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Abordagem Neuropsicológica do Autismo e da Epilepsia

Estudo de um caso: análise do comportamento adaptativo e proposta


terapêutica

Cláudia Gaspar*

*Aluna da Especialização Avançada em Neuropsicologia Pediátrica – CRIAP

Resumo
Com base numa breve revisão de literatura sobre autismo, epilepsia e a sua comorbilidade,
procede-se ao estudo de caso de um adolescente com as duas patologias. É avaliado e analisado
o comportamento adaptativo do indivíduo à luz dos resultados obtidos pela aplicação da Escala
de Comportamento Adaptativo – versão portuguesa (Santos, 2007) e é elaborado um plano
terapêutico intensivo para seis meses.

Palavras-chave: Autismo, Epilepsia, Comportamento Adaptativo

Abstract

Based on a brief review of the literature on autism, epilepsy and its comorbidity, the case study
of a teenager with both pathologies is carried out. The adaptive behaviour of the individual is
evaluated and analyzed using the Adaptive Behavior Scale - Portuguese version (Santos, 2007)
and an intensive therapeutic plan for six months is elaborated.

Keywords: Autism, Epilepsy, Adaptative Behaviour


Autismo

Kanner, em 1943, usou a expressão autismo para descrever 11 crianças que tinham em
comum comportamento bastante original. Sugeriu que se tratava de uma inabilidade inata para
estabelecer contacto afetivo e interpessoal e que era uma síndrome bastante rara, mas,
provavelmente, mais frequente do que o esperado, pelo pequeno número de casos
diagnosticados. Estas crianças apresentavam em comum, desde cedo, défices importantes nas
relações sociais do dia a dia, preferindo estar sozinhas. O seu comportamento era bizarro,
caracterizando-se por interesses e atividades restritos, repetitivos e estranhos. A linguagem era
peculiar: três crianças não falavam e as restantes apresentavam ecolalia e outras características
pouco comuns, sendo-lhes difícil manter uma conversa.
O conhecimento e a informação sobre as perturbações do espetro do autismo (PEA) tem
mudado ao longo do tempo, sobretudo desde a publicação do DSM-5 onde foram introduzidas
consideráveis variações que alteraram a conceção atual das PEA. As PEA são transtornos do
desenvolvimento neurológico definidas por défices persistentes na comunicação e interação
social e pela presença de padrões restritivos e repetitivos de comportamento, interesses ou
atividades. Tal como definido pelo DSM-5, os sintomas devem estar presentes nas primeiras
fases do desenvolvimento infantil, causando um deterioramento clinicamente significativo no
funcionamento social, laboral ou outras áreas, e não pode ser explicado por défice intelectual
ou atraso global do desenvolvimento.
Ao nível neurológico, algumas pesquisas apontam para a existência de algumas
diferenças nas estruturas e funcionamento cerebral. Salienta-se a investigação de Bauman &
Kemper (2004), que encontraram alterações neuropatológicas consistentes no sistema límbico
e nos circuitos cerebelares dos cérebros estudados até ao momento. As células do sistema
límbico (hipocampo, amígdala, corpos mamilares, giro anterior do cíngulo e núcleos do septo)
são pequenas no tamanho e aumentadas em número por unidade de volume (densidade celular
aumentada) em comparação com o grupo de controlo. Neste sentido, os autores sugeriram um
atraso no desenvolvimento maturacional dos circuitos do sistema límbico. Nos cerebelos
estudados, foi encontrado um número diminuído de células de Purkinje, especialmente no
neocerebelo póstero-lateral e no córtex arquicerebelar adjacente (porções posterior e inferior
do cerebelo).
Estudos recentes têm utilizado ressonância magnética funcional para estudar áreas de
processamento social em casos de autismo. Normalmente, durante este exame neurológico, há
uma acentuada ativação do giro fusiforme (GF), ou área facial fusiforme (AFF), em reposta a
uma tarefa de visualização de faces. No estudo de Pierce, et al. (2001), os resultados gerais

