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Cultura: unidade
e diversidade
cultural
unidade

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A cultura está
em (quase) tudo
Cultura só pode existir no plural. Em uma
comunidade há inúmeras culturas em movimen-
to, em integração. Cada sujeito é uma síntese
complexa da presença da diversidade cultural
no mundo. Alguém pode ao mesmo tempo
apreciar a culinária japonesa e nada saber de
literatura oriental. O que ocorre é a mistura, a
fusão, a confluência de saberes e modos de vida.
Durante muito tempo (e ainda hoje em diver-

Lazyllama/Alamy Stock Photo/Fotoarena


sos lugares), a cultura esteve associada a impor-
tantes teatros, óperas monumentais, literatura
universal prestigiada, restaurantes caros, filmes
com enredos compreensíveis apenas a uma par-
cela da população, museus de arte inacessíveis
à maioria dos mortais. O sujeito culto era antes
de mais nada um indivíduo endinheirado. Em
contraste, era tido como inculto aquele que não
pudesse frequentar programas culturais consi-
derados sofisticados. Dessa noção distorcida,
nasceram ideias como as de “cultura erudita”
ou “cultura de elite”. Outras noções de cultura
seriam “popular”, “massificada”, considerada
por alguns como menor, insignificante.
A Sociologia nos ensina a ver a cultura como
uma expansão das singularidades e do modo
como as pessoas se relacionam. Por meio da
cultura, os indivíduos e grupos sociais expõem
sua visão de mundo. A cultura é fala e escrita,
religião, música, comida, usos tecnológicos, prá-
ticas educacionais, voto político, manifestação
de aprovação ou descontentamento.
Desde meados do século XX, a cultura vem se
mundializando aceleradamente, levando para os
cinco continentes o estilo de vida fabricado no
capitalismo e esparramado pelo globo graças a
comunicações e meios de transporte cada vez
mais velozes. Assim, a cultura representa a diver-
sidade da experiência humana. Por meio de ma-
nifestações populares, a cultura apresenta todo
o seu valor, presente nas histórias em quadrinhos,
nos causos versados no cordel, na poesia de rua,
na dança das periferias, nos romances marginais
e no humor. A cultura, enfim, está no ato de ler
Grafite em pista de skate no Arpoador, este livro de Sociologia e, a partir dele, reivindicar
Rio de Janeiro, 2013. um lugar ao sol.

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Entendendo a
25 cultura no plural
capítulo
O emprego da palavra cultura, no cotidiano, é objeto de estudo de diversas
ciências sociais. O pensador francês Félix Guattari (1930-1992) reuniu os diferentes
significados de cultura em três grupos, por ele designados cultura-valor, cultura-
-alma coletiva e cultura-mercadoria.
Cultura-valor é o sentido mais antigo e explicita-se na ideia de “cultivar o espí-
rito”. É o que permite estabelecer a diferença entre quem tem cultura e quem não
tem ou determinar se o indivíduo pertence a um meio culto ou inculto, definindo
um julgamento de valor sobre essa situação. Nesse grupo inclui-se o uso do ter-
mo para identificar, por exemplo, quem tem ou não cultura clássica, artística ou
científica. Num certo sentido, a cultura-valor alimenta a posição presunçosa que
considera a cultura um requisito de poucos. Mais do que isso: ao se revelar símbolo
de um determinado status, a cultura se revela um instrumento de hierarquização
entre indivíduos e grupos humanos, dando à desigualdade social um tom quase
natural e irremediável.
O segundo significado, designado cultura-alma coletiva, é sinônimo de “civili-
zação”. Ele expressa a ideia de que todas as pessoas, grupos e povos têm cultura
e identidade cultural. Nessa acepção, pode-se falar de cultura negra, cultura chi-
nesa, cultura marginal etc. Tal expressão presta-se assim aos mais diversos usos
por aqueles que querem atribuir um sentido para a ação dos grupos aos quais
pertencem, com a intenção de caracterizá-los ou identificá-los. Vale também ob-
servar que uma cultura considerada “alma” aproxima ou distancia outras culturas,
abrindo brechas para comparações que podem levar a distorções e preconceitos,
como nos inúmeros casos de interpretações que consideram muitas religiões
ou ritos religiosos de sociedades indígenas brasileiras como “primitivos” ou até
mesmo “demoníacos”, indignos, portanto, de atenção e respeito. Nesse sentido,
o “civilizado” e o “bárbaro” se apresentam como culturas que, não podendo se
auxiliar ou se complementar, existem como antagônicas.
O terceiro sentido, o de cultura-mercadoria, corresponde à “cultura de massa”.
Nessa concepção, cultura compreende bens ou equipamentos – por exemplo, os
centros culturais, os cinemas, as bibliotecas e as pessoas que trabalham nesses
estabelecimentos – e os conteúdos teóricos e ideológicos de produtos que estão
à disposição de quem quer e pode comprá-los, ou seja, que estão disponíveis no
mercado, como filmes, discos e livros. Numa palavra, a cultura-mercadoria é típica
dos objetos que se transformam em bens para o consumo, importando muito
menos sua qualidade do que seu potencial de venda e expansão.
As três concepções de cultura estão presentes em nosso dia a dia, marcando
sempre uma diferença entre os indivíduos – seja no sentido elitista (entre as que
têm e as que não têm uma cultura erudita, por exemplo), seja no sentido de

