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FICHA CATALOGRÁFICA

Carpeaux, Otto Maria. 1900-1978


O Canto do Violino e outros ensaios inéditos
Balneário Camboriú, SC: Livraria Danúbio Editora, 2016.
ISBN: 978-85-67801-07-0
1. Música - Apreciação I. Título.
CDD – 781.17
Coordenação Editorial: Diogo Fontana
Edição e revisão: Eduardo Zomkowski
Diagramação: Patricia Martyres
Capa: Daniel Carvalho
Copyright © do prefácio e notas: Dante Mantovani
Todos os direitos desta edição reservados à
Livraria Danúbio Editora Ltda.
Avenida Brasil, 1010, Centro. Balneário Camboriú, SC. 88330-045
E-mail: contato@livrariadanubio.com
Sítio: www.livrariadanubioeditora.com.br
Distribuição:
CEDET
Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas-SP
Imagem da capa:
Gerrit van Honthorst, “Musical Group on a Balcony”, 1622
Imagem digital cortesia do Getty´s Open Content Program
Agradecimentos
Esta edição não teria sido possível sem o apoio de nossos grandes
mecenas:
Adriana Bohm
André Schaefer Pasold
Antonio Abel Pereira Leite
Aramis Fontana
Bruno de Oliveira Feu Rosa
Djalma Perin
Eduardo Augusto de Carvalho Belucio Alves
Eduardo Fernandes
Eduardo Henrique Mafra
Eric Primon
Fábio Furtado Pereira
Gio Fabiano Voltolini Jr
Jefferson Zorzi Costa
Leonardo Beraldin
Leonardo Domingos Fonseca
Marcelo Assiz
Marina Pessini
Mateus Cruz
Maurizio Casalaspro
Moreno Garcia
Rafael Manieiri
Silvio José de Oliveira
Tharsis Madeira
Os recursos para esta publicação são de origem privada e foram levantados por
meio de financiamento coletivo. Nenhum centavo de dinheiro público —
municipal, estadual ou federal — foi usado pela editora.
Sumário
Agradecimentos5
Nota do Editor1
Prefácio4
Cervantes e Beethoven7
Música e mentira14
Mestre de todos21
Bach27
Beethoven32
Música, doce música?37
Beethoven em Viena43
Così fan tutte48
Dvorák e o folclore musical52
Erik Satie58
Imortal Manon61
Óperas novas67
Schumann, trágico72
O outro Mozart77
Recital Ivy Improta82
Um crítico de música86
Hegemonia musical92
O Canto do Violino98
Stendhal e a música103
Romantismo de Beethoven109
O futuro da música115
Quarteto Húngaro (III)120
História da música124
Recordações de Mahler130
Miséria e esplendor dos músicos136
O estilo de Gluck142
Lista de músicos148
Nota do Editor
A folheava
história deste livro e meus trabalhos editoriais começaram enquanto
um antigo jornal do Paraná: numa única tarde de fins de
2014, munido por acaso de tecnologia que me confirmava o ineditismo,
encontrei ali 48 ensaios inéditos de Otto M. Carpeaux, dos quais dei logo
notícia ao amigo e editor Diogo Fontana, cujo vivo interesse incentivou-me
continuar em pesquisas e a reunir, após trabalhoso mês, outros 311
dispersos em 19 jornais de Norte a Sul do Brasil – quantidade que, a julgar
por Carpeaux em Vinte e cinco anos de literatura (1968), representava menos
de um terço entre os cerca de 1.300 ainda inéditos em livro.
Ante um tal volume de textos encontrados (alguma coisa entre 1.500 e
2.000 páginas, como as de Ensaios reunidos), decidimos selecionar sem
demora aqueles que, anteriores à década de 1960, tratavam de música
erudita, havendo entre os 26 editados (1948-1958) ensaios musicais
propriamente ditos, mas também artigos de crítica a representações
musicais do dia, biográficos e, enfim, ensaios “literários-musicais”, em que
Carpeaux serve-se ora de formas literárias para desenvolver questões
musicais, ora de formas musicais para resolver questões literárias – uma
novidade entre textos editados em livro, segundo o prefaciador e
comentador Dante Mantovani.
Como editor porém, familiarizado com os textos que reli vezes sem
conta, sou obrigado a alertar o leitor católico de que, nas palavras de
Carpeaux em Vinte e cinco anos, alguns desses ensaios, senão todos nalgum
grau, encontram-se “irremediavelmente marcados pela época em que foram
escritos”, traço apontado, ademais, em rodapés de nosso prefaciador e
comentador, católico apostólico e romano como nós outros, rodapés não só
em que o leitor há de prestar a atenção, como no texto mesmo de todos os
ensaios.
Com exceção dos publicados nos jornais do Rio e, talvez, no de São
Paulo, constatei sejam todos republicações/reproduções em jornais de
província, de modo que, repetindo-se um ou outro em dois desses
periódicos, pude cotejar “versões” e fixar passagens ilegíveis ou truncadas:
não havendo outro lugar para informá-lo, aos meus rodapés segue-se a
abreviatura N.E. (nota do editor). Jornais, respectivas quantidades e datas
são os seguintes:
Correio da Manhã (Rio de Janeiro), 7 ensaios, 1955-1957
Diário Carioca* (Rio de Janeiro), 4 ensaios, 1950, 1951, 1954
Diário do Paraná (Curitiba), 11 ensaios, 1955-1958
Diário de Pernambuco (Recife), 1 ensaio, 1956
Jornal de Notícias (São Paulo), 3 ensaios, 1948
Por fim: não sendo música erudita nossa área de estudos, convidamos o
regente e musicólogo Dante Mantovani para nos traduzir a carga de
novidade dos textos, prefaciando-os, e anotando em rodapé atualizações das
pesquisas musicais recentes, esclarecimentos, bibliografia complementar e,
quando necessário, refutações às passagens que julgasse controversas: seus
rodapés são marcados com a abreviatura D.M.; ao prof. Guilherme
Zomkowski, cujas notas distinguimos com a abreviatura G.Z.,
encarregamos da tradução de citações latinas e francesas, como em parte
fizera na edição revista de A cinza do purgatório, em 2015; notas do editor
Diogo Fontana marcaram-se com a abreviatura D.F., e, para auxiliar o
leitor, anexamos nas últimas páginas lista de dados biográficos essenciais
de compositores, libretistas e regentes citados no livro.
Boas leituras.
Mãe do bom conselho, rogai por nós.
Eduardo Zomkowski
Curitiba, fev. 2016
Na seção do suplemento dominical Letras e artes.
Prefácio
por Dante Manovani*

P ela influência de sua obra em minha formação pessoal, falar de


Carpeaux me parecia ainda há pouco tarefa apenas fácil, porque
extremamente familiar: é como se eu falasse de mim comigo mesmo; mas a
verdade é que, como músico erudito que se profissionalizou por sua causa,
não é lá coisa simples apresentar com isenção e eficácia alguém cuja obra é
simplesmente fundamental para a cultura brasileira e para a própria
trajetória pessoal de quem o apresenta.
Otto Maria Carpeaux foi o nosso crítico por excelência. O europeu que se
tornou brasileiro e adotou o português para escrever obras máximas como
a História da literatura ocidental foi indubitavelmente um fruto perfeito do
glorioso Império Austro-Húngaro, assim como o foram Haydn, Mozart e
Beethoven, seus conterrâneos e compositores prediletos.
Tão vastos e inabarcáveis eram os conhecimentos de Carpeaux, que a sua
chegada ao Brasil em 1939 significou novo esplendor à nossa vida cultural,
cuja decadência, que ele ajudou a retardar em pelo menos 30 anos, iniciou-
se a partir da década de 1960 por ideologização gramscista, ainda hoje
causa de frutos nefastos, como o analfabetismo funcional, galopante entre
nossas elites universitárias.
O próprio Carpeaux foi vítima da atmosfera ideologizante da cultura
brasileira, porém apenas no final de sua vida, de modo que a qualidade dos
seus trabalhos anteriores não foi comprometida, como o demonstra na
introdução dos Ensaios reunidos (vol. 1) o filósofo Olavo de Carvalho, um
dos principais responsáveis pelo renovado interesse em torno de sua obra e
pelo redimensionamento do seu legado, de modo que, podemos dizer,
justiça tem sido feita.
O Canto do violino é prova disso.
O livro que vos apresento não é um guia de história da música, nem
poderia sê-lo, mas é um instigante tratado que convida o leitor a repensar a
história da música e o situa no cerne das questões mais importantes dos
últimos 15 séculos, sem deixar de lado as polêmicas mais acaloradas.
Embora pareçam não se relacionar, estes ensaios de Carpeaux são
expressão de sua visão global privilegiada acerca da manifestação artística
que mais o assombrava e que considerava a mais elevada forma de arte: a
grande Música Universal.
Engana-se quem acha que este livro seja privilégio para iniciados ou
integrantes do métier musical, porque é obra indicada a todos os públicos, a
todas as idades e para todos os gostos musicais, indicada a quantos queiram
abrir-se à ampliação de sua cultura geral e aventurar-se por universos
sonoros os mais sublimes.
Apesar da linguagem esmerada, Carpeaux sabe dosar seus requintes de
expressão com clareza de raciocínio e inigualável capacidade de síntese,
tornando o livro um valioso alimento espiritual, porém de fácil e agradável
digestão.
As notas que redigi para os 26 ensaios têm o intuito de contextualizá-los
com informações ainda indisponíveis à época de sua redação (1948-1958)
ou que naturalmente escapavam a Carpeaux, como quando se pergunta se
Stravinsky teria se arrependido das críticas feitas a Beethoven, das quais o
compositor russo se retratou nove anos depois.
Para outros trechos, desdobrei questões rigorosamente sintéticas, e
poucas vezes, quando nenhuma, procurei esclarecer termos, idéias ou
nomes de compositores, motivo pelo qual foi anexado ao final deste volume
um índice com dados biográficos dos compositores citados ao longo dos
ensaios.
O Canto do violino é uma janela não só para a Paidéia da Música
Universal, mas também para o estudo da obra crítica de Carpeaux, que
aqui revela singularmente muito do seu método crítico e do seu processo
de escrita. Estou certo de que o Brasil ganha com esta obra inédita um guia
fundamental para percorrermos com segurança o maravilhoso universo da
Música Ocidental.
Com os ensaios reunidos e editados por Eduardo Zomkowski, a editora
que leva a cabo empreitada tão necessária à oxigenação de nosso cenário
cultural não poderia ter outro nome: Danúbio, rio que corta a cidade de
Viena, a Atenas moderna que deu ao mundo Otto Maria Carpeaux, celeiro
não só do nosso maior crítico literário e musical, como de grande parte dos
maiores mestres da História da Música.
Que este livro traga a vós leitores a inspiração e o oxigênio que o rio
Danúbio oferece à Viena, capital universal da grande música, terra onde
floresceram os mais perfeitos fenômenos musicais de todos os tempos!
Paraguaçu Paulista, SP,
dez. 2015
Dante Mantovani é maestro, doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade
Estadual de Londrina, jornalista e apresentador dos programas de rádio Música
Universal, pela Rádio Vox, e A Grande Música, pela Rádio Mãe de Deus.
Cervantes e Beethoven
Jornal de Notícias, 27 jan. 1948

C ontam que outro dia um menino perguntou no colégio ao


professor: “Se Gonçalves Dias ressurgisse hoje, ele seria da UDN ou
do PSD?”1 A ingenuidade cômica da dúvida infantil transformar-se-ia em
absurdo se nós adultos quiséssemos perguntar assim com respeito aos
grandes homens do passado: “Shakespeare seria hoje partidário de
Churchill ou trabalhista? Rabelais ficaria com Bidault ou com Thorez?”2
Na verdade, porém, perguntamos sempre assim. O caso de Nietzsche,
reclamado pelos nazistas e pelos antinazistas ao mesmo tempo, é
significativo. Todos os regimes políticos gostam de invocar as grandes
sombras do passado nacional para enfeitar-se de glórias que não lhes
pertencem. Por que faria exceção o nome do grande escritor do qual
celebramos hoje o quarto centenário do nascimento?3
Cervantes não é apenas o criador de um dos grandes mitos-símbolos do
espírito humano. Também escreveu as Novelas ejemplares, mais magistrais
como realizações literárias do que o próprio Don Quijote: cervantina é a
graça pérfida dos dois pícaros Rinconete e Cortadillo, e cervantina é a
dolorosa e humorística sabedoria dos dois cachorros Cipion e Berganza que
meditaram durante a noite sobre o absurdo dos destinos caninos e
humanos. E próprio do grande humorista também é a profunda angústia de
Persiles y Sigismunda. Já vale a pena possuir como testemunha essa sombra.
E, com efeito, é a Espanha oficial de hoje que lhe comemora com festas
barulhentas os primeiros 400 anos duma imortalidade sem fim, como se ele
fosse um franquista de 400 anos.
Mas seria tão absurdo considerá-lo como representante de uma Espanha
militarmente reacionária e clericalmente católica? Em todas as obras de
Cervantes não se encontra uma só palavra que seja incompatível com o
catolicismo mais ortodoxo. Nem ele desaprovou os excessos da Inquisição,
espécie de tribunal de segurança que se valeu de aparências eclesiásticas
para perseguir os chamados inimigos do Estado. Cervantes foi mesmo
servidor leal desse Estado, lutando na batalha de Lepanto como soldado da
monarquia espanhola, realizando façanhas como nem os generais.
Cervantes, general! No entanto...
Existe uma ópera de Beethoven, Fidelio – a única aliás que escreveu –
cujo enredo se passa na Espanha: no calabouço sombrio de uma fortaleza, o
tirânico governador Pizarro mandou encarcerar o nobre Florestán, que
ousara manifestar idéias de liberdade. O infeliz parece perdido. Nem o
salvariam os heróicos esforços de sua mulher Leonore que, disfarçada em
homem, sob o nome suposto de Fidélio, tentava libertar o marido. Só no
último momento, quando na escuridão noturna do cárcere já se preparava o
assassínio, ressoam longe as cornetas que anunciam a chegada do ministro
e a libertação. Então, pergunta-se: Cervantes preferiria hoje o papel de
Florestán ou do carcereiro?
Talvez não fosse republicano, assim como não lhe cabe absolutamente o
apelido de livre-pensador. Mas foi, sim, um pensador muito livre, um
soldado da liberdade. Os comentaristas modernos do Don Quijote já não
acreditam tão unanimemente que Cervantes tenha zombado da cavalaria:
zombou apenas dos aristocratas degenerados de uma época em que o
feudalismo já perdera a razão de ser. Os antigos, os legítimos feudais
espanhóis da Idade Média não eram porém tão reacionários como se pensa.
Opondo-se obstinadamente aos reis e ao Estado, esses precursores do
anarquismo ibérico defendiam, nos seus castelos amurados, idéias de
liberdade que seriam depois apanágio do povo inteiro; cada espanhol, um
fidalgo! Vale ler as páginas de Ortega y Gasset, no volume Notas4 sobre as
Ideas de los castillos; são hoje ruínas em meio do deserto castelhano, mas
ainda gritam ao cinzento céu espanhol que “acima da Lei e do Estado está a
Liberdade”. Cervantes, homem nobre, também foi fidalgo assim, e sua
cabeça, um verdadeiro castelo de idéias livres. E na obra mais profunda que
já se escreveu sobre ele – El pensamiento de Cervantes, de Américo Castro –
fica bem demonstrada a origem das idéias cervantinas no humanismo livre
de Erasmo. Cervantes erasmiano! No entanto...
Em Erasmo havia um céptico, ficando entre ou antes acima dos partidos
em luta. E o cepticismo do grande humorista – todos os grandes
humoristas são cépticos – também parece permitir conclusões inquietantes
de uma neutralidade suspeita. Certa vez Don Quijote investiu com força
contra um homem que, montado num burro, trazia consigo um vaso
redondo de metal resplandecente; achava que a ele, ao nobre cavaleiro, e
nunca a um homem de condição plebéia, pertencia de direito o precioso
troféu, o “Yelmo del famoso Mambrino”.5 Aquele pobre homem dizia-se
porém barbeiro, precisando para o seu oficio de uma bacia; e aquilo que ao
Don Quijote parecia “Yelmo de Mambrino”, apenas seria uma modesta
“bacía de barbero”. Quando, então, a luta entre os dois adversários
irreconciliáveis se tornou extrema, Sancho Pança pretendeu intervir,
dizendo: “Talvez o objeto em causa não fosse yelmo nem bacía, e sim um
baciyelmo.” Esse relativismo, esse perspectivismo dos pontos de vista,
também é cervantino. Então, Cervantes seria neutro? O seu humorismo
céptico serviria de argumento aos que não têm a coragem de tomar
partido? Para rebater esse ponto de vista pretendo escolher um recurso
extremo, dir-se-ia esquisito, referindo-me mais uma vez a Fidelio, a ópera
de Beethoven.
O enredo já foi resumido. Primeiro ato: Leonore, disfarçada em homem,
sob o nome suposto de Fidélio, introduziu-se na fortaleza; chega a saber
que o tirano Pizarro pretende assassinar-lhe o marido. A primeira cena do
segundo ato passa-se na escuridão noturna do calabouço; assistimos à
tentativa do crime quando, no último momento, ressoam de longe, atrás do
palco, as cornetas que anunciam a chegada do ministro, a libertação. A
segunda cena do segundo ato só é uma espécie de epílogo, o coro de júbilo
dos prisioneiros, enquanto se levanta o sol da liberdade. É a única ópera de
Beethoven. Custou-lhe muito. Escreveu uma ouverture que os amigos
acharam insignificante; a peça é hoje conhecida, pouco conhecida aliás,
como Leonore n.º 1, porque então a ópera ainda devia chamar-se Leonore. E
o “número 1” se explica pelo fato de que Beethoven escreveu logo outra
ouverture, a Leonore n.º 2, também desprezada pelos amigos e pelo próprio
mestre. Mais um esforço, e saiu a Leonore n.º 3, a ouverture das ouvertures; no
fundo, uma grandiosa sinfonia, intensamente agitada como a luta pela
liberdade, até ressoar o toque de corneta, tocada fora da sala de concerto,
iniciando-se o desfecho jubiloso. É uma sinfonia tão grande, que não serve
bem para abrir uma noite de ópera. Então Beethoven escreveu, mudando ao
mesmo tempo o título da obra, a ouverture de Fidelio, aquela peça bonita
mas pouco significativa que hoje se toca nos teatros líricos antes de se
representar a única ópera de Beethoven.6
A Leonore n.º 3 entrou no repertório dos concertos de orquestra.
Aconteceu porém que os regentes de ópera não quiseram renunciar ao
prazer honroso de apresentar, por sua vez também, a grande obra. Mas
como fazer? A solução mais simples seria tocar a Leonore n.º 3 em vez da
insignificante ouverture de Fidelio, isto é, antes da representação. Mas é
uma verdadeira sinfonia de programa, representando musicalmente o enredo
inteiro; as cornetas que na ópera acompanham a peripécia, também voltam
para Leonore n.º 3, como auge do desenvolvimento. Depois dessa ouverture
singular, já não seria preciso representar a ópera. Por isso, preferiram tocar
a Leonore n.º 3 depois da representação, no fim da noite. Mas o público
gostaria de ouvir mais uma vez na orquestra o que já ouvira no palco?
Como seria, pois, entre o primeiro e o segundo ato? Mas então o público
ouviria as cornetas na orquestra antes de tê-las ouvido no palco, no cárcere
onde anunciam a libertação; e ninguém compreenderia a sinfonia. Enfim
Gustav Mahler, naquele tempo diretor da Ópera de Viena, achou a solução:
representa-se a primeira cena do segundo ato, a noite do crime escurece o
palco, a tensão dramática chega ao auge, ouvem-se de longe, dos bastidores,
as cornetas que anunciam a liberdade, cai lentamente o pano; depois, de
repente, ilumina-se a sala escura do teatro, transformada em sala de
concerto, e a Leonore n.º 3 se desenrola com brilho enorme, até ressoar o
toque das cornetas, repetindo-se no palco ideal da música os
acontecimentos da vida real, terminando tudo no coro jubiloso do final; é só
o pobre sol dos maquinistas de teatro que então se levanta, mas o sol da
liberdade já se levantara antes nos acordes de Beethoven.
Que idéia genial, esta de Gustav Mahler! Mas no fundo só foi preciso
colocar as coisas nos justos lugares. Só é preciso tomar o justo ponto de
vista para ver as coisas como são, para saber o que é na verdade o baciyelmo.
Um vaso redondo de metal resplandecente pode ter, com efeito, vários
usos; e o olho insubornável do humorista vê-os todos. Nós outros não
somos tão soberanos; este só vê o “Yelmo de Mambrino” e aquele só a
“bacía de barbero” – não importa. O que importa é ver o baciyelmo do ponto
de vista justo; importa colocar-nos a nós mesmos do lado justo para que o
lutador idealista não se arme de uma inofensiva “bacía de barbero” e para
que o precioso “Yelmo de Mambrino” não seja colocado em cima da cabeça
de um malandro. O problema é como o das quatro ouvertures de Beethoven:
problema de colocação justa. Se Cervantes já tivesse pensado inteiramente
como nós outros, gozando de plena liberdade no tempo dos Felipes, não
seria preciso representar a ópera. Se a ópera fosse representada antes da
sinfonia, não se precisava de Cervantes, que é mais e melhor do que um
ponto final. Entre o primeiro e o segundo ato da tragédia, ninguém
compreenderia a revelação da música e do humorista. Mas colocada no
único ponto justo, entre a primeira e a segunda cena do segundo ato, no
momento penúltimo, decisivo, então a luz de Cervantes ilumina a sala
escura, as cornetas anunciam a liberdade e em nossos corações levanta-se a
aurora.
UDN e PSD, partidos políticos do período democrático entre 1945 e 1964, extintos pelo
governo militar através do Ato Institucional n.º 2 de 1965. A UDN (União Democrática
Nacional) era um partido conservador e antigetulista, que apoiou a eleição de Jânio
Quadros; o PSD (Partido Social-Democrático) era formado por apoiadores de Getúlio
Vargas, contava com a maior bancada no Congresso e elegeu dois presidentes: Eurico
Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek. (D.F.)
Bidault e Thorez, políticos franceses. Georges Bidault (1889-1983) era católico e
conservador; Maurice Thorez (1900-1964) foi líder do Partido Comunista da França.
(D.F.)
4.º centenário em 29 set. 1947. – Este ensaio de Carpeaux foi provavelmente reproduzido
no Jornal de Notícias (27 jan. 1948). (N.E.)
Notas de vago estío. (N.E.)
“Elmo do famoso Mambrino”. (N.E.)
Obra que transcendeu a esfera da ópera, também hoje Fidélio é muito tocada como peça de
abertura em concertos sinfônicos. (D.M.)
Música e mentira
Jornal de Notícias, 22 out. 1948

U m best-seller de espécie muito particular empolgou recentemente


os leitores americanos, conquistando agora o público europeu. O
livro chama-se Heritage of Fire7. O autor, Friedelind Wagner, filha de
Siegfried, neta de Cosima e Richard Wagner, apresenta revelações
sensacionais. Durante os 25 anos passados, Bayreuth e a Casa Wahnfried
foram consideradas como fortalezas do nazismo, até como berço do poder
de Hitler. Agora Friedelind inverte todos os termos da questão: acusando
de nazismo sua própria mãe Sieglinde8, a esposa de Siegfried Wagner (que
não era, portanto, de sangue wagneriano), revela que todos os outros
membros da família sempre foram antinazistas, mal suportando as
freqüentes visitas do Führer: este, procurando “apoio espiritual” na casa do
pangermanismo musical, teria sofrido as piores humilhações da parte de
pai e filha, só para poder passar, aos olhos do povo alemão, como amigo
íntimo daquela casa, como herdeiro legítimo do gênio de Bayreuth e
executor político das suas idéias filosófico-musicais sobre o “cristianismo
heróico” e a “regeneração” da raça teutônica. Daí, Friedelind devia, em
1939, fugir da Alemanha, procurando exílio nos Estados Unidos,
publicando agora aquele livro sensacional de memórias. Não, Wahnfried
não teria sido o berço do nazismo. Já em 1921, quando certos círculos
pediram a expulsão dos não-arianos de Bayreuth, Siegfried Wagner teria
escrito uma carta (citada por Friedelind sem indicações exatas),
defendendo os franceses, os latinos em geral e até os judeus. E para tanto,
Siegfried podia afirmar, com muita razão, que seu pai não era um
pangermanista e anti-semita tão terrível como Cosima, genial chefe de
publicidade do marido, fazia acreditar ao mundo (mais um caso de um
membro da família Wagner denunciar a própria mãe). Com efeito, também
existe o Wagner revolucionário de 1848, discípulo de Feuerbach e quase
correligionário de Marx; ainda escondeu idéias socialistas nos Nibelungen
onde Shaw os descobriu. Enfim, Wagner sai das páginas de sua neta como
bom-moço ao gosto de 1945, “liberal” no sentido norte-americano da
palavra, fazendo o acompanhamento musical da aliança entre as potências
ocidentais e a Rússia bolchevista. O “Wagner” que conhecíamos antes teria
sido falsificação, mentira – a não ser a situação internacional de 1948, já
bastante modificada, exigir novamente um Wagner da Direita.
Heritage of Fire inspira vertigem ao leitor. O fogo que Friedelind herdou
do grande avô parece o fogo de Loki, deus germânico da mentira; ou então,
o próprio Wagner foi o mentiroso. Ou então, mentirosos foram só os
membros femininos da família. Cosima, Sieglinde9 – menos, naturalmente,
Friedelind que parece mentir porque diz a verdade, uma verdade
wagneriana.
O nome de Wagner evoca logo associações menos agradáveis: um mundo
de rostos pintados e gestos pseudo-heróicos, teatro no sentido pejorativo da
palavra; Gretchens colossais exibindo porta-seios de aço; Siegfrieds em
armaduras resplandecentes, combatendo certos demônios ao som de
marchas militares; “cristianismo heróico” para o uso da alta administração
prussiana; um palavrório enorme sobre O que é alemão?10, antecipando
imediatamente a megalomania hitleriana. Tudo isso já pertence ao reino
dos pesadelos de ontem, de anteontem. Ainda existem sujeitos como aquele
fanático que achou Wagner maior do que Beethoven e Goethe juntos?
Também responderíamos que Wagner fez, sem dúvida, melhores versos do
que Beethoven e música melhor do que Goethe.
Fazemos um esforço para esquecer tudo isso, botando uns discos na
vitrola. E logo o feiticeiro nos fez, com efeito, esquecer tudo isso. Quem
não suporta seis horas de conversas musicais dos sapateiros de Nuremberg,
e quatro horas de gestos histéricos de uma cantora gorda, ainda sucumbe
(Gide o confessou) no concerto. Nietzsche, antiwagneriano exaltado
chamou, no entanto, a ouverture dos Mestres Cantores de “música magnífica,
riquíssima, último fruto da nossa civilização”, e os dois primeiros
compassos do prelúdio de Tristão e Isolda já lhe pareciam “abrir a porta de
mundos transcendentais”. Os violinos do prelúdio ao terceiro ato de
Lohengrin elevam-se para alturas celestes em que já não há contradições
entre o Wagner revolucionário e o pangermanista, em que nem este nem
aquele existe, assim como a luta entre papa e imperador acaba no Paraíso
de Dante. A fascinação é irresistível.
Sobre a música de Wagner ainda não se dizia a última palavra: o grande
obstáculo é o teatro de Wagner. Procurar, nessa música, os famosos
leitmotivs e acompanhá-los através do “drama musical” inteiro é a delícia
dos amusicais, para os quais a música só tem sentido quando corresponde a
imagens literárias, gestos e movimentos psicológicos. Nós outros
preferimos o critério de Lorenz: os períodos ligados pela mesma tonalidade
são os elementos sinfônicos da música de Wagner11, espécie de falsificação
da grande arte sinfônica alemã por um gênio errado – “L’Allemagne e le
génie de l’erreur” (Duhamel)12. Mas é um gênio. Quanto mais curtos
aqueles períodos são, tanto mais rico é o poder fascinante das modulações
cromáticas: no Tristão sobretudo, em que “a crise de harmonia romântica”,
conforme a expressão de Kurth13, chega ao auge, já se adivinhando “o reino
de novas” de Debussy, já se anunciando a atonalidade de Schoenberg e
Alban Berg. Mas Wagner não deu esse último passo.
Depois de Tristão Wagner recuou, tomou-se musicalmente reacionário.
Voltou ao romantismo do seu passado. A oficina do sapateiro Hans Sachs é
um “navio fantasma” chegando ao porto da pequena-burguesia. Siegfried é
um Tannhaeuser que não perde no monte de Vênus das Valquírias a
energia militar de um sargento. Parsifal é um Lohengrin oficializado,
ingênuo como um doutor em filosofia que acaba de colar grau e eficiente
como um oficial de reserva prussiana. Toda essa última fase de Wagner
parece uma mentira enorme. Mas não foi. Foi a própria realidade. O
romântico Wagner é o musico oficial do Reich dos Guilhermes e de Hitler
porque esse Reich é a realização política dos sonhos poéticos do
romantismo. Apenas para nós outros o sonho virou pesadelo.
Wagner quis ficar romântico. Antes, sim, fora revolucionário, discípulo de
Feuerbach, amigo de Marx e Bakunin, lutando em 1848 nas barricadas de
Dresden, exilado na Suíça onde realizou a sua própria revolução, a erótica,
da qual Tristão e Isolda é o monumento. Mas depois recuou. Quis ficar
romântico. A sua atividade febril de compositor, poeta, escritor filosófico e
político, diretor de teatro, tudo ao mesmo tempo, é realização de outro
sonho romântico; da fusão de música e literatura, e filosofia e vida;14 da
confusão entre a obra e o artista. Em vez da arte viva, a vida artística. O
vitalismo artístico de Wagner apenas é o reverso daquele romantismo
político. – “Acredito – afirmou Wagner – que não precisamos da arte
quando temos a vida verdadeira”; sua nação acabará sacrificando a arte e a
civilização inteira à “vida verdadeira”, ao poder. A mentira começou na
música e terminou nos campos de batalha.
A psicologia de Wagner, já esboçada por Nietzsche, é a de um grande
ator porque é preciso ser ator para representar na vida o que é da arte. Daí o
campo de ação de Wagner é o palco, reunindo-se os recursos da música e
da poesia (“Goethe e Beethoven ao mesmo tempo”). Bayreuth é o lugar de
um fantástico comício em que o ator subjuga as massas, seja mesmo pelo
poder da mentira sempre repetida (os leitmotivs). Na literatura de Wagner
até aparece a mentira no sentido cru da palavra: na sua autobiografia de
1842, Wagner confessou que um trecho de Heine lhe fornecera o enredo do
Navio fantasma; na segunda edição da autobiografia, de 1871, o mesmo
enredo aparece “encontrado por Heine numa peça holandesa”, peça que não
existe. De maneira semelhante Wagner chegou a negar as suas relações
artísticas com a ópera de Meyerbeer e a Grande Ópera parisiense, que são
no entanto os precursores imediatos do “drama musical” wagneriano. A
mentira introduzia-se no próprio coração da verdade musical de Wagner,
na sua heritage of fire que ele herdara dos Bach e Beethoven: a grande arte
sinfônica, a conquista suprema do espirito alemão, transformada pelo
mestre de Bayreuth em acessório das suas pompas teatrais, em mero
instrumento das falsidades de ópera. Vida falsa, arte falsa, catástrofe certa.
Ao Crepúsculo dos deuses, fora mero espetáculo, seguiu-se a realidade do
crepúsculo dos ídolos.
Agora, o ar parece purificado, mas só parece. Enquanto o nazismo é
considerado como fenômeno exclusivamente alemão e portanto extinto
pela derrota militar dos alemães, a mentira continua, porque todo mundo é
culpado. Todo mundo aceitou o Wagner do “cristianismo heróico” e da
“regeneração racial” de Cosima, assim como agora gosta de aceitar o “bom-
moço” de Friedelind. E já estão surgindo de novo Siegfrieds, vestidos de
armaduras resplandecentes, oferecendo-se para lutar contra certos
demônios; mas a música que os acompanha não é boa. Para nós, não
importa se Wagner foi um grande ator da Direita ou um grande ator da
Esquerda ou de Centro qualquer. Chega de atores. É preciso distinguir
nitidamente entre o artista e a obra, desfazendo-se as perigosas confusões
românticas. Queremos é música: música sinfônica, verdadeira. Precisamos
esquecer Bayreuth e Wahnfried e as marchas, Cosima e os porta-seios de
aço, Sieglinde15 e Friedelind e todo o resto: no resto a ouverture dos Mestres
Cantores é música riquíssima e os dois primeiros compassos do prelúdio de
Tristão e Isolda abrem a porta de mundos transcendentais.16 Eis a verdade.
Ed. americana: (Nova York, Harper, 1945); ed. inglesa: The Royal Family in Bayreuth
(Londres, Spottiswood, 1948). (N.E.)
Equívoco do A. (repete-se): chamava-se Winifred, a mãe de Friedelind. Carpeaux
provavelmente confundiu-se com o nome de Sieglinde Wagner (1921-2003), cantora de
óperas, sem parentesco com os Wagner. “Sieglinde” é também o nome da heroína de A
Valquíria, ópera de Richard Wagner. (N.E.)
I.é., Winifred. Cf. nota anterior. (N.E.)
Was ist deutsch?, ensaio de Wagner. (N.E.)
Alfred Lorenz, Das Formproblem in Richard Wagners Musik (Munique, s.ed., 1922). –
Carpeaux escreve o seguinte em Uma nova história da música (2ª ed. rev. e aum., Rio de
Janeiro, Edições de Ouro, 1968), p. 210: “Lorenz demonstrou que os verdadeiros temas das
‘sinfonias teatrais’ de Wagner não são os leitmotivs, mas os períodos musicais nos quais
estão encerrados; exatamente assim como na sinfonia não são as melodias que importam,
mas seu desenvolvimento dramático.” (N.E.)
“A Alemanha tem o gênio do erro” (citação elíptica de Georges Duhamel, Tribulations de
l’espérance (Paris, Mercure de France, 1947), p. 30). (G.Z.)
Ernst Kurth, Romantische Harmonik und Ihre Krise in Wagners “Tristan” (ed. fs. da 3ª ed.
1923, Hildesheim, s.ed., 1985). (N.E.)
No original, “... música e literatura e filosofia e da vida” (grifamos). (N.E.)
Isto é, Winifred. Cf. nota 8. (N.E.)
O ano de estréia de Tristão e Isolda, 1854, é considerado divisor de águas na história da
música, porquanto seus acordes iniciais abriram as portas da dissolução da tonalidade.
Nesse sentido, Wagner foi mesmo um revolucionário, o equivalente musical de Hegel e sua
filosofia da dialética negativa, que por sua vez abriu as portas do porvir revolucionário.
(D.M.)
Mestre de todos
Jornal de Notícias, 26 out. 1948

