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Cultura: a unidade

na diversidade 26

capítulo
Em A ideia de cultura, o pensador britânico Terry Eagleton (1943-) afirma que
poucas palavras têm tantas definições quanto cultura. Em meio a um oceano
de distintas e às vezes exageradas abordagens da palavra, o grande desafio
é encontrar uma explicação que não seja excessivamente ampla e, ao mesmo
tempo, refute interpretações muito reducionistas de um conceito tão rico e
decisivo para o entendimento da vida em sociedade.
Raymond Williams (1921-1988), um destacado crítico galês bastante lembrado
no livro de Eagleton, apontou em sua obra Cultura e sociedade quatro definições
complementares do conceito de cultura.
• A primeira delas seria relativa à disposição mental de cada indivíduo, ou seja,
diria respeito às escolhas que cada um faz diante do que aparece como pos-
sibilidade ou desejo. É possível e desejável que cada sujeito escolha suas
opções culturais, como as de preferência musical, literária e estética em geral,
relacionadas com modos de vestir, comunicar e se relacionar com os outros.
• A segunda definição apontada por Williams refere-se ao desenvolvimento
intelectual de toda a sociedade, seus níveis de conhecimento, integração
com outras comunidades, o uso que faz da técnica e dos saberes acumulados
e preservados no tempo. É nesse sentido que se pode, sim, falar em nível
cultural de um povo, levando-se em conta a partilha desses conhecimentos e
a maneira como ela é transmitida às gerações futuras e absorvida no contato
com culturas diferentes.
• O terceiro fragmento do conceito de cultura no pensamento de Williams
trata das artes – dos livros escritos, dos quadros emoldurados, das canções
compostas, dos estilos de vida aceitos e disseminados no interior de uma
determinada realidade social. A arte, na pluralidade de suas manifestações,
expressa a vida comunitária por meio da tentativa de materializar sonhos,
angústias, dinâmicas da felicidade e olhares sobre a história.
• Como quarto ingrediente da vasta significação de sua definição de cultura,
Williams sugere o modo de vida integral do grupo social, reunindo as institui-
ções de governo e relacionamentos cotidianos, a organização do trabalho e da
família e as variadas formas de comunicação e interações entre os diferentes
membros e coletivos da comunidade.
Há, portanto, muita generosidade na visão de Williams acerca do conceito
de cultura. Ele incorpora à palavra praticamente todas as manifestações da
vida social, desde as predileções individuais até o modo como se estruturam
as instituições e o mundo do trabalho. Da mesma forma, o entendimento que
Williams tem de cultura não deixa escapar que as dimensões particulares e
universais do conceito não existem separadamente; ao contrário, interligam-se

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Cesar Diniz/Pulsar Imagens
a toda hora, compondo um mosaico de
riquezas e complexidades.
A Cultura – sim, com “C” maiúsculo –
possui a pretensão de ser única e de se
tornar um modelo ideal de civilização e
progresso para toda a diversidade hu-
mana. Para um necessário contraponto
a essa ideia, é preciso que entendamos
as culturas – isso mesmo, com “c” mi-
núsculo e no plural – como distintas em
sua origem e, principalmente, em sua
finalidade.
Se, portanto, de um lado, a Cultura se
orienta para o universal, para o comum,
as culturas, de outro, garantem a riqueza
Diante de um mapa que informa a programação cultural de um evento que está contida na diferença, sugerindo
público, as pessoas fazem suas escolhas culturais de acordo com suas
preferências, o que faz referência à primeira definição complementar de que haja aproximações e trocas de im-
cultura segundo Raymond Williams. São Paulo, 2012. pressões, criações e valores.

nas palavras de MORIN


O melhor de cada cultura
É preciso compreender que cada cultura, inclusive a cultura Ocidental, comporta suas ilusões,
seus erros, suas carências, suas qualidades, suas riquezas. Não se trata de idealizar as culturas
tradicionais, nem de idealizar a cultura Ocidental. É necessário focalizar as simbioses culturais
que uniriam o que cada cultura tem de melhor, o Ocidente propiciando as ideias de democracia,
de autonomia individual, de verificação dos conhecimentos, da prática crítica e autocrítica, as
outras conservando e oferecendo ao Ocidente as artes de viver, o sentido das comunidades, as
solidariedades, a relação com a natureza e, mais amplamente, com o cosmo. Da mesma forma,
o reino do cálculo e do quantitativo que o Norte traz consigo deve ser contrariado e combinado
com a primazia do qualitativo e do que não é calculável, ou seja, a qualidade poética da vida
que o Sul ainda mantém.
Morin, Edgar. Minha esquerda. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 17.

