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Psicologia: Ciência e Profissão Out/Dez. 2016 v. 36 n°4, 946-956.

DOI: 10.1590/1982-3703001502014

As Possibilidades da Escuta Psicanaliticamente


Orientada no Âmbito da Defensoria Pública

Vera Lucia Blum Pâmela Cristina da Rocha 


Universidade Federal de Mato Grosso, MT, Brasil. Universidade Federal de Mato Grosso, MT, Brasil.

Resumo: O artigo faz uma reflexão sobre a função da escuta psicanalítica em um contexto em
que os pedidos de ajuda precisam ser traduzidos em demanda jurídica. A experiência sobre
a qual se baseia esta reflexão provém da prática de estágio de alunos do último ano do curso
de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso na Defensoria Pública do Estado.
Posto que a finalidade da Defensoria Pública é defender os direitos dos cidadãos, o artigo
parte da hipótese de que por trás do pedido de garantia de direitos se encontram conflitos
de interesses, os quais sinalizam certa dificuldade de quem pede ajuda ao Estado para lidar
com os impasses resultantes dos (des)encontros com a alteridade. É essa hipótese que justifica
as ideias psicanalíticas mobilizadas neste artigo. A prática dos estagiários de Psicologia, que
estimula o fluxo enunciativo do conflito, parece se contrapor à prática dos operadores do
Direito, que precisam circunscrever os conflitos em termos jurídicos. Todavia, a experiência
vem sinalizando que a escuta psicanalítica, ao promover a circulação da palavra, trabalha no
sentido de fazer emergir um sujeito que responde por sua situação, na perspectiva de que a
solução técnico-jurídica dada ao conflito possa produzir efeitos de cidadania.
Palavras-chave: Processos Legais, Psicanálise, Responsabilidade.

The Possibilities of Psychoanalytically Oriented


Listening in the Public Defender’s Office

Abstract: This article reflects upon the function of a psychoanalytically oriented listening in a
context where the demand for help must be translated into a juridical language. This reflection
is based on an experience of a practical curricular training of students from the last year of
Psychology undergraduate course at the Federal University of Mato Grosso (Brazil) at the public
defender’s office. Given that the goal of the public defender’s office is to ensure the rights of
the citizens, this article works on the hypothesis that behind these demands for help there are
conflicts of interests which highlights the vulnerability from the ones asking for state assistance
to deal with troubles resulted from their (mis)matches with alterity. This hypothesis justifies the
psychoanalytical ideas set in motion in this article. The practice of these Psychology students,
that elicits an enunciation flow of the conflict, seems to be the opposite of the practice by
juridical system operators, who need to translate the conflict into juridical and objective terms.
Nonetheless, the experience has been indicating that a psychoanalytically oriented listening,
when it comes to promote the circulation of the speech, is capable to work towards the emergence
of a subject responsible for its own situation in such a way that the technical-juridical solution
given to these kinds of conflicts can operate citizenship effects.
Keywords: Legal Process, Psychoanalysis, Responsibility.

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Blum, V.L.; Rocha, P.C. (2016). Possibilidades da Escuta Psicanalítica.

Las Posibilidades de la Escucha Psicoanalíticamente


Orientada en el Ámbito de la Defensoría Pública

Resumen: Este artículo reflexiona sobre el papel de la escucha psicoanalítica en un contexto


en que la demanda por ayuda debe traducirse en una demanda jurídica. La experiencia sobre
la cual se basa este análisis proviene de la práctica curricular de los estudiantes del último año
de Psicología en la Universidad Federal de Mato Grosso, Brasil, en el contexto de la Defensoría
Pública del Estado. Puesto que el propósito de la Defensoría Pública es garantizar los derechos de
los ciudadanos, el artículo comienza con la suposición de que detrás de la demanda de garantía
de los derechos hay conflictos de interés, lo que indica cierta dificultad de los que piden ayuda al
Estado para solucionar las cuestiones que resultan de sus (des) encuentros con la alteridad. Por
ese supuesto es que se ha justificado la movilización de ideas psicoanalíticas en este artículo.
La práctica de los estudiantes de psicología, que estimula el flujo de enunciación del conflicto,
parece oponerse a la práctica de los operadores del campo del Derecho, que necesitan limitar
los conflictos a términos jurídicos. Sin embargo, la experiencia ha demostrado que la escucha
psicoanalítica, al promover la circulación de la palabra, está trabajando para hacer emerger un
sujeto que sea responsable por su situación, en la perspectiva de que la solución técnico-jurídica
del conflicto puede producir efectos de ciudadanía.
Palabras clave: Processos Legales, Psicoanálysis, Responsabilidad.