N a segunda metade do século XVIII operou-se a maior revolução


de que se tem conhecimento na história da música: a voz perdeu o
primado milenar, cedendo aos instrumentos, reunidos na orquestra e
governados pelas leis da forma de sonata; instrumentos, objetos de madeira
e metal, mas dotados agora de todos os poderes de expressão da voz
humana, da alma humana. Servirão ao romantismo mais desenfreado e ao
objetivismo mais exato, igualmente, quando a música moderna, a partir
daquela revolução, se encaminhará para descobrir novos espaços invisíveis.
Um gigante miguelangelesco parece ter mudado os caminhos da arte, da
história íntima do gênero humano. Mas não foi tanto assim. O profeta Elias
também esperava ouvir a voz de Deus no vento forte que fende as
montanhas, despedaçando os rochedos, mas – diz a Bíblia – “o Senhor não
estava no vento; e depois do vento, veio um terremoto; mas o Senhor não
estava no terremoto; e depois do terremoto veio um fogo; mas o Senhor
não estava no fogo; e depois do fogo, havia um silêncio, e uma voz baixa e
suave” – e nessa calma estava o Senhor. O tocsin daquela revolução musical
também era apenas um inofensivo golpe de timbal, seguindo pelo acorde
Dó Maior, o mais simples, o mais puro dos acordes musicais. E quem deu o
golpe parece-se muito com a imagem que as crianças se fazem do Senhor:
um velho afável cheio de bondade, um avô celeste – e é assim que ele nos
olha do céu das harmonias, o pai da música moderna, o mestre de todos:
papai Haydn.
Quase não se acredita. O filho de modestos camponeses austríacos e da
época aristocrática do Rococó, servindo durante 30 anos como “músico de
câmara” ao nobre príncipe Esterházy, vestindo sempre a farda de lacaio,
decerto não foi espírito revolucionário. Até nos dias de triunfo, quando o
público de Londres o celebrava, Haydn não se atreveu de surpresas maiores
do que daquele humorístico golpe de timbale, no movimento lento da
sinfonia chamada La Surprise, para acordar os ouvintes adormecidos no
concerto. E mesmo esta história parece anedota, assim como a história de
outra sinfonia, chamada Despedida: os músicos do príncipe Esterházy
pediram férias para visitar suas famílias; e quando o príncipe hesitava em
concedê-las, Haydn compôs uma sinfonia na qual um por um dos músicos,
acabando sua parte, saiu da sala em pontinhas de pés, até enfim o “mestre
de câmara” se encontrar sozinho com o príncipe, que então compreendeu.
Mas há profunda significação nessas anedotas inofensivas. Aquele golpe de
timbale traduziu, para a linguagem da música do Rococó, um sinal grande
e terrível. E aqueles músicos fardados de lacaios que saíram na pontinha de
pés, entrando em férias sem lhes ter sido dada a licença, não voltaram mais.
Férias do ancien régime. Na música de Haydn, que parece a Sinfonia de
Despedida do Rococó, inicia-se uma nova época histórica.
Scarlatti e os filhos de Bach já elaboraram a forma de sonata; Sammartini
já escrevera pequenas sinfonias; a orquestra já se formara sob a regência de
Stamitz e dos outros “gênios prematuros” de Mannheim; é demorada a
gestação das revoluções históricas, e limitado o papel até dos maiores
indivíduos. Mas ao pai Haydn, só a ele, pertence o quarteto. Depois de dois
séculos de solistas, da voz humana concertante, do cravo e do violino
concertantes, é o quarteto de Haydn a primeira música na qual não há
solistas: as quatro partes têm os mesmos direitos, nenhuma delas goza de
privilégios nessa conversa urbana na qual ninguém levanta demais a voz,
conversa alegre, às vezes humorística mas nunca grosseira, sempre bem
educada, às vezes sentimental à moda do século que gostava de lágrimas,
mas sempre serena, séria. Será música burguesa? Nietzsche definiu a arte
de Haydn como “obra de uma inteligência genial limitada pelo moralismo
tímido”. Seria o contrário da música limitada de Beethoven. E este, que fora
aluno do velho – que aluno! – dizia numa hora de mau humor: “Não
aprendi nada com Haydn”. Em face de um quarteto de Beethoven, todos os
77 quartetos de Haydn se esquecem como se fossem de mero precursor.
Até em comparação com Mozart, em cuja música de câmara, tantas vezes
trabalhada com mera rotina, tantas outras vezes se abrem perspectivas
para a profundidade do coração e as angústias do mundo – a música de
Haydn já parece pertencer a um passado remoto, de uma idade idílica
irremediavelmente perdida, de um paraíso de crianças do qual já nos
despedimos para sempre. Mas na verdade o pai daqueles 77 quartetos está
sempre presente entre nós: não é o passado, e sim o futuro, mestre de
todos.
O equívoco produziu-se justamente em virtude do fato de que Haydn era
um artista revolucionário. O seu acorde Dó Maior que hoje nos soa tão
puro, tão inofensivo, quase primitivo, foi na verdade o acorde fundamental
de uma nova arte em que as qualidades da música italiana e da música
alemã se reuniram de maneira tão perfeita que o último cume da arte
parecia atingido. Fala-se de “Escola de Viena”. Haydn, Mozart, Beethoven
constituem a trindade sacra dessa religião musical, e dentro desse esquema,
que entrou na rotina das histórias da música, Haydn não é apenas o mais
velho, mas também “o menos perfeito”, ainda não plenamente consciente
dos recursos instrumentais que ele mesmo criara; espécie de precursor de
coisas mais sérias, mais transcendentais. Mas esse esquema já é
insustentável. A observação do fato de que Haydn, tão sensível ele mesmo
aos encantos da música mozartiana, não influenciou na música do amigo,
que no entanto, mais novo de 24 anos, já o venerava como pai – o fato basta
para invalidar aquele esquema historiográfico. Depois, a redescoberta de
Bach e dos velhos italianos abalou o monopólio da “Escola de Viena”; há
outros nomes, igualmente dignos da nossa admiração e talvez mais. Desse
modo chega-se a distinguir nitidamente duas linhas de evolução diferentes.
Em Bach realizou-se pela primeira vez a síntese da música alemã e da
italiana; neste sentido (mas só neste) seu filho Carl Philipp Emanuel é seu
herdeiro; e este é o precursor imediato de Mozart, cume insuperável da
música vocal. A outra linha, a da música instrumental, nasceu com um filho
de camponeses numa modesta casa de aldeia da Áustria Baixa. Um quadro,
representando esta casa, encontrava-se na parede do quarto de dormir do
homem que afirmou não ter aprendido nada com Haydn; mas quando ele,
que acabara de escrever os últimos quartetos, acordou por um instante da
agonia, se lembrou de dias passados e, fitando aquele quadro, dizia aos
presentes: “Vejam essa modesta casa na qual nasceu um homem tão grande,
o mestre de todos nós”.
Casa modesta, homem modesto, mas a sua música foi maior do que ele
mesmo. Não foi modesta, e sim revolucionária. Um golpe de timbal, e que
modificou o aspecto do nosso mundo. Mas foi uma revolução construtiva,
talvez a mais construtiva de todas. O manifesto dessa revolução está escrito
em estilo geométrico; é a mais rígida, a mais exata de todas as formas
artísticas, a forma de sonata, porém capaz das modificações mais
imprevistas, de extensões surpreendentes. No início, soava na sonata
moderna, na haydniana, só um instrumento: o cravo. Depois dois
instrumentos, depois três, depois quatro, no quarteto, enfim um coro de
instrumentos, a orquestra, da qual Haydn excluiu (mais um feito
revolucionário) o cravo para se evitar qualquer exibição privilegiada do
solista. “Arte geométrica”?, sim, porque possuía a qualidade inata de
estender-se sem limites assim como os espaços infinitos da geometria
euclidiana. Enfim, era a imagem musical do próprio Universo. O velho
afável, cheio de bondade, que descobriu esses espaços infinitos do espírito,
fora realmente criado à imagem de Deus, não do Deus das crianças, mas de
todos nós.
Contudo, muitos não encontram a dimensão do transcendental nessa
conversa urbana de instrumentos na qual ninguém levanta demais a voz.
Acontece assim, porque o transcendentalismo de Haydn não se encontra lá
onde o procuram: na sua música religiosa. Ali ele é realmente o
representante do espírito burguês, sincero, mas sem profundidade. A mais
bonita das suas missas, a In tempore belli (em dó maior) já exprime
sentimentos menos angustiados do que preocupados. A Criação, enfim, é o
evangelho musical de um deísmo moderado. Música sacra, prudentemente
laicizada. No entanto, a música de Haydn tem uma coisa em comum com a
música eclesiástica da idade polifônica, coisa pela qual ambas se distinguem
da época italiana: nem na igreja de Palestrina e Lasso nem no quarteto e na
sinfonia de Haydn há solistas; as vozes dos cantores, lá e cá dos
instrumentos, são todas iguais perante Deus. O quarteto de quatro vozes é
a forma laicizada do coral de quatro vozes.
Às vezes é uma conversa de quatro sujeitos prosaicos. Outra vez, é a
transfiguração das coisas terrestres, como naquele quarteto chamado
Imperador (op. 76, n.º 1, em dó maior), em cujas variações sobre o hino
austríaco cantam todos os anjos. E os largos e andantes já pré-
beethovenianos do mestre! Aí já está superado o sentimentalismo burguês
do bom velho que gostava de chorar, à moda do seu tempo; no Andante da
Sinfonia em sol maior, no Largo do Quarteto op. 76, n.º 3 se antecipam os
acordes transcendentais dos movimentos lentos de Beethoven, e mais do
que isso todos os frissons misteriosos da música romântica. Haydn fica
sempre sereno, objetivo. Em século futuro, depois de excessos de
subjetivismo, um Alban Berg, um Prokofiev voltarão à forma de sonata; o
grande acorde Dó Maior de Haydn não é uma lembrança do passado
perdido, mas sim o sinal da possibilidade de uma nova ordem. De Schubert,
Schumann até Berg e Prokofiev, todos eles foram, como Beethoven,
discípulos seus.
Assim o próprio Beethoven o viu na hora da agonia: partindo da modesta
casa de aldeia da Áustria Baixa, para o reino das harmonias permanentes.
A sua obra teria sido uma grande “Sinfonia de despedida”. Mas lá, no céu, o
velho afável, cheio de bondade, fica presente: mestre de todos nós.
Bach
Letras e Artes17, 3 dez. 1950

O noite,
regente do coro de S. Tomás morreu às 9 horas e 15 minutos da
no dia 28 de julho de 1750. Nos últimos tempos fora grande
sua solidão de cego. Tinham-no apreciado como o maior organista e
pianista do século. Ainda há pouco o rei Frederico II, da Prússia,
interrompera uma sessão do Conselho de Estado para receber “o velho
Bach”. Mas o rei já não gostava da arte contrapontística que os próprios
filhos do mestre achavam seca, matemática, “sem sentimento”. O velho
Bach fora solitário como, no seu Concerto n.º 1 em ré menor, a voz do
pianoforte em meio das ondas do acompanhamento que parece o próprio
Universo, transformado em música.
Agora, 29 de julho de 1750, esses dedos tão admirados não tocarão mais.
Só ficarão uns ossos. O próprio túmulo em cima desses ossos será
esquecido; não puseram lá o nome. Ficou apenas uma palavra
incompreendida, um flatus vocis, o nome Bach.
Mas o nome B-A-C-H, igual a Si bemol-Lá-Dó-Si, é mesmo um tema
musical. Para reviver só precisa de um ritmo, talvez daquele ritmo de
marcha que caracteriza as invenções melódicas do mestre, símbolo da
caminhada do homem por esse vale de lágrimas e também da vida póstuma
de João Sebastião Bach.
A glória do virtuose Bach, como de todos os virtuoses, mal poderia
sobreviver à hora de morte. A do compositor nem tinha nascido, por
motivos musicais e outros. Aos alunos o mestre ditara no caderno: “A
glória de Deus é o único fim e objetivo da música e do baixo contínuo em
especial”. Mas junto com o regente de S. Tomás desapareceu também o
baixo contínuo18, esse recurso supremo da música barroca. Na nova arte
sinfônica de Haydn o tema cantabile já não precisava de contrapontos,
ficando os instrumentos livres para acompanhá-lo, desaparecendo o baixo
contínuo e com ele todas as obras que dele se serviram, caindo no abismo do
esquecimento revolucionário assim como o século XVIII inteiro foi
devorado pela Revolução. Outros tempos. Por pouco Bach, visitando o rei
em Potsdam, teria lá encontrado Voltaire. Anacrônica a idéia do mestre de
reformar a música eclesiástica. Em vez de renová-la tinha conferido
dignidade sacral à música profana da sala de concerto (v. os estudos de L.
Schrade, no Journal of the History of Ideas, VII/2,19 e de H. Keller, in:
Universitas, IV20). O herdeiro, muito dissemelhante, dessa Ars Nova dirá,
literalmente: “Baixo Continuo e Religião são coisas acabadas sobre as quais
não discuto” – disse isso o maior poeta musical, Beethoven.
A vida póstuma de João Sebastião Bach não é assunto para divagações
poéticas. Bach não foi poeta, antes um arquiteto que calculava suas
catedrais invisíveis. Para escrever-lhe a biografia post mortem é preciso ficar
tão sóbrio como ele mesmo na famosa carta a Erdmann (28 de outubro de
1730), na qual, expondo suas atividades musicais, não se esquece de
calcular as gratificações que recebe por “serviços fúnebres ordinários” e por
“cadáveres extraordinários”. Seu próprio funeral foi apenas ordinário. Os
originais dos Concertos de Brandemburgo, então ainda inéditos, só foram
salvos pela intervenção de um esquisitão: tinham-nos vendido por 30
tostões como papel de embrulho.
Esquisitões também foram os que editaram, no começo do novo século, as
Variações de Goldberg e o Magnificat. “Enfin, Mendelssohn vint”, regendo
pela primeira vez, em 1829, a Paixão de São Mateus. Descobriu-se, no
“matemático seco”, um mundo de sentimentos. Alguns sub-românticos
honestos, Adolf Marx, Rochlitz e outros, dedicaram-se à edição das
Cantatas: depois das fugas vieram as árias, a dramaticidade do mestre. Esse
Bach do século XIX leva diretamente à dramaturgia sinfônica de Wagner.
É o Bach dos alemães.
Duvidaram se ele “estava consciente do seu gênio”. O Bach à maneira do
século passado é, como Hegel, um gênio universal vestido de filisteu
alemão, pequeno-burguês. Em 1894, destruindo o cemitério de São Tomás
em Leipzig para construir no lugar um edifício monstruosamente
moderno, descobriram o esqueleto. Peritos em medicina legal e menos
peritos em escultura fabricaram, conforme o crânio, um busto que serviu,
por sua vez, de modelo a um retrato. Surgiram retratos, esquecidos, da
época. Pela primeira vez desde o 28 de julho de 1750 o olhar intenso,
“quase hostil” (Manuel Bandeira) do gênio fitou o mundo. Acabara a época
do sentimentalismo.
Só no século XX o “velho Bach” começou a influenciar diretamente a
produção musical. O dinamismo dos concerti grossi21 barrocos renasceu em
Hindemith. Stravinsky mandou tocar os Concertos de Brandemburgo “com a
precisão de uma máquina de costura”. Até a grã-finagem ficou interessada
quando Huxley citou, em Contraponto, a Suite n.º 2.22 É o Bach dos
modernos.
Mais do que moderno, futuro, foi o jovem suíço Wolfgang Graeser, gênio
que acabou com 21 anos suicidando-se: coordenou e instrumentou a
esquecida Arte da fuga, a arquitetura imensa que termina com a fuga trina
sobre Si bemol-Lá-Dó-Si (B-A-C-H), interrompida no meio para ceder ao
coral: “Perante o trono de Deus apareço ...”.
Mas o assunto não é próprio para divagações poéticas. Bach é como
aquele disco da Columbia no qual estão gravadas, em um lado, a infinita
espiral gótica do coro Jesus, alegria dos homens e no outro a alegria profana
da Badinerie (Suite n.º 2). O Bach sacral também é o virtuose que ele foi em
vida, da Chaconne, das Variações de Goldberg. Virtuose sem virtuosismo.
Nosso Bach, além dos tempos, é o virtuosíssimo dos prelúdios-corais
quando os toca no órgão, congenialmente, o teólogo-médico Albert
Schweitzer. O Bach cujas complexidades contrapontísticas refletem a
complexidade do Mundo criado.
Então, o mestre está outra vez sentado no pianoforte, como no terceiro
movimento do Concerto n.º 1 em ré menor – a voz do homem solitário em
meio do acompanhamento; a vida póstuma de João Sebastião Bach,
continuando nas ondas do Universo.
Suplemento dominical do Diário Carioca. (N.E.)
Acompanhamento típico do período barroco, em que um instrumento grave realiza uma
seqüência de acordes (blocos de sons tocados simultaneamente), que acompanha uma
melodia solo, geralmente cantada ou tocada por um instrumento solista, o que gera a
textura (combinação de sons) da melodia acompanhada ou homofonia, invenção
característica do período. (D.M.)
‘Bach: The Conflict between the Sacred and the Secular’, __ (abr. 1946), pp. 151-194;
disponível em: http://www.jstor.org/stable/2707070. (N.E.)
‘J.S. Bach und die Säkularisation der Kirchenmusik’, __ (Stutgart, ano 2, n. 12, dez. 1947),
pp. 1425-1434; disponível em: http://www.hermann-
keller.org/content/aufsaetzeinzeitschriftenundzeitungen/1947jsbach.html. (N.E.)
Plural de concerto grosso (literalmente, “concerto grande”): idéia concebida pelo músico
italiano Alessandro Stardella (1645-1682) e posta em prática em 1675, consiste em alargar
uma sonata-trio (sonata para três instrumentos) com vistas à inclusão de um diálogo
musical com um grupo maior de instrumentos de cordas. (D.M.)
“Ficou interessada”: no original, “virou interessada”. (N.E.)
Beethoven
Letras e Artes, 17 dez. 1950

O lembra
acaso da data – 17 de dezembro de 1770, dia do nascimento –
apenas um dever. A imensa popularidade de Beethoven, ao
lado de Chopin e Tchaikovsky (!), sugere imediatamente a profundidade dos
equívocos. “Gostar de Beethoven”, quer dizer, ficar comovido pelo aspecto
mais superficial de sua Obra, pela emoção romântica, não é a homenagem
devida ao grande homem: é uma ofensa ao grande mestre. Todos os dias, e
não só hoje, uma personalidade como a de Beethoven exige, de nós outros,
um exame de consciência e uma profissão de fé. Não quero fugir da
exigência.
Não quero dizer, sinceramente, que Bach me parece mais puro, mais
perfeito; nenhuma criatura humana jamais se aproximou tanto de Deus.
Também Mozart habita regiões de perfeição superior. Mas Beethoven,
menos puro, menos perfeito, está mais perto de nós, de todos nós. Cada um
tem de interpretar isso a seu modo. Quem escreve estas linhas nasceu na
cidade de Beethoven.23 Não consegue afastar certas associações de um
passado que ninguém nos pode roubar: o Teatro de Ópera de Viena,
escurecido depois da sinistra cena de cárcere, em Fidelio, a orquestra
começa grave, de repente a sala ilumina-se, sobem irresistivelmente os
violinos da Leonore n.º 3; as variações da Sonata de Kreutzer parecem
estilizar, sublimar velha canção vienense; em torno do túmulo, no
Cemitério Central de Viena, parecem soar os acordes líricos do Quarteto op.
132; mas foi preciso abandonar tudo isso. Com Beethoven não se chora,
nem no Andante do Trio Arquiduque que só pode ter uma significação;
depois segue o Allegro final, uma despedida alegre, embora para sempre.
No dia do enterro de Beethoven pronunciou-se, perante aquele túmulo, o
discurso fúnebre, redigido pelo poeta Grillparzer, em que se destaca a frase
seguinte: “Artista, ele foi: e quem poderia superá-lo?” Essas palavras, de 29
de março de 1827, logo servem para destruir uma das muitas lendas
sentimentais: Beethoven não teria sido reconhecido pelos seus
contemporâneos incompreensivos. Na verdade, já em vida ele foi
considerado como o maior de todos. Os contemporâneos perceberam que
essa poderosíssima personalidade tinha realizado uma revolução como
nunca houve uma em qualquer outra arte: Beethoven tinha abolido o
domínio da voz, estabelecendo o primado da música instrumental,
infinitamente mais rica apesar de ou porque lhe faltam as palavras. Criou
novo Universo sonoro, o nosso.
Mas existem, hoje, adversários de Beethoven. Não sei se Stravinsky
continua obstinado, condenando a “emoção barata dos violinos”.24 Mas
ainda há quem condenasse toda a evolução musical do século XIX, o
romantismo, o emocionalismo, a arte sinfônica, tudo isso, como caminho
errado que levou a música ocidental ao esgotamento completo; e, embora
admirando-se a força sobre-humana do iniciador desse caminho, está
Beethoven sendo responsabilizado pelo desastre.
A acusação nos deixa perplexos. Ele poderia ser o maior de todos e no
entanto, sub specie historiae, errado. Miguel Ângelo, que é a única
personalidade artística comparável a Beethoven, também desgraçou um
século de sucessores e imitadores. Ao meu ver, só há um recurso para
aproximar-se da grandeza permanente do mestre: através do
reconhecimento franco do que há nele de relativamente fraco e imperfeito.
Antes de tudo seria preciso restabelecer a hierarquia dos valores,
perturbada por preferências pouco motivadas. Conforme opinião unânime
dos conhecedores, a IX Sinfonia não é a maior das beethovenianas:
preferem a V ou a VII; preferem, em geral, às sinfonias, as sonatas e os
quartetos; e a obra máxima desse compositor instrumental por excelência é
para vozes humanas, é a Missa Solemnis.
Já estamos longe de apreciar este último fato, estupendo, à maneira tola
dos wagnerianos que consideravam a música vocal do último Beethoven
como embrião, ainda “imperfeito”, do drama sinfônico do mestre de
Bayreuth; ao contrário, esse caminho que levou à dissolução da harmonia
no cromatismo de Tristão e Isolda, já se revelou como beco sem saída. Mas
tampouco teve futuro o caminho contrário, o de Brahms, que sacrificou a
inspiração a um formalismo rígido, apenas pseudo-beethoveniano.25 Mas
seria injusto responsabilizar Beethoven pelas dificuldades dos seus
sucessores. A conclusão tem de ser outra. O exemplo de Brahms apenas
revela a incompatibilidade entre as formas clássicas, haydnianas,
mozartianas, e a psicologia beethoveniana das emoções. O finale vocal da IX
Sinfonia apenas foi uma das muitas tentativas de Beethoven para fugir
daquele formalismo. Depois de ter dito tudo, num primeiro Allegro, num
Scherzo, num movimento lento, não foi possível, para Beethoven, voltar ao
état d’âme primeiro, assim como fizeram sem escrúpulo seus predecessores.
Em muitas grandes obras de Beethoven, o último movimento é a parte
mais fraca; às vezes, um Rondo que não suporta o peso dos movimentos
anteriores. Então, quis fugir do esquema. Na IX Sinfonia, escolheu o coro;
na Sonata op. 106, a fuga; na Sonata op. 3, variações. Os finais de Beethoven,
em sua última fase, viraram abstratos: representam uma supermúsica que
já não é deste mundo. Naquele discurso fúnebre de 1827, o contemporâneo
já o disse bem: “Beethoven exprimiu tudo, tudo. Seu sucessor não poderá
continuar; deverá começar de novo. Pois o mestre só acabou no ponto em
que acaba a arte”.
Sabemos que os sucessores não obedeceram a essa advertência. Em vez
de começar de novo, continuaram. Mas não tem culpa disso aquele cuja
Missa, últimas sonatas e últimos quartetos constituem um corpus musicum
metafísico, superior a tudo que o espírito humano já imaginou. Por isso,
parece-nos tão sinistra a frase seguinte de Spengler: “Virá o dia em que
uma página de Beethoven será mero pedaço de papel, tão indecifrável e
incompreensível como são os fragmentos de música grega”. Mas a
advertência é boa: até o maior dos homens ainda é criatura, com todas as
fraquezas humanas.
Embora Beethoven tenha nascido em Bonn, na Alemanha, Carpeaux se refere a Viena,
onde ele próprio nasceu, como a cidade de Beethoven porque o compositor ali viveu a
maior parte de sua vida e maturidade artística, onde também faleceu envolto em glórias de
herói nacional. (D.M.)
Nove anos após a publicação deste ensaio de Carpeaux, Stravinsky admitiu em Conversas
com Igor Stravinsky (1959) que Beethoven foi o maior orquestrador de todos os tempos e
sua principal fonte de inspiração. (D.M.)
Hoje sabe-se que a obra de Brahms está acima desse “formalismo rígido”, julgamento
impreciso em grande parte difundido por wagnerianos que, alimentando polêmicas contra
Brahms, reivindicavam a herança de Beethoven para Wagner, já que muito os incomodava
a crítica unânime de que a primeira sinfonia de Brahms fora considerada a décima sinfonia
de Beethoven quando de sua estréia triunfal em 1876. (D.M.)
Música, doce música?
nm
Letras e Artes, 14 out. 1951

