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Instituto Superior en Lenguas Vivas - Juan Ramón Fernández

CARREIRA: Tradutorado em Português

Trabalho integrador
sobre a
intertextualidade

Convergências entre o romance

Incidente em Antares e o filme A casa dos espíritos

NOME: Marcelo Levit

DISCIPLINA: Literatura Brasileira

PROFESSORA: Caroline Pfeifer

1ro quadrimestre de 2014


Marcelo Levit
Literatura Brasileira

O objetivo deste trabalho é analisar as relações de intertextualidade que se


apresentam no romance Incidente em Antares (1995), do escritor brasileiro Erico
Veríssimo, e no filme A casa dos espíritos (1993), do diretor danes Bille August, cujo
roteiro é uma adaptação do livro homônimo (1982) da autora chilena Isabel Allende.

O estudo se circunscreve aos seguintes traços comuns:

 Fatos históricos com valor testemunhal;


 Elementos do realismo maravilhoso;
 Metaliteratura como recurso narrativo; e
 Ideologemas indicadores do conservadorismo.

Primeiramente, serão brindados os conceitos teóricos sobre a intertextualidade. A


seguir, se darão as sinopses das obras nomeadas, para logo continuar com o
desenvolvimento do estudo propriamente dito, para finalizar com a conclusão do
trabalho.

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Marcelo Levit
Literatura Brasileira

Convergências entre

Incidente em Antares e A casa dos espíritos

O presente trabalho tem por objetivo assinalar as relações intertextuais entre o


romance “Incidente em Antares”, do escritor brasileiro Érico Veríssimo, e o filme “A
casa dos espíritos”, dirigido pelo danes Bille August, cujo roteiro é uma adaptação
do livro homônimo de Isabel Allende.

Essas relações intertextuais são evidenciadas pela existência de alguns traços


comuns entre as duas obras, como ser certos temas ou caráteres narrativos. No
entanto, isso não tem que ser confundido com influencias, mas como a existência de
certas condições históricas e culturais, presentes em determinada região e época,
que condicionam as expressões artísticas.

Como essa finalidade, são apresentados os traços comuns no referente a:

 Fatos históricos com valor testemunhal;


 Elementos do realismo maravilhoso;
 Metaliteratura como recurso narrativo; e
 Ideologemas indicadores do conservadorismo.

Porém, prévio à descrição dessas relações intertextuais, é conveniente definir


alguns conceitos teóricos sobre a intertextualidade.

Intertextualidade

Para desenvolver este tema nos baseamos na teoria da intertextualidade segundo


foi conceitualizada por Barthes e na noção de ideologema definida por Julia Kristeva.

Barthes explica a intertextualidade como:

La intertextualidad, condición de todo texto cualquiera que sea, no se


reduce evidentemente a un problema de fuentes o de influencias. […]
Epistemolágicamente, el concepto de intertexto es lo que aporta a la teoría
del texto el volumen de la socialidade: es todo el lenguaje, anterior y

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contemporáneo, que llega al texto no según la vía de una filiación


identificable, de una imitación voluntaria, sino según la vía de diseminación
(imagen que asegura al texto el estatuto no de una reproducción, sino de
una productividad). (Em VILLALOBOS ALPÍZAR, 2003, p. 140)

Para uma melhor compreensão desse conceito, Iván Villalobos (Cf. 2003, p. 137)
explica que o termo intertextual faz referencia a uma relação de reciprocidade entre
os textos, isto é, uma relação entre eles, num espaço que transcende o texto como
unidade fechada:

El texto no existe por sí mismo, sino en cuanto forma parte de otros textos,
en tanto es el entre texto de otros textos. En este punto, citamos a Barthes:
“La intertextualidad en la que está inserto todo texto, ya que él mismo es el
entretexto de otro texto…”
[…]
No sólo todos los textos anteriores forman parte del intertexto latente de
todo texto, sino también el conjunto de los códigos y sistemas que operan
esos textos, es decir, su dimensión estructural y estructurante.
(VILLALOBOS, 2003, p. 138)

Por sua vez, para Julia Kristeva (1984, p. 12) a intertextualidade está baseada na
noção de ideologema, termo definido por ela como:

[...] aquela função intertextual que podemos ler “materializada” nos vários
níveis da estrutura de cada texto, e que se estende ao longo de todo o seu
trajeto, dando-lhe as suas coordenadas históricas e sociais [...] A aceitação
de um texto como ideologema determina a própria atitude de uma semiologia
que, estudando o texto como intertextualidade, o pensa, pois, na (nos textos
da) sociedade e na história.

