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Em texto mais recente (LANGDON, 2009), a autora afirma, contudo, que outros
conceitos antropológicos precisam ser somados a essa interpretação para entender as
transformações no xamanismo nas últimas quatro décadas, tais como dialogicidade ou
intertextualidade, para chamar atenção às múltiplas vozes que contribuem para a
construção das práticas xamânicas atuais e a melhor compreensão da relação entre o local
e o global, trazendo noções como práxis, poder, processos identitários, recriação da tradição
e emergência dialógica.
Os estudos clássicos sobre xamanismo na antropologia enfocaram
principalmente temas como mentalidade primitiva e os opostos classificatórios como
primitivo/civilizado; magia/religião ou natural/sobrenatural, em tentativas de
compreender comparativamente a lógica das culturas observadas a partir de uma
visão eurocêntrica de mundo. Os xamãs, a partir dessa visão, foram ambiguamente
classificados como mágicos-sacerdotes ou médicos-feiticeiros; às vezes, também
rotulados como esquizofrênicos, diante da utilização de práticas de êxtase,
travestismo e outros comportamentos desviantes frente ao olhar ocidental
(LANGDON, 2009).
Com a intensificação da pesquisa de campo entre culturas das terras baixas
da América do Sul, a partir da década de 1960, vários antropólogos contribuíram
para uma compreensão mais adequada do fenômeno. Houve uma intensificação
internacional simultânea de pesquisas, publicações e simpósios dedicados a
examinar as formas do xamanismo e o papel dos “alucinógenos”, visando analisar
mais profundamente os significados dos ritos e cosmologias dos povos desta região.
Alguns pesquisadores procuraram definir os elementos essenciais do xamanismo
para construir uma categoria comparativa; outros interessavam-se em aprofundar as
cosmologias nativas e as práticas xamânicas. A investigação das técnicas de êxtase
como potencial humano, com enfoque específico nas substâncias psicotrópicas,
também foi um marco importante nesta década, tendo sido caracterizada por
interesses interdisciplinares tanto quanto por um ethos experimental por parte de
vários pesquisadores. (LANGDON, 2009)
As plantas ou alimentos dos deuses, como nos propõem alguns autores
(SCHULTES e HOFMANN, 2000; McKENNA, 1995), têm amplo uso na história de
todas as sociedades humanas. Estudos botânicos e estimativas farmacológicas
evidenciam que na flora de todo o planeta existem centenas de plantas com
propriedades psicoativas (SCHULTES e HOFMANN, 1997; SANGIRARD, 1989).
Dessas centenas, cerca de 150 espécies foram utilizadas, em algum momento, por
diferentes povos da Terra, sendo que 130 dessas espécies, uma quantidade
expressiva, se encontram nas Américas (GROB, 2002).
Foi a constatação da existência de uma dimensão psíquica das plantas que
tornou algumas delas, como, por exemplo, o cogumelo teonanactl, o cacto peyote, a
ayahuasca e as sementes do ololiuqui, substâncias sagradas de diversas religiões
americanas. Desde tempos primordiais, seu uso é fundamentalmente ligado aos
domínios da medicina e da espiritualidade, sendo os xamãs a mais antiga fusão
dessas dimensões. (ESCOHOTADO, 2004; ALBUQUERQUE, 2011) Além disso,
Alburquerque (2011) nos chama a atenção para a dimensão pedagógica do uso das
plantas de poder, segundo a qual são consideradas como “plantas mestras” ou
“plantas professoras”.
Santos (2015) salienta que o uso (patológico) de drogas em nossa sociedade
é antes uma exceção na história da humanidade do que a regra, afirmando que tal
situação teria sido gerada em nossa cultura pela dessacralização/profanação ou
deculturação das formas de uso. Nesse sentido, estudos afirmam que sanções
socioculturais empregadas por grupos que fazem um uso ritualizado de psicoativos
são mais eficazes que as leis proibicionistas de grande parte das nações quando
comparamos os efeitos sociais do controle e forma de uso destes diferentes pontos
de vista. (MACRAE, 1992)
Uma série de dispositivos foram formados ao longo do século XX com o
intuito de regular o consumo de substâncias psicoativas, tendo como parâmetro
central o saber médico-farmacológico. Assim, a percepção de um “problema de
drogas” é relativamente recente na história da humanidade e faz parte de um
movimento de partilha moral entre drogas de uso ilícito e drogas de uso livre,
tolerado ou controlado. Tal percepção é sustentada por políticas oficiais que vão de
encontro a um movimento internacional de “controle compulsório cooperativo” em
torno das drogas. A tônica aí é marcada pela distinção entre drogas e fármacos e
pela repressão a todas as formas de uso não médico de praticamente todas as
drogas rotuladas como psicoativas. (VARGAS, 2008)
No contexto colonial brasileiro, o uso da palavra droga não possuía o sentido
negativo relacionado ao vício, como comumente é utilizado contemporaneamente.
Significava, antes, “um conjunto de riquezas exóticas, produtos de luxo destinado ao
consumo, ao uso médico e também como ‘adubo’ da alimentação, termo pelo qual
se definiam o que hoje chamamos de especiarias” (CARNEIRO, 2005b). Assim, não
havia uma distinção clara entre drogas e alimentos. Atualmente, as fronteiras entre
esses dois conceitos são muito bem definidas e bem vigiadas. Entretanto, essa
vigilância recai não no papel das drogas como alimentos para o corpo, mas,
sobretudo, no papel que exercem na produção dos chamados estados de êxtase,
enquanto alimentos para o espírito. (ALBUQUERQUE, 2011)
Em diferentes contextos culturais, a característica essencial do transe é uma
saída de si próprio, a perda de um autodomínio. Mas essa perda era controlada por
meio de uma série de técnicas de ritualização, técnicas estas que permitiam o
domínio da perda do autodomínio, parte essencial do xamanismo. E foi justamente
tal arcabouço de técnicas de transe psicoquímico controlado que foi combatido mais
fortemente pela evangelização moderna, na tentativa colonial de excomungar as
plantas “alucinógenas” da América. (CARNEIRO, 2002)
No entanto, apesar da existência de toda uma rede de vigilância sobre o uso
de psicoativos, o saber herbóreo indígena sobre as plantas sagradas resistiu e
penetrou nas mais distantes culturas, tendo sido resignificado de diversas maneiras
e até mesmo o vemos incorporado a práticas religiosas de cunho cristão. Segundo
Rose e Langdon (2010), a partir da década de 1980 se consolidou a expansão de
formas híbridas de práticas chamadas “neo-xamânicas”, as quais floresceram na
forma de oficinas, terapias e caminhos espirituais pelo mundo inteiro. Enquanto, ao
menos durante certo período, os antropólogos enfatizaram a natureza indígena do
xamanismo, que podiam ser pensados como cultural, temporal e geograficamente
contíguos, o movimento global heterogêneo do neo-xamanismo introduz no
xamanismo elementos não indígenas e vindos de diferentes lugares e contextos.