S ão inúmeros os que amam a música, a verdadeira, a que os


vendedores de discos chamam, com soberano desprezo às diferenças
cronológicas e estilísticas, de “música clássica”. No entanto, assim como a
mão direita não tem de saber o que está fazendo a esquerda, assim os
ouvidos parecem constituir um departamento estanque na economia
intelectual e espiritual da pessoa: a música é coisa à parte. Da pessoa?, que
digo, se na economia da própria civilização observa-se o mesmo fenômeno?
Já não se estudam, na historiografia, só as batalhas e os destinos de reis,
generais e ministros; os próprios manuais didáticos também dedicam, à
margem por assim dizer, um pouco de espaço à história da economia, das
ciências, das letras, das artes plásticas – mas nem sequer nessa margem
têm lugar para as cinco linhas em que possam abrigar-se as notas de um
Beethoven ou Debussy. Taine falou-nos da sociedade, da arquitetura, das
letras que constituem o estilo Luís XIV: de Colbert e Madame de Sévigné,
Le Brun e Le Nôtre, Racine e La Fontaine. Mas quem já ouviu a música
que acompanhou, na capela real de Versalhes, as missas do rei? Ou a que
enfeitou as farsas de Molière? Dizem que a Alemanha, entre 1680 e 1750,
experimentou seu período da mais profunda decadência, sendo o país,
intelectualmente, um deserto; mas essas duas datas também encerram a
vida de João Sebastião Bach. Ninguém compreenderia plenamente o
romantismo sem ter ouvido Schumann, Chopin e Berlioz. Mas a quem já
ocorreu reconhecer no rompimento pessoal entre Nietzsche e Wagner um
ponto crítico da história moderna? E a temporada do ballet russo em Paris
terminou quando começavam a troar os canhões no Marne, “finie la
douceur de vivre”...26 No entanto, a música continua considerada coisa à
parte.
Esse isolamento explica o destino adverso de dois dos maiores
monumentos literários do nosso tempo: Glasperlenspiel27 e Doutor Fausto.
O nome da primeira dessas obras é quase intraduzível. Realmente, o
Prêmio Nobel concedido a Hesse – costuma ser a mais eficiente publicidade
no reino das letras – não levou ninguém, em parte alguma, a traduzir a
última e maior das suas obras; e esse romance trata, embora de maneira
muito especial, da música. Pode-se afirmar o mesmo com respeito ao
Doutor Fausto, de Thomas Mann: nos Estados Unidos foi um fracasso
completo. Nem se venderam 30.000 exemplares. Os reviewers comuns
chamavam o livro indigerível. Mas a vanguarda não se comportou melhor.
Nem quero falar de um Philip Blair Rice que tomou ao pé da letra a
comparação irônico-simbólica do herói do romance com Fausto, tecendo
comentários em torno de mitologia e feiticeiros.28 Até um crítico tão
inteligente como Blackmur falou de tudo, a propósito de Doutor Fausto,29
menos daquilo que constitui o próprio assunto do livro: da música.
A história de Andreas Leverkuehn, do novo Fausto, é a epopéia da
decadência social e espiritual da Alemanha, entre 1880 e 1940. Os dois, o
artista genial e seu país, enlouquecem juntos, caindo no abismo da
perversão diabólica. Mann aproveitou largamente, para a história
imaginária do seu herói, a biografia de Nietzsche. Mas ao representar o
problema tipicamente alemão – a confusão inextricável entre o gênio e o
demoníaco – transformou seu modelo, o pensador, em compositor. Pois arte
especificamente alemã lhe parece a música.
Teria sido inacessível o livro, por isso, aos estrangeiros? Os problemas
alemães apenas costumam ser casos extremos de problemas gerais. Nossa
civilização inteira fez progressos espantosos ao preço de tornar-se
demoníaca. Mas, num outro sentido, a incompreensão demonstrada pelos
leitores e críticos americanos é caso especial de certos preconceitos
tipicamente modernos. Cada vez mais se desconhece hoje a substância da
cultura; e sobretudo os americanos acreditam poder substituir a disciplina
espiritual pela disciplina organizadora. Mas a organização, sobretudo
quando muito eficiente, é maravilhosamente capaz de pôr-se a serviço das
forças elementares, irracionais e incalculáveis. Thomas Mann, instruído
pela experiência do fascismo, sabe isso muito bem: – e chega a constatar
que a expressão própria daquelas diabólicas forças elementares é a música.
Num episódio do romance de Mann aparece o retrato do velho
Meyerbeer, hoje esquecido, que foi considerado, na época, como expressão
artística do liberalismo, arrancando ao compositor conservadoríssimo
Hiller o suspiro: “Meyerbeer? Mas eu não gosto de falar de política.” A
frase aplica-se muito melhor ao sucessor de Meyerbeer (que o renegou), a
Wagner, compositor político por excelência. Este Wagner que arrancou a
Nietzsche a confissão dolorosa: “A música, minha arte predileta, me parece
algo de suspeito.” No sentido mais largo da palavra, toda música é suspeita,
pelas suas relações subterrâneas com a “confusion de la bestialité et de la
métaphysique, de la force et du droit, de la foi et des intérêts, du positif et
du théatral, des instincts et des idées”30 que é, conforme Valéry, a política.
Parece lema do romance de Mann a antiqüíssima sabedoria do filósofo
chinês Mencius: “Quando se perturbam as harmonias musicais, está na
hora para anunciar a queda dos impérios.” Música, doce música? Antes é
terrível essa música.
Mann também acha. Para ele, formado em ambiente wagneriano, a
música é, antes de tudo, fortíssima emoção. E, com efeito, a música seria
símbolo de enchentes que rompem os diques da civilização humana, se a
exaltação mística ou submística não fosse dominada pela exatidão
matemática dos ritmos, das formas contrapontísticas, de esquemas como o
da sonata. A música é emoção, sim, mas emoção intelectualmente
disciplinada: supremo modelo de toda disciplina. A música é Inferno,
Purgatório e Paraíso ao mesmo tempo.
Essa “multidimensionalidade” da música não entra nas definições de
Mann, cujo conceito de arte sonora oscila entre os pólos Beethoven e
Wagner. No universo musical de Mann não há lugar para Bach.
O nome de Bach define, sem que fosse pronunciado, a música de que trata
a obra de Hesse: o Glasperlenspiel.
O romance passa-se num futuro longínquo, daí a mil anos, quando nossa
“civilização jornalística” já terá destruído raças e continentes inteiros.
Salvou-se a cultura numa província isolada, na Castália, onde espécie de
confraria se dedica ao “Glasperlenspiel”. Talvez seja possível traduzir: jogo
de vidrilhos. O aparelho, imensamente complicado, parece-se com
brinquedo: inúmeros vidrilhos enfiados como numa máquina de calcular
para crianças, representando uma infinidade de combinações a exemplo das
que existem na matemática, na gramática, nos misteriosos arabescos do
Oriente antigo. Esse jogo é símbolo do mundo das abstrações. Por isso
mesmo, aquela confraria, embora vivendo daí a mil anos, não tem nada de
utópico: é tão velha como o pensamento humano. Existiu sempre: e sua
“língua sacra”, a língua litúrgica do “jogo de ladrilhos”, é a música.
A arte das combinações contrapontísticas é permanente, inalterável. Não
está sujeita à lei da morte. Nada poderia destruí-la porque existe, como a
música de Bach, separada da vida. O símbolo desse isolamento é, no livro
de Hesse, o fato de que o “mestre do jogo”, ao chocar-se com o mundo lá
fora, perece. Seria fácil dizer que reside nesse desfecho simbólico a fraqueza
irremediável da grandiosa obra: o ar, no romance de Hesse, é tão rarefato
que nem se pode respirar. Mas ninguém, com exceção daqueles “mestres do
jogo”, está com a obrigação de viver permanentemente em Castália. É o
país dos domingos da nossa alma. Cuja existência nos garante que o
demônio está preso, em baixo deste nosso mundo-purgatório. E que existe,
à parte mas não inacessível, o céu da música.
“Finda a doçura de viver...”. (G.Z.)
Publicado no Brasil como O jogo das contas de vidro. (N.E.)
‘The Merging Parallels: Mann’s ‘Doctor Faustus’’, The Kenyon Review (Gambier, vol. 11, n.
2, 1949), pp. 199-217; disponível em: http://www.jstor.org/stable/4333036. (N.E.)
Richard Palmer Blackmur, ‘Parody and Critique: Notes on Thomas Mann’s Doctor
Faustus’, The Kenyon Review (vol. 12, n. 1, 1950), pp. 20-40; disponível em:
http://www.jstor.org/stable/4333111. (N.E.)
“Confusão da bestialidade e da metafísica, da força e do direito, da fé e dos interesses, do
positivo e do teatral, dos instintos e das idéias” (em Regards sur le monde actuel, citação de
memória). (G.Z.)
Beethoven em Viena
Letras e Artes, 24 jan. 1954
Otúmulo de Beethoven no Cemitério Central de Viena, obelisco baixo
distinguido apenas pelo nome, é o centro de uma espécie de panteão ao ar
livre: velhas árvores ensombram as últimas jazidas de Gluck e Haydn,
Schubert e Brahms, Bruckner, Wolf, Mahler e o cenotáfio de Mozart. Em
junho do ano passado tive oportunidade de demorar-me perante aquele
obelisco sem ornamentos; e enquanto me passava insistentemente pela
cabeça, não sei por que, o trio queixoso do segundo movimento da Sonata
para violoncelo, op. 69, pensei na imensa solidão daquele homem, separado,
como por um abismo, dos seus grandes sucessores e dos seus maiores
precursores; e dos seus contemporâneos.
A solidão de Beethoven em Viena e na sua época desmente todas as
fraquinhas tentativas de explicar a obra de arte como produto do
“momento histórico”. O grande musicólogo inglês Tovey, homem de
temperamento humorístico, costumava enfurecer-se quando lhe falavam de
“Beethoven como filho da revolução francesa”.31 Com efeito, é um absurdo.
No entanto, quase escandalosa é a exclusão da música dos quadros da
chamada “história da civilização”; pois justamente essa arte sem conteúdo
registra com sensibilidade de sismógrafo as imperceptíveis modificações do
gosto de uma época: do gosto e da estrutura da sociedade que o cultiva.
As mais felizes tentativas, talvez, de ler a música como expressão (não
como produto) do momento histórico encontram-se na Decadência do
Ocidente, de Spengler. Memorável, sobretudo, é o trecho, no primeiro
volume, sobre a feição musical das artes plásticas do Rococó, sobre a
progressiva musicalização da vida entre o tempo de Bernini e o de Tiepolo,
sobre o allegro fugitivo das arquiteturas, móveis e espelhos; sobre a música
de câmara, luminoso outono de uma civilização que morreu em Viena, no
tempo do Congresso... Mas qual teria sido, nessa Viena, o lugar de
Beethoven? Nem sequer sua música de mocidade se enquadra bem no
rococó das pastoras de porcelana. Maduro, o compositor antes parece,
realmente, “filho da Revolução” e o maior mestre do estilo Empire, heróico
e grandioso. Enfim, só depois do Congresso de 1814 criou as obras,
inteiramente diferentes, do seu último estilo.
Uma velha convenção da historiografia musical manda distinguir três
fases na evolução de Beethoven. Primeira fase, meio graciosa, meio
patética: o Septeto e a Sonata Patética, os primeiros quartetos, a segunda
sinfonia e o terceiro concerto, as sonatas opp. 26 e 27. Segunda fase: a das
grandes sinfonias e sonatas, concertos e aberturas e dos quartetos
Rasumovsky, até o Trio Arquiduque. Terceira fase, a abstrata, espiritualizada:
a Missa Solemnis e a IX Sinfonia, as quatro últimas sonatas, as Variações de
Diabelli, os últimos quartetos.
Com exceção de uma adorável obrinha de ocasião, que é o Septeto,
Beethoven nunca foi um compositor Rococó. Abstraindo de reminiscências
ligeiras, quase inevitáveis, nunca teve nada com o gênio musical do Rococó:
com Mozart. Na mocidade, Beethoven é, quase contra sua vontade,
discípulo de Haydn. Nenhuma das obras de Mozart poderia ser atribuída ao
jovem Beethoven; mas sim os quartetos op. 76, n.º 2 e op. 77, n.º 2, dos
últimos de Haydn. Quem não aprecia (ou pior: não conhece bastante) o
gênio que uma historiografia absurda considerava como pai ou avô alegre e
meio imbecil, não tem o direito, quase, de admirar Beethoven.
Felizmente, já mudaram as coisas. Hoje, estamos melhor informados
sobre o fundo espiritual da Obra de Haydn, criador de formas nas quais se
conseguiram exprimir um Beethoven, um Schubert e um Brahms. O velho
mestre foi mistura encantadora de requinte artístico e ingenuidade esperta
de camponês, tradição católica e formalismo quase científico, ostentação
aristocrática e racionalismo burguês. É um conjunto que define a Viena de
1790. Mas não é um conjunto de artes do Rococó. Talvez não tenha sido
acaso o abandono em que Mozart, o gênio Rococó, ficou nessa cidade e
nessa época, nem seu espírito de oposição contra os aristocratas feudais
com os quais Beethoven, o “filho da Revolução”, se daria tão bem. Aquele
conjunto de tradições aristocrático-católicas, bom senso burguês e espírito
de exatidão matemática corresponde melhor ao estilo que até hoje domina
todos os aspectos de Viena: ao barroco.
De outro mundo barroco, da Renânia católica, veio o jovem Beethoven
para Viena; e logo se sentia em casa. Mas esse barroco já não é,
evidentemente, o do século XVII: está profundamente modificado; não por
influências do Rococó, mas sim pelo racionalismo ilustrado do monarca, do
imperador José II, por certa sobriedade quase heróica que gosta de citar,
nas letras e na escultura, os velhos romanos. O estilo vienense de 1790
antecipa o Empire de Napoleão. O maior músico desse estilo morrera em
Viena, antes de Napoleão, antes mesmo da Revolução: é Gluck. Parece que
Beethoven não gostava muito dele. Mas sua arte passou mesmo por esse
filtro, para dar as obras heróicas de sua segunda fase. Com razão, os
historiadores falam, lembrando-se da V e VII Sinfonia, de Egmont e
Coriolano e do Concerto op. 73, em classicismo vienense.
Essa época acabou com a queda de Napoleão. Viena, depois do Congresso
de 1814, vira idílio pequeno-burguês, berço de uma arte intensamente
popular, dignificada pelos reflexos do humanismo goethiano. Assim se
define Schubert, o gênio da nova era.
Nesse ambiente não havia lugar para Beethoven. Isolado, criou as obras
abstratas, espiritualizadas, dos seus últimos anos, obras como a Sonata op.
111, as Variações de Diabelli, o Quarteto op. 132, que não têm relação alguma
com qualquer estilo anterior, contemporâneo ou posterior.
Nada seria mais fácil, agora, do que abusar das qualidades metafísicas
daquelas obras para lembrar, com sentimentalismo barato, a solidão do
túmulo no cemitério de Viena. Justamente por isso será preferível focalizar-
se as questões metodológicas, de crítica crociana e post-crociana, não
bastante conhecidas fora da Itália e ainda não discutidas, ao que saiba, com
respeito à música. A indignação de Tovey, contra os que pretendem
explicar a liberdade de Beethoven pela Revolução, atinge o determinismo
do método histórico. Determinístico também é, aliás, o biografismo que
explica o abstracionismo do velho Beethoven pela surdez. Esse
determinismo, próprio dos críticos do século XIX, indica, na aparência, as
causas dos fenômenos artísticos; na verdade, os desvaloriza, rebaixando-os
a meros efeitos, parte de passado morto. Não assim o método historicista:
procurando o momento histórico da época e o da evolução do artista-
indivíduo nos pontos em que se encontram; pois assim, apenas, entram na
composição da obra de arte que tem existência autônoma.
Cf. o ensaio “Um crítico de música”, p. XXX, dedicado a Tovey. (N.E.)
Così fan tutte
Correio da Manhã, 29 jul. 1955

N o Teatro Municipal será hoje levada à cena, pela primeira vez no


Brasil, Così fan tutte, opera buffa de Mozart.32
Ausente do Rio de Janeiro, por uns poucos dias, o responsável por esta
seção não terá oportunidade de assistir à estréia.33 Assistirá, sim, a uma das
representações posteriores, para oferecer, depois, aos leitores sua crítica
competente. Mas o fato de a obra-prima de Mozart ser nova para o público
brasileiro justifica, talvez, algumas palavras de apresentação prévia.
O fato é estranho, sim. Mas não precisamos sentir muita vergonha pelo
atraso de mais de um século e meio. Pois durante o século XIX inteiro Così
fan tutte também não foi, quase, representada na Europa, nem sequer no
próprio país do mestre. Ninguém duvidou jamais da abundante inspiração
musical da obra, cheia das mais encantadoras melodias mozartianas. Mas o
moralismo da época não agüentou o libreto.
Convenhamos: o texto do abade Da Ponte34 não peca por excesso de
sentimentos nobres ou de idealismo platônico. Ferrando e Guglielmo
pretendem pôr à prova a fidelidade das suas amantes Dorabella e Fiordiligi.
Despedem-se, antes de suposta viagem. Voltam logo, fantasiados de
estrangeiros. E não lhes custa muito conquistar os corações levianos das
moças. Embora Mozart, mestre da arte de caracterização musical, tenha
conseguido criar quatro personagens bem definidos, não fez esforço
nenhum para aprofundar o enredo, a propósito do qual já se falou de “baile
de máscaras das afinidades eletivas’’. A realidade dos sentimentos está
conspicuamente ausente. Até as árias mais lindas de Dorabella e Fiordiligi
têm algo de mentiroso. Personagem real, deste mundo, só é o baixo
Alfonso, que comenta cinicamente os acontecimentos no palco: “Così fan
tutte”. Assim são todas elas.
O século da burguesia não podia deixar de ficar indignado, em face dessa
apoteose da frivolidade do Rococó aristocrático. O libreto, diziam, teria
sido digno do abade Da Ponte, aventureiro veneziano que depois de uma
vida devassa de jogador e alcoviteiro morreu na miséria, merecidamente,
como lamentável professor de italiano em Nova York (quarenta anos
depois da Revolução Francesa que acabara com os abades dessa espécie).
Mas o libreto teria sido indigno do artista celeste que foi Mozart. Sentença
que parecia inapelável. E um mundo de beleza musical estava condenado ao
silêncio, por muito tempo.
Não tinham percebido a ironia que satura o libreto de Da Ponte. Este foi
aventureiro, sim, mas um dos melhores libretistas de todos os tempos. O
próprio Mozart, cuja vida não foi propriamente de um santo, parece ter
participado de mais de uma das aventuras do veneziano. Decerto participou
ativamente do trabalho literário de um homem que lhe oferecia versos de
alta musicalidade e enredos de perfeita lógica dramática. Só o libreto de
Così fan tutte não é nem dramático nem lógico. É de um absurdo que ao
menos inteligente não pode escapar. Só pode ter sido intencional essa falta
de lógica. Così fan tutte, opera buffa, é paródia da ópera séria do Rococó, que,
por sua vez, não foi muito séria. Em compensação, a estrutura das cenas
adapta-se perfeitamente à lógica musical, ao desenvolvimento formal das
inspirações temáticas. É um libreto bem mozartiano.
Pois, que é Mozart? Em primeira linha, um mestre da forma. Não nos
falem em artifício. Toda forma artística é, em certo sentido, artificial.
Artificiais, nesse sentido, são as criações mais perfeitas de Mozart, seus
concertos para piano e orquestra. A música para libreto tão
deliberadamente artificial como o de Così fan tutte só lhe podia sair perfeita,
de beleza aristocrática.
Mas a música não é só forma.35 É, igualmente, formalógica e impulso-
emoção. E a emoção que domina a Obra toda de Mozart é a erótica. A
perfeição formal de sua música é um freio que impõe ao caos dos
sentimentos e instintos a compostura de uma civilização aristocrática. No
entanto, o perigo de que fala Othello36 num verso famoso (“Chaos is come
again”) sempre estava presente. O erotismo podia ser a força motriz de
veleidades de revolta, em Le nozze di Figaro, ou de inversão diabólica de
todos os valores, em Don Giovanni. Mas Così fan tutte situa-se exatamente
no meio entre essas duas obras. Não é tão sutilmente subversiva como a
primeira nem tão febrilmente dramática como a segunda. Só é bela. Leva-
nos magicamente, por duas horas, para um outro mundo: não é, decerto,
um mundo melhor, mas, sim, mais lindo.
Encenada na cidade do Rio de Janeiro em 29 jul. 1955: com Hugo Balzer (regente), Frank
de Quell (régisseur), Santiago Guerra (maestro de coro) e artistas dos Teatros de Munique
e Viena; cenários de Tomás Santa Rosa. (N.E.)
Eurico Nogueira França (1913-1992), musicólogo, crítico, autor de biografias e histórias
musicais, auxiliou Villa-Lobos na fundação da Academia Brasileira de Música. (N.E.)
Foi profícua a parceria de Mozart com Da Ponte, que rendeu três de suas obras-primas:
além da ópera Così, as aclamadas Bodas de Fígaro (K. 492) e Don Giovanni (K. 527). (D.M.)
A explicação de Carpeaux sobre a relação entre forma musical e impulso artístico
espiritual é mais completa e conclusiva que quase a totalidade dos estudos acadêmicos
brasileiros do século XXI, o que demonstra, sem sombra de dúvidas, que seu legado como
crítico e historiador da música ainda não foi absorvido no país que o abrigou. (D.M.)
Otelo. Grafia inglesa no original. (N.E.)
Dvorák e o folclore musical
Diário do Paraná, 30 out. 1955

S empre me admirei porque Dvorák não se encontra entre os


compositores preferidos dos ouvintes brasileiros. Decerto, o tema do
segundo movimento de sua Quinta Sinfonia (Do Novo Mundo) tornou-se tão
popular que já caiu no domínio da própria música popular. Mas parece que
só isto. O qüinquagésimo aniversário de sua morte também passou, entre
nós, quase despercebido.37 Mas Dvorák é um grande nome; e com razão.
Poucos se lembram hoje das linhas em que Oscar Wilde o celebrou,
falando de sua música “apaixonadamente colorida”.38 Entendendo pouco de
música, o grande causeur só sacrificou, provavelmente, à glória que
naqueles dias, no mundo anglo-saxônico, aureolou o nome do compositor
tcheco. Perguntado, não saberia precisar a natureza daquele “colorido
apaixonado”. Mas é fácil: é a conseqüência de muitas modulações
inesperadas e de uma grande vitalidade rítmica. São duas qualidades que
caracterizam a música folclórica.
A música folclórica é tão apreciada entre nós. Os nossos compositores
consideram o folclore como a verdadeira base da música brasileira. O
nacionalismo musical é hoje vitorioso em toda parte, inclusive e sobretudo
nas Américas. Vejam-se todos os russos, os húngaros Bartók e Kodályi, o
tcheco Weinberger, o norte-americano Gershwin, o mexicano Carlos
Chávez, os nossos Villa-Lobos, Mignone, Camargo Guarnieri. Mas Dvorák
foi um dos pioneiros do folclore musical e, especialmente, do folclore
musical americano.
Não é, decerto, o maior dos folcloristas. Entre os seus próprios
conterrâneos, há quem prefira ao romântico algo reacionário o wagneriano
Smetana ou o moderno Janácek. Mas Dvorák é, talvez entre todos os
folcloristas de todas as nações, o músico mais despreocupado, o mais
elementar; menos original, porque mais perto das fontes. Suas obras
principais, a Segunda, Quarta e Quinta Sinfonia, as Variações Sinfônicas, o
Concerto para violoncelo e orquestra, o Trio Dumky, o Quinteto em lá maior, op.
81, o Quarteto para cordas em lá maior, op. 105, e muita outra música de
câmara, são experiências inesquecíveis para quem já as ouviu. Não as
prejudicou, parece, a fraqueza congênita do mestre: quase sempre escreveu
em formas clássicas, que nunca chegou, porém, a dominar perfeitamente,
porque sempre venceu sua natureza íntima de rapsodo popular. A mais
divulgada das suas obras continua aquela Quinta Sinfonia, Do Novo Mundo,
na qual o tcheco, trabalhando como regente de orquestra nos Estados
Unidos, aproveitou, como todo mundo sabe, pela primeira vez, melodias
dos pretos americanos, os depois tão famosos Negros Spirituals.
Todo mundo sabe disso. Mas, infelizmente, não é verdade. Acontece que
as melodias populares aproveitadas por Dvorák naquela sinfonia nunca
podiam ser identificadas. Alguém, desesperado, já pensou em canções de
índios norte-americanos. Stanford acreditava reconhecer melodias
irlandesas, apenas modificadas por ligeiro colorido africano.39 Outros
negam. O musicólogo americano W. R. Spalding, professor da
Universidade de Harvard, afirma ter ouvido a sinfonia em várias cidades
européias e na própria Tchecoslováquia, tendo ninguém duvidado da
natureza eslava dos temas principais. Enfim, Adolfo Salazar chamou a
atenção para uma carta na qual o próprio Dvorák explica: a sinfonia foi
escrita na América, por um homem cheio de saudades da sua aldeia tcheca.
Essa estranha história inspira-nos uma dúvida terrível: como foi possível
confundir música de pretos, índios, irlandeses e eslavos? Spalding, o
musicólogo citado, fala em “características comuns de toda música
popular”. Posso acrescentar a experiência de ter assistido, há anos, a um
congresso internacional de música folclórica, no qual, no segundo dia das
audições, os peritos mais experimentados já não foram capazes de
distinguir música búlgara, chilena, norueguesa, croata e certas canções dos
árabes e berberes do norte da África. Que é, afinal, o folclore musical?
A distinção que se impõe é entre música popular e música nacional.
O folclore popular, em sentido amplo, é uma fonte permanente de
inspiração musical. Domina toda a música antiga, dos velhos flamengos do
século XV até Bach, e especialmente Bach. A música aristocrática do século
XVIII não passa de um intervalo; e nele, a exclusão do folclore não é total.
Depois, todo mundo sabe como é forte a inspiração folclórica em Haydn,
Schubert e Brahms (este último tido como mestre formalista, antipopular,
pelos que menos o conheciam). Citei três compositores alemães,
respectivamente austríacos. Mas eles não se limitam ao aproveitamento do
folclore musical alemão. Todos os três gostavam intensamente de música
eslava e especialmente de música húngara. Em Haydn e Schubert, trata-se
de falta de preconceitos nacionais, de parte de mestres ingênuos (o que não
tem, aqui, sentido pejorativo). Em Brahms, o interesse pela música popular
estrangeira é herança do romantismo.
Pois ao romantismo e pós-romantismo se devem a conquista do folclore
musical popular de todas as nações: o polonês Chopin, o húngaro Liszt,
depois o norueguês Grieg, os espanhóis Albéniz e Granados, e sobretudo
os russos. Mas esses compositores, e muitos outros, também gostavam de
fazer excursões para países estrangeiros. De Schumann ou Mendelssohn
podem-se tirar lições de geografia musical. Mas não passam do exotismo.
O mesmo se diria quando o francês Chabrier escreve obras para orquestra
como Espagne40 e Fête polonaise. Não seriam autênticas. E quando o russo
Glinka, um dos pioneiros do folclore musical russo, escreve, depois de
Kamarinskaia, uma abertura Jota aragonesa? Então, os espanhóis protestam,
assim como protestam contra Carmen. Quer dizer: quando o russo escreve
música russa, é autêntico. Quando escreve música espanhola, mente. O
folclore virou nacionalismo.
Falando sobre assunto muito diferente, às novelas de Cervantes, diz o
crítico Joaquín Casalduero:
Que los extranjeros vayan a cualquier país en busca de lo pintoresco,
encontrándolo, como es natural, en lo menos elaborado que un país puede ofrecer,
o en lo más estereotipado, es un hecho comprensible; pero que los nacionales
hayan rechazado las manifestaciones nobles para reconocerse en lo grosero, es
difícil de comprender.41
É esse protesto contra o estereotipado e o grosero que nos ajuda a
distinguir entre folclorismo e nacionalismo.
O folclorista Dvorák, incapaz de separar o folclore eslavo e o dos pretos
norte-americanos, não era nacionalista. Aproveitando a música popular só
quis escrever, pelo amor de Deus, música erudita e universal; ou, para falar
com aquele crítico espanhol, a música desse filho de camponeses tchecos é
uma “manifestación noble”.
Por isso Brahms lhe admirava o concerto para violoncelo, dizendo: “Por
que ninguém me disse que se pode escrever um concerto assim?”, também
pensando, sem dúvida, nas fraquezas de construção musical dessa obra
confusa e no entanto impressionante. Há pouco o crítico inglês Richard
Gorer, a propósito da execução de todas as obras de música de câmara de
Dvorák na BBC, chamou a atenção para certas aparentes incongruências
tonais e de instrumentação do famoso Trio Dumky, op. 90; chama a obra
“misteriosa”: pois debaixo da superfície folclórica revela-se, incompleta e
por isso misteriosamente, a alma do artista.42
Comove-nos imensamente, nas obras de Dvorák, o choro melancólico da
estepe eslava, o que Rilke, em seu pequeno poema Smichov, chamou de
“canção triste do povo tcheco”.43 Mas não é um manifesto nacionalista. É
uma manifestación noble.
50.º aniversário em 1.º maio de 1954. (N.E.)
‘The Critic as Artist, Part I’, em Intentions (1891): “He writes passionate, curiously-
coloured things.” (N.E.)
Charles Villiers Stanford & Cecil Forsyth, A History of Music (Nova York, Macmillan,
1916), p. 338; disponível em:
https://archive.org/stream/cu31924022441871#page/n7/mode/2up. (N.E.)
A rapsódia sinfônica España (1883). (N.E.)
Sentido y forma de las “Novelas Ejemplares” (citação elíptica). (N.E.)
‘The Chamber Music of Dvorak’, The Listener (Londres, vol. 52, n. 1.322, 1 jul. 1954), p.
37: “All in all, the Trio is one of the most mysterious of the composer’s works.” (N.E.)
Equívoco do A.: o poema Hinter Smichov não contém a passagem; Carpeaux parece referir-
se a ‘Die Geschwister’ [Os irmãos], em Zwei Prager Geschichten [Duas histórias de Praga].
(N.E.)
Erik Satie
Correio da Manhã, 16 nov. 1955