Introdução em um campo no qual os pedidos de ajuda não são


A Psicanálise contemporânea, em sua versão dirigidos originariamente a um psicólogo ou psica-
conhecida como Psicanálise em extensão, Psicanálise nalista, mas a um operador do Direito que os traduz
extramuros ou clínica ampliada, vem sendo praticada em demanda jurídica. Este artigo resulta de reflexões
em locais outrora impensados por Sigmund Freud, seu sobre a prática de estágio de alunos do último ano do
criador, e fora dos enquadres tradicionais: consultório curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato
com atendimento individual e particular, uso do divã Grosso (campus de Cuiabá) no âmbito da Defensoria
e frequência e tempo predeterminados de sessões. Pública do Estado. A experiência de estágio, objeto
Encontra-se o “trabalho de psicanalista” (Green, desta elaboração, tornou-se possível após a assinatura
2002, p. 38) em hospitais (Moretto, 2002), nas ruas, com do Termo de Convênio entre as duas instituições em
grupos da periferia das grandes metrópoles (Broide, novembro de 2012.
2006), nas Varas de Família (Caffé, 2010; Suannes,
2011), na Defensoria Pública (Almeida, 2012), só para
citar alguns exemplos. Embora nascida em consul- Contextualização do campo de estágio
tório, “a Psicanálise é do mundo, de todos os lugares O objetivo do convênio, por parte da Univer-
e classes sociais e está onde a vida pulsa. O que a sidade, é proporcionar aos acadêmicos as condi-
define, antes de tudo, é o método clínico” (Broide, ções para o desenvolvimento da prática profissional
2006, p. 77). Assim, fora de seu enquadre tradicional, prevista na formação. Em relação à Defensoria, o obje-
de que maneira é possível ao psicanalista fazer uso do tivo do convênio é favorecer a criação de um serviço
método psicanalítico? Com quais recursos teóricos e psicossocial que fortaleça a razão de ser das Defenso-
conceituais organizadores da experiência psicanalí- rias, as quais, segundo Souza Junior (2012), são indis-
tica se pode contar ao trabalhar em um campo cuja pensáveis para a construção da cidadania brasileira e
perspectiva é distinta da perspectiva psicanalítica, para a garantia das condições mínimas da existência
mas a ela não necessariamente se opõe? humana. A Defensoria Pública é instituição essencial
Com o intuito de pensar essas questões, este artigo à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
faz uma reflexão sobre o método clínico psicanalítico orientação jurídica e a defesa gratuita, em todos os

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graus, aos que comprovem insuficiência de recursos logo manifestadas. Muitas vezes, já no contato inicial,
financeiros. A Defensoria Pública atua sempre que o estagiário de Direito requisita a presença de um
houver desrespeito aos direitos do cidadão, indivi- estagiário de Psicologia, por dificuldades do assistido
duais ou coletivos. Antes de iniciado o processo judi- em formular e expressar seu pedido. Se houver neces-
cial, a Defensoria pode orientar as partes em conflito sidade de atendimento psicológico individual, ele é
com sugestões acerca da melhor alternativa para a usualmente feito em 50 minutos, em sala reservada
conciliação de interesses dos envolvidos e a resolução para esse fim, cujo foco é a angústia mobilizada pela
do caso, ou optar pela mediação entre as partes, facili- situação em que o sujeito se encontra e que o leva a
tando o diálogo entre elas para que tenham condições pedir ajuda jurídica. No âmbito da DPMT o aten-
de construir a melhor solução para o problema. Além dimento psicológico é feito em até quatro sessões,
de proporcionar uma solução mais rápida, o trabalho de modo a não descaracterizar a função essencial-
da Defensoria procura evitar que o caso seja judicia- mente jurisdicional da instituição. Constatado o
lizado (Brasil, 2009). Os acordos referendados pelos desejo do assistido de continuar a pensar suas ques-
defensores públicos são legalmente considerados tões, ele é encaminhado para o trabalho psicotera-
títulos executivos extrajudiciais, e podem ser execu- pêutico no Serviço de Psicologia Aplicada da Univer-
tados em caso de não cumprimento. sidade Federal de Mato Grosso.
A Defensoria Pública de Mato Grosso (DPMT), Entretanto, é também na situação em que se
criada em 13 de maio de 1998, começou a funcionar visa ao acordo jurídico entre as partes em conflito
em fevereiro de 1999 e compõe-se de vários núcleos que os atendimentos psicológicos adquirem relevo.
e coordenadorias. A fim de tornar mais ágil o aten- Isto porque o desenrolar do trabalho do estagiário de
dimento de causas de menor complexidade na área Psicologia, a partir dessa configuração intersubjetiva
do Direito de Família, criou-se, em 2007, o Balcão da (defensor, partes litigantes, estagiário de Psicologia)
Cidadania, porta de entrada na instituição. Em Cuiabá, que se produz na situação de acordo, está imantado
destacam-se, pela frequência, solicitações de ofício pela perspectiva de que uma ou ambas as partes em
para requerimento de segunda via de documentos, conflito estejam dispostas a pensar as posições subje-
ações relacionadas a filiação, divórcio e separação tivas que estão a ocupar (por exemplo, vítima e/ou
judicial, ações de alimentos, registro civil e orien- algoz; perseguido e/ou perseguidor). Sem negligenciar
tações jurídicas. Constatada a viabilidade de ajuda o campo do Direito, o foco do estagiário de Psicologia
legal, de posse dos documentos necessários para a é, não a obtenção do acordo, mas o sofrimento angus-
causa, o solicitante é encaminhado para atendimento tiado do sujeito por ocasião da situação de acordo.
individual com o estagiário de Direito. O solicitante, Se não houver ajuste entre as partes, – muitas vezes,
agora designado pelos operadores de Direito como mesmo sem o acordo, uma das partes (ou ambas)
“assistido”, tem seu pedido traduzido em demanda aceita(m) a oferta da escuta psicanalítica para pensar
jurídica e, se conflitos de interesses estiverem em suas experiências emocionais – o defensor público
jogo, ele é indagado sobre sua vontade de realizar um entra com a ação competente. Há casos em que o
acordo antes da propositura da ação judicial. Em caso processo judicial é aberto e a/as parte(s) continua(m)
de resposta afirmativa, o assistido é responsável pela a fazer uso da escuta que lhe é oferecida.
entrega de um convite – não se trata de uma inti-
mação, uma vez que as opções extrajudiciais têm por
princípio a voluntariedade das partes – à outra parte A ética da escuta psicanalítica
em conflito, e é então agendada a tentativa de acordo Feito o delineamento do campo operacional em
entre ambos. que se dá a experiência de estágio dos estudantes de
Durante o atendimento inicial do assistido pelo Psicologia, consideremos a dimensão ética e teórica na
estagiário de Direito, o estagiário de Psicologia atua qual sua prática clínica está assentada e a ela dá sentido.
basicamente como coadjuvante, cuja competência O método clínico psicanalítico caracteriza-se
é acolher as possíveis demandas que ultrapassam os pela escuta psicanaliticamente orientada. Mas,
limites da tradução jurídica. O estagiário de Psico- o que é uma escuta psicanaliticamente orientada?
logia costuma circular pelo espaço da Defensoria É uma escuta “descentrada, flutuante, que rastreia
para que as demandas subjetivas sejam escutadas tão os elementos dissonantes, marginais” (Minerbo,

