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07/08/2017 Gramsci

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Cidadania e experiência republicana no século XX


Michel Zaidan Filho - Maio 2008

O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam
sinceramente estar vendo uma parada (Aristides Lobo).

O depoimento singelo, prestado ainda no calor na primeira hora republicana, sintetiza aspectos iniciais da
experiência republicana no Brasil ao longo dos seus mais de 100 anos de existência entre nós. Senão, vejamos.
Um primeiro aspecto dessa experiência diz respeito à forma da dominação burguesa implantada no país com a
proclamação republicana. Que tipo de Estado e — a serviço de que interesses — foi construído o regime
republicano no Brasil?

Para responder a esta pergunta, recorremos a uma poderosa imagem da ficção literária brasileira: uma certa
passagem do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos.

Fabiano ia desprecatado, observando esses sinais e outros que se cruzavam, de viventes menores.
Corcunda, parecia farejar o solo — e a caatinga deserta animava-se, os bichos que ali tinham
passado voltavam, apareciam-lhe diante dos olhos miúdos.

Seguiu a direção que a égua havia tomado. Andara certa de cem braças, quando o cabresto de
cabelo que trazia no ombro se enganchou num pé de quipá. Desembaraçou o cabresto, puxou o
facão, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias que interrompiam a passagem.

Tinha feito estrago feio; a terra se cobria de palmas espinhosas. Deteve-se [...] e deu de cara com
o soldado amarelo que, um ano antes, o levara à cadeia, onde ele agüentara uma surra e passara a
noite. Baixou a arma. Aquilo durou um segundo. Menos: durou uma fração de segundos. Se
houvesse durado mais tempo, o amarelo teria caído, esperneando na poeira, com o quengo
rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi muito forte, o gesto que ele fez teria
sido bastante para um homicídio, se outro impulso não lhe dirigisse o braço em sentido contrário. A
lâmina parou de chofre, junto à cabeça do intruso, bem em cima do boné vermelho. A princípio o
vaqueiro não compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De repente notou que
aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. Sentiu um choque violento, deteve-se,
o braço ficou irresoluto, bambo, inclinando-se para um lado e para outro.

[...] Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado criou coragem, avançou, pisou
firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.

— Governo é governo.

Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.

“Governo é governo”. Quem seria o “soldado amarelo”, que apesar de frágil e covarde obriga Fabiano a recuar?

Um dos traços mais marcantes da formação do Estado no Brasil é certamente essa hipertrofia, a aparente
autonomia que a máquina e seus aparelhos estatais parecem ter adquirido em nosso país. Mas por que a face
impenetrável desse “Leviatã” de mil braços e mil olhos aparenta ser tão amedrontadora à maioria dos brasileiros,
fazendo se sentirem cidadãos de segunda categoria ou meio cidadãos?

Essa característica atávica tem a ver com a forma, o meio, o caminho através do qual se constituiu o regime
republicano. Ao contrário do ocorrido em outros países — e o principal exemplo na América Latina é, sem dúvida,
o caso do Haiti —, a proclamação da República não se deu concomitantemente com a redistribuição da
propriedade agrária, por meio de uma reforma radical (o famoso modelo jacobino, de que nos fala o filósofo
italiano Antonio Gramsci).

E a abolição da escravatura, ela mesma, não foi obra exclusiva dos escravos ou dos grupos abolicionistas.
Tivemos, com o advento da República, uma mudança de regime sem a devida incorporação à plena cidadania
política e social da maior parte da população brasileira. Ou seja, ganhamos uma república de pés oligárquicos e
cabeça liberal, com um enorme contingente de palhas e marginais, ou seja, pessoas deserdadas da fortuna e da
sorte.

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Esses aspectos antidemocráticos e antipopulares levaram muitos estudiosos da vida política brasileira a definiram
a via do regime republicano entre nós como “prussiana”, isto é, de cima para baixo, mediante uma conciliação
entre as elites velhas e novas, deixando intocadas as relações de produção no campo e excluindo da vida política
a maioria do povo brasileiro. Daí o caráter fechado, burocrático, onipotente do Estado no Brasil.