P assou sob silêncio a primeira oportunidade de lembrar-se, à


maneira das comemorações oficiais, de Erik Satie. Morreu em 1925.
Há precisamente 30 anos.44 Em vida, tinha provocado tanto escândalo.
Agora, já virou verbete dos menos extensos, nos dicionários de música.
Esse silêncio em torno do seu nome é significativo: dá a chave para
apreciação justa de sua estranha obra e de sua mais estranha personalidade.
Já não há escândalo em torno de Satie, porque seus esforços são
reconhecidos como infrutíferos: não se realizou. Mas também por outro
motivo: porque certas idéias suas, que escandalizaram os contemporâneos,
são hoje aceitas por todos como se fossem lugares-comuns da música.
Satie é um fenômeno sui generis: um artista sem gênio, até sem talento, até
sem competência para fazer música, entrou como influência profunda na
história da música.
Foi diletante em todas as profissões que exerceu: compositor, pianista,
escritor, escultor, desenhista. Em nenhuma delas criou obras permanentes;
em todas, provocou escândalo; em todas, deixou vestígios. Foi o tipo dos
vanguardistas irreverentes e, digamos a verdade toda, dos mistificadores da
belle époque, do tempo em que os boulevards eram o centro do mundo. O
último desses mistificadores é, hoje, Cocteau45. Mas este sabe fazer tudo,
porque é hábil e insincero. Satie foi sincero e impotente.
Satie nasceu pouco depois de Debussy e pouco antes de Ravel. Mas
quando Debussy ainda estudava com Massenet, e Ravel estava fazendo os
primeiros exercícios de dedos, Satie já tinha inventado o impressionismo
musical, de que suas Sarabandes e Gymnopédies talvez sejam os primeiros
exemplos. Inventado seria expressão justa: pois em Satie foi aperçu, o que
cresceu organicamente em Debussy e Ravel, fregueses assíduos, naquela
época, do café Nouvelle Athènes, em que Satie ocupava a posição oficial,
mas pouco elevada de pianista.
Rompeu Satie com Debussy quando o impressionismo triunfou, com
Pelléas et Mélisande, no palco de ópera. Os dois homens chegaram a odiar-
se, a insultar-se, ao passo que Ravel sempre ficou admirador de Satie, “et
pour cause”. Pois eram incompatíveis o impressionismo neo-romântico de
Debussy e o realismo neoclássico, ao qual Satie se dedicou em seguida.
Como todos os revolucionários apóstatas, o ex-impressionista virou contra-
revolucionário. Chegou a matricular-se na conservadoríssima Schola
Cantorum. Mas seu classicismo também foi sui generis: por um lado,
antecipou conquistas de Ravel; por outro lado, antecipou certo realismo
moderno. Assim as peças humorísticas para piano, Descriptions automatiques,
Embryons desséchés, etc. Assim o melodrama Socrate, cuja lição se sente hoje
nas obras de um Carl Orff.
Socrate é a obra-prima de Satie. Os contemporâneos teriam considerado
mais importante o bailado Parade, que causou grande escândalo
antidebussyano. Mas para essa obra já escreveu Cocteau o libreto,
desenhou Picasso os cenários. Satie entra em pleno modernismo. É, agora,
contemporâneo de Apollinaire, dos cubistas, de Dada. Começa a exercer
influência no grupo dos seis46. Há mais: na sua orquestra inclui sirenas, um
revólver, uma máquina de escrever, um grupo de garrafas. Antecipação da
novíssima música concreta.
Enfim, no bailado Relâche, Satie se aproveitou do folclore. Mas, por mais
moderno que pareça isto, esse folclorismo significa sua saída do mundo das
permanentes novidades. Satie tirou as conclusões. Retirou-se para a solidão
de Arcueil. Ele, que fora compositor, pianista, escritor, desenhista, escultor,
encerrou a vida como carteiro rural...
Agora, está morto há 30 anos. Sobrevivem algumas das pequenas peças
para piano e o Socrate, cada vez mais raramente representado. Também
desaparecerão, provavelmente. Mas daí em outros 30 anos e ainda muito
mais tarde, o nome de Satie ficará inesquecido como hoje.47
30 anos em 1 jul. 1955. – Este texto de Carpeaux foi possivelmente reproduzido no
Correio da Manhã (16 nov. 1955). (N.E.)
(1889-1963). (N.E.)
“Les Six”, grupo dos compositores Poulenc, Milhaud, Honegger, Auric, Durey e Sra.
Tailleferre. (N.E.)
A obra de Satie não é desprovida de alto valor artístico, mas para ser organicamente
apreciada é necessário conhecer as intenções cáusticas do compositor, que, como ninguém
antes dele, logrou estabelecer perfeita homologia entre música e humor satírico. Erik Satie
foi antes de tudo um satírico; contudo os apologetas da chamada “arte de vanguarda”
aproveitaram apenas o lado destrutivo das idéias estéticas da sua sátira, e as usaram para
contrapor-se à tradição da música erudita ocidental. (D.M.)
Imortal Manon
Correio da Manhã, 14 jan. 1956

“ On revient toujours a ses premières amours”.48 Não me escapam as


fraquezas musicais da Manon, de Massenet. Mas foi a primeira ópera
que vi e ouvi na minha vida. Abri os ouvidos e ela me abriu os olhos. A
gavota da Manon, com aquela advertência do “profiter de la jeunesse”,49
pode ser uma imitação vulgar das canções francesas do século XVIII, mas
já virou lembrança, portanto preciosa, da própria jeunesse. O solo do
violoncelo que acompanha os momentos mais graves da ópera só é um
pequeno achado melódico: mas comove. Naturalmente, nem todos fizeram a
mesma experiência. Nem todos precisam gostar assim. Em todo caso, o
próprio livro, o romance do abbé Prévost50, fica rejuvenescido pelas
associações musicais. Precisa mesmo disso. Pois a Manon de Massenet já
seria, hoje, uma dama veneranda, mas a de Prévost, uma múmia. O
romance saiu em 1731. Quase é o mais velho romance da literatura
universal entre os que ainda são lidos. E alguns já o acham ilegível. Pelo
menos, um amigo meu, que entende muito de literatura, não conseguiu ler
até o fim: “Inteiramente antiquado!”51 E realmente, que nos pode dizer hoje
um romance de amor, de há 220 anos?52
Na verdade, não apenas a História de Manon Lescaut e do chevalier Des
Grieux parece antiquada a muita gente, mas sim todos os romances de
amor e, enfim, o próprio assunto “amor”. Desde os tempos dos trovadores
da Provença e de Petrarca, alguns milhares de poetas, dramaturgos e
novelistas têm batido nessa tecla com tanta insistência que o público
chegou a perder a fé nos seus amores sublimes e, às mais das vezes,
infelizes. Sobre o amor já não é possível dizer mais nada de novo. É um
assunto ultrapassado.
Sendo assim, ainda é possível ler a história de Manon? Ou antes, como se
deveria lê-la? A pergunta tem importância mais ampla: como deveríamos
ler as obras literárias de passado remoto para ainda poder gostar delas?
Como documentos históricos, ou então, com esforço de modernizá-las um
pouco? O mesmo problema apresenta-se, aliás, ao músico. Devemos
executar fielmente as obras de Bach assim como foram executadas em seu
tempo, com orquestras pequeninas e com instrumentos hoje antiquados?53
Ou devemos modernizá-las, “arranjando-as” para a orquestra moderna que
o mestre desconhecia, mas que talvez lhe realize melhor as intenções?
Fidelidade histórica ou fidelidade à vida de hoje?54 A dúvida lembra outra
vez o fato de que o velho romance já inspirou muitos compositores; a
Manon de Massenet é a mais conhecida, mas também há várias outras.
Talvez a música e sua base, o libreto da ópera, também possam ensinar
algo à critica literária.
A comparação entre o romance e o libreto, este um trabalho de Meilhac e
Gille, realmente esclarece muito. No romance, Manon, tendo sido raptada
pelo jovem Des Grieux, vira logo infiel; só alguns dias depois entra em
relações íntimas com um rico financista, e para se livrar do amante jovem
mas pobre, participa da intriga de denúncia ao pai dele, que manda levar
para casa o filho pródigo. No libreto da ópera, porém, Manon não sabia,
antes, da denúncia; e só aceita os presentes e carícias do financista depois
de ter perdido o jovem cavalheiro. Seria possível continuar a comparação,
sempre com o mesmo resultado. Também das quedas morais do jovem Des
Grieux ouve-se muito mais no romance do que no libreto. Enfim, vira
jogador profissional com cartas falsas e, para dizer a verdade, rufião da bela
prostituta Manon que, no libreto da ópera, apenas é uma leviana. Os
libretistas, boulevardiers parisienses de 1880, embora contemporâneos de
Toulouse-Lautrec, abrandaram muito as coisas.
O velho abbé Prévost, que fugira do convento para levar uma vida de
aventuras tempestuosas, foi mais verdadeiro. Talvez, quem sabe, tenha ele
próprio vivido o romance de Des Grieux com uma Manon qualquer. O
livro tem muito de autobiográfico. Mas isto não pediu que Manon se
transformasse em personagem especificamente literária. A pecadora
inocente, espécie de Fedra rejuvenescida, é a primeira “mulher fatal” da
literatura européia, arruinando os homens que ama. Depois, haverá a
Carmen, de Mérimée (inspirando a música de Bizet); depois, a Dama das
camélias, de Dumas (inspirando a música de Verdi); depois, a Hedda Gabler
de Ibsen, as mulheres terríveis de Strindberg, os “vamps” do Cinema. O
parceiro dessa mulher fatal sempre é um homem fraco, caindo por
dedicação ao seu amor irresistível. Como os heróis da tragédia antiga, com
os quais têm aliás em comum o destino terrível, Manon e Des Grieux são
nobres e criminosos ao mesmo tempo. Ela se vende sem trair seu amor. Ele
é redimido pela tristeza infinita que acompanha, como aquele solo do
violoncelo, seus atos mais vis. Rehm55 considera Des Grieux como o
primeiro romântico europeu, como precursor de todas aquelas vítimas de
amores infelizes, Werther, René56, até os desesperados da literatura
novíssima, da poetry of despair do século XX.
O abbé Prévost, que escreveu muito (e muita coisa ilegível) para viver
disso, como literato profissional que era, criou, como por acaso, uma obra
que significa um momento histórico. Até então, o amor sempre fora visto
através dos óculos do velho Petrarca: o amor que enaltece a alma. Com
Prévost, entra na literatura o amor que avilta e acanalha. Está claro, pois o
amor dos sonetistas era (pelo menos diziam assim) platônico; até o de
Romeu e Julieta é mistura de atração instintiva e exaltação poética, mas o
amor de Manon e Des Grieux é puramente ou impuramente sexual.
Também é a Histoire de Manon Lescaut o primeiro romance da literatura
universal em que desempenha papel decisivo a questão de ter ou não ter
dinheiro. Com essa pequena obra começa o movimento literário que
chegará ao primeiro cume em Balzac. Aquele pequeno romance é o
primeiro em que se exprime francamente a atitude tipicamente francesa em
relação ao sexo, e por isso Maupassant, prefaciando uma reedição de
Manon, falou em “obra que define um momento na história de um povo”.
Agora já chega da importância histórica de Manon Lescaut. Mas que dizer
do seu valor literário? Da sua atualidade permanente? Novamente ocorre o
fato de que o romance continua inspirando música. Já foi transformado em
libretos de ópera para os compositores Halévy, Balfe, Auber, Massenet,
Puccini, sucessivamente. O próprio romance de Prévost parece-se com um
pedaço de música que a gente pode ouvir sempre de novo sem cansar-se; o
que não acontece com as obras literárias, que ninguém pode reler cinco,
dez, vinte vezes. Talvez seja preciso ler Manon Lescaut como uma obra
musical? Não é um paradoxo. A crítica italiana moderna tem aconselhado,
expressamente, a “leitura musical” de certas obras que só assim revelam
seu valor. Francesco Flora leu assim o Paradiso. Há mais outros exemplos,
como o Jacopo Ortis57, de Foscolo, que é, como seu modelo imediato, o
Werther, um descendente da história de Des Grieux; e do Ortis descende o
Fabrice de Chartreuse de Parme58, do musicalíssimo Stendhal.
A “leitura musical”, facilitada pelo ambiente Rococó do romance, dá
mesmo o resultado esperado. Pela música, a caída Manon recupera a
inocência: sua gavotte já não é, então, uma chanson vulgar, mas uma
lembrança da jeunesse perdida; e a tristeza do solo do violoncelo sugere o
sofrimento romântico de Des Grieux e o sofrimento e a tristeza da vida
inteira, com a certeza, no entanto, que Goethe exprimiu: “A vida, como
quer que tenha sido, foi boa.”59
“Voltamos sempre aos nossos primeiros amores.” (G.Z.)
“Aproveitar a juventude”. (G.Z.)
Publicado no Brasil como Manon Lescaut. (N.E.)
Carpeaux refere-se a Álvaro Lins. Cf. Otto M. Carpeaux, ‘Oblomov’, em Ensaios reunidos
[vol. 1] (Rio de Janeiro, Topbooks, 1999), p. 324; Álvaro Lins, Jornal de Crítica (7 vols., Rio
de Janeiro, José Olympio, 1941-1951), vol. 3, p. 119. (N.E.)
No original, “120 anos”. (N.E.)
No original, “Devemos as obras de Bach executar fiel¬mente ...”. (N.E.)
É questão atualíssima em musicologia a contraposição entre correntes de interpretação
musical: uma defende a interpretação historicamente informada, isto é, que se devam
executar obras com máximo de fidelidade ao compositor, à sua época e ao seu estilo, até
mesmo por instrumentos da época ou reproduções; outra defende maior liberdade
interpretativa, ou seja, admite que o músico não só aja com liberdade na execução, como
também lhe acrescente trechos inteiros, notas, reformulações harmônicas. Reúnem fortes
argumentos e grandes interpretações ambas as correntes; porém, debates apaixonados à
parte, saem ganhando os melômanos, que assim dispõem de grande diversidade de
interpretações do grande repertório nos mais variados estilos. (D.M.)
Walther Rehm (1901-1963), crítico literário alemão. (N.E.)
Protagonista da novela homônima de Chateaubriand. (N.E.)
Publicado no Brasil como As últimas cartas de Jacopo Ortis. (N.E.)
Publicado no Brasil como A cartuxa de Parma. (N.E.)
No poema Der Bräutigam. (N.E.)
Óperas novas
Diário do Paraná, 13 mai. 1956

O a grande acontecimento das festas musicais, deste ano, em Veneza, foi


representação de uma nova ópera: cantaram no Teatro La Fenice a
obra póstuma de Prokofiev, O anjo de fogo.60
Inspira-se o libreto no romance homônimo do genial escritor russo
Briussov. O enredo passa-se na Alemanha do século XVI: magia negra,
necromancia, aparecimento do diabo. Embora só agora representada,
porque o compositor trabalhou até a sua morte na obra, essa ópera data,
em suas partes principais, de 1922. Nesse ano, Prokofiev passou a residir
em Ettal, na Baviera, porque nas populações rurais daquele lugar lhe
parecia sobreviver a fé no diabo. Justamente ao lado do velho mosteiro dos
beneditinos, em Ettal, acreditava sentir a presença do demônio. Levou,
como se vê, a sério o assunto. Também era sério o empenho. Prokofiev
pretendia desmentir o grande Diaghilev que naqueles anos andava
declarando a morte da ópera.
Mas a opinião de Diaghilev não foi desmentida. Por ocasião da
representação do Anjo de fogo escreveu, há pouco, o mais autorizado crítico
de Milão, Teodoro Celli: “A ópera morreu. As casas de ópera já não passam
de museus”. E isto se diz na cidade do Scala!
Muitíssimos são hoje da mesma opinião: a ópera morreu ou, pelo menos,
está agonizante, morrendo junto com a burguesia. É verdade que a ópera
era, no século XVIII, um gênero especificamente aristocrático. Mas
sobreviveu ao ancien régime, porque a burguesia romântica e liberal imitava
o estilo de vida dos aristocratas (veja a conferência de Ortega y Gasset, na
inauguração do Museu Romântico em Madri)61. Mas depois, a burguesia
deixou de ser romântica e liberal. E a ópera, apesar das injeções de cânfora
do nacionalismo wagneriano e do esteticismo à Debussy, morreu. As obras-
primas de Mozart viverão sempre, como se fossem escritas para a sala de
concertos; Gide desejava, também, sobrevivência dessas para as obras de
Wagner. Mas o resto? O teatro de ópera é hoje um museu, cheio de peças
brilhantes e falsas para o gosto de um público pouco musical e cada vez
mais suburbano.
Quem não quer desistir são os compositores. Insistem em escrever
óperas. Pretendem superar a estagnação, renovando o velho gênero pelas
novas técnicas musicais, o dodecafonismo, etc., mas o público resiste. Uma
grande ópera como Carlos V, de Krenek, não encontra oportunidades de
representação. Até a obra-prima do novo estilo musical, o Wozzeck de
Alban Berg, tem de lutar contra a mais forte resistência da platéia.62 Diz-
se, para explicar essas dificuldades, que “a música moderna ainda não
venceu”. Mas onde acontecem as vitórias definitivas, no terreno musical,
senão na casa de ópera? É um círculo vicioso. Como sair dele? Pelo libreto.
A ópera dos séculos XVIII e XIX é uma tentativa quase heróica de fazer
esquecer, pela qualidade da música, a absurdidade dos libretos. É conhecida
a luta de Verdi contra a estupidez dos seus libretistas (menos o último,
Boito). Wagner preferiu escrever, ele próprio, seus libretos: mas não saiu
coisa muito edificante. Em geral, ainda vale a frase de Voltaire: “Canta-se o
que é absurdo demais para ser dito”. No entanto, todas as grandes
renovações do gênero começaram no libreto.
Afinal de contas, a ópera inventada em 1600, pelos eruditos florentinos,
não foi tentativa de criar um novo gênero musical, mas a de restabelecer
um perdido gênero literário: a tragédia grega. Quem primeiro se lembrou
dessas origens foi o criador de Orfeu, Alceste, Iphigénie en Aulide, Iphigénie en
Tauride: Gluck, o reformador da ópera. Depois, Weber recorreu à literatura
do romantismo alemão. Verdi renovou a esgotada ópera séria pelo contato
com Shakespeare. Wagner e Debussy acompanharam os neo-romantismos
literários da sua época. Todas as grandes reformas da ópera partiram do
libreto. A agonia da ópera, hoje, é sintoma da impossibilidade, da ênfase
romântica dos libretos do século XIX. Daí as muitas óperas novas de
caráter irônico-humorístico.
Basta mencionar duas que tinham muito sucesso no inverno musical de
1954-55. Em Penélope, de Rolf Liebermann, Ulisses é um soldado que volta
em 1945 da guerra. Não é tentativa de representar a epopéia grega em
trajes modernos sem alterar o sentido íntimo; é francamente caricatural.
Ainda de maior atualidade é Astutuli, de Carl Orff: um charlatão muito
eloqüente chega a dominar e explorar uma aldeia bávara; o papel do
homem que fala muito e muito depressa é grande achado para a música.
O sucesso dessas duas óperas irônico-humorísticas confirma a tese do
esgotamento apenas da ópera patético-enfática do século XIX (a obra-
prima de Puccini também não é Tosca, como acreditam os ouvintes
musicais, mas Gianni Schicchi). Mais uma prova é a maior dificuldade de
renovar a ópera séria. A obra melhor sucedida é o Cônsul, de Gian-Carlo
Menotti, com sua atmosfera kafkiana de guerra iminente, perseguições
políticas e corrupção burocrática. Mas o compositor ítalo-americano virou
infiel ao assunto moderno, escrevendo música pucciniana. Exemplo mais
puro, embora muito menos conhecido, é O sacrifício, de Winfried Zillig. O
assunto é a expedição de Robert Scott e sua morte em meio às tempestades
da Antártica. Toda a ópera é uma sucessão de tempestades musicais, o que
adapta o libreto aos recursos da música concreta.
Assim a ópera se renovará; e com ela vencerá a nova música. Pois bem
disse Tovey63 que no palco de ópera se ratificam as grandes inovações
musicais.64
Encenada em 14 e 15 set. 1955. – Este ensaio de Carpeaux foi reproduzido no Diário do
Paraná (13 mai. 1956). (N.E.)
‘Para un museo romántico’, em Obras completas; tomo II; El espectador (1916-1934) (6ª ed.,
Madri, Revista de Occidente, 1963), pp. 514-524. (N.E.)
A suposta renovação da linguagem musical, referida por Carpeaux, na verdade consistiu
em premeditada deterioração do métier, em especial pela transplantação de ideologias
revolucionárias às técnicas composicionais, que resultou em contínuo afastamento do
grande público das salas de concerto: acostumados a obras de altíssimo nível estético, os
freqüentadores dos meios artísticos e intelectuais notaram imediatamente a esterilidade
das “novas” idéias musicais “revolucionárias”. Não é de se espantar, portanto, que o
movimento descendente da alta cultura musical esteja em sintonia com a estratégia
revolucionária da Escola de Frankfurt, que não só exaltou as vanguardas musicais como
propagandeou a necessidade de destruição integral da cultura ocidental. (Cf. T. W.
Adorno, Dialética negativa e Filosofia da nova música.) Portanto, não é a ópera que morreu,
mas sim a capacidade de renovação do gênero pelas novas gerações de compositores.
(D.M.)
Cf. o ensaio “Um crítico de música”, p. XXX, dedicado a Tovey. (N.E.)
Influenciado por teorias estéticas vanguardistas, Carpeaux falhou em seu vaticínio: nos
dias atuais, teatros de ópera de todo o mundo lotam-se na encenação das grandes óperas
consagradas pelo público ao longo dos séculos, ao passo que óperas vanguardistas são
fracasso contínuo de público. (D.M.)
Schumann, trágico
Diário de Pernambuco, 20 mai. 1956

E ste ano mozartiano não é propício às comemorações do primeiro


centenário da morte de Robert Schumann. É verdade que ninguém
conseguiria eliminar-lhe do repertório as obras: nos programas dos nossos
concertos ocupam lugar garantido as obras para piano de Schumann, suas
sinfonias, seus lieds65. Pertencem à rotina da vida musical. E muitos pensam
só a rotina. Ora, com as necessidades de repertório dos pianistas não se
preocupam os que só admitem a música pura. 1756, nascimento de Mozart
– 1856, morte de Schumann: as datas são contraditórias. A música do
mestre romântico, realmente, não é pura. É literária. E a literatura nem
sempre é boa. Gide, querendo ser justo, confessou: “Eu não precisava
rebaixar Schumann para elogiar Chopin”.66 No entanto, já o tinha
rebaixado. O crítico americano Huneker chegou a dizer sobre Schumann:
“Um caso patológico, um literato que fez música”.67 E que literato! A prosa
poética de Schumann é exemplo de sentimentalismo absurdo. Gostava de
tudo que a posteridade detesta. Esse “saxão adocicado” (a expressão é de
Nietzsche) não compreendeu bem o verdadeiro romantismo, do qual só
cultivou, nos lieds, nas cenas infantis, etc., o lado doméstico e domesticado.
Muito menos teria compreendido seu ídolo: o grande trágico Beethoven.
Pois a música de Schumann, quando muito, é triste; mas nunca seria
trágica.
Eis o libelo de acusação. Mas são muitos e muito bons os argumentos de
defesa.
Na França, centro da pintura moderna, sempre foram íntimas as relações
entre a literatura e as artes plásticas. Mas a música alemã nunca teve um
Baudelaire nem um Apollinaire. O único grande escritor-músico da
literatura alemã, E.T.A. Hoffmann, foi injustamente esquecido. Mais tarde,
o diletantismo literário de Wagner, o diletantismo musical de Nietzsche e
Thomas Mann não chegam a estabelecer a ligação entre as duas artes.
Visto assim, o caso de Schumann não é patológico, mas excepcional: não foi
um literato que fez música, mas um músico que sabia exprimir-se em
termos literários. Sua prosa poética não tem importância. Mas ninguém
parece dar-se conta do que devemos a Schumann como crítico musical.
Foi o primeiro que reconheceu o gênio de Chopin. Foi o primeiro que
ousou censurar, asperamente, o então idolatrado Meyerbeer. Disse palavras
justas, nem de exaltação nem de desprezo, sobre a música de Berlioz. Isto
quanto aos contemporâneos.
A Schumann se deve a descoberta póstuma das desconhecidas obras-
primas de Schubert. A Schumann se deve a entronização das sinfonias de
Beethoven no centro do repertório. A Schumann se deve verdadeira
renascença das obras instrumentais de Haydn e Mozart, então meio
desprezadas. A Schumann se devem as primeiras execuções modernas dos
oratórios de Haendel. A Schumann se deve a primeira execução pública dos
Concertos de Brandemburgo.
Mas o que importa mais: essas valorizações e revalorizações, realizadas
pelo crítico Schumann, integram um sistema. Assim como Sainte-Beuve,
seu contemporâneo, estabeleceu o sistema de valores da história literária
francesa, assim Schumann organizou aquela tábua de valores da música
alemã que até hoje aceitamos: Bach e Haendel; Haydn, Mozart e Beethoven;
Weber, Schubert e Mendelssohn; enfim, já no fim da vida, adivinhou e
proclamou generosamente o gênio do então jovem Johannes Brahms. Só
em relação a Wagner, o crítico ficou céptico.
Os contemporâneos desconheciam, aliás, esse ceticismo: na música de
Schumann acreditavam os conservadores descobrir os germes perniciosos
do magnetismo. Essa hipótese parece-nos, hoje, incompreensível e
impossível. Compreendemos melhor a aversão de Wagner contra a música
de Schumann, do neo-romântico contra o romântico autêntico. Talvez seja
esta a chave para a compreensão do fenômeno schumanniano.
O verdadeiro romantismo alemão é poético; mas é antiteatral. Schumann,
que nunca teve muita sorte com as grandes formas musicais, fracassou
sobretudo na ópera (embora na Genoveva haja muita música boa,
injustamente esquecida).68 Antes de tudo é ele, como todo mundo sabe, um
mestre do lied e o mestre, só comparável a Chopin, das pequenas formas de
música do piano. Os ciclos de lieds, as Cenas infantis, as Peças de fantasia, os
Estudos sinfônicos – esse poeta! Essa mestria na música poética devia levá-lo,
nas grandes formas, à música de programa. Mas Schumann não deu esse
passo; e essa sua atitude negativa é a melhor prova da autenticidade do seu
romantismo. Sua música não tem nada que ver com a poesia sinfônica dos
Berlioz, Liszt, Richard Strauss. Suas tentativas de dar base poética ao
esquema da sonata-forma deu outros resultados e, pelo menos, uma obra-
prima de valor permanente: o imortal Quinteto para piano e cordas, cujo
segundo movimento é o mais emocionante, em toda a história da música,
depois dos segundos movimentos de Beethoven. Na mesma altura não
estão, apesar de todas as belezas, suas sinfonias e oratórios. Mas sim a
música melodramática para introduzir e acompanhar a tragédia Manfred,
de Byron.
Sem exagero pode-se afirmar que nessa obra, e talvez só nessa obra, o
romantismo musical alcançou as alturas da tragédia; sem qualquer ponto
de contato com a teatralidade wagneriana.
E ainda falam em sentimentalismo? O próprio Schumann foi
personalidade trágica. Com exceção de um trabalho, menos importante
aliás, de Henry MacMaster69, não me consta que tenha sido estudado o
“caso Schumann”, a evolução de um homem de temperamento
alternadamente fogoso e melancólico até a tentativa de suicídio e a morte
na loucura. Mas justamente esse Schumann patológico pertence ao
romantismo, no sentido profundo da palavra, assim como Albert Béguin70 o
entende: Schumann é de estirpe dos Novalis, Hoffmann a Nerval.
O surrealismo podia inscrever o nome de Schumann entre os santos do
seu Panteão de visionários enlouquecidos. O compositor dos Kreisleriana é
de modernidade estupenda. Como chegou a tanto o autor de tantas obras
indispensáveis, no repertório, aos artistas e ao grande público? A literatura
alemã não teve um Baudelaire, para descrever e explicar a evolução dessa
música de spleen temperamental ou melancólico para a grande arte
trágica.71
É lieder o plural de lied em alemão. Carpeaux provavelmente grafou lieds como concessão à
cultura local ou para abrasileirá-lo. (D.M.)
Diário íntimo de 18 dez. 1931 (citação de memória). (N.E.)
James Huneker, Old Fogy, his musical opinions and grotesques (Filadélfia, PA., Theodore,
1913), p. 96; disponível em:
https://archive.org/stream/oldfogyhismusic00hune#page/n3/mode/2up. (N.E.)
A grandeza de Schumann no lied e em sua obra pianística dispensa o sucesso nas grandes
formas sinfônicas, como sucede ao próprio Chopin, que, apesar das poucas obras para
outros instrumentos, figura no primeiro escalão dos grandes compositores ocidentais.
(D.M.)
La folie de Robert Schumann (Paris, Maloine, 1928). (N.E.)
Crítico e editor suíço (1901-1957). (N.E.)
Carpeaux é demasiado severo na valoração da obra sinfônica de Schumann: aliando forma
a conteúdo pelas novas propostas estéticas, a sua primeira sinfonia é uma das maiores
conquistas do romantismo, pelo que demonstra rigoroso domínio, a um só tempo, tanto
das formas clássicas quanto da explosão de expressividade romântica, igualmente
presente em outras obras sinfônicas e nas formas menores como o lied. (D.M.)
O outro Mozart
Diário do Paraná, 24 jun. 1956

