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Cultura: unidade
e diversidade
cultural
unidade
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A cultura está
em (quase) tudo
Cultura só pode existir no plural. Em uma
comunidade há inúmeras culturas em movimen-
to, em integração. Cada sujeito é uma síntese
complexa da presença da diversidade cultural
no mundo. Alguém pode ao mesmo tempo
apreciar a culinária japonesa e nada saber de
literatura oriental. O que ocorre é a mistura, a
fusão, a confluência de saberes e modos de vida.
Durante muito tempo (e ainda hoje em diver-
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Entendendo a
25 cultura no plural
capítulo
O emprego da palavra cultura, no cotidiano, é objeto de estudo de diversas
ciências sociais. O pensador francês Félix Guattari (1930-1992) reuniu os diferentes
significados de cultura em três grupos, por ele designados cultura-valor, cultura-
-alma coletiva e cultura-mercadoria.
Cultura-valor é o sentido mais antigo e explicita-se na ideia de “cultivar o espí-
rito”. É o que permite estabelecer a diferença entre quem tem cultura e quem não
tem ou determinar se o indivíduo pertence a um meio culto ou inculto, definindo
um julgamento de valor sobre essa situação. Nesse grupo inclui-se o uso do ter-
mo para identificar, por exemplo, quem tem ou não cultura clássica, artística ou
científica. Num certo sentido, a cultura-valor alimenta a posição presunçosa que
considera a cultura um requisito de poucos. Mais do que isso: ao se revelar símbolo
de um determinado status, a cultura se revela um instrumento de hierarquização
entre indivíduos e grupos humanos, dando à desigualdade social um tom quase
natural e irremediável.
O segundo significado, designado cultura-alma coletiva, é sinônimo de “civili-
zação”. Ele expressa a ideia de que todas as pessoas, grupos e povos têm cultura
e identidade cultural. Nessa acepção, pode-se falar de cultura negra, cultura chi-
nesa, cultura marginal etc. Tal expressão presta-se assim aos mais diversos usos
por aqueles que querem atribuir um sentido para a ação dos grupos aos quais
pertencem, com a intenção de caracterizá-los ou identificá-los. Vale também ob-
servar que uma cultura considerada “alma” aproxima ou distancia outras culturas,
abrindo brechas para comparações que podem levar a distorções e preconceitos,
como nos inúmeros casos de interpretações que consideram muitas religiões
ou ritos religiosos de sociedades indígenas brasileiras como “primitivos” ou até
mesmo “demoníacos”, indignos, portanto, de atenção e respeito. Nesse sentido,
o “civilizado” e o “bárbaro” se apresentam como culturas que, não podendo se
auxiliar ou se complementar, existem como antagônicas.
O terceiro sentido, o de cultura-mercadoria, corresponde à “cultura de massa”.
Nessa concepção, cultura compreende bens ou equipamentos – por exemplo, os
centros culturais, os cinemas, as bibliotecas e as pessoas que trabalham nesses
estabelecimentos – e os conteúdos teóricos e ideológicos de produtos que estão
à disposição de quem quer e pode comprá-los, ou seja, que estão disponíveis no
mercado, como filmes, discos e livros. Numa palavra, a cultura-mercadoria é típica
dos objetos que se transformam em bens para o consumo, importando muito
menos sua qualidade do que seu potencial de venda e expansão.
As três concepções de cultura estão presentes em nosso dia a dia, marcando
sempre uma diferença entre os indivíduos – seja no sentido elitista (entre as que
têm e as que não têm uma cultura erudita, por exemplo), seja no sentido de
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identificação com algum grupo específico, seja ainda em relação à possibilidade
de consumir bens culturais. Todas essas concepções trazem uma carga valorativa,
dividindo indivíduos, grupos e povos entre os que têm e os que não têm cultura
ou acesso aos bens culturais, ou mesmo entre os que têm uma cultura considerada
superior e os que têm uma cultura considerada inferior.
Rubens Chaves/Pulsar Imagens
Antropologicamente falando...
Com distintas abordagens e definições, o conceito de cultura integra o quadro
teórico de todas as ciências sociais. No entanto, com frequência é vinculado à
antropologia, por ter sido amplamente discutido e utilizado por estudiosos dessa
área do conhecimento desde o século XIX, quando as explicações racialistas e
evolucionistas da diversidade humana eram dominantes.
Naquele contexto, uma das primeiras definições de cultura foi elaborada pelo
antropólogo inglês Edward Burnett Tylor (1832-1917). De acordo com esse autor,
cultura é o conjunto complexo de conhecimentos, crenças, arte, moral e direito, além
de costumes e hábitos adquiridos pelos indivíduos em uma sociedade. Trata-se de
uma definição muito ampla e, para Tylor, expressa a totalidade da vida social humana.
No livro Cultura primitiva, Tylor expôs sua análise das origens e dos mecanismos
de evolução da cultura em várias sociedades. Para ele, a diversidade cultural que se
observa entre os povos contemporâneos reflete os diferentes estágios evolutivos
de cada sociedade, em uma escala que varia do mais primitivo, representado por
povos tribais, ao mais desenvolvido, alcançado pelos europeus.
Contrapondo-se a essa visão evolucionista, segundo a qual a humanidade segue
uma trajetória comum, o antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942) recusou qual-
quer generalização que não pudesse ser demonstrada por meio da pesquisa concreta
em sociedades determinadas. Para ele, cada cultura é única e deve ser analisada de
modo aprofundado e particular. Existem, portanto, “culturas”, e não “a cultura”, e
é essa diversidade cultural que explica as diferenças entre as sociedades humanas.
O antropólogo inglês Bronislaw K. Malinowski (1884-1942) afirmava que, para
fazer uma análise objetiva, era necessário examinar as culturas em seu estado atual,
sem preocupação com suas origens. Concebia as culturas como sistemas funcionais
e equilibrados, formados por elementos interdependentes que lhes davam carac-
terísticas próprias, principalmente no que dizia respeito às necessidades básicas,
como alimento, proteção e reprodução.
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