterou a afirmação do Ministro Gilmar Mendes no sentido
de que estamos diante de um campo hipotético em relação aos desdobramentos deste importante
julgamento da Suprema Corte Brasileira, os quais não podem ser examinados exaustivamente por
diversos motivos, primeiramente pelos pedidos não o comportarem, e segundo por entender que sequer a
imaginação dos Ministros seria capaz de prever todas as consequências, desdobramentos e situações
advindas do pronunciamento da Corte, inclusive por não termos um modelo institucional que o Tribunal
pudesse reconhecer e definir, de maneira clara, com a capacidade de responder a todas as exigências de
aplicação a hipóteses ainda não concebidas, donde entende que da decisão da Corte falta um espaço no
qual deve intervir o Poder Legislativo, o qual, a partir deste julgamento, tem que se dispor a regulamentar
as situações em que a aplicação da decisão da Corte será justificada também do ponto de vista
constitucional, entendendo assim haver como que uma convocação desta decisão da Corte para que o
Legislativo assuma essa tarefa, a qual parece que, até agora, não se sentiu ainda muito propenso a
exercer, de regulamentar esta equiparação, o que aponta ser um ponto de vista estritamente pessoal50.
O voto do Ministro Peluso demonstra cabalmente que a decisão do STF justifica-se mediante lições
de Direito Civil Clássico, segundo as quais o fato de o texto normativo regulamentar um fato (união
estável heteroafetiva) sem nada dispor sobre o outro, seja reconhecendo-o, seja proibindo-o (união
estável homoafetiva) caracteriza lacuna normativa passível de colmatação por interpretação extensiva ou
analogia (que desde sempre implicaram uma ação positiva do Estado-juiz de garantir direitos não
previstos no texto da norma). Logo, é absurdo pensar que o Supremo teria ultrapassado sua competência
constitucional neste caso por ter reconhecido um direito não previsto no texto da norma, pois isto é o que
a analogia faz desde tempos imemoriais! Portanto, a menos que se pretenda declarar a
inconstitucionalidade da colmatação de lacunas normativas por analogia por isto supostamente afrontar a
separação dos poderes, o que seria absurdo por ser função da interpretação extensiva e da analogia
suprir as lacunas normativas, enquanto estas não são eliminadas mediante regulamentação normativa
coerente com as normas constitucionais, não se pode dizer que a decisão do STF configuraria um
ativismo judicial ou uma usurpação da competência do Congresso Nacional, em especial por
interpretação extensiva e analogia serem concretizações do princípio da igualdade, no sentido de garantir
igual tratamento a situações iguais ou fundamentalmente iguais, donde amparadas pelo direito
fundamental à igualdade.
Anote-se, sobre a observação dos Ministros Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso de que o
Congresso não está proibido de legislar sobre o tema e que pode regulamentar as especificidades de cada
uma das uniões (o que é óbvio), que eles evidentemente restaram vencidos se com isto quiseram dizer
que a regulamentação do Congresso Nacional poderia trazer restrições aos direitos das uniões estáveis
homoafetivas relativamente às heteroafetivas naquilo que eventualmente considerem “indispensável” a
diversidade de sexos – ao menos no que tange à questão do casamento civil e da adoção conjunta, que
devem ser reconhecidos às uniões homoafetivas já que elas foram reconhecidas pelo STF enquanto
famílias conjugais e ante a ausência de prejuízos a crianças e adolescentes pelo mero fato de serem
criadas por um casal homoafetivo. É claro que, sendo a igualdade material o regime do tratamento
distinto das situações desiguais, poderia ser admitida a regulamentação distinta no caso de se reconhecer
que haveria alguma diferença relevante entre a união estável homoafetiva relativamente à união estável
heteroafetiva, mas cabe lembrar que qualquer regulamentação diferenciada terá que passar pelo crivo
dos testes constitucionais da isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade, a demandar pela
pertinência lógico-racional de tal diferenciação (isonomia e razoabilidade) além de sua adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito com algum fim constitucionalmente legítimo
(proporcionalidade) o que supõe nova análise de sua (in)constitucionalidade pelo Supremo Tribunal
Federal se vier a existir.
Como se vê, a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF n.º 132 e da ADI n.º
4.277 foi pautada por uma interpretação sistemático-teleológica da Constituição Federal que, na prática,
aplicou ao caso concreto uma lição de Direito Civil Clássico, segundo a qual o fato de o texto normativo
regulamentar um ato sem nada dispor sobre outro implica lacuna normativa passível de colmatação por
interpretação extensiva ou analogia, e não de “proibição implícita” (mesmo porque a tese da “proibição
implícita” é inconstitucional por afronta ao art. 5º, inc. II, da CF/1988, que exige texto normativo
expresso ou, no mínimo, norma jurídica implícita que proíba a situação em questão), tendo alguns
ministros entendido que a aplicação direta das normas constitucionais da igualdade, da dignidade
humana, da liberdade e da segurança jurídica demandam o reconhecimento do status jurídico-familiar da
união homoafetiva enquanto família conjugal com igualdade de condições com a união estável
heteroafetiva (enquadrando-a, assim, no conceito constitucional de união estável), outros entendendo que
a referida lacuna normativa é passível de colmatação por analogia por ser a união estável o regime
jurídico mais próximo da união estável homoafetiva. Tais entendimentos encontram-se em coerência com
a interpretação sistemático-teleológica da Constituição e os cânones hermenêuticos de interpretação
constitucional da unidade, da máxima efetividade e da concordância prática das normas constitucionais.

7. RE 477.554 AGR/MG, RE 615.941/RJ E OUTRAS DECISÕES MONOCRÁTICAS PÓS ADPF


132 E ADI 4.277
No julgamento do RE n.º 477.554 AgR/MG, o Ministro Celso de Mello, relator, proferiu acórdão
cuja ementa bem sintetiza o julgamento da ADPF n.º 132 e da ADI n.º 4.277 por ser a elas posterior
(embora, curiosamente, tenha tido seu acórdão publicado antes da publicação do acórdão daquelas
ações51), razão pela qual pede-se venia para se transcrever referida ementa:

Ementa: União civil entre pessoas do mesmo sexo. Alta relevância social e jurídico​-
constitucional da questão pertinente às uniões homoafetivas. Legitimidade constitucional do
reconhecimento e qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar: posição
consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF). O
afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: a valorização desse novo
paradigma como núcleo conformador do conceito de família. O direito à busca da felicidade,
verdadeiro postulado constitucional implícito e expressão de uma ideia-força que deriva do
princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Alguns precedentes do Supremo Tribunal
Federal e da Suprema Corte Americana sobre o direito fundamental à busca da felicidade.
Princípios de Yogyakarta (2006): direito de qualquer pessoa de constituir família,
independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Direito do companheiro, na
união estável homoafetiva, à percepção do benefício da pensão por morte de seu parceiro, desde
que observados os requisitos do art. 1.723 do Código Civil. O art. 226, § 3º, da Lei Fundamental
constitui típica norma de inclusão. A função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal no
Estado Democrático de Direito. A proteção das minorias analisada na perspectiva de uma
concepção material de democracia constitucional. O dever constitucional do estado de impedir (e,
até mesmo, de punir) “qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”
(CF, art. 5º, XLI). A força normativa dos princípios constitucionais e o fortalecimento da jurisdição
constitucional: elementos que compõem o marco doutrinário que confere suporte teórico ao
neoconstitucionalismo – Recurso de agravo improvido. Ninguém pode ser privado de seus direitos
em razão de sua orientação sexual.
– Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer
restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual. Os homossexuais, por tal razão,
têm direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto do sistema político-jurídico instituído
pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna,
que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que
desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual.
Reconhecimento e qualificação da união homoafetiva como entidade familiar.
– O Supremo Tribunal Federal – apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva e invocando
princípios essenciais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação,
da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade) –
reconhece assistir, a qualquer pessoa, o direito fundamental à orientação sexual, havendo
proclamado, por isso mesmo, a plena legitimidade ético​-jurídica da união homoafetiva como
entidade familiar, atribuindo-lhe, em consequência, verdadeiro estatuto de cidadania, em ordem a
permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes consequências no plano
do Direito, notadamente no campo previdenciário, e, também, na esfera das relações sociais e
familiares.
– A extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável
entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos
princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do
postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, os quais configuram,
numa estrita dimensão que privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria Constituição da
República (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir suporte
legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como espécie do
gênero entidade familiar.
– Toda pessoa tem o direito fundamental de constituir família, independentemente de sua
orientação sexual ou de identidade de gênero. A família resultante da união homoafetiva não
pode sofrer discriminação, cabendo-lhe os mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações
que se mostrem acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uniões heteroafetivas.
A dimensão constitucional do afeto como um dos fundamentos da família moderna. – O
reconhecimento do afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um novo
paradigma que informa e inspira a formulação do próprio conceito de família. Doutrina.
Dignidade da pessoa humana e busca da felicidade.
– O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade
desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte
que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País, traduz, de modo
expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática
consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Doutrina.
– O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo
de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no
processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de
sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja
ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais.
– Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade,
verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma ideia-força
que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Precedentes do Supremo Tribunal
Federal e da Suprema Corte americana. Positivação desse princípio no plano do direito comparado.
A função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal e a proteção das minorias.
– A proteção das minorias e dos grupos vulneráveis qualifica-se como fundamento
imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito.
– Incumbe, por isso mesmo, ao Supremo Tribunal Federal, em sua condição institucional de
guarda da Constituição (o que lhe confere “o monopólio da última palavra” em matéria de
interpretação constitucional), desempenhar função contramajoritária, em ordem a dispensar efetiva
proteção às minorias contra eventuais excessos (ou omissões) da maioria, eis que ninguém se
sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, à autoridade hierárquico-normativa e aos princípios
superiores consagrados na Lei Fundamental do Estado. Precedentes. Doutrina. (grifos nossos)

O site www.direitohomoafetivo.com.br traz, ainda, outras duas decisões no mesmo sentido, também
relatadas pelo Ministro Celso de Mello52: RE n.º 568.129, julgado em 01.07.2011, e RE 596.010,
julgado em 01.08.2011, que reiteram os argumentos supratranscritos.
Vejamos, ainda, a ementa do RE 615.941/RJ, DJe de 01.12.2011, relatado pelo Ministro Luiz Fux,
que também traz valiosas considerações sobre o tema:

Direito constitucional e civil. União homoafetiva. Reconhecimento. Inclusão do companheiro


como dependente para fins de pensão por morte e assistência à saúde. Possibilidade. Recurso
extraordinário a que se nega seguimento.
1. A norma constante do art. 1.723 do Código Civil — CC (“É reconhecida como entidade
familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”) não obsta que a união de
pessoas do mesmo sexo possa ser reconhecida como entidade familiar apta a merecer proteção
estatal. Precedentes: ADI 4.277 e ADPF 132, ambas da Relatoria do Ministro Ayres Britto,
Tribunal Pleno, Sessão de 05.05.2011.
2. O homossexualismo é um traço da personalidade. O homossexualismo não é uma crença, o
homossexualismo não é uma ideologia e muito menos uma opção de vida, na medida em que nós
sabemos da existência atual e pretérita de todas as formas de violência simbólica e violência física
contra os homossexuais. Mas, se a homossexualidade é um traço da personalidade, isto significa
dizer que ela caracteriza a humanidade de uma determinada pessoa. A homossexualidade não é
crime. Então por que ser homossexual? E por que o homossexual não pode constituir uma família? O
homossexual, em regra, não pode constituir uma família por força de duas questões que são
abominadas pela nossa Constituição: a intolerância e o preconceito. A Constituição Federal
brasileira, que é de uma beleza plástica ímpar, destaca no seu preâmbulo, como ideário da nossa
nação, como promessa constitucional, que o Brasil, sob a inspiração de Deus, se propôs a erigir
uma sociedade plural, uma sociedade justa, uma sociedade sem preconceitos, com extrema
valorização da dignidade da pessoa humana. E para enfeixar esse conjunto de cláusulas pétreas, o
artigo 5º dispõe que todos os homens são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza
e nada mais faz do que especificar aquilo que consta em todas as declarações fundamentais dos
direitos do homem – na Declaração da ONU, no nosso Pacto de São José da Costa Rica, na
Declaração da África e de Madagascar, na Declaração dos Povos Muçulmanos –, todos os homens,
seres humanos, são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Volta-se, então, à
pergunta: se é assim – e assim o é –, por que os homossexuais não podem formar uma união
homoafetiva equiparável a uma família? E o que é uma família? O que é uma família, no Brasil,
quando nós sabemos que a Constituição Federal só consagrou a união estável porque 50% das
famílias brasileiras são espontâneas? Nesses lares, nessas casas desse percentual do povo
brasileiro, nunca passou um juiz, nunca passou um padre, mas naquela casa há amor, há unidade, há
identidade, há propósito de edificação de projetos de vida. Naquela casa, muito embora não tenha
passado nenhum padre e nenhum juiz, naquela casa há uma família. E o conceito de família no
mundo hodierno, diante de uma Constituição pós-positivista, é um conceito de família que só tem
validade conquanto privilegie a dignidade das pessoas que a compõem. Assim como,
hodiernamente, só há propriedade conquanto ela cumpra sua finalidade social, há família, conquanto
ela cumpra sua finalidade social; a família, conquanto ela conceda aos seus integrantes a máxima
proteção sob o ângulo da dignidade humana. Ora, se esse é o conceito, se essa é a percepção
hodierna, a união homoafetiva enquadra-se no conceito de família. E qual é a pretensão? A
pretensão é que se confira juridicidade a essa união homoafetiva para que eles possam sair do
segredo, para que possam sair do sigilo, para que possam vencer o ódio e a intolerância em nome da
lei. E o que se pretende, mutatis mutandis, é a equiparação à união estável, que exatamente foi
consagrada em razão dessa realidade das famílias espontâneas. E a união homoafetiva é uma
realidade social – o eminente Procurador-Geral da República ontem trouxe, e também tivemos essa
informação de que há mais de sessenta mil uniões homoafetivas no Brasil –, de sorte que, pelo
menos sob esses ângulos ainda embrionários, nada se justifica que não se possa equiparar a união
homoafetiva à união estável. Muito embora pudéssemos ficar apenas no ângulo jusfilosófico, que já
seria extremamente convincente, como é esse enxerto de alguns princípios pétreos da Constituição
Federal, a realidade é que inúmeros princípios constitucionais, quase que a Constituição como um
todo, conspiram em favor dessa equalização da união homoafetiva em relação à união estável. Eu
citaria – como aqui já o fez o Ministro Ayres – o princípio da isonomia, o princípio da liberdade, o
princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da proteção que o Estado deve a essas
minorias e inúmeros outros princípios que aqui eu poderia enunciar. E como nós sabemos, hoje, a
análise de qualquer drama humano – que passa por essa ponte onde trafegam todas as misérias e
todas as aberrações, que é a ponte da Justiça –, esses dramas humanos, hoje, eles não podem ser
resolvidos sem perpassarem pelo tecido normativo da Constituição Federal. Hoje, temos os
princípios instrumentais de interpretação da Constituição Federal, e os próprios princípios materiais
que informam o sistema jurídico, como um todo, iluminam o sistema jurídico. E, sob essa ótica, o
Homem, o Ser Humano, hoje se encontra como centro de gravidade de todo o ordenamento jurídico.
Então, é absolutamente incompossível solucionar essa questão sem passar por esses princípios
constitucionais, dentre tantos, e estes que guardam, talvez, um pouco mais de afinidade com a
questão aqui proposta.
3. Reconhecida a união estável entre pessoas do mesmo sexo, não há que se falar em
ausência de direito de perceber pensão por morte de um dos companheiros.
(...)
É o relatório.
O recurso não merece prosperar. O Pleno do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI
4.277 e da ADPF 132, ambas da Relatoria do Ministro Ayres Britto, Sessão de 05.05.2011, decidiu
que “a norma constante do art. 1.723 do Código Civil – CC (‘É reconhecida como entidade familiar
a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura
e estabelecida com o objetivo de constituição de família’) não obsta que a união de pessoas do
mesmo sexo possa ser reconhecida como entidade familiar apta a merecer proteção estatal”
(Informativo 625/STF). Ressaltou, ainda, que “no mérito, prevaleceu o voto proferido pelo Min.
Ayres Britto, relator, que dava interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723 do CC para dele
excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura
entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de
família. Asseverou que esse reconhecimento deveria ser feito segundo as mesmas regras e com
idênticas consequências da união estável heteroafetiva. De início, enfatizou que a Constituição
proibiria, de modo expresso, o preconceito em razão do sexo ou da natural diferença entre a mulher
e o homem. Além disso, apontou que fatores acidentais ou fortuitos, a exemplo da origem social,
idade, cor da pele e outros, não se caracterizariam como causas de merecimento ou de
desmerecimento intrínseco de quem quer que fosse” (Informativo 625/STF). Destacou também que
“no tocante ao tema do emprego da sexualidade humana, haveria liberdade do mais largo espectro
ante silêncio intencional da Constituição. Apontou que essa total ausência de previsão normativo-
constitucional referente à fruição da preferência sexual, em primeiro lugar, possibilitaria a
incidência da regra de que ‘tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está
juridicamente permitido’. Em segundo lugar, o emprego da sexualidade humana diria respeito à
intimidade e à vida privada, as quais seriam direito da personalidade e, por último, dever-se-ia
considerar a âncora normativa do § 1º do art. 5º da CF. Destacou, outrossim, que essa liberdade
para dispor da própria sexualidade inserir-se-ia no rol dos direitos fundamentais do indivíduo,
sendo direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana e até mesmo cláusula pétrea.
Frisou que esse direito de exploração dos potenciais da própria sexualidade seria exercitável tanto
no plano da intimidade (absenteísmo sexual e onanismo) quanto da privacidade (intercurso sexual).
Asseverou, de outro lado, que o século XXI já se marcaria pela preponderância da afetividade
sobre a biologicidade” (Informativo 625/STF).
(...)
Ex positis, nego seguimento ao recurso extraordinário com fundamento no disposto no artigo
21, § 1º, do RISTF. (grifos nossos)
Outras decisões monocráticas foram proferidas pelos Ministros do STF, confirmando o entendimento
do Tribunal na ADPF 132 e na ADI 4.277: não fizemos uma pesquisa exaustiva destes, mas citem-se os
seguintes: RE 552.802/RS, DJe 24.10.2011 (Rel. Min. Dias Toffoli); RE 643.229/RS, DJe 08.09.2011
(Rel. Min. Luix Fux); RE 590.989/PE, DJe 24.06.2011; RE 475.126/SC, DJe 31.05.2011; AI 843.707/RJ,
DJe 01.06.2011 (relatora dos três: Ministra Cármen Lúcia). O tema resta, assim, consolidado na
jurisprudência do STF.

8. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O posicionamento do Ministro Eros Grau encontra-se equivocado, tendo em vista que se ateve ao
argumento simplista de que a letra fria da Constituição não abarcaria as uniões homoafetivas, tendo-se
omitido quanto à questão de mérito referente à afronta ao princípio da igualdade oriunda desse
posicionamento, o que seria solucionado pela aplicação da interpretação extensiva ou da analogia ao
caso concreto. Contudo, justiça seja feita, o Ministro não se manifestou sobre essa questão de mérito por
ter entendido que não foi cumprido o requisito do prequestionamento por parte da recorrente, donde não
se encontra o Supremo obrigado a se posicionar sobre questões de mérito nesses casos.
Por outro lado, o posicionamento do Ministro Celso de Mello (ADIn 3.300/DF) encontra-se em total
consonância com o defendido neste trabalho, pelo menos no que tange à questão da possibilidade jurídica
da união estável homoafetiva (não tendo sido a questão do casamento civil ventilada na ação por ele
julgada). Muito embora tenha extinguido o processo por uma questão puramente formal, a saber, o fato de
terem as autoras utilizado-se de ação direta de inconstitucionalidade contra norma legal revogada (sendo
que o Supremo entende incabível a ação direta de inconstitucionalidade nessa hipótese), o Ministro
afirmou tratar-se de questão constitucional relevante a discutida naquela ação, tendo inclusive
prestigiado a lição de Maria Berenice Dias e a jurisprudência do TJ/RS, que igualmente defende dita
possibilidade jurídica. Ou seja, entendeu o Ministro Celso de Mello que as uniões homoafetivas
merecem o mesmo tratamento jurídico conferido às uniões heteroafetivas em virtude de ambas serem
idênticas no essencial, razão pela qual concordou com a concessão do regime jurídico da união estável
aos casais homoafetivos por meio da analogia, o que se denota dos trechos doutrinários e
jurisprudenciais por ele citados.
Na mesma linha, o posicionamento do Ministro Marco Aurélio na Pet. 1.984/RS, que afirmou que a
interpretação do art. 226, § 3.º, da CF/1988 não pode ser feita de forma isolada e em contrariedade ao
basilar princípio segundo o qual constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a
promoção do bem-estar de todos, sem preconceitos de quaisquer espécies, donde entendo que nele
reconheceu a plausibilidade do pedido de reconhecimento do direito de companheiros(as)
homoafetivos(as) como dependentes da seguridade social, pois, do contrário, não teria feito referência à
necessidade de se analisar os fundamentos jurídicos do pedido no julgamento de suspensões de
segurança. É o que demonstra sua menção ao fato de a Constituição ter como objetivo fundamental o bem
de todos, sem preconceitos (art. 3.º, inc. IV, da CF/1988) e que o arcabouço normativo vigente (aí
incluído o art. 226, § 3.º, da CF/1988, citado pela decisão) não poderia ser interpretado isoladamente,
mas em consonância com este princípio basilar contrário a preconceitos diversos. Logo, tenho que este
foi o primeiro posicionamento favorável ao reconhecimento dos direitos de casais homoafetivos no
âmbito do Supremo Tribunal Federal (por ter sido proferido antes do voto do Ministro Celso de Mello na
ADIn 3.300, de maior notoriedade, infraexplicitada), ainda que de forma sumária, por ser um julgamento
de suspensão de segurança (que não supõe profunda análise do mérito da ação originária, mas apenas a
análise da plausibilidade jurídica dos pedidos).
Por sua vez, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no julgamento do REsp 24.564/PA, apesar de ter
dito que o ordenamento jurídico brasileiro ainda não teria admitido a comunhão de vidas entre pessoas
do mesmo sexo como entidade familiar, não deixou claro se fez essa colocação no sentido de ausência de
texto normativo expresso ou de ausência de status jurídico-familiar nas uniões homoafetivas (hipótese na
qual caberia a ele ter demonstrado o motivo justificador do discrímen, para se justificar perante a
isonomia). De qualquer forma, o reconhecimento de obrigações jurídico-familiares às uniões
homoafetivas (como a inelegibilidade reconhecida no REsp 24.564/PA) deve necessariamente gerar o
reconhecimento do caráter familiar destas, sob pena de uma gritante contradição: a de se negar dito
reconhecimento pela ausência de lei expressa, mas, ao mesmo tempo, reconhecer obrigações aos casais
homoafetivos mesmo na ausência de lei expressa que as preveja. Ou a interpretação teleológica é
aplicada em todos os casos ou não deve sê-lo em nenhum, sob pena de arbitrariedade em sua utilização, o
que é evidentemente inadmissível.
No histórico julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, o Supremo Tribunal Federal atribuiu
interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do CC/2002 “para dele excluir qualquer
significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo
sexo como ‘entidade familiar’, entendida esta como sinônimo perfeito de ‘família’. Reconhecimento que
é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”
(parte dispositiva da decisão do STF), algo coerente com a interpretação sistemático-teleológica do art.
226, § 3º, da CF/1988 com os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da
segurança jurídica (invocados nas ações), consoante a fundamentação supraexplicitada, na medida em
que, como bem dito pelo Ministro Gilmar Mendes em seu voto, o fato de a Constituição proteger a
união estável entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção à união civil ou estável
entre pessoas do mesmo sexo, donde ausente qualquer óbice constitucional ao reconhecimento da união
estável homoafetiva, por interpretação extensiva ou analogia.
Confira-se, a respeito, as ementas do RE 477.554 AgR/MG, DJe 26.08.2011 (Rel. Min. Celso de
Mello), e do RE 615.941/RJ, DJe 01.12.2011 (Rel. Min. Luiz Fux), que bem sintetizam o histórico
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, que foram as que localizei até o fechamento desta segunda
edição.
Por fim, note-se o seguinte: consoante mencionado na introdução, a decisão proferida na ADPF 132
e da ADI 4277 efetivamente reconheceu a união homoafetiva como união estável quando atendidos os
requisitos legais da publicidade, durabilidade, continuidade e intuito de constituir família, e não como
mera “entidade familiar autônoma”, como pretendeu o Ministro Lewandowski, que evidentemente ficou
vencido neste ponto. Com efeito, ao aplicar interpretação conforme à Constituição ao artigo 1.723 do
Código Civil, “para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento
da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família”, em
“Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da
união estável heteroafetiva”, considerando que tal dispositivo regulamenta a união estável, é evidente
que dita decisão reconheceu a família conjugal homoafetiva como “união estável” quando atendidos os
requisitos ali fixados (“convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com objetivo de
constituição de família”)53 e não apenas como “entidade familiar autônoma” distinta da união estável. Até
porque, ao falar em “união estável heteroafetiva”, evidentemente o STF também reconheceu a existência
da “união estável homoafetiva”, ao passo que “união contínua, pública e duradoura” com intuito de
constituir família é como o referido dispositivo legal define a união estável. Essa é a correta
interpretação da referida decisão.