Outro traço correlato à hipertrofia do Estado é a recorrente criminalização da chamada questão social e dos
movimentos sociais. Na melhor das hipóteses, podemos afirmar que o tratamento dispensado aos de baixo neste
país tem sido as políticas de cooptação. Isto é, quando não se tenta cooptar (mesmo nos governos mais ou
menos democráticos e populares) os movimentos sociais, a regra é a mais pura e simples repressão policial.

Num quadro de precária institucionalidade democrática, a afirmação das mais elementares liberdades civis por
parte dos setores subalternos tem sido interpretada como uma ameaça direta à sobrevivência da ordem social
dominante.

Aliás, é preciso acrescentar a este ranço anti-social do Estado republicano no Brasil a extrema fragilidade do
quadro político-partidário e a inexistência de liberdade e autonomia sindicais. Na ausência assim de tais
mecanismos de absorção e canalização das demandas sociais, qualquer manifestação de protesto ou insatisfação
dos de baixo põe em risco a precária instabilidade das instituições políticas. De tão frágeis e instáveis, já houve
quem dissesse mais de uma vez que no Brasil não existem propriamente partidos, mas guarda-chuvas, ônibus,
frentes, etc.

Mas é necessário convir que, a despeito dessas limitações, a República inaugurou a época da explicitação dos
conflitos sociais. As classes sociais não só se gestaram — elas próprias — no bojo da modernização capitalista (e
depois monopolista) ocorrida durante o regime republicano, como se auto-reconheceram, num processo de
construção de suas identidades ideológicas. O período republicano viu florescer as grandes ideologias modernas
(o socialismo, o anarquismo, o comunismo, o catolicismo social, o trabalhismo, etc.), e, a partir delas, os grandes
embates entre as diferentes classes sociais. O socialismo, o anarquismo, o comunismo, o trabalhismo, o
catolicismo social são frutos da idade republicana no Brasil e permitiram, mal ou bem, a plena explicitação das
contradições sociais. A República foi, e tem sido, o regime das lutas sociais por excelência.

A evolução da experiência republicana entre nós não modificou propriamente este quadro, mas exacerbou em
grande medida suas principais características. A chamada “Revolução de 1930” elevou a uma potência infinita a
hipertrofia do Estado, num processo de corporativização geral da sociedade brasileira. Absorveu, cooptando, os
“intelectuais orgânicos” dos movimentos sociais. Se não descriminou a questão social, deu-lhe um tratamento
burocrático, ascético, técnico-científico. E certamente acelerou muito o desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

São dessa fase, aliás, dois fenômenos correlatos: a incorporação — pelo alto — de grandes massas ao
sindicalismo burocrático do Estado; e a subordinação do pensamento social revolucionário à torrente
avassaladora do nacionalismo. Com a Revolução de 1930, ser moderno, ser progressista, revolucionário era
combater o latifúndio improdutivo no campo e a dominação imperialista na cidade, tudo em favor da panacéia da
industrialização brasileira, do capitalismo nacional “autônomo”.

O golpe militar de 1964 desfez — pela crítica das armas — muitas dessas ilusões. Mas, a despeito ou por causa
mesmo de sua precária base política, o regime militar levou à frente um processo de modernização monopolista
da economia sem igual. O Brasil dos anos 1980 não era mais um país terceiro-mundista, como nos anos 1960.
Éramos então, um país monopolista, com uma economia dominada pelo capital financeiro e uma estrutura social
altamente diferenciada.

No entanto, apesar do enorme desenvolvimento capitalista, era necessário admitir que a estrutura social do
Brasil republicano era uma mistura de Índia com Bélgica. Se tínhamos, de um lado, um setor altamente
informatizado da economia, com operários de alta qualificação profissional, de outro tínhamos uma extensa
horda de “catadores de lixo”, que alimentavam uma florescente indústria de adubos e papéis. Isto sem falar na
crônica instabilidade e artificialidade do quadro político-partidário, num monstruoso aparelho estatal e na
recorrente criminalização dos movimentos sociais.