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identificação com algum grupo específico, seja ainda em relação à possibilidade
de consumir bens culturais. Todas essas concepções trazem uma carga valorativa,
dividindo indivíduos, grupos e povos entre os que têm e os que não têm cultura
ou acesso aos bens culturais, ou mesmo entre os que têm uma cultura considerada
superior e os que têm uma cultura considerada inferior.
Rubens Chaves/Pulsar Imagens

The Asahi Shimbun/Getty Images


Apresentação de quadrilha em festa junina de Campina Entrada de um cinema na estreia de filme de grande
Grande, Paraíba, 2015. Exemplo de cultura-alma coletiva, sucesso comercial, em Tóquio, Japão, 2015. Exemplo da
própria do povo brasileiro. cultura-mercadoria.

Antropologicamente falando...
Com distintas abordagens e definições, o conceito de cultura integra o quadro
teórico de todas as ciências sociais. No entanto, com frequência é vinculado à
antropologia, por ter sido amplamente discutido e utilizado por estudiosos dessa
área do conhecimento desde o século XIX, quando as explicações racialistas e
evolucionistas da diversidade humana eram dominantes.
Naquele contexto, uma das primeiras definições de cultura foi elaborada pelo
antropólogo inglês Edward Burnett Tylor (1832-1917). De acordo com esse autor,
cultura é o conjunto complexo de conhecimentos, crenças, arte, moral e direito, além
de costumes e hábitos adquiridos pelos indivíduos em uma sociedade. Trata-se de
uma definição muito ampla e, para Tylor, expressa a totalidade da vida social humana.
No livro Cultura primitiva, Tylor expôs sua análise das origens e dos mecanismos
de evolução da cultura em várias sociedades. Para ele, a diversidade cultural que se
observa entre os povos contemporâneos reflete os diferentes estágios evolutivos
de cada sociedade, em uma escala que varia do mais primitivo, representado por
povos tribais, ao mais desenvolvido, alcançado pelos europeus.
Contrapondo-se a essa visão evolucionista, segundo a qual a humanidade segue
uma trajetória comum, o antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942) recusou qual-
quer generalização que não pudesse ser demonstrada por meio da pesquisa concreta
em sociedades determinadas. Para ele, cada cultura é única e deve ser analisada de
modo aprofundado e particular. Existem, portanto, “culturas”, e não “a cultura”, e
é essa diversidade cultural que explica as diferenças entre as sociedades humanas.
O antropólogo inglês Bronislaw K. Malinowski (1884-1942) afirmava que, para
fazer uma análise objetiva, era necessário examinar as culturas em seu estado atual,
sem preocupação com suas origens. Concebia as culturas como sistemas funcionais
e equilibrados, formados por elementos interdependentes que lhes davam carac-
terísticas próprias, principalmente no que dizia respeito às necessidades básicas,
como alimento, proteção e reprodução.