2
revelaram uma fraca ou nenhuma ativação no GF em pacientes autistas, bem como redução
significativa da ativação no giro occipital inferior, sulco temporal superior e amígdala.
Verificaram-se também anormalidades anatómicas apenas na amígdala em pacientes autistas,
cujo volume médio era significativamente reduzido em comparação com os normais. Em
indivíduos autistas, durante a tarefa de perceção de faces, nenhuma das regiões que apoiam o
processamento de faces se mostraram significativamente ativadas. Em vez disso, em cada
paciente autista, foram registadas ativações em zonas e estruturas específicas em cada
indivíduo, por exemplo, córtex frontal, córtex visual primário, o que contrasta com a
consistência de 100% de ativação máxima dentro da área facial fusiforme para cada sujeito
normal. Parece que, em comparação com indivíduos normais, indivíduos autistas visualizam
rostos utilizando diferentes sistemas neurais, com cada paciente fazendo isso através de um
circuito neural único. Tal padrão de ativação dispersa específica dos indivíduos autistas, em
contraste com a ativação do GF altamente consistente observada em indivíduos normais, sugere
que fatores experienciais realmente desempenham um papel no desenvolvimento normal da
área facial fusiforme.
Na publicação de O’Hearn, et al. (2008), os autores fazem um levantamento dos
principais estudos sobre o funcionamento neurológico e neuropsicológico de indivíduos
autistas. Destacam que os estudos que investigam a integridade dos sistemas cerebrais no
autismo sugerem uma ampla variedade de anormalidades na matéria cinzenta e branca, que
estão presentes no início da vida e mudam com o desenvolvimento. Essas anormalidades afetam
predominantemente as áreas de associação e prejudicam a integração funcional. As funções
executivas, que têm um desenvolvimento prolongado na adolescência e refletem a integração
de funções cerebrais complexas e amplamente distribuídas, também são afetadas no autismo.
Salientam também que os estudos que investigam a inibição da resposta e a memória de trabalho
indicam deficiências nesses componentes centrais da função executiva em indivíduos autistas,
bem como nos mecanismos compensatórios que permitem a função normativa. Paralelamente,
também há investigações que demonstram melhorias relacionadas com a idade na função
executiva desde a infância até a adolescência no autismo, indicando a presença de plasticidade
e sugerindo uma janela prolongada para o tratamento eficaz. Apesar dos ganhos de
desenvolvimento, o funcionamento executivo maduro é limitado no autismo, refletindo
anormalidades em redes cerebrais disseminadas que podem levar a um défice no processamento
de informações complexas em todos os domínios.