A “Nova República”, ao invés de redimir este quadro, só o agravou, frustrando a expectativa de mudança social e
política do país. A precária aliança entre os liberais históricos e uma grande parte da esquerda, sob a direção dos
primeiros, que pôs fim ao regime militar, foi incapaz de ultrapassar as primeiras eleições de 1985. A
desestruturação e a instabilidade partidária só avançaram, de eleição a eleição, com o descrédito da população
nos políticos. E o que foi mais sério: a evaporação do centro político (representado pelos dois maiores partidos
do sistema político do país) que deram sustentação à transição.

A despeito da relativa institucionalização das liberdades democráticas, com o fim do processo constituinte, o
enorme passivo social — representado pelos extensos setores sociais não representados politicamente e
destituídos de qualquer tipo de cidadania — clamava por sua resolução, enquanto uma sofisticada indústria
cultural buscava manipular esses setores para viabilizar projetos messiânicos e moralistas de salvação nacional.
Nunca foram tão evidentes a fraqueza e a imensa crise do sistema partidário brasileiro. O populismo eletrônico —
agora redivivo na figura do ex-presidente Fernando Collor de Melo — só tinha esta única e profunda significação.

A controversa eleição do presidente Fernando Collor de Melo, fruto da primeira campanha política
profissionalizada no Brasil, representou um divisor de águas na agenda política do país. Com Collor de Melo, o

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Brasil assistiu, sobressaltado, à execução de um programa liberal na economia e fascista na política. Eleito por
uma coligação fantasmagórica de partidos, o jovem presidente alagoano decidiu implantar a sua agenda de
privatizações e abertura econômica a golpes de medidas provisórias e ataques sistemáticos aos direitos e às
organizações sindicais de trabalhadores — além de querer afrontar o Congresso com suas medidas, sem
nenhuma negociação. Foi deposto.

Apesar do impedimento do ex-presidente, sua agenda veio para ficar e foi plenamente executada pelo presidente
Fernando Henrique Cardoso, que inaugurou a chamada “reforma do Estado”, sob pretexto de imprimir mais
eficácia às políticas públicas e aumentar a poupança, através de investimentos externos, para financiamento da
atividade econômica do país. Paradoxalmente, quanto mais se fez a redução do papel do Estado na economia
brasileira, mais se exortou a participação social e o voluntariado. O próprio conceito de “sociedade civil”, de
extração hegelo-marxista, foi ressignificado para a refilantropização da solidariedade e a transferência de
responsabilidades sociais para a família, a comunidade e o mercado. Foi a época de ouro do “terceiro setor”, do
“mercado altruísta” ou da chamada “responsabilidade social das empresas”. Houve uma audaciosa alienação do
patrimônio público, aliada ao chamamento à participação social.

A sucessão de Fernando Henrique Cardoso deu origem a uma longa controvérsia: a vitória do ex-metalúrgico Luiz
Inácio Lula da Silva foi uma ruptura ou uma continuidade em relação à agenda trazida por Collor de Melo e
aprofundada pelo seu sucessor? Na pior das hipóteses, Lula teria acrescentado uma agenda social à agenda
econômica de Fernando Henrique Cardoso. O fato é que a chamada sociedade civil brasileira foi assaltada por
uma imensa crise de identidade, sobretudo com a cooptação de antigas lideranças sindicais, comunitárias e
estudantis pelo governo petista, enquanto a sociedade via estarrecida a sucessão de escândalos no Congresso
nacional.

Neste ponto, é preciso convir que Lula assistencializou os direitos e neutralizou os efeitos disfuncionais do Poder
Legislativo sobre seu governo. A idílica sociedade civil brasileira vem a muito custo procurando se rearticular, fora
do espaço da cooptação e do governismo, mas encontra dificuldades por causa do grau de apoio que o governo
desfruta seja entre as elites econômicas do país, seja entre os excluídos sociais, que, graças à ampliação
significativa da Bolsa Família, vêm cruzando a linha que separa a miséria da pobreza.

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Michel Zaidan Filho é professor da Universidade Federal de Pernambuco.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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