Algumas características comuns desses movimentos seriam a promoção de um
xamanismo primordial como um fenômeno que não está vinculado a culturas ou
contextos específicos; a expressão dos valores do individualismo moderno; e uma
orientação para objetivos psicológicos e terapêuticos individuais.
Com o tempo, a ligação do sagrado com os estados xamânicos de
consciência expandida tomou importância central no discurso do neo-xamanismo e,
hoje, o termo mais utilizado para designar as inúmeras substâncias utilizadas nesses
contextos é o de enteógeno, em referência ao acesso às dimensões sagradas
provocado por sua ingestão (METZNER, 1999). Cabe ressaltar que o uso dos
chamados enteógenos no mundo atual faz uma ligação íntima entre espiritualidade e
saúde psíquica, associando essas plantas a noções contemporâneas de
autoconhecimento e terapia. (ROSE e LANGDON, 2010)
No limiar desses sentidos, não tendo avançado de forma tão rápida como
outras áreas da medicina, a própria psiquiatria, a despeito de todo o preconceito
histórico formado por uma série de ações que até hoje tentam justificar uma
verdadeira guerra às drogas, têm voltado cada vez mais seu olhar à possibilidade de
incorporar o saber das plantas psicoativas a suas práticas médicas, mesmo que
ainda encerrada na visão farmacológica. (VARGAS, 2008; SCHULTES e
HOFMANN, 2000).
Dentro do âmbito das plantas psicoativas de uso tradicional indígena, nosso
foco se direciona especificadamente para a ayahuasca, uma bebida preparada
principalmente por duas plantas que se originam da floresta da bacia do alto
amazonas, a saber, um cipó da família das Malphigueáceas, o Banisteriopsis caapi,
e folhas de um arbusto da família das Rubiáceas, a Psychotria viridis. O nome
ayahuasca pertence à língua quéchua. Aya quer dizer “pessoa morta”, “alma”,
“espírito”; e Waska significa “corda”, “liana”, “cipó”. Assim, poder-se-ia traduzir
ayahuasca em português como corda (liana, cipó) dos mortos (alma, espírito)
(LUNA, 1986)
No Brasil, a ayahuasca recebe várias designações e é consumida em
diferentes contextos: entre populações indígenas, seringueiros e caboclos, e pelas
assim chamadas religiões ayahuasqueiras, compostas por três grupos principais: o
Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal. A escolha de se usar a palavra
ayahuasca para designar a bebida nos âmbitos políticos, legais e científicos no país
se deu por uma opção oficial de cunho pan-religioso, pois sendo esse um nome de
origem quéchua, que não é utilizado por nenhum dos grupos brasileiros
especificadamente, passa a representar todos ao mesmo tempo. (LABATE, 2005)
Assim, a própria ayahuasca vem transitando entre diferentes fronteiras
territoriais e simbólicas, contribuindo para que esta bebida se transforme numa
espécie de pan-enteógeno transnacional (LABATE, ROSE e SANTOS, 2008). Existe
hoje uma ampla rede mundial relacionada ao consumo da ayahuasca (LABATE,
2004). Esta rede engloba os usos indígenas, caboclos e vegetalistas, passa pelas
religiões ayahuasqueiras e abrange os usos experimentais contemporâneos, como
os usos psicoterapêuticos ou artísticos. Transitam pela rede diferentes personagens,
como neo-xamãs, neo-nativos, turistas xamânicos e psiconautas, que são apenas
alguns desses sujeitos contemporâneos. Se há algo em comum entre essas
categorias é que todas se constituem identidades híbridas, apontando para o fato de
que neste contexto não é possível nem pertinente essencializar idéias como as de
tradicional e moderno. Pelo contrário, aqui, o “moderno” e o “tradicional” se
recombinam de maneira dinâmica. Assim, podemos dizer que se existe uma
característica comum nessa ampla rede diversa, essa é justamente a dinamicidade,
constituindo desta maneira um universo religioso marcado pela fabricação e
multiplicação constante de práticas rituais e sistemas simbólicos (LABATE, 2004)
Nesse sentido, os xamanismos hoje não representam um fenômeno universal
homogêneo nem um sistema cosmológico que possa ser pensado como
exclusivamente “nativo” ou “tradicional”. O surgimento do xamanismo da Nova Era 2
transpassa as fronteiras entre classes urbanas e culturas indígenas. Assim,
procuramos entender que o xamanismo em muitos casos pode ser mais bem
compreendido como uma categoria dialógica, sendo frequentemente negociado nas
fronteiras das sociedades indígenas locais e sua interface com grupos da sociedade
nacional e global. (ROSE e LANGDON, 2010)
Observa-se, hoje em dia, que esse não é um fenômeno localizado e que
diferentes grupos indígenas do país vêm tendo um intercâmbio cada vez mais
estreito com as religiões ayahuasqueiras, sobretudo com o Santo Daime (LABATE,
MACRAE e GOULART, 2007, apud ROSE e LANGDON, 2010). Portanto, existe um
contexto mais amplo, relacionado à expansão das religiões ayahuasqueiras e à
diversificação das formas de consumo da ayahuasca na contemporaneidade
(LABATE, 2004). Assim, o que está em jogo aqui diz respeito à migração de
símbolos, sujeitos e substâncias em escala local e global, ao trânsito entre práticas
religiosas diversas, e à construção de religiosidades e identidades híbridas em um
contexto pós-colonial (LABATE, MACRAE e GOULART, 2007, apud ROSE e
LANGDON, 2010).
a. Os Guarani
2
Segundo Stern (2019), com a contracultura de 1960, o termo xamanismo se popularizou nas
massas, assumindo um novo sentido que vai ao encontro do ethos da Nova Era. Tal apropriação
popular da categoria xamanismo aconteceu sob uma forte psicologização, que leva a um apagamento
da etnia no processo de identificação do xamanismo. O xamã deixa de ser alguém que exerce
determinado papel social tribal para ser alguém que desenvolveu uma forma específica de interpretar
o mundo, o que ele adquire por expandir a consciência através do êxtase. Na Nova Era, qualquer um
pode se tornar um xamã, através do esforço pessoal e da reconfiguração de seus paradigmas.