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2009, p. 43) e incongruentes daquele que fala, O dispositivo analítico, portanto, independente-
porque considera que tais elementos sinalizam outro mente do lugar físico onde se instale, está calcado na
sentido e outra lógica simultânea (a lógica incons- ética da escuta psicanalítica, que mantém em suspenso
ciente) para o conflito que se manifesta por meio da os modos habituais e socialmente compartilhados dos
queixa. A teoria psicanalítica, com sua concepção encontros interpessoais. O modo obtuso e não habi-
de sujeito composto por sistemas (inconsciente, tual de escutar o óbvio é um procedimento deliberado
pré-consciente e consciência) e províncias psíquicas cujo fim é evitar a redução ao já sabido, que o desejo
(id/isso, ego/eu, superego/supereu) heterogêneos, de compreender pressupõe e intensifica. Manter-se
irredutíveis e em conflito entre si, é a base sobre a em estado de ignorância e incerteza talvez seja a
qual se dá a escuta clínica, atenta às experiências de precondição da posição empática, “der Standpunkt
sofrimento inconscientes. der Einfühlung” (Freud, 1913/1982, p. 199), a qual
A eficácia da escuta clínica está em seu poder de procura estabelecer conexão com o outro por meio
redimensionar a história de sofrimento daquele que a de um “sentir com” (o que requer alguma habilidade
enuncia. A oferta de uma escuta neutra e abstinente de para “colocar-se na pele do outro”). Colocar-se na pele
juízo de valor favorece as associações do sujeito que, do outro não pressuporia justamente o movimento de
engajado no relato de suas experiências e associa- sair de si, ou seja, a renúncia (temporária) de nossa
ções e com as pontuações do psicanalista a produzir maneira de sentir, saber e ajuizar? Assim, colocar-se
efeitos de significação, tem a chance de se transportar na pele do outro significa renunciar temporariamente
de uma posição subjetiva a outra nos enredos por à própria pele, de modo que uma identificação inten-
ele montados e nos quais se encontra aprisionado, cional (eu-outro) possa ocorrer. Todavia, posto que
e assim elaborá-los. Sobre o valor ético e o efeito cura- de si mesmo não se escapa, o psicanalista acaba exer-
tivo da história redimensionada, pode-se dizer que se cendo uma dupla função.
trata de uma apropriação pelo sujeito de seu próprio
discurso, calcada naquilo que Rosa (2002) chama de Vamos nos preocupar com aquilo que o sujeito
estratégia da escuta clínica. Nela, o analista ocupa e não sente dele mesmo, mas que ele de certa ma-
sustenta o lugar transferencial de suposto-saber sobre neira nos faz sentir. Vamos nos preocupar com
o sujeito (transferência de saber do sujeito ao analista), aquilo que o sujeito não vê dele mesmo, mas que
de modo que “o sujeito supondo que fala para quem ele nos mostra; com aquilo que ele não ouve dele
sabe sobre ele, fale e possa escutar-se e apropriar-se mesmo, mas que nos faz ouvir por meio do seu
de seu discurso. Esse campo permite uma relação que aparelho de linguagem (Roussillon, 2013, p. 113).
estrutura a produção do saber do sujeito” (Rosa, 2002,
p. 4). As pontuações e intervenções psicanalíticas têm Parece-nos que Roussillon (2013) está pondo em
por horizonte a compreensão interna do sujeito sobre relevo duas funções analíticas descritas por Figuei-
a situação em que se encontra, de sorte que transfor- redo (2009a): reconhecimento e interpelação, a operar
mações no modo como o sujeito se relaciona consigo simultaneamente. Identificar-se com/sair da própria
e com o mundo externo são operadas. pele e sustentar-se na posição de analista são os movi-
Sobre o estado mental do psicanalista, que, mentos que correspondem à empatia/reconhecimento
na perspectiva do paciente, detém o saber de como e à douta ignorância/interpelação, que podemos assim
curá-lo, ou livrá-lo de seus padecimentos, a douta enunciar: sinto com aquilo que o outro faz sentir (reco-
ignorância, ou a “ignorância cultivada” (Lyth, 1988, nhecimento), mas ele mesmo não sente, sendo por isso
p. 311), é o estado mental a ser almejado. Tal estado questionado (interpelação).
diz respeito à perspectiva ética do trabalho psicanalí- Ao indagar sobre as aparentes obviedades que o
tico, em que o terapeuta, não sem esforço, se mantém sujeito enuncia, o psicanalista está a criar as condi-
afastado de qualquer tipo de compreensão prévia. ções para que ideias e emoções impensadas (da ordem
Na sustentação de um espaço de interrogação, de uma diferença, uma alteridade), porém já sabidas
estrutura-se um campo favorável para que a pessoa (muito próprias), possam advir e pelo próprio sujeito
que fala estabeleça contato consigo e se veja compe- ser pensadas, ou possam ser ofertadas como interpre-
lida a construir as próprias respostas aos problemas, tação. O efeito de espanto é o critério de que houve
fonte de seu sofrimento. a justa intervenção, que, em última análise, é o efeito