1 RE 406.837/SP, Relator Ministro Eros Grau, julgado em 23.02.2005, publicado em 31.03.2005.


2 Ibidem.
3 Consoante, inclusive, reconhecido (nestes termos) pelo Superior Tribunal de Justiça nos já analisados REsp n.º 820.475/RJ
e REsp n.º 827.962/RS – este último trazendo a peremptória afirmação segundo a qual “É juridicamente possível pedido de
reconhecimento de união estável de casal homossexual, uma vez que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação
explícita ao ajuizamento de demanda com tal propósito”, donde “Os arts. 4º e 5º da Lei de Introdução do Código Civil
autorizam o julgador a reconhecer a união estável entre pessoas de mesmo sexo”, em especial porque “A extensão, aos
relacionamentos homoafetivos, dos efeitos jurídicos do regime de união estável aplicável aos casais heterossexuais traduz
a corporificação dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana”; o primeiro (anterior)
demonstrando o acerto de tais assertivas mediante a óbvia constatação de que “Os dispositivos legais limitam-se a
estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei,
quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas
mulheres”, pois “Poderia o legislador, caso desejasse,utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre
pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu”, uma vez
que “É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria,
conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada”.
4 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6. ed., 3ª tiragem, 2006, São Paulo: Saraiva, pp. 202-
203, que afirma o papel dos princípios constitucionais como condicionantes da interpretação das demais normas
constitucionais, por conferirem unidade e coerência ao sistema, donde a eles deve se voltar o intérprete para resolver
tensões normativas concluindo que “deve-se reconhecer a existência, no Texto Constitucional, de uma hierarquia axiológica,
resultado da ordenação dos valores constitucionais, a ser utilizadas sempre que se constatarem tensões que envolvam
duas regras entre si, uma regra e um princípio ou dois princípios”.
5 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação e aplicação do direito, 4.a Edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2006,
p. 53. Esta tese já foi citada neste trabalho, no capítulo relativo à união estável.
6 Como dito também no capítulo relativo à união estável, caso se entenda pela existência de contradição entre princípios e
regras, a solução a ser adotada deve ser a da prevalência dos princípios sobre as regras, tendo em vista serem aqueles
mandamentos nucleares do sistema que condicionam a interpretação destas.
7 Não se trata de afronta reflexa à Constituição. Afronta reflexa ocorreria se uma interpretação dos citados artigos de lei
afrontasse a Constituição; mas a não interpretação de uma lei, que deve ser aplicada, implica afronta direta ao princípio da
legalidade.
8 As informações constantes deste parágrafo foram extraídas do relatório do REsp 24.564/PA.
9 Este parágrafo é uma paráfrase do constante em: DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o Preconceito & a Justiça!,
3.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 145.
10 Nesse sentido, a lição de Maria Berenice Dias: “Agora que a Justiça decidiu que as uniões homoafetivas repercutem na
esfera eleitoral, a ponto de gerar a presunção de que pode haver interesses políticos comuns, não há como deixar de
reconhecer que essas relações são entidades familiares. Assim, se foram impostas limitações ao exercício de um direito,
não há como continuar sustentando a falta de lei para negar direitos outros. Se as pessoas que vivem uma relação
homoafetiva contínua e duradoura têm de se submeter às restrições impostas pela legislação eleitoral, elas também devem
se beneficiar de todas as regras dos mais diversos ramos jurídicos que conferem direitos a pessoas que mantêm relação
heterossexual contínua e duradoura. Não se pode admitir que tais pessoas tenham somente os ônus e não usufruam os
bônus” (ibidem, p. 145-146 – sem grifos no original).
11 Cf. <http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioAtualProcesso.asp?
numDj=131&dataPublicacaoDj=19/07/2010&incidente=3890303&codCapitulo=1&numMateria=139&codMateria=8>. Último
acesso: 07 jan. 2012.
12 O Ministro Ayres Britto destacou que o vocábulo homoafetividade foi cunhado por Maria Berenice Dias para se superar o
estigma de preconceito das palavras homossexualismo e homossexualidade, de sorte a se destacar o afeto destinado a
pessoa do mesmo sexo, vocábulo este que transcendeu a seara jurídica para ser acolhido nos dicionários da língua
portuguesa, como o Dicionário Aurélio, verbete que diz utilizar “para dar conta, ora do enlace por amor, por afeto, por intenso
carinho entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de seres
humanos” em uma “União, aclare-se, com perdurabilidade o bastante para a constituição de um novo núcleo doméstico,
tão socialmente ostensivo na sua existência quanto vocacionado para a expansão de suas fronteiras temporais”, ou seja,
um “vínculo de caráter privado, mas sem o viés do propósito empresarial, econômico, ou, por qualquer forma, patrimonial,
pois não se trata de uma mera sociedade de fato ou interesseira parceria mercantil”, pois “Trata-se, isto sim, de uma união
essencialmente afetiva ou amorosa, a implicar um voluntário navegar emparceirado por um rio sem margens fixas e sem
outra embocadura que não seja a confiante entrega de um coração aberto a outro”.
13 Entendeu o Ministro Ayres Britto que não há nada na Constituição atrele a compreensão de família à conjugalidade
heteroafetiva (a casais heteroafetivos) e que é com base no citado entendimento sobre a família que deve ser interpretado o
art. 226 e seus parágrafos, “interpretando por forma não reducionista o conceito de família”, donde a coerência com os
princípios constitucionais enseja “a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos
somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família.
Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer
outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade. Pena de se
consagrar uma liberdade homoafetiva pela metade ou condenada a encontros tão ocasionais quanto clandestinos ou
subterrâneos”. Assim, tanto sobre a união estável quanto sobre o casamento civil, afirmou que “tanto numa quanto noutra
modalidade de legítima constituição da família, nenhuma referência é feita à interdição, ou à possibilidade de protagonização
por pessoas do mesmo sexo”, mesmo porque “não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção
de um interesse de outrem” e que “não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham. E quanto
à sociedade como um todo, sua estruturação é de se dar, já o dissemos, com fincas na fraternidade, no pluralismo e na
proibição do preconceito, conforme os expressos dizeres do preâmbulo da nossa Constituição do inciso IV do seu art. 3º”
(grifos nossos).
14 O Ministro iniciou fixando algumas premissas fundamentais: (i) a homossexualidade é um fato da vida, ante a existência de
indivíduos que são homossexuais e, na formulação e na realização de seus modos e projetos de vida, constituem relações
afetivas e de assistência recíproca, em convívio contínuo e duradouro – mas, por questões de foro pessoal ou para evitar a
discriminação, nem sempre público – com pessoas do mesmo sexo, vivendo, pois, em orientação sexual diversa daquela
em que vive a maioria da população; (ii) a homossexualidade é uma orientação e não uma opção, por já ser corrente na
comunidade científica que a homossexualidade não constitui doença, desvio ou distúrbio mental, mas uma característica da
personalidade do indivíduo, ressaltando não ser razoável imaginar que, mesmo no seio de uma comunidade encharcada de
preconceitos, as pessoas escolhessem voluntariamente um modo de vida dissonante das expectativas morais da maioria,
de sorte a sujeitarem-se à discriminação, ao ódio e à violência; (ii.1) o indivíduo é homossexual simplesmente porque o é,
pois a única opção que o indivíduo faz é a publicidade ou o segredo sobre esse traço de sua personalidade, ante ser
predeterminada sua orientação sexual (independentemente de sua origem, se genética, social, ambas ou outras); (iii) a
homossexualidade não é uma ideologia ou crença; (iv) os homossexuais constituem entre si relações contínuas e
duradouras de afeto e assistência mútua, com o propósito de compartilhar meios e projetos de vida, o que simplesmente
ocorre e continuará ocorrendo, como prova o CENSO/2010, com a constatação de 60 mil casais homoafetivos
autodeclarados, sendo perfeitamente presumível que muitos outros não tenham se autodeclarado enquanto tais [por força
do medo de preconceito social]; (v) não há qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade no estabelecimento de uniões
homoafetivas, ante a reserva legal para vedação de condutas dos indivíduos constante do art. 5º, inc. II, da CF/1988, donde
não existe, no direito brasileiro, vedação às uniões homoafetivas.
15 Afirmou o Ministro Fux que do ponto de vista ontológico “nada distingue as uniões estáveis heteroafetivas das uniões
estáveis homoafetivas”, pois assim como companheiros heteroafetivos, companheiros homoafetivos ligam-se e apoiam-se
emocional e financeiramente; vivem juntos as alegrias e dificuldades do dia a dia; projetam um futuro comum, donde, sendo
ontologicamente simétricas, devem ambas ser reconhecidas como entidades familiares com mesma proteção estatal.
16 Destacou o Ministro que “uma união estável homoafetiva, por si só, não tem o condão de lesar a ninguém, pelo que não se
justifica qualquer restrição ou, como é ainda pior, a limitação velada, disfarçada de indiferença”, o que afirmou para, com
base na lição de Maria Martin Sanchez, aduzir que a limitação da liberdade do indivíduo pelo não reconhecimento ou pela
omissão legal só teria justificação se se argumentasse que dita limitação ou restrição da liberdade obedece à proteção de
algum valor, princípio ou bem constitucional, de modo que, efetuada uma ponderação de bens em jogo, seria conveniente
estabelecer essa limitação, entendendo não existir nada do gênero cuja proteção necessite de tal restrição aos direitos dos
casais homoafetivos.
17 Afirmou o Ministro Fux que “não se há de objetar que o art. 226, § 3º, constituiria obstáculo à equiparação das uniões
homoafetivas às uniões estáveis heterossexuais, por força da previsão literal (‘entre homem e mulher’). Assiste razão aos
proponentes das ações em exame em seus comentários à redação do referido dispositivo constitucional. A norma foi
inserida no texto constitucional para tirar da sombra as uniões estáveis e incluí-las no conceito de família. Seria perverso
conferir a norma de cunho indiscutivelmente emancipatório interpretação restritiva, a ponto de concluir que nela existe
impeditivo à legitimação jurídica das uniões homoafetivas, lógica que se há de estender ao art. 1.723 do Código Civil”,
donde urge renovar este espírito emancipatório para estender a garantia institucional da família às uniões homoafetivas.
18 Não é nada menos o que expõe GONÇALVES (2007, p. 125), ao afirmar que a teoria foi concebida para “contornar, em
matéria de casamento, o princípio de que não há nulidade sem texto”. No mesmo sentido: AZEVEDO (2007, pp. 157-158),
que chamou a declaração de inexistência jurídica de casamento no qual a mulher se recusou a consumar o ato mediante
conjunção carnal de “um caso de nulidade não prevista, a repetir as hipóteses que deram origem à teoria da inexistência”.
Na mesma linha, DINIZ (2007, p. 52), que reconhece que “o conceito de casamento inexistente apareceu na França, em
razão do princípio de que não pode haver nulidade de casamento sem expressa disposição legal, rejeitando assim as
nulidades virtuais em matéria matrimonial”, tese esta que, a nosso ver, afirma tais “nulidades virtuais” sob o rótulo de “atos
inexistentes”, algo inadmissível à luz do art. 5º, inc. II, da CF/1988, que exige norma jurídica proibitiva para proibições
jurídicas.
19 Afirmou a Ministra Cármen Lúcia que embora a referência expressa a homem e mulher garanta a eles, às expressas, o
reconhecimento da união estável como entidade familiar, com os consectários jurídicos próprios, nisso não significa que se
não for um homem e uma mulher a união não possa vir a ser também fonte de iguais direitos. Disse que, bem ao contrário,
o que se extrai dos princípios constitucionais é que todos, homens e mulheres, “qualquer que seja a escolha do seu modo
de vida”, têm os seus direitos fundamentais à liberdade, a serem tratados com igualdade em sua humanidade, ao respeito e
à intimidade devidamente garantidos, visto que para ser digno há que ser livre e a liberdade perpassa a vida de uma pessoa
em todos os seus aspectos, aí incluído o da “liberdade de escolha sexual, sentimental e de convivência com outrem”, ao
passo que não seria pensável que se assegurasse constitucionalmente a liberdade e, por regra contraditória, no mesmo
texto, se tolhesse essa mesma liberdade, impedindo-se o “exercício da livre escolha do modo de viver”, pondo-se aquele
que “decidisse exercer o seu direito a escolhas pessoais livres” como alvo de preconceitos sociais e de discriminações, ou
seja, à sombra do Direito. Entende que, tendo a República posto entre seus objetivos fundamentais o bem-estar de todos
sem preconceitos, não pode ser tida como válida a inteligência de regra legal se isto conduzir ao preconceito e à
discriminação.
20 Apesar de difundida, a expressão “opção sexual” é pautada por um grave erro conceitual, ante ninguém escolher ser homo,
hétero ou bissexual, simplesmente se descobrindo de uma forma ou de outra (ninguém “escolhe/decide” ter um desejo
erótico-afetivo por pessoas do mesmo sexo, de sexo diverso ou de ambos os sexos – as pessoas simplesmente
descobrem o desejo que lhes é inerente), bem como pela impossibilidade de se mudar a própria orientação sexual, mas
apenas de reprimi-la, pois os desejos erótico-afetivos que a pessoa reprime continuam existindo dentro dela (as difundidas
“terapias de cura” da homossexualidade acabam simplesmente por convencer a pessoa a reprimir seu desejo erótico-
afetivo por pessoas do mesmo sexo e incentivando-a a manter relacionamentos conjugais com pessoas do outro sexo, o
que não faz com que o desejo erótico-afetivo por pessoas do mesmo sexo “desapareça”, mas apenas fique reprimido no
seu íntimo).
21 O Ministro citou a lição de Suzana Borges Viegas de Lima, no sentido de que o rol de entidades familiares do art. 226 é
meramente exemplificativo, dada a natureza aberta das normas constitucionais, donde afirmou a autora que é essencial
que se considere a evolução da família a partir dos seus aspectos civis e constitucionais a partir dos fenômenos da
publicização, repersonalização e constitucionalização do Direito das Famílias, para, assim, poder-se promover a afirmação
das relações homoafetivas [enquanto entidades familiares]. Citou, ainda, a lição de Paulo Lôbo, segundo a qual a o § 4º do
art. 226 traz uma “cláusula geral de inclusão” por força do termo “também” ali constante, pois “‘Também’ tem o significado
de igualmente, da mesma forma, outrossim de inclusão de fato sem exclusão de outros”, donde “Se dois forem os sentidos
possíveis (inclusão ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda à realização da dignidade da pessoa
humana, sem desconsideração das entidades familiares reais não explicitadas no texto”, razão pela qual concluiu que os
tipos mencionados pelos parágrafos do art. 226 devem ser tidos como meramente exemplificativos, devendo as demais
entidades familiares serem consideradas como implícitas no “conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput”,
passível de concretização a partir da experiência da vida, dotada de ductibilidade e adaptabilidade em um conceito de
tipicidade aberta. Citou, ainda, a lição de Álvaro Villaça, no sentido de que nada mais precisa dizer o Constituinte senão o
que consta do caput do art. 226, segundo o qual a família merece especial proteção do Estado, “podendo o legislador
constituinte ter deixado de discriminar as formas de constituição da família. Sim porque ao legislador, ainda que constituinte,
não cabe dizer ao povo como deve ele constituir sua família. O importante é proteger todas as formas de constituição
familiar, sem dizer o que é melhor” (grifo nosso).
22 O Ministro citou a lição de Canotilho no sentido de que cabe a integração analógica quando determinadas situações que
devem se considerar reguladas pelo texto constitucional não estão previstas e não possam ser cobertas pela interpretação,
mesmo extensiva, de preceitos constitucionais considerados em sua letra e sua ratio, hipótese na qual a lacuna
constitucional somente existe quando contrária ao plano regulativo e a teleologia da ordenação constitucional.
23 No original: “Em suma, reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar, aplicam-se a ela as regras do instituto que
lhe é mais próximo, qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são assemelhados,
descartando-se aqueles que são próprios da relação entre pessoas de sexo distinto, segundo a vetusta máxima ubi eadem
ratio ibi idem jus [onde há a mesma razão, aplica-se o mesmo Direito], que fundamenta o emprego da analogia no âmbito
jurídico. Isso posto, pelo meu voto, julgo procedente as presentes ações diretas de inconstitucionalidade para que sejam
aplicadas às uniões homoafetivas, caracterizadas como entidades familiares, as prescrições legais relativas às uniões
estáveis heterossexuais, excluídas aquelas que exijam a diversidade de sexo para o seu exercício, até que sobrevenham
disposições normativas específicas que regulem tais relações”.
24 Não teria sido possível, por exemplo, a evolução na compreensão da Suprema Corte dos EUA sobre os direitos civis dos
negros, saindo de sua postura segregacionista para posteriormente considerá-los absolutamente iguais aos brancos com
base no mesmo dispositivo constitucional, elaborado em uma época em que negros eram considerados pela sociedade
estadunidense como “inferiores” aos brancos, donde este originalismo interpretativo impediria dita evolução na
compreensão da norma constitucional da igualdade.
25 Cf. ATALIBA apud BARROSO, op. cit., p. 132, em nota de rodapé.
26 BARROSO, op. cit., p. 113.
27 A definição de occasio legis é de BARROSO, op. cit., p. 139.
28 Este trabalho não é o local adequado para se debaterem questões de pura hermenêutica jurídica. Anote-se, apenas, que
adoto a concepção que dá prevalência ao critério teleológico sobre os demais – a meu ver, a occasio legis (critério histórico)
visa determinar a finalidade (critério teleológico) pretendida com o texto normativo, ao passo que os signos linguísticos
(critério gramatical) são formas de se expressar o objetivo pretendido com o texto, interpretado sistematicamente com os
demais (critério sistemático), para assim obtermos um todo harmônico de normas em nosso ordenamento jurídico.
29 LÔBO, op. cit., pp. 6, 58-60.
30 A Ministra Ellen Gracie não leu a íntegra de seu voto, mas apenas poucos trechos. Fonte:
<http://stf.jusbrasil.com.br/noticias/2674091/ministra-ellen-gracie-acompanha-voto-do-relator-reconhecendo-a-uniao-
homoafetiva>. Acesso em: 20 set. 2011.
31 Em síntese, afirmou o Ministro Gilmar Mendes que o art. 1.723 do CC/2002 tem sido usado com objetivo de obstar o
reconhecimento da união estável homoafetiva, donde cabível o pedido de interpretação conforme à Constituição em razão
de o não reconhecimento não ser compatível com a Constituição. Afirmou que, se o sistema político falha na garantia dos
direitos fundamentais aos cidadãos, é óbvio que a resposta do STF só poderá ser de caráter positivo, de sorte a garantir
tais direitos. Citou a importância da teoria semântica da norma jurídica, para que se apresente uma fundamentação
compatível com o texto constitucional, de sorte a não se passar a impressão de que estaria o Tribunal a interpretar a
Constituição conforme sua mera vontade, o que deslegitimaria o STF. Citando o relator, disse que o fato de o texto
constitucional dizer que é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher não significa proibir a união estável ou civil
entre duas pessoas do mesmo sexo, razão pela qual são procedentes as ações para se garantir à união homoafetiva o
regime jurídico da união estável, por ser aquele que lhe é mais próximo.
32 Proteção esta que deveria ser feita pelo Congresso Nacional, mas, considerando que também foram destacadas da tribuna
as dificuldades que ocorrem nesse processo decisório em razão das íntimas controvérsias sociais sobre o tema, entende
restar clara a dificuldade do modelo representativo atuar sobre o tema, por conta do preconceito que está presente em uma
parcela significativa da sociedade acerca do tema.
33 Momento no qual o Ministro Ayres Britto, em aparte, destacou que, no seu voto, foi dada uma interpretação a esse texto
para além de sua literalidade, para dele extrair a ratio de proteção, inclusão e afirmação da mulher em contraposição ao
homem no estreito âmbito do núcleo doméstico, em contraposição constitucional ao nosso ranço patriarcalista. Em
seguida, o Ministro Luiz Fux afirmou que essa ação foi proposta para se dar ao art. 1.723 do CC/2002 interpretação
conforme à Constituição à luz dos princípios constitucionais dos quais também emergem direitos e normas, de sorte que
os pedidos e as razões dos pedidos são mais amplos que o formato do art. 226, § 3º, da CF/1988. O Ministro Marco Aurélio
ressaltou a existência de princípios explícitos e implícitos, lembrando fala do Ministro Joaquim Barbosa, no sentido de ser
isto algo bem lançado pelo rol das garantias constitucionais.
34 O Ministro Ayres Britto ressaltou que esse voluntarismo nem a Suprema Corte tem o direito de exercer; o Ministro Marco
Aurélio destacou que a atuação judicante é sempre vinculada à Constituição e à legislação de regência.
35 O Ministro Gilmar Mendes lembrou aqui de toda a movimentação em torno da Emenda do Divórcio, relativamente a
pessoas que não podiam se casar em razão do óbice constante do impedimento constitucional, saudada como uma
emenda de libertação de todas essas pessoas que aguardavam de alguma forma ansiosas a regularização daquele estado
de fato que estava há muito consolidado, donde se percebe a alta relevância da proteção por um modelo institucional
adequado.
36 Aqui o Ministro desenvolve sofisticado raciocínio com base nas obras de Zagrebelski e Peter Häberle. Afirma que, segundo
Zagrebelski (no seu Direito Dúctil), o imperativo teórico da não contradição não deveria obstaculizar a jurisprudência de
intentar realizar positivamente a concordância prática das diversidades e inclusive das contradições: não mediante a
simples amputação de potencialidades constitucionais, senão, principalmente, mediante prudentes soluções acumulativas,
combinatórias ou compensatórias que conduzam os princípios constitucionais a um desenvolvimento conjunto. Assim, o
preço a pagar pela integração do pluralismo em uma única unidade estatal é o abandono da noção de um único princípio
político dominante, de onde se possam ser extraídas dedutivamente todas as execuções concretas sob a base do princípio
da exclusão do diferente (“ou dentro, ou fora”), por isto ser contraditório à lei fundamental intrínseca do Direito Constitucional
atual, que é principalmente a lógica de múltiplas promessas ao futuro, de modo a se falar em uma maneira de pensar do
possível, adotada por Peter Häberle no chamado pensamento do possível, como algo particularmente adequado ao Direito
do nosso tempo, o que, para Zagrebelski, representa para o pensamento o que a concordância prática representa para a
razão, considerando o Ministro que uma das importantes consequências da teoria de Häberle é que uma teoria
constitucional das alternativas seria uma teoria constitucional da tolerância. Daí dizer Häberle que o pensamento do possível
é o pensamento em alternativas que deve estar aberto a terceiras ou quartas possibilidades, assim como para o
compromisso, pois pensamento do possível é pensamento indagativo, que abre perspectivas a novas realidades, para que
a realidade de hoje possa corrigir ou adaptar a realidade de ontem, sem que se considere o novo como o melhor. Nessa
linha, anota que Häberle aduz que, para um Estado de Liberdade da res publica, se afigura decisivo que a liberdade de
alternativa seja reconhecida também por aqueles que defendem determinadas alternativas. Destaca que o pensamento do
possível tem dupla relação com a realidade, uma de caráter negativo, que indaga sobre o também possível, sobre
alternativas à realidade, sobre aquilo que ainda não é real, e outro sentido, segundo o qual possível é apenas aquilo que
pode ser real no futuro, sendo a perspectiva da realidade futura que permite separar o impossível do possível. O Ministro
destacou essa questão para resolver dois casos básicos. Primeiramente, o caso (muito mais técnico) da indicação dos
procuradores do trabalho para a função de juízes dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs): como houve multiplicação de
TRTs, em pouco tempo já não havia tantos procuradores com dez anos de carreira, exigidos expressamente pela
Constituição para referida indicação, donde o Conselho do Ministério Público editou uma resolução “dizendo o óbvio”, no
sentido de que, não havendo procuradores com mais de dez anos, indicar-se-iam aqueles que já estivessem efetivados, o
que ensejou a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) contra esta resolução, tendo o STF, ao final, com
base nessas considerações, reconhecido que era notório que ali havia uma lacuna, por faltar uma norma de caráter
transitório que dissesse o que foi dito pela norma do MP, pois, do contrário, as alternativas seriam dramáticas: ou não se
nomeavam procuradores e a ideia do quinto e do pluralismo dos tribunais não seria cumprida, ou a indicação de um dos
poucos que cumprissem tal requisito retiraria do(a) Presidente a possibilidade de escolha facultada pelo texto constitucional,
donde o Tribunal acabou acolhendo a argumentação para julgar constitucional a norma, invocando esse argumento que
destacava o pensamento do possível e também a possibilidade de que aqui houvesse uma possível lacuna constitucional
que necessitava da revelação de uma norma implícita de colmatação. Para tanto, citou uma passagem de Perelman, que
narra um caso segundo o qual entre a guerra de 1914-18, como a Bélgica estava ocupada pelas tropas alemãs, o Rei
exercitava sozinho o Poder Legislativo sob a forma de decretos-leis pela impossibilidade de se reunirem as câmaras em
consequência da guerra, embora não houvesse permissivo constitucional para tanto, donde, findo o conflito, se atacou a
legalidade dos decretos-leis promulgados durante a guerra por editados em contrariedade à Constituição. Sobre o tema,
Perelman reiterou os argumentos do procurador-geral belga, no sentido de justificar o acerto da decisão da Corte a despeito
de ser manifestamente contrária ao texto constitucional: uma lei é sempre feita para um período ou regime determinado,
adaptando-se às circunstâncias que a motivaram e não podendo delas ir além, só se concebendo em função de sua
necessidade ou de sua utilidade, uma vez que uma boa lei não deve ser intangível, pois vale a pena para o tempo que quis
reger, pois uma lei, constitucional ou ordinária, nunca estatui senão para períodos normais, para aqueles que ela pode
prever; donde havendo fatos que a sabedoria humana não pôde prever, situações em que não pôde levar em consideração,
torna-se inaplicável a norma, de sorte a ser legítimo ao Tribunal se afastar (o menos possível) das prescrições legais para
fazer frente às brutais necessidades do momento mediante a oposição dos meios provisórios à força invencível dos
acontecimentos. Daí concluir Perelman que interpretar ao pé da letra o art. 130 da Constituição Belga levaria à conclusão de
que o acórdão da Corte teria sido contra legem, mas limitando o alcance desse artigo a situações normais e previsíveis, a
Corte introduziu uma lacuna na Constituição para situações extraordinárias causadas pela força dos acontecimentos, por
força maior, pela necessidade. O Ministro Gilmar Mendes citou, ainda, o RE n.º 147.776, no qual se admitiu a possibilidade
de que fosse considerada constitucional aquela disposição que autorizava o MP a representar as vítimas pobres em
processos de indenização ou ressarcimento (art. 68 do CPP) (a despeito da nova disciplina constitucional, que atribuía tal
competência à Defensoria Pública) enquanto não estabelecida a Defensoria Pública de forma geral, justamente por força
desse pensamento do possível. Destacou que, no âmbito eleitoral, foi aplicada essa mesma estrutura argumentativa em
pedido formulado por várias pessoas, nos casos de deficiência grave, para que houvesse dispensa ou isenção de
participação no processo eleitoral, casos nos quais familiares reclamaram que os enfermos estavam tão doentes ou
acometidos de limitações tão graves que deveriam ficar isentas do processo eleitoral, compreensão esta que seria
impossível pela mera leitura do art. 14 da CF/1988, por dito dispositivo não facultar sequer ao legislador essa flexibilização,
mas novamente o Ministro suscitou essa indagação para defender que, tendo o texto constitucional tornado o voto
facultativo para os maiores de 70 anos por presumir uma possível limitação ou incômodo ao mesmo, parecia justificável na
hipótese a possibilidade que vislumbrássemos aqui a existência de uma lacuna, uma incompletude que justificaria mais
esta exceção. Aqui termina o relato do Ministro sobre o raciocínio de Zagrebeslski e Häberle. Pois bem: embora não o tenha
afirmado expressamente, ficou claro que o Ministro Gilmar Mendes aplicou este pensamento das alternativas para
reconhecer que o reconhecimento do status jurídico-familiar da união homoafetiva é uma alternativa que demanda
reconhecimento por força da interpretação sistemática dos direitos fundamentais, em especial dos princípios
constitucionais da igualdade, da dignidade humana, da liberdade e da segurança jurídica (invocados na petição inicial).
37 ADPF n.º 132 e da ADI n.º 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, pp. 11 e 44, aqui parafraseado. No original: “O fato de a
Constituição proteger, como já destacado pelo eminente Relator, a união estável entre homem e mulher não significa uma
negativa de proteção – nem poderia ser – à união civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo”.
38 Segundo o Ministro Marco Aurélio, “A unidade de sentido do sistema de direitos fundamentais encontra-se no princípio da
dignidade humana, porque aqueles existem exatamente em função da necessidade de garantir a dignidade do ser humano.
(...) A proibição de instrumentalização do ser humano compõe o núcleo do princípio, como bem enfatizado pelo requerente.
Ninguém pode ser funcionalizado, instrumentalizado, com o objetivo de viabilizar o projeto de sociedade alheio, ainda mais
quando fundado em visão coletiva preconceituosa ou em leitura de textos religiosos. A funcionalização é uma característica
típica das sociedades totalitárias, nas quais o indivíduo serve à coletividade e ao Estado, e não o contrário. As concepções
organicistas das relações entre indivíduo e sociedade, embora ainda possam ser encontradas aqui e acolá, são
francamente incompatíveis com a consagração da dignidade da pessoa humana”.
39 Sobre o tema, afirmou o Ministro Marco Aurélio que “A homoafetividade é um fenômeno que se encontra fortemente visível
na sociedade. Como salientado pelo requerente, inexiste consenso quanto à causa da atração pelo mesmo sexo, se
genética ou se social, mas não se trata de mera escolha. A afetividade direcionada a outrem de gênero igual compõe a
individualidade da pessoa, de modo que se torna impossível, sem destruir o ser, exigir o contrário. Insisto: se duas pessoas
de igual sexo se unem para a vida afetiva comum, o ato não pode ser lançado a categoria jurídica imprópria. A tutela da
situação patrimonial é insuficiente. Impõe-se a proteção jurídica integral, qual seja, o reconhecimento do regime familiar.
Caso contrário, conforme alerta Daniel Sarmento, estar-se-á a transmitir a mensagem de que o afeto entre elas é
reprovável e não merece o respeito da sociedade, tampouco a tutela do Estado, o que viola a dignidade dessas pessoas,
que apenas buscam o amor, a felicidade, a realização” (grifos nossos).
40 Citando, nesse sentido, decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos Loayza Tamayo versus Peru e
Cantoral Benavides versus Peru, além da lição de Cançado Trindade com base no caso Gutiérrez Soler versus Colômbia,
oportunidade na qual afirmou que “não pode olvidar a dimensão existencial do princípio da dignidade da pessoa humana,
pois uma vida digna não se resume à integridade física e à suficiência financeira. A dignidade da vida requer a possibilidade
de concretização de metas e projetos. Daí se falar em dano existencial quando o Estado manieta o cidadão nesse aspecto.
Vale dizer: ao Estado é vedado obstar que os indivíduos busquem a própria felicidade, a não ser em caso de violação ao
direito de outrem, o que não ocorre na espécie”.
41 Sobre o tema, o Ministro Marco Aurélio citou a lição de Hart, que contestava a invocação da moralidade coletiva feita por
Devlin para justificar a criminalização da homossexualidade, nos seguintes termos: “Apontou quatro razões para refutar a
posição de Devlin. Primeira: punir alguém é lhe causar mal, e, se a atitude do ofensor não causou mal a ninguém, carece
de sentido a punição. Em outras palavras, as condutas particulares que não afetam direitos de terceiros devem ser
reputadas dentro da esfera da autonomia privada, livres de ingerência pública. Segunda razão: o livre arbítrio também é um
valor moral relevante. Terceira: a liberdade possibilita o aprendizado decorrente da experimentação. Quarta: as leis que
afetam a sexualidade individual acarretam mal aos indivíduos a ela submetidos, com gravíssimas consequências
emocionais”.
42 Os quais, segundo o Ministro, trouxeram subsídios e suas próprias contribuições/alternativas para a interpretação
constitucional do caso concreto, o que auxilia na legitimação democrática da atuação do Tribunal mediante a participação
dos grupos minoritários diretamente envolvidos e demais interessados por permitir ao tribunal atuar na condição de
mediador entre os segmentos sociais discordantes.
43 Sobre o direito à busca da felicidade, afirmou o Ministro Celso de Mello o seguinte: “Reconheço que o direito à busca da
felicidade – que se mostra gravemente comprometido, quando o Congresso Nacional, influenciado por correntes
majoritárias, omite-se na formulação de medidas destinadas a assegurar, a grupos minoritários, a fruição de direitos
fundamentais – representa derivação do princípio da dignidade da pessoa humana, qualificando-se como um dos mais
significativos postulados constitucionais implícitos cujas raízes mergulham, historicamente, na própria Declaração de
Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776”, donde, consoante lição de Stephanie Schwartz
Driver, “Em uma ordem social racional, de acordo com a teoria Iluminista, o governo existe para proteger o direito do
homem de ir em busca da sua mais alta aspiração, que é, essencialmente, a felicidade ou o bem-estar”, razão pela qual “o
postulado constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o princípio da
dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos
fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões
lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais”.
44 Cf. VECCHIATTI, 2008, pp. 220-221 – item 2.5.3 (também constante desta nova edição).
45 O Ministro citou, nesse sentido, o seguinte trecho da petição inicial: “Ao não reconhecer a união entre pessoas do mesmo
sexo, o Estado compromete a capacidade do homossexual de viver a plenitude da sua orientação sexual, enclausurando as
suas relações afetivas no ‘armário’. Esta negativa, como salientou Luís Roberto Barroso, embaraça ‘o exercício da liberdade
e o desenvolvimento da personalidade de um número expressivo de pessoas, depreciando a qualidade dos seus projetos
de vida e dos seus afetos”.
46 O Ministro citou o seguinte trecho da obra de Geraldo Ataliba (entre outros): “Na democracia, governa a maioria, mas – em
virtude do postulado constitucional fundamental da igualdade de todos os cidadãos – ao fazê-lo, não pode oprimir a minoria”
(cf. Judiciário e Minorias. Revista de Informação Legislativa, vol. 96/194), bem como o seguinte trecho da obra de Pinto
Ferreira: “O princípio democrático não é, pois, a tirania do número, nem a ditadura da opinião pública, nem tampouco a
opressão das minorias, o que seria o mais rude dos despotismos. A maioria do povo pode decidir o seu próprio destino,
mas com o devido respeito aos direitos das minorias políticas, acatando nas suas decisões os princípios invioláveis da
liberdade e da igualdade, sob pena de se aniquilar a própria democracia” (Princípios Gerais do Direito Constitucional
Moderno. 5. ed. item n. 8, São Paulo: RT, 1971. t. I/195-196).
47 Nesse sentido, afirmou o Ministro que “práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas pela Corte
Suprema em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se
omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos, ainda mais se se tiver presente
que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma
posição de pura passividade”, donde entende que o STF “não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a
Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, o
amparo das liberdades públicas (com a consequente proteção dos direitos das minorias), a estabilidade do ordenamento
normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão
profundamente comprometidas”.
48 Afirmou Ministro Peluso que, na disciplina dessa entidade familiar, cognoscível por interpretação sistemática das normas
constitucionais, não se pode deixar de reconhecer – e este é o seu fundamento, pedindo venia para divergir do relator e dos
que o acompanharam nesse passo –, aqui há uma lacuna normativa, que precisa ser preenchida, segundo as regras
tradicionais, pela aplicação da analogia, diante basicamente da similitude (não da igualdade) factual em relação a ambas as
entidades de que cogitamos (a união estável entre homem e mulher e entre pessoas do mesmo sexo). Em suas palavras
(após reconhecer o cabimento da técnica da interpretação conforme para o caso): “Daí, não posso deixar de admitir a
conclusão de que as normas constitucionais e, em particular, a norma do artigo 226, § 3º, da Constituição da República,
não excluem outras modalidades de entidade familiar. Não se trata de numerus clausus. De modo que permite dizer que,
tomando em consideração outros princípios da Constituição, como o princípio da dignidade, o princípio da igualdade, o
princípio específico da não discriminação e outros, é lícito conceber, na interpretação de todas essas normas
constitucionais, que, além daquelas explicitamente catalogadas na Constituição, haja outras entidades que podem ser tidas
normativamente como familiares, tal como se dá no caso. Por quê? Porque vários elementos de ordem afetiva, no sentido
genérico, e de ordem material da união de pessoas do mesmo sexo guardam relação de comunidade com certos
elementos da união estável entre homem e mulher. Esta a razão da admissibilidade da consideração da união de duas
pessoas do mesmo sexo – não mais que isso –, na hipótese de que estamos cogitando, como entidades familiares para
efeitos constitucionais e legais. E a segunda consequência é que, na disciplina dessa entidade familiar recognoscível à vista
de uma interpretação sistemática das normas constitucionais, não se pode deixar de reconhecer – e este é o meu
fundamento, a cujo respeito eu peço venia para divergir da posição do ilustre Relator e de outros que o acompanharam
nesse passo – que há uma lacuna normativa, a qual precisa ser preenchida. E se deve preenchê-la, segundo as regras
tradicionais, pela aplicação da analogia, diante, basicamente, da similitude – não da igualdade –, da similitude factual entre
ambas as entidades de que cogitamos: a união estável entre o homem e a mulher e a união entre pessoas do mesmo sexo.
E essa similitude entre ambas situações é que me autoriza dizer que a lacuna tem que ser preenchida por algumas
normas. (...) De modo que, na solução da questão posta, a meu ver e de todos os Ministros da Corte, só podem ser
aplicadas as normas correspondentes àquelas que, no Direito de Família, se aplicam à união estável entre o homem e a
mulher” (voto do Ministro Peluso, pp. 1-3).
49 Após destacar a fala do Ministro Marco Aurélio em prol da necessidade de aplicação às relações homoafetivas das normas
próprias do campo do Direito de Família, por uma questão histórica, afirmou que, em conferência da Associação dos
Advogados de São Paulo (AASP) há mais de vinte anos, àquela altura em que não havia normas diretas de regulamentação
da união estável, foi um dos primeiros advogados da AASP a sustentar, contra a então dominante jurisprudência do TJSP,
que não podiam ser aplicadas as soluções da jurisprudência para atender as exigências próprias do fato histórico, a saber,
normas de Direito não familiar (sociedades de fato, de ordem econômica etc.), mas sim normas de Direito das Famílias,
afirmando ter sido o primeiro a aplicar no TJSP as normas de Direito de Família em caso de união estável. Essa
manifestação do Ministro Peluso constou na 1ª edição desta obra, no capítulo 11, item 11. “Descabimento da
desconsideração do amor existente na relação”, que passamos a aqui transcrever: “União estável. A jurisprudência de hoje,
sensível à irredutibilidade jurídica dessa misteriosa experiência humana, que é o encontro amoroso do homem com a
mulher, o qual jamais poderia ter sido posto nos limites contáveis e mesquinhos da tipologia das sociedades comerciais, já
assentou que, dentro do alcance da STF 380, cabe a hipótese da contribuição indireta, com igual importância na
mancomunhão. E não precisa seja esta entendida no significado restrito de repercussão do trabalho doméstico, da direção
educacional dos filhos, ou de serviços materiais doutra natureza. Ao contrário. Porque, de regra, um homem e uma mulher
[leia-se, duas pessoas] não se atraem, entregam nem vinculam, sob firme ou fugaz expectativa de estabilidade e
perseverança, compelidos por cálculos imediatos de proveitos econômicos, senão para satisfazer anseios de realização
pessoal, ditados por imperativos inconscientes e profundos, a cooperação decisiva é a pessoa do outro. E é ela, enquanto
presença, estímulo, amparo e refúgio, que, na aventura da parceria, possibilita, ou facilita, todas as outras aquisições,
inclusive de ordem patrimonial. O jurídico, porque humano, consiste, pois, em que embora não sendo mensurável como
grandeza física, não deixe de se traduzir em valor econômico, quando se cuide de partilhar os frutos de uma comunhão de
vidas, não os resultados financeiros de uma sociedade qualquer (Des. Cezar Peluzo – BolAASP 1765/396)” (PELUSO apud
JÚNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil Comentado e Legislação Extravagante, 3ª Edição, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 801)”. Vide meus comentários sobre o fato de que tais argumentos se
enquadram perfeitamente no caso da união homoafetiva no capítulo 15, item 2 “Concubinato: evolução histórica, conceito e
espécies. STF, ADPF 132 e ADI 4277”.
50 O Ministro Gilmar Mendes argumentou ser importante destacar isso por entender que um fundamento invocado por vezes
pelo Legislativo para não agir era de que uma eventual lei (que reconhecesse a união estável homoafetiva) poderia ser
considerada “de plano” inconstitucional, o que essa decisão do Supremo afasta e, ao revés, reconhece esta regulação
como um imperativo de concretização dos direitos fundamentais a esta situação específica, o que é mais um convite e uma
justificativa para que eventuais dúvidas e situações peculiares dessas relações possam ser eventualmente disciplinadas. O
Ministro Ayres Britto ressaltou que a decisão do Supremo não fecha os espaços de lei do Congresso Nacional – afirmou
que é um abrir de portas para a comunidade homoafetiva, mas não um fechar de portas ao Poder Legislativo. Ao contrário,
disse o Ministro Peluso, a decisão do Supremo convoca o Congresso Nacional a colaborar com a decisão da Suprema
Corte para superar todas as situações que são, na verdade, situações dramáticas do ponto de vista social resultantes de
uma discriminação absolutamente injustificada. Assim, ficou plenamente de acordo com a Corte na posição tomada, por
unanimidade, proclamando o resultado do julgamento para, no mérito, julgar procedentes as ações com efeito vinculante e
eficácia erga omnes, restando autorizados os ministros a julgarem monocraticamente a mesma questão sob sua relatoria
independentemente da redação do acórdão (pois a publicação se deu no momento da sessão).
51 A ADPF 132 e a ADI 4.277 foram julgadas nos dias 04 e 05.05.2011 e tiveram seu acórdão publicado no dia 14.10.2011, ao
passo que o RE 477.554 AgR/MG foi julgado no dia 16.08.2011 e teve seu acórdão publicado no dia 26.08.2011.
52 Cf. <http://www.direitohomoafetivo.com.br/JurisprudenciaList.php?idJurisAssunto=27&idJurisSubAssunto=49>. Último
acesso: 9 jan. 2012.
53 No mesmo sentido, cite-se, v.g., a lição de BRANDELLI, Leonardo. Nome Civil da pessoa natural, 1ª Edição, São Paulo:
Editora Saraiva, 2012, p. 190, segundo o qual “Entendeu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ação direta de
inconstitucionalidade n. 4277 e da argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 132, pela possibilidade jurídica
da união estável homoafetiva diante da impossibilidade constitucional de discriminação ou desigualação em razão do sexo,
na qual implicaria uma interpretação de que o art. 226 da Carta Maior somente permite a união estável entre homem e
mulher”.
Capítulo 14

CONTRATOS DE UNIÃO ESTÁVEL (HOMOAFETIVA OU


HETEROAFETIVA)

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Na primeira edição desta obra, classifiquei este capítulo como “solução paliativa I”, afirmando que
poderiam casais homoafetivos firmar contrato de união estável com base no art. 424 do CC/02, que
permite a elaboração de contratos atípicos1 (que deixa evidente ser meramente exemplificativo o rol de
contratos constante do Código Civil), em razão do vazio legislativo acerca da união homoafetiva. O fiz
afirmando que era uma forma de resguardar direitos da união homoafetiva até que esta fosse reconhecida
como entidade familiar e tivesse, assim, a si reconhecidos os direitos garantidos pelo Direito das
Famílias, de sorte a cessar a discriminação jurídica atentatória aos princípios da isonomia e da
dignidade da pessoa humana a ela imposta. Justifiquei tal tese com base no art. 5.º, II, da CF/88, que
estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, donde
afirmei ser permitido que duas pessoas do mesmo sexo regulem sua vida conjunta por contrato atípico,
ante a ausência de proibição expressa nesse sentido, além de tal pacto ser útil por constituir uma prova
da união amorosa, pública, contínua e duradoura do casal, o que tornará mais fácil a eventual prova em
juízo de que ambos conviveram em relacionamento afetivo e construíram conjuntamente o patrimônio
existente quando do término da união ou da morte de um deles, como verdadeira família (conjugal).
Contudo, com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277 e o consequente reconhecimento da
união homoafetiva como união estável ou, como preferem outros, como entidade familiar com igualdade
de direitos à união estável heteroafetiva, torna​-se inegável que um casal homoafetivo pode firmar um
contrato de união estável (que sequer precisa ser qualificada de homoafetiva, da mesma forma que uma
união estável heteroafetiva não precisa ser assim qualificada no contrato respectivo), seja por constituir
uma união estável ou então por formar uma entidade familiar autônoma com igualdade de direitos à união
estável, o que significa que podem firmar um contrato garantidor dos mesmos direitos da união estável
heteroafetiva. Não se trata mais de “solução paliativa”, mas de direito subjetivo de casais homoafetivos
terem sua união reconhecida como família conjugal (entidade familiar), o que lhes concede o direito de
firmarem um contrato de união estável – logo, por um contrato típico de Direito das Famílias.

2. CONTRATO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA


Na primeira edição desta obra, adverti que o contrato seria regido pelo Direito das Obrigações
(pelo princípio de que o contrato faz lei entre as partes – pacta sunt servanda) e não pelo Direito das
Famílias, por conta do entendimento jurisprudencial ainda majoritário contrário à equiparação da união
(estável) homoafetiva à união estável heteroafetiva. Contudo, com a decisão do STF na ADPF 132 e na
ADI 4277, de efeito vinculante e eficácia erga omnes, que lhe dá força de lei, não se pode mais negar a
aplicação do Direito das Famílias às uniões homoafetivas não matrimonializadas que atendam os
requisitos de publicidade, continuidade, durabilidade e intuito de constituir família impostos pelo art.
1.723 do CC/2002 para caracterização de uma união estável – logo, os contratos de união estável
firmados por casais homoafetivos devem ter a si atribuídos os mesmos efeitos jurídicos atribuídos aos
contratos de união estável firmados por casais heteroafetivos.
Inicialmente, é imperioso destacar que não tem esse contrato de união estável o condão de criar um
novo estado civil entre os contraentes. Os contraentes continuarão civilmente reconhecidos como
“solteiros”, podendo inclusive qualquer um deles convolar núpcias sem qualquer embaraço, caso seja
essa a sua vontade (fato este que, inegavelmente, ensejará a rescisão do contrato de convivência pela
outra parte, por justo motivo).
Note-se que esse contrato de união estável não se restringe às uniões entre pessoas do mesmo sexo.
As uniões estáveis heteroafetivas podem perfeitamente ser reguladas por ele, tanto que o art. 5.º da Lei
9.278/1996 (que regulamenta o § 3.º do art. 226 da CF/1988), em sua parte final, permite que os
companheiros disciplinem a sua vida patrimonial mediante “contrato escrito”2, assim como o faz o art.
1.725 do CC/20023, para aqueles que entendem que as leis de união estável foram derrogadas pelo
Diploma Civilista.
Por outro lado, consequência lógica da decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277 é a extensão da
presunção de condomínio no que concerne tanto aos bens móveis quanto aos imóveis adquiridos a título
oneroso na constância da união estável (de clara inspiração no regime matrimonial da comunhão parcial
de bens) à união pública, contínua e duradoura, com o intuito de constituir família formada por um casal
formado por duas pessoas do mesmo sexo. Ora, sendo a união homoafetiva uma união estável ou uma
entidade familiar com igualdade de direitos relativamente à união estável heteroafetiva, isso significa que
este direito também a ela foi reconhecido.
Assim, podem os contraentes estipular aquilo que lhes convier acerca de como será a divisão dos
bens de propriedade do casal quando do término de sua união, assim como podem elaborar cláusulas que
estabeleçam que, terminada a convivência, o contraente que se encontre em dificuldades financeiras
possa pedir auxílio econômico ao outro, desde que isso não importe em prejuízo da própria subsistência
daquele obrigado a esse auxílio econômico, e assim por diante.
É preciso, ainda, que se tome cuidado para que nenhuma das disposições do mencionado contrato de
união estável venha a contrariar disposição expressa de lei ou mesmo o ordenamento jurídico em geral.
Tome-se como exemplo o caso da sucessão causa mortis de um dos parceiros – o ordenamento jurídico
prevê que o de cujus somente pode dispor de 50% (cinquenta por cento) de seu patrimônio a outrem (seja
ou não herdeiro deste), sendo o restante resguardado aos herdeiros necessários (legais). Assim, deve o
contrato de união estável em questão prever que somente a quota disponível do patrimônio do
companheiro falecido será transferida ao companheiro sobrevivente, sob pena de nulidade da cláusula
contratual, assim como ocorreria se um testamento viesse a prever a transferência de parcela superior à
disponível do patrimônio a outrem.