Os Guarani têm suas raízes milenares nas Terras Baixa da América do Sul.
Suas terras, antes do período colonial, abrangiam aproximadamente 1.200.000 km²,
numa região que inclui a parte sul do Brasil, parte da Bolívia, Paraguai, Uruguai e
Argentina, indo do litoral do continente sul-americano às bacias dos rios Paraná e
Uruguai (MELLO, 2006). Toda essa ampla área constitui-se para eles como um
território-movimento, onde se configura uma grande rede de parentes, pensamentos,
conhecimentos, interpretações e estratégias, através de constantes trocas,
intercâmbios, transformações e atualizações, numa lógica de economia de
reciprocidade. Em 2017, sua população transnacional chegava a cerca de 280 mil
pessoas, sendo que pelo menos 85.000 estavam localizadas em terras brasileiras 3 –
um grande contraste com os cerca de 2.000.000 de Guarani que viviam antes da
colonização, e foram dizimados por guerras, maus-tratos, epidemias e cativeiro.
(MELIÀ, 1989)
Apesar da existência das diversidades nos subgrupos constituintes, o que dá
sentido de unidade a essa população é, em especial, o idioma e sua manutenção,
assim como a preservação de certo corpus mitológico, no qual a importância da
palavra na cosmologia é característica fundamental. (MELIÀ, 1989). O idioma
Guarani pertence à família linguística Tupi-Guarani, que é uma ramificação do tronco
de uma família maior, a Macro ou Proto-Tupi. Desde o início do período colonial, os
Guarani têm usado seu idioma e suas práticas espirituais como importantes
estratégias de resistência. Incapazes de isolar-se dos não-indígenas em muitas
situações, vários permanecem monolíngues no idioma nativo e as aldeias em geral
mantêm-se fechadas e silenciosas perante os não-indígenas, excluindo as pessoas
de fora de suas práticas rituais (ROSE, 2010; LITAIFF, 1996).
De maneira geral, os subgrupos podem ser agrupados em Mbyá, Chiripá,
Kaiowá e Nhandeva. No Brasil, ocupam os estados do Espírito Santo, do Rio de
Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do
Sul. Os Mbyá e os Chiripá costumam habitar a região litorânea e áreas próximas das
fronteiras com o Uruguai e Paraguai, enquanto os subgrupos Kaiowá e Nhandeva
habitam o interior dos estados do PR, SP e MS. (ROSE, 2010; MELLO, 2006).
Por conta da delimitação de nosso estudo, que se debruça, em específico,
sobre a aldeia Yynn Morothi Wherá, vamos nos concentrar mais nos Mbyá e nos
Chipirá.
3
Número extraído do site: https://cimi.org.br/2017/04/39488/. Acesso em: 20/10/2020.
O predomínio desses grupos na faixa litorânea faz parte de um movimento
histórico que teve início na segunda metade do século 20, com o processo de
expansão capitalista nos países do Cone Sul do continente Sul-Americano. Fatores
como a expansão das cidades e das fronteiras agrícolas, somados à especulação
imobiliária, intensificaram o processo de invasão dos espaços ocupados pelos
Guarani, ao mesmo tempo, tornando improvável a possibilidade de ocupação de
espaços que permitissem manter distância dos colonizadores. (ROSE, 2010).
Paralelamente, a Constituição de 1988 marcou o reconhecimento do caráter
pluriétnico e multicultural da nação, contando com um capítulo inteiramente
dedicado aos povos indígenas. Assim, a nova Constituição Federal contribuiu para
criar um contexto favorável à manifestação da identidade indígena. Algumas das
novas políticas públicas passaram então a ser culturalmente sensíveis,
manifestando atividades promotoras da “cultura tradicional” através de projetos de
retradicionalização. A década de 1990 ficou marcada como um momento de
crescimento da importância do indígena na legislação e no imaginário brasileiro
sobre o direito à cultura e às praticas tradicionais. Desde essa época, temos visto
crescer exponencialmente no Brasil a “revitalização” e o “resgate” de elementos
culturais por parte de grupos indígenas já estabelecidos. (LANGDON & WIIK, 2008).
Já na esfera internacional, essa valorização vem ocorrendo desde a década de
1980, quando grupos indígenas, especialmente os amazônicos, bem como o
xamanismo, tornaram-se símbolos e atores-chave do desenvolvimento de uma
ideologia e de redes que ligam conflitos indígenas locais a temas e movimentos
sociais internacionais, como é o caso dos movimentos ecológicos. (ROSE, 2010;
LABATE, 2011).
Nesse contexto, um dos primeiros e principais fatores a impulsionar o
estabelecimento de relações mais sistemáticas com os não-indígenas por parte dos
grupos indígenas brasileiros foi a crescente necessidade de reivindicação territorial,
o que vale também para o caso dos Guarani. Esse processo vem ocorrendo com os
grupos Mbyá e Chiripá no sul do Brasil. Ao se fazerem mais acessíveis e visíveis
diante da sociedade envolvente, buscam obter mais vantagens nas relações
interétnicas, especialmente nas questões relativas ao acesso a espaços geográficos
adequados às suas pautas culturais, reivindicando a garantia e legalização das
terras por eles ocupadas. (ROSE, 2010)
O litoral de Santa Catarina integra o território de ocupação guarani em época
pré-colonial e colonial. Tendo deixado esse espaço desde o século 17 até a primeira
metade o século 20, os Guarani voltaram a migrar para essas terras, num processo
de “reguaranização” ou “reocupação territorial”, que compreende estratégias
culturais próprias, mediante a reelaboração dos mitos e a reconfiguração de sua
memória. (ROSE, 2010)
As aldeias do litoral sul de Santa Catarina são todas formadas por famílias
que se autodenominam como Mbyá e/ou Chiripá, sendo que boa parte da população
da aldeia Yynn Morothi Wherá ou Mbiguaçu, como também é chamada, a qual
temos como foco de nossa pesquisa, se autodenominam como Chiripá,
especialmente aqueles ligados à família extensa de Alcindo Wherá Tupã e Rosa
Poty Djá, sobre os quais falaremos um pouco mais adiante. (ROSE, 2010; MELLO,
2006; OLIVEIRA, 2011)
Historicamente, um grande intercurso matrimonial teria criado uma grande
proximidade entre os Chiripá e os Mbyá atuais, sendo que o pertencimento a um ou
a outro grupo se deve a conjunturas locais, baseadas em aspectos morais, políticos,
religiosos e familiares (MELLO, 2006). A principal diferença entre esses dois grupos
está ligada ao deslocamento: as famílias Mbyá se deslocam com mais frequência,
enquanto os grupos Chiripá teriam uma postura mais sedentária. Estas diferenças,
ao mesmo tempo que seriam complementares na organização das aldeias, marcam
posturas políticas distintas, especialmente no que diz respeito às relações com não-
indígenas. Assim, enquanto para os Mbyá, que seriam mais “conservadores”,
deslocar-se é central para manter o nhandereko (seu modo-de-ser específico), os
Chiripá teriam uma postura de procurar garantir as terras através da permanência,
ao mesmo tempo abrindo-se mais para os diálogos e intercâmbios com não-
indígenas. (ROSE, 2010)
Hoje, a aldeia Yynn Morothi Wherá tem uma posição importante na rede de
trocas das aldeias Guarani ao longo da costa brasileira. Diferente da maioria das
outras aldeias dessa etnia, seus habitantes têm demonstrado uma abertura não
usual para as interações com não-indígenas, especialmente nas últimas duas
décadas. Embora tradicionalmente resistentes às pessoas de fora, as lideranças
Guarani vêm lentamente aumentando sua interação com a sociedade envolvente ao
longo dos últimos trinta anos, provavelmente devido às mudanças na Constituição
Brasileira e ao crescimento de projetos públicos que envolvem escolas, assistência à
saúde e financiamento para a agricultura. Entretanto, a aldeia Yynn Morothi Wherá
assumiu na região a liderança na mediação de práticas rituais com não-indígenas,
através da apropriação do uso ritual da ayahuasca e de outras práticas relacionadas.