Capítulo 25 | Entendendo a cultura no plural 271


Fotosearch/Getty Images
Malinowski desenvolveu a ideia de “ob-
servação participante”. Para ele não se podia
analisar uma cultura externamente ou mesmo
a distância, pois só vivendo determinado
tempo na sociedade a ser pesquisada se
poderia conhecer as relações entre a cultura
e a vida social.
Duas antropólogas estadunidenses, Ruth
Benedict (1887-1948) e Margaret Mead (1901-
-1978), investigaram as relações entre cultura
e personalidade.
R. Benedict desenvolveu o conceito de pa-
drão cultural, destacando a prevalência de
homogeneidade e coerência em cada cultura.
Em suas pesquisas, identificou dois tipos cul-
turais extremos: o apolínio, representado por
indivíduos conformistas, tranquilos, solidários,
respeitadores e comedidos na expressão de
seus sentimentos, e o dionisíaco, que reunia
os ambiciosos, agressivos, individualistas, com
tendência ao exagero afetivo. De acordo com
ela, entre os apolínios e os dionisíacos haveria
tipos intermediários que mesclariam algumas
A antropóloga características dos dois tipos extremos.
Margaret Mead em M. Mead, por sua vez, investigou o modo como os indivíduos recebiam os
Papua-Nova Guiné, em
cerca de 1930. elementos da cultura e a maneira como isso formava a personalidade deles.
Suas pesquisas tinham como objeto as condições de socialização da persona-
lidade feminina e da masculina. Ao analisar os Arapesh, os Mundugumor e os
Chambuli, três povos da Nova Guiné, na Oceania, Mead percebeu diferenças
significativas entre eles.
Entre os Arapesh, homens e mulheres recebiam o mesmo tratamento: ambos
eram educados para ser dóceis e sensíveis e para servir aos outros. Também entre
os Mundugumor não havia diferenciação: indivíduos de ambos os sexos eram
treinados para a agressividade, caracterizando-se por relações de rivalidade, e
não de afeição. Entre os Chambuli, finalmente, havia diferença na educação de
homens e mulheres, mas de modo distinto do padrão que conhecemos: a mulher
era educada para ser extrovertida, empreendedora, dinâmica e solidária com
outras mulheres. Já os homens eram educados para serem sensíveis, preocupa-
dos com a aparência e invejosos, o que os tornava inseguros. Isso resultava em
uma sociedade em que as mulheres detinham o poder econômico e garantiam o
necessário para a sustentação do grupo, ao passo que os homens se dedicavam
às atividades cerimoniais e estéticas.
Com base nos resultados de suas pesquisas, Mead afirmou que a diferença nas
personalidades não está vinculada a características biológicas, como o gênero,
mas à maneira como a cultura define a educação das crianças em cada sociedade.
Para Claude Lévi-Strauss (1908-2009), antropólogo que nasceu na Bélgica, mas
desenvolveu a maior parte de seu trabalho na França, a cultura deve ser considerada
um conjunto de sistemas simbólicos, entre os quais se incluem a linguagem, as regras
matrimoniais, a arte, a ciência, a religião e as normas econômicas. Esses sistemas se
relacionam e influenciam a realidade social e física das diferentes sociedades.

272 Unidade 7 | Cultura: unidade e diversidade cultural


Por outro lado, para Lévi-Strauss a cultura diz respeito exclusivamente ao ho-
mem. É a capacidade humana – e apenas humana – que dá sentido a si mesmo
e ao outro (diferente de si). O homem é diferente do animal porque se define
pela função simbólica, ou seja, pela linguagem, pelo parentesco, pela religião,
pelo mito, pela arte, pela economia etc. Tudo isso, formando uma imensa es-
trutura social, estabelece a comunicação entre os homens em diferentes níveis.
A grande preocupação de Lévi-Strauss foi analisar o que era comum e constante
em todas as sociedades, ou seja, regras universais e os elementos indispensáveis
à vida social. Um desses elementos seria a proibição do incesto (relações sexuais
entre irmãos ou entre pais e filhos), presente em todas as sociedades. Partindo
dessa preocupação, ele desenvolveu amplos estudos sobre os mitos, demons-
trando que os elementos essenciais da maioria deles se encontram em todas as
sociedades tribais.
Para os antropólogos estadunidenses Clifford James Geertz (1926-2006) e
Marshall Sahlins (1930-), cada cultura pode ser definida como um sistema de
signos e significados criado por um grupo social. Assim, conhecer as culturas
significa interpretar símbolos, mitos e ritos.
Conforme Geertz, a cultura é um sistema de signos que, para ser interpretado,
requer o que ele chama de “descrição densa”: o levantamento e o registro minucioso
das ações e dos significados a elas atribuídos pelos indivíduos que as praticam.
Sahlins, por sua vez, afirma que as interpretações do passado de uma cultura
permeiam o cotidiano dos indivíduos que dela fazem parte.

nas palavras de SAHLINS


S’mbolos culturais
[...] afirmo que o significado é a propriedade específica do objeto antropológico. As culturas são
ordens de significado entre pessoas e coisas. Uma vez que essas ordens são sistemáticas, elas
não podem ser livre invenção do espírito. Mas a antropologia deve consistir na descoberta do
sistema, pois, como espero mostrar, não pode mais contentar-se com a ideia de que os costumes
são simplesmente utilidades fetichizadas [...].
O que faz a carne de um animal ser ou não comestível? Uma calça ser considerada masculina
ou uma saia feminina? Tem a ver com sua correlação com um sistema simbólico, e não com a
natureza do objeto em si, nem com a sua capacidade de satisfazer uma “necessidade material”.
SahlinS, Marshall. Cultura e raz‹o pr‡tica. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 9 e 169-170.