Com esse critério, todo texto literário está constituído por ideologemas que se
evidenciam na forma em que são caraterizados os personagens, seu falar, suas
atitudes, deste modo dão conta do modelo de vida e da sociedade que representam.

Esse conceito é esclarecido por Carlos Altamirano e Beatriz Sarlo [CITATION ALT93 \p
54 \n \t \l 11274 ] da seguinte maneira:

El ideologema es la representación, en la ideología de un sujeto, de una


práctica, una experiencia, un sentimiento social. El ideologema articula los
contenidos de la conciencia social, posibilitando su circulación, su
comunicación y su manifestación discursiva en, por ejemplo, las obras
literarias. Son ideologemas los que entran como contenidos de las
representaciones literarias, porque la vida social no puede pasar a la
literatura sin la intermediación de estas unidades discursivas.

Baseado nesses conceitos teóricos, é que são despontadas as relações intertextuais


existentes em ambas as obras analisadas.

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Sinopses

Incidente em Antares, publicado em 1971, é o último romance de Érico Veríssimo.


Com um sentido visivelmente político, este romance sintetiza, de um lado, o curso
sócio-político do Brasil contemporâneo; de outro, faz um fantástico julgamento dos
vivos por parte de sete mortos insepultos.

A obra, ambientada na fictícia cidade de Antares, no Rio Grande do Sul, conta a


história das sucessivas gerações dos clãs Vacariano e Campolongo, e suas
continuas lutas pela primazia do poder local, desde 1830 até 1964. Todo isso
misturado com dados da realidade histórica do Brasil, em que os acontecimentos e
vaivéns políticos e sociais constituem o palco onde se sustenta toda a obra.

Entretanto, além de todos esses acontecimentos históricos e sucessos fictícios, mas


verossímeis, um incidente sobrenatural, que dá nome à obra, altera a vida cotidiana
da cidade numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1963.

O incidente em questão se origina, como uma consequência não esperada, por uma
greve geral declarada pelos trabalhadores de Antares. Entre eles os coveiros que se
recusam a enterrar os mortos. Por isso, sete defuntos insepultos reclamam pela sua
situação e ameaçam ficar apodrecendo na praça principal até serem enterrados.

Por sua vez, o filme A casa dos espíritos (1993), cujo título original é The House of
the Spirits, está baseado no primeiro romance da escritora chilena (1982).

O argumento descreve a história da família Trueba ao longo de três gerações, cujas


vivencias se ligam com fatos de caráter social e político do Chile, nos primeiros
setenta anos do século XX.

Esteban Trueba se torna, depois de trabalhar afanosamente, num próspero


fazendeiro. Na sua propriedade rural, ele é o patrão que subordina a toda pessoa
considerada socialmente inferior e cuja dominação não é apenas social, mas
também sexual.

Assentado no seu domínio, Esteban decide casar-se com Clara del Valle, quem tem
dons sobrenaturais de clarividência e telecinesia, a par de poder comunicar-se com
espíritos.

Do casal nasce Blanca, quem enfrenta o pai por manter um relacionamento com
Pedro, um camponês com ideias socialistas.

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Os conflitos familiares dos Trueba se veem emaranhados com os sucessivos


acontecimentos que dominam a cena política do Chile. O aumento das
reivindicações sociais resulta no triunfo eleitoral do partido socialista. A seguir, uma
conspiração conservadora deriva no golpe de estado de 1973 por parte dos
militares, e a decorrente repressão politica.

Fatos históricos com valor testemunhal

Como foi adiantado nas sinopses, nas duas obras se mistura ficção com fatos
históricos reais.