(ROSE, 2010)
A aldeia Yynn Morothi Wherá (que pode ser traduzida como “Reflexo de
Águas Cristalinas”) está localizada no Km 190 da BR 101, no Balneário de São
Miguel, município de Biguaçu, litoral sul de Santa Catarina. Com 59 hectares, foi a
primeira Terra Indígena Guarani demarcada neste Estado, no ano de 2003. À época
da pesquisa de Martins (2020), há cerca de 150 pessoas vivendo na aldeia, sendo
43 famílias nucleares mais a “população flutuante”, que costuma incluir moradores
de outras aldeias da região. Embora faça parte do território guarani tradicional, essa
terra foi ocupada novamente a partir da década de 1980 pela família extensa de
Alcindo Wherá Tupã (Brilho do Trovão) e Rosa Poty Djá (Protetora das Flores), que
migraram de regiões mais ao sul, passando por Cacique Doble (RS) e Morro dos
Cavalos (SC). Considerados por bom tempo como os principais responsáveis pela
liderança espiritual da comunidade, assim como os karaíkuery4 mais velhos e
poderosos da região, Seu Alcindo e Dona Rosa, como costumam ser chamados,
foram reconhecidos como curadores e rezadores dotados de poderes admiráveis
pelos Guarani, sendo eles quem permitiram a chegada da ayahuasca na aldeia.
(ROSE, 2010; MELLO, 2006; OLIVEIRA, 2011, SANTANA, 2004).
Isabel Santana de Rose (2010) realizou uma aprofundada etnografia dentro
da qual reconstituiu a história da apropriação contemporânea da ayahuasca pelos
moradores desta aldeia a partir do final da década de 1990, que passa pelo encontro
entre os Guarani, integrantes de um grupo internacional denominado Fogo Sagrado
de Itzachilatlan, membros da comunidade do Santo Daime Céu do Patriarca São
José e atores envolvidos com o serviço de saúde pública da FUNASA, que à época
administrava os programas de saúde indígena.
4
Karaí é o termo geral para designar os especialistas que lidam com o mundo espiritual; os
dirigentes da reza e/ou especialistas em cura. A flexão feminina é cunha karaí, enquanto karaíkuery é
o plural. Em grande parte da literatura etnológica sobre os Guarani, esses termos são considerados
equivalentes ao termo ‘xamã’. (ROSE, 2010)
Segundo essa autora, as narrativas coletadas em campo contam que a aldeia
Yynn Morothi Wherá passava por um período difícil. Os moradores destacam
especialmente a falta de interesse pelas práticas de reza e de cura, que eram
mantidas apenas por Alcindo, Rosa e alguns membros mais próximos de sua
família. Paralelamente, a comunidade enfrentava problemas com abuso de álcool,
brigas e separação entre as famílias. Seu Alcindo teve então um sonho, recebido
como uma profecia, o qual dizia que uma pessoa de fora, um djuruá (não-indígena),
iria chegar para ajudá-lo a reerguer o “povo guarani”, junto com sua cultura e
tradição.
Em 1999, um indígena guarani, Adélcio, que então morava na aldeia de
Mbiguaçu, ficou muito doente e acabou sendo internado no Hospital Universitário de
Florianópolis, onde se descobriu que estava com um linfoma. Tendo em vista que
ele se recusava a fazer o tratamento quimioterápico, e até a conversar com os
médicos, decidiram contatar a Haroldo Evangelista Vargas, que na época era
médico residente neste hospital e tinha reputação de conduzir “cerimônias
xamânicas” e de ter afinidade com os povos indígenas em geral. (ROSE, 2010).
A princípio, Adélcio também não quis se comunicar com Haroldo. Contudo,
aos poucos, Haroldo foi ganhando sua confiança. Interessado em saber mais a
respeito desse indígena, perguntou a ele se havia na aldeia onde morava
especialistas em curar doentes, para o que respondeu que lá havia um casal de
velhinhos, conhecidos nas aldeias guarani de toda região como karaíkuery, anciões
e importantes lideranças espirituais. Referia-se a Alcindo Wherá Tupã e Rosa Poty
Djá. (ROSE, 2010).
Além de médico, Haroldo era também a principal liderança nacional do grupo
Fogo Sagrado de Itzachilatlan, o qual estava começando a organizar suas atividades
no Brasil. Esse grupo faz parte de uma rede internacional que reivindica uma ligação
com a Native American Church (NAC) e realiza rituais que combinam elementos que
teriam origem em diferentes tradições indígenas do continente americano,
principalmente nos Lakota. A combinação desses diferentes elementos é legitimada
pela ideia da busca de uma ancestralidade ou mesmo raiz primordial da
humanidade, que estaria presente nos conhecimentos indígenas. Os principais ritos
realizados e difundidos por esse grupo é a “cerimônia de medicina 5” 6, as rodas de
shanupa ou “cachimbo sagrado”, o temazcal 7, a Busca da Visão8 e a Dança do Sol9.