2.1 Justificativa do nomen juris. Cláusulas


As considerações aqui formuladas são inspiradas no Curso de Direito Homoafetivo realizado na
sede da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), especificamente no dia 27.11.2007, na
palestra ministrada por Christiano Cassetari4.
Quanto à forma contratual, a legislação não exige escritura pública ao contrato de união estável
homoafetiva justamente por não prever a hipótese, razão pela qual pode esse contrato ser feito por
escritura particular. Contudo, a escritura pública garante maior credibilidade ao conteúdo do contrato, em
razão da fé pública a ela inerente. Assim, recomenda-se elaborar o contrato de união estável
homoafetiva por escritura pública, tanto para mitigar eventuais alegações de vícios quanto para
comprovar o termo inicial (ao menos da relação contratual), de forma auxiliar na demonstração da
durabilidade e, ainda, do caráter público da união.
Justifica-se nomear dito contrato de convivência como contrato de união estável homoafetiva, pois,
considerando a ausência de legislação que regule a união homoafetiva, é interessante enquadrar a relação
entre os companheiros-contraentes no conceito jurídico de união estável, em especial agora que o
Supremo Tribunal Federal, em decisão com efeito vinculante e eficácia erga omnes, consolidou o
entendimento pela possibilidade jurídica de casais homoafetivos formarem uma família conjugal e,
portanto, uma união estável homoafetiva – de forma que fique claro que ambos tinham a plena intenção de
se relacionarem como uma entidade familiar pautada pelo regime jurídico da união estável5. O mesmo
motivo justifica o uso do termo companheiros (termo técnico-jurídico destinado a designar as relações
regidas pela união estável) em vez de “parceiros”, que tem um tom de caráter nitidamente obrigacional
(ou seja, relativo ao Direito das Obrigações).
Nos “considerandos” do contrato, vale a pena citar: (i) os arts. 2.o e 5.o da Lei Maria da Penha, que
indiretamente reconhece o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas ao dizer que a violência
doméstica será reprimida independentemente de orientação sexual (pois a violência, para ser doméstica,
precisa ser cometida em seio familiar); (ii) a jurisprudência que reconhece a possibilidade jurídica da
união estável homoafetiva, por analogia. Tais citações justificam-se para que fique claro que os
companheiros-contraentes se consideram uma entidade familiar regida pelas regras da união estável
constitucionalizada6 (principalmente, a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277).
A cláusula primeira deverá versar sobre o objeto contratual, donde deve mencionar que se trata de
um contrato que visa regular a união estável dos companheiros​-contraentes, aduzindo ainda que o regime
jurídico da união estável será aplicado analogicamente à referida relação contratual, tal qual ocorre nos
contratos firmados por casais heteroafetivos em união estável.
Sugere-se, ainda: como item primeiro dessa cláusula, que se aponte a data de início da relação;
como item segundo, apontar o cumprimento dos requisitos do art. 1.723 do CC/2002 à constituição de
uma união estável (caráter público, contínuo e duradouro, em comunhão plena de vida e interesses)7.
Nesse sentido, considerando que a união estável é um fato que independe de decisão judicial, que apenas
declara sua existência, deve-se fazer o contrato após transcorrido um lapso temporal de convivência
homoafetiva – como inexiste um prazo fixado legalmente, sugere-se que se aguarde, no mínimo, por seis
meses para que se demonstre, ao menos, uma intenção de continuidade e durabilidade da união.
A cláusula segunda deverá versar sobre as questões patrimoniais da relação. Assim, deverá ser
indicada a regra patrimonial vigente entre os companheiros​-contraentes, sem fazer menção a nenhum
“regime de bens”, por ser esta uma questão exclusiva do casamento civil8. Como inexiste regime de bens
na união estável, devem ser fixadas regras patrimoniais, que podem, inclusive, ser idênticas àqueles
constantes nos diversos regimes de bens, embora o contrato não deva fazer referência a estes (não deva
usar os nomes dos regimes de bens).
A cláusula terceira deverá versar sobre a administração dos bens9. Aqui não há como se fazer uma
sugestão abstrata, pois será o interesse específico dos contraentes​-companheiros que definirá as regras
aplicáveis. Segue um exemplo: “Cada outorgante terá livre e completa administração de seus bens,
inclusive no que tange à movimentação de seus negócios financeiros, pelos quais cada outorgante será
exclusivamente responsável”. De qualquer forma, as regras criadas podem ser excepcionadas,
novamente conforme o interesse específico dos companheiros​-contraentes.
A cláusula quarta deverá versar sobre os direitos conjuntos dos companheiros​-contraentes, ou seja,
os benefícios que ambos poderão usufruir reciprocamente, tais como: (i) plano de saúde; (ii) plano de
assistência odontológica; (iii) plano de previdência privada complementar; (iv) seguro de vida etc.10.
Muito embora tais direitos já estejam sendo reconhecidos judicialmente, dito reconhecimento demanda
longas batalhas judiciais, ao passo que não se está criando um contrato cujo objeto deva demandar
(necessariamente) apelos ao Judiciário, mas que visa tentar garantir a implementação de direitos
automaticamente, sem a necessidade de intervenção do Estado-juiz.
A cláusula quinta deverá versar sobre a curatela dos companheiros-contraentes, designando-se eles
reciprocamente como curadores um do outro, se necessário for, em caso de incapacidade temporária ou
permanente de um deles, de forma a gerir toda a vida cível deste após processo de interdição movido
para tal fim, afastando assim as pessoas descritas no art. 1.775 do CC/200211. Dessa forma, faz-se
necessária a elaboração de cláusula contratual (preferencialmente referendada por procuração) que
estabeleça dito direito assistencial de curatela, pelo qual o companheiro homoafetivo fique
expressamente nomeado como curador do outro, e, ainda, tomar as decisões relativas à vida civil do
outro.
A cláusula sexta deverá versar sobre eventual estado de doença ou incapacidade dos
companheiros-contraentes, designando-se eles reciprocamente como procuradores do outro, se
necessário for, para a hipótese de doença grave ou terminal de um deles, ou ainda estado de incapacidade
psíquica definitiva ou temporária, devidamente atestado(a) por profissional habilitado.
Infortúnios lamentavelmente acontecem, donde pode ocorrer que um dos companheiros-contraentes
venha a ficar internado com doença grave. Nesse sentido, embora a decisão do STF na ADPF 132 e na
ADI 4.277 tenha considerado a união homoafetiva como uma família conjugal com igualdade de direitos
à família conjugal heteroafetiva, donde hospitais não terão mais nenhuma justificativa jurídica para não
permitirem que o(a) companheiro(a) homoafetivo(a) do internado fique ao lado deste, já que o STF o(a)
reconheceu como familiar daquele(a), a designação expressa evita discussões jurídicas sobre o tema.
Dessa forma, faz-se necessária a elaboração de cláusula contratual (preferencialmente referendada por
procuração) pela qual o companheiro homoafetivo fique expressamente nomeado como procurador do
outro, inclusive para tomar as decisões relativas ao tratamento a ser aplicado ao enfermo, em preferência
aos ascendentes, irmãos e quaisquer outros parentes biológicos deste. Em parágrafo (único ou não)
deverá ser explicitado que as decisões previstas nesta cláusula também se aplicam para doação de
órgãos e tecidos após a morte encefálica devidamente atestada por junta médica que Cassetari entende
dever ser composta de, pelo menos, três profissionais capacitados, em laudos individuais12.
Ainda que dita cláusula venha a ser descabidamente impugnada judicialmente (o mesmo valendo
para a de curatela), ela, no mínimo, pesará sobre a decisão do juiz, na medida em que este verá que o
enfermo livremente escolheu seu companheiro homoafetivo para ser seu curador – em ato de pleno
exercício da autonomia privada concedida pelo ordenamento jurídico aos particulares, o que vem,
ainda, a demonstrar ao juiz que os contraentes-companheiros se consideram uma entidade familiar
estável.
Aponte-se, por oportuno: (i) que a interdição ou a morte do mandante extinguem o mandato (art. 682,
II, do CC/200213); (ii) o mandato está sujeito à forma prevista para o ato a ser praticado; (iii) o mandato
somente confere poderes para a administração, sendo a procuração o instrumento deste (art. 657 do
CC/200214). Poderes mais amplos (como para alienação, hipoteca, transação etc.) dependem de menção
expressa no instrumento (poderes especiais)15.
A cláusula sétima deverá versar sobre a indesejada, mas eventual, dissolução da união estável entre
os companheiros-contraentes. Aqui deverão ser estipuladas as condições que poderão ensejar o término
da união estável. Como exemplo, a seguinte cláusula poderia ser elaborada: “Este contrato será extinto
mediante manifestação de vontade: (i) de uma das partes, independentemente de justo motivo; (ii) de
ambas as partes. Parágrafo único. A manifestação de vontade pela extinção de todos os direitos e
deveres estabelecidos neste instrumento deve ser feita por escrito à outra parte, sem que exista, para
isto, prazo de carência”16.
Muito embora a união estável seja uma relação fática que, portanto, encerra-se automaticamente, sem
necessidade de formalidades – o que faria que o contrato perdesse seu objeto, o melhor é realizar a
resilição contratual para evitar a necessidade de decisão judicial a respeito. Note-se, ainda, que o
distrato deve ser feito pela mesma forma do contrato, nos termos do art. 472 do CC/200217.
Por fim, poderá ser elaborada cláusula oitava versando sobre foro de eleição, nos termos do art.
111 do CPC18-19.
As cláusulas aqui sugeridas não constituem, evidentemente, matéria exaustiva. Podem as partes
acrescentar outras, sempre em conformidade com o seu interesse.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277 e o consequente reconhecimento da união
homoafetiva como união estável ou, como preferem outros, como entidade familiar com igualdade de
direitos à união estável heteroafetiva, torna-se inegável que um casal homoafetivo pode firmar um
contrato de união estável, seja por constituir uma união estável, seja por formar uma entidade familiar
autônoma com igualdade de direitos à união estável, o que significa que podem firmar um contrato
garantidor dos mesmos direitos da união estável heteroafetiva. Não se trata mais de “solução paliativa”,
mas de direito subjetivo de casais homoafetivos terem sua união reconhecida como família conjugal
(entidade familiar), o que lhes concede o direito de firmarem um contrato de união estável – logo, por
um contrato típico de Direito das Famílias.
Quanto ao conteúdo do contrato, sugere-se: (i) nominá-lo como contrato de união estável, para
deixar claro o caráter familiar da união; (ii) mencionar os arts. 2.o e 5.o da Lei Maria da Penha e a
jurisprudência que reconhece a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por analogia, para
que fique claro que os companheiros-contraentes se consideram uma entidade familiar regida pelas
regras da união estável constitucionalizada; (iii) na cláusula primeira, apontar que o objeto contratual é
uma união estável, aplicando-se o regime jurídico desta analogicamente aos companheiros-contraentes;
(iv) na cláusula segunda, indicar as regras patrimoniais da relação; (v) na cláusula terceira, mencionar
a forma da administração de bens definida pelo casal; (vi) na cláusula quarta, apontar os direitos
conjuntos dos companheiros-contraentes; (vii) na cláusula quinta, mencionar as disposições relativas à
curatela; (viii) na cláusula sexta, apontar o caráter de procurador do companheiros-contraentes no caso
de um deles ficar enfermo, autorizando-o a tomar decisões médico-hospitalares pertinentes (tratamento,
doação de órgãos etc.); (ix) na cláusula sétima, tratar da forma da eventual dissolução da união e
resilição contratual; (x) na cláusula oitava, eleger o foro competente para dirimir eventuais
controvérsias relativas ao contrato de união estável em questão.
1 Contrato típico é aquele expressamente previsto e regulamentado pelo Código, ao passo que atípico é aquele que, embora
não previsto expressamente pela lei, é por ela permitido e cujas disposições estão em consonância com os princípios
gerais dos contratos previstos naquele diploma legal. Assim, por força do art. 424 do CC/02, tem-se que o rol de contratos
trazido pelo Código Civil não é taxativo, podendo as partes, respeitados os princípios gerais dos contratos (força vinculante
do pacto – pacta sunt servanda, relatividade das convenções, bilateralidade, probidade e boa-fé), criar contratos não
previstos naquele diploma legal.
2 “Art. 5.º Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes na constância da união estável e a título
oneroso são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e
em partes iguais, salvo estipulação em contrato escrito.”
3 “Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que
couber, o regime da comunhão parcial de bens.”
4 O autor publicou artigo em obra coletiva, da qual também participei, explicitando suas lições: CASSETARI, Cristiano.
Aspectos notariais e registrais do contrato de convivência homossexual. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, pp. 298-305. As cláusulas aqui sugeridas, portanto, baseiam-se no citado curso
e, consequentemente, no citado artigo. Para maiores desenvolvimentos, vide também AGAPITO, Priscila de Castro Teixeira
Pinto Lopes. Formalização notarial das relações homoafetivas. In: DIAS, Maria Berenice (org.). Diversidade Sexual e Direito
Homoafetivo. São Paulo: RT, 2011, pp. 306-320, cuja autora era uma das poucas tabeliãs que realizava contratos de união
estável homoafetiva no Brasil antes da decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277, o que merece aplausos pela postura
de vanguarda que garantia direitos dos casais homoafetivos que a procuraram para tanto mesmo antes de o STF ter
pacificado a possibilidade da lavratura de tal contrato por força da referida decisão.
5 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 300.
6 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 300.
7 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 302.
8 Cf. CASSETARI, op. cit., pp. 302-303.
9 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 303, para quem “É possível estipular que cada outorgante terá a livre e completa administração e
disposição de seus bens, inclusive no que tange à movimentação de seus negócios financeiros, pelos quais cada
outorgante será exclusivamente responsabilizado”.
10 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 303.
11 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 303, para quem “Em decorrência da ausência de previsão específica, entendemos ser possível
a existência de uma curatela contratual. Algo como a tutela testamentária prevista no art. 1.729 do CC, onde os pais deixam
testamento estabelecendo quem queriam ver como tutores de seus filhos em sua ausência, para que tais pessoas ganhem
a preferência na nomeação de acordo com o art. 1.732, I, do referido Código. No caso da curatela contratual não vemos
nenhum óbice para que as partes estabeleçam quem querem ver como seus curadores em caso de serem interditados,
para afastar as pessoas descritas no art. 1.775 do CC, que podem, inclusive, ser citadas no contrato”.
12 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 303.
13 “Art. 682. Cessa o mandato: (...) II – pela morte ou interdição do mandante.”
14 “Art. 653. Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu interesse, praticar atos ou
administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato.”
15 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 304, que afirma que “Se houver previsão de cláusula mandato, que outorgue poderes para
ambas as partes agirem em nome do outro, recomendamos que o contrato seja feito por escritura pública e não por
instrumento particular, já que de acordo com o art. 657 do CC a outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei para
o ato a ser praticado. O mesmo dispositivo determina que não se admite mandato verbal quando o ato deva ser celebrado
por escrito”.
16 Segundo CASSETARI, op. cit., p. 304: “Por se tratar de uma entidade familiar que encontra no afeto o seu alicerce, deve ser
inserido como cláusula que o referido instrumento será extinto mediante manifestação da vontade: a) de uma das partes
(resilição unilateral – art. 473 do CC); b) de ambas as partes (resilição bilateral ou distrato – art. 472 do CC)”.
17 “Art. 472. O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato.”
18 “Art. 111. A competência em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por convenção das partes; mas estas podem
modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de
direitos e obrigações.”
19 Cf. CASSETARI, op. cit., pp. 304-305.
Capítulo 15

O CONCUBINATO E A TEORIA DAS SOCIEDADES DE FATO.


HISTÓRICO. INADEQUAÇÃO À HIPÓTESE DE UNIÃO ESTÁVEL
HOMOAFETIVA. O CONCUBINATO HOMOAFETIVO

“O atraso do Direito em relação aos fatos nos quais encontra a matéria-prima que
espiritualiza não é, contudo, um acontecimento atual. Não é de hoje, com efeito, que vem se
acentuando. Parece que o ritmo acelerado com que se desenvolvem os fatos na base material
da sociedade tem concorrido, há um século, para aprofundar a dissonância entre os fenômenos
sociais. A ação e reação recíprocas desses fatos quase nunca se produzem ao compasso de um
metrônomo. O processo histórico não flui num só ritmo. Na sua trajetória, repontam
coexistências incongruentes, já que os fenômenos sociais rarissimamente marcham com a
mesma cadência.” – Orlando Gomes.1

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES. STF, ADPF 132 E ADI 4.277


Na primeira edição desta obra, afirmei que a teoria das sociedades de fato constituiria solução
paliativa para reger a união homoafetiva enquanto não fosse reconhecida como entidade familiar pela
jurisprudência em geral, pois a teoria das sociedades de fato seria melhor do que nada, donde não
sendo a união homoafetiva reconhecida como família/entidade familiar e consequentemente não sendo a
ela aplicados os ditames do Direito das Famílias, deveria ser aplicada dita teoria, que abaixo se passa a
expor, até que pelo menos se regulamentem as uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Contudo, com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, tal reconhecimento jurídico-familiar
da união homoafetiva foi efetivado, ante o caráter vinculante e erga omnes de referida decisão, que lhe
dá força de lei. Assim, descabe invocar a teoria das sociedades de fato para o caso de união pública,
contínua, duradoura e com o intuito de constituir família formada entre duas pessoas do mesmo sexo não
impedidas de se casar pela legislação, por tal configura entidade familiar (conjugal) reconhecida como
tal pela legislação no art. 1.723 do CC/2002, o qual o Supremo Tribunal Federal interpretou como não
proibitivo do reconhecimento da família conjugal homoafetiva na citada decisão, aplicando-lhe
interpretação conforme à Constituição para dele afastar a validade de qualquer interpretação em
sentido contrário.

2. CONCUBINATO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA, CONCEITO E ESPÉCIES. STF, ADPF 132 E


ADI 4.277
A teoria das sociedades de fato surgiu, no âmbito das relações amorosas, visando a proteger os
interesses da concubina, ou seja, a amante do homem casado ou não proibido de se casar. Assim, antes de
abordar o mérito dessa questão, cumpre tecer um breve histórico acerca do concubinato e de toda a árdua
evolução doutrinário​-jurisprudencial e legislativa do tema ao longo do século XX, até a consagração da
união estável na Constituição Federal de 1988.
Quem se atém a estudar a evolução histórica do Direito das Famílias percebe que este, como o
próprio Direito em geral, mas especialmente ele, sofreu influência muito grande das religiões judaico-
cristãs no que tange ao Ocidente. O estudo dos primórdios da legislação pátria revela muitas
semelhanças desta com a própria Lei Mosaica, exposta pelo Antigo Testamento Bíblico, como, por
exemplo, a supremacia do homem em relação à mulher na sociedade conjugal.2 Dessa forma, mesmo
quando Estado e Igreja já não se confundiam mais, muitas das disposições do Direito continuaram a ser
baseadas nos ensinamentos religiosos, em especial em matéria de família, provavelmente por manutenção
acrítica de tais preceitos, arraigados que estavam no seio social.
Assim, o legislador pátrio passou a entender, inicialmente, que o casamento, dogma da Igreja
Católica Apostólica Romana, seria a única forma de constituição da família “legítima”, sendo que toda
união de pessoas fora dos ditames impostos pela lei como imprescindíveis à constituição do matrimônio
era considerada como família “ilegítima”, ou seja, não merecedora de proteção por parte do ordenamento
jurídico. Disso resultou que qualquer união entre duas pessoas que não fosse ratificada pelo casamento
civil era tachada de concubinária. A união concubinária, justamente por ser rechaçada pelo ordenamento
jurídico, nunca foi protegida pelas normas do Direito das Famílias, que somente se aplica ao que se
considera como família “legítima”, que pode ser definida como aquela protegida pelo Direito. Sob a
égide do Código Civil de 1916, a “família legítima” era formada unicamente pelo casamento civil, o que
ocorreu até a promulgação da Constituição Federal de 1988, que tirou esse privilégio da união
matrimonializada.
Dessa forma, a jurisprudência passou a se desdobrar para evitar que a mulher​-concubina ficasse a
ver navios quando do término da relação, situação em que inexoravelmente ficava ela sem patrimônio
algum, visto que era ela o elo fraco da relação, uma vez que, na sociedade extremamente machista da
época, era-lhe negada a possibilidade de aventurar-se no mercado de trabalho e de se sustentar de
maneira digna e autônoma sem ser malvista pela sociedade. Desse esforço jurisprudencial surgiu a teoria
das sociedades de fato, que foi uma analogia que se passou a fazer entre a “sociedade concubinária” e a
sociedade comercial irregular, teoria esta consagrada pela Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal3.
Dessa forma, essa analogia com a teoria das sociedades comerciais de fato possibilitou à concubina que,
uma vez comprovada judicialmente a sua efetiva contribuição para a construção do patrimônio de seu
companheiro (uma vez que os bens ficavam quase sempre em nome do homem), teria ela direito à
participação na divisão do patrimônio construído pelo casal, na exata proporção de sua contribuição. Ou
seja, desconsiderava-se completamente a relação afetiva do casal para tratá-los como sócios em uma
sociedade comercial não registrada na Junta Comercial, cujo término ocasionava verdadeira apuração
de haveres para saber como dividir de maneira justa o patrimônio oriundo dessa relação.
Contudo, restava um grande problema: como a concubina quase sempre ficava cuidando de sua casa
e de seus filhos com o concubino, não prestava ela, em regra, nenhum auxílio financeiro a este, que
construía o patrimônio somente com seu próprio esforço monetário. No casamento civil, esse problema
inexiste, uma vez que há uma presunção absoluta de que o outro cônjuge efetivamente contribuiu para a
construção patrimonial, ainda que de forma puramente moral, confortando seu cônjuge e prestando-lhe
auxílio afetivo, sem o qual se pressupõe ele não teria tido forças para construir seu patrimônio. Essa
presunção absoluta permite que o regime de bens escolhido pelo casal seja o fator determinante para a
divisão dos bens. Na união estável, salvo contrato escrito firmado pelo casal (que se assemelha assim ao
pacto antenupcial), dividem-se os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável. Já no
concubinato, visto ser completamente desconsiderada a relação amorosa do par, aquela presunção
inexiste, cabendo ao companheiro abandonado provar que contribuiu monetariamente para a construção
do patrimônio, o que nem sempre é possível4.
O concubinato era classificado basicamente de duas formas: puro e impuro, sendo que o impuro
abrangia o adulterino e o incestuoso. O concubinato impuro era aquele contraído por duas pessoas
proibidas pelo ordenamento jurídico de ratificar sua união pelo matrimônio, ao passo que o concubinato
puro era aquele contraído por duas pessoas não proibidas de se casar, mas que, por motivos diversos,
optavam por não contrair o casamento civil. Apesar da relação oriunda do concubinato puro ter sido
rechaçada pelo ordenamento jurídico e pela sociedade em geral por preconceito, essas relações sempre
existiram e se proliferaram com o passar dos anos, especialmente no século XX, pois, com a entrada da
mulher no mercado de trabalho, a base dos relacionamentos passou a ser mais o afeto do que a mera
formalidade do casamento civil.
Assim, como o Direito não pode se esquivar ao fato social, e especialmente considerando toda a
árdua evolução doutrinário-jurisprudencial já exposta, consagrou​-se o concubinato puro no que
conhecemos hoje por união estável, por meio do art. 226, § 3.º, da CF/1988 – ou seja, a união fática entre
duas pessoas que não mantenham entre si a sociedade conjugal passou a ter efetiva proteção do Estado,
ainda que este estimule e queira a conversão desta união em casamento civil, intenção esta que se
depreende do texto do citado dispositivo legal. Já o concubinato impuro continuou rechaçado pelo
ordenamento jurídico pátrio, razão pela qual as relações amorosas entre duas pessoas proibidas de
contrair matrimônio continuaram a ser tachadas de uniões concubinárias e sujeitas aos ditames da exposta
teoria das sociedades de fato. A questão do concubinato, puro ou impuro, foi simplesmente ignorada
pelo CC/1916, sendo que o diploma civilista de 2002 passou a contemplar ambas as hipóteses: a união
estável (antigo concubinato puro, inicialmente protegido pelo art. 226, § 3.º, da CF/1988) nos arts. 1.723
a 1.726, e o concubinato impuro em seu art. 1.727.
Sobre o descabimento da aplicação da teoria das sociedades de fato a uniões homoafetivas que não
se enquadrem nas hipóteses de impedimentos matrimoniais, vale a citação do voto do Ministro Marco
Aurélio5 no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277: “Relegar as uniões homoafetivas à disciplina da
sociedade de fato é não reconhecer essa modificação paradigmática no Direito Civil levada a cabo pela
Constituição da República. A categoria da sociedade de fato reflete a realização de um empreendimento
conjunto, mas de nota patrimonial, e não afetiva ou emocional. Sociedade de fato é sociedade irregular,
regida pelo artigo 987 e seguintes do Código Civil, de vocação empresarial. Sobre o tema, Carvalho de
Mendonça afirmava que as sociedades de fato são aquelas afetadas por vícios que as inquinam de
nulidade, e são fulminadas por isso com o decreto de morte (Tratado de direito comercial brasileiro,
2001, p. 152 e 153). Para Rubens Requião, ‘convém esclarecer que essas entidades – sociedades de fato
e sociedades irregulares – não perdem a sua condição de sociedades empresariais’ (Curso de direito
comercial, 2010, p. 444). Tanto assim que as dissoluções de sociedades de fato são geralmente
submetidas à competência dos juízos cíveis, e não dos juízos de família. Nada mais descompassado com
a essência da união homoafetiva, a revelar o propósito de compartilhamento de vida, e não de
obtenção de lucro ou de qualquer outra atividade negocial. A homoafetividade é um fenômeno que se
encontra fortemente visível na sociedade. Como salientado pelo requerente, inexiste consenso quanto à
causa da atração pelo mesmo sexo, se genética ou se social, mas não se trata de mera escolha. A
afetividade direcionada a outrem de gênero igual compõe a individualidade da pessoa, de modo que se
torna impossível, sem destruir o ser, exigir o contrário. Insisto: se duas pessoas de igual sexo se unem
para a vida afetiva comum, o ato não pode ser lançado a categoria jurídica imprópria. A tutela da
situação patrimonial é insuficiente. Impõe​-se a proteção jurídica integral, qual seja, o reconhecimento
do regime familiar. Caso contrário, conforme alerta Daniel Sarmento (Casamento e União Estável entre
Pessoas do Mesmo Sexo: Perspectivas Constitucionais. Igualdade, Diferenças e Direitos Humanos,
2008, p. 644), estar-se-á a transmitir a mensagem de que o afeto entre elas é reprovável e não merece o
respeito da sociedade, tampouco a tutela do Estado, o que viola a dignidade humana dessas pessoas, que
apenas buscam o amor, a felicidade, a realização. Se as decisões judiciais que permitiram o
reconhecimento das sociedades de fato entre pessoas do mesmo sexo representaram inegável avanço
quando foram proferidas, atualmente elas apenas reproduzem o preconceito e trazem à baila o
desprezo à dignidade da pessoa humana. Igualmente, os primeiros pronunciamentos que reconheceram
aos heterossexuais não casados direitos sucessórios com fundamento na sociedade de fato foram
celebrados como inovações jurídicas. Nos dias de hoje, esses atos judiciais estariam em franca
incompatibilidade com a Constituição e mesmo com a moralidade comum”.
No mesmo sentido, o voto do Ministro Peluso6: “O Ministro Marco Aurélio fez largo apanhado da
necessidade de aplicação, às relações afetivas, das normas próprias do campo do Direito de Família.
Não por questão de vaidade, mas por registro histórico, eu fui um dos primeiros – há mais de vinte anos,
numa conferência pronunciada na Associação dos Advogados de São Paulo e, depois, estampada na
Revista dos Advogados, da mesma Associação – a sustentar, contra a então jurisprudência dominante no
Tribunal de Justiça de São Paulo, àquela altura em que não havia normas diretas de regulamentação da
união estável, que não podiam ser aplicadas as soluções que a jurisprudência, para atender as exigências
próprias do fato social, vinham invocando, sobretudo de normas de Direito não familiar, como sociedade
de fato, sociedades de ordem econômica etc. E fui o primeiro a aplicar, no Tribunal de Justiça de São
Paulo, em caso de união estável, as normas de Direito de Família. Por quê? Porque realmente essas
uniões, ou essas associações, ou essas relações marcadas sobretudo por afetividade, evidentemente não
podem ser submetidas às normas que regulam sociedades de ordem comercial ou de ordem econômica.
De modo que, na solução da questão posta, a meu ver e de todos os Ministros da Corte, só podem ser
aplicadas as normas correspondentes àquelas que, no Direito de Família, se aplicam à união estável entre
o homem e a mulher”.
Nesse sentido, vale transcrever a citada manifestação do então Desembargador Cezar Peluso7 acerca
da união estável (citação que constou, inclusive, do amicus curiae que apresentei ao Tribunal em nome
da AIESSP – Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo):

União estável. A jurisprudência de hoje, sensível à irredutibilidade jurídica dessa misteriosa


experiência humana, que é o encontro amoroso do homem com a mulher, o qual jamais poderia ter
sido posto nos limites contáveis e mesquinhos da tipologia das sociedades comerciais, já assentou
que, dentro do alcance da STF 380, cabe a hipótese da contribuição indireta, com igual importância
na mancomunhão. E não precisa seja esta entendida no significado restrito de repercussão do
trabalho doméstico, da direção educacional dos filhos, ou de serviços materiais doutra natureza.
Ao contrário. Porque, de regra, um homem e uma mulher [leia-se, duas pessoas] não se atraem,
entregam nem vinculam, sob firme ou fugaz expectativa de estabilidade e perseverança,
compelidos por cálculos imediatos de proveitos econômicos, senão para satisfazer anseios de
realização pessoal, ditados por imperativos inconscientes e profundos, a cooperação decisiva é a
pessoa do outro. E é ela, enquanto presença, estímulo, amparo e refúgio, que, na aventura da
parceria, possibilita, ou facilita, todas as outras aquisições, inclusive de ordem patrimonial. O
jurídico, porque humano, consiste, pois, em que embora não sendo mensurável como grandeza
física, não deixe de se traduzir em valor econômico, quando se cuide de partilhar os frutos de
uma comunhão de vidas, não os resultados financeiros de uma sociedade qualquer (Des. Cezar
Peluso – BolAASP 1765/396)

Na primeira edição desta obra8, afirmei que, muito embora o autor tenha se referido exclusivamente
à relação entre um homem e uma mulher, suas ponderações aplicam-se inteiramente à questão das uniões
homoafetivas, o que, felizmente, impeliu seu autor a isto reconhecer, por imperativo de coerência. Afinal,
a substituição das expressões “o homem e a mulher” por “duas pessoas” deixa claro que, por mais que o
Ministro Cezar Peluso não tenha se referido à união homoafetiva, suas palavras se enquadram
perfeitamente no caso destas. Até mesmo porque duas pessoas do mesmo sexo não se unem em uma união
homoafetiva visando o lucro ou a mera construção patrimonial. Duas pessoas do mesmo sexo mantêm
uma relação amorosa porque visam obter, dessa união, a sua realização pessoal por meio do amor, da
convivência cotidiana, pretendendo dividir alegrias nos momentos bons da vida, assim como amparo e
refúgio nas adversidades pelas quais todos passamos em dados momentos. Assim, a união homoafetiva
também não poderia nunca ter sido posta nos limites contáveis e mesquinhos da tipologia das sociedades
comerciais, na medida em que duas pessoas do mesmo sexo não se atraem, entregam ou vinculam, sob
firme ou fugaz expectativa de estabilidade e perseverança compelidas por cálculos imediatos de
proveitos econômicos, senão para satisfazer anseios de realização pessoal, ditados por imperativos
inconscientes e profundos de cooperação decisiva, estímulo, amparo e refúgio um para com o outro. Da
mesma forma que imperativos inconscientes de heterossexuais os fazem unir-se amorosamente com uma
pessoa de outro sexo, são os imperativos inconscientes dos homossexuais que lhes fazem amar uma
pessoa do mesmo sexo. Afinal, seria muito mais fácil se o homossexual conseguisse “se transformar” em
heterossexual e manter uma relação amorosa com alguém do sexo oposto – não sofreria discriminação
nenhuma em razão de sua relação e mesmo de sua orientação sexual, sendo que faria essa “mudança” não
por considerar sua homossexualidade “errada” (como não é), mas simplesmente para fugir da
discriminação homofóbica ainda imposta pela sociedade em geral. Contudo, é impossível “trocar” de
orientação sexual. Uma pessoa simplesmente se descobre homo, hétero ou bissexual, não havendo
“opção” nesse sentido. A pessoa simplesmente sabe que ama pessoas do mesmo sexo (homossexuais),
pessoas de sexos diversos (heterossexuais) ou então pessoas de ambos os sexos (bissexuais), o que
independe de sua vontade. Assim, percebe-se que a orientação sexual é uma característica inerente da
pessoa, que se une amorosamente a outra para construir uma vida em comum, buscando a felicidade na
relação a dois. Nada mais. Por outro lado, se o amor da relação eventualmente acaba, aí sim existe um
interesse na justa divisão do patrimônio construído pelo esforço comum, exatamente da mesma forma que
ocorre na dissolução de uniões heteroafetivas. Nestas, o homem e a mulher que se separam querem, cada
um, ficar com a parte do patrimônio comum que o Direito de Família lhes garante, a saber: a divisão dos
bens adquiridos na constância da união amorosa, no caso da união estável, ou a divisão dos bens
conforme o regime de bens livremente escolhido pelo casal, no caso do casamento civil. Ou seja, quando
se forma uma união amorosa, os pares não estão nem um pouco preocupados com o patrimônio que
eventualmente irão construir, ou ainda com o patrimônio um do outro, pois visam apenas uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura com o(a) companheiro(a). Contudo,
quando o amor de dita união termina, os pares querem aquilo que é de seu direito, nos termos da
legislação do Direito de Família. Isso ocorre tanto com casais heteroafetivos como com casais
homoafetivos, sem nenhuma diferença nesse sentido. Nesse sentido, é oportuna a colocação do
Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos9 a respeito das uniões homoafetivas no sentido de que “a
affectio que leva estas duas pessoas a viverem juntas, a partilharem os momentos bons e maus da vida é
muito mais a affectio conjugalis do que a affectio societatis. Elas não estão ali para obter resultados
econômicos da relação, mas, sim, para trocarem afeto, e esta troca de afeto, com o partilhamento de uma
vida em comum, é que forma uma entidade familiar. Pode-se dizer que não é união estável, mas é uma
entidade familiar à qual devem ser atribuídos iguais direitos”. Dessa forma, a desconsideração do amor
familiar existente na união homoafetiva é uma postura absolutamente equivocada, tendo em vista que ele
não é desconsiderado quando se analisa a dissolução de uma união estável heteroafetiva. Afinal, ambas
as relações baseiam-se exatamente na mesma premissa, qual seja a de formação de uma família, o que
independe da futura existência de filhos, razão pela qual merecem exatamente o mesmo tratamento
jurídico, sob pena de inconstitucionalidade por afronta ao princípio da igualdade, dada a inexistência de
motivação lógico-racional que justifique a discriminação oriunda da negação do Direito de Família aos
casais homoafetivos.
Logo, percebe-se o flagrante descabimento da consideração da união amorosa entre duas pessoas do
mesmo sexo marcada pela publicidade, continuidade, durabilidade e intuito de constituir família não
inclusa nas taxativas hipóteses de impedimentos matrimoniais que respeitem a isonomia e a razoabilidade
como mera “sociedade de fato” – além de inconstitucionalidade por afronta ao princípio da pluralidade
de entidades familiares, implícito ao caput do art. 226 da CF/88.

2.1 Concubinato homoafetivo?


Dispõe o art. 1.727 do CC/2002 que: “As relações não eventuais entre o homem e a mulher,
impedidos de se casar, constituem concubinato”. Ante esta redação, tem-se a mesma problemática já
exposta no que tange ao casamento civil e à união estável, qual seja: ou se entende que é cabível uma
interpretação extensiva ou uma analogia desse dispositivo, para reconhecer o concubinato formado por
pessoas do mesmo sexo, ou então se parte do pressuposto de que foi criada uma “proibição implícita” a
dita relação, ante a expressão “o homem e a mulher”.
Com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, de efeito vinculante e eficácia erga omnes,
que lhe dá força de lei, não se pode mais negar a aplicação do Direito das Famílias às uniões
homoafetivas não matrimonializadas que atendam os requisitos de publicidade, continuidade,
durabilidade, intuito de constituir família e ausência de impedimentos matrimoniais, impostos pelo art.
1.723 do CC/2002 para caracterização de uma união estável – logo, só se pode falar em aplicação da
teoria das sociedades de fato para uniões homoafetivas que não atendam a tais requisitos
caracterizadores da união estável. Somente nesta hipótese pode-se falar em concubinato homoafetivo
ensejador da aplicação de tal teoria (das sociedades de fato), ante ser inegável o cabimento de
interpretação extensiva ou analogia para reconhecer que o regime jurídico do art. 1.727 do CC/2002 é
aplicável à união homoafetiva que não atenda os referidos requisitos legais caracterizadores da união
estável/entidade familiar conjugal, ante termos aqui situações idênticas ou, no mínimo, análogas, na
medida em que, em ambos os casos, temos uma relação amorosa entre duas pessoas que não se
enquadram nos referidos requisitos legais caracterizadores da união estável/entidade familiar conjugal.
Seria inócuo entender que o referido dispositivo legal não seria aplicável às uniões homoafetivas,
uma vez que o concubinato é considerado historicamente uma figura jurídica análoga às sociedades
comerciais de fato, donde esse regime jurídico visa possibilitar a justa divisão do patrimônio amealhado
pelo casal em questão, sem que se reconheça que constitui uma família “legítima”10 (ou seja, ignorando o
amor familiar existente na relação), o que pode ser aplicado a todas as pessoas indiscriminadamente,
sejam elas hétero ou homossexuais.
Ademais, não há fundamento lógico-racional que justifique a proibição do uso da teoria das
sociedades de fato para que se divida o patrimônio oriundo de uniões homoafetivas que não atendam aos
requisitos caracterizadores da união estável (as que os atenderem terão direito ao regime jurídico da
união estável, ante a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277). Afinal, não pode o legislador
pretender que um fato social não receba nenhuma proteção do Direito mediante fundamentações
arbitrárias, mesmo porque, no caso aqui exposto, a não divisão do patrimônio na exata proporção da
contribuição de cada um dos consortes implica o enriquecimento ilícito de um diante do outro, o que
configuraria ato ilícito, ante a ilegalidade do enriquecimento ilícito! Seria flagrantemente arbitrária tal
postura permissiva do enriquecimento ilícito apenas por se tratar de um casal homoafetivo, donde
inconstitucional por força do princípio da isonomia, que veda diferenciações jurídicas arbitrárias.
Afinal, conforme exposto, a homossexualidade não constitui doença, desvio psicológico, perversão nem
nada do gênero, sendo tão somente uma das livres manifestações da sexualidade humana, ao lado da
heterossexualidade, do que se depreende que não há motivo válido ante a isonomia que justifique a
discriminação aqui referida, qual seja a de negar qualquer efeito jurídico à relação concubinária
homoafetiva, enquanto se garantem efeitos jurídicos a toda e qualquer união concubinária heteroafetiva.
E, não havendo tal motivação válida ante o preceito igualitário, é inconstitucional dita discriminação em
face do princípio da isonomia.
Ademais, com relação ao princípio da dignidade da pessoa humana, também é ele aplicável para
garantir igualdade de tratamento às uniões entre pessoas do mesmo sexo que não atendam aos requisitos
legais caracterizadores da união estável (publicidade, continuidade, durabilidade, intuito de constituir
família e ausência de impedimentos matrimoniais), relativamente ao concubinato heteroafetivo (que é
equivalente ao concubinato homoafetivo por se caracterizar nessa mesma circunstância fática de não
atendimento dos requisitos legais impostos pela legislação para o reconhecimento da união não
matrimonializada como entidade familiar/união estável), uma vez que a isonomia é a única forma válida
de se relativizar a dignidade humana sem aderir a arbitrariedades de quem elege a discriminação, e não
há motivação válida ante o preceito isonômico que justifique a relativização da dignidade de
homossexuais em relação a heterossexuais unicamente em razão de sua homossexualidade, na medida em
que tal menosprezo jurídico à união concubinária homoafetiva relativamente à união concubinária
heteroafetiva não é respaldado por uma motivação lógico-racional que lhe sustente.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, foi efetivado o reconhecimento jurídico-
familiar da união homoafetiva, ante o caráter vinculante e erga omnes da referida decisão, que lhe dá
força de lei. Assim, descabe invocar a teoria das sociedades de fato para o caso de união pública,
contínua, duradoura e com o intuito de constituir família formada entre duas pessoas do mesmo sexo não
impedidas de se casar pela legislação, por isso configura entidade familiar (conjugal) reconhecida como
tal pelo art. 1.723 do CC/2002, o qual o Supremo Tribunal Federal interpretou como não proibitivo do
reconhecimento da família conjugal homoafetiva na citada decisão, aplicando interpretação conforme à
Constituição ao mesmo para dele afastar a validade de qualquer interpretação em sentido contrário.
Logo, só se pode falar em aplicação da teoria das sociedades de fato para uniões homoafetivas que não
atendam a tais requisitos caracterizadores da união estável. Somente nesta hipótese pode-se falar em
concubinato homoafetivo ensejador da aplicação de tal teoria (das sociedades de fato), ante ser inegável
o cabimento de interpretação extensiva ou analogia para reconhecer que o regime jurídico do art. 1.727
do CC/2002 é aplicável à união homoafetiva que não atenda os referidos requisitos legais
caracterizadores da união estável/entidade familiar conjugal, ante termos aqui situações idênticas ou, no
mínimo, análogas, na medida em que, em ambos os casos, temos uma relação amorosa entre duas pessoas
que não se enquadram nos referidos requisitos legais caracterizadores da união estável/entidade familiar
conjugal.
Nesse caso, há que se garantir à união concubinária homoafetiva a mesma proteção jurídica
conferida ao concubinato heteroafetivo, aplicando-se a teoria das sociedades de fato para se resolver a
questão da dissolução de tais uniões homoafetivas, uma vez que o contrário implicaria o enriquecimento
ilícito de um dos ex-parceiros em relação ao outro. Afinal, não há motivação lógico-racional que
justifique a discriminação negativa das uniões concubinárias homoafetivas em relação às uniões
concubinárias heteroafetivas, sendo arbitrário e, portanto, inconstitucional posicionamento em sentido
contrário por afronta aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, que vedam
arbitrariedades no campo das diferenciações jurídicas, o que ocorre com o menosprezo arbitrário de uma
situação relativamente a outra. Disso resulta que, comprovada em juízo a efetiva contribuição do ex-
parceiro à construção do patrimônio existente no momento do término da união, tem ele o direito de
receber a exata porcentagem de sua contribuição, da mesma forma que ocorre na dissolução judicial de
uma sociedade comercial de fato e, igualmente, no término do concubinato heteroafetivo.

