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A Ética Protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber, apresenta não apenas - mesmo

que implicitamente – as considerações metodológicas do autor, mas também aquilo que pode
ser tomado como o grande tema de pesquisa dos clássicos das ciências sociais: a constituição
do mundo moderno. Ambos os pontos, metodologia e teoria, reagem em um único produto.
Nesta obra Weber não está interessado, pelo menos não apenas, nas “instituições sociais” ou
nas práticas reificadas do mundo moderno, mas em alguns aspectos da cultura moderna e no
seu processo de formação. Isto é, o autor se pergunta o que é importante para a vida dos
modernos e como se tornou importante. Também de acordo com seus pressupostos
metodológicos, não tem a pretensão de escalar todo esse gigante, mas apenas de abarcar
elementos específicos do mesmo: elementos da racionalização da cultura e seus influxos na
materialização ou institucionalização de uma racionalidade prática, e em especial relativa à
esfera econômica. Para tal, Weber parte da racionalização ou desencantamento do mundo
potencializado pelas mudanças numa esfera cultural específica: a reforma protestante.
Podemos dizer que o problema teórico de funda dessa obra é elucidar como o
desenvolvimento cultural influi sobre a institucionalização de novas práticas sociais.

Antes de apresentar as concepções reconstruídas por Weber de “espírito do


capitalismo” e ética protestante, cabe de primeiro momento mostrar o que o autor entende por
“individualidade histórica”. Podemos entender este termo como um sistema cultural
construído pelo analista com o objetivo de responder os problemas que se propõe. Isto é, um
conjunto simbólico e valorativo, compartilhado entre indivíduos na realidade histórico, cujos
elementos são selecionados e sistematizados pela mediação do sociólogo com o objetivo de
solucionar suas questões. Representa uma subjetividade histórica e um conjunto de
predisposições ou potências de ações por parte destes indivíduos.

“Espírito do Capitalismo”, nestes termos, é uma forma simbólica pela qual os


indivíduos de uma época histórica interpretam o mundo do trabalho e das trocas, e atribuem
sentido às suas ações na esfera econômica. Pode ser resumido pela valorização do lucro como
um fim em si mesmo e principalmente, no caso do capitalismo moderno, pela “ética do
trabalho” - o dever de trabalhar e de ser habilidoso na profissão. O trabalho e o lucro não
existem mais em função da satisfação de necessidades, sejam elas individuais ou coletivas,
mas o contrário: é a vida individual ou coletiva que existem em função do lucro e do trabalho.
O que importa na vida do espírito do capitalismo é o direcionamento das ações para a
obtenção de lucros, e a máxima racionalização técnica da produção e do processo de trabalho.
Tal “espírito do capitalismo”, portanto, engendra uma racionalidade prática, imprescindível
para a reprodução do próprio capitalismo. O capitalismo contemporâneo se encontra ordenado
de tal maneira que este tipo de racionalidade se impõe aos indivíduos como uma “crosta”, que
estes não são capazes de fugir ou interferir.