Epilepsia

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Como define a International League Against Epilepsy (2005) (ILEA), uma crise
epilética é uma ocorrência transitória de sinais e/ou sintomas devido à atividade neuronal
excessiva ou síncrona anormal no cérebro. A epilepsia é um distúrbio cerebral caracterizado
por uma predisposição duradoura para gerar convulsões epiléticas e pelas consequências
neurobiológicas, cognitivas, psicológicas e sociais dessa condição. A definição de epilepsia
requer a ocorrência de pelo menos uma crise epilética. Epilepsia é então o nome de uma
desordem cerebral caracterizada predominantemente por interrupções recorrentes e
imprevisíveis da função cerebral normal. A epilepsia é uma variedade de desordens que
refletem a disfunção cerebral subjacente e que pode resultar de muitas causas diferentes.
Neste sentido, importa distinguir as crises epiléticas que ocorrem em resultado da
predisposição cerebral para as originar (epilepsia) das crises induzidas por perturbações
sistémicas, tais como, hidro-eletrolítica ou tóxico-metabólica (crises metabólicas agudas)
(Bentes & Pimentel, 2013).
As crises epiléticas, ou convulsões, podem ser causadas por múltiplos mecanismos. De
uma maneira geral, as crises surgem quando há uma rutura de mecanismos que normalmente
criam um equilíbrio entre excitação e inibição. Normalmente existem mecanismos de controlo
que impedem os neurónios de descarregar excessivamente o potencial de ação, mas também
existem mecanismos que facilitam o disparo neuronal para que o sistema nervoso possa
funcionar apropriadamente. Interromper os mecanismos que inibem o disparo ou promover os
mecanismos que facilitam a excitação pode levar a convulsões (Scharfman, 2007).
As crises epiléticas podem ser classificadas de várias formas. No que diz respeito ao
tipo, a ILEA, através do relatório de Berg et al. (2010) distingue as crises generalizadas das
crises focais. Crises epiléticas generalizadas têm origem num determinado grupo neuronal e
rapidamente se estende a redes distribuídas bilateralmente. Essas redes bilaterais podem incluir
estruturas corticais e subcorticais, mas não incluem necessariamente todo o córtex. Estas crises
podem ser tónicas, clónicas ou tónico-clónicas, atónicas, mioclónicas e ausências e,
normalmente, são acompanhadas de perturbação de consciência (Bentes & Pimentel, 2013).
As crises epiléticas focais são originárias de redes limitadas a um hemisfério e podem
ser discretamente localizadas ou mais amplamente distribuídas. As crises focais podem também
ter origem em estruturas subcorticais. Para cada tipo de crise, o foco de início é consistente de
uma convulsão para outra, com padrões de propagação preferenciais que podem envolver o
hemisfério contra lateral. Em alguns casos, no entanto, há mais de uma rede e mais de um tipo
de crise, mas cada tipo de crise individual tem um local consistente de início (Berg et al. 2010).
As crises focais podem ser simples ou complexas. Nas crises simples a consciência é mantida
e podem apresentar diferentes sintomatologias (motora, sensitiva, sensorial, autonómica e

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psíquica); as crises complexas manifestam-se por diversos tipos de automatismos com
alterações de consciência e reportam-se, por norma, aos lobos temporais, frontais ou estruturas
corticais vizinhas (Bentes & Pimentel, 2013). Podem ainda ser focais com generalização
secundária (Quadro I).

Crises generalizadas Consciência perturbada


- Tónicas, clónicas ou tónico-clónicas
- Mioclónicas
- Atónicas
- Ausências (típicas ou atípicas)

Crises focais Simples (consciência mantida)


- com sintomatologia motora
- com sintomatologia sensitiva
- com sintomatologia sensorial
- com sintomatologia autonómica
- com sintomatologia psíquica
Complexas (consciência perturbada)
- começo com crises simples, com
progressão para complexas
- perturbação da consciência desde o início:
a) apenas perturbação da consciência;
b) com automatismos
Focais com generalização secundária

Crises inclassificáveis

Quadro I – Tipologia das crises epiléticas

No que diz respeito à etiologia, as epilepsias agrupam-se em origem genética,


estrutural/metabólica e desconhecida.
O conceito de epilepsia genética define a epilepsia como sendo o resultado direto de um
defeito(s) genético(s) conhecido ou presumido(s) em que as convulsões são o principal sintoma
do distúrbio. O conhecimento sobre as contribuições genéticas pode derivar de estudos
genéticos moleculares específicos (por exemplo, SCN1A e síndrome de Dravet) ou de estudo
familiares devidamente planeados que colocam em evidência o papel central de um
determinado componente genético (Berg et al. 2010).
A epilepsia pode também ter origem numa condição estrutural ou metabólica distinta,
ou doença, que se comprove estar associada a um risco substancialmente aumentado de
desenvolver epilepsia. As lesões estruturais, naturalmente, incluem doenças adquiridas, como
acidente vascular cerebral, trauma e infeção (Berg et al, 2010).