1 GOMES, Orlando (“A revisão do direito civil”, 1955, p. 18) apud GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e
Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005,
p. 42.
2 Recomenda-se a leitura da obra de Rui Ribeiro Magalhães (Direito de Família no Novo Código Civil Brasileiro, 2.ª Edição,
São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003), na qual o autor aponta para toda a evolução histórica do Direito das Famílias
com o passar dos séculos. Que fique registrado, contudo, que por motivos óbvios discordo do mesmo quando aponta,
como a doutrina em geral, que o casamento civil e a união estável só poderiam ser contraídos por pessoas de sexos
diversos mesmo nos dias atuais, ante todo o exposto ao longo deste trabalho.
3 “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua dissolução judicial, com a partilha do
patrimônio adquirido pelo esforço comum.”
4 Cumpre ressaltar que, nesse caso (de ausência de provas da efetiva contribuição da concubina para a construção do
patrimônio do concubino), aplicava-se analogia com o Direito do Trabalho, pagando-se à concubina uma indenização pelos
“serviços domésticos por ela prestados” ao homem.
5 Cf. voto do Ministro Marco Aurélio, pp. 10-11. Grifos nossos.
6 Cf. voto do Ministro Peluso, pp. 2-3.
7 PELUSO apud JÚNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil Comentado e Legislação Extravagante, 3ª
Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 801 – sem grifos e destaques nossos no original.
8 Cf. Capítulo 11, item “11. Descabimento da Desconsideração do Amor existente na relação”.
9 In TJ/RS, Apelação Cível n.o 70013801592, 7a Câmara Cível, Relator Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, julgada em
05/04/2006. Ainda que não se concorde aqui com o não enquadramento da união homoafetiva no conceito de união estável
(posição esposada no julgado citado), o resultado prático é o mesmo: a concessão dos mesmos direitos aos casais
homoafetivos do que aqueles concedidos às uniões estáveis heteroafetivas.
10 Apesar de essa terminologia (família “legítima” e “ilegítima”) não mais ser utilizada por nossa legislação, esse foi
claramente o intuito deste dispositivo legal, ou seja, vedar o reconhecimento do Direito das Famílias às uniões
concubinárias.
Capítulo 16

DA ADOÇÃO POR HOMOSSEXUAIS EM CONJUNTO OU


ISOLADAMENTE

“Quem trabalhou ou trabalha na Vara de Família ou em Infância e Juventude sabe muito bem
que a heterossexualidade dos pais não é garantia de quase nada.” – Adauto Suannes1
(Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo)

1. O DIREITO FUNDAMENTAL À PARENTALIDADE


Antes de ingressar no mérito propriamente dito da discussão atinente à adoção por homossexuais,
cumpre inicialmente tecer algumas colocações sobre o direito fundamental à parentalidade.
Como é notório, a sociedade humana em geral considera a vida a dois como a única forma de atingir
a felicidade plena. Tanto isso é verdade que a cultura humana foi construída ao longo dos milênios no
sentido de estimular a vida amorosa a dois que tenha, ainda, descendentes criados pelo par, formando-se
daí o modelo familiar culturalmente estimulado. Certa ou errada, essa ideia permeia o inconsciente
coletivo das pessoas em geral.
Ademais, mudou-se o paradigma da família contemporânea, de uma que visava à filiação
preponderantemente, para a criação de mais mão de obra e de transmissão do patrimônio do homem para
sua prole “de sangue”, para uma que tem no amor a sua essência também com relação ao tratamento
dispensado aos filhos do casal2. Assim, verifica-se a construção cultural de um arquétipo que coloca
como situação ideal de vivência humana a vida amorosa a dois que seja complementada pela existência
de filhos, sejam eles biológicos ou adotivos. Isso criou, com o passar dos séculos, uma verdadeira
consciência coletiva no sentido da indispensabilidade desse modelo familiar para que se alcance a
verdadeira felicidade, no que se tornou uma ideia arraigada no pensamento das pessoas que, consciente
ou inconscientemente, buscam obter esse modelo para si no intuito de serem felizes.
A força dessa consciência coletiva é evidente: cotidianamente somos “bombardeados” pela mídia
(televisiva em especial) – o que, no Brasil, ocorre por meio das telenovelas consagradas em nosso
horário nobre –, para que alcancemos esse modelo. Em todas, sem exceção, temos a história de duas
pessoas que se apaixonam e, após superarem uma série de barreiras da trama, terminam juntas e felizes.
Ou seja: desde a infância somos estimulados pela sociedade a, no futuro, buscarmos nossa alma gêmea,
casarmos e termos filhos, biológicos ou adotivos. Isso faz que as pessoas em geral cresçam com essa
ideia arraigada em suas mentes no sentido de que só serão felizes se encontrarem seu par amoroso ideal
e se tiverem filhos, biológicos ou adotivos.
Esse pensamento já faz parte inerente da consciência das pessoas adultas, que têm a absoluta certeza
de que só serão felizes se conseguirem se encaixar nesse modelo (ao menos de grande parte delas).
Assim, considerando que essas pessoas só atingirão a felicidade por meio do exercício da
parentalidade, então esta se configura como um direito humano fundamental decorrente do princípio
da dignidade da pessoa humana. Ressalte-se, ainda, que esse direito fundamental é um direito de
personalidade de todas as pessoas (donde, obviamente, também das pessoas homossexuais), que, como
dito, só serão plenamente felizes se puderem ter filhos ou adotar uma criança ou um adolescente. Afinal,
se determinada pessoa só puder atingir a felicidade pelo exercício da parentalidade, então esta é uma
faculdade que lhe deve ser garantida como sucedâneo da dignidade humana constitucionalmente
consagrada3, que garante a todos o direito à felicidade.
Assim, negar o direito à parentalidade a determinado grupo de pessoas4 é uma verdadeira agressão
psicológica a estas, pois essa negação impossibilita que elas alcancem a felicidade plena, que
inequivocamente afronta os princípios da dignidade da pessoa humana (que garante o direito à
felicidade) e da igualdade (que proíbe discriminações arbitrárias como essa). Percebe-se, portanto, a
existência de um verdadeiro direito subjetivo de homossexuais adotarem menores quando preencherem
os requisitos legais para tanto5.

2. DO DIREITO DOS MENORES A SEREM ADOTADOS


Outro aspecto que deve ser considerado quando se tem em mente a adoção é o direito que toda
criança e todo adolescente têm de ser adotados quando não possuírem pais biológicos ou quando estes
não forem aptos a exercer essa função (como decorrência da perda do poder familiar, nas hipóteses
legalmente previstas), entendimento este decorrente do disposto no art. 227 da CF/19886 e,
especialmente, do art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)7.
Como se vê, é dever do Estado garantir à criança e ao adolescente uma criação condigna, que lhes
garanta o desenvolvimento de todas as suas aptidões, em um ambiente de amor, solidariedade, respeito,
confiança e todos os valores que configurem uma vida digna. É por isso que se diz que o ordenamento
jurídico-constitucional brasileiro concede o princípio da integral proteção de crianças e adolescentes,
justamente por visar salvaguardá-los(as) de todo e qualquer mal em sua criação. Ora, se é dever do
Estado garantir a integral proteção de crianças e adolescentes, para que tenham um desenvolvimento
completo, então é seu dever garantir a eles(as) que possam ser adotados(as) quando não dispuserem de
nenhum familiar consanguíneo vivo ou que não esteja apto a desenvolver tal função. Ou seja, não sendo
possível a manutenção da criança ou do adolescente em sua família consanguínea (que constitui a
preferência do legislador), é imperiosa a sua colocação em um lar substituto, onde receba o amor, o
respeito e a solidariedade indispensável à criação de uma pessoa humana8.
Nesse sentido, é de se notar que a típica família heterossexual não é a única forma possível de
família e, como a realidade social comprovou ao longo da História, muitas vezes a prole oriunda do ato
sexual de um homem com uma mulher não foi desejada/planejada, donde, também em muitos casos, essa
prole é abandonada pelos pais biológicos ou, ainda, estes se mostram inaptos a criar seus descendentes.
Esta última hipótese pode ser exemplificada por aquelas pessoas heterossexuais que abusam de seus
filhos, seja sexualmente, seja pelo uso deles como mão de obra em vez de lhes propiciar a devida
educação e a devida afetividade.
Nesses casos de ausência de família biológica ou de inaptidão desta para a criação da criança e/ou
do adolescente, a garantia da adoção é medida que se impõe para que se resguarde o melhor interesse do
menor em questão, visando garantir​-lhe um ambiente propício ao pleno desenvolvimento de suas
aptidões, onde receba amor, respeito e solidariedade e aprenda, inclusive, a importância desses valores.
Assim, mesmo que exista uma família biológica, se esta não se mostrar capaz de garantir o pleno
desenvolvimento do menor em questão, deverá ser este colocado aos cuidados de alguém que o possa,
visto que o elo materno-paterno-filial não é um dado, e sim um construído, na medida em que o amor
fraterno que se sente pelos familiares só existe caso haja uma efetiva contrapartida do outro familiar, em
especial na relação materno-paterno-filial, visto que o sentimento de filiação não é decorrente de um
determinismo biológico, emergindo, ao revés, de uma construção afetiva permanente, oriunda da
convivência, da responsabilidade dos pais e, principalmente, da responsabilidade destes para com seus
filhos9.
Assim, no que tange à escolha entre a colocação da criança e/ou do adolescente em um lar onde terá
todas as condições necessárias ao seu total desenvolvimento e a sua manutenção sob a atual tutela estatal,
é evidente que a primeira constitui o melhor interesse da criança e/ou do adolescente em questão. Afinal,
é notório que o atual aparelhamento estatal é extremamente precário no que tange à estrutura concedida a
menores abandonados por seus pais ou cujos pais tenham sido destituídos do poder familiar. A verdade é
que o Estado brasileiro atual não tem condições de garantir o total desenvolvimento de crianças e
adolescentes, a menos que possibilite a uma pessoa ou a um casal que o adote e lhe possibilite a criação
adequada10.
Dessa forma, ao aduzir que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder
Público assegurar com absoluta prioridade a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde (...) e à
convivência familiar e comunitária”, o art. 4.o do ECA garante um direito subjetivo de crianças e
adolescentes institucionalizados(as) serem adotados quando existam pessoas aptas a exercerem a
parentalidade11. Assim, quando um homossexual ou um casal homoafetivo se dispõe(m) a adotar uma
criança ou um adolescente, está(ão), na verdade, pleiteando a efetivação de dois direitos fundamentais,
quais sejam: o seu, de exercício da parentalidade para que possa(m) ser feliz(es), e o do menor em
questão, de ser criado de uma forma digna, que lhe garanta o total desenvolvimento de suas aptidões
em um ambiente de amor, respeito e solidariedade.
Contudo, o que os opositores da adoção por homossexuais solteiros ou por casais homoafetivos
alegam é que a homossexualidade dos pais poderia “prejudicar” o menor em questão, o que afrontaria o
princípio da integral proteção do menor. Mas as colocações nesse sentido são totalmente equivocadas,
pois partem de premissas falsas, como se demonstrará adiante.

3. A ADOÇÃO POR HOMOSSEXUAIS E A INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZOS AO MENOR POR


SER CRIADO EM UM LAR HOMOAFETIVO
A adoção por casais homoafetivos e por homossexuais solteiros é um assunto que ainda causa muita
polêmica, tendo em vista que os seus opositores sustentam, sem nenhuma prova, baseando-se em puro
subjetivismo, que a homossexualidade dos pais adotivos poria em risco o livre desenvolvimento da
sexualidade do menor, que seria “influenciado”, ainda que indiretamente, por seus pais adotivos a se
“tornar” homossexual12. Ou seja, o que se alega é que a criação de uma criança ou de um adolescente por
um casal homoafetivo traria “prejuízos” à sua formação, uma vez que, ante a “ausência” da figura paterna
ou materna (dependendo do tipo de casal – se masculino ou feminino), a criança teria “prejudicada” a sua
formação, donde se conclui que os defensores dessa tese entendem que tais menores teriam uma
“tendência” a se tornarem homossexuais diante da homossexualidade de seus pais. Contudo, essa tese
peca pela falta de uma série de elementos lógicos. Em primeiro lugar, fica evidente que seus defensores
continuam a atestar que a heterossexualidade seria a única expressão “sadia” da sexualidade humana, e
consequentemente que a homossexualidade seria uma doença, um desvio psicológico, uma perversão ou
algo do gênero. Afinal, o fato de tanto se preocuparem no fato de o menor vir a se tornar homossexual e
não heterossexual só vem a demonstrar que eles não aceitam a naturalidade da homossexualidade,
demonstrando todo o seu preconceito a respeito do tema. Mas, conforme amplamente demonstrado, tal
posicionamento é tecnicamente equivocado, uma vez que a Organização Mundial da Saúde, por meio de
sua Classificação Internacional de Doenças 10, em sua revisão de 1993 (CID 10/1993), consagrou a
homossexualidade como uma das livres manifestações da sexualidade humana, no que foi seguida em
nosso país pela Resolução 1/1999 do Conselho Federal de Psicologia e precedida pela Associação
Americana de Psiquiatria, que o declara desde a década de 1970. Assim, a primeira premissa de que
parte esse entendimento contrário à adoção por homossexuais cai por terra porque se baseia em dados
cientificamente equivocados e infundados.
Por outro lado, se realmente fosse indispensável à heterossexualidade de um indivíduo que ele fosse
criado por um casal heterossexual, então como explicar: (a) a existência de homossexuais filhos de
casais heteroafetivos? Como explicar, partindo-se daquela teoria, que crianças criadas por casais
heteroafetivos venham a se tornar homossexuais, já que foram criadas no ambiente considerado como o
“adequado”? Afinal, os homossexuais em geral foram criados por uma família heteroafetiva tradicional;
(b) a existência de filhos heterossexuais criados por famílias monoparentais? Se realmente fosse
indispensável ao desenvolvimento da heterossexualidade do menor que ele fosse criado por um homem e
uma mulher, como explicar a heterossexualidade do menor criado por apenas um indivíduo? Não estaria
aí faltando também uma das “condições” necessárias ao desenvolvimento do infante, qual seja a figura
paterna/materna ausente? Ora, se os defensores daquela pseudotese alegam que um casal homoafetivo
prejudicaria o menor pelo fato de não fornecer a figura do sexo oposto, então, por uma questão de lógica,
deveriam defender que esse suposto prejuízo também ocorreria na criação de alguém apenas por um
homem ou uma mulher, ainda que heterossexual; (c) a existência de filhos heterossexuais criados por
casais homoafetivos? Novamente, se realmente fosse indispensável ao desenvolvimento da
heterossexualidade do menor que ele fosse criado por um homem e uma mulher, como explicar a
heterossexualidade de um menor criado por um casal homoafetivo? Esse fato comprova cabalmente o
quão descabida é a teoria que aqui se refuta, na medida em que, por suas premissas, seria impossível a
existência de pessoas heterossexuais criadas, desde crianças, por casais homoafetivos.
Resta claro o quão frágil é aquela teoria quando tenta justificar a proibição da adoção por
homossexuais e por casais homoafetivos. Primeiro porque a homossexualidade é uma das livres
manifestações da sexualidade humana, sendo tão normal quanto a heterossexualidade, conforme o
posicionamento oficial da ciência médica mundial a respeito. Segundo porque inúmeros são os casos de
filhos homossexuais criados por casais heteroafetivos e de filhos tanto homossexuais quanto
heterossexuais criados por pessoas solteiras e mesmo por casais homoafetivos, donde se percebe
claramente que a sexualidade daquele(s) que cria(m) o menor em nada influencia no desenvolvimento
sexual deste. Tão frágil é aquela teoria que defendê-la é o mesmo que afirmar que uma criança criada por
um casal cujo pai é muito mais velho que a mãe teria uma tendência a se relacionar com alguém com
idade muito maior ou menor do que a sua, já que este é o modelo com o qual convive diariamente. Como
se vê, é uma alegação ilógica, incoerente, absurda e que não possui provas que a embasem, justificando-
se, unicamente, no preconceito ou, no mínimo, na ignorância ou subjetivismo daqueles que a esposam.
Assim, o que importa no que tange à decisão sobre o deferimento de um pedido de adoção é a
capacidade do(s) requerente(s) de propiciar à criança e/ou ao adolescente um ambiente familiar onde lhe
sejam concedidos e ensinados os valores do amor, do respeito e da solidariedade, conforme inúmeros
estudos já comprovaram13. Isso porque diversas pesquisas sociais já demonstraram que a orientação
sexual daqueles que criam o menor não tem a mínima influência no desenvolvimento da sexualidade
deste, donde não passam de ignorância ou de preconceito as colocações que usualmente se fazem em
sentido contrário, conforme descreve o magistrado Roger Raupp Rios14, cujas conclusões aqui se
adotam:

De fato, nas disputas judiciais envolvendo a temática de nosso estudo, tem-se alegado contra a
possibilidade de adoção por homossexuais argumentos de variada matiz, tais como (1) perigo
potencial de a criança sofrer violência sexual, (2) o risco de influenciar-se a orientação sexual da
criança pela do adotante (3) a incapacidade de homossexuais serem bons pais e (4) a possível
dificuldade de inserção social da criança em virtude da orientação sexual do adotante.
A respeito do perigo potencial que sofre a criança adotada em face da violência sexual por
parte do adotante, constatou-se, em pesquisa social, que 95% destes casos provêm de
heterossexuais, dado que põe por terra qualquer dúvida acerca da seriedade da colocação [a
pesquisa referida é a “Hidden Victims: the sexual abuse of children”, exposta no relatório da “ILGA
– International Lesbian and Gay Association”, relatório este denominado “World Legal Survey” –
que significa, em tradução livre: “Vítimas Escondidas: o abuso sexual de crianças”, da “Associação
Internacional de Lésbicas e Gays”, na “Pesquisa Jurídica Mundial”].
Com relação à influência da orientação sexual do adotante na definição da identidade
sexual da criança, estudos têm mostrado que filhos de pais homossexuais não têm probabilidade
maior de se tornarem homossexuais que os filhos de pais heterossexuais (...) [o mesmo relatório
aponta para diversos estudos, como “Children in Lesbian and Single-Parents Households:
Psychosexual and Psychiatric Appraisal”, que, em tradução livre, significa “Crianças em Lares
Lésbicos e de Pais Solteiros: Avaliação Psicossexual e Psiquiátrica”].
Acerca da incapacidade de homossexuais exercerem com habilidade e sucesso a paternidade,
existem também vários estudos comprovando o erro na suposição que gays e lésbicas seriam pais
inadequados ou seriam incapazes de bem desempenhar essas funções [como o de Harris e Turner,
“Gay and Lesbian Parents”, que significa “Pais Gays e Lésbicas”].
(…)
Por fim, a ideia de que a orientação sexual do adotante acarretaria dificuldades insuperáveis à
criança quando de sua inserção foi referida acima, quando se mencionaram os estudos de Kevin F.
McNeill, que demonstram inexistir diferenças significativas quanto à inserção na comunidade e a
orientação sexual dos pais [estudo “Lack of Differences Between Gay/Lesbian and Heterosexual
Parents: A Review of Literature”; “A Ausência de Diferenças entre Pais Gays/Lésbicas e
Heterossexuais: Uma Retrospectiva da Literatura]. (...) Ideias desse tipo já foram utilizadas, por
exemplo, para impedir casamentos entre pessoas de raças diferentes, para justificar segregação
em escolas de brancos e negros, para impedir a criação e a adoção de crianças de raça, cor ou
etnia diversa da dos adotantes. Práticas que, evidentemente, não se podem admitir numa sociedade
que não deseje o racismo e a exclusão social como princípios.

Nesse sentido, como bem dito pelo Ministro João Otávio de Noronha em seu voto concordante no
REsp 889.852/RS, que confirmou decisão gaúcha concessiva de adoção a um casal homoafetivo:
“precisamos parar com essa falsidade, quiçá hipocrisia, de que elas podem fazer mal aos meninos. As
famílias de pais héteros têm nos dado seguidos exemplos de maus-tratos às crianças. As periferias nos
mostram pais maltratando e estuprando as próprias filhas. Então, não se pode supor que o fato de as
adotantes serem duas mulheres ou que vivam uma relação homoafetiva possa causar algum dano. Dano
causa a manutenção do menor no abrigo ou dano causará ao interesse das crianças a não adoção. A
adoção melhora, e muito, as condições de assistência médica e social; isso está positivado no acórdão
recorrido”.

3.1 A omissão legal e os princípios da isonomia e da proteção integral do menor: adoção por
homossexuais e por casais homoafetivos. STJ, REsp 889.852/RS
Em posição simplista, os opositores da adoção por casais homoafetivos afirmam que a lei não a
permitiria, ante o teor literal do art. 1.618, parágrafo único, do CC/200215. Isso porque, como o referido
dispositivo traz a expressão “cônjuges ou companheiros”, tem-se entendido que somente as pessoas
civilmente casadas ou que constituam união estável poderiam adotar conjuntamente um menor e, como os
dispositivos legais que se referem ao casamento civil e à união estável utilizam a expressão “o homem e
a mulher”, os opositores da adoção por casais homoafetivos afirmam que esta estaria vedada pelo não
reconhecimento do casamento civil homoafetivo ou mesmo da união estável homoafetiva. Ou seja,
novamente alega-se que a omissão legal impediria a adoção por casais homoafetivos, visto que haveria
uma suposta “proibição implícita”.
Sem entrar no mérito da possibilidade jurídica do casamento civil e da união estável entre casais
homoafetivos, que são juridicamente possíveis no ordenamento jurídico brasileiro (remetendo-se o leitor,
para tanto, aos capítulos respectivos), o que já derruba essa tese, é de se notar (novamente) que não
existem “proibições implícitas”, ante o claro teor do art. 5.º, II, da CF/1988, que aduz que ninguém será
obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude de lei, donde, como a lei não proíbe a adoção
por casais homoafetivos, a omissão legal não pode ser vista como um óbice a ela. Deve-se verificar qual
é o valor protegido pela lei da adoção para verificar se, no caso concreto, pode ela ser deferida a casais
homoafetivos pela interpretação extensiva ou pela analogia. Afinal, ainda que se entenda que não seria
possível o casamento civil e a união estável por casais homoafetivos, é inegável que se encontram eles
em uma situação idêntica ou, no mínimo, análoga à dos casais heteroafetivos, por manterem uma relação
pautada no amor familiar, aquele caracterizado por uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, sendo a única diferença o sexo de um dos membros do casal.
Com efeito, a lei da adoção visa garantir que um menor que não possua parentes aptos a criá-lo seja
reintegrado à sociedade em uma família que possa lhe propiciar a educação adequada e o amor
necessário a todo ser humano em desenvolvimento. Nesse sentido, a família juridicamente protegida
contemporânea é formada pelo amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura (que não se enquadre entre os taxativos impedimentos matrimoniais do
art. 1.521 do Código Civil). Assim, é inequívoco que um casal homoafetivo pode criar um menor de
forma a lhe propiciar um ambiente de amor, respeito e solidariedade, tendo as mesmas condições de um
casal heteroafetivo para tanto, não havendo nenhuma diferença nesse sentido, pois a orientação sexual
dos pais é irrelevante ao desenvolvimento da orientação sexual e da personalidade do filho, sendo
absolutamente irracional a eventual negação ao direito de adoção por casais homoafetivos16.
Afinal, o princípio da isonomia veda discriminações arbitrárias, sem qualquer correlação lógico-
racional entre o critério de diferenciação erigido e a discriminação pretendida, além de estar vedada
também qualquer diferenciação sem correlação concreta com os valores constitucionais. No caso aqui
discutido, a discriminação pretendida pelos opositores da adoção por casais homoafetivos é a negação
desse direito humano fundamental à parentalidade, sendo o critério discriminador a orientação sexual do
adotante (porque, para eles, o casal heteroafetivo poderia adotar, ao passo que o casal homoafetivo não
poderia). Contudo, considerando que os opositores à adoção por casais homoafetivos não trazem
qualquer motivação válida ante a isonomia (leia-se: prova cientificamente comprovada) que justifique a
proibição da adoção por casais formados por pessoas do mesmo sexo, não há como justificá-la
juridicamente, pois a homossexualidade é tão normal quanto a heterossexualidade, conforme o
posicionamento da ciência médica mundial a respeito, além de não influir a homoafetividade do casal
que cria o menor no desenvolvimento da sexualidade deste, assim como a heteroafetividade de um casal
não influi na sexualidade do menor por eles criado17, sendo ainda absolutamente indiferente o menor vir
a se descobrir homo, hétero ou bissexual, configurando inequívoco preconceito aceitar como natural
apenas a heterossexualidade das pessoas.
Nesse mesmo sentido, abordando a inexistência de proibição legal à adoção por homossexuais no
Estatuto da Criança e do Adolescente (o que igualmente ocorre no atual Código Civil), afirma José Luiz
Mônaco da Silva18, Promotor de Justiça do Estado de São Paulo:

O Estatuto da Criança e do Adolescente não contém dispositivo legal tratando da adoção


pleiteada por homossexuais. Por causa dessa omissão, é possível que alguns estudiosos entendam
inviável a adoção por homossexuais. A nosso ver o homossexual tem o direito de adotar um menor,
salvo se não preencher os requisitos estabelecidos em lei. Aliás, ‘se um homossexual não pudesse
adotar uma criança ou um adolescente, o princípio da igualdade perante a lei estaria abertamente
violado. E mais: apesar da omissão legal, o ECA não veda, implícita ou explicitamente a adoção
por homossexuais, o que importa, no substancial, é a idoneidade moral do candidato e a sua
capacitação para assumir os encargos decorrentes de uma paternidade (ou maternidade) adotiva’.

Contudo, o que os opositores da adoção por casais homoafetivos alegam, nesse âmbito, é que o
princípio da integral proteção do menor prevalece sobre qualquer outro, no que supostamente restaria
proibida dita adoção19. Ou seja, alegam que a homossexualidade dos adotantes traria prejuízos ao menor,
pois não configuraria um ambiente familiar “propício” e não traria, igualmente, reais vantagens ao menor,
sendo justificada, portanto, dita vedação. Todavia, essa tese resta absolutamente equivocada, uma vez
que, novamente, parte do pressuposto de que a homossexualidade seria uma conduta reprovável, uma
doença, desvio psicológico, perversão ou algo do gênero, o que já foi rechaçado pela ciência médica
mundial.
Ademais, diversas pesquisas já comprovaram que a criação de um menor por um casal homoafetivo
não lhe causa nenhum prejuízo oriundo da orientação sexual do casal que o cria. Nesse sentido, cabe citar
o estudo The Lack of Differences Between Gay/Lesbian and Heterosexual Parents: A Review of the
Literature20, de Kevin F. McNeill, que faz um impressionante apanhado de pesquisas nesse sentido21,
donde fica evidente a completa ausência de prejuízos a crianças e adolescentes pelo simples fato de
serem criados(as) por casais homoafetivos.
Por oportuno, em uma posição que acaba por compilar o resultado dos estudos referidos, no sentido
de que inexiste qualquer embasamento fático-empírico-científico a apontar para algum prejuízo na
criação de crianças e adolescentes em lares formados por casais homoafetivos, a Associação Americana
de Psiquiatria afirmou, em 1995, que “não há um único estudo que tenha constatado que as crianças de
pais homossexuais e de lésbicas teriam qualquer prejuízo significativo em relação às crianças de pais
heterossexuais. Realmente, as evidências sugerem que o ambiente doméstico promovido por pais
homossexuais e lésbicas é tão favorável quanto os promovidos por pais heterossexuais para apoiar e
habilitar o crescimento ‘psicológico das crianças’. A maioria das crianças, em todos os estudos,
respondeu bem intelectualmente e ‘não demonstrou comportamentos egodestrutivos prejudiciais à
comunidade’. Os estudos também revelam isso nos termos que dizem respeito às relações com os pais,
autoestima, habilidade de liderança, ego-confiança, flexibilidade interpessoal, como também o bem-estar
emocional das crianças que vivem com pais homossexuais não demonstrava diferenças daqueles
encontrados com seus pais heterossexuais”22.
Ou seja, quando se sopesam os princípios em questão (isonomia, dignidade humana e proteção
integral da criança e do adolescente) com relação ao caso concreto (adoção por casais homoafetivos),
há que se ter em mente o atual entendimento científico do tema para julgar a questão. Dessa forma,
como o atual estágio da ciência médica aponta para o fato de ser a homossexualidade uma das livres
manifestações da sexualidade humana, assim como a heterossexualidade, assim como concluiu que não há
nenhum prejuízo a um menor pelo simples fato de ter sido criado por um casal homoafetivo, não se pode
utilizar a homossexualidade do casal como justificativa hábil a obstar a adoção por casais homoafetivos,
sendo que o mesmo se pode dizer da adoção por homossexuais individualmente considerados exatamente
pelas mesmas razões, o que significa que a negativa da adoção pela mera homossexualidade da pessoa ou
homoafetividade do casal configura discriminação arbitrária, preconceituosa, que afronta a isonomia23.
Assim, absolutamente pertinentes as palavras do Ministro João Otávio de Noronha em seu voto
concordante no REsp 889.852/RS, que confirmou decisão gaúcha concessiva de adoção a um casal
homoafetivo: “é preciso chamar a atenção para o seguinte: a lei não proíbe, ela garante o direito tanto
entre os homoafetivos, como entre os héteros. Apenas lhes assegura um direito, não há vedação. Não há
nenhum dispositivo que proíba, até porque uma pessoa solteira pode adotar. Então, não estamos aqui
violando nenhuma disposição legal, mas construindo em um espaço, em um vácuo a ser preenchido
ante a ausência de norma, daí a força criadora da jurisprudência. É exatamente nesse espaço que
estamos atuando. Não estamos violando nenhum dispositivo. O Código Civil garante: homem ou mulher,
casados podem. Mas não diz que é vedado em momento algum. Então, é preciso entender normas de
garantia e diferenciá-las de normas de proibição. E não há nenhuma norma de proibição. Na minha
visão, se estamos falando sobre aquilo que é melhor para a criança, é esse entendimento que deve
prevalecer. Salvo entendimento contrário dos meus Pares, mas penso que devemos olhar sempre o
interesse do menor. Portanto, sinto-me muito tranquilo para decidir aqui sem nenhuma sensação de
invasão do espaço legislativo. É muito importante deixar positivado” (grifos nossos).

3.2 A omissão legal e os princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção integral do menor:
a adoção por homossexuais e por casais homoafetivos. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
Na mesma linha exposta no item anterior, é inequívoco que a dignidade humana das pessoas
homoafetivas resta também afrontada pela proibição da adoção. Isso porque o princípio da dignidade da
pessoa humana garante a todos o direito à felicidade, ao passo que as pessoas que querem adotar uma
criança e/ou um adolescente só poderão atingir esse sublime estado de espírito se puderem exercer
totalmente o seu direito fundamental à parentalidade, o que supõe necessariamente o deferimento de seu
pedido de adoção (que só pode ser indeferido pelo descumprimento das exigências legais, que serão
constitucionais se pautadas pela lógica e pela racionalidade). Pode-se dizer, ainda, que resta afrontada a
dignidade do menor que seria beneficiado por dita adoção, pois está sendo negado a ele o direito de ser
criado por uma família com plenas condições para tanto pelo argumento preconceituoso e, portanto,
equivocado de que sua criação seria “prejudicada” se essa adoção fosse deferida.
Nesse sentido, é de se lembrar que a dignidade humana significa proteção ao ser humano pela sua
mera condição humana, só podendo ser ela relativizada na existência de motivação lógico-racional que
isso justifique, o que inexiste no caso aqui discutido. In casu, a discriminação em debate coloca os
homossexuais em situação de menor dignidade em relação aos heterossexuais e lhes tira o direito de
alcançar a plena felicidade sem a existência de uma motivação válida perante a isonomia que isso
justifique. Assim, é inconstitucional a relativização da dignidade de homossexuais visando impedi-los de
adotar menores, tendo em vista a inexistência de motivação lógico-racional que isso justifique, assim
como (e especialmente) pela ausência de prejuízos aos menores por eles criados em virtude do fato de
serem criados por um casal homoafetivo.
Dessa forma, antes da decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, já se podia dizer que, ante a
lacuna da legislação a respeito, é cabível uma interpretação extensiva ou uma analogia para permitir que
homossexuais solteiros24 e casais homoafetivos25 adotem crianças e adolescentes, por força dos
princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, e dada a absoluta ausência de prejuízos
ocasionados por essa adoção ao menor, que, muito pelo contrário, passará a receber amor, solidariedade,
respeito, confiança e todos os valores que configuram uma vida digna, em atendimento ao seu direito
subjetivo a ser adotado.
Por outro lado, com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, que incluiu a união
homoafetiva no conceito constitucional de união estável ou, como preferem alguns, a reconheceu como
entidade familiar com igualdade de direitos com a união estável heteroafetiva, tem-se que: (i)
reconhecida a união homoafetiva como união estável quando atendidos os requisitos legais do art. 1.723
do CC/02, não há mais lacuna normativa, pois casais homoafetivos se enquadram no conceito técnico-
jurídico de companheiros, que designa a relação conjugal de união estável, bem como no conceito
técnico-jurídico de cônjuges no que tange àqueles que tiveram seu pedido de habilitação em casamento
civil ou de conversão de união estável em casamento civil deferido; (ii) o entendimento alternativo de
que a união homoafetiva foi reconhecida não como união estável, mas como entidade familiar autônoma
com igualdade de direitos relativamente à união estável heteroafetiva também gera, por consequência
lógica, o reconhecimento do direito de adoção por casais homoafetivos que atendam aos requisitos legais
da união estável, já que este é um direito legalmente reconhecido a casais heteroafetivos em união
estável.

3.3 Da afronta ao princípio da proteção integral ao menor decorrente da proibição da adoção por
casais homoafetivos
Ante o demonstrado até aqui, fica claro que o princípio da integral proteção de crianças e
adolescentes é igualmente afrontado pela negativa do direito de adoção conjunta por pessoas
homossexuais solteiras, pois tal negativa não permite a eles serem criados por pessoas que se encontram
dispostas a lhes ofertar amor, respeito, solidariedade e a possibilitar, assim, o pleno desenvolvimento de
suas potencialidades quando nenhuma outra pessoa se dispôs a tanto. Tal negativa, ao contrário, condena-
o a uma infância e/ou a uma adolescência infeliz, oriunda da absoluta incapacidade do Estado de lhes
garantir uma criação digna, como exige a Constituição.
No que tange aos casais homoafetivos, há igualmente uma afronta ao princípio da integral proteção
de crianças e adolescentes no indeferimento de seu pedido de adoção conjunta26, na medida em que o
deferimento da adoção apenas a um dos companheiros homoafetivos pode vir a trazer uma série de
prejuízos à criança e/ou ao adolescente em questão27. Isso porque, sendo deferida a adoção somente a um
deles, somente este terá um vínculo jurídico com o menor, e o seu companheiro homoafetivo não estará
obrigado a prestar auxílio financeiro ao adotado, assim como este companheiro que não consta como pai
adotivo poderá encontrar dificuldades para conseguir manter um contato e uma convivência com a
criança ou o adolescente em questão na eventualidade do término de sua relação amorosa com o pai
adotivo28. Afinal, pode o ascendente adotivo se opor judicialmente a tanto, alegando que seu ex-
companheiro não teria direito legal a tanto pelo fato de não constar como pai adotivo da criança e/ou do
adolescente em questão, recusando-se arbitrariamente a permitir as visitas ao menor, como a prática
forense na área de família, com constantes disputas de guarda entre ex-casais heteroafetivos comprovam
cotidianamente.
Analisem-se os dois casos. No primeiro, a afronta ao melhor interesse da criança e/ou do
adolescente fica evidente, na medida em que seu pai adotivo pode, após a separação, não ter condições
financeiras de manter o mesmo padrão de vida que o menor em questão tinha quando da união
homoafetiva por ele mantida com seu ex-companheiro. Assim, a criança e/ou o adolescente em questão
estará certamente prejudicado(a) nessa situação, tendo em vista que, se constasse como filho(a)
adotivo(a) do ex-companheiro do pai, poderia dele pleitear alimentos para manter seu antigo padrão de
vida. Ademais, além da questão dos alimentos, no caso de falecimento do ex-companheiro do pai
adotivo, a criança ou o adolescente em questão não terá direito à herança, em nova afronta a seu melhor
interesse. Outrossim, é de se mencionar que o simples deferimento da guarda do menor em questão ao
ex-companheiro homoafetivo do pai adotivo em decorrência da morte deste é uma solução meramente
paliativa, que não atende ao melhor interesse da criança e/ou do adolescente em questão, visto que não
forma um vínculo jurídico permanente e indissolúvel dele com aquele que detém a guarda29.
Já no segundo caso, o prejuízo do menor não é de caráter econômico, mas psicológico. Afinal, a
criança e/ou o adolescente em questão é criado(a) tanto por seu pai adotivo quanto pelo companheiro
deste, o que acaba criando fortes laços de afeto com ambos. Assim, na ocorrência do término da relação
homoafetiva do pai adotivo, a criança e/ou o adolescente em questão sofrerá muito caso lhe seja negado
o direito de manter contato e convivência com o ex-companheiro do pai adotivo, da mesma forma que
ocorre quando, na separação de um casal heteroafetivo, aquele que mantém a guarda do menor nega ao
ex-companheiro/cônjuge dito direito de contato e convivência. Aqui o tema recai sobre a denominada
filiação socioafetiva, que é aquela decorrente da criação de uma criança ou de um adolescente por uma
pessoa que não é seu pai biológico ou adotivo, e na qual o menor em questão acaba considerando dita
pessoa como tal pelo fato de ter sido criado por ela, como se filho(a) fosse. Afinal, o amor devido a um
pai ou a uma mãe não é decorrente de meros laços biológicos, mas de laços de afetividade decorrentes
da criação de dita criança ou de dito adolescente por aquela pessoa.
Assim, caso aquele que conste como pai adotivo da criança ou do adolescente em questão se recuse,
por algum motivo injustificado, a permitir que seu ex-companheiro mantenha contato com seu(s) filho(s)
adotivo(s), ter-se-á uma afronta ao princípio da integral proteção da criança e/ou do adolescente em
questão, tendo em vista que este prega pela garantia do melhor interesse deste(a), que no caso é o de
garantir o contato dele com o ex-companheiro de seu pai adotivo, ante a inequívoca filiação socioafetiva
decorrente do período em que com aquele conviveu.
Deve-se ter em mente, ainda, que uma pessoa homossexual procura por uma relação amorosa estável
e plena da mesma forma que uma pessoa heterossexual, donde, ainda que seja deferida a adoção a um
homossexual solteiro, que não esteja em uma relação homoafetiva no momento do pedido até o
deferimento do mesmo, é inequívoco que eventualmente dita pessoa se relacionará com outra do mesmo
sexo, mantendo com ela uma relação amorosa pública, contínua e duradoura – afinal, não é pelo não
reconhecimento do direito a uma adoção conjunta que menores deixarão de ser criados por casais
homoafetivos30. O único prejudicado será o menor, que não terá vínculo jurídico com ambos os seus pais,
mas apenas com um deles...
Por outro lado, cumpre deferir a adoção a casais homoafetivos pela obviedade de que terão crianças
e adolescentes uma vida muito melhor se criados(as) por um casal disposto a lhes fornecer amor,
respeito e solidariedade, aprendendo, inclusive, a importância desses valores, do que se criados em
instituições públicas, que por melhor que sejam jamais poderão fornecer um ambiente propício ao
desenvolvimento da individualidade da pessoa em crescimento31.
Assim, é imperioso o deferimento de eventual pedido de adoção formulado pelo companheiro do pai
adotivo em questão, após comprovada a estabilidade da referida união, para garantir o melhor interesse
da criança ou do adolescente em questão, decorrente da filiação socioafetiva que certamente decorrerá
dessa situação.