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intempestivo e disruptivo de uma ideia nova sobre (saúde, educação, trabalho, lazer) é a regra, as
as ideias estabelecidas. Desde que a abertura para a pessoas chegam à DPMT fragilizadas e angustiadas
alteridade no campo intersubjetivo esteja preservada, com o problema a ser enfrentado. Quando no sujeito
o espantar-se é seu efeito e condição a sinalizar a flui- se instala a desesperança de ser capaz de resolver o
dificação de crenças e valores cristalizados. problema que o aflige, o sistema de defesa contra a
Por outro lado, o campo intersubjetivo possui, angústia pode ser assim descrito:
igualmente, um poder simbolizador de emoções ou
de pensamentos ainda não pensados, de modo a [...] o problema nuclear é fragmentado, de modo
propiciar a experiência de “fazer sentido” (Figueiredo, que ele não mais exista de forma integrada e re-
2009b, p. 117), “daquilo que irrompe por fora de uma conhecível. Os fragmentos são projetados sobre
trama de saber” (Rosa, 2002, p. 9). partes do mundo externo (instituições, coisas
O ato de cuidar, no campo intersubjetivo, é trans- e pessoas), que são então vivenciados de modo
formador. Ao situar o analista como o outro que cuida, consciente como sendo o problema sobre o qual
Figueiredo (2009a) afirma que ele pode exercer a alguma coisa precisa ser feita, em geral, por al-
função de forma que acolha, sustente, dê limites a tudo guma outra pessoa. A responsabilidade também
que uma experiência e seus afetos carregam. Ele pode é fragmentada e frequentemente projetada para
reconhecer aquilo que de próprio e singular existe no dentro de outros desconhecidos, “Eles”, as auto-
objeto de seus cuidados e, como em um espelho, a ridades (Lyth, 1988, p. 310).
ele devolvê-lo refletido. Pode ainda interpelar e exigir
a emergência do sujeito. Essas funções ou modos de A questão psicológica nodal da projeção da
ser do outro, na relação que mantém com o sujeito, responsabilidade para as autoridades, para os
auxiliam na atividade de fazer sentido, isto é, na ativi- outros, é o sujeito ver-se e ser visto como vítima das
dade de fazer a ligação, pelo pensamento, do que está circunstâncias. Visto como vítima das circunstân-
em pedaços, num todo compreensível afetivamente. cias, do sujeito é subtraída sua dignidade. E o que
O cuidado propiciado pela escuta analítica propõe um é a dignidade senão o amor-próprio e a consciência
deslocamento de sentidos, de ideias e afetos, com o do próprio valor? E como conservá-los mesmo em
intento de ampliar a rede representacional do sujeito. situações aviltantes? Por mais opressora que seja a
Dessa maneira, o cuidado proporciona as condições situação em que a pessoa se encontre, o psicana-
para que o psiquismo, ainda sem muitos recursos lista não pode deixar de se indagar sobre o valor
para efetuar ligações e significações das experiências, do sujeito na posição degradada. Atento à digni-
possa integrar os elementos que ele, na tentativa de se dade do sujeito, o psicanalista está atento ao modo
proteger, tende a expulsar, recalcar e desautorizar da como ele responde à situação. Seu foco não está na
percepção (Figueiredo, 2003a). pessoa/objeto da degradação, mas no sujeito que
Feitas essas considerações acerca da ética da responde ao que lhe advém.
escuta psicanalítica, passemos à questão da ética Se o amor-próprio e a dignidade dependem de
da responsabilidade que, imbricada com a ética da algum controle e poder sobre os objetos e situações
escuta, governa o método psicanalítico. (posição a ser sustentada, ainda que precariamente,
pelo sujeito nas relações humanas e na vida em geral),
então como escapar da posição de mero assujeita-
A ética da responsabilidade mento às circunstâncias da vida, por mais traumá-
A experiência tem demonstrado que boa parte ticas que elas possam ser? Isso é possível quando o
dos sujeitos que procuram ajuda no âmbito do sujeito reconhece em si uma fração da responsabili-
sistema judiciário está persuadida de que a solução dade pela condição em que se encontra, que podemos
para seus conflitos interpessoais só será alcançada assim enunciar: “Como respondo a isso que me afeta?
por meio de um processo judicial. Eventualmente Posso não ter escolhido o que sobre mim se abate,
degradadas como cidadãos, em razão de suas condi- mas sou eu que estou aqui em meio a esse turbilhão e,
ções concretas e materiais de vida, encetadas por quer queira, quer não, sou convocado a responder a
uma sociedade regulada pela lógica do mercado, isso, ainda que eu me cale”. Este parece ser o sentido
em que a expropriação de símbolos de cidadania mais rigoroso da noção de sujeito responsável: aquele