A antropologia, portanto, examina a ideia de cultura pelo modo como as re-


lações sociais se estabelecem simbolicamente entre o passado e o futuro, entre
aquilo que é local e, ao mesmo tempo, global, reproduzido em toda parte por
povos que nunca cessam de se interconectar por meio de suas variadas facetas
culturais. Nesses termos, a política, a economia e a sociedade em geral, bem
como toda a sua mitologia, só podem ser vistas e compreendidas como dinâmicas
culturais que têm um lugar no tempo e no espaço, que valorizam determinados
comportamentos e atitudes, que bonificam certos êxitos e punem muitos tipos
de erro ou negligência. A cultura, do ponto de vista antropológico, é um ponto
de partida e uma forma de pensar a riqueza de experiências da vida coletiva.

Capítulo 25 | Entendendo a cultura no plural 273


cenário da cultura

Antes, o mundo n‹o existia


Quando eu vejo as narrativas, mesmo as nar- uma montanha e calcula quantos milhões de to-
rativas chamadas antigas, do Ocidente, as mais neladas de cassiterita, bauxita, ouro ali pode ter.
antigas, elas sempre são datadas. Nas narrativas Enquanto meu avô, meus primos, olham aquela
tradicionais do nosso povo, das nossas tribos, não montanha e veem o humor da montanha e veem
tem data, é quando foi criado o fogo, é quando se ela está triste, feliz ou ameaçadora, e fazem
foi criada a Lua, quando nasceram as estrelas, cerimônia para a montanha, cantam para ela,
quando nasceram as montanhas, quando nasce- cantam para o rio... mas o cientista olha o rio
ram os rios. Antes, antes, já existia uma memória e calcula quantos megawatts ele vai produzir
puxando o sentido das coisas, relacionando o sen- construindo uma hidrelétrica, uma barragem.
tido dessa fundação do mundo com a vida, com o Nós acampamos no mato, e ficamos esperan-
comportamento nosso, com aquilo que pode ser do o vento nas folhas das árvores, para ver se
entendido como o jeito de viver. Esse jeito de viver ele ensina uma cantiga nova, um canto cerimo-
que informa nossa arquitetura, nossa medicina, nial novo. Se ele ensina, e você ouve, você repete
nossa arte, nossas músicas, nossos cantos. muitas vezes esse canto, até aprender. E depois,
Nós não temos uma moda, porque nós não você mostra esse canto para os seus parentes,
podemos inventar modas. Nós temos a tradição, para ver se ele é reconhecido, se ele é verdadeiro.
e ela está fincada em uma memória da antigui- Se ele é verdadeiro, passa a fazer parte do acervo
dade do mundo, quando nós nos fazemos paren- dos nossos cantos. Mas um engenheiro flores-
tes, irmãos, primos, cunhados, da montanha que tal olha a floresta e calcula quantos milhares
forma o vale onde estão nossas moradias, nossas de metros cúbicos de madeira ele pode ter. Ali
vidas, nosso território. não tem música, a montanha não tem humor,
[...] Alguns anos atrás, quando vi o quanto a e o rio não tem nome. É tudo coisa. Essa mesma
ciência dos brancos estava desenvolvida, com cultura, essa mesma tradição, que transforma
seus aviões, máquinas, computadores, mísseis, a natureza em coisa, transforma os eventos em
fiquei um pouco assustado. Comecei a duvidar datas, tem antes e depois.
que a tradição do meu povo, que a memória
KrenaK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: novaeS,
ancestral do meu povo, pudesse subsistir num Adauto (org.). Tempo e hist—ria. São Paulo:
mundo dominado pela tecnologia pesada, con- Companhia das Letras, 1992. p. 202-203.
creta. E que talvez a gente fosse um povo como
a folha que cai. E que nossa cultura, os nossos
valores, fossem muito frágeis para subsistir 1. O que esse tipo de visão de mundo pode ensinar
num mundo preciso, prático, onde os homens para as pessoas que vivem em nossa sociedade, no
organizam seu poder e submetem a natureza, século XXI?
derrubam as montanhas. Onde um homem olha

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