3.3.1 Da inconstitucionalidade da utilização do preconceito alheio como “justificativa” para a


proibição da adoção por casais homoafetivos
Uma pseudojustificativa comumente utilizada pelos opositores da adoção por casais homoafetivos é
a de que o menor em questão sofreria com as “brincadeiras” preconceituosas de seus colegas de escola
em razão de ser criado por duas pessoas do mesmo sexo em vez de sê-lo por duas pessoas de sexos
diversos. Alegam que não se poderia colocar o desejo do casal homoafetivo em questão em sobreposição
ao direito do menor de ter uma criação sem o sofrimento oriundo desse tipo de preconceito. Contudo, o
fato de o menor poder vir a, eventualmente, sofrer discriminação por parte de seus colegas no ambiente
escolar (e qualquer outro) também não pode ser considerado argumento válido para proibir a adoção por
casais homoafetivos. Isso porque, ao fazer isso, estará o operador do Direito erigindo o preconceito
alheio como critério válido de discriminação jurídica, o que é inadmissível, a teor do art. 3.o, IV, da
CF/1988, que veda expressamente discriminações jurídicas pautadas pelo preconceito.
Ademais, o preconceito (juízo de valor irracional, arbitrário) não pode, em hipótese alguma, ser
utilizado como paradigma para restringir os direitos de indivíduo nenhum, uma vez que é esse
preconceito exatamente que se combate por meio do princípio da isonomia32. A partir do momento em
que se exigem fundamentos lógicos e racionais para que uma discriminação seja juridicamente válida
(como o faz o preceito isonômico), é inconcebível que se aceite o preconceito, que é juízo de valor
desarrazoado, como critério de discriminação.
Ou seja, tentar justificar uma inexistente vedação ao direito de adoção por casais homoafetivos com
a possível discriminação que dito menor poderá sofrer na escola importa em uma inaceitável inversão de
valores, no sentido de que se estará punindo o casal homoafetivo (ao não lhe deferir o direito à adoção)
por causa do preconceito alheio, o que é absurdo e inadmissível. Ora, a atitude errada e condenável é a
das crianças e adolescentes que agem com preconceito, não a do casal homoafetivo em manter uma união
pautada pelo amor familiar. Em situações como essas, a escola deve proibir esse tipo de comentário
preconceituoso e punir os alunos que o façam, da mesma forma que pune aqueles que incitam brigas e
discórdias em geral no ambiente escolar. Os menores em questão devem ser educados a respeitar as
pessoas pelo que elas são, devendo ser advertidos e, no caso de reincidência, punidos por suas condutas
preconceituosas.
Se nem mesmo o juiz de Direito, que tem a obrigação de ser imparcial e neutro na análise do litígio,
reconhecer que o preconceito não pode, em nenhuma hipótese, ser juridicamente aceito, então nunca a
sociedade superará seus preconceitos, uma vez que o Judiciário é o órgão que declara aquilo que é lícito
e aquilo que não é – e, no caso das leis, qual interpretação é constitucional e qual não é.
Um exemplo a citar é o fato de que, até hoje, as pessoas não veem com bons olhos as uniões
estáveis. Por mais que se reconheça o status jurídico-familiar das uniões amorosas não consagradas pelo
casamento civil, sempre é esse casal indagado sobre se não irá consagrar sua união pelo matrimônio, o
que só vem provar que, mesmo com a Constituição permitindo expressamente a união estável, não deixou
ela de ser considerada inferior ao casamento civil pela comunidade em geral33, que acaba direta ou
indiretamente pressionando os companheiros a se casarem. Pois bem, imagine o leitor se o constituinte de
1988 concordasse com tal afirmação – nesse caso, a união estável não seria ainda hoje expressamente
protegida e seria considerada concubinato, ficando fora do Direito das Famílias.
Veja-se, ainda, o caso das uniões amorosas de brancos e negros. Até meados do século XX, o
preconceito contra negros era de uma magnitude incomensurável, e casais ditos inter-raciais sofriam forte
preconceito social – nos EUA, configurava inclusive crime o chamado casamento inter-racial em
diversos estados, o que só foi superado com o precedente Loving v. Virginia, da Suprema Corte daquele
país. Será que o leitor que não aceita a adoção por casais homoafetivos entende também que, no passado,
a adoção não deveria ser concedida a casais ditos inter​-raciais em função das “brincadeiras” que o
adotado poderia sofrer em função do preconceito contra seus pais? Em ambos os casos (adoção por
casais homoafetivos e inter-raciais), é evidente que o preconceito alheio não pode justificar a proibição
da adoção, na medida em que o preconceito é justamente o que se visa combater por meio da isonomia.
Tais observações demonstram que o Direito, por meio do Legislativo e do Judiciário, tendo a
isonomia e a dignidade da pessoa humana como bases, deve acompanhar o fato social independentemente
do que pensa ou deixa de pensar parte da sociedade a respeito do tema (ainda que seja majoritária esta
parte), donde fica evidente que o preconceito social contra a homossexualidade não pode ser usado como
justificativa para proibir a adoção por casais homoafetivos. Nesse sentido, se o Legislativo não se digna
a elaborar e/ou aprovar uma lei que permita expressamente a adoção por pessoas do mesmo sexo,
cumprindo assim com sua obrigação de elaborar uma legislação isonômica, então o Judiciário, por meio
da interpretação extensiva ou da analogia, que decorrem da isonomia, deve fazê-lo, pois o menor não terá
prejuízo algum em seu desenvolvimento pelo fato de ser criado por um casal homoafetivo. Caso
contrário, jamais evoluirá o tratamento jurídico dispensado às pessoas.
Isso não importa em violação do princípio da separação de poderes, tendo em vista que o próprio
Poder Legislativo previu a analogia (assim como a interpretação extensiva) como forma de integração do
ordenamento jurídico nos casos de omissão legal, por meio dos arts. 4.º da LINDB e 126 do CPC. Afinal,
o texto normativo já existe, protegendo o valor em questão (no caso, a adoção), sendo que foi citado
apenas um dos fatos que se enquadram neste valor quando, em verdade, outros fatos também se
enquadram na hipótese normativa já aprovada pelo Legislativo. Por outro lado, se o próprio Poder
Legislativo previu essa possibilidade de integração jurídica, então não há que se falar em afronta ao
princípio da separação dos poderes. Trata-se, em suma, de integração do ordenamento, supressão de
lacunas pelas técnicas legalmente previstas, e não de “legislação positiva” por parte do Judiciário.
Note-se, por oportuno, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos não permite a consideração
do preconceito alheio para fins de definição ou retirada da guarda ou custódia de crianças e
adolescentes, consoante decidido no paradigmático caso Atala Riffo y niñas vs. Chile, segundo o qual “o
argumento da possível discriminação social não era adequado para cumprir com a finalidade declarada
de proteger o interesse superior das filhas”34, tendo em vista a proibição da discriminação por orientação
sexual implícita à Convenção Interamericana de Direitos Humanos e a necessidade de provas concretas
de prejuízos a crianças e adolescentes decorrente da conduta concreta (e não presumida com base em
estereótipos) para que se possa retirar sua guarda ou custódia de alguém, pois “A Corte considera que,
para justificar uma diferença de tratamento e a restrição de um direito não pode servir de sustentação
jurídica a alegada possibilidade de discriminação social, provada ou não, a que poderiam enfrentar
os menores de idade por condições da mãe ou do pai. Se é certo que certas sociedades podem ser
intolerantes a condições como a raça, o sexo, a nacionalidade ou a orientação sexual de uma pessoa, os
Estados não podem utilizar isto como justificações para perpetuar tratamentos discriminatórios. Os
Estados estão internacionalmente obrigados a adotar as medidas que forem necessárias ‘para fazer
efetivos’ os direitos estabelecidos na Convenção, como estipula o artigo 2o de dito instrumento
interamericano, razão pela qual devem propender, precisamente, a enfrentar as manifestações
intolerantes e discriminatórias, com o fim de evitar a exclusão ou negação de uma determinada
condição”35 – decisão esta explicitada adiante neste capítulo, em tópico específico.

3.3.2 Da possibilidade jurídica do registro civil de um(a) menor como filho(a) de um casal
homoafetivo. STJ, REsp 889.852/RS (e TJRS, AC 70013801592)
Quanto à questão do registro civil do menor criado por um casal homoafetivo, não há nada na
legislação que impeça a duas pessoas do mesmo sexo de constarem como pais ou mães de uma pessoa.
Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Apelação Cível 7001380159236),
em conclusão com a qual se concorda integralmente:

Por fim, de louvar a solução encontrada pelo em. magistrado Marcos Danúbio Edon Franco, ao
determinar na sentença que no assento de nascimento das crianças conste que são filhas de L.R.M.
e Li.M.B.G., sem declinar a condição de pai ou mãe.

Concorda-se plenamente com a conclusão. Afinal, a parentalidade é um conceito primordialmente


socioafetivo, não necessariamente biológico. Uma pessoa não exerce a função paterna ou materna pelo
simples fato de ser o(a) genitor(a) da criança ou adolescente em questão: a parentalidade somente
existirá de fato caso haja amor, carinho, compreensão, solidariedade e respeito pelo menor, além da
concessão de educação e da imposição de limites a este, características necessárias a uma boa criação
que independem da orientação sexual da pessoa ou do fato de se tratar de um casal homoafetivo ou
heteroafetivo, já que ambos têm as mesmas condições de criar adequadamente um menor. Anote-se, por
oportuno, que essa decisão foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2009 – REsp
889.852/RS, DJe de 10.08.2010 (já analisado no capítulo 12).

3.4 A Jurisprudência sobre o tema


Ante todas as considerações supraexpostas, a Jurisprudência tem-se posicionado favoravelmente à
adoção por homossexuais e, inclusive, por casais homoafetivos. Tem-se reconhecido que a mera
homossexualidade da pessoa não impede a adoção, sendo que é determinante, tão somente, que os
relatórios psicológicos e sociais demonstrem que o homossexual ou o casal homoafetivo em questão
tenha(m) condições de criar o menor37.
Merece destaque a posição do magistrado carioca Siro Darlan, que também entende que são os
relatórios social e psicológico que devem ter influência na definição da existência ou não de condições
de adoção por parte do casal pretendente38. Afirmando garantir a Constituição a isonomia, aponta
corretamente que resta vedada qualquer forma de preconceito ou discriminação arbitrária, donde não se
justifica a manutenção de uma criança ou adolescente em abrigo estatal – que notoriamente não tem
condições de garantir o seu pleno desenvolvimento – pela mera homossexualidade ou conjugalidade
homoafetiva do(s) adotante(s). Aponta o magistrado que é inadmissível não deferir a adoção quando os
laudos social e psicológico não tragam motivos relevantes a isto justificar, em especial quando a
alternativa seja a permanência do menor em uma instituição, na qual não terá uma nova chance de ter uma
família, para sucessivas transferências para outros estabelecimentos de segregação e tratamento coletivo,
sem qualquer chance de desenvolvimento de sua individualidade e sua cidadania, até que por força da
evasão forçada ou espontânea venha a transformar-se em mais um habitante das ruas e logradouros
públicos com grandes chances de residir nas Escolas de Formação de “marginais” em que se
transformaram os atuais “Presídios de menores” e, quem sabe, atingir ao posto máximo com ingresso no
Sistema Penitenciário...39
Ou seja, também neste caso concreto, os relatórios social e psicológico demonstraram que o melhor
interesse do menor em questão consistia na sua adoção pelo pleiteante homossexual, uma vez que os
critérios a serem considerados independem da orientação sexual do pleiteante à adoção, que em nada
influenciará na criação do menor. Mas o ponto fundamental da referida sentença foi a genialidade das
colocações do magistrado, Dr. Siro Darlan, que demonstrou cabalmente que as insurgências dos fiscais
que se opuseram ao deferimento do pedido de adoção basearam-se apenas no preconceito destes,
consubstanciado na equivocada premissa de que a homossexualidade do adotante, isoladamente
considerada, poderia trazer prejuízos ao menor em questão. Mas o “interessante” dessas alegações
contrárias à adoção por homossexuais e por casais homoafetivos é o fato de que seus defensores não
trazem provas que corroborem suas afirmações, que são baseadas unicamente nos preconceitos, ou seja,
em arbitrário subjetivismo. Mas, como bem ressaltado pelo magistrado, a partir do momento em que o
ordenamento jurídico brasileiro consagra o princípio da igualdade, que veda discriminações arbitrárias e
exige, assim, que aqueles que defendem uma discriminação jurídica provem de forma lógica e racional a
sua pertinência, então o preconceito alheio não pode servir de fundamento a justificar dita discriminação.
Assim, foi absolutamente correta a decisão que deferiu o pedido de adoção formulado.
Dessa sentença, o Ministério Público recorreu, basicamente reiterando suas alegações pelo que se
depreende do acórdão respectivo, que negou provimento a tal apelo, sob o fundamento de que a
homossexualidade do adotante, orientação sexual constitucionalmente garantida, não pode servir de
empecilho à adoção de crianças e adolescentes, se não demonstrada ou provada qualquer manifestação
ofensiva ao decoro e capaz de deformar o caráter do adotado40 – como inexistiu no caso concreto. Como
se percebe, os desembargadores que analisaram a apelação do Ministério Público em questão
mantiveram o posicionamento esposado na sentença impugnada, como não poderia deixar de ser. Ora,
será mesmo que o Ministério Público em questão entende que seria o melhor interesse do menor em
questão que fosse arrancado do lar que ele tanto ama, da criação de uma pessoa que igualmente o ama
como filho, da escola de bom nível no qual foi matriculado para ser colocado em sucessivos abrigos de
menores sem a menor estrutura para lhe garantir o completo desenvolvimento de suas aptidões?
Fica evidente da análise deste caso que o Ministério Público agiu baseado unicamente em seu
preconceito, consubstanciado na equivocada premissa de que a homossexualidade seria prejudicial ao
desenvolvimento da criança e/ou do adolescente que com ela tenha contato. Afinal, não trouxe nenhuma
prova que corroborasse suas alegações em nenhuma das instâncias, donde a arbitrariedade, ou seja, o
subjetivismo de suas alegações, que não têm o condão de justificar discriminações jurídicas em
decorrência do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado, como bem demonstrado pelo
magistrado de Primeira Instância em sua sentença e reiterado pelos desembargadores de Segundo Grau
(pois, como se diz na esfera contenciosa, alegar sem provar é o mesmo que não alegar).
Analise-se outro aresto:

Adoção. Elegibilidade admitida, diante da idoneidade do adotante e reais vantagens para o


adotando. Absurda discriminação, por questão de sexualidade do requerente, afrontando sagrados
princípios constitucionais e de direitos humanos e da criança. Apelo improvido, confirmada a
sentença positivada na Vara da Infância e Juventude (TJ/RJ, Apelação Cível 14.979/1998, 17.ª
Câmara Cível, Relator Desembargador Severiano Aragão. Julgamento realizado em 21.01.1999)41.

Com relação a esse acórdão, que se mantém na mesma linha dos anteriores, é interessante verificar o
teor do parecer do Ministério Público no sentido do deferimento da habilitação do homem homossexual
em questão à adoção, parecer este discordante da posição das procuradorias de Primeira Instância, que
recorreram da sentença; referido parecer, favorável à adoção, afirmou que deixar um menor desde o
nascimento entregue à solidão dos orfanatos, sem ninguém para estancar-lhe o pranto na hora da dor ou
do medo, entregá-lo ao desprezo público ao completar a maioridade, até que venha a necessitar cometer
crimes para sobreviver e, consequentemente, venha a aumentar a população carcerária é uma postura
flagrantemente descabida e afrontosa do melhor interesse do menor em questão, donde se deve permitir
que a caridade social determine a justiça a ser aplicada ao caso42.
Vale citar, ainda, acórdão paradigmático do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a respeito do
tema:

Apelação cível. Adoção. Casal formado por duas pessoas de mesmo sexo. Possibilidade.
Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por
pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de
constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam
adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam
adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que
permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de
abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se
uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos
direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo
especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. Negaram
provimento. Unânime (TJ/RS, Apelação Cível 70013801592, 7.a Câmara Cível, Relator
Desembargador Luís Felipe Brasil Santos, julgada em 05.04.2006 – sem destaque no original).

Anote-se, por oportuno, que essa decisão foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no ano
de 2009 – REsp 889.852/RS, DJe de 10.08.2010 (já analisado no capítulo 12).
Assim, verifica-se que não há óbices ao melhor interesse do menor na sua criação por um casal
homoafetivo – tal criação, ao contrário, garante às crianças e aos adolescentes que se encontram aos
cuidados do Estado Brasileiro o seu pleno desenvolvimento, por meio de sua criação em um ambiente de
amor, respeito e solidariedade, da mesma forma que seriam se o fossem por um casal heteroafetivo, sem
nenhuma diferença nesse sentido.
3.5 A posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Atala Riffo y niñas vs. Chile
No paradigmático caso Atala Riffo y niñas vs. Chile, foi proferida pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH) decisão em 24 de fevereiro de 2012 na qual se afirmou que embora seja um
legítimo interesse estatal promover o princípio do interesse superior da criança, a mera referência ao
mesmo sem provas de prejuízos a crianças e adolescentes decorrentes da conduta concreta da pessoa em
questão por conta de sua orientação sexual não pode ser uma base válida para se negar a guarda ou tutela
a homossexuais, por conta do princípio da não discriminação por orientação sexual implícito à
Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Analisemos os argumentos da referida decisão.
Segundo a CIDH, “o objetivo geral de proteger o princípio do interesse superior da criança é, em si
mesmo, um fim legítimo e é, ademais, imperioso (...) [para] propiciar o desenvolvimento dela”, contudo,
“a Corte constata que a determinação do interesse superior da criança, em casos de cuidado e custódia de
menores de idade deve ser buscado a partir da avaliação dos comportamentos parentais específicos e seu
impacto negativo no bem-estar e no desenvolvimento da criança segundo o caso [concreto], os danos ou
riscos reais e provados, e não especulativos ou imaginários. Portanto, não podem ser admissíveis as
especulações, presunções, estereótipos ou considerações generalizadas sobre características pessoais
dos pais ou preferências culturais a sobre certos conceitos tradicionais da família”, razão pela qual “a
Corte Interamericana observa que embora o ‘interesse superior da criança’ seja, em abstrato, um fim
legítimo, a mera referência ao mesmo sem provar, concretamente, os riscos ou danos que poderiam
decorrer da orientação sexual da mãe para as filhas não pode servir de medida idônea para a restrição de
um direito protegido como o de poder exercer todos os direitos humanos sem discriminação alguma pela
orientação sexual da pessoa”, pois “O interesse superior da criança não pode ser utilizado para
amparar a discriminação contra a mãe ou o pai pela orientação sexual de qualquer deles. Desse
modo, o julgador não pode tomar em consideração esta condição social como elemento para decidir
sobre a guarda ou custódia”43.
Assim, entende a Corte que “Uma determinação a partir de presunções infundadas e estereotipadas
sobre a capacidade e idoneidade parental de poder garantir e promover o bem-estar e desenvolvimento
da criança não é adequada para garantir o fim legítimo de proteger o interesse superior da criança. A
Corte considera que não são admissíveis as considerações baseadas em estereótipos sobre a orientação
sexual, a saber, pré-concepções sobre os atributos, as condutas ou características das pessoas
homossexuais ou o impacto que estes presumivelmente possam ter sobre as filhas e os filhos” (item 111),
pois “A Corte considera que, para justificar uma diferença de tratamento e a restrição de um direito
não pode servir de sustentação jurídica a alegada possibilidade de discriminação social, provada ou
não, a que poderiam enfrentar os menores de idade por condições da mãe ou do pai. Se é certo que
certas sociedades podem ser intolerantes a condições como a raça, o sexo, a nacionalidade ou a
orientação sexual de uma pessoa, os Estados não podem utilizar isto como justificações para perpetuar
tratamentos discriminatórios. Os Estados estão internacionalmente obrigados a adotar as medidas que
forem necessárias ‘para fazer efetivos’ os direitos estabelecidos na Convenção, como estipula o artigo 2o
de dito instrumento interamericano, razão pela qual devem propender, precisamente, a enfrentar as
manifestações intolerantes e discriminatórias, com o fim de evitar a exclusão ou negação de uma
determinada condição”44, na medida em que [e isso é fundamental], embora se argumente que “o
princípio do interesse superior da criança possa se ver afetado pelo risco de uma rejeição da sociedade,
a Corte considera que um possível estigma social decorrente da orientação sexual da mãe ou do pai não
pode ser considerado um ‘dano’ válido para os efeitos da determinação do interesse superior da
criança”, pois “Se os juízes que analisam casos como o presente constatam a existência de discriminação
social, é totalmente inadmissível legitimar essa discriminação com o argumento de proteger o interesse
superior do menor de idade. No presente caso, o Tribunal ressalta que, ademais, a senhora Atala não
teria porque sofrer as consequências de que em sua comunidade presumivelmente as filhas poderiam ter
sido discriminadas devido à sua orientação sexual”, razão pela qual “a Corte conclui que o argumento da
possível discriminação social não era adequado para cumprir com a finalidade declarada de proteger o
interesse superior das filhas”45.
Segundo a Corte, “Relativamente à proibição de discriminação por orientação sexual, a eventual
restrição de um direito exige uma fundamentação rigorosa e de muito peso46, invertendo-se, ademais, o
ônus da prova, o que significa que cabe à autoridade demonstrar que a sua decisão não teria um propósito
nem um efeito discriminatório47. Isso é especialmente relevante em um caso como o presente, tendo em
conta que a determinação de um dano deve sustentar-se em evidência técnica e em ditames de peritos e
investigadores para fins de estabelecer conclusões que não resultem em decisões discriminatórias”,
donde “é o Estado que tem o ônus da prova para mostrar que a decisão judicial debatida se baseou na
existência de um dano concreto, específico e real ao desenvolvimento das meninas. Para isso é
necessário que nas decisões judiciais sobre estes temas se definam de maneira específica e concreta os
elementos de conexão e causalidade entre a conduta da mãe ou pai e o suposto impacto no
desenvolvimento do filho. Do contrário, corre​-se o risco de fundamentar a decisão em um estereótipo
(supra, itens 109 e 111) vinculado exclusivamente à pré-concepção, descabida, de que os filhos criados
por pares homossexuais necessariamente teriam dificuldades para definir seus papéis de gênero ou
sexuais”48.
Assim, “A Corte Interamericana considera necessário realçar que o alcance do direito à não
discriminação por orientação sexual não se limita à condição de ser homossexual em si mesma, pois
inclui sua a expressão e as consequências necessárias para o projeto de vida das pessoas
[homossexuais]. Sobre o tema, no Caso Laskey, Jaggard y Brown Vs. Reino Unido, o Tribunal Europeu
de Direitos Humanos estabeleceu que tanto a orientação sexual quanto o seu exercício constituem
aspectos relevantes da vida privada49. A respeito do tema, o perito Wintemute afirmou que ‘a
jurisprudência do Tribunal Europeu deixa claro que a orientação sexual também inclui a conduta. Isso
significa que a proteção contra a discriminação baseada na orientação sexual não se relaciona unicamente
com um tratamento menos favorável pela pessoa ser lésbica ou gay. Também abarca a discriminação
porque um indivíduo atua segundo sua orientação sexual ao optar participar de atividades sexuais
consentidas em âmbito privado ou decidir iniciar uma relação de parceria de longo prazo com uma
pessoa do mesmo sexo’50”. Com efeito, para a CIDH, “O âmbito de proteção do direito à vida privada
tem sido interpretado em termos amplos pelos tribunais internacionais de direitos humanos ao
assinalarem que ele vai além do direito à privacidade. Segundo o Tribunal Europeu, o direito à vida
privada abarca a identidade física e social, o desenvolvimento pessoal e a autonomia pessoal de uma
pessoa, assim como seu direito de estabelecer e desenvolver relações com outras pessoas e seu entorno
social, incluindo o direito de estabelecer e manter relações com pessoas do mesmo sexo51. Ademais, o
direito de manter relações pessoais com outros indivíduos, no marco do direito à vida privada, se
estende à esfera pública e profissional52”, donde “a orientação sexual de uma pessoa também se encontra
ligada ao conceito de liberdade e a possibilidade de todo ser humano de se auto​-determinar e escolher
livremente as opções e circunstâncias que dão sentido à sua existência, conforme suas próprias opções e
convicções53. Portanto, “A vida afetiva com o cônjuge ou companheiro(a) permanente, aonde se
encontram, logicamente, as relações sexuais, é um dos aspectos principais do âmbito ou círculo da
intimidade”54. Afinal, segundo a Suprema Corte de Justiça do México, “A orientação sexual de uma
pessoa, como parte de sua identidade pessoal, (é) um elemento relevante no projeto de vida que se tem e
que, como qualquer pessoa, inclui o desejo de ter uma vida em comum com outra pessoal do mesmo ou
de distinto sexo55”56.
Assim, a CIDH “considera que dentro da proibição de discriminação por orientação sexual se deve
incluir, como direitos protegidos, as condutas no exercício da homossexualidade. Ademais, se a
orientação sexual é um componente essencial da identidade da pessoa57, não era razoável exigir da
senhora Atala que postergasse seu projeto de vida e de família. Não se pode considerar como reprovável
juridicamente, em nenhuma circunstância, o fato de a senhora Atala ter tomado a decisão de refazer sua
vida. Ademais, não se encontra provado nenhum dano que haja prejudicado as três filhas. (...) De outra
parte, diversas sentenças de tribunais internacionais58 permitem concluir que em decisões judiciais
relativas à custódia de menores de idade, a consideração da conduta parental só é admissível quando
existam provas específicas que demonstram concretamente o impacto direto negativo da conduta
parental no bem-estar e desenvolvimento do filho ou da filha. Isto relativamente à necessidade de
aplicar um escrutínio maior quando a decisão judicial se relaciona com o direito à igualdade de grupos
populacionais tradicionalmente discriminados como é o caso dos homossexuais (supra párr. 92 y
124)”59.
Ressaltou a Corte, ainda, que “os peritos Uprimny e Jernow citaram e aportaram uma série de
informes científicos, considerados como representativos e autorizados nas ciências sociais, para concluir
que a convivência de menores de idade com pais homossexuais não afeta, por si, seu desenvolvimento
emocional ou psicológico. Ditos estudos concordam no sentido de que: i) as atitudes de mães ou pais
homossexuais são equivalentes às das mães ou pais heterossexuais; ii) o desenvolvimento psicológico e o
bem-estar emocional dos filhos ou filhas criados por pais gays ou mães lésbicas são comparáveis aos das
filhas ou filhos criados por pais heterossexuais; iii) a orientação sexual é irrelevante para a formação de
vínculos afetivos dos filhos ou filhas com seus pais; iv) a orientação sexual da mãe ou pai não afeta o
desenvolvimento dos filhos em matéria de gênero relativamente à sua compreensão de si mesmos como
homens ou mulheres, seu comportamento quanto a papéis de gênero e/ou sua orientação sexual; e v) os
filhos e as filhas de pais homossexuais não são mais afetados pelo estigma social que outros filhos60.
Consequentemente, a perita Jernow mencionou várias decisões de tribunais nacionais que se referiram a
investigações científicas como prova documental para afirmar que o interesse superior da criança não é
vulnerado pela homossexualidade dos pais61”. Nesse sentido, “A Corte ressalta que a ‘Associação
Americana de Psicologia’, mencionada pela perita Jernow, classificou os estudos existentes sobre a
matéria como ‘impressionantemente consistentes em seu fracasso em identificar algum déficit no
desenvolvimento das crianças criadas em um lar gay ou lésbico. (...) as capacidades de pessoas gays ou
lésbicas como pais e o resultado positivo para seus filhos não são áreas onde os investigadores
científicos mais autorizados dissentem’62. Consequentemente, a perita concluiu que: ‘quando a
especulação sobre um futuro dano potencial para o desenvolvimento da criança é refutado de maneira
sólida por toda a investigação científica existente, dita especulação não pode estabelecer as bases
probatórias para a determinação da custódia”63.
Por todos esses fundamentos, o Chile foi condenado pela CIDH pela discriminação que perpetrou
contra a Sra. Atalla, consubstanciada na retirada da guarda de suas filhas por conta de sua mera
orientação sexual (homoafetiva). Como se vê, trata-se de julgado paradigmático que veda que a mera
orientação sexual da pessoa seja usada como critério para justificar a perda de guarda ou custódia de
crianças e adolescentes de homossexuais, o qual exige, ao contrário, que sejam apresentadas provas de
que a conduta concreta da pessoa homossexual em questão seria prejudicial à criança e do adolescente, e
que não aceitou estereótipos ou preconceitos sociais sobre a homossexualidade para tanto. A meu ver, a
mesma argumentação pode ser utilizada para se impedir a retirada de guarda de bissexuais, travestis e
transexuais por conta unicamente da orientação sexual dos primeiros ou da identidade de gênero dos
últimos.

4. INEXISTÊNCIA DE VANTAGEM DE UM CASAL HETEROAFETIVO EM RELAÇÃO A UM


CASAL HOMOAFETIVO EM RAZÃO DA MERA DIVERSIDADE DE SEXOS DO
PRIMEIRO
Outro tema relevante é o atinente a uma hipotética questão, atinente à existência de um casal
homoafetivo e de um casal heteroafetivo interessados na adoção do mesmo menor, casais estes que se
encontrem com condições análogas para criação do menor. Neste caso, dado o enorme preconceito ainda
existente em face da homossexualidade e da homoafetividade, é de se indagar se, nesta hipótese, um casal
heteroafetivo sempre teria uma “vantagem” em relação a um casal homoafetivo, no caso de um “empate”
nas condições para criação do menor (financeira, moral etc.) pela mera diversidade de sexos do mesmo.
Contudo, inexiste essa pseudovantagem para fins de adoção, configurando puro preconceito entendimento
em sentido contrário.
Com efeito, a homoafetividade do casal não traz nenhum prejuízo ao menor, sendo a homogeneidade
ou diversidade de sexos do casal questão irrelevante em sua criação. Da mesma forma, o preconceito que
o menor possa vir a sofrer de terceiros não pode ser utilizado como paradigma para a decisão, na medida
em que o preconceito alheio jamais poderá ser critério juridicamente válido para diferenciações. Nesta
hipótese, deve-se verificar a capacidade do casal homoafetivo em lidar com a situação, amparando o
menor adotado, explicando-lhe que se trata de preconceito alheio e, enfim, dando-lhe todo o suporte
necessário para enfrentar a situação e com ela evoluir – da mesma forma que se o menor sofresse
preconceito por diversas outras questões, como sua cor de pele, religião, condição financeira etc. Afinal,
é fato que crianças e adolescentes podem ser extremamente maldosos com aqueles mais tímidos/inibidos
pelas mais variadas questões – a homoafetividade dos pais seria apenas mais uma delas, sem nenhuma
diferença nesse sentido. A homogeneidade ou diversidade de sexos do casal são questões que devem ser
tidas como irrelevantes, não podendo ser utilizadas como paradigmas válidos de diferenciação jurídica
neste ponto.
Assim, a mera homogeneidade ou diversidade de sexos do casal jamais poderá ser utilizada como
fundamento para se dar preferência à adoção por um casal heteroafetivo, configurando preconceito
entendimento em sentido contrário.

5. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O livre exercício da parentalidade é um direito humano fundamental decorrente do princípio da
dignidade da pessoa humana, tendo em vista que as pessoas que pleiteiam a adoção só serão plenamente
felizes se lhes for permitido esse direito. Por outro lado, também é direito fundamental dos menores que
não possuem familiares aptos a criá-los o de serem criados por pessoas que lhes deem amor, respeito e
solidariedade, também em virtude da dignidade humana.
Por outro lado, a criação de um menor por um homossexual solteiro ou casal homoafetivo não lhe
trará nenhum prejuízo, tendo em vista que a orientação sexual daquele(s) que cria(m) o menor em nada
influi na orientação sexual do mesmo, não passando de preconceito a colocação em sentido contrário,
ante a ausência de prova científica que corrobore com este argumento, mesmo porque a
homossexualidade é tão normal quanto a heterossexualidade, conforme o posicionamento da ciência
médica mundial a respeito do tema. Diversos estudos sociais e psicológicos já comprovaram tais
colocações.
Dessa forma, não há que se falar em conflito entre o princípio da integral proteção de crianças e
adolescentes e o direito de homossexuais de poderem adotar, uma vez que não há prejuízo nenhum à
criança ou ao adolescente por ser criado(a) por duas pessoas do mesmo sexo. Ao contrário, afronta dito
princípio o não reconhecimento do direito à adoção conjunta por homoafetivos, tendo em vista que se
estará negando ao menor a criação em um ambiente de amor, respeito e solidariedade.
Ademais, considerando que a realidade fática demonstra que muitas crianças e adolescentes são
criados(as) por casais homoafetivos (pois o não reconhecimento do direito destes à adoção conjunta não
impede que eles criem menores no mundo fático), sendo eles oficialmente tidos juridicamente como
filhos de apenas um dos membros do casal, estão essas crianças e adolescentes em situação desprotegida
em relação àqueles que constam como filhos de ambos os companheiros, uma vez que não terão o
companheiro de seu pai biológico/adotivo (ou a companheira de sua mãe biológica/adotiva, conforme o
caso) obrigação legal nenhuma em criá-lo, o que por óbvio afronta o melhor interesse do menor.
Outrossim, o fato de parte da sociedade não ver com bons olhos a criação de menores por casais
homoafetivos não pode servir de fundamento para a proibição da adoção por estes, pois se estará
justificando uma discriminação jurídica com base em um preconceito social, em uma inversão de valores
inaceitável em um Estado que se considere Democrático e Social de Direito como o nosso. A uma porque
o art. 3.o, IV, da CF/1988 proíbe a discriminação jurídica preconceituosa. A outra porque, se parte da
sociedade age com preconceito, então é ela que deve ser punida, e não as pessoas que são alvo dessa
discriminação arbitrária, que não pode ser aceita, em hipótese alguma, como critério de diferenciação
válido visto ser esse preconceito, justamente, o que se visa combater por meio da isonomia, direito
humano fundamental e norma constitucional de eficácia plena que é. Em outras palavras, fundamentar uma
diferenciação jurídica no preconceito alheio é completamente inaceitável, tendo em vista que tal
entendimento viola flagrantemente o princípio da igualdade, que justamente veda a utilização do
preconceito como critério válido de discriminação.
É de se notar, ainda, que não se deve ter nenhuma preferência por casais heteroafetivos na escolha da
família a colocar o adotando, na medida em que a homogeneidade ou diversidade de sexos do casal não
traz nenhum prejuízo ao menor, sendo a homoafetividade ou heteroafetividade, portanto, questão
irrelevante em sua criação. Da mesma forma, o preconceito que o menor possa vir a sofrer de terceiros
não pode ser utilizado como paradigma para a decisão, na medida em que o preconceito alheio jamais
poderá ser critério juridicamente válido para diferenciações. Nessa hipótese, deve-se verificar a
capacidade do casal homoafetivo em lidar com a situação, amparando o menor adotado, explicando-lhe
que se trata de preconceito alheio e, enfim, dando-lhe todo suporte necessário para enfrentar a situação e
com ela evoluir – da mesma forma se o menor sofresse preconceito por diversas outras questões, como
cor de pele, religião, condição financeira etc. Afinal, é fato que crianças e adolescentes podem ser
extremamente maldosos com aqueles mais tímidos/inibidos pelas mais variadas questões – a
homoafetividade dos pais seria apenas mais uma delas, sem nenhuma diferença nesse sentido. A
homoafetividade e a heteroafetividade são questão que devem ser tidas como irrelevantes, não podendo
ser utilizadas como paradigmas válidos de diferenciação jurídica neste ponto.
Por fim, com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, que incluiu a união homoafetiva no
conceito constitucional de união estável ou, como preferem alguns, a reconheceu como entidade familiar
com igualdade de direitos com a união estável heteroafetiva, tem-se que: (i) reconhecida a união
homoafetiva como união estável quando atendidos os requisitos legais do art. 1.723 do CC/02, não há
mais lacuna normativa, pois casais homoafetivos se enquadram no conceito técnico-jurídico de
companheiros, que designa a relação conjugal de união estável, bem como no conceito técnico-jurídico
de cônjuges no que tange àqueles que tiveram seu pedido de habilitação em casamento civil ou de
conversão de união estável em casamento civil deferido; (ii) o entendimento alternativo de que a união
homoafetiva foi reconhecida não como união estável, mas como entidade familiar autônoma com
igualdade de direitos relativamente à união estável heteroafetiva também gera, por consequência lógica,
o reconhecimento do direito de adoção por casais homoafetivos que atendam aos requisitos legais da
união estável, já que este é um direito legalmente reconhecido a casais heteroafetivos em união estável.