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que responde por, ainda que escolha o silêncio como leva a sofrer – nos deparamos com o sujeito que se
resposta aos constrangimentos. A dignidade, portanto, queixa. Conforme se desenlaçam as questões subja-
está referida ao reconhecimento do sujeito à forma centes à queixa, podem ocorrer expressões de dor na
como ele responde àquilo com que é confrontado. Tal forma de atuações violentas (os “escândalos” presen-
reconhecimento, por sua vez, é o que proporciona a ciados na DPMT são um exemplo) ou na forma de
integração do acontecimento à experiência subje- apatia (a submissão indiferente aos termos propostos
tiva. Considerando que o sofrimento diz respeito ao no acordo e a aparente docilidade em sua aceitação
que não foi integrado ou foi mal integrado em nossa se exemplificam também no contexto do estágio).
experiência subjetiva (Roussillon, 2013), a Psicanálise, Seja como for, o ser humano silenciado e sofrido, que
ao convocar o sujeito a falar/pensar, está a contrapelo apenas sobrevive, desenvolve um sistema de adap-
da adaptação do indivíduo às condições em que se tação psíquica tal que o inclui não como sujeito de
encontra. Senão vejamos: direitos ou cidadão, mas como elemento assujeitado
Uma sociedade cuja organização admite a na sociedade regulada pela lógica da exclusão.
exclusão de muitos de seus membros do usufruto O emudecimento como resultado de um
dos recursos simbólicos que circulam nos campos da processo de exclusão social que, de certo modo, alivia
educação, da saúde, do lazer, entre outros, e que lhes a dor decorrente das adversidades da vida, do ponto
permitiriam ampliar sua compreensão do mundo em de vista psicológico, pode representar um limite
que vivem, potencia o valor do traumático, já que o à eficácia da clínica psicanalítica, uma vez que o
valor do traumático está no que excede a capaci- “pensar sobre” reintroduz o sujeito na via do traumá-
dade de compreensão do sujeito. Pode-se dizer que, tico/não sentido – ação por vezes não suportada por
perante esse excesso, o sujeito se encontra desampa- ele, mesmo com o amparo psicanalítico. Se a ética da
rado psiquicamente para processar o acontecimento responsabilidade orienta a escuta psicanalítica para
(entendido como aquilo que advém e sobre o qual não o sujeito como valor, para o modo como ele encara a
temos poder nem controle). Como o acontecimento é adversidade, é possível discernir duas posições subje-
o que deixa marcas no psiquismo, o excessivo forma tivas de enfrentamento: o sujeito (do inconsciente)
um campo de impensados que não é tramitado pela pode “escolher” enfrentar a adversidade, sofrê-la em
rede de representações porque não há rede suficiente nome próprio e a ela responder; em contraposição,
para o processamento ou metabolização. O campo faz uma “escolha” calcada na tentativa imaginária e
de impensados, rastro de vivências avassaladoras, onipotente de se evadir da dor, seja por meio de quei-
é o campo dissociado da experiência subjetiva de xumes acerca da injustiça da vida, seja por meio da
que nos fala Roussillon (2013), é o desautorizado da violência, seja por meio da apatia. Quaisquer que
percepção de que nos fala Figueiredo (2003a) que, sejam os meios de evasão da dor inevitável e incontor-
como dor crônica, produz sofrimento. Um dos meios nável advinda do acontecimento, todos eles podem
de enfrentamento do sofrimento é o emudecimento, ser resumidos em um “não querer pensar nisso”.
que fenomenologicamente poderíamos descrever Tentemos circunscrever a dinâmica psíquica referida
como um “não querer pensar sobre isso, porque isso ao bloqueio do trânsito de uma posição subjetiva a
dói”. Todavia, como uma defesa, o “não falar sobre” outra, relacionar tal dinâmica com o fator esperança
torna crônico o sofrimento da dor, porque esta não para então concluir que sair ou não do emudecimento
consegue ser tramitada por meio da fala. Em seu depende também da esperança. Sem ela, segura-
crônico sofrer fica o sujeito adaptado às condições mente o emudecimento se torna crônico.
socialmente injustas de vida em que se encontra. Bion (1969) aponta para um conflito evolu-
Lembremos que o indivíduo emudecido, assu- cionário entre o primitivo (ausência de qualquer
jeitado, pode reagir com violência, uma das formas processo de desenvolvimento, que poderíamos asso-
de sobrevivência psíquica da pessoa traumatizada, ciar ao pensar mágico infantil, onipotente) e o sofis-
que assim procura imaginária e onipotentemente ticado (o resultante de trabalho e crescimento, que
evadir-se da dor. Outra forma é a apatia, na qual o poderíamos associar ao pensar que leva em conta as
indivíduo já nem se queixa mais. No contexto da considerações da realidade). Assim, é de se esperar
DPMT, nos deparamos com, talvez, a última tentativa que os estímulos para o crescimento, que despertam,
do sujeito em busca de uma resolução para o que o em maior ou menor intensidade, ansiedade e medo, se