T ão pouco foi feito, entre nós, para comemorar o bicentenário72 do


gênio que se tem a obrigação de contribuir para lembrá-lo,
escrevendo conforme os recursos de cada um; mas sobre nenhum
compositor é tão difícil escrever como sobre este. Não oferece pontos de
referência literários. E se chegarmos a descontar a lenda sentimental em
torno da sua vida, estamos obrigados a verificar o nobre e desconcertante
détachement emocional do mestre que nunca se confessa, nunca abre seu
coração nem sequer faz poesia.73 Suas sinfonias não são poemas sinfônicos.
Até suas óperas não afirmam isto nem proclamam aquilo. Myriad-minded
como Shakespeare, esse Shakespeare do teatro lírico só diz o que seus
personagens têm de dizer. Não é Mozart que fala: é Dona Ana e é Don
Giovanni, é Fígaro e é Cherubino, é Sarastro e é a Rainha da Noite, e cada
um deles diz sua verdade e não estamos autorizados a considerá-la como a
verdade de quem os criou; Mozart é mesmo o único compositor que
chegou, em certas árias de Così fan tutte e na serenata de Don Giovanni, a
realizar o incrível, a pôr em música a mentira, dando a entender, em sons,
que os personagens mentem. Não. Assim não é possível aproximar-se de
Mozart. Sua verdade nos escapa.
Restam as definições triviais e quase tautológicas, como esta: “Mozart é o
mais eufônico de todos os compositores”. Realmente, é ele o gênio da
eufonia. Ninguém como ele soube, nos concertos para piano, resolver o
problema difícil de fundir o som do piano e o da orquestra. O Quinteto com
clarineta é a obra mais harmoniosa de toda a literatura musical. Mas não
basta entregar-se voluptuosamente a essas ondas sonoras. A perfeição
perfeitíssima dos concertos para piano, dos quartetos de cordas, do
acompanhamento orquestral das árias só se revela plenamente a quem os
concebe como o non plus ultra da construção musical e da instrumentação.
Quem torna difícil compreender essa revelação é a história da música que
nos ensina a considerar Mozart como membro médio de uma tríade
progressiva: Haydn, o começo; Mozart, melhor; Beethoven, ótimo. Mas é
um absurdo.
Ouvimos, ou antes, fomos ensinados a ouvir Mozart como algo “antes de
Beethoven”. Por isso, pela tirania da perspectiva beethoveniana, parecia
Mozart ao século XIX, em comparação com o titã, um pouco “pequeno”,
“suave”, “ameno”, senão infantil. Wagner, o oráculo, chamou-o de “gênio
suave da luz e do amor”, elogio que diminui. Fizeram o resto os biógrafos,
ressaltando o menino-prodígio, vestido de calças curtas de veludo, uma
estatueta de porcelana de pastorzinho de rococó, um anjo da infância.
Mas também se cometeu o erro contrário, o de adaptar Mozart ao gosto
romântico do século XIX. Além de transformar o gênio infeliz em gênio
incompreendido (o que é diferença essencial), torceu-se o sentido de obras
inteiras, sobretudo do Don Giovanni: o grande sedutor como personagem
demoníaco, Dona Ana como heroína trágica, eis a interpretação fascinante
de E.T.A. Hoffmann, confirmada por Kierkegaard e reaparecendo, em
nossos dias, no belo comentário de Jouve74, que encontrou na obra sua
própria filosofia do amor e da morte. Admitimos: essa interpretação
romântica tem contribuído para ressaltar a profundidade da música; mas
essa interpretação não resiste à análise das suas premissas. Conforme estas
últimas, Mozart teria sido um artista originalíssimo, no sentido em que
eram originais os grandes românticos do século XIX. Mas Mozart não foi
“original” assim; e se conhecesse o conceito, teria recusado a honra.75
O crítico inglês Eric Blom, admirador entusiasta do mestre, teve a
coragem de observar que compositores de estatura infinitamente menor,
um Bizet, um Tchaikovsky, até um Puccini são melodistas mais originais,
mais pessoais, mais inconfundíveis que Mozart; Mozart que pode ser
confundido, pelo leigo, com qualquer dos mestres menores de sua época.
Estes últimos estão esquecidos. Se os conhecêssemos, não tomaríamos por
“tipicamente mozartiano” o que só é o estilo, comum de todos, do século
XVIII.76 Outros críticos também já tiveram a coragem de chamar a atenção
para a freqüência de “lugares-comuns” musicais, de “cláusulas” vazias e
triviais na música de Mozart, especialmente nas sinfonias. O mestre não
teve, evidentemente, nenhuma vontade de surpreender, de ser original.
Poderia dizer como Picasso: “Je ne cherche pas, je trouve”.77 Mas essa
confissão é tipicamente anti-romântica.
Nesse sentido, no de aceitar sem hesitação o estilo de sua época,
imprimindo-lhe apenas (apenas!) uma perfeição sem par, é Mozart um
artista clássico. Não precisa ser original a todo preço. As “trivialidades”
fazem parte necessária da sua melodia inesgotável.
Muitos estarão de acordo com essas verificações. Mas quase todos não
deixarão de opor ao Mozart clássico o Mozart demoníaco, citando Goethe:
“O espírito demoníaco de Mozart tinha-se apoderado dele, de modo que o
mestre estava obrigado a realizar o que aquele lhe mandou realizar”.78 O
que Goethe definiu assim, não é um Mozart romântico. Ao contrário. O
daimónion de Goethe não é o de Schumann ou Berlioz. É socrático. É o
demônio da perfeição, seja moral, seja artística. É o demônio que exige que
cada nota seja necessária e que só haja notas necessárias e que todas elas se
coordenem de tal maneira que a obra em conjunto parece que deve ser
assim como é e que não poderia ser diferente; enfim, a obra se apresenta
clara no sentido de evidente, sem precisar de explicação nenhuma. Até
pode parecer trivial. Mas é perfeita e clássica.
Mozart é a suprema expressão da civilização aristocrática do século
XVIII, que ainda ignora o romantismo. Mas o século não ignora aqueles
pressentimentos de qualquer coisa de sinistro ou lúgubre ou melancólico
ou fantástico a que se deu o nome de tendência pré-romântica.
Pré-romântico é o outro Mozart: o das energias rítmicas, da Sinfonia em
sol menor e do Quarteto com piano em sol menor; da melancolia do Trio com
clarineta, das tempestades sentimentais do Concerto para piano em ré menor;
da agitação febril, no segundo movimento do Quinteto em sol menor e no
último movimento do Quarteto em ré menor: obras, todas elas, em menor,
desmentindo a suavidade amena do retrato convencional. Esse retrato de
Mozart está todo falsificado. Timidez pequeno-burguesa passou sob
silêncio a revolta audaciosa, em Le nozze di Figaro, música que é mais
revolucionária que a comédia impertinente de Beaumarchais. Hipocrisia
puritana não quis perceber a ironia subversiva em Così fan tutte. A
interpretação romântica de Don Giovanni falsifica as perspectivas: a obra é
trágica porque nela se pressente o fim da civilização aristocrática. E enfim,
a síntese de todos os estilos musicais, na Flauta mágica, não acompanha um
enredo de absurdidade infantil, e sim a proclamação da fraternidade
universal.
Mozart não é infantil. Anjo ele é no sentido em que Rilke afirma que
“todos os anjos são terríveis”. Por que terríveis? O próprio Rilke explicou:
“Porque sua perfeição humilha o esforço humano, ferindo-o mortalmente”.
Talvez aconteça isso com freqüência menor naquela arte, na música, que
conta com maior número de obras perfeitas do que qualquer outra. Neste
sentido, Mozart nem sequer é o maior. Há Bach. Mas a hierarquia dos
valores pode ser representada, variando-se conhecida frase de Nietzsche:
“Bach é o homem que chega a notar o que um anjo do céu lhe dita. Mozart
é esse anjo”.
Bicentenário em 27 jan. 1956.
Há, contudo, uma série de cartas endereçadas a seu pai, sua esposa, parentes e amigos.
(D.M.) – A melhor seleção brasileira está esgotada: Cartas vienenses (trad. Gabor Aranyi,
Mairiporã, Veredas, 2004). (N.E.)
Pierre-Jean Jouve (1887-1976), poeta e romancista francês. (N.E.)
O mito da originalidade começou no século XIX, época do romantismo, e não fazia parte
das preocupações de compositores das épocas anteriores: valia infinitamente mais agradar
ao público do que ser “original”. (D.M.)
Eric Blom & Henry Cope Colles, The Growth of Music (3 t. em 1 vol., Oxford-Nova York,
Oxford UP, 1956), t. 2. (N.E.)
“Eu não procuro, eu encontro”. (G.Z.)
Conversações com Eckermann. (N.E.)
Recital Ivy Improta
Correio da Manhã, 7 nov. 1956

A queprimeira sabedoria é a de saber organizar o programa. Certas falhas


se observam em recitais de virtuoses explicam-se pela
organização de programas inorgânicos, incoerentes, que não permitem ao
intérprete a plena manifestação das suas capacidades técnicas e do seu
entendimento musical. A essas falhas do intérprete79 corresponde, então,
fatalmente, a falha da crítica, julgando com severidade interpretações a que,
dentro de outro conjunto programático, talvez tivesse aplaudido. Muito
elogiável é, portanto, o programa que a Sra. Ivy Improta80 organizou para
seu recital de segunda-feira81 no Golden Room do Copacabana Palace. Foi a
condição básica do sucesso obtido e merecido.
Há, grosso modo, duas possibilidades de organizar o programa de um
recital de piano: a alternativa barrocaclássica, com Bach, Domenico
Scarlatti, Couperin e Rameau; e a alternativa romântica, solidamente
baseada em Beethoven e Chopin. O mal é a mistura, pois não se pode tocar
igualmente bem, dentro de duas horas, uma pièce de Rameau e um noturno
de Chopin, uma sonata de Beethoven e uma suite de Bach.
Tendo escolhido a segunda alternativa, a romântica, a Sra. Ivy Improta
sentiu, não sei se instintiva ou conscientemente, a dificuldade a que a maior
parte dos virtuoses, menos bem instruídos, fica insensível. Por mais que
fosse costumeira a combinação dos dois mestres no mesmo programa, é
preciso observar que Beethoven e Chopin se colocaram em pólos opostos.
Nunca convém justapô-los. No meio entre eles fica o lugar certo do
romântico chopiniano, fortemente nutrido em Beethoven: escolheu a Sra.
Ivy Improta a melhor oportunidade para comemorar o centenário de
Schumann.
Depois de Chopin bifurca-se o caminho. Pode-se escolher a linha,
partindo de Chopin, das inovações harmônicas, que leva a Debussy: mas
este, delicadíssimo, não se presta para fim de programa. A outra linha, a do
nacionalismo romântico, leva aos russos, húngaros, escandinavos, aos
ibéricos representados no programa da Sra. Ivy Improta: Granados e
Albéniz, ao lado do nosso Villa-Lobos.
Foi este o programa, tão bem organizado, da recitalista de segunda-feira:
Beethoven (Sonata op. 109), Schumann (Carnaval de Viena), Chopin (dois
prelúdios e a Balada n.º 4), e Villa-Lobos, Granados e Albéniz.
Para começar com o fim: essa música espanhola tem encanto irresistível,
a Maja y el ruiseñor, de Granados, talvez mais que Triana, de Albéniz,
apesar do maior requinte musical deste último. Mas quem não morre de
amores pela música de base deliberadamente folclórica (Bach, o maior
folclorista musical de todos os tempos, nunca pensou em escrever música
tipicamente alemã), apreciará naquelas peças principalmente a
oportunidade, para o pianista, de evidenciar técnica límpida, cristalina –
mas então, ao fim do recital, a Sra. Ivy Improta já não precisava
demonstrar suas qualidades técnicas. Sem estas, não conseguiria convencer
na interpretação da quarta balada de Chopin, difícil em todos os sentidos;
mas saiu convincente.
Do romantismo heróico de Chopin para o romantismo íntimo de
Schumann: pois bem, confesso que o Carnaval de Viena não me parece
figurar entre as obras-primas do mestre tão querido, apesar da frescura
juvenil que distingue toda a literatura pianística de Schumann, apesar da
citação espirituosa da Marselhesa, etc. Talvez por isso não me tenha sido
possível acompanhar com o mesmo entusiasmo a interpretação dessa obra
pela recitalista. Mas fui recompensado, no fim, quando ouvimos, como
extra, o Aufschwung. A palavra alemã não é bem traduzível para as línguas
neolatinas. Na França costuma-se dizer élévation, o que é coisa muito
diferente. Aufschwung, em alemão, tampouco tem o sentido do inglês
rapture; nada de extático. É um esforço sério, quase (mas só quase) heróico,
para voltar à vida ativa depois de longa submersão em meditação ansiosa e
sombria. Todo o lado noturno, dir-se-ia sinistro, byroniano e hoffmanniano
de Schumann está nessa página admirável que a Sra. Ivy Improta tocou
com a necessária energia para nos deixar sentir a elevação, isto sim, da
esfera ideal inacessível ao esforço do espírito romântico, seriamente
perturbado.
Essa esfera foi atingida nas estupendas variações que rematam a Sonata
em mi maior, op. 109, de Beethoven. Foi a pièce de résistance da noite. Subindo
até esse céu abstrato do terceiro estilo beethoveniano82, a pianista
desmentiu, mais uma vez, a velha lenda da intocabilidade das últimas
sonatas. Fez como a própria música que, no conhecido e inesquecível lied de
Schubert, “leva-nos para um mundo melhor”.83 Tínhamos de agradecer
devidamente. E o público agradeceu devidamente à Sra. Ivy Improta.
Como o cansaço interfere na qualidade das execuções, deve-se equilibrar em recitais
diferentes níveis de dificuldade das obras selecionadas, ajustando-se obras de grande
exigência técnica a outras de menor dificuldade, de modo a possibilitar o relaxamento
muscular intermediário. (D.M.)
Pianista e intérprete de Villa-Lobos, foi esposa do crítico Eurico Nogueira França (cf. nota
33). (N.E.)
5 nov. 1956. (N.E.)
O terceiro estilo de Beethoven insere-se na divisão clássica de sua obra em três partes bem
delimitáveis – a saber: a primeira, chamada de fase inicial (1770-1792), é de estilo clássico
e fortemente influenciada por Haydn; na segunda (1792-1812), de estilo romântico,
Beethoven começa a superar a estética clássica; a terceira (1813-1827), de estilo próprio e
inigualável, é referida por Carpeaux com precisão, porquanto o élan de suas últimas obras
se aproximem da transcendência, princípio que ele próprio registrou como a sua busca
mais constante. Essa classificação encontra eco em Lewis Lockwood, Beethoven: a música e
a vida (trad. Lúcia Magalhães e Graziella Somaschini, São Paulo, Códex, 2004). (D.M.)
No original, “levando-nos para um mundo melhor” (grifamos). (N.E.)
Um crítico de música
Diário do Paraná, 18 nov. 1956

N as Conversas com Casals84, que José Maria Corredor acaba de


publicar, o grande músico catalão manifesta admiração especial pelo
compositor inglês Donald Francis Tovey (1875-1940), que seus
contemporâneos não teriam bastante apreciado. Nem todos serão da
mesma opinião. Mas todos estarão de acordo em reconhecer Tovey como
um grande crítico de música; talvez o maior.
A crítica musical debate-se permanentemente entre dois pólos opostos e
impossíveis: a crítica técnica das obras musicais fica incompreensível aos
leigos, sem dizer algo de novo aos profissionais; a crítica chamada poética é
um horror aos músicos, enquanto ilude o público, fazendo-lhe crer que
compreendeu o que não compreendeu. Tovey escolheu outro caminho:
iniciar o público na arte musical, sem fazer concessões aos preguiçosos,
mas sem perder-se em minúcias técnicas. Foi do métier: pianista, regente,
compositor. Mas ganhou fama como autor de explicações nos programas
de concerto. Mais tarde, o cargo de professor de musicologia na
Universidade de Edimburgo fortaleceu-lhe a tendência pedagógica.
Escreveu seis volumes de Essays in Musical Analysis85, mais os Essays and
Lectures on Music86 e, enfim, os verbetes musicais de Encyclopaedia
Britannica que, reunidos depois em volume87, são verdadeiro breviário da
crítica musical.
Tovey foi, antes de tudo, um grande escritor, escrevendo com clareza
quase francesa. Mas foi o mais típico dos ingleses, dono de um humor bem
britânico, que contribui muito para vivificar-lhe88 as explicações. Numa
exposição da famosa guerra entre os adeptos de Wagner e os de Brahms
lamentava que os grandes mestres também tenham sucumbido à tentação
de insultar um ao outro; mas, acrescenta, “não se pode esperar que os leões
virem vegetarianos”.89
Também foi leão, e dos mais ferozes. Conta-se que um violinista,
enquanto tocava em concerto, percebendo o mau humor na cara do crítico
na primeira fila das poltronas, desmaiou. Sendo leão, Tovey preferiu,
porém, devorar compositores. Seu gosto era dos mais exclusivos. Certa vez,
confessou admirar, sem restrições, só 13 mestres em toda a história da
música: Josquin de Prés, Orlandus Lassus, Palestrina, Victoria, Bach,
Haendel, Gluck, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Wagner e Brahms.90
Mas esse exclusivismo não era estreiteza de espírito acadêmico. Não
admirava aqueles mestres porque consagrados. Entusiasmavam-no.
Quando alguém, em sua presença, ousava falar, com desprezo, de Haydn
como “homem de poucas letras”, respondeu: “Introduzir novo tema num
movimento sinfônico requer tanta inteligência como a introdução de novo
personagem numa tragédia de Racine ou Shakespeare”. Também estava
bem fundada sua aversão contra certos compositores preferidos pelo
grande público. Costumava dizer que o público inglês prefere Tchaikovsky
a Brahms, porque gosta mais do dramalhão que o drama.91 Mas Tovey não
foi surdo a inspirações altas em compositores, cujo gênero e maneira lhe
repugnavam. Dizia: “Apesar de tudo, Verdi é um gênio”.92
Invencível só foi a aversão de Tovey contra o desprezo da forma. A
acumulação de inspirações temáticas sem nexo lógico93 parecia-lhe
brincadeira de criança, querendo fazer estátuas com areia da praia. Por
mais que admirava os lieds e as pequenas obras pianísticas de Schumann,
desprezava-lhe, como sendo mosaicos, as obras de maior envergadura; a
propósito do quarto movimento do Quinteto94 de Schumann, em que volta o
tema principal do primeiro movimento, declarou sentir um frisson. “É como
se voltasse de um modo morto”. E o maior mestre em formas pequenas,
Chopin, foi caracterizado por Tovey assim: “É um gênio dentro do seu
estreito quarto de doente; ao ar livre, desfalece”. Também foi Tovey contra
todas as inovações sem conseqüências: não reconheceu importância alguma
nas novas harmonias de Debussy, o que não o impediu, aliás, de admirar
fervorosamente Pelléas et Mélisande. Em geral, tinha Tovey a coragem de
não sentir nem manifestar respeito obrigatório pelos “consagrados” ou
“preferidos”: encontrou palavras de desrespeito contra Berlioz (“maior
escritor do que compositor”),95 contra as composições (“sem fundo”)96 de
Liszt e contra quase todos os compositores russos.
Estes últimos quase lhe inspiravam repugnância física. Rimsky-Korsakov,
em seu tratado de instrumentação97, afirma que a execução das idéias é, em
Beethoven, inferior às próprias idéias musicais; sim, observa Tovey, talvez
tenha Rimsky sido capaz de instrumentar melhor aquele estreitíssimo setor
das idéias beethovenianas que pode entrar pela cabeça de um compositor de
bailados russos.98
Essa observação não é apenas maliciosa. Também destrói o anacronismo
que quis julgar uma sinfonia de Beethoven conforme critérios técnicos de
um profissional post-wagneriano. Foi forte em Tovey o senso histórico, que
lhe inspirou. Falando do tempo em que Monteverde criou em Mântua a
ópera99, acrescenta que ao mesmo tempo foram construídos, na cidade
vizinha de Cremona, os primeiros violinos modernos: o estilo do canto
monolítico100, operístico, encontra-se com o instrumento que fará vencer o
mesmo estilo na música instrumental. E quando se lamentava de Schubert
não tenha vivido bastante tempo para desenvolver sua nova maneira de
escrever música de câmara, Tovey respondeu com intuição
verdadeiramente genial: “As obras da música de câmara que Schubert teria
escrito, se fosse mais velho, foram escritas por Brahms”. Mas o crítico foi,
em virtude mesmo de seu senso histórico, inimigo da mania de tecer
analogias: a explicação da música beethoveniana pela Revolução Francesa
inspirou-lhe acessos de furor. Para demonstrar o absurdo de analogias
assim, escreveu: “No ano em que Bach visitou em Potsdam o rei Frederico,
o Grande, encontrou lá outro hóspede do monarca: Voltaire.”101 Com efeito,
Bach e Voltaire são contemporâneos; mas essa contemporaneidade não nos
ensina nada sobre a filosofia deste ou a música daquele.
Intolerante também foi Tovey em seu culto à sonata-forma. Quem ignora
a lógica do desenvolvimento temático é como um homem que pretende ler
um romance, começando no meio, pulando depois 100 páginas e
terminando a leitura antes do fim. Quem aprecia só temas ou melodias
isolados é como um homem que pretende vender uma casa, levando
consigo, como amostra, um tijolo. Quem prefere à música instrumental a
ópera, desconhece a suprema dramaticidade das modulações. A relação
entre uma ópera e uma sinfonia é como entre coisas artificialmente
iluminadas e a realidade das coisas à luz do dia.102 Mas Tovey estava longe
de desprezar a música dramática. Já ouvimos da sua admiração por Verdi, e
por Pelléas et Mélisande. Ensinara-lhe a experiência que novos estilos
musicais nunca chegam a vencer na sala de concertos, mas só no palco da
ópera. Concluiu: “A ópera será a pedra de toque da música moderna”.
Não conheço julgamento de Tovey sobre Alban Berg. Sei que escreveu, já
muito velho, com entusiasmo juvenil sobre Hindemith. Não era um
conservador petrificado. No entanto, acredito que para ele a História da
Música estava mais ou menos terminada com Wagner e Brahms, sendo
Debussy só um apêndice, ou antes, um interessante beco sem saída, e
Schoenberg, apenas um grande teórico. Sua opinião sobre a vocação
musical do nosso tempo talvez se encontre na frase seguinte: “Vivendo na
época de Bach, Beethoven teria posto em música o livro do Apocalipse;
vivendo em nosso tempo, Bach teria emigrado para a África, chamando-se
Dr. Albert Schweitzer”.103
Nos escritos de Tovey encontramos abundância de ensinamentos
profundos e luminosos sobre a arte musical. Mas, sendo ensinamentos
verbais, racionais, lógicos, não podem esgotar o conteúdo da música que é,
além de emocional, principalmente formal. A música é a única arte na qual
conteúdo e forma coincidem completamente. Por isso, é na música maior do
que em qualquer outra arte o número de obras perfeitas. E essa perfeição
não é completamente acessível ao raciocínio: a audição dos Concertos de
Brandemburgo nos faz participar, como na religião, de uma paz da alma que
está acima de toda razão.
Conversations avec Pablo Casals (Paris, Michel, 1954). (N.E.)
(ed. Hubert J. Foss, Londres, Oxford UP, 1935-1944). (N.E.)
(ed. Hubert J. Foss, Londres, Oxford UP, 1949). (N.E.)
Duas edições: Musical Articles from the Encyclopaedia Britannica (ed. Hubert J. Foss,
Londres, Oxford UP, 1944); The Forms of Music (ed. Hubert J. Foss, Nova York, Meridian,
1956). (N.E.)
No original, “virificar-lhe”. A julgar pela seqüência, Carpeaux talvez escrevera: “virilizar-
lhe”. (N.E.)
Citação de memória de ‘Music’, em The Forms of Music (5ª reimpr., ed. Hubert J. Foss,
Nova York, Meridian, 1959), p. 131; disponível em:
https://archive.org/stream/formsofmusic000129mbp#page/n3/mode/2up. (N.E.)
The Classical Concerto: it’s nature and purpose (Londres, Williams, [1902]). (N.E.)
‘Music’, em The Forms of Music (5ª reimpr., ed. Hubert J. Foss, Nova York, Meridian,
1959), p. 134. (N.E.)
Paráfrase de ‘Music’, ibid., p. 133. (N.E.)
Equivalente a “versos livres” em poesia, ou seja, versos sem métrica ou sem conexão
lógica entre idéias. (D.M.)
Quinteto para piano e cordas em mi bemol maior, op. 44. (N.E.)
‘Overture to King Lear’, em Essays in Musical Analysis. (N.E.)
Essays and Lectures on Music (ed. Hubert J. Foss, Londres, Oxford UP, 1949), p. 122. (N.E.)
Princípios da orquestração (1922). (N.E.)
‘Instrumentation’, em The Forms of Music (5ª reimpr., ed. Hubert J. Foss, Nova York,
Meridian, 1959), p. 73. (N.E.)
Essays and Lectures on Music (ed. Hubert J. Foss, Londres, Oxford UP, 1949), p. 191. (N.E.)
No original, “monolico”. (N.E.)
Essays and Lectures on Music (ed. Hubert J. Foss, Londres, Oxford UP, 1949), p. 347. (N.E.)
No original, “[...] é como entre artificialmente iluminadas, e a realidade das coisas à luz do
dia” (grifamos). (N.E.)
Citação de memória de ‘Music’, em The Forms of Music (5ª reimpr., ed. Hubert J. Foss,
Nova York, Meridian, 1959), p. 126. (N.E.)
Hegemonia musical
Diário do Paraná, 20 jan. 1957

N os círculos musicais do mundo ocidental aparece de vez em


quando um espectro: o da hegemonia musical desta ou daquela
nação. Em 1952 foi celebrado o cinqüentenário da estréia de Pelléas et
Mélisande, de Debussy, como da vitória definitiva da música francesa,
quebrando a hegemonia musical dos alemães; e sempre encontro assim
citada a data. Mas esse conceito merece ser examinado.
Acredita-se geralmente que os alemães exerceram entre 1750 e 1900 a
hegemonia musical. É verdade que, durante esse período, também houve
um Berlioz, um Chopin, um César Franck, um Verdi, um Mussorgsky e
alguns outros, muitos outros. Mas que adiantam esses nomes? 1750 até
1900, isto é a época de Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Weber,
Mendelssohn, Schumann, Wagner, Brahms, Bruckner, Wolf; e nenhuma
outra nação foi capaz de comparar-se, nessa época, aos alemães.104 Querem
mais uma prova? Em 1916, em plena primeira guerra mundial, escreveu
Jules Combarieu105 os três volumes de sua conhecida História da Música106,
também muito lida no Brasil. Embora reconhecendo com imparcialidade o
gênio daqueles compositores alemães (com exceção de Brahms, que não
compreendeu), o musicólogo fanaticamente nacionalista quis escrever a
história musical do século XIX sem admitir a hegemonia alemã.107 O
resultado foi que, na obra de Combarieu, Schumann pertence à época de
Auber e Brahms, à época de Gounod e Massenet. Com razão, um crítico
inglês falou em “ponto de vista da ópera parisiense”.
Hoje em dia, Combarieu já não precisava de tantos artifícios. Poderia
deixar aos alemães o século XIX, contentando-se com o século XX.108 Pois,
realmente, a música francesa é hoje muito maior influência no mundo do
que a música alemã. No entanto, pode-se falar hoje em hegemonia
francesa? Ninguém o afirmaria. É preciso considerar a contribuição dos
eslavos, dos escandinavos, dos ingleses, dos espanhóis, dos latino-
americanos. Hoje, não há nação que exerça soberanamente a hegemonia no
mundo do musical.
Mas já houve predominâncias assim. Antes da hegemonia alemã, foi a vez
dos italianos, donos da música entre 1600 e 1750. E antes dos italianos foi a
hegemonia musical exercida, como se sabe, pelos mestres flamengos. Só
hoje não existe nada disso. É estranho.
Estranhas, também são outras coisas. Diz-se geralmente que a
hegemonia musical dos alemães começou por volta de 1750. Mas
precisamente em 1750 morreu Bach. Não é esquisito? A hegemonia
musical dos alemães teria começado com a morte do maior dos
compositores alemães! Deve haver alguma confusão de cronologia.
Ao invés de falar em ‘‘época de 1750 até 1900”, será melhor falar em
“época de 1600 até 1880”109. Essa época passa, em parte, por período de
hegemonia italiana. Mas também é a época de Bach, Haydn e Mozart.
Como sair do beco?
Na verdade, entre 1650 e 1800 a música foi cosmopolita. É a época na
qual o alemão Haendel podia mudar de nacionalidade, tornando-se inglês.
É a época na qual Gluck mudou três vezes de nacionalidade musical:
começando como alemão, continuando como italiano e terminando como
compositor francês: para morrer, enfim, em Viena. Naquela época, o
austríaco Mozart teria ficado, por um triz, compositor italiano. E se tivesse
fixado residência em Paris? Na verdade, a linguagem musical de Mozart é a
da aristocracia européia do século XVIII. Se Mozart parece em certas
obras alemão, é porque se comporta como um aristocrata austríaco que,
quando bem humorado, fala durante uma hora em dialeto vienense.
Estranha hegemonia alemã, que o século XVIII não sentiu.
O conceito tem suas raízes no nacionalismo do século XIX. O
nacionalismo musical apenas foi, no início, reação contra a incômoda
concorrência de numerosos regentes e cantores italianos nos teatros de
ópera de Viena e Berlim, Dresden e Munique. Essa concorrência italiana
foi quebrada pelos triunfos de Weber. Isto foi por volta de 1820. Mas
depois dessa data ainda não se sente nada de hegemonia alemã. Pois então,
o palco operístico alemão começou a ser dominado pelos franceses e por
compositores afrancesados como Meyerbeer. Contra isto reagiu o
nacionalista Wagner. Mas seu triunfo só ficou110 completo por volta de
1880, isto é, quando a chamada hegemonia alemã ia acabando. Na verdade,
ela nunca existiu.
Pode-se, ao contrário, afirmar que os próprios alemães fizeram tudo para
excluir possíveis hegemonias. Foram eles que chamaram a atenção para a
música de outras nações, além da tradicional trindade italiano-franco-
alemã. Descobriram a música escocesa e escandinava; procuraram
inspirações na Espanha. Os compositores austríacos, especialmente,
apoderam-se de motivos húngaros e eslavos. Esse exotismo também foi
adotado pelos outros. O russo Glinka, compositor da primeira ópera russa,
também escreveu a primeira abertura “em estilo espanhol”. O francês
Chabrier é autor de uma rapsódia España e de uma Fête polonaise. E o
espanholismo de Debussy? Exotismo também foi o magiarismo epidérmico
de Liszt, húngaro de nascimento, mas alemão-francês de formação e vida.
Enfim venceu, porém, o nacionalismo musical que os próprios alemães
tinham inspirado: com os grandes compositores russos, com os espanhóis
Albéniz, Granados e De Falla, com os tchecos Smetana, Dvorák e Janácek,
com o finlandês Sibelius, com o húngaro Bartók, com os brasileiros Villa-
Lobos e Camargo Guarnieri. O século XX, então, é a época do
nacionalismo musical por isso mesmo sem hegemonia desta ou daquela
nação.
É ou foi? Não perceberam o sentido da conversão do Stravinsky? O
mestre mais típico do nacionalismo musical russo converteu-se ao
cosmopolitismo até (em The Rake’s Progress) ao cosmopolitismo do século
XVIII e agora mesmo ao de Bach.
Hoje, não tem sentido falar em hegemonia musical. O verdadeiro fato é a
existência de dois pólos opostos, aos quais podemos dar, para defini-los
rapidamente, os nomes de Stravinsky e Schoenberg.
Não acredito poder finalizar melhor do que citando conceitos do maior
teórico da música moderna, Theodor W. Adorno, em sua obra Filosofia da
música nova (1949; infelizmente já esgotada e inacessível).111 Stravinsky
seria individualista, coerentemente reacionário: em sua arte, o indivíduo
isolado pretende desempenhar o papel do “Espirito objetivo” da nossa
época. A música de Schoenberg também está socialmente isolada, mas não
porque sendo a-social, e sim justamente porque reflete a desarmonia do
mundo contemporâneo.112 Diz Adorno que a música de Schoenberg tollit
peccata mundi113... Mas esta atitude, podemos acrescentar, não é a da
hegemonia; é a da humildade.
A origem austríaca de Carpeaux não interfere em sua partidarização em favor da tradição
germânica: – é praticamente consenso entre estudiosos que ela é inigualável em tamanho e
importância, em profundidade artística e em permanência nas salas de concerto. (D.M.)
No original, “Jean Combarieu” (grifamos). (N.E.)
Histoire de la musique (Paris, Colin, 1913-1919). (N.E.)
Seria o mesmo que contar a história da filosofia sem admitir a importância da filosofia
grega. (D.M.)
No original, “[...] contentando-se com XX”. (N.E.)
No original, “época de 1600 até 188”. (N.E.)
No original, “virou”. (N.E.)
Publicado no Brasil como Filosofia da nova música. (N.E.)
Roger Scruton, em Beleza (trad. Hugo Langone, São Paulo, É Realizações, 2013) e no
documentário Why Beauty Matters (Reino Unido, BBC, 2009), desfaz o mito de que as
vanguardas reflitam em suas obras o “horror do mundo”. Scruton argumenta que a beleza
foi suprimida da arte com o objetivo deliberado de enfear o mundo e que, embora a feiúra
não seja “invenção” da modernidade, ou seja, tenha sempre existido, nunca antes foi
realçada nem trazida ao primeiro plano. Ainda segundo o filósofo, até por volta de 1930 a
arte ainda tinha a função de consolar as dores da existência, justamente pelo cultivo da
beleza, que possibilita à humanidade o contato com o sagrado e o aspecto transcendente
da existência. Nesse sentido, uma arte que procura aproximar-se do cotidiano traz a
conseqüência de afastar o público da beleza e do sagrado simultaneamente, o que faz todo
sentido, vez que o objetivo declarado de “artistas” como Michel Duchamp sempre foi
afastar a humanidade de Deus, não só da beleza. (D.M.)
No latim, “que tira os pecados do mundo”, da oração Agnus Dei, qui tollis peccata mundi
[Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo], em referência à obra salvífica de Jesus
Cristo, o Cordeiro de Deus no livro do Apocalipse. Theodor W. Adorno, por sua vez, um
dos principais expoentes da Escola de Frankfurt, tinha fé verdadeiramente religiosa na
revolução marxista, para cuja concretização foi fundada a referida Escola e para cujo
propósito confluíram todos os esforços de Adorno e Horkheimer. A citação de Carpeaux é
bastante reveladora, pois demonstra como o marxismo e o hegelianismo – pressupostos do
pensamento frankfurtiano – são, no fundo, uma tentativa secularista de estabelecer o
paraíso na Terra, o que vai em sentido diametralmente oposto à Verdade Revelada e às
promessas de Nosso Senhor Jesus Cristo, em especial de que o Paraíso não é nem nunca
será neste mundo, mas junto de Deus na eternidade (D.M.)
O Canto do Violino
Diário do Paraná, 17 fev. 1957