5
As epilepsias de origem desconhecida designam que a natureza da causa subjacente é
ainda desconhecida; pode existir um defeito genético na sua essência ou pode ser a
consequência de uma desordem estrutural ou metabólica ainda não reconhecida (Berg et al,
2010).
O tratamento da epilepsia pode ser através de Fármacos Anti-Epiléticos e, numa
pequena percentagem de casos, entre 5% a 7%, poderá ser indicada a cirurgia (Bentes &
Pimentel, 2013). A cirurgia pode ser curativa - recessão da zona epileptógena e
hemisferectomia/hemisferotomia - ou paliativa, como a calosotomia e a implantação de
estimulador do nervo vago.

Autismo e epilepsia – que relação?

O autismo está associado à epilepsia na primeira infância, com evidências sugerindo


que indivíduos com autismo e comprometimento cognitivo mais grave correm maior risco. O
estudo de Gabis et al. (2006) salienta que a incidência de um eletroencefalograma anormal e /
ou epilepsia em todo o espectro das Perturbações Invasivas do Desenvolvimento (PIDs), não
está bem definida. Assim, este estudo aborda a incidência de epilepsia e anormalidades
eletroencefalográficas em crianças com PIDs. Foram resvistos a história clínica e o
eletroencefalograma de 56 crianças diagnosticadas com PID - sem outra especificação, autismo
ou síndrome de Asperger. Quarenta por cento das crianças com autismo foram diagnosticadas
com epilepsia. Eletroencefalogramas anormais e epilepsia ocorreram em taxas
significativamente mais altas em crianças na faixa mais comprometida do espectro do autismo,
sem, no entanto, apresentarem patologia de base específica, permanecendo indefinido se as
crises epiléticas ou as alterações encontradas são causa ou comorbidade.
Um outro estudo muito recente (Kumaraku et al. 2018) tem como objetivo descrever a
comorbidade da epilepsia na Perturbação do espectro do autismo na Albânia, com um foco
especial sobre o efeito da epilepsia na idade de regressão e no intelecto (QI). Foram estudados
164 pacientes com diagnóstico de Perturbações do Espectro do Autismo no período entre 2011
e 2014. Neste grupo de pacientes, a comorbidade de epilepsia e PEA foi encontrada em 40
crianças (24%). Entre estes, houve uma correlação positiva significativa entre menor QI e idade
precoce de regressão. Os pacientes que apresentavam as duas patologias tiveram um QI médio
mais baixo do que os pacientes apenas com PEA.
Na meta-análise de Amiet et Aal. (2008), foram estudados todos os dados disponíveis
de relatórios publicados entre 1963 e 2006 sobre autismo e epilepsia para avaliar o risco relativo
(RR) de epilepsia no autismo de acordo com a Deficiência Intelectual (DI) e género. Os grupos
6
reunidos incluíram 2112 indivíduos (627 com QI ≥ 70, 1485 com QI < 70) e 1530 (1191 homens
e 339 mulheres), respetivamente. Chegaram à conclusão que havia uma forte discrepância no
risco relativo (RR) de acordo com o QI, com mais pacientes autistas com DI tendo epilepsia. A
prevalência combinada de epilepsia foi de 21,5% em indivíduos autistas com DI versus 8% em
autistas sem DI. Houve também uma forte discrepância no RR em função do sexo, favorecendo
a comorbidade da epilepsia em meninas autistas. A razão homem:mulher do autismo em
comorbidade com epilepsia foi próxima de 2:1 enquanto que a razão homem:mulher do autismo
sem epilepsia foi de 3,5: 1.
Manzi et al (2008), citado por Pereira (2012) aponta também para a existência de
defeitos metabólicos associados a sintomas autistas e epilepsia, com uma prevalência mais
elevada do que a encontrada na população geral.

Estudo de Caso

À data da realização deste artigo, o Rafael é um rapaz de 16 anos.