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deparem com reações hostis como defesa e resposta a próprias tramas. Caffé (2012) lembra que no Direito
esses mesmos estímulos a fim de conservar a estag- o conflito é interpessoal e disposto em termos deci-
nação e manter o já estabelecido estabilizado, eviden- díveis, processados pelas normas jurídicas, ao passo
temente para evitar a perturbação que qualquer que na Psicanálise o conflito é intrapsíquico, disposto
mudança de estado implica. As reflexões de Figuei- em termos interpretáveis, processados pelo manejo
redo (2003b) sobre a esperança parecem incidir sobre clínico. O saber também se apresenta de diferentes
esse campo psíquico de movimento ou estagnação: maneiras nas duas áreas: na Psicanálise, é atribuído
ao próprio sujeito (surge na análise enquanto saber
[...] muitas vezes conduzimos processos terapêu- sobre o próprio desejo e narrativa da própria história);
ticos em que o paciente parece não suportar a no Direito, é atribuído a um terceiro que, identifi-
esperança. Em casos assim, se há uma esperança cado com a lei, a aplica enquanto norma, e tem em si
em estado nascente – em decorrência da própria projetada a responsabilidade pela decisão relativa ao
análise ou de acontecimentos fortuitos da vida, conflito interpessoal.
como um bom encontro – o indivíduo a mata sem Embora tenhamos consciência de que,
dó nem piedade [...]. Já observei, algumas vezes, no âmbito da Defensoria, o sujeito procura solu-
indivíduos que entram em estado de ansiedade e ções pela via do Direito, esse reconhecimento não
de pânico quando uma esperança começa a bro- exclui nem impede a escuta e o manejo psicanalí-
tar (Figueiredo, 2003b, p. 162). tico da demanda dirigida ao defensor. Observemos
que a solicitação por estagiários de Psicologia é
Quem sabe, a efetividade das intervenções breves feita no Balcão da Cidadania, onde as chamadas
e pontuais de um encontro terapêutico não depen- proposituras iniciais se relacionam – sem que a
deria também de estarem conservadas as capaci- elas se reduzam – às questões da área do Direito
dades de confiar e de esperar “por dias melhores” de Família. Em linhas gerais e sem nos atentarmos
do sujeito, mesmo sendo atingido por contingências para suas complexidades, podemos afirmar que o
traumáticas? Assim, a esperança – aquela centelha Direito, na qualidade de inscrição da lei, do poder
de humanidade preservada, por mais embrutece- coletivo sobre o individual, regula o campo social
dora que seja a condição social em que o sujeito se dos homens. As dificuldades do Direito em norma-
encontra – diz respeito à disponibilidade interna para tizar as relações familiares referem-se ao fato de que
os bons encontros e abertura (manifestada na forma elas, em nossa sociedade, dependem dos afetos,
de uma demanda) para o cuidado (com a própria exis- mais do que de contratos, de modo que, na maioria
tência) que desses encontros pode resultar. É como se das vezes, essas relações se dão sob o desígnio do
o sujeito pudesse recuperar sua potência e dignidade, desejo de seus membros, portanto, ao que de mais
perdidas para os maus-tratos, por meio dos cuidados singular e avesso às normatizações existe no sujeito.
proporcionados pelo outro e assim desejar entrar em Entretanto, o que escapa ao Direito é justamente o
contato com seu desejo. O espaço analítico, onde quer que interessa à Psicanálise.
que se localize, é um espaço temporalizado. Nele o Constatamos que, ao procurar a Defensoria,
sujeito, ainda que emudecido (apático ou violento), os chamados “assistidos” trazem, muitas vezes,
uma vez preservadas suas capacidades de confiar e de subjacente ao pedido de ajuda por seus direitos, um
esperar “por dias melhores”, pode vir a desejar assumir conflito familiar que não pôde chegar a uma reso-
a responsabilidade por sua vida, pelos problemas nos lução a partir das pessoas envolvidas. Um pedido de
quais está enredado e decidir o que fazer daquilo que divórcio, uma requisição de pensão alimentícia, a
foi e está sendo feito de si. busca pelo reconhecimento de paternidade, se não
foram antes acordados entre as partes, são solicita-
ções que envolvem um conflito que se manifesta no
O (des)encontro entre a momento da tentativa de acordo e que se subtrai ao
Psicanálise e o Direito escopo jurídico. Nesses momentos em que a subjetivi-
Embora os discursos da Psicanálise e do Direito dade “transborda” da fôrma da linguagem do Direito,
versem sobre o conflito, eles versam sobre noções as discussões emocionais/passionais entre as partes
de conflito distintas, construídas dentro de suas fogem aos fatos de interesse para o problema legal.