1 SUANNES (As uniões homossexuais e a Lei 9.278/1996, p. 30) apud DIAS, Maria Berenice. União Homossexual – o
Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 116.
2 “Ou seja, a família como unidade política e econômica na qual os filhos cumpriam papéis predeterminados sob a autoridade
paterna servindo à economia familiar como mão de obra alterou-se para a família atual formada por um grupo de
companheirismo e um lugar de acolhimento e afeto” (FACHIN, Luiz Edson (Elementos críticos do direito de família..., p. 305-
306) apud GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 100).
3 Nesse sentido, afirma Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 92 e 93) que “da interpretação sistemática
dos §§ 4.o e 7.o com o caput do art. 226 da Constituição da República Federativa do Brasil, entende-se ser possível a
defesa da existência de um direito de personalidade ligado à noção de um interesse juridicamente tutelado à paternidade
que tem raiz de direito subjetivo essencial, porque atrelado ao conceito particular de felicidade, compreendido e derivado do
princípio maior da dignidade da pessoa humana”; pois, “uma vez que o projeto de felicidade de uma pessoa envolva o
desejo de tornar-se pai ou mãe mediante a adoção de uma criança, essa faculdade não pode ser negada somente por
conta da orientação sexual exercida pelo pretenso adotante, na medida em que o direito à descendência, porque inato ao
ser humano, é também tutelado pelo direito sob o manto de direitos subjetivos essenciais à realização da sua
personalidade”.
4 Como alguns fazem com relação aos homossexuais.
5 “Nessa perspectiva de considerar os direitos de família como direitos subjetivos típicos e por a filiação proporcionar o
enriquecimento da personalidade humana é que se defende o direito subjetivo de os homossexuais realizarem-se como
pais, tendo a possibilidade da adoção de crianças ou adolescentes respeitado os requisitos instituídos pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente, Lei 8.069/1990, devendo ser afastada de qualquer conotação valorativa a orientação sexual do
pretendente à adoção. Pois se é verdade que a paternidade representa o cumprimento de deveres para com o filho, é
verdade que ao cumpri-los não só são satisfeitos os interesses do filho, mas também o dos pais” (GIRARDI, Viviane.
Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 96).
6 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. (...) § 6.º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção,
terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”
7 “Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em
família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes
de substâncias entorpecentes”. Não há absolutamente nada que proíba a adoção por homossexuais e casais homoafetivos,
como se percebe pela interpretação do ECA como um todo, em especial pelos arts. 3.o, 4.o, 6.o, 7.o, 15, 16, I a VII, e 17 do
mesmo, que não trazem absolutamente nada que impeça a adoção por homossexuais e casais homoafetivos.
8 Trazendo motivos que justificam essa preferência legislativa pela família consanguínea, quando apta a exercer a função,
afirma a psicanalista e psicóloga forense Fernanda Otoni de Barros: “[Em uma família consanguínea típica e ideal,] Na
verdade, bem antes de nascermos já fomos imaginados. Já nos compraram roupinhas, já nos arrumaram um lugar para
dormir e um nome. A relação entre os genitores está organizada pelo simbólico. As circunstâncias que marcam o encontro
deste pai e desta mãe, a história própria deles, formam uma rede que antecede a concepção. (...) A criança vai debater para
poder se encontrar com essa história que a precede, mas que, no entanto, é sua. Ideal, também, é que a criança
permaneça ao longo de seu desenvolvimento no lar com seus pais, pois ‘O entorno desta criança vai formar sua base de
referências para o alguém que vai ser na vida. Essa base referencial é o alicerce de seu sistema de valores, de seu olhar
para o mundo, de sua racionalidade, de seu futuro proceder com os demais’” (BARROS, Fernanda Otoni de (Um pai digno
de ser amado, in II Congresso Brasileiro de Direito de Família. Anais, p. 235) apud GIRARDI, Viviane. Famílias
Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005, p. 105).
9 Essas ponderações são inspiradas nas lições de Viviane Girardi, Paulo Luiz Netto Lôbo e Fernanda Otoni de Barros. Assim,
por uma questão de honestidade intelectual, seguem as lições originais: “Basicamente, a partir do momento em que a
família passa a ser constituída pelo núcleo pais e filhos é que a energia familiar se direciona para a criança e suas
necessidades essenciais, bem como para a educação com a carreira e o futuro dos filhos. A proximidade leva à
afetividade, o que só faz confirmar a tese jurídica contemporânea da supremacia da paternidade socioafetiva, sobre a
meramente biológica quando se trata da formação do elo paterno-materno-filial, pois a paternidade/maternidade e,
consequentemente, a filiação, ‘não é um dado, e sim um construído’, na medida em que é estruturada e engrandecida pelos
cuidados e trocas ministrados na intimidade dos contatos do cotidiano e não por uma determinação puramente genética
[Viviane Girardi]. Impõe-se a distinção entre origem biológica e paternidade/maternidade. Em outros termos, a filiação não é
um determinismo biológico, ainda que seja da natureza humana o impulso à procriação. Na maioria dos casos, a filiação
deriva da relação biológica; todavia, ela emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na
responsabilidade. (...) O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do
sangue [Paulo Luiz Netto Lôbo]. Nossa experiência ordinária basta para nos mostrar que a biologia não dá uma resposta
suficiente. O pai não é aquele que apenas deu uma célula germinal de 70 milésimos de milímetros e a mãe não é nem um
ventre nem a Virgem Santíssima. A biologia pode responder sobre a maternidade e a paternidade como a relação dos
animais, mas para o homem, que é um ser de linguagem, a história é bem outra e bem mais complexa. [Fernanda Otoni de
Barros] (ibidem, p. 106-107 – sem grifos no original).
10 No sentido da absoluta incapacidade dos orfanatos estatais de garantirem o pleno desenvolvimento da criança e do
adolescente, são esclarecedoras as palavras de Maria Teresa Maldonado e do psicólogo junguiano Adolf Genbül-Craig: “(...)
bebês criados em orfanatos em geral recebem estimulação deficiente em termos de contato humano; muitas pessoas
cuidam dos nenês de modo impessoal, não falam nem brincam com eles e os alimentam mecanicamente. A imensa
maioria dos bebês criados nessas condições cresce com problemas emocionais graves em geral caracterizados por uma
recusa ao contato com pessoas, completa apatia e incapacidade de formar vínculos afetivos. Tratar o bebê com amor, e
carinho, aconchegá-lo, sorrir para ele, brincar e oferecer-lhe brinquedos apropriados é essencial para um desenvolvimento
saudável” [MALDONADO, Maria Tereza (Como cuidar de bebês e crianças pequenas, 3.ª Edição, 1996, p. 64), apud
GIRARDI, op. cit., p. 108]. “O relacionamento envolve sempre algo de criativo. Ao empregar a palavra ‘criativo’, quero dizer o
seguinte: a psique humana está sempre cheia de novas possibilidades. Ela se cria sempre, por assim dizer, e é
permanentemente recriada. O potencial psíquico de um indivíduo é obviamente limitado, mas altamente diversificado e
multifacetado. Não é nada criativo ou propício ao relacionamento encontrar alguém e vê-lo como uma foto instantânea ou
uma imagem fixa. Encontrar uma pessoa de modo criativo significa tecer fantasias em redor dela e circundar seu potencial.
Surgem, então, várias imagens sobre a pessoa e o relacionamento potencial. Em geral, essas fantasias criativas estão
bem longe da assim-chamada realidade; são tão irreais, ou tão verdadeiras, como contos de fada e mitos. (...) Mesmo se
não expressas, as fantasias também influenciam a outra pessoa, despertando nela suas potencialidades. (...) as fantasias
criativas que descrevi se relacionam à natureza da outra pessoa e representam, de forma simbólico-mitológica, seu
potencial de vida. (...) Certas fantasias dos pais talvez sirvam de exemplo. Frequentemente os pais se permitem,
consciente ou semiconscientemente, fantasiar o futuro de seus filhos (...). Muitas vezes, porém, essas fantasias derivam de
uma visão basicamente correta, representando uma figuração criativa de um potencial latente. (...) Estas fantasias criativas,
ou circum-ambulação imaginativa do parceiro, são da maior importância em qualquer relacionamento humano. (...) Todo
mundo tem necessidade de fantasiar sobre si mesmo, de circundar e despertar seu próprio potencial de forma mitológica
ou como num conto de fada. Uma das tragédias da vida de crianças de orfanato é que ninguém tece tais fantasias em torno
delas, de modo que quase nunca seu potencial é despertado. Essas crianças poderão tornar-se adultos bem comportados,
mas psiquicamente só estão vivas pela metade” [GENBÜL-GRAIG, Adolf (O abuso do poder na psicoterapia – e na
medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. Trad. Roberto Gambini, 1978, p. 54-56) apud GIRARDI, op. cit., p. 108-
109].
11 Em comentário ao referido dispositivo legal, afirma Viviane Girardi que: “Essa prescrição deriva, em grande parte, da
concepção internacional que se tem sobre as necessidades fundamentais para o bom e pleno desenvolvimento da criança
e do adolescente. Ou seja, busca-se assegurar como um direito os cuidados e necessidades inatas ao crescimento físico e
socioafetivo de uma criança, que é o direito de nascer numa família, nela ocupar o espaço de filho e nela ser mantido em
harmoniosa convivência com seus pais até a idade de sua independência moral e material” (ibidem, p. 106).
12 Essa pseudotese, que não possui nenhum embasamento científico-probatório que a sustente, pode ser ilustrada pelo que
disse Claudio Pérsio Carvalho Leite, em palestra proferida perante a Comissão Especial sobre a União Civil Livre na
Câmara dos Deputados, em 20.08.1996: “(...) Deve-se salientar que, nesses exemplos, a presença do pai e da mãe são
presenças inquestionáveis, em todos os estágios do crescimento psicobiológico dos filhos, o que se traduz em linha direta
para a inquestionabilidade da importância das presenças do homem e da mulher, bem definidos na constituição individual
de seus filhos. Em um casal homossexual, sempre estará faltando um dos dois elementos. No casal homossexual
masculino, além da flagrante ausência da mãe-mulher, faltará, também, a imagem bem definida do homem-pai, começando
pelo fato de aqueles dois companheiros que falam em parceria são dois iguais. Faltando a mulher, faltará com ela a
referência que remeterá a criança a distinguir as diferenças da figura masculina. Além do que a criança estará sendo criada
por duas pessoas que não desejam, no sentido erótico, sexual e amoroso, a mulher. Já no casal homossexual feminino, é
flagrante a falta do pai ou do homem e também da mulher; da mulher-mulher, bem definida. Em ambos os quadros tem-se
o que se chamaria didaticamente de uma orfandade dupla de supostos pais ou mães vivos. (...)” (LEITE apud BRANDÃO,
Débora Vanessa Caús. Parcerias Homossexuais: Aspectos Jurídicos, 1.ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002, p. 94, em nota de rodapé).
13 Nesse sentido, são esclarecedoras as observações de Lídia Natália Dobrianskyj Weber, ao citar estudos psicológicos
sobre o tema: “Ricketts & Achternberg (1989) realizaram um estudo com vários casos individuais de adoções por homens e
mulheres homossexuais e afirmaram que a saúde mental e a felicidade individual estão na dinâmica de determinada família
e não na maneira como a família é definida. Eles afirmaram, portanto, que não importa se a família conta com um pai e uma
mãe ou somente com um deles; o mais importante é como essa família vive. McIntyre (1994) faz uma análise de pais e
mães homossexuais e os sistemas legais de custódia. Este autor afirma que a pesquisa sobre crianças serem criadas por
pais homossexuais documenta que pais do mesmo sexo são tão afetivos quanto casais tradicionais. Patterson (1997)
escreveu um artigo sobre relações de pais e mães homossexuais e analisou as evidências da influência na identidade
sexual, desenvolvimento pessoal e relacionamento social em crianças adotadas. A autora examinou o ajustamento de
crianças de 4 a 9 anos de idade criadas por mães homossexuais (mães biológicas e adotivas) e os resultados mostram
que tanto os níveis de ajustamento maternal quanto a autoestima, desenvolvimento social e pessoal das crianças são
compatíveis com crianças criadas por um casal tradicional. Samuels (1990) destaca que, mais importante que a orientação
sexual dos pais adotivos, o aspecto principal é a habilidade dos pais em proporcionar para a criança um ambiente
carinhoso, educativo e estável” (WEBER, Lídia Natália Dobrianskyj. Pais e filhos por adoção no Brasil: características,
expectativas e sentimentos..., p. 80-81) apud GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 82 – sem grifos no
original).
14 A Homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001, p. 141 a 143. Este livro é
fonte inclusive dos estudos citados, que foram transcritos de notas de rodapé do original (sem grifos e destaques no
original).
15 “Art. 1.618. Só a pessoa maior de 18 (dezoito) anos pode adotar. Parágrafo único. A adoção por ambos os cônjuges ou
companheiros poderá ser formalizada, desde que um deles tenha completado 18 (dezoito) anos de idade, comprovada a
estabilidade da família.”
16 “O peso dos reais benefícios ao adotando não se encontra na sexualidade dos conviventes candidatos, mas no desejo
verdadeiro de se dedicarem, com amor, à maternidade/paternidade. (...) Fundamental, pois, é que as pessoas em
desenvolvimento sejam educadas por pais/mães, de fato, preparados(as) e motivados(as) para a paternidade/maternidade.
(...) As condições que os futuros pais oferecerão, para o melhor desenvolvimento dos menores, é que deverão pesar na
decisão” (JÚNIOR, Enézio de Deus Silva. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a
Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 124, 127 e 137).
17 Nesse sentido, a posição de Viviane Girardi: “A questão do exercício de faculdade à paternidade por homossexuais, salvo
raras exceções, é quase sempre posta de forma maniqueísta, na base do tudo ou nada: ou é homossexual ou é pai, pois
esses atores não podem [para os que assim colocam] coexistir numa mesma pessoa. Revela-se dessa forma o
discriminem em relação à orientação sexual, já que todos os demais atributos do pai ou da mãe normalmente são
totalmente desconsiderados, fixando-se a (des)qualificação da paternidade única e exclusivamente na orientação sexual,
dispensando-se todo o potencial humano e os demais atributos afetivos que esta pessoa – pai ou mãe – poderia dar a uma
criança, daí o traço e a presença do preconceito e do estigma maior da homossexualidade” (GIRARDI, Viviane. Famílias
Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005, p. 89 – sem grifo no original).
18 Ibidem, p. 89 (sem grifos e destaques no original).
19 Costumam citar, por exemplo, o art. 29 do ECA, que afirma que “não se deferirá colocação em família substituta a pessoa
que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado”, e
mesmo o art. 43, que determina que a adoção deverá trazer reais vantagens ao adotando, em um posicionamento
inegavelmente preconceituoso, ante a ausência de provas e mesmo de lógica e racionalidade da argumentação no sentido
de que a criação de uma criança ou um adolescente por um casal homoafetivo lhe traria prejuízos.
20 Em tradução simples: “A Ausência de Diferenças entre Pais Gays/Lésbicas e Heterossexuais: Uma Retrospectiva da
Literatura”. O estudo foi localizado, em inglês, na internet, e está disponível
em: http://www.ibiblio.org/gaylaw/issue6/Mcneill.htm. Acesso em: 30 abr. 2008.
21 A saber (seguindo a ordem ali apresentada): (i) sobre casais homoafetivos formados por lésbicas: Strong & Schinfeld –
1984, Harris & Turner – 1986, Shavelson, Biaggio, Cross, & Lehman – 1980, Pagelow – 1980, Kweskin & Cook – 1982,
Green, Mandel, Hotvedt, Gray, & Smith – 1986, Peters & Cantrell – 1991, Patterson – 1995a, McNeill, Rienzi, & Kposowa –
1998; (ii) sobre casais homoafetivos formados por gays: Miller – 1979, Mallen – 1983, Skeen & Robinson – 1984, Bigner &
Jacobsen – 1989a, Bigner & Jacobsen – 1989b, Bigner & Jacobsen – 1992, Crosbie-Burnett & Helmbrect – 1993, Bailey,
Bobrow, Wolfe, & Mikach – 1995; (iii) sobre desenvolvimento de crianças de pais homossexuais e heterossexuais: Weeks,
Derdeyn, & Langman – 1975, Miller – 1979, Kirkpatrick, Smith, & Roy – 1981, Hoeffer – 1981, Miller, Jacobsen, & Bigner –
1982, Golombok, Spencer, & Rutter – 1983, Harris & Turner – 1986, Pennington – 1987, Bozett – 1988, Huggins – 1989,
Bailey, Bobrow, Wolfe, & Mikach – 1995, Flaks, Ficher, Masterpasqua, & Joseph – 1995, Patterson – 1995c, Tasker &
Golombok – 1995, Patterson & Mason, Chan, Raboy, & Patterson. Todos eles concluíram pela ausência de diferenças nas
pessoas criadas por casais homoafetivos em relação àquelas criadas por casais heteroafetivos por conta unicamente do
fato de terem sido criadas por um casal homoafetivo.
22 Cf. GIRARDI, Viviane. Familias Contemporáneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais,
1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 143 (sem grifos no original).
23 Nesse sentido, tem-se como clara e correta a exposição de Roger Raupp Rios: “O debate, nesse passo, põe em questão,
claramente, as pré-compreensões vigentes acerca da homossexualidade enquanto fenômeno da vida humana concreta.
Pisamos, portanto, no terreno dos conceitos e preconceitos que influem na solução da aludida colisão de princípios. Nesta
tarefa, o intérprete deve utilizar-se do atual estágio do desenvolvimento científico a respeito da homossexualidade,
investigando se suas conclusões dão guarida à ideia de que a homossexualidade seria um dado que, em si mesmo,
justificaria a opinião negativa sobre a adoção. (...) Exposto o estágio atual do debate científico a respeito da
homossexualidade, não há como justificar vedação, em princípio, da adoção de crianças por homossexuais. Isto porque,
enquanto modalidade de orientação sexual, não se reveste de caracteres de doença, morbidez, desvio ou anormalidade em
si mesma, não autorizando, portanto, a sustentação de uma ’regra geral’ impeditiva da adoção. Neste momento, gize-se que
a ausência de fundamentação racional não pode ser substituída, numa sociedade democrática e plural, pelo subjetivismo
de quem quer que seja, juiz, assistente social, médico ou psicólogo, dentre outros. Isto seria destruir a democracia, anular
as diferenças individuais e instituir o arbítrio de uns (mesmo que eventualmente majoritários) em face dos demais. Ao
contrário, o princípio da igualdade exige que homossexuais e heterossexuais tenham avaliadas, objetivamente, as
condições que oferecem para propiciar o melhor desenvolvimento possível para a personalidade da criança; para tanto,
como visto, não se pode considerar, por si só nem isoladamente, a orientação sexual do adotante. Conclui-se, portanto, que
a proibição de adoção fundada exclusivamente na homossexualidade revela ausência de fundamentação racional suficiente
para a imposição de um critério discriminatório, proceder que afronta, gravemente, o princípio constitucional da igualdade”
(RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001, p. 133,
139-140 – sem grifos no original).
24 “No estágio atual das normas jurídicas que disciplinam o instituto da adoção no Brasil, tem-se a possibilidade de ser
conferida a adoção de uma criança ou adolescente a um(a) adotante solteiro que seja homossexual na medida em que o
sistema legal não determina, expressamente, que a opção sexual do(s) adotante seja um requisito para a adoção”
(GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a
Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 130). Aponte-se, apenas, a impropriedade técnica de se referir
à orientação sexual como “opção”, o que é um equívoco (que, todavia, não altera o acerto da conclusão quanto à
possibilidade jurídica da adoção por homossexuais).
25 “Quanto à possibilidade de adoção conjunta por um casal homossexual, entende-se ser esta possível aos olhos da lei,
mediante a utilização de mecanismos jurídicos de interpretação somados ao contexto legal que estabelece a pluralidade
das formas de organização familiar. (...) Os diplomas legais representados pela Constituição Federal de 1988, o Código
Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, tidos estes como fontes formais do direito, considerados sob o enfoque de
uma interpretação integrada que lança mão das técnicas de interpretação teleológica lógico-sistematizada, somados ao
entendimento expresso pelos precedentes jurisprudenciais, estes também considerados fontes formadoras do direito, ainda
que o sejam de forma subsidiária, configuram-se como um instrumento normativo apto a possibilitar a concessão legal das
adoções de crianças e adolescentes também aos pares homossexuais”, reconhecidos como entidades familiares na
medida em que “se, para o direito, a família é instrumento de realização da pessoa humana por considerar que toda e
qualquer pessoa necessidade de relações de cunho afetivo para se desenvolver e viver seu projeto próprio de felicidade e,
porque para outras áreas do conhecimento, a família não se estabelece somente pelas formas convencionais de união,
parece ficar evidente a possibilidade de reconhecimento do status jurídico e de família às demais formas de organização
familiar, entre as quais a união entre pessoas do mesmo sexo”, pois “as demais características das entidades familiares,
além da presença da afetividade, são a estabilidade e a ostensibilidade da união, igualmente encontradas nas uniões
homossexuais” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 130, 133 e 138).
26 “Entende-se que a não concessão da adoção conjunta aos homossexuais pode, muitas vezes, interferir nos melhores
interesses da criança, pois a realidade social aponta para formação de um vínculo entre o adotando e o parceiro do
adotante. Mas tais situações reais não encontram proteção jurídica que assegure a manutenção ou reflexos jurídicos
oriundos desse vínculo afetivo formado pelo companheiro do adotante, em que pese a constatação na maioria dos casos,
analisados de vínculos emocionais fortes estabelecidos entre a criança e companheiro(a) do pai ou mãe adotante. Vínculos
afetivos estes que possuem a mesma natureza dos vínculos emocionais das relações entre pais e filhos heterossexuais”
(GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a
Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 148). No mesmo sentido, Enézio de Deus Silva Júnior (A
Possibilidade Jurídica da Adoção por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 130):
“Ante o poder-dever de despachar ou sentenciar, mesmo não havendo lei federal que regule a convivência homoessencial
no Brasil, os juízes têm se utilizado da analogia, como forma de integração desta lacuna, partindo de uma interpretação
teleológica”.
27 Utilizarei apenas o gênero masculino para me referir ao ascendente adotivo do menor em questão e seu ex-companheiro.
Mas é evidente que o quanto dito nesta parte equivale da mesma forma para casais homoafetivos formados por mulheres.
28 Isso porque o deferimento da adoção apenas a um membro do casal “retiraria da criança, também, o direito de vir pleitear
alimentos do consorte de seu pai ou mãe no caso de necessitar deles, na hipótese de ser o companheiro do(a) adotante o
mantenedor econômico da família, ou de algumas despesas específicas da criança/adolescente, como, por exemplo, os
custos com educação. No que diz respeito à ruptura ou dissolução da união existente entre o(a) adotante e seu
companheiro(a), poderia este último vir a reivindicar o direito de contato e convivência com a criança, entretanto, num
primeiro momento, esbarraria na ausência completa de base legal e vínculo familiar a permitir-lhe que um juízo ou tribunal
assegurasse tal direito” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção
por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 149).
29 “(...) a guarda judicial e a tutela, apesar de serem institutos jurídicos que visem a tutelar o bem-estar da criança, além de
não estabelecerem vínculos jurídicos permanentes e indissolúveis entre o guardião/tutor e a criança, deixam de abrigar
alguns direitos próprios do estatuto da filiação, como são os recíprocos direitos de sucessão e de alimentos. No que diz
respeito à ruptura ou dissolução da união existente entre o(a) adotante e seu companheiro(a), poderia este último vir a
reivindicar o direito de contato e convivência com a criança, entretanto, num primeiro momento, esbarraria na ausência
completa de base legal e vínculo familiar a permitir-lhe que um juízo ou tribunal assegurasse tal direito” (GIRARDI, Viviane.
Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 149).
30 “A sociedade brasileira atual, assim como a maioria das demais, também é integrada por famílias biparentais homoafetivas,
que educam crianças e adolescentes de modo informal ou à margem da aparente legalidade. Isso porque, apesar de o
ordenamento pátrio não vedar o pedido de adoção formulado, conjuntamente, por dois homossexuais, os preconceitos, a
limitação em não se considerar – mesmo analogicamente – a união homoessencial como estável, assim como
interpretações literais de expressões normativas, que não distinguem quanto à orientação sexual (‘cônjuges’ e ‘concubinos’,
por exemplo) têm gerado o indeferimento do referido pedido, impulsionando, via de consequência, o casal a decidir que
somente um dos companheiros adotará formalmente. (...) Neste particular, a hipocrisia ou incoerência maior reside em que,
sendo educado amorosamente pelos parceiros(as) socioafetivos(as), o menor considerará ambos como seus pais/mães,
sendo só um desses o(a) considerado(a) como tal. Destarte, além de serem preconceituosos e inúteis os argumentos de
que adoção pelo casal homossexual é prejudicial ao menor – em respectivo, por não se sustentarem cientificamente, nem
impedirem que o par eduque socialmente e em conjunto –, tais discursos subtraem da criança e do adolescente adotado ‘a
possibilidade de usufruir direitos que, de fato, possui – limitação que afronta a própria finalidade protetiva (...) decantada na
Carta Constitucional e perseguida pela lei especial’ [DIAS, p. 114]” (JÚNIOR, Enézio de Deus Silva. A Possibilidade Jurídica
de Adoção por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 122-123).
31 “Entre um lar material e afetivamente bem estruturado e a realidade excludente de um país concentrador de renda e de
graves desrespeitos aos direitos humanos (como ainda é o Brasil), aponta o bom-senso para a relevância de inserir um
menor em um seio familiar (independente de para que sexo se dirige a afetividade dos adotantes) – em detrimento de deixá-
lo despersonalizado (sem referencial afetivo de maternidade/paternidade) em uma instituição de amparo à criança e ao
adolescente. (...) Tal inserção, entretanto, se for dificultada por óbices preconceituosos, priva os menores abandonados do
seu direito constitucional à convivência familiar (CF, art. 227, caput), expondo-os mais à negligência, violência,
discriminação, exploração, crueldade e opressão sociais, das quais devem estar a salvo. Sendo ‘dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade’ e, se a colocação em uma família biparental homoafetiva
estável pode proporcionar a concretização de tais direitos, no processo de desenvolvimento do adotando, o indeferimento
do pedido de adoção, sob esta interpretação constitucional, constitui infração a um dos direitos fundamentais da criança e
do adolescente assegurados no ordenamento positivo. Na realidade, os riscos de insucesso na dinâmica familiar, com dois
pais ou duas mães socioafetivas, são os mesmos com relação ao casal de sexos diversos, pois o desequilíbrio emocional
e quaisquer defeitos de caráter, que possam comprometer o bem-estar do menor, independem da orientação afetiva dos
genitores (...). Assim, o deferimento da adoção a duas pessoas que se amam e que, juntas, desejam se dedicar à
educação de um menor vem-lhe [afrontar] ao menor interesse” (JÚNIOR, Enézio de Deus Silva. A Possibilidade Jurídica da
Adoção por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 125-126 – sem grifo no
original).
32 Com fundamentos diversos, é a mesma conclusão de Enézio de Deus Silva Júnior (A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 125-126), para quem “(...) a própria
experiência dos pais homossexuais, que educam crianças, demonstra a dosagem de amor e o diálogo franco sobre a
afetividade como os elementos preponderantes, para o enfrentamento de incidentes discriminatórios (tão presentes nas
suas próprias histórias de vida). Neste sentido, ‘os especialistas aconselham que, vivendo ou não ao lado dos filhos, pais e
mães falem abertamente de sua orientação sexual – sem entrar em minúcias, é claro, assim como os heterossexuais (...).
Quanto mais cedo a criança souber, mais fácil será para ela assimilar a notícia e encarar as manifestações
preconceituosas” (BUCHALLA, 2001, p. 68). Não inserir um menor abandonado em uma família homoafetiva é injustificável,
sob o insustentável argumento da discriminação que pode sofrer na sociedade, porque, apesar de essa ainda se mostrar
um tanto intolerante para com a homossexualidade, tudo dependerá da maneira como os pais educarão os seus filhos.
Além da importância de acompanhamento psicológico, caso seja necessário, é importante a reflexão comparativa de que,
mesmo sem compreensão em casa – na maioria dos casos, por conta dos preconceitos – e em dificuldades no âmbito da
discriminação externa, filhos homossexuais de famílias convencionais nem por isso deixam de se inserir socialmente ou
abrem mão da convivência familiar. É evidente que o peso da discriminação é bem maior nesta circunstância, mas o
preparo emocional, em todas essas possibilidades de conformação sociofamiliar, é que conta para uma vida digna, que se
impõe com respeito na sociedade, mesmo atrasada por prejulgamentos” (sem grifos no original).
33 E pelo próprio Direito, que lhe concede menos direitos do que aqueles concedidos aos cônjuges.
34 Item 122 da decisão. Tradução livre.
35 Item 119 da decisão. Tradução livre. Grifos nossos.
36 TJ/RS, Apelação Cível 70013801592, 7.a Câmara Cível, Relator Desembargador Luís Felipe Brasil Santos, julgada em
05.04.2006 – sem destaque no original.
37 Ementa: Adoção – Pedido efetuado por pessoa [homossexual] solteira com a concordância da mãe natural – Possibilidade
– Hipótese onde os relatórios social e psicológico comprovam condições morais e materiais da requerente – Circunstância
[homossexualidade] que, por si só, não impede a adoção que, no caso presente, constitui medida que atende aos
superiores interesses da criança, que já se encontra sob os cuidados da adotante há mais de 3 (três) anos – Recurso não
provido. (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível n. 51.111-0/5-00, Câmara Especial, Relator
Desembargador Oetterer Guedes com a participação dos Des. Djalma Lofrano e Yussef Cahali, votação unânime.
Julgamento realizado em 11/11/1999) (...) Não procede o inconformismo externado pelo digno Promotor de Justiça, que, a
despeito das conclusões favoráveis dos relatórios social e psicológico, pede o indeferimento do pedido de adoção
formulado somente em virtude da homossexualidade da requerente. (...) Conforme bem ressaltou a lúcida Procuradora de
Justiça oficiante, referindo-se à instrução do feito, as pessoas ouvidas discorreram sobre a relação entre a menina e a
apelada e entre esta e sua companheira em extensos depoimentos, dos quais depreende-se que: a relação entre a menina
e a requerente é de mãe e filha, com o reconhecimento desses papéis (inclusive uma das testemunhas é psicóloga), a
requerente tem conduta ilibada, tem seu próprio trabalho e casa e é bem vista pela comunidade onde reside e trabalha (...).
Conclui, corretamente, que a opção sexual [sic] da requerente, que no caso presente não interfere na educação a ser
ministrada à criança, não pode servir para, isoladamente, afastar a possibilidade da adoção. Entendimento diverso poderá
ser considerado discriminatório” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da
Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 82 – sem grifos no original).
38 Acrescento, apenas, que é evidente, por outro lado, que, se os laudos em questão forem pautados em subjetivismos e/ou
preconceitos dos técnicos em questão, deverá o magistrado deixar de aplicá-los, pautando-se pela compreensão da ciência
médica mundial a respeito.
39 Parafraseei e interpretei alguns trechos da sentença do magistrado, tendo, contudo (s.m.j.), sido fiel a suas ideias. Para
que não restem dúvidas a respeito, seguem os trechos fundamentais de sua sentença: “Sentença: Processo n. 97/1/03710-
8 (Juiz Dr. Siro Darlan; 1.ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, em 20/01/1998). (...) O pedido inicial deve ser
acolhido porque o Suplicante demonstrou reunir condições para o pleno exercício do encargo pleiteado, atestado esse fato
pela emissão da Declaração de Idoneidade para Adoção que se encontra às fls. 34 com o parecer favorável do Ministério
Público contra o qual não se insurgiu no prazo legal devido, fundando-se em motivos legítimos, de acordo com o Estudo
Social (fls. 15/16 e 49/52) e Parecer Psicológico (fls. 39/41), e apresenta reais vantagens para o Adotando, que vivia há 12
anos em estado de abandono familiar em instituição coletiva e hoje tem a possibilidade de conviver em ambiente familiar
(chama o Requerente de ‘pai’), estuda em colégio de conceituado nível de ensino religioso, o Colégio S. M. e frequenta um
psicanalista para que melhor possa se adequar à nova realidade de poder exercitar o direito do convício familiar que a
Constituição Federal assegura no art. 227. A Constituição da República assegura igualdade de todos perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, [donde] não admite o texto constitucional qualquer tipo de preconceito ou discriminação na
decisão judicial quando afirma que ‘ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política’, estando previsto ainda que ‘a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais’.Ora, não alegam os Fiscais qualquer norma impeditiva para o acolhimento do pleito inicial, ao contrário
manifestaram-se favoravelmente ao deferimento da Habilitação para Adoção cujo certificado instrui o pedido e a
manifestação contida às fls. 55/57 parece referir-se a pedido diverso do contido na peça exordial, eis que afirma que ‘o
ordenamento jurídico brasileiro não prevê o casamento de pessoas do mesmo sexo’, o que data venia não é matéria a ser
decidida por esse juízo, além de estar em franca contradição com os fatos e laudos da equipe interprofissional ao afirmar
que ‘não acredita que trará reais vantagens para o adotado’. Afirmam os expertos que ‘M. demonstra estar feliz com sua
inserção num contexto familiar. Os vínculos formados com o Sr. J. são de confiança e parecem estar permitindo o
desenvolvimento pleno do menino’ (Parecer psicológico, fls. 41) e, ‘o menino exibia boa aparência, expressando-se com
naturalidade, parecendo-nos estar recebendo os cuidados necessários ao seu desenvolvimento (Estudo Social, fls. 51) e,
ainda, o próprio adolescente afirma às fls. 44: ‘que agora tem um pai de nome J..., que está gostando de morar com seu
novo pai, que além de estudar brinca muito, que seu novo pai é professor de ciências, que quando seu pai está trabalhando
fica com a empregada, que deseja ser adotado’. Qual será então o conceito de ‘reais vantagens’ dos Ilustres Fiscais? Deve
ser muito diferente do que afirmam a Equipe Interprofissional e o próprio interessado, o adolescente, que prefere ver
acolhido o pedido que permanecer em uma instituição sem qualquer nova chance de ter uma família, abandonado até que
aos doze anos sofrerá nova rejeição já que não poderá mais permanecer no Educandário R.M.D., onde se encontra desde
que nasceu, e será transferido para outro estabelecimento de segregação e tratamento coletivo, sem qualquer chance de
desenvolver sua individualidade e sua cidadania, até que por força da evasão forçada ou espontânea poderá transformar-se
em mais um habitante das ruas e logradouros públicos com grandes chances de residir nas Escolas de Formação de
‘marginais’ em que se transformaram os atuais ‘Presídios de menores’ e, quem sabe, atingir ao posto máximo com ingresso
no Sistema Penitenciário? Será esse o critério de ‘reais vantagens’? A lei não acolhe razões que tem por fundamento o
preconceito e a discriminação, portanto o que a lei não proíbe não pode o intérprete inovar. Isto posto. Julgo Procedente o
pedido inicial para deferir, com fundamento no art. 39 da Lei 8.069/90 ao Requerente a adoção do adolescente, acima
qualificado, e passará a chamar-se M. C. P. M., filho de J. L. P. M., sendo avós paternos S. M. M. e D. P. R. (sem grifos e
destaques no original).
40 Seguem os trechos principais do acórdão: “Ementa: Adoção cumulada com destituição do pátrio poder. Alegação de ser
homossexual o adotante. Deferimento do pedido. Recurso do Ministério Público. 1. Havendo os pareceres de apoio
(psicológico e de estudos sociais) considerado que o adotado, agora com dez anos sente orgulho de ter um pai e uma
família, já que abandonado pelos genitores com um ano de idade, atende a adoção aos objetivos preconizados pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e desejados por toda a sociedade. 2. Sendo o adotante professor de ciências
de colégios religiosos, cujos padrões de conduta são rigidamente observados, e inexistindo óbice outro, também é a
adoção, a ele entregue, fator de formação moral, cultural e espiritual do adotado. 3. A afirmação de homossexualidade do
adotante, preferência individual constitucionalmente garantida, não pode servir de empecilho à adoção do menor, se não
demonstrada ou provada qualquer manifestação ofensiva ao decoro e capaz de deformar o caráter do adotado, por mestre
e cuja atuação é também entregue a formação moral e cultural de muitos outros jovens. Apelo improvido (TJ/RJ, Apelação
Cível 1998.001.14332, 9.ª Câmara Cível, Relator Desembargador Jorge de Miranda Magalhães. Julgamento realizado em
23.03.1999 – sem grifos no original). Trecho do inteiro teor: “Como se vê do Relatório, insurge-se o Ministério Público contra
a sentença que deferiu ao apelado a adoção de menor, com dez anos de idade, alegando-se que a entidade familiar,
constitucionalmente garantida, não enseja a adoção, e que o fato de o adotado passar a conviver com dois homens
homossexuais poder prejudicar-lhe a formação de caráter e personalidade. O Ministério Público, neste Tribunal em seu bem
lançado parecer de fls. 82, afirmou: ‘ao nosso sentir, e do ponto de vista jurídico, entendemos que é permissível tudo aquilo
que a lei não veda... O problema do menor abandonado é dos mais angustiantes da sociedade moderna... Desse estado,
quase sempre caótico de coisas, resulta a imensa falange de menores que passam a infância e adolescência em
instituições desprovidas de meios.’ Mas também se preocupa com as dúvidas sobre a influência, mesmo involuntária do
adotante sobre o menor em relação ao seu comportamento afetivo. O quadro é, realmente, eivado de dúvidas e problemas,
mas entendemos que a sentença está correta.Como afirma seu ilustre prolator, o talentoso Juiz Siro Darlan, a fls. 59:
‘Afirmam os expertos que ‘M. demonstra estar feliz com sua inserção num contexto familiar. Os vínculos formados com o
Sr. J. são de confiança e parecem estar permitindo o desenvolvimento pleno do menino’ (Parecer psicológico, fls. 41) e, ‘o
menino exibia boa aparência, expressando-se com naturalidade, parecendo-nos estar recebendo os cuidados necessários
ao seu desenvolvimento (Estudo Social, fls. 51)...’Percebe-se que sua experiência de anos à frente do juizado, e a
observação pessoal do caso ditou sua decisão, que nos parece ponderável. Será preferível, a nosso juízo, correr o risco da
dúvida, a deixar o adotado em uma instituição de abandonados, já agora afastado e arrancado de uma adoção que tanto
orgulho e alegria lhe causam, o que, sem duvida, passará a ser razão de revolta, para ele? Rompê-la para depois
encaminhá-lo a uma escola de delinquência, como acontecerá aos seus doze anos, no Educandário R.D., é muito mais
indigno e aterrorizante do que confiar na competência dos técnicos que emitiram os pareceres favoráveis e manter a
decisão que o entregou a uma adoção ‘cujas desconfianças e suspeitas parecem não haver considerado a realidade e as
circunstâncias do fato, além de, d.v., fundadas em preconceitos que a lei veda’. Tais são as razões pelas quais se mantém
a bem a elaborada decisão” (sem grifo e destaques no original).
41 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 2.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2001, p. 275.
42 Novamente, parafraseei e interpretei o trecho em questão, cujo teor literal é o seguinte: “Deixar uma criança desde o
nascimento entregue à solidão dos orfanatos, sem ninguém para estancar-lhe o pranto na hora da dor ou do medo, entregá-
lo ao desprezo público ao completar 18 anos, até que ela ceda ao clima da tentação e acabe aumentando a população
carcerária. Pouca coisa é necessária para transformar inteiramente uma vida. Há tantas pessoas que ainda são más,
porque até agora não foram suficientemente amadas. Não se pode abafar o clamor de milhares de crianças pedindo um lar.
Melhor seria que não existissem crianças abandonadas, mas se existem e podemos diminuir o sofrimento de algumas,
devemos permitir que a caridade social determine a justiça a ser aplicada ao caso” (ibidem, p. 275).
43 Itens 108 a 110 da decisão. Tradução livre. Grifo nosso.
44 Item 119 da decisão. Grifos nossos. Tradução livre.
45 Itens 121 e 122 da decisão. Tradução livre.
46 TEDH, caso Karner vs. Austria (n.º 40016/98). Nota do original.
47 TEDH, caso E.B. vs Francia (n.º 43546/02). Nota do original.
48 Itens 124 e 125 da decisão. Tradução livre.
49 “Cfr. T.E.D.H., Caso Laskey, Jaggard y Brown Vs. Reino Unido, (No. 21627/93; 21826/93; 21974/93), Sentença de 19 de
fevereiro de 1997, par. 36 (“Não pode haver dúvida de que a orientação sexual e a atividade [respectiva] concernem a um
aspecto íntimo da vida privada”). Ver também o Caso Dudgeon Vs. Reino Unido, (No. 7525/76), Sentença de 22 de outubro
de 1981, par. 52, e o Caso A.D.T. Vs. Reino Unido, (No. 35765/97), Sentença de 31 de Julho de 2000. Final, 31 de outubro
de 2000, par. 23 (“a Corte relembra que a mera existência de legislação proibindo a conduta de homens homossexuais no
âmbito privado pode afetar direta e continuamente a vida privada das pessoas”)”. Nota do original (traduções livres).
50 “Cfr. Declaração escrita entregue pelo perito Robert Wintemute em 16 de setembro de 2011 (expediente de fundo, tomo XI,
folha 5360). Assim mesmo, assinalou a Suprema Corte do Canadá no Caso Egan v. Canadá que “[a] orientação sexual é
mais do que simplesmente um ‘status’ que um indivíduo possui: ela é demonstrada por meio da conduta de um indivíduo na
eleição de seu(ua) parceiro(a). Justamente pela Carta [Canadense de Direitos e Liberdades] proteger as crenças religiosas
e a prática religiosa como aspectos da liberdade de religião, assim também deveria reconhecer​-se que a orientação sexual
abarca aspectos de ‘status’ e ‘conduta’ e que ambos deveriam receber proteção’ Egan v. Canada, [1995] 2 SCR, 513, 518
(expediente de fundo, tomo XI, folha 5360)”. Nota do original (traduções livres).
51 “Cfr. T.E.D.H., Caso Pretty Vs. Reino Unido (No. 2346/02), Sentença de 29 de abril de 2002. Final, 29 de julho de 2002, par.
61 (‘o conceito de ‘vida privada’ é amplo e insuscetível de definição exaustiva. Ele cobre a integridade física e psicológica de
uma pessoa. […] Ele pode algumas vezes abarcar aspectos de uma identidade física e social do indivíduo. […] Elementos
tais como, por exemplo, identidade de gênero, nome, orientação sexual e vida sexual caem dentro da esfera pessoal
protegida pelo Artigo 8o. […] O Artigo 8o também protégé um direito ao desenvolvimento pessoal, e o direito a estabelecer e
desenvolver relacionamentos com outros seres humanos e o mundo externo. […]. Embora nenhum caso prévio tenha
estabelecido como tal qualquer direito à autodeterminação como contido no Artigo 8o da Convenção, a Corte considera que
a noção de autonomia pessoal é um princípio importante subjacente à interpretação de suas garantias’); Caso Schalk y
Kopf Vs. Austria, (No. 30141/04), Sentença de 24 de junho de 2010, 22 de novembro de 2010, par. 90 (‘Não se disputa (...)
que o relacionamento um casal do mesmo sexo como os requerentes se enquadram na noção de (...) vida privada (...) do
Artigo 8o’); Caso Dudgeon, supra nota 156, parr. 41 (‘a manutenção em vigência da legislação impugnada constitui uma
contínua interferência no direito do requerente ao respeito à sua vida privada (que inclui a vida sexual dele) dentro do
significado do Art. 8, par. 1o’); Caso Burghartz Vs. Suiza, (No. 16213/90), Sentença de 22 de fevereiro de 1994, parr. 24, e
Caso Laskey, Jaggard y Brown, supra nota 156, parr. 36”. Nota do original (traduções livres).
52 “Cfr. T.E.D.H., Caso Peck Vs. Reino Unido, (No. 44647/98), Sentença de 28 de janeiro de 2003. Final, 28 de abril de 2003,
par. 57 (‘[O direito à] Vida privada é ampl[o] e não é suscetível de definição exaustiva. A Corte já decidiu que elementos tais
como identidade de gênero, nome, orientação sexual e vida sexual são elementos importantes da esfera pessoal protegida
pelo Artigo 8o. Aquele Artigo também protege um direito à identidade e ao desenvolvimento pessoal, o direito à estabelecer e
desenvolver relacionamentos com outros seres humanos e com o mundo externo e pode incluir atividades de natureza
profissional ou negocial. Há, portanto, uma zona de interação de uma pessoa que outros, mesmo em um contexto público,
que podem se incluir no escopo [do direito à] vida privada’), citando T.E.D.H., Caso P.G. y J.H. Vs. Reino Unido (No.
44787/98), Sentença de 25 de setembro de 2001. Final 25 de dezembro de 2001, par. 56. Cfr. T.E.D.H., Caso Niemietz Vs.
Alemania, (No. 13710/88), Sentença de 16 de dezembro de 1992, par. 29 (‘A Corte não considera possível ou necessário
tentar elaborar uma definição exaustiva da noção de ‘vida privada’. Contudo, seria também muito restritivo limitar a noção a
um ‘círculo interior’ [inner circle] no qual o indivíduo possa viver sua própria vida pessoal como ele escolher e excluir dali
totalmente o mundo externo não incluído nesse círculo. O respeito à vida privada deve também abranger em certo grau o
direito a estabelecer e desenvolver relacionamentos com outros seres humanos. Ademais, não parece haver razão de
princípio para que esse entendimento da noção de ‘vida privada’ deveria excluir atividades de natureza profissional ou
negocial porque é, afinal, no curso de suas vidas profissionais que a maioria das pessoas têm uma significativa, senão a
maior, oportunidade de desenvolverem relacionamentos com o mundo externo’). Nota do original (traduções livres).
53 “Mutatis mutandi, Caso Chaparro Álvarez y Lapo Íñiguez. Vs. Ecuador. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentença de 21 de novembro de 2007. Série C No. 170, par. 52” (nota do original).
54 “Corte Constitucional da Colômbia, Sentença T-499 de 2003. A Corte Constitucional definiu o direito ao livre
desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 16 da Constituição Política da Colômbia, como o direito das
pessoas a ‘optar por seu plano de vida e desenvolver sua personalidade conforme seus interesses, desejos e convicções,
sempre e quando não afetem direitos de terceiros, nem vulnerem a ordem constitucional’ (Corte Constitucional, Sentencia
C-309 de 1997), y ‘a capacidade das pessoas para definir, de forma autônoma, as opções vitais que irão guiar o curso de
sua existência’ (Corte Constitucional, Sentença SU-642 de 1998)”. Nota do original (traduções livres).
55 “Suprema Corte de Justiça da Nação do México, Ação de inconstitucionalidade A.I. 2/2010, 16 de agosto de 2010, pars. 263
e 264”. Nota do original (tradução livre).
56 Itens 133 e 134 da decisão. Tradução livre.
57 “Cfr. T.E.D.H., Caso Clift, supra nota 101, párr. 57 (‘a Corte considerou constituir ‘outros status’ características as quais,
assim como nos casos dos exemplos específicos listados no Artigo, se pode dizer serem pessoais no sentido que elas são
inatas ou inerentes. Portanto em Salgueiro da Silva Mouta, […] ela considerou que a orientação sexual era ‘indubitavelmente
coberta pelo Artigo 14’)”. Nota do original (tradução livre).
58 “Cfr. T.E.D.H., Caso M. y C. Vs. Rumania, (No. 29032/04), Sentença de 27 de setembro de 2011. Final, 27 de dezembro de
2011, par. 147, e Caso Palau-Martinez, supra nota 125, aonde o Tribunal Europeu estabeleceu que uma decisão judicial
sobre a entrega da custódia de menores de idade a uma instituição estatal não deve levar em conta em abstrato os
possíveis efeitos de uma determinada condição dos pais sobre o bem-estar do menos de idade quando dita condição se
encontra protegida contra tratamentos discriminatórios”. Nota do original (tradução livre).
59 Item 127 da decisão. Tradução livre. Grifo nosso.
60 “Cfr. declaração entregue pelo perito Rodrigo Uprimny na audiência pública realizada em 23 de agosto de 2011, fazendo
referência a: Associação Americana de Psicologia, Policy Statement on Sexual Orientation, Parents, & Children, Adotada
pela APA Council of Representatives em 287 de Julho de 2004. (‘Não existem provas científicas de que a efetividade parental
esteja relacionada com a orientação sexual dos progenitores: as mães e os pais homossexuais são tão propensos como
as mães e os pais heterossexuais a proporcionar um entorno são e propício para seus filhos [e...] a ciência tem
demonstrado que a adaptação, o desenvolvimento e o bem-estar psicológico das crianças não estão relacionados com a
orientação sexual dos progenitores, e que os filhos de pais homossexuais têm as mesmas probabilidades de desenvolver-
se que os de pais heterossexuais’. Disponível em: http://www.apa.org/about/governance/council/policy/parenting.aspx
(última visita em 19 de fevereiro de 2012). Da mesma forma, ver a declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow
em 16 de setembro de 2011, mencionando os seguintes estudos: R. McNair, D. Dempsey, S. Wise, A. Perlesz, Lesbian
Parenting: Issues Strengths and Challenges [Parentalidade Lésbica: Temas que Fortalecem e Desafios], em: Family Matters
Vol. 63, 2002, Pág. 40; A. Brewaeys, I. Ponjaert, E.V. Van Hall, S. Golombok, Donor insemination: child development and
family functioning in lesbian mother families [Inseminação artificial: desenvolvimento e funcionamento familiar em famílias de
mães lésbicas], em: Human Reproduction Vol. 12, 1997, Pág. 1349 y 1350; Fiona Tasker, Susan Golombok, Adults Raised
as Children in Lesbian Families [Adultos Criados como Crianças em Famílias Lésbicas], American Journal Orthopsychiatry
Vol. 65, 1995, Pág. 203; K. Vanfraussen, I. Ponjaert-Kristofferson, A. Breways, Familiy Functioning in Lesbian Families
Created by Donor Insemination [Funcionamento Familiar em Famílias Lésbicas criadas por Inseminação Artificial], em:
American Journal of Orthopsychiatry Vol. 73, 2003, Pág. 78; Marina Rupp, The living conditions of children in same-sex civil
partnerships [As condições vivas de crianças em parcerias civis do mesmo sexo], Ministerio Federal de Justiça da
Alemanha, 2009, Pág. 27; Henry M.W. Bos, Frank van Balen, Dymphna C. van den Boom, Experience of parenthood, couple
relationship, social support, and child-rearing goals in planned lesbian mother families [Experiência de parentalidade,
relacionamento conjugal, apoio social e objetivos na criação de crianças em famílias de mães lésbicas], em: Journal of
Child Psychology and Psychiatry Vol. 45, 2004, Pág. 755; Rafael Portugal Fernandez, Alberto Arauxo Vilar, Aportaciones
desde la salud mental a la teoría de la adopción en parejas homosexuales [Aportes desde a saúde mental à teoria da
adoção por pares homossexuais], em: Avances en salud mental relacional Vol. 3, 2004. Neste estudo se indica que
‘tampouco se encontram diferenças significativas entre homossexuais e heterossexuais relativamente à qualidade com que
exercem sua função como pais’ e que ‘a investigação realizada até o momento assinala de maneira unânime que não há
diferenças significativas entre os filhos criados por homossexuais e os filhos criados por heterossexuais em termos de
identidade sexual, tipificação sexual, orientação sexual, relações sexuais com companheiros e adultos, relações de
amizade, popularidade’; Stéphane Nadaud, «Quelques repères pour comprendre la question homoparentale» [Alguns
aportes para compreender a questão homoparental], em: M. Gross, Homoparentalités, état des lieux, Ed. érès «La vie de
l’enfant», Toulouse, 2005, y Fiona Tasker, Susan Golombok, Adults Raised as Children in Lesbian Families, en: American
Journal Orthopsychiatry Vol. 65, 1995, Pág. 203. Cfr. declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow de 16 de
setembro de 2011 (expediente de fundo, tomo XI, folhas 5079 e 5080)”. Nota do original (traduções livres).
61 “Cfr. declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow em 16 de setembro de 2011, mencionando os casos Re K and
B and Six Other Applications, Suprema Corte de Ontario, 24 de maio de 1995, par. 89; Boots v. Sharrow, Suprema Corte de
Justiça de Ontario, 2004 Can LII 5031, 7 de janeiro de 2004; Bubis v. Jones, Suprema Corte de Ontario, 2000 Can LII 22571,
10 de abril de 2000, Superior Tribunal de Justiça (Brasil), Ministério Público do Estado de Rio Grande do Sul v. LMGB, 27 de
abril de 2010, e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Brasil), Adopción de VLN, No. 1605872, 3 de julho de 2006. Cfr.
declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow de 16 de setembro de 2011 (expediente de fundo, tomo XI, folhas
5082 e 5083)”. Nota do original (tradução livre).
62 “Cfr. Declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow em 16 de setembro de 2011 na qual se cita: Relatório de Amici
Curiae apresentado pela Associação Americana de Psicologia, Associação de Psicologia do Arkansas, Associação de
Assistentes Sociais e Associação Nacional de Assistentes Sociais, Capítulo do Arkansas, em Department of Human
Services v. Matthew Howard, Suprema Corte de Arkansas (Dezembro de 2005), nas páginas 10-11 (‘A Associação
Americana de Psicologia descreveu os estudos como ‘impressionantemente consistentes em sua falha em identificar
quaisquer déficits no desenvolvimento de crianças criadas em lares lésbicos ou gays (...) as habilidades de pessoas gays e
lésbicas como pais e o resultado positivo para seus filhos não são áreas nas quais pesquisadores científicos de
credibilidade discordam’. Cfr. declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow em 16 de setembro de 2011
(expediente de fundo, tomo XI, folha 5081)”. Nota do original (tradução livre).
63 Item 128 da decisão. Tradução livre.
Capítulo 17