N o livro de um erudito bispo francês sobre música litúrgica


encontrei a afirmação de que “a voz humana é o mais perfeito de
todos os instrumentos”.114 Com todo o respeito pela erudição e a alta
dignidade do autor, e sabendo bem que o bispo pensava no caso especial da
liturgia, é preciso, no entanto, responder: “Em geral, não é tanto assim”.
Quando Beethoven, escrevendo a Missa Solemnis, chegou às palavras:
“Benedictus qui venit in nomine Domini”, desesperava de exprimir o
sentido emocional desse texto pelo canto: introduziu um solo de violino. O
mais perfeito dos instrumentos musicais é o violino.115
A categoria (o rank, como dizem os ingleses) do violino é
extraordinariamente ampla: estende-se da alegria cerimoniosa dos
concertos de Bach até o monólogo (na Sonata opus 96) de Beethoven
consigo mesmo antes de entrar na noite da surdez completa e do estilo
abstrato; do lirismo popular das sonatas de Brahms até o hino fúnebre do
concerto de Alban Berg. Não se limita ao papel de solista, em concertos e
sonatas. O violino é o instrumento leader do quarteto: Quarteto do Largo e
Imperador de Haydn; os três Rasumovsky e os últimos de Beethoven; A morte
e a donzela, de Schubert; Saudades eslavas, de Dvorák; Êxtase, de Debussy;
Segredos, de Bartók. Enfim, em toda a música instrumental, de Haydn e
Mozart até Berlioz e Wagner, é o violino o instrumento base da orquestra.
Nem sempre os leigos se dão conta dessa ubiqüidade do violino.
Apreciam-no como instrumento do maior virtuosismo. Talvez haja nisso
recordações – resíduos do tempo em que Paganini enfeitiçou o mundo. É
um equívoco que também contribui para que as extraordinárias sonatas e
suítes para violino solo, de Bach, sobretudo a famosa Ciaccona da Partita n.º
2, sejam apreciadas como obras-primas de dificuldade técnica, consagrando
virtuoses-vencedores. Há, aliás, nessas vitórias irresistíveis dos grandes
violinistas, um elemento erótico. Até uma obra simples e amável como a
juvenil sonata Primavera, de Beethoven, quando tocada por Heifetz,
arrancou a uma senhora, certa vez, a exclamação: – “Tem razão o Papa,
proibindo o uso do violino nas igrejas” (o que já não corresponde, aliás, aos
fatos). Daí é só um passo para aquela interpretação bufa da Sonata de
Kreutzer, por Tolstói, como obra-prima de sedução erótica. O grande e
amusicalíssimo escritor russo não sabia que essa sua tese absurda foi a
última manifestação de uma tradição dos séculos.
Pois durante séculos o violino estava banido não somente das igrejas, mas
também das salas de música profana. Ainda no começo do século XVII
passava por instrumento vulgar, plebeu e obsceno, só digno para
acompanhar danças de camponeses, marujos e mulheres de vida fácil. É
claro que essa desconfiança contra o violino sobreviveu, mais que em outro
lugar, na igreja; e ainda hoje existem ascetas rigorosos que não foram
convencidos por aquele hino de alegria religiosa que é a Sonata para violino
do catolicíssimo César Franck. Na atração irresistível que o violino exerce,
vislumbra-se algo da força sedutora do demônio.
O som sonoro dos velhos violinos italianos – segredo de construção que
anda perdido para sempre – foi explicado, pelo folclore musical, como
presente do diabo ao qual Amati e Stradivari teriam vendido a alma. Do
primeiro grande compositor para o instrumento, Arcangelo Corelli, conta
o inglês Hawkins que, ao tocar o violino, teria apresentado todos os sinais
de possessão diabólica.116 Do maior violinista do século XVIII, Tartini,
contava-se (lenda por ele mesmo divulgada) que recebera no sonho pelo
próprio diabo o tema do último movimento de sua famosa sonata Trille du
Diable. Violinista também foi o grande Vivaldi, que teria sido excomungado
porque abandonou o altar durante a missa, no momento da
transubstanciação, para notar na sacristia um tema que lhe ocorrera.
Enfim, Paganini: suas inexplicáveis artes da mão esquerda; o boato de que
as teria aprendido na prisão, fazendo exercícios furiosos durante muitos
anos, quando expiando crimes sinistros; seu aspecto extraordinário de
homem esquelético – tudo isso fez ver, a espectadores ingênuos, a sombra
do demônio ao seu lado. Mas Heine, ao qual devemos a melhor descrição de
um recital de Paganini, já afirma ter realmente visto o demônio um homem
baixinho que não foi senão o empresário e chefe de publicidade do
virtuose.117 Desde então, a lenda entrou na decadência. Hoje, os grandes
violinistas são admirados e pagos como grandes cantores, sem intervenção
do diabo.
A comparação com os virtuoses do canto lembra nosso ponto de partida:
voz humana – voz do violino. A relação parece-me a mesma como a que
existe entre as paisagens na natureza e as paisagens nos quadros dos
grandes paisagistas. Durante séculos, o homem passava pela paisagem sem
perceber os encantos estéticos. Só os pintores nos ensinaram a beleza da
planície holandesa, dos Alpes remotos vistos de Veneza e dos arredores do
Paris. Só a pintura nos ensinou a ver a paisagem. Só o violino nos ensinou a
ouvir a voz humana.
Realmente esta não se ouviu até 1609, mais ou menos: a época da
polifonia só conhecia as massas sonoras dos coros, ignorando a voz isolada
do indivíduo. Esta descoberta foi feita em 1607, em Mântua, quando
Monteverde fez representar sua primeira ópera; ao mesmo tempo foram na
cidade vizinha de Cremona construídos os primeiros violinos modernos. E
pouco tempo depois da morte de Monteverde nasceu Corelli.
Mas o violino não se contentou com imitar e acompanhar a voz humana
isolada. Com base no violino elaborou Haydn a nova polifonia instrumental
do quarteto de cordas, fundamento da arte sinfônica de Beethoven e da arte
dramática de Wagner. E quando Stravinsky, inimigo da expressividade
romântica, excluiu de sua orquestra o violino, terminou uma época.118
Outra vez, em Alban Berg, em Bartók, o violino está hoje isolado. A
última obra de Bartók é mesmo uma sonata para violino solo, descendente
daquelas obras para violino solo de Bach. E agora compreendemos melhor
o canto polifônico da grande chaconne: não uma peça de virtuosismo técnico,
mas um hino religioso.
Joseph Pothier, Les Mélodies grégoriennes d’après la tradition (Tournay, Desclée, 1880), p.
155; disponível em:
https://archive.org/stream/lesmlodiesgr00poth#page/n3/mode/2up. (N.E.)
A tese de Carpeaux é de difícil sustentação: além de carro-chefe do repertório dos maiores
compositores de todos os tempos, a voz humana é inigualável em termos de
expressividade e empatia com os públicos de todos os povos e nações – muito embora o
violino também seja instrumento de grande penetração e sucesso no coração do grande
repertório sinfônico e camerístico ocidental, constatação pela qual Carpeaux formulou sua
ousada tese, comparando o violino à voz humana para em seguida engrandecê-lo como
instrumento superior a todos os demais. (D.M.)
Carpeaux deduz a possessão: John Hawkins, General History of the Science and Practice of
Music (2 vols., Londres, Novello, 1853), vol. 1, p. 675; disponível em:
https://books.google.com.br/books?id=BwcVAAAAQAAJ. (N.E.)
Heinrich Heine, Noites florentinas (trad. Marcelo Backes, Porto Alegre, Mercado Aberto,
1998). (N.E.)
Sua obra de maior sucesso, Le Sacre du printemps (“A sagração da primavera”), conta porém
com larga seção de cordas, em que o violino desempenha papel substancial na condução
das massas sonoras. (D.M.)
Stendhal e a música
Correio da Manhã, 23 fev. 1957

C erta vez, um amigo queixou-se, em conversa, das dificuldades que


encontra na leitura de Stendhal. Admira muito Le Rouge et le Noir119.
O romance combina bem com o retrato de Stendhal assim como o
apresentam os biógrafos e os críticos: um psicólogo de inédito poder de
penetração, desmascarando os pretextos morais e revelando o
maquiavelismo dos atores no palco político e no palco da família; um livre-
pensador revolucionário, no sentido do aristocrático século XVIII, que
antecipa o aristocratismo do livre-pensador Nietzsche. Mas depois
disseram àquele amigo: – a maior obra é La Chartreuse de Parme120. E neste
outro romance não reconheceu mais o Stendhal de Le Rouge et le Noir. Na
Chartreuse de Parme, Stendhal não teria analisado e iluminado, pelos raios-x
de sua psicologia, a realidade social; teria criado um mundo fantástico, uma
Itália totalmente irreal, país em que – as mais agudas observações
psicológicas não alteram o fato – se desenrola um inverossimílimo romance
de aventuras. A impressão definitiva da leitura foi de ordem musical: Tema
con variazioni121.
Os stendhalianos ortodoxos estariam escandalizados, embora a definição
da Chartreuse de Parme como romance de aventuras combine com a do
grande stendhaliano Léon Blum: “une autobiographie chimérique”.122 O
próprio Stendhal teria, porém, gostado daquele termo musical, usado para
caraterizar-lhe o supremo esforço literário.
Sobre Stendhal devant la musique123 existe um ensaio do professor A.
Caraccio, da Universidade de Grenoble: bem documentado, sem tentativa
de penetrar mais fundo no assunto. No resto, a crítica resolveu ignorar o
tema. As grandes obras sobre os romances de Stendhal nunca falam da
música, sendo que os livros do romancista sobre Haydn e Mozart124 e sobre
Rossini125 pertencem à época antes das obras-primas. Claude Roy, no
recente Stendhal par lui-même126, reúne textos de Stendhal sobre os mais
diversos assuntos; menos sobre música. É uma omissão imperdoável.
Pois Stendhal foi melômano apaixonado. Disse: “Musique, mes uniques
amours...”127 Escreveu aquelas duas obras sobre música, que também ocupa
muito espaço nos livros de viagens e na correspondência. Diz que os
momentos mais felizes da sua vida foram os que passou nos camarotes do
teatro da Scala, em Milão. E isto diz um homem cuja suprema aspiração era
a felicidade dos sensos, de todos os sensos. Como podem os críticos
ignorar-lhe esse aspecto da personalidade artística?
Há dois motivos: a pouca familiaridade dos críticos literários com a
música, especialmente com aquela música de que Stendhal gostava tanto; e
certo embaraço em face dos erros grosseiros do romancista com respeito à
arte tão amada.
O conhecimento da música não faz parte da cultura geral. Seria difícil
exigir tanto, sendo que a tão grande número de homens inteligentes e
cultos a Natureza negou o ouvido musical. Mas parecem existir, além disso,
certas incompatibilidades. A França é a nação mais literária do mundo; mas
entre os literatos são Baudelaire, Proust e Gide, homens musicais, as
exceções que confirmam a regra. O tipo antes é aquele para quem a música
foi “o mais suportável dos ruídos”. Até estetas como os irmãos Goncourt só
apreciavam marchas militares. A ignorância, em matéria de música, de
escritores que fizeram tanta questão de documentar-se bem, como Balzac e
Zola, é grotesca. Mas há aquelas e mais outras exceções: e estes críticos
ficam embaraçados em face dos evidentes erros do próprio Stendhal.
O romancista admirava Haydn; mas não deu o passo mais adiante, para
Beethoven, sobre o qual escreveu as seguintes palavras inacreditáveis: –
“Trop de bruit pour avoir du talent”.128 Stendhal amava Mozart. Mas
confundiu-lhe, levianamente, a arte com a de Rossini, cuja glória universal
comparou à de Napoleão. Preferiu, em geral, à música instrumental a
ópera, erro que é de todos os franceses de sua época, assim como os elogios
absurdos que prodigalizou a Meyerbeer. Mas não se pode dizer que seu
ponto de vista fosse o de um habitué do Théâtre des Italiens. Sua italofilia
musical era mais autêntica. Seu posto de observação das coisas musicais era
um camarote do Teatro della Scala. A música foi para ele, como para os
italianos do século XVIII (ao qual pertence espiritualmente), um assunto
social, de sociedade.129
É diletante em música. Na Vie de Haydn diz: “Nous parlons beaucoup de
musique, et rien dans notre éducation ne nous prépare à en juger”.130 Na
mocidade tomou lições de violino e clarineta; mais tarde, quando
subtenente em Bérgamo, repetiu a tentativa inútil de estudar esses dois
instrumentos. Tampouco conseguiu satisfazer à ambição de estudar canto.
No entanto, achou que só “le hasard a fait que j’ai cherché à noter les sons
de mon âme par des pages imprimées”.131
Os críticos não encontraram, depois, nas páginas impressas de Stendhal
aqueles sons musicais; porque para nós a música já é coisa diferente.
Somos, todos nós, querendo ou não, filhos e herdeiros do romantismo.
Pensando na música, não podemos deixar de pensar em Beethoven, em
quem Stendhal não encontrou talento. Sua compreensão da música não era
emocional, mas social. É a diferença toda entre os séculos XIX e XVIII. A
música, para ele, não era edificação quase religiosa nem divertimento de
domingo e feriados; mas enchia-lhe a vida.
Depois daqueles primeiros livros deixou de incluir conversas sobre
música, etc., nos seus romances. Até acredito que excluiu a música
deliberadamente de Le Rouge et le Noir, romance da vida francesa de 1820,
porque a música não era elemento da vida francesa de 1820: era
incompatível com a prosa da psicologia e com o maquiavelismo dos
arrivistas à maneira de Julien132. No romance italiano, na Chartreuse de
Parme, tampouco dá espaço ao diletantismo musical. Mas a música lhe
forneceu o princípio de composição da obra: “les sons de mon âme” em
“pages imprimées”.
Já não existe aquela aversão dos críticos literários contra a música. Ao
contrário, temos tido uma enchente de estudos do tipo: “A música em
Fulano”. Mas os termos continuam imprecisos: “estilo musical”, “atmosfera
musical”, essas observações não dizem grande coisa. No entanto, há
possibilidades de encontrar em obras literárias fenômenos que não só
metaforicamente se podem chamar: polifonia, contraponto, modulação, etc.
Não quero ir até o extremo de demonstrar a presença da sonata-forma na
composição da Chartreuse de Parme. Seria exagero. Mas pode-se falar, sim,
de tema con variazioni133 com respeito às aventuras de Fabrice; e de
polifonia134 dos assuntos políticos e eróticos; o estranho desfecho
eclesiástico não passa de cadenza135 na qual se resolvem, enfim, as últimas
dissonâncias.
Assim como a monarquia do ancien régime francês foi definida como
“absolutisme tempérée par des chansons”,136 assim o maquiavelismo
político-erótico, que caracteriza o ancien régime restabelecido em Parma, é
bem temperado pela música.137 É um caso único na literatura. O único
pendant que me ocorre, é mesmo musical: Le nozze di Figaro, de Mozart.
Ou, talvez, Così fan tutte; com alguns ritmos de opereta, naquele alto
sentido da palavra em que o velho papai Offenbach fez operetas, caricaturas
deliberadamente absurdas da sinistra e grotesca realidade.
A Itália da Chartreuse de Parme é um país de ópera; às vezes, de opereta. O
desfecho é sacro. Pois aos italianos não repugna ouvir belas árias durante a
missa.
Publicado no Brasil como O vermelho e o negro. (N.E.)
Publicado no Brasil como A cartuxa de Parma. (N.E.)
“Tema com variações”: forma clássica que consiste na invenção de sucessivas variações
acerca de um tema inicial. (D.M.)
Paráfrase de L’Oeuvre (9 vols., Paris, Michel, 1954-1972), vol. 2, pp. 503, 506. (N.E.)
Em Omaggio a Stendhal (Parma, La Bodoniana, 1950), pp. 130-152. (N.E.)
“Mozart”: publicado no Brasil como A vida de Mozart. (N.E.)
Publicado no Brasil como Vida de Rossini. (N.E.)
(Paris, Du Seuil, 1951). (N.E.)
Vie de Henri Brulard. (N.E.)
“Barulhento demais para ser talentoso” (em Vie de Rossini). (G.Z.)
A ópera ocupava lugar central na vida social italiana no século XIX e seus bastidores
eram objeto de grande curiosidade para o público, tal como hoje se observa no Brasil em
relação às produções de teledramaturgia. (D.M.)
“[Na França] falamos muito de música, mas nada em nossa educação nos prepara para
julgá-la.” Citação elíptica. (G.Z.)
“O acaso fez que eu procurasse anotar os sons da minha alma em páginas impressas” (em
Vie de Henry Brulard). (G.Z.)
O protagonista Julien Sorel. (N.E.)
Cf. nota 121. (D.M.)
Técnica musical que consiste na condução simultânea de melodias independentes e
harmônicas. Carpeaux emprega o termo musical para designar a sobreposição e a
condução simultânea de temas literários no romance. (D.M.)
Trecho solo de concerto musical ou ária vocal de caráter livre e improvisado em que o
intérprete demonstra todo o seu virtuosismo. (D.M.)
“Absolutismo temperado por canções” (citação de memória de Nicolas Chamfort, Caractères
et anecdotes). (G.Z.)
No original, “[...] em Parma, são ‘bem temperados’ pela música” (grifamos). (N.E.)
Romantismo de Beethoven
Correio da Manhã, 9 mar. 1957

É uma primeira 138


vez, salvo engano, que nesta fase deste suplemento sai
artigo sobre assunto musical. Será preciso justificá-lo? Desde os
tempos da Renascença, em que a música figurava obrigatoriamente no
programa educacional de quem pretendia ser homem culto, essa arte
deixou de fazer parte da chamada “cultura geral”. As “Histórias da
Civilização” para fins didáticos mencionam os nomes de estadistas,
eruditos, poetas, artistas plásticos, etc., mas não perdem palavra sobre
Bach. Isto especialmente a partir do começo do século XIX: do século de
Beethoven, em que a música conquistou uma ascendência sobre os espíritos
como nunca antes. A arte de Beethoven tem de ser reenquadrada entre os
fatores determinantes da evolução cultural, ao lado da literatura. Um
estudo do romantismo de Beethoven talvez possa contribuir para
esclarecer melhor o conceito do romantismo, de tanta importância em
terreno literário.
Pois toda a literatura moderna, inclusive os modernismos com seus fortes
impulsos românticos, reage desta ou daquela maneira contra o romantismo
do século XIX. A música moderna acompanha esse movimento: é anti-
romântica. E, enquanto considera Beethoven como o protótipo da música
do século passado, é antibeethoveniana.
Muita gente experimenta um choque quando fica sabendo que há
inimigos de Beethoven. Mas há vários, alegando os mais variados motivos,
opondo-lhe ora o neo-realismo musical dos Hindemith, Toch, etc., ora a
volta às formas da música barroca, bachiana ou pré-bachiana. Assim houve
no século XVIII reação contra Miguel Ângelo, cujo titanismo, comparável
ao de Beethoven, tinha dominado o barroco. Mas foi Miguel Ângelo artista
barroco? Nossos avós consideravam-no como auge da Renascença; hoje,
antes é chamado precursor do maneirismo. Dúvidas semelhantes existem
com respeito ao romantismo de Beethoven.
A crítica musical francesa e, dependente dela, a italiana, nunca tiveram
dúvidas: para os latinos, Beethoven é romântico. Assim ele aparece nos
manuais e nas manifestações, sobre música, de escritores franceses. A
atitude antibeethoveniana de alguns críticos franceses, especialmente da
escola de Debussy, está ligada ao anti-romantismo dos neoclassicistas e
nacionalistas à maneira de Maurras: o romantismo seria importação
estrangeira, germânica.
Realmente, os germânicos são ou foram genuinamente românticos.
Adoram os grandes compositores do romantismo: Schubert, Weber,
Schumann; depois, o neo-romântico Wagner. A todos estes o anti-
romantismo alemão dos anos de 1920 opôs o neo-realismo e o neobarroco
musicais; mas, não a Beethoven. Pois se o próprio Beethoven já tivesse sido
romântico, qual seria a novidade dos Schubert, Weber, Schumann,
Wagner? Estes foram românticos, sim; mas Beethoven, não.139 Ao
contrário, obras como a V e VII Sinfonia, os grandes concertos, os
quartetos Rasumovsky aparecem nos manuais da história musical alemã
como exemplos de classicismo.
É extremamente difícil decidir-se entre essas duas teses antagônicas. Se
considerarmos a evolução histórica – Beethoven; depois Schubert, Weber,
Schumann; depois Wagner – então a crítica alemã tem razão: comparado
com aqueles mestres do mais autêntico romantismo musical, Beethoven
não é romântico. Mas se considerarmos a essência da arte beethoveniana –
o subjetivismo radical da grande personalidade, manifestando-se pela
reintegração intensamente pessoal das formas tradicionais – então é
Beethoven romântico e até o maior de todos os românticos.
A diferença entre a tese francesa e a tese alemã é conseqüência de duas
evoluções históricas, divergentes. Na França do século XVIII a fase final do
classicismo é racionalista; irracionalista é, no fim do século, o pré-
romantismo especificamente francês de Rousseau, que deve pouca coisa aos
ingleses e nada aos alemães; de origem alemã só é, pelo menos em parte, o
romantismo católico dos anos de 1820 (primeira fase de Lamartine,
primeira fase de Victor Hugo); foi logo superado pelo romantismo liberal
(e, depois, revolucionário) em literatura, ao qual corresponde em música a
obra de Berlioz; e este já se julgava discípulo de Beethoven.
Na Alemanha corresponde, grosso modo falando, Haydn ao classicismo
francês do século XVIII. Certas veleidades românticas só se observam nos
movimentos lentos das suas últimas obras, como do quarteto denominado
Largo (op. 76, n.º 5), do Quarteto op.77, n.º 2; da sinfonia denominada London
(n.º 104): obras evidentemente influenciadas por Mozart. Pois no
classicíssimo Mozart não se pode deixar de perceber a veia romântica
(Concerto para piano em ré menor, K. 466; Trio com clarineta, K. 498; Quinteto
para cordas em sol menor, K. 516, etc., etc.); mas muito antes de o romantismo
ter dado o menor sinal de vida na Alemanha. Esse Mozart romântico,
compositor internacional aliás, corresponde ao pré-romantismo francês.
A influência de Mozart nas obras da mocidade de Beethoven é
estranhamente insignificante, sensível só em casos de importância menor;
ou limitando-se a elementos técnicos e formais (Trio para cordas, op. 3;
Concerto n.º 3 para piano e orquestra em dó menor, op. 37). O subjetivismo
tempestuoso do jovem Beethoven tem outras fontes.
Ao pré-romantismo corresponde na Alemanha o movimento Sturm und
Drang, revolucionário em matéria literária e em matéria social: exemplos
são o Werther, de Goethe, e Os bandoleiros, de Schiller. Depois, os dois
grandes poetas viraram neoclassicistas; época de Weimar. E contra esse
neoclassicismo rebelou-se, enfim, o romantismo alemão, medievalista,
católico ou catolizante, místico, fantástico e irônico no início, depois
deliberadamente popular. É o romantismo dos Brentano140, Tieck141,
Novalis e E.T.A. Hoffmann, dos Schubert, Weber, Schumann. Não é o
romantismo de Beethoven.
O pré-romantismo de Beethoven, entre 1795 e 1800 (Sonata para piano em
ré, op. 10, n.º 3; Sonata patética, op. 13; Quarteto op. 18, n.º 6), corresponde
exatamente ao Sturm und Drang de 1770, com aquele característico atraso
com que, conforme Nietzsche, a música costuma acompanhar a evolução
geral do Espírito. Depois, Beethoven é clássico como os weimarianos; do
seu pré ou ante-romantismo subsistem poucos resíduos (Abertura Coriolano;
Trio com piano em ré, op. 70, n.º 1). A fase final do mestre, a das últimas
sonatas para piano, da Missa Solemnis, da IX Sinfonia, dos últimos
quartetos, não tem nada que ver com romantismo nem com classicismo. É
música de um outro mundo.
Primeira conclusão: se o ouvido dos latinos percebe sons românticos em
todas as fases e obras de Beethoven, o motivo não é o romantismo inato do
alemão nem o classicismo instintivo dos franceses, mas o fato de que a
música é, intrinsecamente, uma arte mais romântica que a literatura. E a
música é para os alemães a preocupação principal; é para eles o que é a
literatura na França.
Segunda conclusão: o conceito do romantismo é relativo. Não tem a
mesma significação além e aquém do Reno. Muita coisa parece romântica a
um francês, que não se afigura assim a um alemão. Goethe, o grão-mestre
do classicismo alemão, também é classificado como romântico nos manuais
franceses...
Mas que adiantam as explicações históricas, se não fazem compreender o
presente, se não iluminam o caminho para o futuro? A influência de
Beethoven foi esmagadora; mas não fomentou o romantismo. Por isso os
movimentos antibeethovenianos, o neo-realismo musical e o neobarroco,
revelaram-se como becos sem saída; como tentativas de evitar decisões que
o próprio Beethoven já tinha superado. É a última fase beethoveniana que
indica o caminho para o futuro: quem enveredou por esse caminho, um
Bartók, podia continuar beethoveniano até o fim sem ficar esmagado pelo
mestre.
O suplemento Literatura. (N.E.)
Embora musicólogos o identifiquem como o primeiro dos românticos, Beethoven nunca
abandonou as formas estritamente clássicas, senão antes as elevou aos píncaros da
expressividade musical, fenômeno que é inclusive responsável pelo aparecimento das
novas formas do romantismo, porquanto fosse de senso comum que superar Beethoven no
manuseio das formas clássicas se tornara tarefa intransponível para a nova geração
romântica. (D.M.)
Clemens Brentano (1778-1842), poeta e romancista alemão. (N.E.)
Ludwig Tieck (1773-1853), romancista e dramaturgo alemão. (N.E.)
O futuro da música
Diário do Paraná, 5 mai. 1957