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A fim de evitar a abertura de um processo judicial, fala da criança, a resposta é negativa. É habitual que
o operador de Direito comumente procede com a expo- ambos os genitores se acusem mutuamente em relação
sição das opções possíveis e suas consequências, com a à criação dos filhos e exponham casos de maus-tratos,
intenção de resgatar o assistido para o foco do acordo, abusos e negligência por parte do outro ou de seus
de forma a resolver a situação e conciliar interesses. parentes. Ao acusar e difamar o outro – fusionando
A ação dos operadores do Direito se constitui em ativi- parentalidade e conjugalidade – parecem não perceber
dade informativa e educativa aos assistidos, importante que relatam uma situação na qual uma criança sofre,
a título de apropriação de um saber necessário para situação essa consideravelmente mais grave do que a
lidar com a situação. Entretanto, existem os casos em relação conjugal em si. Caso isso possa ser pontuado,
que, no momento do acordo, uma ou ambas as partes os pais podem (ou não) reconhecer e assumir o que
do conflito lança(m) inúmeras questões, embates, fatos dizem, e quiçá lidar com as consequências e exigências
passados, que levam a situação ao impasse legal entre do que expressam. Existem casos em que a pontuação
os sujeitos com a consequente abertura de processo e é acolhida por uma das partes, que expressa o desejo
transferência decisória sobre a questão para um terceiro de ser escutada e de elaborar suas angústias e aflições.
elemento de “saber” – o juiz. Nessas ocasiões, ao iden- É evidente que toda e qualquer experiência é acom-
tificar a recusa da conciliação de interesses não como panhada de afetos, emoções, ou ainda mais primitiva-
uma decisão em que pesos e medidas foram postos e mente, de sensações. Não é somente quando se percebe
avaliados, uma decisão que levou em consideração a o “descontrole”, o choro, que se pode intervir. Por vezes,
realidade e os direitos dos envolvidos, a escuta psicana- os acordos se dão, digamos assim, de forma tranquila,
lítica pode, exercendo as funções descritas por Figuei- sem exaltações. Os acordos tranquilos que chamam
redo (2009a), reconhecer o(s) sujeito(s) em relação ao a atenção do estagiário de Psicologia são aqueles em
que parecem querer: “Então você(s) prefere(m) que um que uma das partes, devido a uma docilidade exces-
terceiro, que o juiz decida essa questão por você(s)?”; e siva, parece estar subjugada à outra. Diante da aparente
em caso de negativa ou silêncio, interpelar: “Bom, então passividade do assistido, pode-se interpelá-lo sobre a
diga(m) o que quer(em)”, facilitando a emergência do realidade que o circunda, esclarecê-lo sobre o processo
que incomoda e faz sofrer o sujeito; ou mesmo constatar e suas consequências, indagar sobre sua postura ante
que ali existem substratos precários/falhas na teia repre- o outro etc. Nos casos em que o sujeito aceita a oferta
sentacional para a responsabilização de um desejo ainda de uma escuta psicanalítica, a angústia da qual ele se
não constituído, já que tão somente pulsional e não defende e que sustenta sua posição de dependência
significado/integrado ao psiquismo, e exercer a função quase absoluta do amor do outro (que em sua fala
de acolhimento e continência da apreensão desorgani- aparece como “não posso viver sem ele(a), por isso
zada, do que não faz sentido. A partir do possível surgi- concordo, por isso não quero discutir, por isso aceito
mento de um desejo, (“diga o que quer”) pode-se traba- tudo o que ele(a) quer”) pode ser trabalhada. Normal-
lhar tal desejo ante a lei, em sua relação com a realidade mente, a apatia não é percebida pelos operadores do
– ou seja, ônus e bônus de sua consecução ou adiamento. Direito, obviamente atentos para os fatos legais. A escuta
Outra situação comum com que se lida nas tenta- psicanalítica atenta também para o não dito, os silên-
tivas de acordo é a de regulamentação das visitas de cios, o que falta-dizer, o que destoa.
filhos(as). Em alguns desses casos, um dos pais (ou A abertura de uma ação judicial muitas vezes
ambos) utiliza(m) a criança como moeda de troca, decorre de desejos de vingança em razão de frustra-
corda de cabo-de-guerra, metáforas empregadas para ções vividas. São os casos, por exemplo, em que o casal,
descrever a posição coisificada em que a criança é colo- após a separação conjugal, não consegue elaborar
cada no ringue de embate entre os pais. A observação desafetos e frustrações, e fica preso, no momento
e a pontuação desse posicionamento não declarado do acordo, às minúcias do relacionamento passado,
pelos pais podem fazer com que eles se situem de outra mesmo que a intenção seja discutir questões rela-
maneira no campo intersubjetivo das relações fami- tivas aos filhos. A busca pelo Direito pode revelar-se
liares. É comum a fala de mães que afirmam que os(as) também como uma busca por recursos simbólicos não
filhos(as) não desejam de nenhuma forma frequentar disponíveis em outro lugar para elaboração e signi-
a casa do pai ou conviver com ele, e quando questio- ficação de experiências. A esse respeito, como bem
nadas pelos estagiários se essa seria uma afirmação ou lembrado por Almeida (2012), a justiça tem, além da