DO DIREITO COMPARADO

“O direito é invadido pelos fatos, pela realidade das ruas, que o obriga a reformular-se,
reconhecendo a existência de espaços por ele não abrangidos, ainda que buscando garantir
sua própria sobrevivência e preservar os parâmetros em que se encontra organizado, tentando
evitar uma fratura entre as duas esferas (direito posto e direito vivido)”. – Carmem Lúcia
Silveira Ramos.1

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A questão dos direitos dos casais homoafetivos é assunto corrente em todas as partes do mundo. Não
se trata de questão tratada exclusivamente em determinado grupo de países, mas de tema recorrente em
pelo menos todos os países que tornaram a política independente da religião.
Nesta parte do trabalho será exposto o tratamento dado às uniões homoafetivas ao redor do mundo,
sendo dada ênfase àqueles países que efetivamente reconheceram expressamente direitos a ditos casais.
Dessa forma, adotando-se a classificação elaborada por Maria Berenice Dias, podem ser classificados
os países do mundo com relação ao tratamento que conferem aos casais homossexuais, quais sejam:

1) os de extrema repressão;
2) os de modelo intermediário; e
3) os de modelo expandido.

1.1 Países de extrema repressão às uniões homoafetivas


No primeiro bloco encontram-se os países que não admitem em sua legislação que duas pessoas do
mesmo sexo mantenham entre si um relacionamento amoroso, conferindo punições criminais, inclusive a
de morte, àqueles que desobedecem este mandamento legal.
Encontram-se neste bloco os países islâmicos (embora não apenas eles), que têm uma estrutura
teocrática de governo – ou seja, em que a política é dirigida pela religião. Nos países teocráticos e
mesmo nos confessionais (em que a política é influenciada pela religião), usualmente ocorre violenta
repressão aos homossexuais, uma vez que a interpretação que normalmente os líderes religiosos dão a
seus livros sagrados é a de que Deus seria contrário à união amorosa entre pessoas do mesmo sexo. Em
tais países, conforme citado, a homossexualidade é até mesmo criminalizada, não havendo ainda espaço
para o reconhecimento dos direitos de seus cidadãos homossexuais no presente momento, o que só
ocorrerá quando a sabedoria divina que tanto dizem seguir iluminar o pensamento daqueles povos para
que comecem a respeitar a diversidade humana, quando finalmente deixarão de considerar o amor por
pessoas do mesmo sexo como um ato ilícito.
Aliás, tais países seguramente são os principais responsáveis pela elaboração dos Princípios de
Yogyakarta, que visam combater a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, no
sentido de que os países do mundo deixem de perpetrar tais discriminações mediante a garantia da série
de direitos ali especificados2, que nada mais são do que aplicações dos diretos humanos fundamentais às
pessoas independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Deve-se ressaltar que o
simples fato de se ter tido a necessidade de enunciar os direitos (nominados como princípios) constantes
de dita declaração demonstra o quanto homossexuais, bissexuais e transexuais são desrespeitados mundo
afora, razão pela qual não se afigura desnecessária tal declaração – ao contrário, veio em muito boa hora,
para apontar ao mundo que este deve respeitar as pessoas independentemente de suas orientações sexuais
ou identidades de gênero; ou seja, que deve respeitar todas as orientações sexuais e identidades de
gênero.

1.2 Do bloco intermediário


Nos países do bloco intermediário há a descriminalização da união homoafetiva, todavia inexiste da
mesma forma uma regulamentação a respeito, pairando um vazio legislativo a respeito do tema. Em
outras palavras, a união amorosa entre duas pessoas do mesmo sexo não é mais punida pelo ordenamento
jurídico desses países, sendo em muitos deles consagrado o princípio da não discriminação, sem,
entretanto, haver disposições expressas acerca das uniões homossexuais.
Assim, nesses países (entre eles o Brasil3) o assunto permanece em discussão nas Casas Legislativas
para que sejam elaboradas leis específicas disciplinando os efeitos jurídicos a serem conferidos às
uniões homoafetivas. Essa situação, que deixa os casais homoafetivos em situação de desamparo
jurídico, acaba sendo decidida pelo Poder Judiciário desses Estados, que terminam por reconhecer
alguns efeitos jurídicos a partir de regras de hermenêutica, tais como a interpretação extensiva e a
analogia, como decorrência da isonomia e a dignidade humana.
No caso brasileiro, a concessão de direitos pelo Judiciário se justifica em razão de o art. 4.º da
LINDB estabelecer que, “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais de direito”, além do análogo art. 126 do CPC. Assim, deparando-se o
juiz brasileiro com a demanda de um casal homoafetivo que pleiteia por seus direitos não expressamente
reconhecidos pelo ordenamento jurídico, não pode ele indeferir a petição inicial sob o argumento de que
inexiste legislação pátria a respeito. Deve ele, a partir da analogia, dos costumes e dos princípios gerais
do Direito, decidir a questão, daí já terem sido conferidos alguns direitos às uniões homoafetivas
brasileiras.
Não se pode deixar de reconhecer que os efeitos jurídicos obtidos até o presente momento por nosso
ordenamento jurídico se assemelham em muito àqueles outrora reconhecidos ao então denominado
concubinato puro, que era a definição que se dava à atual união estável constitucionalmente consagrada
pelo art. 226, § 3.º, da CF/1988. Isso porque, como o casamento civil era para o CC/1916 a única forma
de formar a família “legítima”, a união não eventual entre duas pessoas não impedidas de se casar
configurava concubinato, não sendo a elas reconhecidos os efeitos jurídico-familiares do Direito de
Família, tal como parte dominante da doutrina e da jurisprudência fazem atualmente com a união
homoafetiva.
Um caso a ser destacado é a decisão da Suprema Corte do Havaí a respeito de uma ação promovida
por três casais homossexuais que processaram o Estado por ter-lhes negado a licença para o casamento.
Decidiu a Suprema Corte Havaiana (em 1993) que a negativa da licença aos casais homoafetivos
configura discriminação arbitrária, que afronta o princípio da isonomia (denominado naquele país de
equal protection doctrine, que, em tradução livre, significa “doutrina da igual proteção”, o que equivale
ao nosso preceito isonômico), tendo em vista a inexistência de motivação racional que a justificasse4.
Dita decisão acabou por obrigar o Tribunal inferior, que havia negado provimento ao recurso, a proferir
nova decisão em que foi concedida a licença de casamento para os casais autores.
Essa decisão estadual é um marco jurídico na defesa dos direitos de casais homoafetivos5, pois
reconhece que a discriminação destes unicamente devido à orientação sexual do par afronta o princípio
da igualdade, visto inexistir fundamento lógico-racional que a justifique ante o critério desigualador
erigido (qual seja a orientação sexual do par). É verdade que, não muito tempo depois, em 1996, foi
promulgada uma lei federal pelo então Presidente Bill Clinton, conhecida por Act of Defense of
Marriage (“Ato de Defesa do Casamento”), em que se declarou que para a Federação Estadunidense o
casamento civil seria o ato realizado somente entre o homem e a mulher, não sendo os Estados-Membros
que não admitem o casamento civil homoafetivo obrigados a reconhecer aqueles celebrados por outros
Estados. Tal posicionamento foi reiterado ostensivamente pelo Presidente George W. Bush, reeleito em
2004, que declarou em cadeia nacional que (para ele) o casamento (civil) somente poderia ser realizado
por pessoas de sexos diversos e que pretendia aprovar uma emenda constitucional que deixe isso
expresso (ele efetivamente tentou no ano de 2006, mas não conseguiu os votos necessários do Senado
Estadunidense para conseguir aprovar dita emenda constitucional). Na verdade George W. Bush fez sua
campanha apoiada nos setores mais conservadores da sociedade estadunidense, o que acabou surtindo
efeito devido ao fato de ter conseguido sua reeleição. No caso específico das uniões homoafetivas, sua
campanha obteve o resultado esperado: em todos os Estados que realizaram votação no sentido de
quererem ou não suas populações a legalização da união homoafetiva, a resposta foi a mesma: não.
Em que pese o viés político sofrido pela militância homossexual estadunidense nesse sentido, há em
verdade dois pontos positivos que merecem ser destacados: primeiramente, destaca-se que a
Constituição dos Estados Unidos não restringe o casamento civil apenas às uniões heterossexuais,
estando esse assunto em aberto naquele diploma constitucional – tanto o é que dito presidente demonstrou
interesse na aprovação de emenda constitucional para que isso ocorresse. Em segundo lugar, esse
posicionamento foi tomado pelo Poder Legislativo, que elaborou a citada lei, e pelo Presidente da
República, membro do Poder Executivo, que sancionou a lei, e não pelo Poder Judiciário. Em outras
palavras, tratou-se de decisão puramente política, que não considerou o ordenamento jurídico daquele
país para ser tomada. O que se quer dizer é que pode perfeitamente a Suprema Corte Estadunidense, da
mesma forma que fez a havaiana, declarar a inconstitucionalidade da discriminação das uniões
homoafetivas em relação às heteroafetivas decorrente desse “Ato de Defesa do Casamento”, por afronta
ao preceito isonômico, assim como de eventual emenda constitucional aprovada pelo Poder Constituinte
Derivado (ao menos no sistema brasileiro isso é possível).
Pode-se dizer, portanto, que nos países de modelo intermediário dependem os casais homoafetivos
de decisão do Poder Judiciário para que tenham seus direitos resguardados, até que sejam reconhecidos
expressamente seus direitos pelo Poder Legislativo desses Estados. Isso não quer dizer que seja
impossível juridicamente o casamento civil entre duas pessoas do mesmo sexo nesses países, mas apenas
que o Poder Judiciário destes deve isto declarar quando provocado pelos interessados, uma vez que a
interpretação corrente que se dá ao matrimônio civil nesses Estados é a de que ele só poderia ser
realizado por heterossexuais, o que configura afronta aos princípios da igualdade, da dignidade da
pessoa humana, da promoção do bem-estar de todos, da pluralidade, da laicidade e da liberdade de
consciência, por tudo o que já se expôs neste trabalho. Aponte-se, ainda, que foi por meio de ações
judiciais que chegaram a suas Supremas Cortes que a África do Sul, o Canadá e o Estado de
Massachusetts/EUA conseguiram a aprovação do casamento civil homoafetivo. Isso porque, após a
declaração da inconstitucionalidade da proibição deste, os Tribunais impuseram aos Legislativos a
elaboração das leis respectivas, que foram aprovadas, permitindo-o expressamente.
Cabe, ainda, transcrever o longo relato apresentado na Representação visando à impetração de
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para o reconhecimento da união estável
homoafetiva6, por altamente elucidativo da posição do Direito Comparado a respeito do tema das uniões
homoafetivas:

No Canadá, a jurisprudência da Suprema Corte reconheceu, no julgamento do caso M. v. H.7,


que a norma que permitia a concessão de alimentos a parceiros em uniões estáveis entre pessoas de
sexo oposto, mas não estendia a possibilidade a companheiros do mesmo sexo, era inconstitucional,
por violar o direito à igualdade.
Invocado este precedente, várias Cortes estaduais proferiram decisões declarando que a
definição de casamento existente na common law canadense, que circunscrevia a instituição às
relações entre homem e mulher, violaria também o princípio da igualdade, por discriminar
injustificadamente os homossexuais.
O mais conhecido e importante destes precedentes foi o caso Halpern v. Attorney General of
Canadá8, julgado em 2003 pela Corte de Apelações de Ontário. Neste julgamento, depois de
reconhecer a importância do casamento para os cônjuges, não apenas pelos benefícios que envolve,
mas por representar “uma expressão de reconhecimento público da sociedade das expressões de
amor e compromisso entre indivíduos, conferindo a elas respeito e legitimidade”, o Tribunal
canadense afirmou que a exclusão das uniões homossexuais do âmbito da instituição representaria
discriminação motivada por orientação sexual, constitucionalmente vedada.
Provocado por esta e outras decisões judiciais, o Parlamento aprovou, em 2003, nova
legislação estendendo o casamento às pessoas do mesmo sexo em todo o país. Mas antes que a lei
entrasse em vigor, ele consultou a Suprema Corte, solicitando que esta se manifestasse sobre a
constitucionalidade da medida (a jurisdição constitucional canadense contempla esta hipótese de
consulta prévia).
A resposta da Corte, proferida em Reference re Same-Sex Marriage9 foi afirmativa. Segundo o
tribunal, o projeto de lei em questão não apenas não violava a Constituição, como antes derivava
diretamente do direito à igualdade na Carta Canadense de Direitos e Liberdades, que integra o bloco
de constitucionalidade daquele país.
Já na Hungria, a instituição de união entre pessoas do mesmo sexo decorreu de uma decisão do
seu Tribunal Constitucional. A Corte Húngara – certamente o mais respeitado tribunal constitucional
da Europa Oriental – rejeitou, em 1995, a alegação de que haveria violação aos princípios da
igualdade e dignidade humana na não extensão do casamento aos casais homossexuais. Todavia, em
relação à união estável, ela afirmou que “uma união de vida duradoura entre duas pessoas encerra
valores que devem ser legalmente reconhecidos com base na igual dignidade das pessoas
afetadas, sendo irrelevante o sexo dos companheiros”10.
Com base neste entendimento, a Corte Constitucional da Hungria reconheceu a
inconstitucionalidade da não extensão da união estável aos casais formados por pessoas do mesmo
sexo11. Na sua decisão, ela estabeleceu algumas possibilidades através das quais o legislador
poderia alterar as normas vigentes, de modo a torná-las compatíveis com a Constituição, o que veio
a fazer em 1996.
Também em Israel, o Poder Judiciário desempenhou um papel essencial no reconhecimento da
união entre pessoas do mesmo sexo, que é hoje aceita pela common law do país. A decisão seminal
na matéria foi o caso El-Al Israel Airlines v. Danilowitz12, julgado em 1994, no qual a Suprema
Corte decidiu que constituía discriminação vedada a prática de uma companhia aérea, que concedia
determinados benefícios aos parceiros do sexo oposto dos seus funcionários, mas não a estendia aos
companheiros do mesmo sexo.
Na decisão, redigida pelo Presidente da Corte Aharon Barak, foi formulada e respondida a
questão essencial da controvérsia sobre as uniões homossexuais: “A parceria entre pessoas do
mesmo sexo difere em termos de parceria, fraternidade e administração da cédula social em
relação à parceria entre pessoas de sexo diferente?”. A resposta do Chief Justice foi taxativa: “A
diferença estabelecida entre as parcerias de pessoas de sexo diferente e pessoas do mesmo sexo é
uma explícita e descarada discriminação”.
Nos Estados Unidos, por sua vez, os avanços que ocorreram nesta matéria deram​-se sobretudo
no plano do constitucionalismo estadual. Até porque, até o julgamento do caso Lawrence v. Texas13,
em 2003, a Suprema Corte entendia que nem mesmo a criminalização das práticas homossexuais
violava a Constituição14.
A primeira decisão importante foi a proferida pela Suprema Corte do Estado do Havaí, no ano
de 1996, em Nina Baehr and Genora Dancel et al. v. John C. Lewin15. Neste julgamento, a partir da
constatação de que o direito ao casamento é um direito fundamental, considerou-se que a sua não
extensão aos homossexuais que pretendessem casar-se com pessoas do mesmo sexo importava em
violação ao princípio da igualdade, tal como plasmado pela Constituição Estadual.
Não obstante, tal decisão provocou uma forte reação contrária, que levou a aprovação de uma
emenda à Constituição do Havaí, em 1998, que permitiu expressamente ao legislador que excluísse,
do âmbito do casamento, as uniões entre pessoas do mesmo sexo. O legislador de fato extinguiu o
casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas adotou solução compromissária, instituindo a figura
dos ‘beneficiários recíprocos’ (reciprocal beneficiaries), que confere uma série de direitos e
obrigações para os parceiros do mesmo sexo.
Também no Alaska, a Suprema Corte estadual reconheceu a inconstitucionalidade da não
extensão do direito ao casamento aos casais formados por pessoas do mesmo sexo16. Contudo, a
conquista não durou muito tempo, pois a população daquele Estado aprovou, em plebiscito, emenda
à Constituição que definiu o casamento como união entre homem e mulher, visando a reverter aquele
precedente.
Já no Estado de Vermont, a Suprema Corte Estadual decidiu em 1999 o caso Baker x. State17,
reconhecendo a ocorrência de discriminação atentatória contra a Constituição Estadual na negação
do direito ao casamento aos casais homossexuais. Nas palavras da Corte, “a Constituição de
Vermont determina que toda a miríade de direitos, privilégios e benefícios que decorrem do
casamento civil devem ser colocados à disposição de todos os cidadãos, sem qualquer
discriminação baseada na orientação sexual”.
Na citada decisão, o Tribunal abriu duas alternativas para o legislador corrigir a
inconstitucionalidade, dizendo que ele poderia estender o casamento às pessoas do mesmo sexo, ou
criar algum novo instituto, que conferisse aos parceiros os mesmos benefícios e responsabilidades
inerentes ao casamento. Esta segunda alternativa foi preferida pelo legislativo estadual, que aprovou
no ano de 2000 uma nova lei, instituindo a figura da união civil para pessoas do mesmo sexo18.
Em Massachusetts, por sua vez, a Suprema Corte Estadual decidiu em 2003, no caso
Goodridge v. Department of Public Health19, que a não extensão do casamento às pessoas do
mesmo sexo violaria as cláusulas da igualdade e do devido processo legal da Constituição daquele
Estado. Isto porque, considerou que, em razão da importância do casamento, ele deveria ser
considerado uma liberdade fundamental, e que as razões invocadas pelo Estado para não estendê-lo
aos homossexuais não seriam suficientes para justificar a discriminação albergada pela legislação
estadual. Os efeitos da decisão foram suspensos por 180 dias, para dar tempo ao legislador para
adequar a lei a esta nova orientação.
Durante este prazo, o Senado de Massachusetts formulou uma consulta à Suprema Corte do
Estado, indagando se seria possível cumprir a decisão criando a união civil para os homossexuais,
que lhes atribuísse direitos e responsabilidades equivalentes aos envolvidos no casamento. A
resposta da Suprema Corte, formulada em In re Opinion of the Justices to the Senate20, foi
negativa. Nas suas palavras:
“A proibição absoluta do uso da palavra ‘casamento’ pelos ‘cônjuges’ do mesmo sexo é mais
do que semântica. A diferença entre as expressões ‘casamento civil’ e ‘união civil’ não é inócua:
trata-se de uma escolha linguística que reflete a atribuição aos casais do mesmo sexo,
predominantemente homossexuais, um status de segunda classe... A Constituição de
Massachusetts, como explicado no caso Goodrige, não permite esta odiosa discriminação, não
importa quão bem intencionada seja”.
E a decisão mais recente nos Estados Unidos reconhecendo o direito equivalente ao casamento
para casais formados por pessoas do mesmo sexo foi proferida pela Suprema Corte do Estado de
New Jersey em outubro de 2006, no caso Mark Davis and Dennis Winston et al. v. Gewsndolyn L.
Harris et. Al.
Nesta decisão, fundamentando-se na cláusula da igualdade na Constituição estadual, a Corte de
New Jersey afirmou que “negar a casais comprometidos formados por pessoas do mesmo sexo os
benefícios financeiros e sociais e os privilégios concedidos aos casais heterossexuais casados
não guarda qualquer relação substancial com algum objetivo governamental legítimo”. Em razão
disso, ela decidiu que os casais de pessoas do mesmo sexo devem ter exatamente os mesmos
direitos e benefícios que os casais heterossexuais casados, mas ressalvou que o nome a ser
atribuído a esta parceria – se casamento ou não – poderia ser decidido pelo legislador, no âmbito do
processo democrático.
Finalmente, cabe examinar o caso da África do Sul, cuja Constituição expressamente proíbe as
discriminações fundadas em orientação sexual no seu art. 9.3. Vale destacar que a Corte
Constitucional daquele país tem-se notabilizado pelo seu ativismo em matéria de defesa dos direitos
dos homossexuais, tendo proferido uma série de decisões históricas nesta matéria, como o Home
Affairs21, em que equiparou, para os fins da lei de imigração, os estrangeiros casados com sul-
africanos aos que matem com eles relações homoafetivas; o Satchwell22, em que determinou a
extensão aos parceiros do mesmo sexo das pensões concedidas aos cônjuges heterossexuais; o Du
Toit23, em que reconheceu o direito de casais homossexuais de realizarem adoções conjuntas, e o
J.24, em que equiparou à situação legal do marido, a parceira homossexual de mulher que fora
inseminada artificialmente.
A Corte enfrentou a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo no caso Minister os
Home Affairs and Another v. Marie Adrianana Fourie and Another25, quando decidiu que tanto a
common law sul africana, como a legislação em vigor no país, violavam a Constituição, por não
abrigarem esta possibilidade. Na sua alentada decisão, o Tribunal afirmou:
“A exclusão dos casais do mesmo sexo dos benefícios e responsabilidades do casamento,
portanto, não é uma pequena e tangencial inconveniência resultante de uns poucos resquícios do
prejuízo social, destinado a evaporar como o orvalho da manhã. Ela representa a afirmação
dura, ainda que oblíqua, feita pela lei, de que os casais do mesmo sexo são outsiders, e que a
necessidade de afirmação e proteção das suas relações é de alguma forma menor do que a dos
casais heterossexuais. Ela significa que a sua capacidade para a amor, compromisso e aceitação
da responsabilidade é por definição menos merecedora de consideração do que a dos casais
heterossexuais.
... Pode ser, como sugere a literatura, que muitos dos casais do mesmo sexo fossem abjurar a
imitação ou a sua subordinação às normas heterossexuais... Porém, o que está em jogo não é a
decisão a ser tomada, mas a escolha disponível. Se os casais heterossexuais têm a opção de
decidir se vão casar ou não, então também os casais do mesmo sexo devem ter esta escolha... Daí
por que, considerando a centralidade atribuída ao casamento e as suas consequências na nossa
cultura, negar aos casais do mesmo sexo a escolha a este respeito é negar o seu direito à
autodefinição da maneira mais profunda”.
Portanto, verifica-se no Direito Comparado não só uma forte tendência ao reconhecimento da
união entre pessoas do mesmo sexo, como também, em alguns casos, o protagonismo do Poder
Judiciário nesta seara, diante do preconceito ainda presente nas instâncias de representação popular.

Como se vê, a jurisprudência extraída do Direito Comparado realmente demonstra a forte tendência
mundial ao reconhecimento dos direitos dos casais homoafetivos, inclusive no que tange ao casamento
civil em diversos casos. Cabe​-me, apenas, reiterar meu entendimento de que o casamento civil já é uma
união civil, donde não há que se criar outra exclusivamente para homossexuais, pois se isso resolve o
problema da isonomia caso sejam concedidos os mesmos direitos aos casais homoafetivos do que os
concedidos pelo casamento civil aos casais heteroafetivos, ainda causa o estigma de que as uniões
homoafetivas não seriam tão dignas quanto as heteroafetivas, pois, do contrário, seriam elas incluídas no
casamento civil e não em uma outra união civil qualquer. Esta última hipótese implicaria a política do
separados mais iguais, que tanto assolou a convivência de negros e brancos ao redor do mundo, dado o
seu caráter altamente atentatório da dignidade daqueles que foram separados dos outros, ainda que em pé
de igualdade (pois, como dito, se não houvesse problemas de dignidade não teria ocorrido a separação).
Por outro lado, ao menos no ordenamento jurídico brasileiro, é absolutamente irrelevante que a
postura totalitária de grupos majoritários venha a conseguir aprovar leis ou emendas constitucionais que
vedem expressamente o casamento civil, a união estável e a adoção por casais homoafetivos, pois ditas
leis/emendas constitucionais serão flagrantemente inconstitucionais por afronta aos princípios igualdade,
da dignidade da pessoa humana, da promoção do bem-estar de todos, da pluralidade, da laicidade e da
liberdade de consciência. Assim, se aprovadas, tais leis/emendas deverão ser declaradas
inconstitucionais, por afronta às citadas cláusulas pétreas de nossa Constituição.
Anote-se, por oportuno, que entendo que o Brasil continua como país do “modelo intermediário”
porque, apesar de a histórica decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277 ter “força de lei”, fato é que a
lei propriamente dita ainda não reconhece a união homoafetiva como entidade familiar, sendo, em tese,
possível que, no futuro, uma composição mais conservadora do STF decida de forma distinta e, assim,
acabe com o histórico avanço da referida decisão. Assim, até que a lei brasileira consagre o status
jurídico-familiar da união homoafetiva, o Brasil deve continuar sendo classificado como país de
“modelo intermediário”, consoante o citado critério de Maria Berenice Dias.
1.3 Países de modelo expandido
Nesse terceiro bloco de países, além de não ser a homossexualidade considerada um ato ilícito, são
tomadas ações afirmativas pelos órgãos legislativos dos mesmos, no sentido de serem expressamente
regulamentadas as uniões homoafetivas nesses Estados.
Nesse bloco aparecem os países nórdicos, inspirados pela Dinamarca, que foi o primeiro país a
legalizar a união entre pessoas do mesmo sexo por meio da Lei 372, de 1989, que instituiu a Parceria
Registrada naquele país, que reconhece, com algumas exceções, os mesmos direitos conferidos pelo
casamento26. Na Noruega, foi promulgada a Lei 40, de 1993, que igualmente instituiu a parceria civil
registrada para casais homossexuais. Essa lei garantiu às uniões homoafetivas a aplicação da mesma
legislação que regulamenta o casamento civil e sua dissolução, exceto quanto à adoção, que é
expressamente vedada. A grande diferença (e maior avanço) desta lei para com a dinamarquesa é o fato
de a lei norueguesa determinar que os parceiros devem compartilhar da “autoridade parental”,
equivalente ao nosso atual poder familiar.
Diversos outros países seguiram a mesma tendência, merecendo destaque as posições francesa,
holandesa, belga, canadense e espanhola. Na França, mediante alteração do Código Civil, foi instituído
em 1999 o Pacto Civil de Solidariedade, por meio da Lei 99-944, que possibilita a dois adultos
plenamente capazes organizar contratualmente a sua vida em comum. Vale ressaltar que o PACS, como é
conhecido, não se restringe às uniões homoafetivas, podendo ser firmado por casais heteroafetivos,
constituindo verdadeira forma alternativa de união, tirando do casamento civil o monopólio para
consagração da união civil entre duas pessoas. É curioso notar que, numericamente, são casais
heteroafetivos que mais têm aderido ao PACS desde sua instituição (mesmo porque heterossexuais
constituem a maior parcela da população)27.
Como se pode ver, o PACS é um contrato de convivência, no qual as partes estabelecem a forma
como será organizada sua vida patrimonial a partir de sua celebração, devendo os celebrantes
unicamente atentar para os impedimentos e formalidades previstas na Lei 99-944, de 1999.
Além disso, merece destaque a posição holandesa. A Holanda é um dos países mais avançados na
questão dos direitos relativos às uniões homoafetivas, visto que possibilita a estas, além do contrato de
parceria civil registrada (desde 1998), a consagração por meio do casamento civil, haja vista que o
Código Civil holandês permite expressamente os casamentos civils homoafetivos desde o ano de 200128.
Após o caso holandês, a Bélgica, o Canadá e a Espanha, nessa ordem, igualmente aprovaram leis
permitindo expressamente o casamento civil homoafetivo, deixando assim os pares homoafetivos em
igualdade de condições com os pares heteroafetivos – Espanha e Canadá após o Judiciário desses países
ter declarado inconstitucional a proibição do casamento civil homoafetivo.
O caso espanhol ganhou grande destaque na mídia internacional por se tratar do primeiro país de
origem latina a fazê-lo, tendo em vista que a Igreja Católica Apostólica Romana ainda exerce uma
exacerbada influência em ditos países. O clero católico fez tudo o que pôde para evitar a aprovação da
lei, sem, contudo, obter êxito. E o fez não fundado em razões jurídicas, mas apenas em seus dogmas
religiosos contrários à união homoafetiva29.
A vitória da militância homossexual na Espanha, assim, é um marco histórico, pois demonstra que a
sociedade humana está deixando de aceitar dogmas arbitrários, irracionais para fundamentar
discriminações jurídicas, o que é um grande avanço. Não se está aqui querendo desmerecer religião
nenhuma, mas considerando que as instituições religiosas em geral, em regra, sequer se dignam a
justificar racionalmente suas posições, por se acharem detentoras da “palavra de Deus”; assim, suas
colocações nesse sentido não devem ser acatadas pelo Direito.
A fé não supõe comprovação. Contudo, as discriminações jurídicas devem, obrigatoriamente, ser
pautadas pela demonstração da pertinência lógico-racional de sua necessidade, sob pena de sua absoluta
inconstitucionalidade, pelo menos no caso brasileiro, que veda a arbitrariedade por meio do princípio da
isonomia, direito humano fundamental e norma constitucional de eficácia plena que é.
Cite-se, por fim, o caso do estado de Massachusetts/EUA, cuja Suprema Corte declarou a
inconstitucionalidade da proibição do casamento civil homoafetivo, que, desde então, passou a ser
permitido naquele país. Recentemente, o mesmo ocorreu no estado da Califórnia/EUA, embora o
totalitarismo de determinados grupos tenha conseguido assinaturas suficientes para que seja efetuada uma
votação plebiscitária para decidir se o casamento civil deverá se restringir apenas a casais
heteroafetivos.

2. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Os países que ainda se deixam influenciar política e juridicamente pelas religiões ainda hoje
proíbem as uniões homoafetivas, inclusive criminalizando-as. Já naqueles países onde a homoafetividade
não é proibida, mas, igualmente, não é regulamentada, a ação judicial acaba sendo a única forma de os
homossexuais conseguirem o resguardo dos direitos oriundos de suas uniões amorosas, com base nos
princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da interpretação extensiva ou analogia.
Por fim, nos países ditos civilizados começa a haver uma regulamentação da união entre duas
pessoas do mesmo sexo, que caminham cada vez mais para a igualação dos direitos desses casais para
com os heterossexuais, como consequência lógica dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa
humana consagrados nos respectivos ordenamentos jurídicos, princípios estes também presentes no
Direito brasileiro.
A partir do momento em que se consagra a ideia do Estado Laico, que não deve ser influenciado
pelas religiões, e de que a homossexualidade, perante a ciência, não constitui doença, desvio
psicológico, perversão nem nada do gênero, então não há motivo a não ser o preconceito para justificar o
tratamento discriminatório às uniões homoafetivas, razão pela qual merecem estas exatamente os mesmos
direitos conferidos às heteroafetivas – nem mais, nem menos.

1 RAMOS (Família sem casamento...), apud GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 61, em nota de
rodapé.
2 Segue o rol, evidentemente exemplificativo, de direitos a serem reconhecidos aos cidadãos independentemente de
orientação sexual e identidade de gênero, tal qual reconhecidos pelos Princípios de Yogyakarta: (i) Direito ao Gozo Universal
dos Direitos Humanos; (ii) Direito à Igualdade e à Não Discriminação; (iii) Direito ao Reconhecimento Perante a Lei; (iv)
Direito à Vida; (v) Direito à Segurança Pessoal; (vi) Direito à Privacidade; (vii) Direito a não Sofrer Privação Arbitrária da
Liberdade; (viii) Direito a um Julgamento Justo; (ix) Direito a Tratamento Humano durante a Detenção; (x) Direito a não
Sofrer Tortura e Tratamento ou Castigo Cruel, Desumano e Degradante; (xi) Direito à Proteção contra Todas as Formas de
Exploração, Venda ou Tráfico de Seres Humanos; (xii) Direito ao Trabalho; (xiii) Direito à Seguridade Social e outras Medidas
de Proteção Social; (xiv) Direito a um Padrão de Vida Adequado; (xv) Direito a uma Habitação Adequada; (xvi) Direito à
Educação; (xvii) Direito ao Padrão mais Alto Alcançável de Saúde; (xviii) Proteção contra Abusos Médicos; (xix) Direito à
Liberdade de Opinião e Expressão; (xx) Direito à Liberdade de Reunião e Associação Pacíficas; (xxi) Direito à Liberdade de
Pensamento, Consciência e Religião; (xxii) Direito à Liberdade de Ir e Vir; (xxiii) Direito de Buscar Asilo; (xxiv) Direito de
Constituir uma Família; (xxv) Direito de Participar da Vida Pública; (xxvi) Direito de Participar da Vida Cultural; (xxvii) Direito
de Promover os Direitos Humanos; (xxviii) Direito a Recursos Jurídicos e Medidas Corretivas Eficazes; (xxix)
Responsabilização (Accountability). Ditos Princípios de Yogyakarta foram facilmente localizados no google por este autor.
De qualquer forma, segue um endereço eletrônico que dá acesso a um arquivo (sob a forma de “.pdf”) contendo-os, que
está disponível em: www.sxpolitics.org/mambo452/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=34. Acesso
em: 7 jul. 2008).
3 Vide, nesse sentido, o art. 3.º, IV, da CF/1988, segundo o qual: “Art. 3.º Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil: (...) IV – promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação” (sem grifo no original), no que está por certo incluída a proibição de
discriminação pela orientação sexual da pessoa.
4 Na lição de Roger Raupp Rios: “Neste precedente, o tribunal havaiano apreciou a constitucionalidade da legislação estadual
que estabelecia como condição para o casamento a diversidade de sexos dos contraentes. Conforme a fundamentação
desenvolvida, a referida legislação estadual contrariou a garantia da igual proteção prevista no artigo I, seção 5, da
Constituição do Estado do Hawaii, segundo o qual ‘no person shall be denied the equal protection of the laws, nor be denied,
the enjoyment of the person’s civil rights or be discriminated against in the exercise thereof because of race, religion, sex or
ancestry’ [tradução livre: ‘nenhuma pessoa terá negada a igual proteção das leis, nem negada a fruição de direitos civis ou
ser discriminada contra o seu exercício em virtude de raça, religião, sexo ou descendência’]. Isso porque a impossibilidade
de casamento entre homossexuais, privando-os de todos os direitos e benefícios reservados aos que podem se casar,
configura discriminação por motivo de sexo, vedada pelo texto constitucional. No entender do tribunal, para a aceitação
desta restrição, que atinge um ‘direito essencial para adequada busca da felicidade’, direito este de caráter fundamental na
ordem jurídica norte-americana, seriam necessários fortíssimos motivos racionais justificadores da medida, configurando
uma hipótese de controle de constitucionalidade da legislação discriminatória. Esta solução judicial provocou forte reação
na sociedade norte-americana, ensejando a promulgação de legislação federal conhecida como ‘a lei de defesa do
casamento’. Este diploma legislativo, além de definir casamento no âmbito federal como a união de um homem e uma
mulher, faculta aos demais Estados Federados norte-americanos não reconhecer os casamentos entre pessoas do
mesmo sexo celebrados no Hawaii. Após a decisão judicial, inclusive, houve a promulgação de emenda à Constituição do
Estado do Hawaii atribuindo ao Poder Legislativo a competência para restringir às uniões heterossexuais a possibilidade de
casamento” (RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2001, p. 119-21 – sem grifos no original). Para melhor compreensão da decisão, cumpre tecer algumas considerações
acerca do princípio da igualdade no ordenamento jurídico dos Estados Unidos. Inicialmente, em razão da controvérsia e da
polêmica acerca de decisões políticas dos governantes estadunidenses, passou a Suprema Corte daquele país a exigir que
haja um motivo racional que justifique a medida tomada e o objetivo pretendido. Nesse caso, há forte presunção de
constitucionalidade em favor do ato praticado, bastando que aquele que o realizou prove a racionalidade do mesmo em
relação ao objetivo pretendido. É o conhecido rational relationship test (“teste de relação racional”), que equivale ao aspecto
material da isonomia constitucional brasileira. Todavia, outros dois critérios existem na aplicação da igualdade
estadunidense. Nesse sentido, criou a Suprema Corte daquele país uma forte presunção de inconstitucionalidade para
discriminações efetuadas contra determinados grupos, historicamente estigmatizados pela sociedade estadunidense em
razão de características de sua identidade, não sendo estes grupos devidamente representados no Parlamento daquele
país (como os negros). Assim, a simples racionalidade do rational relationship test passou a não ser suficiente nesse caso:
além dessa correlação racional, deve o Estado demonstrar que ela (discriminação) é imprescindível ao alcance de um
compelling state interest (“objetivo primordial do Estado”), tarefa esta extremamente árdua. É o controle de
constitucionalidade conhecido por stricty scrutny (“critério de exame estritamente rigoroso”), originando as suspect
classifications (“classificações suspeitas”). Por fim, a Suprema Corte Estadunidense entendeu que outras espécies de
discriminações (como as sexuais) precisavam de um controle de constitucionalidade mais rigoroso que o rational
relationship test, todavia não tão rigoroso quanto o strict scrutiny, no qual o Estado deve provar a racionalidade da
discriminação, e que esta visa à consecução de um importante objetivo estatal (important state interest), dando assim
origem às semi suspect classifications (“classificações semissuspeitas”). Este último critério de aplicação da isonomia
estadunidense é o denominado intermediate scrutiny (“critério de exame intermediário”). Para um melhor entendimento do
tema, remete-se o leitor a: RIOS, Roger Raupp, O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: a
Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte​-Americano, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 64-91.
5 Em que pese o preconceito de o Legislativo local ter ocasionado uma emenda à Constituição Havaiana que proibiu
expressamente o casamento civil homoafetivo – a decisão foi proferida em face de uma lacuna normativa, assim como a
existente no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Ademais, ao menos no sistema constitucional brasileiro, a
emenda constitucional é passível de ser declarada inconstitucional por afronta às cláusulas pétreas da isonomia e da
dignidade da pessoa humana, além dos princípios da promoção do bem-estar de todos, da pluralidade, da laicidade e da
liberdade de consciência.
6 Dita representação foi assinada pelos Procuradores Regionais da República Daniel Sarmento, Luiza Cristina Frischeisen,
Paulo Gilberto Cogo Leivas, pelo Procurador Regional dos Direitos do Cidadão Sérgio Gardenghi Suiama, pelos
Procuradores da República Renato de Freitas Souza Machado e Caroline Maciel da Costa, por Antônio Luiz Martins dos
Reis (da ABGLT), por Nelson Matias Pereira (pela Associação da Parada do Orgulho GLBT/SP), pelo advogado Paulo
Tavares Mariante (pelo Identidade – Grupo de Ação pela Cidadania Homossexual) e por Edmilson Alves de Medeiros (do
grupo Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor – Corsa). Foi claramente esta representação que inspirou a
Procuradoria-Geral da República a propor a ADPF 178, convertida em ADIn 4.277, julgada em conjunto com a ADPF 132
nos dias 04 e 05.05.2011, que reconheceram a união homoafetiva como união estável constitucionalmente protegida ou,
como preferem alguns, como entidade familiar com igualdade de direitos relativamente à união estável heteroafetiva.
7 (1996) 142 D.L.R 4th 1,6 (nota do original).
8 (2003) O.J. 2268. Também foram proferidas decisões no mesmo sentido pelas Cortes de Apelação das províncias de
Quebec e Colúmbia (nota do original).
9 (2004) 3 S.C.R. 698 (nota do original).
10 Decisão 14/1995. Os trechos mais importantes da decisão estão reproduzidos em inglês em Paul Gewirtz. Global
Constitutionalism: Nationhood, Same-Sex Marriage. op. cit., p. 62-66 (nota do original).
11 Aponto meu entendimento, já esposado ao longo deste trabalho, de que esse raciocínio também é válido no que tange ao
casamento civil, que é um direito e não um dogma religioso.
12 High Court of Justice 721/94, 48 Piskey-Din 749. Uma versão em inglês da decisão está disponível em:
www.tau.ac.il/law/aeyalgross/legal_material.htm (nota do original).
13 539 U.S. 558, 123 S Ct. 2472 (2003). Uma versão em português deste importantíssimo julgado foi publicada em Revista
Brasileira de Direito Constitucional n. 3, p. 601-628, jan.-jun. 2004 (nota do original).
14 Esta odiosa orientação fora adotada em 1986 pela Suprema Corte no julgamento do caso Bowers v. Hardwick (478 U.S.
186 (1986)) – nota do original.
15 Haw. 530. As partes mais relevantes da decisão estão reproduzidas em Willian Eskridge Jr & Nan Hunter. Sexuality,
Gender and the Law. op. cit., p. 807-812 (nota do original).
16 Caso Brauer v. Bureau of Vital Statistics, julgado em fevereiro de 1997 (nota do original).
17 744 A.2d 865 (Vt 1999) – nota do original.
18 Os processos judicial e político foram extensamente examinados por: Willian. N. Eskridge Jt., em Equality Practice: Civil
Unions and the Future of Gay Rights. op. cit., p. 43-82 (nota do original).
19 440 Mass. 309 (2003). Os trechos mais relevantes da decisão estão reproduzidos em Andrew Sullivan. Same-Sex
Marriage Pro & Com: A Reader. New York: Vintage Books, 2004, p. 112-118 (nota do original). Aponto, apenas, que diversos
trechos de dita decisão foram transcritos e traduzidos ao longo deste trabalho.
20 430 Mass 1205 (nota do original).
21 National Coalition for Gay and Lesbian Equality and Others v. Ministry of Home Affairs and Others. 2000 (2) SA 1 (CC) –
nota do original. Aponto, apenas, que diversos trechos de dita decisão foram transcritos e traduzidos ao longo deste
trabalho.
22 Satchell v. Presidente of the Republic of South Africa and Another. 2002 (6) SA 1 (CC) – nota do original.
23 Du Toit and Another v. Minister of Welfare and Population Development and Others. 2003 (2) SA 198 (CC) – nota do
original.
24 J. and Another v. Director General of Department of Home Affairs and Others. 2003 (5) SA 621 (CC) – nota do original.
25 Caso CCT 60/04, julgado em 1.o de dezembro de 2005 (nota do original).
26 “No que diz respeito à dissolução da parceria, será aplicada, na Dinamarca, a Lei de Formação e Dissolução de
Casamento, juntamente com a Lei de Herança, o Código Penal e a Lei de Tributos Hereditários, que foram emendados com
a introdução da Lei 373, concluindo-se, portanto, que a união registrada surtirá efeitos em todas as legislações
mencionadas, sendo uma das principais mudanças a vedação de convolar novas núpcias enquanto perdurar casamento ou
parceria anterior. Caso esse dispositivo seja desobedecido, o Código Penal prevê prisão de até três anos. Outra significante
alteração se refere à questão patrimonial, e proíbe que a pessoa que tenha sido casada ou parceira faça novo contrato,
antes da divisão ou do início dela, perante a Corte, da propriedade conjunta. Todavia, isso não se aplica se os contratantes
se unirem sob o regime da absoluta separação de bens ou, ainda, quando for concedida uma isenção de divisão, em casos
especiais, pelo Ministro da Justiça. De modo semelhante, a Lei de Herança, exigindo a partilha dos bens comuns antes que
se contraia novo contrato de casamento ou registro de parceria” (FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais:
efeitos jurídicos, 1.ª Edição, São Paulo: Editora Método, 2004, p. 123-124).
27 Para melhor conhecimento dos trâmites desse contrato, pede-se venia para transcrever as lições de Maria Berenice Dias e
de Débora Vanessa Caús Brandão, assim citadas por Taísa Ribeiro Fernandes: “Trata-se de declaração conjunta em
cartório, cujo registro marca o início de sua vigência. É livre a deliberação de caráter patrimonial e, em caso de omissão,
presumem-se comuns os bens adquiridos durante sua vigência. O contrato é oponível a terceiros, gerando obrigações
solidárias. O acordo, que pode ser alterado consensualmente a qualquer tempo, cria a obrigação de auxílio mútuo, a ser
livremente regulada entre as partes. É vedada sua estipulação entre ascendentes e descendentes, bem como entre afins
em linha reta e colaterais até o 3.º grau inclusive. Tampouco pode ser firmado por pessoas casadas ou por quem esteja
vinculado por outro pacto. A dissolução consensual é feita por declaração conjunta ao cartório do registro ou
unilateralmente, mediante comunicação ao outro e ao cartório, passando a vigorar após o decurso do prazo de três meses.
O casamento de um dos parceiros põe fim ao ajuste, bastando haver a comunicação acompanhada da certidão do
casamento. Ocorrida a morte de um, o sobrevivente ou qualquer interessado pode comunicar o fato ao cartório. Não
havendo consenso sobre a liquidação dos direitos e obrigações, cabe a dissolução judicial, independente da reparação de
danos eventualmente sofridos [lição de Maria Berenice Dias]. (...) Conforme o art. 515-3 do Código Civil francês, o PACS
deve ser apresentado por escrito em duas vias, mencionando, expressamente, que as cláusulas ali contidas reger-se-ão
pela Lei 944, de 15.11.1999. Além da qualificação das partes, é mister a descrição da forma com a qual cada celebrante
contribuirá para a vida em comum (divisão das despesas do aluguel, por exemplo); sobrevindo ruptura do Pacto, a forma de
divisão dos bens também já estará prevista. O procedimento para que o PACS passe a produzir efeitos jurídicos almejados
é bastante simples. As partes deverão comparecer ao cartório do tribunal de instância da localidade onde tenham fixado a
residência comum e apresentar todos os documentos pertinentes à prova da idade, residência, nacionalidade, inexistência
de impedimento matrimonial etc. Note-se que a competência é fixada pelo critério territorial. Sendo uma das partes de
nacionalidade estrangeira, o PACS será celebrado no consulado ou embaixada correspondente. Após a homologação pelo
tribunal de instância, as partes deverão registrar o PACS no cartório do tribunal de instância do local de nascimento de cada
uma das partes (se uma delas for estrangeira, o PACS deverá ser levado a registro no tribunal de grande instância de Paris”
[lição de Débora Vanessa Caús Brandão] (DIAS e BRANDÃO apud FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais:
efeitos jurídicos, 1.ª Edição, São Paulo: Editora Método, 2004, p. 126-127).
28 “Conforme noticia Taísa Ribeiro Fernandes: “Em 2001, entrou em vigor a Lei 26.672, que, alterando alguns artigos do
Código Civil holandês, permitiu o casamento homossexual. Casamento passou a ser possível tanto por pessoas de sexos
diferentes quanto por pessoas do mesmo sexo, podendo, inclusive, converter-se casamento em parceria registrada e vice-
versa. A conversão põe fim ao casamento e inicia a parceria quando a mesma é registrada” (ibidem, p. 128-129). Ademais,
a Holanda é pioneira na permissibilidade da adoção por duas pessoas do mesmo sexo, em que pese somente poderem ser
adotadas as crianças holandesas, conforme a lição da mesma autora: “(...) Quando feita por duas pessoas, a adoção só é
deferida se forem casadas ou viverem em parceria por três anos, pelo menos, e a criança deve estar em companhia do
casal por um ano, no mínimo. A adoção deve atender aos interessados da criança, quando não for conveniente que ela
permaneça com seus pais biológicos” (ibidem, p. 129).
29 Aponte-se a seguinte matéria para ilustrar o que se acabou de expor: “Foi um dia depois do Dia Mundial do Orgulho Gay,
mas foi a conquista que mais marcou os GLS no mundo católico e de ascendência latina, como é o caso do Brasil. A
Espanha aprovou ontem [29.06.2005] o casamento homossexual, com mudanças no Código Civil do país que derruba por
vez a vantagem dos heterossexuais, que podem escolher entre casar ou não. Agora os homossexuais também podem se
casar quando, como e se quiserem. Pela primeira vez na História um país que, além de ser católico, teve uma relação tão
próxima da Igreja Católica na época dos Grandes Descobrimentos, consegue separar o Estado da religião. Num país em
que na época da chamada Santa Inquisição, em que a Igreja Católica tinha a hegemonia política mundial, os judeus eram
expulsos do país, e os ‘sodomitas’ eram queimados vivos, com justificativa nos autos da fé, isso é uma conquista
revolucionária. Vitória ainda mais importante se pensarmos que durante toda a ditadura franquista, era encerrada há menos
de 30 anos, havia uma enorme repressão aos homossexuais. Foi uma evolução muito grande. A nova lei, proposta pelo
partido do Presidente Zapatero, foi finalmente aprovada ontem, 29/6, por 187 votos a favor e 147 votos contra e é mais
simples do que se imagina. Ela se resume a uma pequena modificação no texto do artigo 44 do Código Civil espanhol: onde
se lia: ‘O homem e a mulher têm direito a contraírem matrimônio conforme as disposições deste Código’, agora passa a
vigorar com o seguinte adendo: ‘O matrimônio terá os mesmos requisitos e efeitos quando ambos os contraentes forem do
mesmo sexo ou de sexos diferentes’. Uma frase que faz toda a diferença na vida de milhares de casais espanhóis que não
tinham seus direitos garantidos. Foi ajustada, ainda, a linguagem referente aos cônjuges em outros 16 artigos e as
mudanças também possibilitaram tanto a adoção conjunta de filhos do casal homossexual como a coadoção de um dos
componentes do casal do filho existente do outro componente. (...) Em primeiro lugar, a iniciativa da lei que institui a
igualdade do casamento foi do próprio presidente Zapatero, que foi muito além da retórica fácil e populista. Ele realmente se
empenhou em discutir a lei, rechaçar a influência da Igreja Católica neste assunto, marcando a diferenciação entre Estado e
Igreja e em nenhum momento aceitou retroceder um milímetro. Outro ponto importante é quanto ao papel dos grupos
ativistas espanhóis, notadamente os baseados em Barcelona, como o ArciGay, e Madri. Menos preocupados com paradas
gays e mais preocupados com protestos na hora certa, os grupos se uniram para rechaçar um protesto de grupos
conservadores contra o casamento homossexual, dias antes do início da votação final. Um momento crucial, pois a lei já
havia sido aprovada na Câmara baixa, mas foi rejeitada pelo Senado. Voltando à Câmara, a lei teria o voto final. O
contraprotesto veio na hora certa, coroando uma bem orquestrada iniciativa de grupos ativistas maduros e conscientes”
(disponível em: http://glsplanet.terra.com.br/especial/espanha.shtml. Acesso em: 27 dez. 2005, às 23h39).
CONCLUSÃO

Não será feita uma conclusão sintetizando todos os pontos abordados, capítulo por capítulo, tendo
em vista que cada um possui, ao seu final, uma síntese conclusiva, na qual o leitor poderá vislumbrar o
entendimento sintético deste autor a respeito dos temas tratados. Limitar-me-ei a expor as conclusões
fundamentais para a correta compreensão do tema.
O intuito do presente trabalho é demonstrar que as uniões homoafetivas só não receberão o mesmo
tratamento jurídico conferido às uniões heteroafetivas por preconceito, ou seja, por um juízo de valor
desarrazoado, irracional, que não possui uma fundamentação lógico-racional que o justifique quando
levado em conta o critério diferenciador erigido, que é a homogeneidade ou diversidade de sexos do
casal (e, portanto, a orientação sexual da pessoa). Restou claro que a forte pregação homofóbica
perpetrada pela Igreja Católica por mais de mil anos, após a Antiguidade Clássica, institucionalizou a
homofobia na mentalidade social e nos ordenamentos jurídicos ocidentais. De acordo com igreja, a
homoafetividade seria um “pecado” e, mais tarde, essa ideia foi substituída pela de que constituiria uma
“doença”, mesmo sem provas disso – ou seja, considerando que as pessoas, habitualmente, já
condenavam a homossexualidade, com a laicização do pensamento humano, simplesmente se trocou o
termo “pecado” por “doença”, mesmo sem provas de que o amor por pessoas do mesmo sexo
configuraria uma patologia – provas essas que, aliás, nunca existiram.
Não obstante dito equívoco por parte de nossos antepassados, a partir do momento em que a ciência
médica mundial atestou a naturalidade da homossexualidade, no sentido de não ser ela uma doença,
desvio psicológico, perversão nem nada do gênero, desapareceu o fundamento laico utilizado para a
discriminação das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas, donde não mais há qualquer motivo
justificador da segregação das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas – fundamento este que,
ressalte-se, nunca deveria ter sido aceito, uma vez que homossexuais só se relacionam com pessoas do
mesmo sexo. Rebate-se também, a incoerente patologização da homossexualidade, que nunca poderia ter
sido usada como justificativa válida para o não reconhecimento do direito dos casais homoafetivos de se
casarem civilmente, pois a dignidade humana destes demanda pela igual proteção de seus
relacionamentos amorosos, independentemente de como sejam considerados pela ciência.
Ademais, o princípio do Estado Laico veda que fundamentações religiosas sejam utilizadas para
determinar os rumos políticos e jurídicos da nação, donde explicações religiosas não atendem o aspecto
material da isonomia e, consequentemente, não ensejam uma discriminação juridicamente válida, que
será apenas aquela oriunda de uma fundamentação lógico-racional.
Dessa forma, considerando que as uniões homoafetivas são tão dignas e tão normais quanto as
heteroafetivas, merecem elas o mesmo tratamento jurídico historicamente conferido a estas, pois não há
motivação lógico-racional que justifique entendimento contrário.
No que tange à atual legislação constitucional e infraconstitucional, referente ao casamento civil e à
união estável, a utilização da expressão “o homem e a mulher” não implica “proibição implícita” à
extensão de ditos regimes jurídicos às uniões homoafetivas, tendo em vista que não há “proibições
implícitas” em Direito, em virtude do disposto no art. 5.o, II, da CF/88, que determina que somente
disposição normativa expressa ou norma jurídica implícita decorrente da interpretação de texto(s)
normativo(s) pode restringir direitos. Assim, considerando que toda norma legal ou constitucional não
protege fatos isoladamente analisados, mas valores a eles inerentes, considerando que o valor protegido
pelas leis do casamento civil e da união estável é o amor familiar, ou seja, o amor romântico que vise a
uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, amor este que é o
elemento formador da família conjugal contemporânea formada, e considerando que as uniões
homoafetivas possuem esse mesmo amor familiar existente nas uniões heteroafetivas, deve ser
reconhecida a possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo e da união estável homoafetiva por
meio da interpretação extensiva ou da analogia, que são técnicas expressamente previstas pela lei (art.
4.o da LINDB e art. 126 do CPC), decorrentes da isonomia, que visam estender às situações não citadas
(expressamente) pelo texto normativo a mesma proteção jurídica conferida expressamente por este a
outras, em virtude destas últimas possuírem o mesmo valor que ensejou a sua elaboração, donde não há
motivo razoável que justifique a concessão de menos direitos a umas em relação a outras.
Nesse sentido, a extensão do casamento civil e da união estável às uniões homoafetivas não implica
afronta ao princípio da Separação dos Poderes, tendo em vista que a interpretação extensiva e a analogia
não são formas de “legislação positiva”, mas técnicas de interpretação que visam integrar as lacunas do
ordenamento jurídico sob o fundamento de serem idênticas ou idênticas no essencial àquelas situações
expressamente regulamentadas – o que é uma decorrência da isonomia, além de serem técnicas
hermenêuticas expressamente permitidas pelo próprio Legislativo – nos arts. 4.o da LINDB e 126 do
CPC. Ou seja, não há tal “legislação positiva” porque, ao utilizar a interpretação extensiva ou a analogia
para tal fim, estará o intérprete, ao contrário, interpretando o ordenamento jurídico da forma correta,
aplicando tal interpretação ao disposto no artigo 1.514 do CC/2002 (quanto ao casamento civil) e ao art.
226, § 3.º, da CF/88 (quanto à união estável), o que, repita-se, é expressamente permitido pela lei.
Afinal, a partir do momento em que a lei expressa permite a utilização da interpretação extensiva e da
analogia (o que nem seria necessário, por serem elas concretizações da isonomia), isso significa que o
Legislativo expressamente deferiu ao Judiciário o dever-poder de garantir à situação não citada pelo
texto normativo o regime jurídico deste, como consequência do princípio constitucional da igualdade.
Assim, não há usurpação da competência do Congresso Nacional, nem afronta ao princípio da Separação
dos Poderes nessa hipótese – pois se estará, ao contrário, garantindo que a legislação, já aprovada, seja
aplicada da forma correta, como pretendido pelo legislador, levando-se em conta o objeto de proteção
visado por este quando da elaboração o texto normativo.
Da mesma forma, a dignidade da pessoa humana demanda que seja conferido o direito ao casamento
civil às uniões homoafetivas, não a uma “união civil”, ou seja lá qual outro nome se pretenda conferir às
uniões amorosas entre pessoas do mesmo sexo. Afinal, é inegável o arquétipo cultural existente em torno
do casamento, uma vez que somos cotidianamente estimulados a nos casar para atingir a felicidade,
donde os casais homoafetivos que desejem se casar têm sua dignidade afrontada pelo não-
reconhecimento desse seu direito, pois uma união civil seria inegavelmente vista como menos digna do
que um casamento civil. Parafraseando a Suprema Corte de Ontário/CAN, relegar as uniões
homoafetivas a uma “união civil” distinta do casamento civil implicaria na difusão da sinistra mensagem
de que elas não seriam dignas deste, o que implica menosprezo delas relativamente às uniões
heteroafetivas (às quais se estaria “reservando” o casamento civil), algo absolutamente incompatível com
o princípio da dignidade da pessoa humana, que garante a mesma dignidade a todos pelo simples fato de
serem pessoas humanas e que só admite relativização se houver uma fundamentação lógico-racional que
o justifique (aspecto material da isonomia), o que inexiste no presente caso. Ainda que houvesse
igualdade de direitos entre uma tal “união civil” e o casamento civil, uma tal postura implicaria na
institucionalização da teoria do separados mas iguais, que tanto assolou a convivência entre brancos e
negros nos EUA (que pode ser explicada pela frase “direitos iguais em locais diferentes” ou, no caso,
mediante regimes jurídicos distintos), algo absolutamente nefasto que não pode ser referendado.
Com relação à adoção, primeiramente, todos têm o direito fundamental à parentalidade (em virtude
do arquétipo social segundo o qual só seremos felizes se tivermos filhos, biológicos ou adotivos), além
do direito fundamental de crianças e adolescentes que não estejam com seus pais biológicos serem
adotados (para que possam ter uma criação em um ambiente de amor, respeito e solidariedade, em
especial pela precariedade do atual aparelhamento estatal para tal fim), ambos estes direitos oriundos do
princípio da dignidade da pessoa humana, que garante a todos o direito à (busca da) felicidade.
Ademais, não há prejuízos a crianças e adolescentes pela sua criação por um casal homoafetivo, que
tem a mesma capacidade de fornecer um lar com amor, respeito e solidariedade que um casal
heteroafetivo, além do fato de que a orientação sexual dos pais não influencia na orientação sexual dos
filhos (fato este que sequer deveria ser levado em conta, dada a naturalidade da homossexualidade, ao
lado da heterossexualidade e da bissexualidade) e de que os menores criados em lares homoafetivos não
são diferentes daqueles em lares heteroafetivos apenas pela homogeneidade de sexos e orientação sexual
de seus pais.
Outrossim, o preconceito alheio jamais poderá ser um critério válido de discriminação, donde o fato
de crianças e adolescentes criadas(os) por casais homoafetivos eventualmente serem alvo de preconceito
em suas escolas não justifica o indeferimento de uma adoção a tais casais – afinal, a Constituição veda a
utilização do preconceito como paradigma jurídico (art. 3º, IV), sendo que, por outro lado, o princípio da
isonomia veda discriminações arbitrárias, sendo arbitrário dito indeferimento se baseado no preconceito
alheio, mesmo porque a isonomia visa evitar o preconceito jurídico.
Dessa forma, restam explicitadas as bases jurídicas para o reconhecimento da possibilidade do
casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos, como enunciado no título desta
obra. Espero que o debate jurídico acerca desses temas – ainda relativamente incipiente em nosso País
quando da primeira edição desta obra – continue a crescer e seja sempre pautado pela lógica e pela
racionalidade, como exige a isonomia, e não por subjetivismos.
Em suma, considerando especialmente que o atual entendimento médico-psicológico demonstra que a
homossexualidade e a bissexualidade são características não patológicas – portanto naturais – e tão
normais quanto a heterossexualidade, não pode o ordenamento jurídico continuar ignorando as uniões
homoafetivas em virtude de sua normalidade social, do princípio da dignidade da pessoa humana e do
princípio da igualdade. Assim, deve ser reconhecido o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas e
a elas devem também ser conferidos os mesmos direitos concedidos às uniões heteroafetivas, uma vez
que são situações idênticas ou, no mínimo, idênticas no essencial, visto que ambas formam uma família
conjugal, que é formada pelo amor familiar, ou seja, pelo amor romântico este que visa a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento
formador da família conjugal contemporânea.
Meu posicionamento é muito simples: de um ponto de vista meramente filosófico, ante a inexistência
de motivação lógico-racional que justifique a concessão de menos direitos aos casais homoafetivos em
relação aos casais heteroafetivos, é extremamente injusta a referida discriminação. De um ponto de vista
estritamente jurídico, é ela inconstitucional por afrontar os princípios da igualdade, da dignidade da
pessoa humana, da liberdade de consciência, da laicidade e da promoção do bem​-estar de todos, que
evidentemente garantem a proteção e a promoção do bem-estar (também) dos homossexuais e dos casais
homoafetivos.
Enquanto o Legislativo não se dignar a cumprir o seu papel de garantir expressamente os direitos dos
casais homoafetivos (como das minorias e grupos vulneráveis em geral), cumpre ao Judiciário, em sua
independência, neutralidade e função contramajoritária de garantia dos direitos fundamentais e direitos
subjetivos em geral (mesmo contra a vontade da maioria), aplicar uma interpretação extensiva ou uma
analogia – previstas pelo próprio órgão legislativo para a supressão das lacunas jurídicas (como a que
envolve as uniões homoafetivas), pois essas técnicas interpretativas decorrem da isonomia e visam
conferir o mesmo tratamento jurídico a situações idênticas ou, no mínimo, idênticas no essencial, como é
o caso das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas.
Não se pode deixar de citar nesta conclusão o histórico julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, o
Supremo Tribunal Federal atribuiu interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do CC/02 “para
dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura
entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade familiar’, entendida esta como sinônimo perfeito de
‘família’. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências
da união estável heteroafetiva” (parte dispositiva da decisão do STF), o que significa o reconhecimento
da união homoafetiva como união estável quando atendidos os requisitos fixados no citado dispositivo
para tanto (“convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com objetivo de constituição de
família”), algo coerente com a interpretação sistemático-teleológica do art. 226, §3º, da CF/88 com os
princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança jurídica
(invocados nas ações), consoante a fundamentação explicitada no capítulo 13, na medida em que, como
bem dito pelo Ministro Gilmar Mendes em seu voto, o fato da Constituição proteger a união estável
entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção à união civil ou estável entre pessoas
do mesmo sexo, donde ausente qualquer óbice constitucional ao reconhecimento da união estável
homoafetiva, por interpretação extensiva ou analogia.
Como disse em artigo publicado logo após a decisão, a cidadania venceu importante batalha
contra o totalitarismo daqueles que não aceitam que o outro seja feliz de acordo com seu próprio
modo de ser1 (no caso, mediante a conjugalidade homoafetiva). Merecem muitos elogios os Ministros do
STF pelos corajosos votos que, superando a letra fria da Constituição, realizaram a interpretação
sistemático​-teleológica que compatibilizou a norma constitucional relativa à união estável com aquelas
atinentes à isonomia, à dignidade da pessoa humana, à liberdade e à segurança jurídica. Certamente não
era a exegese mais fácil de ser adotada pelo Tribunal. Mais fácil teria sido um apego à mera literalidade
normativa para ver uma proibição/restrição que não existe. Mais fácil teria sido a adoção deste
legalismo cego avalorativo, de apego à mera literalidade normativa para reconhecer como juridicamente
possível apenas aquilo que está escrito, mesmo sendo isto incompatível com a hermenêutica jurídica
contemporânea. Mas não foi esta a postura do STF, que em julgado corajoso, fez aquilo que o doutrinador
britânico Neil MacCormick diz ser a função do juiz: o juiz deve buscar a justiça, mas uma justiça de
acordo com a lei2 [ou melhor, de acordo com o Direito, outra acepção da palavra inglesa law], o que é
correto no sentido de que a concepção de justiça do intérprete não pode afrontar os textos normativos
vigentes na legislação – e foi isso que fez nossa Suprema Corte neste caso. Fez justiça dentro daquilo que
permitem as normas constitucionais em uma adequada interpretação sistemático-teleológica, o que é algo
que sempre merece aplausos.
Por fim, vale destacar que o objetivo do presente trabalho não é agredir a parcela da sociedade que
ainda não aceita a naturalidade da homoafetividade, pois não se ignora que a sociedade terá que se
acostumar à ideia de novos modelos de família e de relações afetivas, o que é tarefa para o tempo. O que
se contesta é o porquê do preconceito jurídico e, consequentemente, da negação de direitos supostamente
garantidos a todo cidadão, porém veementemente negados por muitos aos cidadãos homossexuais. Tais
direitos devem ser garantidos a todos, tanto por parte do Poder Judiciário, que deve ser imparcial e
neutro3 na análise das demandas jurídicas para garantir tais direitos no exercício de sua função
contramajoritária, quanto por parte do Poder Legislativo, que deve representar toda a população, e não
simplesmente parte dela.

1 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti.O STF e a união estável homoafetiva. Resposta aos críticos, primeiras impressões,
agradecimentos e a consagração da homoafetividade no Direito das Famílias. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2870, 11
maio 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19086>. Acesso em: 8 jan. 2012.
2 Citação feita de memória e por anotações pessoais, em obra na qual o autor afirma que da mesma forma que isso não
significa que os juízes devam decidir casos exclusivamente de um modo justificável por simples dedução a partir de
normas jurídicas de caráter compulsório, isso também não pode significar que eles sejam deixados à vontade para seguir
suas próprias intuições do senso comum e da utilidade da justiça, livres de todas as limitações. Assim, afirma que a área
de alcance de sua liberdade, poder e dever de buscar soluções justificáveis em termos consequencialistas acerca do caso
genérico é limitada pela exigência de que demonstrem algum fundamento jurídico para o que fazem. Continua no sentido de
que os ‘princípios gerais’ que fornecem essa orientação necessária, por um lado, mas limitação por outro, expressam as
razões subjacentes às normas específicas existentes. Pois bem: entendo essa lição compatível com a hermenêutica
jurídica contemporânea, que afirma que a norma é fruto da interpretação do texto normativo, com a exigência de respeito
aos limites semânticos do texto – os quais, como vimos ao longo desta obra (e, em especial, no capítulo 13), foram
respeitados pelo STF na citada decisão.
3 Vale destacar que, ao se falar em “neutralidade”, evidentemente não se quer dizer que o intérprete não tenha ideologias
próprias, mas que, entre a sua ideologia e a ideologia esposada pelo ordenamento jurídico em seus textos normativos
interpretados de maneira sistemático-teleológica, deve o intérprete aplicar o ordenamento jurídico, mesmo que isso não se
coadune com suas ideologias particulares. Assim, sendo nosso ordenamento jurídico-constitucional eminentemente
inclusivo/antidiscriminatório, não pode o Judiciário aplicar uma interpretação segregacionista/preconceituosa/discriminatória,
como a que nega o status jurídico-familiar às uniões homoafetivas e, portanto, a que nega o acesso de casais homoafetivos
aos regimes jurídicos do casamento civil, da união estável e da adoção conjunta.
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