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ENSINO E PRÁTICA JURÍDICA: A


ALQUIMIA DO LETRAMENTO

A L E X A N D R A L U IZ A L O R G U S
Bacharel em Direito e Mestre em Educação

A priori, pensar em ensino do direito, prática jurídica e letramento parece algo


incompatível. Mas os limites teóricos que delimitam os temas permitem
brechas, que incitam a exercitar uma compreensão mais dialógica entre os
conceitos.

A partir da posse de um presidente civil no Brasil, seguida pela promulgação de


uma nova Constituição, em 1988, estabeleceu-se, em tese, um Estado
Democrático de Direito. Esta nova condição política faz surgir das entranhas
do Estado democrático a necessidade de uma ruptura no modus operandi do
ensino do direito e da prática jurídica.

Vitagliano (2001) afirma que são necessárias novas propostas que “rompam
com o senso comum teórico dos juristas”, fazendo surgir alternativas que não
pendam para o positivismo reducionista ou para o jusnaturalismo idealista: mas
que apenas coloquem o direito dentro da história da sociedade e,
principalmente, a serviço dessa mesma sociedade.

O papel das Universidades, Faculdades, Escolas de Direito é indubitável;


ultrapassa a perspectiva de formação profissional, constituindo-se vetor para a
transmissão da cultura, para a formação de novos homens da ciência e para o
desenvolvimento de investigação científica de qualidade e utilidade. Vitagliano
(2001, p. 23) reitera que “o preparo não consiste apenas em uma soma de
informações sobre as leis, mas em tato para trabalhar com o direito alheio, com
a necessária empatia”. Assim, ainda dentro da perspectiva do autor, é
necessário que os conhecimentos produzidos sejam condizentes com a
realidade onde se aplicam, e para a qual são desenvolvidos; as práticas jurídicas
devem estar adaptadas ao real e concreto, e é imprescindível que estas práticas
se tornem emancipatórias.

Pensar em ensino e práticas jurídicas emancipatórias significa compreender a


interdependência das relações jurídicas, sociais e econômicas, apreendendo que
o direito, em última análise, é o instrumento das ações políticas e biopolíticas
que conduzem uma nação. E uma nação não pode permanecer estagnada em
um sono dogmático, que hoje é muito mais efetivo pois é elemento divulgador
de novas ordens, e por isso mesmo, muito mais destruidor.

Assim, é quase imperativo que o estudante de direito deixe de ser mero


espectador da realidade jurídica atual, participe dos processos de mudança,
manifeste-se acerca dos fatos que estão ocorrendo e refute veementemente a
educação bancária, onde o professor deposita regularmente conhecimentos em
uma mente vazia, que deverá render os dividendos previstos da nota suficiente
para aprovação.
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É neste contexto de inserção e participação que encontramos espaço para


discutir a questão do letramento no ensino de direito e no exercício das
práticas jurídicas. Algumas questões são de crucial importância: como a
linguagem é compreendida pelos alunos de direito? É possível inserir práticas
de letramento no ensino de direito e na prática jurídica? Para buscar tais
respostas, compreender o que é o letramento é conditio sine qua non.

LETRAMENTO
A palavra letramento é recém-chegada ao vocabulário das Ciências Sociais. A
primeira referência ao termo é encontrada no livro de Mary Kato “No mundo
da escrita: uma perspectiva psicolinguística”, publicado em 1986. Logo a seguir,
Leda Verdiano Tfouni discorre sobre o tema em “Adultos não alfabetizados: o
avesso do avesso”, de 1988. Na década seguinte foi a vez de Ângela Kleimann,
com “Os significados do letramento”, em 1995, e Magda Soares, com
“Letramento: um tema em três gêneros”, publicado em 1998.

Etimologicamente, a palavra letramento deriva de literacy, que vem do latim


littera, acrescida do sufixo – cy. Soares (2003) explica que o termo letramento
vem traduzir o estado ou condição de quem interage com diferentes
portadores de leitura e escrita. Esse estado ou condição, de acordo com
Fischer (2007), pressupõe as relações que indivíduos ou grupos sociais mantem
com outros, com o mundo que os cerca, formas de interação, tipos de atitudes
e competências discursivas.