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eficácia prática, eficácia simbólica. Ou seja, o Direito Direito percebem a importância e a necessidade da
e seu discurso servem de contorno, de recurso simbo- Psicologia, cuja tarefa capital é acolher, sustentar e
lizador, diante da escassez destes no meio em que o dar contornos à angústia humana. Ao oferecer uma
sujeito se encontra – funciona também como o outro escuta atenta da história subjetiva da injúria sofrida,
que circunscreve simbolicamente o traumático. Não a escuta livre de juízo de valor, do ponto de vista do
são raras as ocasiões em que o sujeito chega até a sujeito, lhe proporciona tempo ao tempo para orga-
instituição sem conseguir sequer expressar o que ali nizar seus pensamentos. Tarefa que dificilmente pode
fora fazer. O Direito, como qualquer discurso cons- ser assumida pelos operadores do Direito que,
truído social e historicamente, também participa da
constituição de subjetividades. Em se tratando do [...] pressionados pelo intenso fluxo de pesso-
Direito de Família, ele estipula, por exemplo, que pais as que aguardam por seu atendimento e aten-
e filhos tenham sua parentalidade (biológica) reco- tos para os dados essenciais para avaliar a per-
nhecida, que ela seja cumprida (no exercício de supri- tinência ou não da abertura de um processo,
mento das necessidades vitais – alimentação, moradia mantêm-se distanciados das queixas e da neces-
etc), que casais possam e devam manter contato com sidade de escuta ampla que demonstram alguns
os filhos por meio de visitas, que possam reconhecer usuários (Rocha, 2012, p. 238).
a separação civil e “resgatar” o investimento finan-
ceiro resultante da união (na forma de bens parti- Ainda que a pessoa que procura a Defen-
lháveis), entre outras determinações. Tudo parece, soria não esteja, em princípio, em busca de um
até o momento, contemplar o que entendemos por psicólogo/psicanalista, são notáveis as questões psico-
justiça, cara ao processo civilizatório, à custa da limi- lógicas, subjetivas, entrelaçadas ao pedido de ajuda jurí-
tação das pulsões individuais potencialmente destru- dica. Nas ocasiões em que as necessidades psicoafetivas
tivas. E dezenas de processos se dão dessa maneira inundam a demanda jurídica, o trabalho do defensor
na Defensoria, todos os dias. Mas o que acontece fica comprometido, uma vez que, por dever de ofício,
quando a lógica envolvida no processo não é a das sua atenção é seletiva e está voltada para a coleta de
normas compartilhadas, mas a dos processos incons- dados e/ou fatos codificados pelo Direito e essenciais
cientes e investimentos pulsionais? O que fazer com para a montagem da peça jurídica. Nessas circunstân-
esse transbordamento? Ele não estaria justamente cias, exercita-se a escuta clínica no sentido de identificar
apontando uma rede representacional insuficiente ressentimentos, conflitos/percepções negados, insufi-
para ligar e dar um sentido àquilo que irrompe? Não ciências na construção da rede representacional, que
decorreria daí o não saber-dizer nem mesmo sobre impedem muitas vezes a ajuda pelo Direito – quando, por
a própria situação, sobre a própria história e sobre exemplo, a queixa não é possível de ser traduzida em ação
o próprio desejo? São questões com que a Psicaná- judicial. Embora possa não ser a regra, é bastante provável
lise se depara no âmbito da lei e que concernem ao que o indivíduo pobre não usufrua dos bens culturais
campo de trabalho da Defensoria, ao mesmo tempo que uma sociedade de mercado também oferece. E isso
que dele destoam. Aqui a busca por defesa de direitos é muito grave, pois é sabido que são sonegados recursos
está muitas vezes atravessada por insuficiências em simbólicos culturais a uma parte da população, dos quais
relação ao campo simbólico, potenciadas por uma a rede representacional é constituída e condição de possi-
realidade social injusta e desigual. bilidade para a compreensão do mundo.
O trabalho dos estagiários do curso de Psicologia
realizado na Defensoria permite instaurar a circu-
Considerações finais lação da palavra. Isso significa recorrer ao simbólico
Notadamente, as pessoas que experimentam para lidar com o sofrimento do sujeito, seja ele deri-
algum dano no que julgam (acertadamente ou vado das insuficiências da rede representacional, seja
não) ser seus direitos chegam à Defensoria relativa- ele derivado das dificuldades na negociação de seus
mente feridas emocionalmente. Sentindo-se avil- desejos diante do mundo e dos outros. A Psicanálise,
tadas, sequer conseguem formular um pedido de ao atentar para o valor do sujeito diante das condições
ajuda articulado devido ao choro e ao descontrole em que se encontra, lança-o ao encontro do campo de
emocional. É nessas ocasiões que os operadores do impensados e propicia, com o exercício das funções

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de cuidado, a ressignificação da experiência, por meio para pensar a articulação entre os modos de ação
da linguagem. A linguagem que, segundo Almeida do psicólogo/psicanalista e do defensor público em
(2012), é o meio pelo qual o campo social se organiza um cenário institucional (Almeida, 2012) – no nosso
e possibilita a troca e a negociação dos desejos. caso – a Defensoria Pública de Mato Grosso.
A prática dos estagiários de Psicologia, que A experiência vem sinalizando que a escuta
estimula o fluxo enunciativo do conflito, da dor e psicanalítica, ao promover a circulação da palavra,
da história do sujeito, contrasta com a prática dos trabalha a contrapelo do paternalismo. O horizonte
operadores do Direito, que precisam circunscrever os do trabalho do estagiário é a emergência de um sujeito
conflitos ou pedidos de ajuda em uma linguagem tal que responde pela situação em que se encontra e dela
que favoreça a montagem da peça jurídica. Ao estender se apropria, de modo a evitar a judicialização da vida
o percurso que culmina no acordo ou na abertura de cotidiana e a inserção da “autoridade” no processo
processo, os estagiários de Psicologia acabam por decisório em favor da responsabilização. A escolha
interferir no ritmo do trabalho dos defensores. É nessa desse horizonte nos leva à formulação da hipótese
interferência que se vislumbra o caminho para a de que a solução técnico-jurídica dada ao conflito
interlocução entre a Psicanálise e o Direito (Caffé, tem mais chances de produzir efeitos de cidadania
2010 e 2012), propiciadora, talvez, de condições perante um sujeito que se estima responsável.

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Recibido 10/31/2014
Vera Lucia Blum Reformulado 26/05/2015
Doutora pela Universidade Católica de São Paulo, São Aceptado 11/11/2016
Paulo - SP. Brasil e Docente da Universidade Federal
de Mato Grosso, MT, Brasil
E-mail: verablum@terra.com.br

Como citar: Blum, V. L., & Rocha, P. C. (2016). As possibilidades da escuta psicanaliticamente orientada no âmbito
da defensoria pública. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(4): 946-956. doi:10.1590/1982-3703001502014

How to cite: Blum, V. L., & Rocha, P. C. (2016). The possibilities of psychoanalytically oriented listening in the
public defender’s office. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(4): 946-956. doi:10.1590/1982-3703001502014

Cómo citar: Blum, V. L., & Rocha, P. C. (2016). Las posibilidades de la escucha psicoanalíticamente orientada en el
ámbito de la defensoría pública. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(4): 946-956. doi:10.1590/1982-3703001502014

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