(ROSE, 2010; ROSE e LANGDON, 2010)
A partir do contato inicial, Haroldo passou a frequentar ocasionalmente a
aldeia. Foi se integrando com as cerimônias e as curas que costumavam acontecer
na casa de reza e em pouco tempo recebeu um nome guarani. Propôs, então, fazer
uma cerimônia usando ayahuasca na aldeia Mbiguaçu, ideia que foi imediatamente
aceita e apoiada por seu Alcindo. Começou na cozinha da casa de Alcindo e Rosa,
com um número reduzido de pessoas, mas logo a adesão foi crescendo e as
cerimônias com ayahuasca começaram a ocorrer na Opy (casa de reza tradicional
guarani). Os impactos positivos dessa iniciativa entre os moradores de Mbiguaçu foi
tal que os indígenas, juntamente ao Haroldo, decidiram que, além de continuar
realizando as cerimônias nesta aldeia, queriam também levar a ayahuasca para
outras comunidades guarani da região, o que foi viabilizado através de recursos da
Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), repassados pela ONG Projeto Rondon,
contratada para fornecer os serviços de atenção primária nas terras indígenas no
estado de Santa Catarina. (ROSE, 2010; ROSE e LANGDON, 2010)
Com os princípios do multiculturalismo estabelecidos na Constituição de
1988, a política de cuidado a saúde indígena recebeu mais atenção, resultando na
criação do subsistema de saúde indígena em 1999. Um princípio norteador desse
sistema foi chamado de “atenção diferenciada” e ressalta a necessidade do respeito
com relação ao conhecimento e às práticas de saúde e de cura tradicionais. Assim,
a Política Nacional de Saúde Indígena, além de garantir às comunidades indígenas
acesso universal aos cuidados de saúde, deve promover serviços primários de
5
Dentro do universo simbólico do Fogo Sagrado, as “plantas de poder” como a ayahuasca e o tabaco,
entre outras, são consideradas “medicinas”, categoria que se refere a essas plantas, mas que
também, neste contexto, pode ser entendido como um conceito amplo e polissêmico, o qual pode
compreender uma série de elementos, objetos, pessoas, plantas, palavras, sentimentos, valores,
ações, acontecimentos, sendo que, no universo simbólico do Fogo Sagrado, as “medicinas” são
dotadas de agência e intencionalidade (ROSE, 2010)
6
Rito de noite inteira em que se realiza a consagração de plantas de poder. Nos contextos citados ele
acontece ao redor de um altar no formato de uma meia-lua e de um fogo em forma de flecha. Nesses
ritos são entoados cantos, rezos e às vezes danças.
7
“O temazcal ou sweat lodge é uma cerimônia inspirada nas práticas dos grupos indígenas norte-
americanos. Consiste em uma sauna ritual que é aquecida com pedras quentes durante a qual são
utilizadas plantas e ervas aromáticas e medicinais e são entoados cantos e preces.
8
A busca da visão (vision quest) consiste numa espécie de reclusão, na qual o aprendiz se isola num
lugar designado como “montanha” durante um período determinado de dias (de quatro a treze) para
jejuar, meditar e buscar contato com o “Grande Espírito”.
9
Na dança do sol (sun dance), os participantes dançam ininterruptamente do nascer ao pôr do sol,
durante quatro dias, também em jejum, sendo que o rito é dedicado à continuidade da vida.
cuidado da saúde que integrem e articulem as práticas biomédicas com práticas
indígenas tradicionais. (BRASIL, 2002)
Em 2004, a FUNASA passou a promover a integração da medicina tradicional
juntamente à oferta de serviços de saúde primários, de modo a respeitar a cultura
nativa e a incorporar as práticas de cuidado em saúde tradicionais. Assim, tomando
como referência a noção de medicina tradicional, a introdução da ayahuasca nas
comunidades do litoral sul de Santa Catarina foi interpretada pela equipe do Projeto
Rondon como uma maneira de satisfazer as demandas da Política Nacional de
Saúde Indígena, a partir de um projeto que emergiu espontaneamente de uma
iniciativa local da equipe de saúde, e não como ordem explícita da agência
governamental central, como é o caso da maior parte das vezes. (ROSE, 2010;
ROSE e LANGDON, 2010)
O projeto contou, então, com a contratação de Haroldo, que passou a fazer
parte da Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) que atendia os
moradores das aldeias da região. Alguns dos principais objetivos estabelecidos
foram: promover a saúde do povo guarani resgatando e fortalecendo o lado
espiritual/místico, fundamentado nas antigas cerimônias tradicionais; combater o
alcoolismo e reforçar as lideranças espirituais das aldeias, que constituiriam a base
para as ações programadas no modelo de atenção à saúde espiritual indígena
(VARGAS, 2002; apud ROSE, 2010, p. 276)
Durante quatro anos foram realizadas frequentes cerimônias com ayahuasca
e temazcais, nomeados pelos Guarani como opydjere10, em pelo menos 10 aldeias
guarani nos Estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná. (ROSE, 2010).
Com o aumento do uso da ayahuasca nas aldeias Guarani da região, tornou-se
necessário encontrar uma fonte para a substância, que até então era importada do
Peru pelo Fogo Sagrado, com altos custos. Depois de um contato frustrado com a
União do Vegetal, o médico obteve o interesse e a colaboração dos dirigentes da
comunidade do Santo Daime de Florianópolis, outro grupo ayahuasqueiro local que
cultiva as plantas e prepara a bebida. Assim, a comunidade daimista entrou na rede
10
Significa literalmente “casa de rezas redonda”.
da aliança das medicinas11 já formada entre os moradores da aldeia Yyn Morothi
Wherá e o Fogo Sagrado.
Depois que o período do projeto de quatro anos financiado pela FUNASA
terminou, os moradores da aldeia Mbiguaçu foram gradualmente obtendo maior
autonomia na organização de seus rituais. Atualmente, eles continuam a conduzir
regularmente cerimônias com ayahuasca em sua aldeia e já tem seu próprio feitio da
medicina. Ao longo desses anos, realizam periodicamente rituais como cerimônias
de medicina, opydjere, nhembo‟e kaaguy (rito similar à Busca da Visão) e o
tchondaro edjerodjy (rito similar a Dança do Sol, sobre o qual falaremos mais
adiante).