Por sua vez, por “ética protestante”, devemos compreender uma outra individualidade
histórica composta - para problemas que Weber se propõe - por alguns elementos
desenvolvidos a partir da reforma protestante: a ascese intramundana, um determinado
individualismo e uma vocação profissional como principais. Usarei a apresentação de Weber
sobre o calvinismo como exemplo em minha exposição sem entrar em seus detalhes. Um
ponto de extrema importância para nosso problema que começa com a reforma e se
desenvolve de maneira diferente nos diferentes credos puritanos é o que Weber chama de
“desencantamento do mundo”, operado principalmente pela ascese intramundana. A
característica central do calvinismo é a chamada “doutrina da predestinação”. Na concepção
calvinista, por glória Divina alguns seres humanos são predestinados, por toda eternidade, à
salvação enquanto outros são condenados desde toda a eternidade. Aliado a isto, os seres
humanos de antemão não possuem meios de saber se são ou não predestinados à bem-
aventurança eterna. Ou seja, não há ninguém ou nenhum meio mágico capaz de ajudar o
indivíduo, seja na salvação, seja no reconhecimento da predestinação. Tal desenvolvimento
cultural religioso tem como consequência para a subjetividade religiosa a suspeita e
reprovação de todo tipo de “superstição” ou efeito mágico na Terra, uma suspeita de tudo
proveniente deste mundo, o mundo da criatura que caiu no pecado, além do desenvolvimento
de um isolamento do indivíduo - este estava destinado a trilhar seu caminho na Terra sozinho,
e todo tipo de sentimentalismo com o próximo pode ser tomado como divinação da criatura.
Alia-se a este ponto, a noção de vocação profissional calvinista. Vocação possui o significado
de um chamado divino, uma missão dada por Deus. Desta forma, cabe ao indivíduo ter fé na
sua predestinação e cumprir o chamado divino, e a dedicação ao trabalho é o meio para tal. O
ser humano existe na Terra para glorificar a Deus. Assim se configura a ascese intramundana:
não uma reclusão do religioso em uma comunidade monástica apartada da sociedade, mas em
uma conduta de vida metódica, racionalizada, atenta ao chamado divino e que calcula sempre
a forma mais eficiente de glorificar a Deus e que rejeita todo produto temporal da criatura.
Nos cabe agora demonstrar a atitude particular do protestantismo ascético frente à
esfera econômica, aproximando-o do “espirito do capitalismo”. O primeiro elemento
importante neste sentido é a tratativa do lucro e da profissão. A riqueza por si mesma não
configura problema para o calvinismo, o importante é o sentido da atividade do indivíduo
quando este se entrega ao trabalho. A ambição por riqueza é moralmente reprovável, pois o
indivíduo trabalha para a fruição mundana de seus frutos e não para a glorificação de Deus. E
tal fruição, o “descanso sobre a posse” desvia o indivíduo de uma “aspiração a uma vida
santa”. Não obstante, o lucro também configura um sinal do chamado divino – e, portanto,
da predestinação - já que se uma oportunidade de lucro aparece para o indivíduo é porque
Deus a colocou ali, e Deus tem seus motivos para tal. É isso que importa: agir de acordo com
a vontade Deus, revelada para o indivíduo predestinado. É este o sentido calvinista do lucro e
do trabalho, e de suas valorações: garantir a confirmação do seu estado de graça e fazer a
vontade de Deus na terra. Por vezes, glorificar a Deus e cumprir seu chamado é tomado em
um sentido utilitarista: a maximização do bem, seja pessoal ou comunitário. É dessa maneira
que a especialização profissional ganha sentido religioso, já que levaria ao aumento do
rendimento, além do mais, o trabalho especializado é um trabalho ordenado, metódico, de
acordo com os princípios da ascese intramundana. Assim, são três os elementos significativos
da profissão para o calvinismo: o dever moral de cumprir sua vocação, a importância coletiva
– bem comum – que o produto do seu trabalho adquire e, em terceiro lugar, o lucro privado. O
segundo elemento a tratar é sua direção na materialização de uma racionalidade prática,
efetivada em uma razão técnica na esfera da produção e do trabalho. Voltando a discussão
sobre a reprovação da “perda de tempo”, está noção se espalha por todas as esferas da vida,
das recreativas às culturais, familiares e afetivas. O distanciamento de todo comportamento
com finalidade irracional, não consciente, ou que tenha por finalidade o mundo temporal
constitui cada vez mais a constante adequação entre meios e fins na vida cotidiana.

A visão de mundo desencantado e racionalizado e as práticas sociais igualmente


racionalizadas da modernidade encontram compatibilidade com protestantismo. O
desencantamento religioso, o desenvolvimento de uma subjetividade individualista e uma
disposição racional desenvolvidas pelo protestantismo se efetivam na vida econômica por
uma busca por lucro, uma racionalização técnica, em um foco e sentimento de dever no
trabalho. Deste ponto de vista, a ordem econômica aparece como um par de algemas que os
próprios indivíduos prendem ao punho. Os indivíduos são dominados porque as ordens
aparecem como fruto de sua vontade e sua racionalidade. Desta maneira, Weber apresenta
n’A Ética Protestante um diagnóstico crítico de sua época e alguns dos elementos do
desenvolvimento cultural que influíram para a constituição do mundo Moderno.

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