O repertório
público que freqüenta os concertos costuma queixar-se do
antiquado dos teatros de ópera: sempre Verdi, sempre
Puccini; quando as coisas melhoram, são interrompidos por Mozart e
Wagner. Realmente, é um repertório histórico, de museu.
Mas tem o público dos concertos o direito de reclamar? De que se
compõe seu repertório preferido? De Bach e Mozart até, digamos, Brahms
e Debussy. Só vive a música de entre 1700 e 1900. Também é um
repertório histórico. Prova: a maior ampliação desse repertório até hoje
não foi conquista da música moderna, mas a redescoberta e reconquista da
música barroca.
Existe um abismo entre os interesses do público, dos concertos e da
ópera igualmente, e, por outro lado, os interesses dos compositores
modernos. O perigo é evidente: a música poderá petrificar-se como uma
peça de museu.
Eis um dos assuntos principais do importante livro Music in American
Life142, de Jacques Barzun, crítico que entende igualmente bem de música,
de literatura e dos fenômenos sociais.
Barzun considera como um dos fatos fundamentais a democratização da
música, nos Estados Unidos, pelo disco e pelo rádio. Em 1954 os
americanos compraram discos long-play de música clássica no valor de
70.000.000 de dólares. Só da IX Sinfonia de Beethoven venderam-se
130.000 exemplares. Isto significa, evidentemente, forte comercialização da
vida musical, de modo que se podem empregar termos econômicos: apesar
de tudo, a oferta é maior que a procura. A música persegue o americano em
todos os momentos de sua vida e em todos os lugares. Um dia, acredita
Barzun, a gente se revoltará. A música antiga será radicalmente
abandonada; e então haverá lugar para a música nova; mas não pela abolição
da antiga, que seria uma catástrofe, a perda de um mundo. Os motivos
serão outros.
Para Barzun, crítico da vida musical americana, a história da música
começa por volta de 1900. Mas nenhum crítico da vida musical européia
poderá concordar com esse anacronismo. Nem aquele repertório histórico
data de 1900; o mal começou muito antes.
Paganini, Chopin e (em parte) Liszt foram os últimos grandes virtuoses
que tocavam, em concerto, principal ou exclusivamente suas próprias
obras, escritas para esse fim. Os grandes pianistas e violinistas de hoje só
têm repertório histórico. O único que fez composições próprias, Kreisler,
fantasiou-as de transcrições de música antiga. Mas até 1800 os virtuoses só
tocavam suas próprias obras, isto é, tinham de escrever permanentemente
obras novas para não cansar o público pela repetição das velhas.
Eis a mentalidade do século XVIII, do século musical por excelência: a
música é escrita para determinada ocasião, as mais das vezes para uma
única execução; depois, cai no esquecimento. Até uma obra tão excepcional
como a Missa de Benevoli para a consagração da catedral de Salzburgo
(1628), obra excepcional pela estrutura colossal e complicada (54 vozes
instrumentais, três coros, 16 solistas e órgão), só foi executada uma vez;
depois, dormiu nos arquivos durante três séculos. O desperdício de força
criadora foi imenso. Por isso, as cantatas de Bach não foram publicadas; por
isso, toda a música sacra e operística italiana do século XVIII foi
radicalmente esquecida.
Com uma única exceção que confirma a regra (o culto inglês pelos
oratórios de Haendel), ninguém teria no século XVIII pensado em repetir
periodicamente obras antigas.
A redescoberta da música antiga é um fato do romantismo de 1800:
E.T.A. Hoffmann e Thibaut143 entusiasmaram-se pela música sacra dos
velhos italianos; pouco depois, Mendelssohn inaugura o culto de Bach.
Salvou-se do esquecimento um mundo.
Sem dúvida: esse culto do passado é a raiz daquele mal. Mas na
“historificação” da vida musical também se encontra o remédio. O processo
então iniciado não admite limites. Os românticos de 1800 incorporaram
Bach e Pergolese ao repertório. Apesar de todos os esforços, não foi
possível reconquistar, para o repertório comum, as obras de Palestrina,
Orlandus Lassus e Victoria. Mas estamos hoje acostumados a ouvir
Monteverde e Schuetz, Vivaldi, Couperin e Domenico Scarlatti. A própria
música moderna está profundamente influenciada pela reconquista da
música barroca.
Essa reconquista é considerada, por muitos, como sinal de reacionarismo.
Thomas Mann, no Doutor Fausto, escreveu algumas páginas profundas
sobre o sentido reacionário desse barroquismo musical e suas relações com
a decadência da sociedade burguesa. Mas por que justamente o barroco
(que na música também compreende a primeira metade do século XVIII)?
Um dos “reconquistadores” foi Hindemith, então (por volta de 1925) o
líder da Gebrauchsmusik, isto é, da música escrita para determinados fins e
ocasiões. A volta para o barroco procura reconquistar também a função
vital da música.
O compositor dos séculos XVII e XVIII nunca escreveu obras pensando
na sua “eventual” execução no concerto ou no teatro. As óperas eram, todas
elas, encomendadas. Toda a outra música destinava-se para determinados e
bem definidos fins: para o uso litúrgico na igreja, para a diversão dos
monarcas na corte e da aristocracia nos palácios e castelos durante as
refeições, nos bailes e até para a caça. Os Concertos de Brandemburgo
também eram Gebrauchsmusik; e Bach não teria, provavelmente, escrito
cantatas se o seu contrato não obrigasse a tanto.
Mas o compositor moderno só escreve para edificar, ou para divertir um
público anônimo o possível, com a secreta esperança de suas obras ficarem,
um dia, incorporadas ao museu que é o repertório histórico.
O futuro da música reside na reconquista de funções vitais da arte. Mas
quando a música deixar, um dia, de servir à edificação e à diversão
indeterminadas, então poderá dispensar as cláusulas e cadências
harmoniosas que despedem em paz o ouvinte. Então o público também
redescobrirá a profunda tese de Nietzsche: que, em vez de ser a
consonância a regra e a dissonância a interrupção anormal, na verdade –
na arte e na vida – a dissonância é a regra e a consonância a exceção. Mas
este também é um dos princípios da música moderna, cujo dia terá assim
chegado.
(Garden City, N.Y., Doubleday, 1956). (N.E.)
Anton Friedrich Justus Thibaut (1772-1840), jurista e músico alemão. (N.E.)
Quarteto Húngaro (III)144
Correio da Manhã, 10 set. 1957

I mpedido de assistir à terceira noite do ciclo do Quarteto Húngaro145,


por exercer a alta função de membro do júri do I Concurso
Internacional de Piano, o responsável146 por esta seção confiou-me a
honrosa incumbência de registrar aquele notável acontecimento musical,
desfecho de um ciclo da maior importância.
A primeira palavra tem de ser de agradecimento à Pró Arte. Embora
estivesse cheio, pela terceira vez, o auditório da ABI, não se pode fugir à
observação de que o gosto pela arte camerística ainda não está
profundamente enraizado no Brasil. Nessas circunstâncias, a intervenção
da Pró Arte e de sua benemérita presidente merece a gratidão de todos os
que sabem o que é o quarteto: o meio de expressão preferido de mestres
como Haydn, Beethoven e Bartók. Sapienti sat.147
O Quarteto Húngaro já tinha, nas duas noites precedentes, superado
todas as expectativas. Não fora possível executar com maior elegância e, no
segundo movimento, com mais íntima emoção reservada o Quarteto op. 76,
n.º 5, chamado Quarteto do Largo, de Haydn; nem fazer sentir melhor a
força áspera do Quarteto n.º 2 de Bartók; nem as melancolias eslavas do
Quarteto op. 96 de Dvorák; nem a serenidade duramente conquistada do
Quarteto op. 51, n.º 2 de Brahms. Nem abrir os mistérios do último quarteto,
op. 135, de Beethoven. Parecia, sobretudo, insuperável a execução do
Quarteto de Debussy, capaz de comover e converter os últimos
impenetráveis à mestria do grande francês. No entanto, a terceira noite
manteve-se na mesma altura das outras.
O Quarteto em dó maior, K. 465, de Mozart, seria o mais alto exemplo de
impecável perfeição formal – que é em Mozart quase uma rotina – se não
fosse a introdução, na qual o mestre parece fugir, durante tantos e tantos
compassos, à obrigação de declarar a tonalidade, até resultarem aquelas
dissonâncias estridentes que deram o apelido à obra: Quarteto dissonante. Na
execução do Quarteto Húngaro tudo isso, a perfeição e a heresia, pareciam
normais; teria merecido o aplauso de Stravinsky que pede a um quarteto de
cordas a precisão de uma máquina de costura. Mas só assim é possível
desromantizar Mozart.
O mesmo estilo de execução ficaria errado em Schubert. Mas quem
esperaria dos quatro húngaros esse erro? Tocaram com a mais profunda
emoção romântica o Quarteto em ré menor, com seus acessos de energia
beethoveniana, com suas licenças harmônicas que, pelo menos em um
determinado lugar, antecipam o cromatismo de Tristão e Isolda, e com
aquelas variações sobre o “lied” A morte e a donzela que são o opus
metaphysicum de Schubert: ali, os quatro homens solitários debaixo da
lâmpada nos abrem, com as chaves dos seus instrumentos, os mistérios da
vida e da morte.
A surpresa da noite foi, porém, o Quarteto n.º 2, op. 10, de Zoltán Kodályi.
Não tem, decerto, a alta categoria dos quartetos do seu amigo e
colaborador Bartók. Mas à robustez de sua estrutura, aos acentos
dramáticos do Andante quase recitativo não foi possível resistir; e o Allegro
giocoso foi uma explosão de temperamento, sem transgredir jamais as
fronteiras dessa arte severa que é a música de câmara. Um assombro.
Temos lido, nos últimos tempos, criticas européias – francesas e belgas –
do mesmo ciclo de quartetos a que acabamos agora de assistir: com a
admiração misturou-se ligeira melancolia, inspirada pela opinião de que o
gênero “quarteto” já não corresponde às necessidades de expressão musical
da nossa época. Estaria fechado o ciclo.148
Fechado, sim; mas em outro sentido. O desenvolvimento do gênero foi
rigorosamente coerente: daquela introdução “herética” do Quarteto K. 465
de Mozart até as harmonias novas de Bartók. Observou Hegel que na
língua alemã a palavra aufheben tem duas acepções: a de abolir e a de
conservar; e que a abolição da tese e da antítese pela síntese significa sua
conservação, na síntese, para sempre. Nesse sentido, o modernista Bartók
julgava-se, com plena razão, o último e mais ortodoxo dos tradicionalistas.
A música de câmara é o santuário mais íntimo daquela arte que, como
nenhuma outra, é própria e característica da nossa civilização ocidental.
Corresponde às nossas necessidades de expressão, enquanto essa
civilização não tiver definitivamente naufragado. Todos os que
participaram daquelas três noites do Quarteto Húngaro – quem as
organizou, quem as executou e quem lhes assistiu – pertencem à communio
sanctorum dos mestres apresentados: herança pela qual a responsabilidade é
nossa.149
O número “III” designa a terceira representação do grupo musical ‘Quarteto Húngaro’.
(N.E.)
Grupo de renome mundial (1935-1972), à época deste ensaio formado por Zoltán Székely,
Alexandre Moszkowsky, Denes Koromzay e Gabor Magyar. (N.E.)
Eurico Nogueira França (1913-1992). Cf. nota 33. (N.E.)
“Para o sábio basta.” (G.Z.)
O quarteto de cordas continua a ser um dos gêneros mais praticados por compositores
sérios e foi um dos poucos que trouxe à luz boas obras a partir da segunda metade do
século XX. (D.M.)
Carpeaux tinha consciência de que a alta cultura musical irradia compreensão, qualidades
e dons para outras áreas da existência humana. Escrevendo em tom profético, sugere
poderoso antídoto ao declínio da cultura ocidental: preservar-se a elevada tradição do
gênero quarteto de cordas, um dos núcleos mais importantes da música erudita ocidental e
seu gênero mais intelectualizado. (D.M.)
História da música
Diário do Paraná, 15 set. 1957

A penas uns 50 compositores, e mesmo estes só com um número


restrito das suas obras, integram o repertório das nossas casas de
ópera e sala de concertos. Mas a história da música, em vez de explicar o
estranho fenômeno dessa seleção, registra centenas de nomes e muitos
milhares de obras. Confunde mais do que esclarece. Os manuais, ainda por
cima, começam com capítulos sobre a música chinesa e indiana, às quais
somos impenetráveis; e continuam com digressões eruditas sobre a perdida
música da Grécia antiga que – muito diferente da literatura e das obras
plásticas da Antiguidade – não sobrevive na nossa.
Limitamos, antes de tudo, o campo. A música, assim como hoje a
entendemos, é produto exclusivo da civilização ocidental (inclusive,
naturalmente, os eslavos da Europa oriental) e de uma época relativamente
curta: do século XIV até hoje. Dentro desses limites tem a historiografia
musical de explicar a evolução cujo resultado foi aquele pequeno número
de obras-primas. Mas a verdade é que não querem saber de evolução.
Alguns contentam-se com o fio cronológico. Mesmo assim... Uma das
histórias da música mais lidas (é de 1948 a oitava edição)150 é a do francês
Combarieu. Pois bem, no segundo volume da sua obra aparecem, por
motivo inexplicável, Rossini antes de Haydn e Mozart, e Weber e Schubert
antes do maior, Beethoven. No terceiro volume, o capítulo de maior
extensão chama-se “D’Auber à Berlioz”:151 Berlioz e Chopin são tratados
em pé de igualdade com os Auber e Halévy. Gounod ocupa espaço cinco
vezes maior que Brahms. É a história da música vista pelo binóculo de um
habitué da Ópera de Paris. Mesmo assim e apesar do nacionalismo
fervoroso do autor, a infeliz divisão da matéria em école française, école
italienne, etc., impede-o de salientar a influência de Carmen sobre Mascagni
e Leoncavallo.152 A obra é uma desgraça. Mas é mais desastrosa a
preponderância, em todos os livros dessa natureza, do elemento biográfico.
Vítimas prediletas são Beethoven e Chopin, como se a luta contra a surdez
e a melancolia do tísico fossem seus maiores méritos artísticos. É mais fácil
falar sobre pessoas do que sobre a arte. Ainda no recente livro de Luiz
Heitor153 sobre a evolução da música brasileira encontra o leitor muitas
histórias sobre Carlos Gomes e Villa-Lobos e muito pouco sobre o que lhes
caracteriza a arte.
De uma história da música não se pode esperar explicação completa do
aparecimento periódico de obras perfeitas. As pesquisas intermináveis
sobre a evolução dos gêneros – p.ex., sobre o nascimento da sinfonia de
Haydn, seja da música instrumental vienense, seja da música de orquestra
de Mannheim – só levaram à exumação de inúmeras obras interessantes e
completamente mortas. O que pedimos é outra coisa: situar historicamente
as obras vivas. Para tanto, invertemos a cronologia. Partimos da música
mais viva: da contemporânea.
À sensibilidade musical de um cidadão formado pelas audições de Mozart
e Beethoven a música chamada moderna só afigura horrivelmente
dissonante, contrária a leis eternas da harmonia. Mas a verdade histórica é
que os conceitos da dissonância e consonância não são imutáveis. A
aparente insensibilidade de Schoenberg à cacofonia é desenvolvimento
lógico do cromatismo de Tristão e Isolda e do sistema harmônico de
Debussy (enquanto nele se pode falar de sistema). É possível acompanhar
para trás esse fenômeno de aparente dissolução de Schubert: há
dissonâncias perfeitamente heterodoxas na introdução do Quarteto em dó
maior, K. 465, de Mozart; há todos os cromatismos possíveis em madrigais
como Tra pianto e duolo de Monteverde ou O voi che sospirate de Marenzio.
Uma obra como a Missa da Coroação (1367) de Machaut soa estranhamente
moderna; é, porém, de uma época na qual o inofensivo intervalo da Quarta
era proibido como dissonante.
No entanto o dodecafonismo de Schoenberg continua encontrando firme
resistência. Opõem-lhe, como o movimento mais significativo da
atualidade, o nacionalismo musical; música especificamente romena ou
eslovaca, mexicana ou chilena, islandesa ou croata. Mas não é a primeira
vez. Muito nacionalismo musical já se inspirou em Debussy e seus
discípulos, com a arrière-pensée do ter encontrado arma eficiente contra a
harmonia musical dos alemães; e esquecendo a origem do nacionalismo
musical no neo-romantismo alemão e no próprio romantismo de Weber.
Contrário é o erro de perspectiva histórica que considera a música como
arte especificamente romântica: só porque no romantismo (e em todos os
neo-romantismos) a tendência da literatura e a da música se encontraram.
Esse outro erro de perspectiva histórica é a conseqüência do fato de que a
história da música foi excluída da história da civilização, como se fosse
coisa inteiramente à parte. Adolfo Salazar quis remediar esse estado de
coisas; mas na sua obra La música en la sociedad europea154 contentou-se com
alguns capítulos sobre Renascença, Barroco, Romantismo, etc., intercalados
numa história da música como todas as outras. Assim aparece o chamado
classicismo vienense, de Haydn, Mozart e Beethoven, como pendant do
idealismo alemão de Kant, Goethe, Schiller e Hegel: as relações da música
de Haydn e Mozart com o iluminismo aristocrático do século XVIII não
ficam esclarecidas. Outros salientam, em Haydn, a herança barroca: esta é,
no caso, espiritualmente evidente; mas não musicalmente. Pois Haydn,
talvez o mais original dos compositores de todos os tempos, é um recomeço
depois de uma revolução de conseqüências desastrosas.
Alguns entre nós ficam satisfeitos por terem assistido à revolução
musical dos anos de 1910: Sacre du printemps155, primeiras obras atonais de
Schoenberg. Mas esta não foi tão radical como outras revoluções
precedentes: sobretudo a dos anos de 1760, dos primeiros quartetos e
sinfonias de Haydn. Sua nova polifonia instrumental tornou dispensável o
basso continuo156; e toda a música dos séculos XVII e XVIII, baseada no
basso continuo, inclusive a de Bach, devia submergir no esquecimento; assim
como a “revolução de Monteverde”, do começo do século XVII, tinha
enterrado a polifonia vocal de Palestrina e Victoria.
A história da música tem de distinguir nitidamente: a polifonia
instrumental de um quarteto de Haydn ou da abertura dos Mestres Cantores
não tem nada que ver com a polifonia vocal de uma missa de Palestrina; e
esta última, por sua vez, não tem nada que ver com a polifonia barroca dos
Concertos de Brandemburgo ou de uma cantata de Bach. A arte de Palestrina
pertence a um outro mundo de música; é, para nós, pré-histórica. Por isso, a
frase que se pode ler numa divulgada história brasileira da música –
“Palestrina é o Bach do catolicismo” – é absurda. Bach é compositor
barroco; mas é preciso continuar logo: “...não é só barroco”. A música do
século XVII foi inaugurada por aquela revolução antipolifônica de
Monteverde. A maior parte da música barroca é essencialmente
homofônica e, por isso, está tão irremediavelmente morta; só sobrevive um
descendente degenerado dela, a ópera italiana. Bach é, entre os
compositores do seu tempo, quase uma exceção: um polifonista de espírito
barroco. Pois a arte polifônica veio-lhe diretamente da música gótica da
qual ele é, nas obras para órgãos, o último representante. A música de Bach
é uma síntese de estilos; é Rococó em grande parte das obras para piano; e
antecipa evoluções posteriores em obras como o Concerto para piano em ré
menor e a Fantasia cromática. Não me consta que os historiadores já tenham
estudado essa multiplicidade estilística de Bach: é ela que o coloca no
centro da história da música, embora o impedisse de exercer influência
imediata na evolução posterior. Mas o que nos interessa, não é a própria
evolução: só nos importam os resultados, as obras permanentes.
Jules Combarieu, Histoire de la musique (3 vols., Paris, Colin). – Cf. “Hegemonia musical”,
nota 106. (N.E.)
Na verdade, a parte de maior extensão, composta de 11 capítulos. (N.E.)
As influências, interpolações e múltiplas determinações entre compositores e intérpretes
das mais variadas nacionalidades é bem mais sutil e matizada do que pode supor o método
historiográfico positivista, que procura cristalizar períodos históricos em bloco, com
datas-referência, o que na realidade sempre gera grotescas simplificações do processo
histórico. É evidente que o autor citado por Carpeaux é influenciado pela escola
sociológica positivista, muito em moda na França na época da publicação do referido
volume. (D.M.)
150 anos de música no Brasil (1800-1950) (Rio de Janeiro, José Olympio, 1956). (N.E.)
(4 vols., México, El Colegio de México, 1942-1946). (N.E.)
De Stravinsky. (N.E.)
“Baixo contínuo”: cf. nota 18. (D.M.)
Recordações de Mahler
Diário do Paraná, 6 out. 1957

P assada a casa dos 80 anos, Bruno Walter não levantará mais sua
batuta mágica para inspirar nova vida a partituras de Gluck, Haydn,
Mozart. Em compensação dá-nos de presente nova edição do seu livro
sobre seu mestre Gustav Mahler.157
Nascido em 1860 na Morávia, Mahler foi entre 1897 e 1907 diretor da
ópera então imperial de Viena e regente da Orquestra Filarmônica dessa
cidade. Saído desse posto de comando por graves conflitos pessoais que o
incompatibilizaram com a orquestra, os cantores e o público, assumiu, já
internacionalmente famoso, a regência na Metropolitan Opera em New
York. A doença incurável do coração mandou-o, em 1911, de volta para
Viena, onde morreu logo depois. Deixou, entre eles que o conheceram,
recordação que não se apagará nunca.
Mahler foi grande regente; afirmam que o maior de todos, opinião da
qual também foi Toscanini. No seu tempo o gramofone ainda não passou
de brinquedo, de modo que sua arte de reger está perdida para a
posteridade. Mas sua figura humana continua viva.
Foi o grande romântico E.T.A. Hoffmann que criou o personagem do
regente Kreisler158, apaixonado da música, afigurando-se louco aos que não
lhe compreendem o entusiasmo quase fanático, sofrendo profundamente
pelo antagonismo entre a Arte e o mundo da Prosa; humorista grotesco
que, desesperado, “acabou suicidando-se, cravando uma dissonância no
coração”. Gustav Mahler foi encarnação ou reencarnação desse
personagem Kreisler. Ouvi-o reger quando eu era menino: sem
compreender-lhe nada da arte, só vi um homem alto de magreza espantosa,
gesticulando como um possesso, fazendo as caretas mais burlescas; esse
Paganini da batuta parecia ora ator humorístico, ora louco demoníaco. Mas
não era ator nem louco. Apenas um servidor fanático de ideais inacessíveis.
Sua capacidade inédita de interpretação de obras alheias baseava-se em
imaginação criadora. Imaginava execuções tão perfeitas que não podia
deixar de irritar-se com a insuficiência material dos instrumentos e a
impaciência do material humano. Antes de uma estréia na ópera, antes de
um concerto, Mahler martirizou à gente. Os ensaios não terminavam: 20,
30, 60 vezes,159 durante noites inteiras, até cantoras desmaiarem e os
músicos se declararem em greve. O regente possesso sacrificou os outros e
a si mesmo. Criou inúmeros inimigos apaixonados e prejudicou de maneira
irremediável seu coração doente. Deu a vida pelo ideal inatingível da
execução perfeita. Mas aproximou-se dele na medida do seu gênio de
servidor fanático da arte. Criou um elenco e uma orquestra nos quais
sobrevive sua tradição até hoje: representações estupendas de Gluck,
Mozart, Wagner e uma tradição internacionalmente aceita da
representação de Fidelio160: em todas as casas de ópera do mundo segue-se-
lhe o exemplo de iluminar a sala, de repente, antes do último quadro da
obra para transformar o teatro em sala de concerto e executar a Abertura
Leonore n.º 3. Nesses momentos, onde quer que seja, o espírito de Gustav
Mahler está entre nós, deixando-nos ouvir a harmonia das esferas.
Não está tão onipresente a Obra que Mahler criou como compositor.
Grandes regentes como Bruno Walter e o holandês Willem Mengelberg
foram servidores fiéis dessa Obra. Em tempos recentes, depois de certo
eclipse, percebe-se sinais de interesse maior na Itália e na França, na
Inglaterra e Holanda e, naturalmente, na Áustria.161 Admiram-se as artes
extraordinárias de instrumentação, de manejo de orquestras enormes (e de
coros) nas gigantescas sinfonias de Mahler; sobretudo na VIII Sinfonia,
para a qual se precisa de 1.000 executantes, e que é na verdade uma grande
cantata em dois movimentos: o primeiro, sobre o hino Veni, creator Spiritus;
o segundo, sobre a última cena de Faust, II, de Goethe. Mas os críticos
continuam a duvidar: se o aparato enorme é justificado pelos resultados. A
música sinfônica de Mahler, que raramente pode dispensar a colaboração
da voz humana, parece pertencer ao tempo em que a IX Sinfonia de
Beethoven passava pelo ponto mais alto da música, coisa em que hoje já
não se acredita. Os textos escolhidos por Mahler, homem de vasta cultura,
incomum entre os músicos, sempre são da mais sublime qualidade literária;
mas os temas musicais de Mahler nem sempre correspondem às suas
ambições. Só raramente se impõem. Às vezes, embora elaborados com um
máximo de emoção e arte, são de trivialidade desconcertante. Em
momentos desses até um admirador como o compositor americano
Copland apenas fala em “sinceridade comovente”. Mas também há os
momentos que fazem pensar em Bruckner e no próprio Beethoven. Esse
homem das vitórias fulminantes e das derrotas irremediáveis, esse
“Kreisler” de gestos grotescos e aparência demoníaca foi uma figura
trágica.
Apesar de admirá-lo profundamente, não penso em compará-lo aos
maiores. Seria exagero imperdoável. Só por outro motivo convém citar, a
respeito de Mahler, o nome de Beethoven: este e aquele não eram só
compositores, só músicos. Suas ambições chegaram a ser extra ou
superartísticas. Nenhuma obra de Mahler suporta, nem de longe, a
comparação com as últimas sonatas ou os últimos quartetos de Beethoven.
Mas o ponto comum é este: também são grandes documentos humanos.
Mahler é homem de 1900, de 1910. Com emocionalismo saturado de
neurastenia participou das convulsões espirituais de sua época:
neocatolicismo (do qual ele se converteu), a psicanálise (do seu amigo e
vizinho de casa, Sigmund Freud), simbolismo e esteticismo requintados e
bastante decadentes, e o sentir emocionado com os sofrimentos do povo
humilde, numa época do socialismo já combativo mas ainda meio lírico.
Talvez fosse este um dos motivos para Mahler preferir tanto a poesia
popular, ornamentando-a com as artes mais sutis e mais violentas da
orquestração maciça e da polifonia instrumental. Às vezes os temas são
deliberadamente triviais numa tentativa de aproximar-se da simplicidade.
Recordações da infância também contribuíram para as misturas estranhas
de ritmos de marcha militar, de dança campesina e de ladainha de igreja de
aldeia.
A música de Mahler sempre é autobiográfica; nesse sentido, o discípulo
de Bruckner foi o último romântico. Mas superou seu romantismo inato. A
polifonia da VI e da IX Sinfonia aproxima-se dos limites da tonalidade.
Prenuncia a arte do seu amigo e conterrâneo Schoenberg. Mas só chegou a
ver de longe a terra da promissão.
A ambição titânica de Mahler é capaz de lembrar o demoníaco Andreas
Leverkuehn, o personagem de Thomas Mann. Apenas: o pacto, Mahler não
o tinha concluído com o diabo, mas com Deus. Sobre seu exemplar do Te
Deum de Bruckner, escreveu: “Cantado pelos anjos para as almas
atormentadas”.162 A conversão desse judeu descrente ao catolicismo foi
profundamente sincera. Mas não encontrou na nova fé a paz. Natureza
pascaliana, irresistivelmente atraído pelo culto de beleza da sua época que
se julgava rica e feliz; e adivinhando, como ela, um fim próximo e terrível.
Os extremos de afirmação estética163 da vida e do pessimismo oriental
encontram-se na última e maior das suas obras: o Cântico da Terra, sinfonia
cantada ou cantata profana sobre versos nostálgicos do poeta chinês
Litaipo164, começando com uma frenética canção, À miséria da vida, e
terminando com elegíaco canto de despedida: “Eu vou para longe e não
voltarei – mas eternas são as nuvens brancas, eternas, eternas”. Eis o tema
permanente da arte de Mahler. Sua II Sinfonia já terminara com um
veemente apelo: “Ressurgir, sim, ressurgir!” Desmentindo todas as
explorações biográfico-psicológicas, tinha escrito as comoventes Canções
sobre uma criança morta muitos anos antes de morrer sua filhinha. Sofreu de
verdadeiro “complexo da morte”. A doença do coração o matou cedo. Não
chegou a ouvir a primeira execução do Cântico da Terra, regida por Bruno
Walter. Foi seu réquiem. Na voz do contralto vibra a despedida: “...mas
eternas são as nuvens brancas, eternas, eternas”, e o violoncelo continua,
sonoro, o tema ad infinitum, como para toda a eternidade.
Gustav Mahler: Ein Porträt (nova ed., Berlim, Fischer, 1957). (N.E.)
No conto Kreisleriana. (N.E.)
Acrescentamos a palavra “vezes” a este trecho. (N.E.)
São de Beethoven a ópera Fidelio e a Abertura Leonore n.º 3 (citada a seguir), estudadas por
Carpeaux em “Cervantes e Beethoven”, p. XXX. (N.E.)
Hoje, porém, a popularidade da obra de Mahler é muito maior. Tanto entre conservadores
quanto entre “progressistas” do gosto musical, é praticamente unanimidade que sua obra
ocupe papel central no repertório sinfônico mundial. (D.M.)
Alma Mahler, Gustav Mahler: Erinnerungen und Briefe [... Cartas e memórias] (Amsterdam,
De Lange, 1940). Citação de memória. (N.E.)
No original, “estática”. (N.E.)
Também chamado Li Bai ou Li Po. (N.E.)
Miséria e esplendor dos músicos
Diário do Paraná, 8 dez. 1957