Nasceu a 18/10/2002 no Hospital de Faro. A gravidez, que decorreu com normalidade
e acompanhamento médico, foi de termo (39 sem.), parto pélvico, índice de Apgar de 6 ao 1’ e
10 ao 5’; peso ao nascer de 2770g, comprimento de 49,2 cm e perímetro cefálico de 33,5 cm;
foi necessária reanimação e administração de oxigénio.
Desde os 4 meses que apresentava episódios esporádicos de revolução ocular, que se
tornaram frequentes, associados a queda de cabeça e postura em extensão dos membros
superiores, sendo interpretados como crises convulsivas aos 18 meses. As crises foram de difícil
controlo, refratárias à terapêutica médica instituída.
O desenvolvimento psicomotor foi aparentemente adequado numa fase inicial, mas por
volta dos 2 anos foi notado um atraso no desenvolvimento. Adquiriu autonomia para a marcha
aos 27 meses mas nunca adquiriu linguagem expressiva e, atualmente, o Rafael está dependente
de terceiros para todas as atividades de vida diária. A investigação etiológica (imagiológica,
metabólica e genética) foi inconclusiva.
Inicialmente o Rafael cumpriu critérios de Perturbação do Espectro do Autismo, no
entanto, ao longo dos anos a sua condição clínica resultou em deterioração cognitiva e,
atualmente, o que predomina é o défice cognitivo severo.
Os resultados dos exames neurológicos efetuados em 2008 revelam “a existência de
abundante atividade paroxística multifocal constituída por pontas e ponta-onda, ocorrendo de
forma independente sobre as regiões parieto-temporais posteriores de ambos os hemisférios,
com propagação contra lateral frequente.”
7
O Rafael foi sujeito a uma calosotomia anterior em 2/3, com objetivos paliativos, três
dias antes do seu sétimo aniversário, a 15/10/2009, que decorreu sem complicações, no entanto,
em consulta de reavaliação de Neuropediatria, decidiu-se continuar com a medicação uma vez
que as crises persistiram. Segundo informações da mãe, após a cirurgia, o filho regrediu ao
nível funcional mas tornou-se menos agressivo.
O Rafael apresenta diversos tipos de crises: tónicas, tónico-clónicas, mioclónicas,
ausências, com alterações de consciência, e ainda crises versivas, com manutenção da
consciência (Yacubian & Kochen, 2014). Atualmente o Rafael toma vários fármacos por dia:
Rufinamida, Fenitoína, Clobazam e Levetiracetam. Recentemente, a mãe optou também por
administrar Canabidiol.
No que diz respeito à funcionalidade, como já foi referido anteriormente, o Rafael está
completamente dependente de terceiros para levar a cabo qualquer atividade de vida diária. Ao
nível motor, o jovem caminha mas tem que ser orientado pois desequilibra-se com frequência
e, por vezes, adquire uma postura “encurvada”, com a cabeça pendida para a frente; mantém-
se sentado por longos períodos de tempo e apresenta alguma colaboração no vestir, despir,
mudar a fralda. Na alimentação, o Rafael consegue levar alguma comida à boca mas não
consegue usar talheres; consegue usar o copo mas não se exprime quando tem fome ou sede.
Para melhor compreender o nível de funcionalidade do jovem, foi aplicada a Escala de
Comportamento Adaptativo – versão portuguesa (ECAP) (Santos, 2007). Esta escala tem como
principal objetivo identificar as áreas fortes e fracas dos indivíduos como base para a construção
de planos habilitativos adequados à sua participação plena e inclusiva na sociedade e foi aferida
para a população portuguesa com e sem Deficiência Mental (DM).
Santos (2007, p. 59) define Comportamento Adaptativo (CA) como:

“o conjunto de habilidades aprendidas ou adquiridas para desempenhar


com sucesso aspectos e tarefas, no âmbito da independência,
responsabilidade pessoal e social, que através de ajustamentos vários
procura a adaptação às expectativas sócio-culturais e etárias vigentes, e
que implicam o assumir do papel de membro ativo na comunidade onde
o indivíduo se insere”.