Não há porém unanimidade quanto ao conceito de letramento , que tem como


característica própria uma plasticidade determinada pelas condições e
condições determinadas pelo grupo social, pelo indivíduo, pela situação
histórica de determinado estágio de desenvolvimento dos sujeitos do
letramento. Para resolver o impasse, Street (1995) propõe a tese dos Novos
Estudos do Letramento, que identifica não a existência de uma, mas sim de
várias formas de letramento.

Street propõe ainda o modelo de letramento ideológico, que defende a leitura e


a escrita como práticas sociais que servem a um propósito e estas práticas
sofrem alterações segundo o contexto em que estão inseridas. O termo
ideológico é utilizado também por antropólogos, sócio-linguistas e estudiosos
da cultura, significado a tensão entre o poder autoritário e a resistência criativa.
Street afirma que

O argumento sobre os letramentos sociais (Street, 1995) sugere que o engajamento no


letramento é sempre um ato social, desde seu início. As formas em que interagem professores
ou facilitadores e seus alunos é sempre uma prática social que afeta a natureza do letramento
a ser aprendido e as ideias que os participantes possam ter sobre o processo, em especial os
novos aprendizes e sua posição nas relações de poder. Não é válido sugerir que o “letramento”
possa ser “dado” de modo neutro, sendo os seus efeitos “sociais” experimentados apenas
posteriormente ( STREET, 2003, p. 5).

O modelo de letramento ideológico implica em mudanças no discurso


dominante, luta por novas posições e por poder, sendo uma prática saturada
axiológica e ideologicamente. Silva (2008) reitera esta afirmação quando
exemplifica em vários marcos históricos, como a emergência do Estado como
unidade política e a formação de unidades nacionais, que necessariamente não
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se vinculam a questões étnicas e culturais; as mudanças socioeconômicas nas


grandes massas que se incorporaram à formas de trabalho industrial e, em
última instância, a emergência da educação formal.

E N S IN O
D E D IR E IT O , P R Á T IC A S JU R ÍD IC A S E
LETRAMENTO
Compreendendo e significando que vários processos e fatores estão envolvidos
na construção de uma condição letrada, conclui-se preliminarmente que o
letramento é a competência para a participação em determinada forma de
discurso, com propriedade para “falar sobre o falar, sobre questões, sobre
respostas, isto é a competência de uma metalinguagem (GOULART, 2006, p.
451).

Estas práticas letradas dependem, no entanto, das instituições sociais que as


propõem ou exigem, considerando-se “as perspectivas sociais e culturais, cuja
relevância repousa sobre as diferentes pirâmides axiológicas construídas acerca
dos diferentes tipos de conhecimento”(LORGUS, 2009, p. 41).

Assim, o modelo ideológico de letramento conduz à percepção profícua das


consequências trazidas pela utilização da escrita e da leitura e a analisar como
esse fenômeno desencadeia uma série de provocações para mudanças, no
contexto de determinado grupo social, no caso, estudantes de direito e juristas.

A linguagem técnica do direito é, em regra, inacessível à maioria daqueles que


não se encontram entre os sujeitos acima mencionados; o cidadão, muitas
vezes, sequer compreende os reais motivos que o levaram a determinada forma
de constrangimento legal. E este deve ser, a priori, o primeiro passo para o
ensino e prática jurídica emancipatória: a preparação do aluno de direito para
atuar com respeito aos beneficiários de seu trabalho, ou seja a sociedade em si,
o cidadão “comum”. Alfonsin (2011, p. 9) afirma que

A reciprocidade da linguagem, que aí deve ser observada, não pode padecer de vício tão
comum da “superioridade”, da falta de humildade e clareza, características de juristas
criadores de um “outro senso comum” que, de comum, pouco ou nada tem .