11
A rede da aliança das medicinas foi constituída principalmente pelos 3 grupos descritos neste
artigo, a saber, a aldeia Guarani Yyn Morothi Wherá, o Fogo Sagrado de Itzachilatlan, representado
por Haroldo, e a igreja do Santo Daime Céu do Patriarca São José. Além disso, passaram com
frequência por esse circuito pessoas ligadas a diferentes espaços terapêuticos de Florianópolis e
membros do curso de Naturologia Aplicada da UNISUL. (ROSE, 2010)
12
Nome em Guarani que significa “espírito do Sol” ou “o iluminado”. Tal designação significa que seu
nhe’e, espírito-alma, veio da região leste, que é do domínio de Nhamandu, o deus Sol.
Segundo Martins (2020), o nhanderekó é feito através de várias alianças,
costumes e rituais necessários para se viver bem ao longo da vida, para se viver
bem em grupo e ter uma longa relação com a natureza e o território em que se vive.
O nhanderekó é um termo guarani usado para definir a vida boa e o tekó é a vida, é
o modo-de-ser e viver tradicionalmente. O tekoá é a vida em conjunto, seja nas
relações sociais internas, seja nas relações com a mata, as divindades e os seres da
mata. Na comunidade Mbiguaçu, o nhanderekó vem através da língua falada, das
práticas fundamentais do dia a dia, dos cuidados com a saúde e da educação
corporal guarani. (MARTINS, 2020)
Neste sentido, a educação corporal é de suma importância para o Guarani,
pois manifesta a própria espiritualidade e sua relação com a Terra. Para o Guarani,
o corpo não é apenas algo físico, mas é parte da própria Terra e do Universo. Por
isso, o Ser Guarani precisa sempre fortalecer a conexão com as divindades e a
espiritualidade, através de uma educação que começa pelos ensinamentos
sagrados. A criança aprende ouvindo, observando e praticando a cultura. Essa
educação do corpo e do espírito precisa ser feita diariamente e acontece por meio
da contação de histórias, da limpeza do corpo, da maneira de plantar e fazer o
alimento, do respeito, das cerimônias sagradas e da relação com os outros Guarani.
A educação corporal está presente nas formas de interação entre os velhos e os
novos, entre as crianças, os jovens e os adultos. Essa educação corporal é uma
educação da sociedade guarani, ou seja, toda a comunidade funciona como um
único corpo, se um membro está doente, toda a comunidade sofre. A educação
corporal, então, é a educação do corpo, do espírito, da relação com o sagrado e o
divino, e também com o meio ambiente e a sociedade. E isso é o nhanderekó.
(MARTINS, 2020)
Assim, o nhanderekó, o modo-de-ser guarani, é uma forma de viver que inclui
regras internas e externas para viver como povo guarani. Todo o Ser Guarani tem,
durante toda a sua vida, rituais e cerimônias sagradas que deve fazer, participar e
praticar. Alguns destes rituais estão ligados a ritos de passagem das fases da vida,
como gravidez, nascimento, batismo, passagem da criança para a fase adulta,
deveres da vida adulta e morte.
Neste ínterim, um rito importante para a tradição Guarani é o nhemongaraí, o
batismo tradicional. Nele, o povo comemora as colheitas, consagrando e
abençoando os alimentos e as ervas medicinais, principalmente o avatchi, milho, e o
Kaa, erva-mate, cantando e dançando a noite inteira em agradecimento pela
fertilidade da terra. É também nessa cerimônia que o karaí recebe e dá às crianças
seus nomes sagrados, nhe’e. (MARTINS, 2020) Essa é umas das cerimônias mais
importantes do ano Guarani. Por um lado, isso está ligado à própria relação do
Guarani com o milho, expresso na fala de Daniel:
Nessa aldeia, o tata endy rekoe13 é tanto o fogo sagrado, aceso em suas
cerimônias religiosas e de cura, no centro da Opy, junto a um altar no formato de
meia-lua, o qual é cuidado pelos tchondaros; como é também o nome da igreja
nativa Guarani da comunidade Mbiguaçu, que foi registrada em 2015 com o intuito
de manter registrado o histórico de como estava sendo transmitida a cultura na casa
de reza. (MARTINS, 2020)
Segundo Martins (2020), a fundação dessa igreja nativa é fruto do fato dos
Guarani desta aldeia começarem a abrir a Casa de Reza, e os conhecimentos
ancestrais que ali são transmitidos, para a entrada dos djurua kuery, os não-
indígenas. No início, houve muita discriminação e discussão, mas com o passar do
tempo as pessoas foram se acostumando a aceitar àqueles que buscavam uma
forma de cura ou aprendizado sobre a própria natureza com um grupo indígena
xamânico.
13
Segundo Oliveira (2011), o termo tata endy rekoe significa “fogo aceso que possui vida”. Contudo, é
utilizado como um equivalente semântico da expressão “Fogo Sagrado”, do Caminho Vermelho.
Esse processo se deu especificadamente no final dos anos 1990, com a
chegada de Haroldo e, com ele, dos ritos e medicinas consagradas pelo Fogo
Sagrado de Itzachilatlan, como a ayahuasca. Mello (2006) relata uma história que
sempre é narrada pelos moradores dessa aldeia sobre o tema da discussão quanto
ao uso da ayahuasca pelos Guarani. Segundo as lideranças dessa aldeia, a
introdução da ayahuasca nos rituais teve o intuito de fortalecimento do nhe’e dos
karaí e dos doentes, de auxiliar na cura do alcoolismo e de melhorar as relações na
aldeia. Contudo, as discordâncias à inovação desencadearam profundo embate
entre alguns Guarani da comunidade e da região, que chegavam a afirmar que a
bebida não fazia parte da tradição guarani. Por alguns anos, várias pessoas
recusaram se tratar com Alcindo e buscaram os karaíkuery de outras aldeias. Por
outro lado, vários karaíkuery passaram a freqüentar Mbiguaçú com maior
assiduidade, buscando fortalecimento de seus poderes através das “visões” da
ayahuasca e muitos buscando a cura do alcoolismo.