Trocas culturais e culturas híbridas


No mundo globalizado, o cotidiano é invadido por situações e informações
provenientes dos mais diversos lugares. Podemos, então, afirmar que há uma
cultura “pura”? Até que ponto chegou o processo de mundialização da cultura?
Em seu livro Culturas híbridas, o antropólogo argentino Néstor García Canclini
(1939-) analisa essas questões. Lançando um olhar sobre a história, ele observa
que, até o século XVIII, as relações culturais ocorriam entre os grupos próximos,
familiares e vizinhos, com poucos contatos externos. Os padrões culturais resul-
tavam de tradições transmitidas oralmente e por meio de livros, quando alguém
os tinha em casa, porque bibliotecas públicas ou mesmo escolares eram raras.
Os valores nacionais eram quase uma abstração, pois praticamente não havia a
consciência de uma escala tão ampla.
Já no século XIX e no início do século XX, cresceu a possibilidade de trocas
culturais, pois houve um grande avanço nos meios de transporte, no sistema de

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correios, na telefonia, no rádio e no cinema. As pessoas passaram a ter contato
com situações e culturas diferentes. As trocas culturais efetivadas a partir de então
ampliaram as referências para avaliar o passado, o presente e o futuro. É nesses
termos que a ideia de Cultura – aquela com inicial maiúscula – foi se rendendo
à força das culturas, ao mesmo tempo singulares e diversas, apropriando-se de
seus conteúdos e dando a elas novos formatos, novas finalidades.
A percepção do mundo, portanto, não mais se restringia ao local em que
um indivíduo vivia. Tornou-se muito mais ampla, assim como as possibilidades
culturais. A cultura nacional passou a ter determinada constituição e os valores
e bens culturais de vários povos ou países cruzaram-se, com a consequente
ampliação das influências recíprocas.
No decorrer do século XX, com o desenvolvimento das tecnologias de comu-
nicação, o cinema, a televisão e a internet tornaram-se instrumentos de trocas
culturais intensas, e os contatos individuais e sociais passaram a ter não um,
mas múltiplos pontos de origem – e inúmeras novas finalidades, a depender da
comunidade cultural em questão.
Chris Ratcliffe/Bloomberg via Getty Images

Visitante passeia enquanto


pessoas se comunicam
por meio de robôs em
stand de uma feira de
eletrônicos, em Berlim,
Alemanha, 2015.

As expressões culturais de países dominantes, como os Estados Unidos e


alguns países da Europa, proliferam em todo o mundo mescladas com elementos
culturais de outros países, antes pouco conhecidos, tudo ao mesmo tempo e em
muitos lugares. Há assim uma enorme mistura de expressões culturais, construindo
culturas híbridas, que não podem mais ser caracterizadas como de um país. Fazem
parte de uma imensa cultura mundial.
Isso não significa que as expressões representativas de grupos, regiões ou até
países tenham desaparecido. Elas continuam presentes e ativas, mas coexistem
com essas culturas híbridas que atingem o cotidiano das pessoas por meios
diversos, como a música, as artes plásticas, o cinema e a literatura, normalmente
fomentados pela concentração crescente dos meios de comunicação.

Capítulo 26 | Cultura: a unidade na diversidade 277


Alguém poderia perguntar: por que essas formas particulares, grupais, regionais
ou nacionais deveriam existir no universo cultural mundial, já que vivemos num
mundo globalizado? Em seu livro Artes sob pressão: promovendo a diversidade
cultural na era da globalização, o sociólogo holandês Joost Smiers (1943-) responde
que assim haveria a possibilidade de uma diversidade cultural ainda maior e mais
significativa; haveria uma democracia cultural de fato à disposição de todos. Em
suas palavras: “A questão central é a dominação cultural, e isso precisa ser discutido
com propostas alternativas para preservar e promover a diversidade no mundo”.

nas palavras de CANCLINI


Culturas translocais
Estávamos na capital da Escócia [em outubro de 1996] a convite do Centro de Estudos Latino-Ame-
ricanos da Universidade de Stirling, para falar sobre “as fronteiras entre culturas” diante de vários
especialistas da Europa e da América Latina. Eu me perguntava onde estariam agora as fronteiras
interculturais ao comparar esse interesse crescente pela América Latina […].
Estava pensando […] enquanto jantava em um restaurante italiano de Edimburgo. Depois de ser
obrigado a me comunicar no meu inglês de emergência com um garçom loquaz, descobri que ele
era mexicano […].
Quando quis saber por que decidira ir morar em Edimburgo, ele me disse que sua mulher era
escocesa […]. Por fim me disse que queria montar um restaurante mexicano de qualidade, mas
não gostava das tortillas que eram vendidas nos restaurantes tex-mex de Edimburgo porque
vinham da Dinamarca. […] Então o garçom mexicano de Edimburgo me pediu que, ao voltar
para o México, eu lhe mandasse uma boa receita de tortillas. Pediu esse favor justo a mim, que
sou argentino, cheguei faz duas décadas ao México […] e me estabeleci no país porque estudei
antropologia e fiquei fascinado com muitos costumes mexicanos, mas uma das minhas difi-
culdades de adaptação sempre foi a comida picante, e é justamente por isso que, ao escolher
um restaurante, minha preferência costuma recair nos italianos. Essa inclinação vem do fato
de esse sistema precário chamado “cozinha argentina” ter-se formado com a forte presença de
imigrantes italianos, que se misturaram com espanhóis, judeus, árabes e gaúchos para formar
uma nacionalidade.
Pertencer a uma identidade de fusão, de deslocados, ajudou este filósofo convertido em antro-
pólogo a representar a identidade mexicana perante um mexicano casado com uma escocesa,
que representava a italianidade em um restaurante de Edimburgo.
[…] Ambos extraíramos de vários repertórios hábitos e pensamentos, marcas heterogêneas de
identidade, que nos permitiam desempenhar papéis diversos e até fora de contexto.
Pareceu-me evidente que já não é possível entender esses paradoxos por meio de uma antro-
pologia para a qual o objeto de estudo são as culturas locais, tradicionais e estáveis. […] James
Clifford escreve que o objeto de pesquisa devem ser as “culturas translocais”, as mediações
entre os espaços onde se habita e os itinerários: é preciso “repensar as culturas como locais de
residência e de viagem” […].
Todas as sociedades representam formas de existência de uma coletividade humana num certo
espaço. Formas que mudam ou se aperfeiçoam com o tempo. A troca de experiências foi marcante
na história da humanidade, gerando o que chamamos hoje de diversidade cultural. Esta é uma
riqueza, um bem a ser preservado e estimulado. Ela permite caminhos e experiências distintas
que costumam cruzar-se ou estimular uns aos outros, promovendo possibilidade de uma vida em
sociedade mais rica e saudável.