As práticas de letramento inserem-se no contexto do ensino e prática jurídica


quando os torna emancipatórios a ponto de qualquer explicação ao cidadão, ou
ao serviço a ele prestado, se torna indispensável. O contrário é o ensino e o
exercício do direito impedido pelo tecnicismo da linguagem erudita, com ares
de certo pedantismo, que em nada modificam a consciência ingênua do aluno
de direito. Somente o surgimento da consciência crítica faz de cada sujeito o
maior responsável pela defesa de seus direitos fundamentais, o que inclui os
graduandos da área jurídica.

INSERÇÃO D E P R Á T IC A S D E L E T R A M E N T O N O
E N S IN O E P R Á T IC A JU R ÍD IC A
Conforme Goulart (2006), a inserção no mundo letrado traz como
consequências a competência de participar de determinada forma de discurso,
o que faz surgir mudanças adjacentes que envolvem os aspectos culturais,
sociais, políticos, econômicos e linguísticos.
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As práticas de letramento são aqui consideradas a partir do domínio da


metalinguagem própria do universo jurídico e para compreender melhor como
essas práticas acontecem, Bakhtin (2003) nos ampara, esclarecendo que há
forças coercitivas, exercidas pela ideologia1, com definição própria e signos
ideológicos próprios. Esses signos ideológicos se manifestam quando há uma
organização social em que aquilo que conduz a escala axiológica do indivíduo
tem seu momento de manifestação por excelência: especificamente, tratamos
aqui dos anos de graduação dos alunos de direito.

Há uma diversidade de campos em que se processam essas produções


ideológicas, e esta diversidade é determinante em relação ao modo como são
apreendidos e compreendidos os discursos. A questão específica do mundo
jurídico é que seu campo de construção ideológica tem como objeto e objetivo
de sua atuação, a sociedade que não está necessariamente inserida no mesmo
contexto ideológico e que depende da compreensão de pirâmides axiológicas
legais para exercer e exigir seus direitos fundamentais. Neste ponto está
estabelecido o paradoxo.

Para romper com o ciclo, que compreende a educação bancaria para os alunos
de direito, efetivada através de uma linguagem erudita e tecnicista, que por sua
vez cria consideráveis distâncias entre o direito e seu objeto, que são as
relações humanas, dos cidadãos comuns (que vivem em sua maioria dentro de
um senso comum muito diferente aquele estabelecido pelos juristas), as
práticas de letramento aparecem como opção importante a considerar.

Mas de que forma são aplicáveis? Através da proposta do ensino do direito e


da prática jurídica emancipatória, onde a leitura do conjunto teórico do direito
e de seus compêndios legais, assim como a elaboração de textos, sejam de
análise ou de peças processuais, passem a produzir efeitos sociais, por
constituírem-se práticas sociais.

O primeiro passo está na formação dos saberes da consciência do aluno de


direito e na apreensão de que estes saberes encontram-se nas experiências
vivenciadas junto aos cidadãos que buscam o amparo legal; estas experiências
passam então a construir um sentimento ético de considerável envergadura,
quando a consciência crítica questiona-se incessantemente: “como devo viver
depois dessa experiência?”. Somente através da investidura do caráter social da
escrita e da leitura no ensino e na prática jurídica, o aluno ( e também o
profissional, o jurista) será capaz de inverter seu papel social, aprendendo a
compreender o anseio dos cidadãos e suas atividades estarão acima do patamar
das urgências temporais e econômicas.

Passa-se a falar de um letramento que, para o aluno de direito e para o jurista, é


um letramento democrático, que faz da atividade jurídica uma real ajuda ao
cidadão, à sociedade, fazendo participar das discussões e da tomada de
decisões, seja a nível pessoal, seja a nível comunitário. A formação destes
sujeitos letrados vai além dos muros das universidades, faculdades e escolas de
direito; convida as instituições jurídicas e outras instituições que comunicam
ciência a compartilhar do compromisso de formar cidadãos que adquiram um

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O círculo de Bakhtin compreende a ideologia como o todo
imaterial que constitui as organizações sociais e possuem um
caráter semiótico próprio
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estado ou condição diferenciado quando apropriam-se da escrita e da leitura,


compreendendo e significando seus conteúdos em sua vida cotidiana.