A polêmica sobre a “guasca” (nome dado pelos Guarani à bebida ayahuasca)
arrefeceu-se quando Eduardo Karaí Guaçú, respeitado tcheramoi (ancião) da região
veio para Mbiguaçú, tendo escolhido ali para ter sua yvykuá ymã (sepultura), por ser,
em sua opinião, uma das poucas tekoá onde se vive de acordo com o orerekó
(sistema tradicional Guarani). Além disso, o apoio da cunhá karaí Júlia Campos,
uma idosa curandeira que veio do litoral de São Paulo, também foi determinante
para acalmar os ânimos e restabelecer a reciprocidade entre as aldeias vizinhas no
litoral sul. Contrapor-se a tais opiniões, de velhos tão respeitados, passou a ser
socialmente delicado. Júlia Campos é sogra de Artur Benites, que, na época, era o
cacique da aldeia Morro dos Cavalos. Segundo conta, ela deixou esta aldeia para ir
morar em Mbiguaçú, onde seu nhe’e ficava mais feliz. (MELLO, 2006)
Nos meandros dessa história, segundo a etnografia realizada por Mello
(2006), conta-se que Artur Benites teve uma forte “peia”, reação adversa ao uso da
ayahuasca, e passou a ser um dos mais críticos ao uso da planta. Contudo, com
alguns meses de vida, seu neto começou a apresentar crescimento desproporcional
da caixa craniana. Os médicos da FUNASA diagnosticaram hidrocefalite e
prescreveram tratamento cirúrgico e longo tempo de internação. O pai do menino o
levou para Mbiguaçú, para ser tratado pelos bisavós, Alcindo e Rosa. Depois de
alguns meses, a criança começou a apresentar melhora e o crescimento
desproporcional da caixa craniana regrediu. Passados alguns anos do início do
tratamento com Alcindo, os médicos da FUNASA não prescreveram mais cirurgias e
avaliam através de exames que os sintomas da doença estacionaram. Com quatro
anos, o menino já era uma criança muito esperta, de estatura normal em
comparação às outras crianças de sua idade e começava a dominar a linguagem.
Esse foi um dos casos de cura de Alcindo bastante comentado nas aldeias e foi
exemplo para argumentar a favor de seu poder de curador, restituindo, assim, a
aceitação de seus opositores quanto aos caminhos trilhados por sua comunidade.
Além das discordâncias internas ao povo Guarani quanto ao uso da
ayahuasca, há também uma polêmica entre antropólogos e estudiosos que
questionam sua “autenticidade”, afirmando que tal uso teria sido “introduzido” nesta
comunidade por Haroldo e a equipe da FUNASA. Quanto a esse tema, transcrevo a
seguir uma parte da entrevista de ROSE (2010) com Hyral Moreira, cacique da
aldeia de Mbiguaçu.
Faz oito anos que nós, entre aspas, tivemos contato com essa medicina, a
ayahuasca. Sabemos que historicamente há outras vias de acesso a esta
medicina, mas não somos obrigados a comprovar se é legítimo ou não seu
uso pelos Guarani. Se alguém precisa provar, não somos nós. O importante
disso tudo é que nós nos beneficiamos. Há muitas coisas que melhoraram
dentro da comunidade, principalmente a relação entre as pessoas; a
valorização da cultura; a própria luta pela terra. A medicina vem ajudando,
porque até 1993, 94 a gente ficou numa situação muito crítica. Muitas
pessoas na comunidade utilizavam muita bebida alcoólica, havia separação
de famílias, e isso foi se tornando um problema. Através dessa medicina,
conseguimos realçar alguns ritos que a gente não praticava mais. Mesmo a
prática de ritos mais conhecidos dentro da cultura guarani estava sendo
esquecida. Isso começou a revitalizar todo um caminho ligado à da cultura
guarani. Hoje a gente conta como foi o processo, qual a importância da
medicina nesse caminho. Muitas vezes se fala na introdução da medicina.
Pode ser que seja uma introdução, eu até acredito nisso, mas tem que se
pensar também quais os benefícios que isto trouxe. Porque desde a
colonização, muitas coisas são introduzidas em comunidades indígenas e
ninguém questiona. A própria igreja católica se inseriu dentro das
populações. Hoje muitos povos são extintos por essa razão, e ninguém
questiona. Quando a gente fala em introdução, a bebida alcoólica é uma
introdução, e não se questiona isso. Nunca questionaram, e isso veio de
fora. Aí quando os próprios índios se organizam para manter sua cultura as
pessoas criticam. Com relação à medicina, fala-se em introdução como se
alguém viesse de fora e colocasse uma coisa aqui dentro. Isso não é o que
acontece. Simplesmente alguém mostrou que existia uma medicina e dentro
desse processo a gente descobriu que fazia parte da nossa cultura. Porque
quando se fala em medicina tradicional, é uma medicina que foi conhecida
pelos povos da Amazônia, que são povos indígenas também. Então não é
uma inserção de uma coisa que veio de outra cultura que não tem nenhuma
ligação conosco. Pelo contrário, existe essa ligação entre povos mais
antigos. Existia essa integração entre populações indígenas. Nossa
comunidade é uma das aldeias guarani que mais avançou. A comunidade
existe há 20 anos, mas nos últimos quatro ou cinco anos a gente caminhou
bastante. A estrutura familiar, a estrutura da própria comunidade, a maneira
de receber muita gente, não só os indígenas. Hoje somos um ponto de
referência. E a medicina ajuda (...) Dá muita polêmica quando se fala em
introdução. Tem que se tomar muito cuidado. Porque a idéia de introdução
implica alguém fazer você aceitar alguma coisa que você não quer. É
diferente quando você aceita sabendo que isso vai ser benéfico para a
comunidade, ou para uma população. (Hyral Moreira, entrevista realizada
em 19 de agosto de 2008; ROSE, 2010, p. 340-341)
Segundo Rose (2010), essa fala nos chama a atenção para a importância da
agência indígena no processo de apropriação contemporânea da ayahuasca pelos
moradores da aldeia Yynn Morothi Wherá. Apesar das diferentes críticas que são
feitas ao uso da ayahuasca nesta aldeia e à inserção desta comunidade indígena na
rede da aliança das medicinas, não devemos considerar os moradores desta
comunidade como ingênuos neste processo; pelo contrário, estão engajados de
maneira ativa e dinâmica nos diferentes diálogos e negociações envolvidos nele.
Como dissemos, esse processo da apropriação contemporânea da
ayahuasca pelos Guarani nessa aldeia está também relacionado à abertura da Opy
e de seus conhecimentos sagrados para os não-indígenas. Nesse ínterim, ROSE
(2010) aponta que é possível sugerir que o interesse dos atores não-indígenas pela
cultura e pelos conhecimentos indígenas pode ser um dos elementos que contribui
para fortalecer o amplo processo de revitalização cultural no qual os moradores da
aldeia Yyn Morothi Wherá vêm se engajando nos últimos anos.