CanClini, Néstor Garcia. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 54-56.

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cenário da diversidade cultural

Morte, tema-tabu
Entre crianças de seis anos de idade convidadas guras virtuais dos jogos eletrônicos que ensinam
a escrever cartas a Deus, uma delas propôs: “Deus, crianças a matar sem culpa.
todo dia nasce muita gente e morre muita gente. A morte é, como frisou Sartre, a mais solitá-
O Senhor deveria proibir nascimentos e mortes, ria experiência humana. É a quebra definitiva
e permitir a quem já nasceu viver para sempre”. do ego. Na ótica da fé, o desdobramento do ego
Faz sentido? Seriam evitados a superpopula- no seu contrário: o amor, o ágape, a comunhão
ção do planeta e o sofrimento de morrer ou ver com Deus.
desaparecer entes queridos. Mas quem garante A morte nos reduz ao verdadeiro eu, sem os
que, privados da certeza de finitude, essa raça adornos de condição social, nome de família,
de sobre-humanos não tornaria a nossa con- títulos, propriedades, importância ou conta ban-
vivência uma experiência infernal? Simone de cária. É a ruptura de todos os vínculos que nos
Beauvoir deu a resposta no romance Todos os prendem ao acidental. Os místicos a encaram
homens s‹o mortais. com tranquilidade por exercitarem o desapego
É esse ideal de infinitude que fomenta a cultu- frente a todos os valores finitos. Cultivam, na
ra da imortalidade disseminada pela promissora subjetividade, valores infinitos. E fazem da vida
indústria do elixir da eterna juventude: cosméti- dom de si – amor. [...]
cos, academias de ginástica, livros de autoajuda,
Betto, Frei. Morte, fen™meno natural. Disponível em: <http://
cuidados nutricionais, drágeas e produtos naturais odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-10-31/frei-betto-morte-
que prometem saúde e longevidade. [...] fenomeno-natural.html>. Acesso em: 21 jan. 2016.
Tenho amigos com câncer. Um deles obser-
vou: “Outrora, era tabu falar de sexo. Hoje, falar
1. No mundo de hoje, na nossa cultura, tem-se a im-
de morte”. Concordei. Outrora, a morte era vista
pressão de que os rituais pós-morte se resumem
como um fenômeno natural, coroamento inevi-
ao enterro em algum cemitério ou ao processo de
tável da existência. Hoje, é sinônimo de fracasso,
cremação. Entretanto, no passado e no presente,
quase vergonha social.
houve e há outras distintas formas de sepultamento
A morte clandestinizou-se nessa sociedade
ou de rituais mortuários característicos de diferentes
que incensa a cultura do prolongamento indefi-
culturas e credos, as quais mostram um pouco da
nido da vida, da juventude perene, da glamori-
zação da estética corporal. Nem sequer se tem diversidade cultural da humanidade. Pesquise na

mais o direito de ficar velho. [...] internet ou em outras fontes cerimônias pós-morte
“Morrer é fechar os olhos para enxergar me- representantes de culturas diferentes da sua.
lhor”, disse José Martí. As religiões têm respostas 2. A morte pode ser vista como fim ou como início,
às situações limites da condição humana, em como motivo de tristeza ou até de paz e libertação,
especial a morte. Isso é um consolo e uma espe- a depender da cultura que a assume como ritual,
rança para quem tem fé. Fora do âmbito religio- festa ou reunião de celebração de seus antepassa-
so, entretanto, a morte é um acidente, não uma dos. Em grupo e com a ajuda de seu professor, pro-
decorrência normal da condição humana. movam um debate sobre o tema “Além da morte,
Morre-se abundantemente em filmes e te- que outros fenômenos sociais podem ser vistos de
lenovelas, mas não há velório nem enterro. Os maneiras bastante distintas por culturas diversas
personagens são seres descartáveis como as no tempo e no espaço?”.
vítimas inclementes do narcotráfico. Ou as fi-

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