É posteridade,
crença comum que os grandes compositores, glorificados pela
sempre foram maltratados pelos seus contemporâneos.
Alguns teriam morrido de fome, outros de falta de compreensão, e o
cadáver de Mozart foi jogado na vala comum.
O mesmo também se acredita quanto aos poetas e pintores, e a imagem
sentimental do artista genial e infeliz, uma das heranças do romantismo,
tem pouco apoio nos fatos históricos. Justamente na música, o caso mais
comum é o do pleno reconhecimento do gênio em vida.
Haendel só tinha encontrado dificuldades ao querer impor aos ingleses o
gênero alheio da ópera italiana; mas seus Te Deums, Anthems e Oratórios
elevaram-no à categoria de porta-voz da Nação; enfim, foi sepultado na
Abadia de Westminster, em face dos túmulos dos reis da Inglaterra. Haydn
já estava famoso antes do convite triunfal para Londres, de tal modo que os
cônegos da longínqua cidade de Cádiz, na Espanha, lhe encomendaram
uma obra; quando da execução do oratório A Criação, em Viena, a
imperatriz da Áustria quebrou a rigorosa etiqueta espanhola, quase
abraçando o velho mestre. Todo mundo sabe que Beethoven foi
reconhecido em vida como o maior compositor do tempo e um dos maiores
de todos os tempos. Stendhal achava que só um homem era comparável ao
ídolo Napoleão, por também ter subjugado a Europa inteira: Rossini. Só
aos sucessos espetaculares dos compositores de jazz de hoje foi comparável
o triunfo do Freischuetz, de Weber. Mas é preciso lembrar a alta posição que
Chopin conquistou na sociedade francesa; e Mendelssohn na inglesa. Reis,
princesas e cardeais, eis o cortejo habitual de Liszt. Três doutorados
honoris causa, altas condecorações, considerável sucesso financeiro: assim
foi Brahms recompensado. Dvorák conquistou dois continentes. Verdi, de
milagrosa capacidade de superar-se, renascer musicalmente, conseguiu
impor ao público suas mudanças de estilo.165
Alguns outros tinham de lutar contra hostilidades apaixonadas até
vencer; mas venceram: Gluck, reformando a ópera; Schumann, impondo
um novo romantismo ao estilo pianístico; Wagner, destruindo a tradição
secular do teatro musical para fundar outra;166 César Franck, reconhecido
na velhice, em ambiente parisiense que não lhe compreendera a arte
sinfônica nem a religiosidade; até Bruckner e Mahler, tão hostilizados,
foram enfim reconhecidos; Debussy, combatido no começo acabou
idolatrado, como “Claude de France”.167 A glória de Hugo Wolf foi póstuma
só porque o gênio afundou tão cedo na loucura. Se Alban Berg vivesse um
pouco mais do que os 50 anos que o destino lhe concedeu, teria assistido ao
sucesso mundial do seu Wozzeck. E Schubert, cuja biografia foi tão
lamentavelmente sentimentalizada? Morreu com 31 anos, numa idade em
que o maior gênio não pode esperar pleno reconhecimento; no entanto, sua
fama já tinha atravessado o perímetro urbano de Viena; na mesa do falecido
encontraram-se cartas de editores de Leipzig e Paris.
Apesar de todos esses fatos, aquela tese romântica do gênio
incompreendido continua tenazmente. Porque os casos contrários à regra
que acabo de exemplificar são poucos, são menos numerosos do que em
qualquer outra arte, mas são dos mais importantes: é a incompreensão
total e a miséria que foram o destino de Mozart, Berlioz e Schoenberg; e a
arte de Bach precisava ser ressuscitada.
São problemas especiais, que podem ser resolvidos sem fazer concessões
àquele romantismo biográfico-sentimental.
A música é uma arte especificamente iterativa, repetitiva. Nenhuma obra
de arte literária poderíamos reler tantas vezes com prazer como podemos
reouvir um quarteto ou uma sonata. Ao contrário: o prazer será cada vez
maior, a compreensão mais profunda. Mas, por outro lado, precisamos
ouvir mais que uma vez uma obra nova para conhecê-la realmente. Daí
certas dificuldades iniciais que obras de feitura inusitada encontram.
Beethoven já estava no auge da sua glória quando o Concerto para piano n.º 5
e a VII Sinfonia foram recebidos com estranheza. O Barbiere di Siviglia foi
vaiado quando da estréia em Roma, em 1816, assim como La Traviata, em
1853, em Veneza; mas o triunfo começou logo depois. Pelléas et Mélisande,
em 1902, foi vaiado durante o ensaio geral e venceu, 24 horas depois, na
estréia. No Doutor Fausto, de Thomas Mann, um empresário parodia o
verso de Goethe, dizendo: “No início foi o escândalo”.
Realmente, a história da música é, em parte, uma chronique scandaleuse,
uma história de públicos que na sala de concerto ou no teatro de ópera se
revoltam contra obras novas. Mas há escândalos e escândalos. Tannhaeuser
foi vaiado em Paris, em 1861, porque o público das frisas estava
acostumado a ver, no segundo ato, um ballet, e Wagner não podia fazer
dançar os seus menestréis. Outros escândalos foram de natureza política: o
público de Leipzig vaiou em 1859 o primeiro Concerto para piano de
Brahms, porque o compositor era conhecido como adversário de Wagner;
em compensação, o público vienense, fortemente brahmsiano, vaiou em
1877 a III Sinfonia do wagneriano Bruckner. Escândalos autênticos porém,
dirigidos contra a própria música, foram aqueles que em 1913, em Paris,
recebeu o Sacre du printemps, de Stravinsky; e os sucessivos escândalos que
acompanharam toda a carreira de Schoenberg em Viena; sobretudo o
barulho imenso que em 1913 obrigou os músicos a interromper a execução
da Sinfonia de câmara. Temos o direito de indignar-nos? Consolo duvidoso
é o fato de que houve mais outros escândalos silenciosos e maiores: quando
os originais dos Concertos do Brandemburgo foram vendidos como papel de
embrulho e quando Wilhelm Friedemann Bach, o filho mais velho do
Kantor168, vendeu também assim uma centena de cantatas, perdidas para
sempre, para comprar cachaça.
Também é possível e compreensível o caso contrário, do gênio que fica
incompreendido porque corresponde demais ao gosto da época. Depois da
sensação que Mozart fizera na Europa inteira como menino-prodígio de
cinco anos, esperavam-se dele feitos revolucionários; em vez disso, a música
da maturidade de Mozart é a expressão mais perfeita da mentalidade
musical do século XVIII. E os contemporâneos ficaram decepcionados,
confundindo Mozart com um Cimarosa.
A chave do problema não se encontra, nesses casos, na obra mas no
público. Não pode solucioná-lo a pesquisa biográfica, mas só uma disciplina
até agora pouco cultivada: a sociologia da música. Ao estudo sociológico
dos fatos da história da música não será difícil explicar as derrotas
sucessivas de Berlioz: um compositor essencialmente sinfônico estava
perdido num ambiente que só conhecia e só quis reconhecer a ópera: o
ambiente de Paris em 1850, em 1860.
Mas não convém confundir sociologia com política. A música não teve
sorte, pelo menos em nosso tempo, com nenhum regime político.
Hindemith foi exilado da Alemanha nazista. Prokofiev estava sujeito a
humilhações indignas na Rússia soviética. A Atlântida de De Falla não
podia ser executada na Espanha franquista. E nos Estados Unidos
democráticos teve Bartók, não molestado por ninguém, o direito de morrer
na miséria.
São casos por assim dizer acidentais. Só resta um: o de Schoenberg. Não
se pode duvidar de sua importância como uma das grandes inteligências-
líderes deste século. Pode-se duvidar, sim, de sua espontaneidade criadora,
e concluir que sua maior obra foi seu discípulo Alban Berg. Mas não é por
esses motivos que o condenaram e condenam. Talvez a música de nenhum
outro compositor tenha menor semelhança e afinidade com a mozartiana
do que a de Schoenberg: no entanto, seu caso lembra muito o de Mozart. A
música de Schoenberg foi e continua sendo condenada porque reflete
fielmente demais a época. Conseguiu ele sobrepor-se aos elementos da
disciplina rigorosa do sistema dodecafônico.169 Mas não dissimula, não
esconde a presença do caos. Sua arte é insuportável aos contemporâneos
porque lhes diz a verdade. Conforme a bela expressão de T. W. Adorno, “a
música de Schoenberg tollit peccata mundi”.170
Verdi conseguiu mais do que isso: – foi um dos maiores responsáveis pelo processo de
unificação da Itália, culminado em 1871 por Garibaldi e as tropas sob o seu comando.
(D.M.)
Wagner exerceu notável controle psíquico sobre Luís II da Baviera, influência a que se
opunha a corte e que resultou na deposição e morte prematura do Rei. (D.M.)
Ainda hoje Debussy é a maior referência em música genuinamente francesa. (D.M.)
Na tradição luterana, cargo eclesiástico eminente nas cidades, pelo qual lideravam-se
cantores e instrumentistas e ensinava-se música. (N.E.)
No original, “Conseguiu ele sobrepor aos elementos ...” (grifamos). (N.E.)
Neste ponto, Carpeaux é levado ao erro por Adorno, que também influenciou a própria
teoria dodecafônica de Schoenberg ao estimular a negatividade destrutiva da tonalidade e
das formas tradicionais, com o objetivo deliberado de afastar o público das salas de
concerto. A música mais radical de Schoenberg não é a expressão da verdade de um
tempo, mas o público é que a rechaçou por se afastar de seu universo e de suas aspirações,
disposição que Adorno e a Escola de Frankfurt consideravam essencial, como pretexto
para incriminar o capitalismo, culpado de todos os males da humanidade juntamente com
a cultura ocidental. É fácil compreender as motivações dessa luta estética sutil se tivermos
em vista que o objetivo primordial da Escola de Frankfurt era destruir ambos, isto é, a
cultura ocidental e o capitalismo. Para servir à “revolução social” (a revolução do gosto
musical seria apenas uma etapa e força subsidiária), a arte musical deveria se tornar
propaganda ideológica e se esvaziar de seus conteúdos artísticos. Cf. Theodor W. Adorno,
Filosofia da nova música (trad. de Magda França, 3ª ed., São Paulo, Perspectiva, 2014).
(D.M.)
O estilo de Gluck
Diário do Paraná, 19 jan. 1958

C om o disco têm popularidade entre nós todos os grandes mestres


que ainda não estiveram tão queridos e conhecidos como Beethoven
e Chopin: os Bach e Brahms, Haydn, os Schumann, até um mestre só há
pouco ressuscitado como Vivaldi.171 Mas o disco não conseguiu popularizar
a música de Gluck. Sua arte precisa do palco; e, com a rara exceção de
Orfeo ed Euridice, suas óperas não são representadas entre nós; nem no
mundo inteiro. Só lhe guarda fidelidade a ópera de Paris.
É uma fidelidade enobrecedora, mas um pouco paradoxal. Pois Gluck,
longe de ser francês, foi um alemão gordo, às vezes grosseiro, com acessos
de sentimentalismo choroso. Sua cultura, que não era pouca, também era
alemã, a desse ex-estudante da Universidade de Praga e compositor da
corte de Viena, onde repousa, aliás, seus restos mortais. No entanto, os
franceses consideram o autor da Iphigénie en Aulide e Iphigénie en Tauride
como francês, como um dos maiores compositores da França. Pronunciam
“Glick”.
Esse paradoxo lembra-me uma história que o mestre e amigo Aurélio
Buarque de Holanda costuma contar de maneira mais engraçada, história
de um improvisado “professor” de francês em Maceió, pobre diabo
completamente inculto: que chamava os exercícios primários de “filosofia
portuguesa” e os exercícios mais difíceis, de “filosofia francesa”. Eis a regra
para a pronúncia do nome daquele grande mestre: conforme a filosofia
francesa, “Glick”, conforme a filosofia alemã, “Gluck”.
A música do século XVIII não conhecia fronteiras nacionais. O próprio
Bach é meio italiano na música instrumental, enquanto Steffani em
Hannover e Caldara em Viena passavam por alemães. Mozart é alemão e
italiano ao mesmo tempo; e, se tivesse ficado em Paris, também seria
francês. Gluck aprendeu a arte da ópera na Itália, de onde trouxe o
conhecimento perfeito da língua de Metastasio e a pequena vaidade de
ostentar o título de cavaleiro de uma condecoração papal. Mas foi em
Viena, certamente sob a influência da nova música instrumental de Haydn,
que Gluck começou a reformar a ópera, escrevendo Orfeo ed Euridice, a
mais comovente de todas as elegias musicais, e Alceste, a solene invocação
das “Divinités du Styx, ministres de la mort”.172 E à plenitude do seu gênio
chegou, com Iphigénie en Aulide e Iphigénie en Tauride, em Paris. Foi a
França que entronizou no Parnaso da imortalidade o mestre “Glick”.
Sua música é a mais nobre que jamais se ouviu no palco dos teatros de
ópera. E, no entanto, tão raramente executada. Não mereceria destino
póstumo melhor aquele que subordinou a música à poesia dramática, o
precursor de Wagner? Talvez não seja precursor de nada e de ninguém,
mas o último representante de uma nobreza, mais de espírito que de
sangue, que soçobrou nas tempestades da Revolução Francesa. Gluck
morreu em 1787, antes da Revolução. Mas ninguém lhe pudera descobrir
traços do estilo Rococó. Que têm suas Eurídices, Alcestes, Ifigênias com as
damas do palacete de Trianon? Mas quem diz que a Música esteja tão
sincronizada com as outras artes? Nietzsche, ao contrário, acreditava que a
música sempre chega atrasada, adotando o estilo que as outras artes já
acabam de abandonar. Também parece esta a tese de Richard Benz, que
define Gluck como o último mestre da música barroca.173 Seu teatro seria
intimamente religioso. Nas suas tragédias musicais estaria, pela última vez,
viva a Antiguidade grega, antes de transformar-se em museu de figuras de
gesso para o uso escolar do classicismo.
É uma tese nova. Pois Gluck não nos parecia ter nada com o barroco.
Foram suas obras que mataram a ópera barroca de Alessandro Scarlatti e
Haendel. Sua arte nos parece de serena simplicidade grega. Não a
sentiram, porém, assim, os contemporâneos. Rousseau, ao ouvir a primeira
Iphigénie, chorou copiosamente. O maior crítico musical daquela época,
Heinse174, achou a arte de “Gluck” “tempestuosa, sacudindo as
profundidades da alma”. Ainda não se usava, então, o termo ‘romântico’.
Mas menos de 30 anos depois da sua morte escreveu o grande romântico
E.T.A. Hoffmann, em 1809, o conto que melhor define a personalidade do
mestre desaparecido: O cavaleiro Gluck:
Num parque de diversões em Berlim conheceu Hoffmann um velho algo
esquisito, vestido conforme a moda do século passado, que se queixava da
execução lamentável de músicas clássicas pelas orquestras populares; mas
nas casas de ópera também maltratariam as obras do grande Gluck, porque
“não compreendem as melodias que pertencem ao reino dos sonhos e que
não se deve roubar impunemente”. Ao anoitecer, o velho levou o poeta para
sua casa, aparentemente abandonada. Sentou ao piano. Tocou de cor as
partituras de óperas inteiras de Gluck, introduzindo variantes engenhosas,
admiráveis. De repente se levantou; foi, com a vela, para outro quarto,
deixando o poeta na escuridão. Durante longos minutos ansiosos, sentiu
Hoffmann os frêmitos da morte, do reino do Styx que Alceste invoca –
quando o velho voltou em trajes de gala do século XVIII, ostentando
vistosa condecoração papal; levando a vela, disse com gravidade solene e
sorriso enigmático: “Sou o cavaleiro Gluck.”
Esse conto, um dos mais admiráveis da literatura universal, já foi muito
discutido. Teria Hoffmann pensado em apresentar-nos um espetáculo ou
um louco? Não importa. Importa a interpretação romântica de Gluck,
compositor de sons misteriosos que lhe chegam de reinos transcendentais
além do rio que separa os vivos e os mortos. Um poeta romântico no palco
da ópera: o precursor de Wagner, que tanto deve às idéias de Hoffmann; e
às idéias de Gluck.
Mas essa linha que sempre se costuma traçar, de Gluck a Wagner,
falsifica a perspectiva histórica. As intenções dramatúrgicas podem ter sido
semelhantes. A música aristocrática e grecizante de Gluck não tem nada
com a arte romântica e teutônica de Wagner. As analogias entre o
romantismo e o barroco também são, pelo menos no setor da música,
enganadoras. Restabelecemos os fatos musicais.
Gluck parecia aos contemporâneos “tempestuoso” porque alcançou
alturas da expressão dramática que a ópera barroca evitara
deliberadamente. Basta ouvir, antes de uma ópera de Gluck, o Giulio Cesare
ou a Rodelinda, de Haendel, para verificar a presença de um novo ritmo, de
uma nova retórica. Mas a forma dessa retórica é a da nova arte
instrumental de Haydn. Em Gluck, a orquestração inclui, pela primeira
vez, as vozes como se fossem partes do tecido sinfônico.175 O crítico italiano
Rossi-Doria nos revelou que os três atos de Orfeo ed Euridice são
construídos como três movimentos de uma sinfonia.176 O princípio
sinfônico dos temas contrastantes domina a “planta” de Iphigénie en
Tauride: a vitória da nobre humanidade sobre os instintos bárbaros, da luz
sobre a escuridão. Do palco de ópera, Gluck devia expulsar, pela sua
reforma, as vaidades dos cantores, as estupidezes dos libretistas para
transformá-lo em templo: “Introite, nam et hic dii sunt.”177
Essa disciplina sinfônica de Gluck corresponde à arte arquitetônica dos
seus modelos literários: Corneille e Racine. O erro de Benz foi o de,
esquecendo-se do cosmopolitismo musical do século XVIII, considerar a
arte de Gluck só como fenômeno da história do espírito alemão. Visto
assim, o classicismo de Gluck é, de fato, radicalmente diferente do
grecismo algo artificial de Weimar. Mas Gluck não pertence, todo, à
Alemanha. Foi um cavaleiro italiano e um compositor austríaco; e a pátria
das suas maiores obras é a França. Até hoje. Da arte de Gluck há tão pouco
na de Wagner como nas “grandes” óperas de Meyerbeer. Há, sim, uma
sombra do seu gênio nos Troyens à Carthage, de Berlioz. E o verdadeiro
sucessor de Gluck, poeta em sonho no palco, é, com gestos menos solenes e
em atmosfera mais íntima, o autor de Pelléas et Mélisande: Debussy. Convém
mesmo pronunciar “Glick”. Filosofia francesa.
Benz barroquizou o mestre, assim como Hoffmann o romantizara. Mas a
imensa inteligência musical deste último definiu-o bem: como espectro de
tempos idos, mais nobres. O quarto escuro em que Hoffmann, batendo-lhe
o coração, espera a volta do gênio luminoso, é o mesmo lugar das
“Divinités du Styx, ministres de la mort”. A vela acesa ilumina um templo:
Ifigênia, procurando na alma o país dos gregos.
Completamos o início da frase com as palavras: “Com o”. (N.E.)
“Divindades do Estige, ministros da morte”. (G.Z.)
Deutsches Barock (Stuttgart, Reclam, 1949). (N.E.)
Johan Jakob Wilhelm Heinse (1749-1803). (N.E.)
Qualidade evidente na ópera Alceste. (D.M.)
Gastone Rossi-Doria, Enciclopedia italiana di scienze, lettere ed arti (36 vols., Instituto G.
Treccani, Roma, 1929-1937), vol. 25, s.v. ‘Opera’; verbete disponível em:
http://www.treccani.it/enciclopedia/opera_(Enciclopedia-Italiana)/. (N.E.)
“Entrai, que aqui também há deuses.” (G.Z.)
Lista de músicos
ALBÉNIZ, Isaac [I. Manuel Francisco A. y Pascual] (Camprodon, 1860 – Cambo-les-
Bains, 1909), espanhol, romântico nacionalista.
AUBER, Daniel-François-Esprit (Caen, 1782 – Paris, 1871), francês, romântico.
AURIC, Georges (Montpellier, 1899 – Paris, 1983), francês, neoclássico, integrante do
“grupo dos seis” parisiense.
BACH, Carl Philipp Emanuel (Weimar, 1714 – Hamburgo, 1788), alemão, clássico.
BACH, Johann Sebastian (Eisenach, 1685 – Leipzig, 1750), alemão, barroco.
BACH, Wilhelm Friedemann (Weimar, 1710 – Berlim, 1784), alemão, barroco.
BALFE, Michael William (Dublin, 1808 – Hertfordshire, 1870), irlandês, romântico.
BARTÓK, Béla [B. Viktor János B.] (Sânnicolau Mare, 1881 – Nova Iorque, 1945),
húngaro, modernista.
BEETHOVEN, Ludwig van (Bonn, 1770 – Viena, 1827), alemão; romântico, clássico.
BENEVOLI, Orazio (Roma, 1602-1672), italiano, barroco.
BERG, Alban (Viena, 1885-1935), austríaco; expressionista, dodecafonista.
BERLIOZ, Hector (La Côte-Saint-André, 1803 – Paris, 1869), francês, romântico.
BIZET, Georges [Alexandre César Leopold B.] (Paris, 1838 – Bougival, 1875), francês,
romântico.
BOITO, Arrigo [Enrico Giuseppe Giovanni B.] (Pádua, 1842 – Milão, 1918), italiano,
libretista.
BRAHMS, Johannes (Hamburgo, 1833 – Viena, 1897), alemão, romântico.
BRUCKNER, Anton (Ansfelden, 1824 – Viena, 1896), austríaco, romântico.
CALDARA, Antonio (Veneza, 1670 – Viena, 1736), italiano, barroco.
CHABRIER, Emmanuel [Alexis E. C.] (Ambert, 1841 – Paris, 1894), francês, romântico.
CHÁVEZ, Carlos [C. Antonio de Padua C. y Ramirez] (Poplota, 1899 – Cidade do
México, 1978), mexicano; modernista, neoclássico.
CHOPIN, Frédéric [F. François C.] (Zelazowa Wola, 1810 – Paris, 1849), francês,
romântico.
CIMAROSA, Domenico (Aversa, 1749 – Veneza, 1801), italiano, clássico.
COPLAND, Aaron (Nova Iorque, 1900 – Mount Pleasant, 1990), americano; modernista,
neoclássico.
CORELLI, Arcangelo (Fusignano, 1653 – Roma, 1713), italiano, barroco.
COUPERIN, François (Paris, 1668-1733), francês, barroco.
DA PONTE, Lorenzo (Vittorio Veneto, 1749 – Nova Iorque, 1838), italiano, libretista.
DE FALLA, Manuel [M. D. F. y Matheu] (Cádiz, 1876 – Alta Gracia, 1946), espanhol;
modernista, nacionalista pós-romântico.
DE PRÉS, Josquin (c. 1450-1521), francês, mestre franco-flamengo.
DEBUSSY, Claude-Achille (Saint-Germain-en-Laye, 1862 – Paris, 1918), francês;
modernista, simbolista, impressionista.
DUREY, Louis (Paris, 1888 – Saint-Tropez, 1979), francês; modernista, neoclássico,
integrante do “grupo dos seis” parisiense.
DVORÁK, Antonín [A. Leopold D.] (Nelahozeves, 1841 – Praga, 1904), tcheco,
romântico.
FRANCK, César [C.-Auguste-Jean-Guillaume-Hubert F.] (Liège, 1822 – Paris, 1890),
francês, romântico pré-impressionista.
GERSHWIN, George (Nova Iorque, 1898 – Hollywood, 1937), americano; modernista,
neoclássico, jazzista.
GILLE, Philippe (Paris, 1831-1901), francês, libretista.
GLINKA, Mikhael Ivanovitch (Novospaski, 1804 – Berlim, 1857), russo, romântico.
GLUCK, Willibald [Christoph W. Ritter von G.] (Erasbach, 1714 – Viena, 1787), alemão,
clássico.
GOMES, Carlos [Antônio C. G.] (Campinas, 1836 – Belém, 1896), brasileiro, romântico
operista.
GOUNOD, Charles [C.-François G.] (Paris, 1818 – Saint-Cloud, 1893), francês,
romântico.
GRANADOS, Enrique [E. G. y Campiña] (Lérida, 1867 – [Canal da Mancha], 1916),
espanhol; nacionalista, romântico tardio.
GRIEG, Edvard [E. Hagerup G.] (Bergen, 1843-1907), norueguês, romântico
nacionalista.
GUARNIERI, Camargo [Mozart C. G.] (Tietê, 1907 – São Paulo, 1993), brasileiro;
modernista, neoclássico.
HAENDEL, George Friedrich (Halle an der Saale, 1685 – Londres, 1759), alemão,
barroco.
HALÉVY, Fromental [Jacques-François-F.-Elie H.] (Paris, 1799 – Nice, 1862), francês,
romântico.
HAYDN, Joseph [Franz J. H.] (Rohrau, 1732 – Viena, 1809), austríaco, clássico.
HILLER, Johann Adam (Osiek Luzycki, 1728 – Leipzig, 1804), alemão, romântico.
HINDEMITH, Paul (Frankfurt, 1895-1963), alemão, neoclássico.
HOFFMANN, E. T. A. [Ernst Theodor Amadeus H.] (Königsberg, 1776 – Berlim,
1822), alemão, romântico.
HONEGGER, Arthur (Le Havre, 1892 – Paris, 1955), franco-suíço; neoclássico,
neobarroco, integrante do “grupo dos seis” parisiense.
JANÁCEK, Leos (Hukvaldy, 1854 – Ostrava, 1928), tcheco, operista nacionalista e
modernista.
KODÁLYI, Zoltán (Kecskemét, 1882 – Budapeste, 1967), húngaro; folclorista,
nacionalista, modernista.
KREISLER, Fritz (Viena, 1875 – Nova Iorque, 1962), austríaco, neoclássico.
KRENEK, Ernst (Viena, 1900 – Palm Springs, 1991), austro-americano, dodecafonista.
LASSUS, Orlandus (Roland de Latre) (Mons, c. 1530 – Munique, 1594), holandês; Ars
Nova, polifonia medieval.
LEONCAVALLO, Ruggiero (Nápoles, 1858 – Montecatini Terme, 1919), italiano;
operista, romântico.
LIEBERMANN, Rolf (Zurique, 1910 – Paris, 1999), suíço, eclético (neoclássico,
modernista, dodecafonista).
LISZT, Franz (Raiding, 1811 – Bayreuth, 1886), húngaro, romântico.
MACHAUT, Guillaume (Machault?, c. 1310 – Reims, 1377), francês; Ars Nova, polifonia
medieval.
MAHLER, Gustav (Kalischt, 1860 – Viena, 1911), austríaco; expressionista, pós-
romântico.
MARENZIO, Luca (Coccaglio, c. 1550 – Roma, 1599), italiano, renascentista.
MARX, Adolf [Friedrich Heinrich A. Bernhard M.] (Halle an der Saale, 1795 – Berlim,
1866), alemão, romântico.
MASCAGNI, Pietro (Livorno, 1863 – Roma, 1948), italiano; operista, romântico.
MASSENET, Jules [J. Émile Frédéric M.] (Montaud, 1842 – Paris, 1912), francês,
romântico.
MEILHAC, Henri [H. Majak] (Paris, 1831-1897), francês, libretista.
MENDELSSOHN-BARTHOLDI, Felix [Jakob Ludwig F. M.-B.] (Hamburgo, 1809 –
Leipzig, 1847), alemão, romântico.
MENGELBERG, Willem [Joseph W. M.] (Utrecht, 1871 – Sent, 1951), holandês,
regente (e compositor).
MENOTTI, Gian-Carlo (Cadegliano-Viconago, 1911 – Monte Carlo, 2007), ítalo-
americano; libretista e compositor de óperas neoclássico, neo-romântico, modernista.
METASTASIO, Pietro [P. Antonio Domenico Trapassi] (Roma, 1698 – Viena, 1782),
italiano, libretista.
MEYERBEER, Giacomo (Berlim, 1761 – Paris, 1864), alemão, romântico.
MIGNONE, Francisco [F. Paulo M.] (São Paulo, 1897 – Rio de Janeiro, 1986), brasileiro;
nacionalista, modernista, neoclássico.
MILHAUD, Darius (Marselha, 1892 – Genebra, 1974), francês; modernista, neoclássico,
integrante do “grupo dos seis” parisiense.
MONTEVERDE [MONTEVERDI], Claudio [C. Giovanni Antonio M.] (Cremona,
1567 – Veneza, 1643), italiano; renascentista, barroco.
MOZART, Wolfgang Amadeus (Salzburgo, 1756 – Viena, 1791), austríaco, clássico.
MUSSORGSKY, Modest Petrovitch (Karevo, 1839 – São Petersburgo, 1881), russo,
romântico.
OFFENBACH, Jacques (Colônia, 1819 – Paris, 1880), franco-alemão, romântico.
ORFF, Carl [C. Heinrich Maria O.] (Munique, 1895-1982), alemão; neoclássico,
modernista.
PAGANINI, Nicolo (Gênova, 1782 – Nice, 1840), italiano, romântico.
PALESTRINA, Giovanni Pierluigi da (Palestrina, c. 1525 – Roma, 1594), italiano,
renascentista.
PERGOLESE, Giovanni Battista (Jesi, 1710 – Pozzuoli, 1736), italiano, barroco.
POULENC, Francis [F. Jean Marcel P.] (Paris, 1899-1963), francês; neoclássico,
modernista, integrante do “grupo dos seis” parisiense.
PROKOFIEV, Serge [S. Sergeievitch P.] (Krasne, 1891 – Moscou, 1953), russo;
neoclássico, modernista.
PUCCINI, Giacomo [G. Antonio Domenico Michele Secondo Maria P.] (Lucca, 1858 –
Bruxelas, 1924), italiano; operista, romântico.
RAMEAU, Jean-Philippe (Dijon, 1683 – Paris, 1764), francês, barroco.
RAVEL, Maurice [Joseph M. R.] (Ciboure, 1875 – Paris, 1937), francês, impressionista.
RIMSKY-KORSAKOV, Nikolai Andreievitch (Tíhvin, 1844 – Lubensk, 1908), russo,
romântico.
ROSSINI, Gioachino Antonio (Pésaro, 1792 – Paris, 1868), italiano, romântico.
SAMMARTINI, Giovanni Battista (Milão, c. 1700-1775), italiano, barroco.
SATIE, Erik [Éric Alfred Leslie S.] (Honfleur, 1866 – Paris, 1925), francês, modernista.
SCARLATTI, Domenico [Giuseppe D. S.] (Nápoles, 1685 – Madri, 1757), barroco.
SCHOENBERG, Arnold (Viena, 1874 – Los Angeles, 1951), austríaco; atonalista,
dodecafonista.
SCHUBERT, Franz [F. Peter S.] (Viena, 1797-1828), austríaco, romântico.
SCHUETZ, Heinrich (Bad Köstritz, 1585 – Dresden, 1672), alemão, barroco.
SCHUMANN, Robert (Zwickau, 1810 – Bonn, 1856), alemão, romântico.
SIBELIUS, Jan [Johan Julius Christian S.] (Hämeenlinna, 1865 – Järvenpää, 1957),
finlandês, romântico.
SMETANA, Bedrich (Litomysl, 1824 – Praga, 1884), tcheco, romântico.
STAMITZ, Johann [Jan Václav Antonín Stamic] (Havlíckuv Brod, 1717 – Mannheim,
1757), tcheco, barroco.
STANFORD, Charles Villiers (Dublin, 1852 – Londres, 1924), irlandês; romântico,
nacionalista.
STEFFANI, Agostino (Castelfranco Veneto, 1655 – Frankfurt, 1728), italiano, barroco.
STRAVINSKY, Igor [I. Fiodorovitch S.] (Lomonosov, 1882 – Nova Iorque, 1971), russo;
modernista, neoclássico, dodecafonista.
TAILLEFERRE, Germaine (Saint-Maur-des-Fossés, 1892 – Paris, 1983), francesa;
modernista, neoclássica, integrante do “grupo dos seis” parisiense.
TARTINI, Giuseppe (Piran, 1682 – Pádua, 1770), italiano, barroco.
TCHAIKOVSKY, Peter (ou Piotr) Ilitch (Votkinsk, 1840 – São Petersburgo, 1893),
romântico.
TOCH, Ernst (Viena, 1887 – Santa Mônica, 1964), austríaco; modernista, neoclássico.
TOVEY, Donald Francis (Éton, 1885 – Edimburgo, 1940), inglês, romântico.
VERDI, Giuseppe [G. Fortunino Francesco V.] (Roncole Verdi, 1813 – Milão, 1901),
italiano, romântico.
VICTORIA, Tomás Luis de (Sanchidrián, c. 1540 – Madri, 1611), espanhol, renascentista.
VILLA-LOBOS, Heitor (Rio de Janeiro, 1887-1959), brasileiro; modernista, nacionalista.
WAGNER, Richard [Wilhelm R. W.] (Leipzig, 1813 – Veneza, 1883), alemão, ultra-
romântico.
WALTER, Bruno [B. Schlesinger] (Berlim, 1876 – Beverly Hills, 1962), alemão, regente
(e compositor).
WEBER, Carl Maria von [C. M. Friedrich Ernst v. W.] (Eutin, 1786 – Londres, 1826),
alemão, romântico.
WEINBERGER, Jaromir (Praga, 1896 – São Petersburgo, 1967), tcheco; neoclássico,
nacionalista.
WOLF, Hugo [H. Phillip Jacob W.] (Slovenj Gradec, 1860 – Viena, 1903), austríaco,
romântico.
ZILLIG, Winfried (Wurtzburgo, 1905 – Hamburgo, 1963), alemão, dodecafonista.

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