Segundo Sahlins (1997), o final do século XX foi marcado por um
florescimento global de movimentos de intensificação e revitalização cultural
indígena. Nesse processo, a autoconsciência cultural conjuga-se à exigência política
de um espaço indígena dentro da sociedade mais ampla. Assim, como forma de
resistência em contextos de dependência e opressão, os povos indígenas passam a
usar sua cultura, através de um fortalecimento endocultural de seu ethos, para
marcar sua identidade e retomar o controle sobre o próprio destino, contrapondo-se
ao projeto colonialista ocidental.
Neste sentido, a apropriação da ayahuasca pela comunidade e a abertura da
Opy para a presença de não-indígenas faz parte de um processo de revitalização
cultural na aldeia Mbiguaçu que insere esta comunidade indígena numa ampla rede
ligada a diferentes grupos vinculados ao circuito new age. Neste caminho, a
comunidade re-significa e se apropria não só da ayahuasca e de ritos ligados ao
xamanismo essencial do Fogo Sagrado, mas também de toda uma série de
categorias e símbolos ocidentais que se vêem presentes nos discursos novaeristas,
como é o caso dos discursos ambientalistas que colocam os povos originários e seu
modo-de-ser como guardiões do cuidado com a natureza. Essa é, então, uma
ferramenta fundamental no processo de construção da legitimidade e autenticidade
desses indígenas, especialmente no contexto das suas demandas políticas 14.
(ROSE, 2010)
Segundo Rose e Langdon, (2010), a inserção dos moradores desta
comunidade indígena numa ampla rede na qual circulam pessoas, saberes,
símbolos e substâncias estimulou uma nova configuração nas relações entre
indígenas e não-indígenas, contribuindo para colocar os Guarani num papel mais
ativo nas negociações com a sociedade envolvente e, ao mesmo tempo, conferindo
a eles mais igualdade do que costuma haver nas relações entre indígenas e não-
indígenas.
Assim, da mesma maneira que pessoas ligadas ao universo da Nova Era se
apropriam das práticas xamânicas, os xamãs indígenas mostram-se igualmente
capazes de se apropriarem de uma variedade de tradições culturais diferentes, o
que aponta para a dinamicidade e as dimensões inesperadas que o fenômeno do
xamanismo vem tomando no mundo contemporâneo (LANGDON, 2007)
Contudo, dentro do arcabouço desse entendimento sobre a dialogicidade da
cultura em sua práxis existencial e do xamanismo enquanto fenômeno dinâmico, é
importante lembrar que não devemos dizer simplesmente que os Guarani
incorporaram e ressignificaram a prática do xamanismo presente no Fogo Sagrado,
pois isso seria subestimar a tradição histórica do xamanismo Chiripá. De fato, houve
uma re-apropriação contemporânea de determinadas redes de sentidos para uma
série de rituais realizados por esse grupo neoxamãnico, mas reduzir a experiência
religiosa dos Guarani a apropriação de ritos exógenos seria ignorar suas dinâmicas
históricas de resistência cultural. (OLIVEIRA, 2011)
Ainda segundo este autor, o senhor Alcindo, dona Rosa e seus filhos contam
que a mãe do tcheramoi, do velho ancião, a senhora Helena Conceição, carregava
uma “cumbuca” com fogo para todo o lugar aonde iam em suas migrações, que
aquele fogo era guardado e reservado para as práticas cerimoniais, sendo de uso
14
Neste ínterim, é importante salientar a Declaração das Nações Unidas pelos Direitos dos Povos Indígenas,
publicada pelo Centro de Informação das Nações Unidas, no Rio de Janeiro, em março de 2008. Texto
disponível na íntegra em:
<http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/cogedi/pdf/LEGISLACAO_INDIGENISTA/Legislacao-
Fundamental/ONU-13-09-2007.pdf>. Acesso em: Out. 2020
restrito para tais fins. Em 2009, foi aceso na aldeia um fogo que seria sustentado por
quatro anos seguidos, o tatá endy rekoe, quando aconteceu o primeiro Nhembo‟e
Kaaguy nesta tekoa, a Busca da Visão, como se diz no Fogo Sagrado, um
cerimonial no xamanismo de muitas culturas e também da religião dos Chiripá,
registrado por Miguel Bartolomé (1977), com muitas adaptações relacionadas à sua
incorporação contemporânea. Neste sentido, Oliveira (2011) reitera que é mais
adequado observar o tatá endy rekoe e as alianças xamânicas entre grupos
indígenas e não-indígenas no sentido de um apoio à atividade do casal Alcindo e
Rosa para revitalização e fortalecimento das tradições religiosas dos antigos
Guarani.
Outro exemplo que segue nesse sentido é a dança do tchondaro. Segundo
Martins (2020), foi em 2019 que alguns tcheramoi se encontraram na aldeia
Mbiguaçu para revitalizar as memórias dessa tradição Guarani. Em similaridade a
esse rito, o Fogo Sagrado realiza a Dança do Sol, em que os participantes dançam e
cantam por quatro dias ao redor da árvore da vida em reverência ao Grande
Espírito. Antes de 2019, as lideranças da aldeia já haviam participado de algumas
Danças do Sol junto ao grupo do Fogo Sagrado, inclusive no México. Contudo, a
retomada do tchondaro edjerodjy é recordada pelos anciões como um dos ritos que
já faziam parte da educação corporal das lideranças indígenas.
Quanto ao uso da ayahuasca, segundo Mello (2006), Júlia Campos, a idosa
cunhá karaí que citamos acima, afirma se lembrar quando sua avó fazia uso de
plantas muito parecidas com a “guasca”. Ela disse que por muitos anos não havia
mais visto tal planta e agora a estava reconhecendo. Como ela, muitos velhos
argumentam que a planta já era conhecida dos Guarani e que esteve esquecida.
A versão de Alcindo para a origem da planta diz que há muitos anos, quando
o mundo era mais novo e tudo estava sendo criado, os povos indígenas resumiam-
se a algumas famílias. Nesta época, todos eles conheciam todas as plantas
curativas e a “guasca” já tinha sido dada à humanidade pelos nhanderukuery
doadores das plantas cultiváveis. Com o passar do tempo, muitas famílias foram se
dispersando, “caminhando” e levando suas plantas. Os Guarani antigos sabiam
muito mais sobre plantas do que hoje se sabe e usavam a “guasca”. Mas com o
passar do tempo, devido à perda de suas terras e matas, eles perderam também
suas plantas. Por isso, hoje muitos Guarani já não se lembram da “guasca” nem de
muitas outras plantas. (MELLO, 2006)
CONSIDERAÇÕES FINAIS