No tocante ao ensino e prática jurídica, o primeiro passo para a sua


transformação em práticas emancipatórias através do letramento, deve
acontecer dentro das salas de aula, na consciência daqueles que são
responsáveis pela formação de novos profissionais da área, na opção por
técnicas de ensino participativas e informacionais, com ênfase na aprendizagem
pela pesquisa orientada e pela vivencia transformadora da realidade.

CONCLUSÕES
Poder-se-ia utilizar uma analogia entre a escrita e leitura e a alquimia. Porém,
como a arte alquímica requer conhecimentos de maestria, resta realizar uma
breve aproximação.

Assim como na alquimia a Pedra filosofal é capaz de transmutar metais vis em


ouro, a escrita e a leitura, quando imbuídas de seu caráter social, possuem uma
intencionalidade concreta quando transmutam o objeto material (constructos
teóricos e diplomas legais) em puro signo (a transformação da própria
consciência e do contexto em que se está inserido). Mas para tanto é necessária
uma abertura a outras formas de conhecimento, a diferentes vieses
metodológicos para que, do silencioso universo da leitura e da escrita possam
se depreender sentidos.

É também necessário olhar para o universo da vida universitária como um


ambiente híbrido, que acontece pela superposição de modelos e não pela
junção de diferentes elementos, que, em parceria, seriam também parte da
Pedra Filosofal. Com um olhar microcósmico do ensino e prática jurídica,
percebe-se a sutileza de ideologias dominantes que ainda encontram amparo
no excesso de tecnicismo de uma linguagem erudita que não forma e não
informa. Persistindo o ensino e a prática jurídica na construção de um
letramento única e exclusivamente voltado ao domínio desta forma de
linguagem, reduz-se o potencial das universidades, faculdades e escolas de
direito à reprodução de um simples processo cognitivo. Já, quando o
letramento é compreendido como o desenvolvimento de habilidades
específicas a serem utilizadas dentro do universo jurídico, ter-se-á o
conhecimento fundamentado naquilo que o aluno constrói e elabora pela sua
capacidade de “falar sobre”, interpretando e re-significando as ideologias
dominantes do cotidiano, produzindo conceitos e práticas que levem a uma
situação de evolução social.

A alquimia acontece não somente pelo fazer diferente, mas pela mudança de
consciência; assim são as palavras, pura alquimia.

R E F E R Ê N C IA S
ALFONSIN, Jacques Távora. Sujeitos, tempo e lugar da prática jurídico-
popular emancipatória que tem origem no ensino do direito. In
http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/seminario/jacquestavora-
emancipar.pdf

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. – São Paulo: Martins


Fontes, 2003.
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FISCHER, Adriana. A construção de letramento na esfera acadêmica.


Tese de doutorado UFSC. Florianópolis, 2007, v. 1.

GOULART, Cecília. Letramento e modos de ser letrado: discutindo a base


teórico-metodológica de um estudo. Revista Brasileira de Educação – vol.
11, n. 33 – Set/Dez. 2006.

LORGUS, Alexandra Luiza. O TCC como reflexo do letramento


acadêmico dos alunos de graduação em design da Universidade
Regional de Blumenau. Dissertação de Mestrado FURB. Blumenau, 2009.

STREET, Brian. Introduction. The new literacies studies. In Cross cultural


approaches to literacy. Great Britain: Cambrigde University Press, 1995.

SILVA, Edson M. Reflexões acerca do letramento: origem, contexto


histórico e características. In www.cereja.org.br/pdf/20041105-Edson.pdf. -
acessado em fevereiro de 2008.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. – Belo


Horizonte: Autêntica, 2003.

VITAGLIANO, José Arnaldo. A crise do ensino jurídico no Brasil e o direito


alternativo. In Revista Paradigma - vol. 10 n. 11. Ribeirão Preto:
EDUNAERP, 2001.

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