Assim, de uma forma geral, o CA refere-se à qualidade da performance diária dos


indivíduos em lidar com as exigências do seu envolvimento. Os resultados obtidos, obviamente,
foram analisados à luz das normas para a população com DM.
A ECAP está organizada em duas partes: uma primeira relacionada com as
competências de independência pessoal, avaliando as competências consideradas importantes
para a autonomia e responsabilidade no dia-a-dia em dez domínios, e uma segunda que avalia

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os comportamentos desviantes relativos à manifestação de problemas de personalidade e
comportamentais em 8 domínios (Santos, 2007).
Neste estudo de caso, optou-se por analisar o CA adaptativo do Rafael, domínio a
domínio, uma vez que o nível de funcionalidade do jovem é muito baixo. De referir que, apesar
da ECAP ter sido aplicada na íntegra, considera-se que os domínios da Atividade Económica,
Números e Tempo, Atividade Doméstica, Atividade Pré-Profissional, Responsabilidade e
Conformidade não são pertinentes no estudo de caso devido, por um lado, o já mencionado
nível de funcionalidade do jovem e, por outro, o facto de muitos dos itens (perguntas e
respostas) não se adequarem à situação real.
No primeiro domínio, a Autonomia, o Rafael obteve uma classificação funcional
abaixo da média, revelando significativas dificuldades adaptativas: não come sozinho, ainda
que por vezes agarre nos alimentos com a mão e os leve à boca, de forma descoordenada e sem
critério, mas não consegue usar talheres; usa fralda; colabora pouco no vestir/despir e na higiene
pessoal que tem que ser feita por terceiros.
Ao nível do Desenvolvimento Físico, o jovem obteve uma classificação funcional
abaixo da média, revelando dificuldades sensório-motoras, equilíbrio, lateralidade, noção
corporal, praxia fina e global.
No que diz respeito ao Desenvolvimento da Linguagem, os resultados revelam um
nível funcional fraco pois não tem qualquer linguagem expressiva, ainda que emita alguns sons
principalmente em situações que o deixam satisfeito, mas revela algum nível de compreensão
da linguagem recetiva, como ordens simples.
No domínio da Personalidade, os resultados mostram que o jovem se encontra abaixo
da média, revelando uma grande passividade, com pouco interesse pelo ambiente que o rodeia.
Apenas revela iniciativa para aqueles que são os seus objetos de eleição, não conseguindo
manter a atenção em atividades significativas.
A Socialização obtém uma classificação funcional de muito fraco, uma vez que o
Rafael tem graves dificuldades sociais e de interação com os outros, não demonstrando
iniciativa na relação com os outros e uma fraca resposta à tentativa de interação de outros.
Nos domínios da segunda parte da ECAP, no Comportamento Social o Rafael situa-se
acima da média. É um jovem que não revela comportamentos abusivos em termos emocionais
e físicos, como ameaças ou perda de auto-controlo.
O domínio Merecedor de Confiança classifica-se na média, uma vez que o Rafael não
representa “perigo” para os outros no que diz respeito a comportamentos como roubar, enganar
ou de desrespeito.

9
No domínio do Comportamento Estereotipado e Hiperativo, o jovem obteve uma
classificação funcional na média, ainda que apresente alguns comportamentos e movimentos
estereotipados.
No que diz respeito ao Comportamento Sexual e Comportamento Auto-Abusivo, os
dois domínios se situam na média. O jovem não revela qualquer comportamento disfuncional
no âmbito da sexualidade nem que cause danos em si próprio.
Ao nível do Ajustamento Social, o Rafael, como seria de esperar obtém uma
classificação de muito fraco.
Por fim, o domínio do Comportamento Interpessoal Desajustado classifica acima da
média, pois o jovem não revela atitudes que possam causar incómodo em terceiros ou sobre
estes.
Constata-se, pois, que as áreas mais fracas do Rafael são aquelas que se predem com a
autonomia e independência em atividades do dia-a-dia, linguagem e socialização. As áreas
fortes que se destacam são que se relacionam com comportamentos desajustados em contexto
social (gráfico 1).

Classificação Funcional dos domínios de CA


20
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
e
ia

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Co
Co

Valor médio

Gráfico 1 – Resultados da ECAP

Proposta terapêutica

Tendo em conta o nível de funcionalidade e comportamento adaptativo do Rafael, a


resposta terapêutica deve incidir fundamentalmente em quatro áreas:
Linguagem/Comunicação, Atividades de vida diária (AVD’s), Psicomotricidade e
10
Socialização. O plano proposto (Quadro II) deverá ser avaliado e revisto num prazo de seis
meses. Uma vez que o Rafael está inserido numa Unidade de Apoio à Educação de Alunos com
Multideficiência e Surdocegueira Congénita numa escola da rede pública, que dispõe de
recursos humanos especializados na reabilitação e terapia, propõe-se que as atividades definidas
no plano sejam aplicadas diariamente, sempre que possível.

Áreas Objetivos Estratégias


- Desenvolver - Introdução de um sistema de comunicação
estratégias básicas aumentativa como o PECS (Picture Exchange
de comunicação não Communication System) para que o jovem
verbal aprenda a trocar as imagens associadas a itens ou
Linguagem/
situações relacionadas a atividades de vida
- Promover o diária, como alimentação, bebida ou mudança de
Comunicação
desenvolvimento da fralda, em casa e em contexto escolar, e com
capacidade de atividades lúdicas ou objetos que sejam do seu
atenção seletiva agrado.

- Desenvolver Alimentação
comportamentos de
colaboração nas - treino de uso da colher
diferentes AVD’s

AVD’s - Promover a
autonomia nas Vestir/Despir e higiene pessoal
AVD’s
- treino de movimentos funcionais colaborativos

- Promover a Tátil: Experiências com diferentes texturas,


estimulação de todo consistências e contato: perceção tátil de
o sistema sensorial, diferentes superfícies (lisas, crespas, ásperas e
vestibular e macias...), variação de temperaturas
propriopercetivo; (quente/frio).

- Estimular os Visual: Experiências com diferentes


diversos canais intensidades de luzes, cores e contrastantes.
sensoriais de forma Estas experiências deverão ser devidamente
integrada (visão, controladas para que não despoletem crises
Psicomotricidade tato, audição, olfato, epiléticas.
paladar),
favorecendo o Auditivo: Experiências com diversos sons e
reconhecimento do efeitos sonoros (música, ruído e tons diversos).
seu próprio corpo
suas funções e as Olfativo: Experiências com diferentes odores
sensações presentes e aromas.
em seu quotidiano,
desenvolvendo a Gustativo: Experiências orais e com sabores.
perceção sensorial.

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Vestibular e Propriopercetivo: Atividades de
equilíbrio e balanceamento
- Aumentar o uso de - atividades de grupo com os colegas em
expressões faciais e contexto escolar
gestos para regular a
interação social; - ludoterapia
Socialização
- Promover o - reforço positivo
desenvolvimento de
estratégias de - exposição a diferentes situações sociais
interação com os
outros.
Quadro II – Plano Terapêutico

Considerações Finais

Não havendo ainda certeza científica sobre a origem da coexistência no mesmo


indivíduo do autismo e da epilepsia, são muitos os casos descritos na literatura e a investigação
nesta área dirige-se em diferentes caminhos. No caso estudado, as duas patologias assumem um
carácter grave e desafiador em termos de terapêutica. Aqui importa, sobretudo, compreender
profundamente o nível de funcionalidade do jovem para que o plano terapêutico definido possa
contribuir efetivamente para o desenvolvimento do seu comportamento adaptativo em
diferentes situações e contextos. Importa também desenvolver uma metodologia de avaliação
periódica da evolução do jovem, de forma a definir novos objetivos e, consequentemente,
adequar o plano terapêutico.

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