Dessa maneira, são revividos no romance de Veríssimo numerosos episódios da


vida politica brasileira que estão inseridos no dia-a-dia dos personagens. A modo de
exemplo se apresentam os seguintes trechos:

Quando em novembro de 1926 chegou a Antares a notícia de que Getúlio


Vargas havia sido feito Ministro da Fazenda do gabinete de Washington
Luís, que sucedera Artur Bernardes na presidência da República [...] 1

Quando em 1934 o Brasil adotou uma nova Constituição e Getúlio Vargas


foi eleito Presidente da República pela Assembléia Constituinte [...] 2

[...] em outubro de 1945 [...] o Exército havia forçado Getúlio Vargas a


renunciar. [Logo após] o Gen. Goes Monteiro justificava o golpe de Estado,
assumindo plena responsabilidade por ele.3

Em 1955 o P.S.D. e o P.T.B. elegeram Juscelíno Kubitschek de Oliveira


Presidente e João Belchior Goulart Vice-Presidente da República. 4

No dia 7 de setembro de 1961 o Dr. João Belchior Goulart prestava


juramento como Presidente da República e o Brasil adotava o regime
parlamentar.5

É assim como, ao longo do livro, é possível ver como se foram encadeando os elos
que definiram a história brasileira até chegar ao golpe de estado de março de 1964,
que depôs o presidente João Goulart e instaura a ditadura militar, assim como suas
sequelas.

Acusado de comunista, Goulart, popularmente chamado de Jango, teve que


enfrentar uma forte campanha da oposição, além de numerosas greves e agitações

1
VERÍSSIMO, 1995, p. 60-61
2
Ibid., p. 66
3
Ibid., p. 82-83
4
Ibid., p. 139
5
Ibid., p. 186-187

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originadas como consequência da má situação econômica. [ CITATION Gas10 \l 11274 ]

Em março de 1964, as forças armadas, juntos com políticos de direita e o governo


norte-americano, e com apoio da igreja católica, perpetraram o golpe de estado
[ CITATION Gas10 \l 11274 ]. As suas implicações –suspensão dos direitos trabalhistas,
perseguição e assassinato político- também se refletem na obra de Veríssimo:

Lucas Lesma [...] compôs para o seu jornal um artigo [...] no qual, entre
elogios à revolução vitoriosa, escreveu: “Agora que as greves estão
felizmente proibidas por lei, reina a maior harmonia entre patrões e
empregados, e os sindicatos e os trabalhadores não vão mais ser usados,
como acontecia no governo deposto, como instrumentos de política
partidária, nem como fatores de desordem social” 6.

Entretanto, aqueles que o regime considerava opositores eram perseguidos e tinham


que emigrar ou simplesmente “desapareciam”:

Caçado pela polícia do novo governo, Geminiano Ramos uma noite


atravessou o rio às pressas, na lancha do Romero, e ambos pediram asilo
na Argentina 7.

[...] o Prof. Martim Francisco Terra que, expurgado com vários outros
colegas da sua universidade, emigrara para o Chile 8.

Os dedicados guardas municipais [...] abriram fogo contra um estudante


que, com broxa e piche, tinha começado a pintar um palavrão num muro [...]
Na calçada, no lugar em que o rapaz caiu, ficou uma larga mancha de
sangue enegrecido [...] 9

De forma similar, na larga metragem de Bille August os fatos históricos se inserem


na vida da família Trueba e detonam a partir da contenda eleitoral pela presidência
do Chile entre o Partido Conservador e o Frente Popular.

A diferença do romance brasileiro em que, segundo a nota do autor, “[...] as pessoas


e os lugares que na realidade existem ou existiram, são designados pelos seus
nomes verdadeiros”, no filme não é mencionada nenhuma personalidade histórica,
mas todo indica que o presidente eleito é Salvador Allende [CITATION BIB \l 3082 ].

Na tevê, um noticiarista anuncia a vitória do Frente Popular. Os conservadores


foram derrotados após estar no poder por mais de uma geração. 10

Todavia, a direita conservadora planeja derribar o governo legitimo. Com esse

6
VERÍSSIMO, 1995, p. 724
7
Ibid., p. 724
8
Ibid., p. 727
9
Ibid., p. 729
10
A CASA…, 1993, 1:33:55

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propósito, tenta incrementar o descontento da população produzindo


desabastecimentos de mercadorias, coopta os militares e procura o apoio dos
Estados Unidos.

Em alguns trechos do filme aparecem situações que dão conta desses fatos:

 Na véspera de Natal, Blanca responde à queixa de seu pai pela falta de


comida, roupa, sapatos e outras mercadorias, que ele sabia quem estava por
trás das greves e que todo o mundo sabia que isso era uma sabotagem ao
governo socialista.11.
 Na cena em que Trueba exige uma explicação pela detenção de Blanca, ele
confessa ao militar que o recebe que foram os conservadores os que
estabeleceram contato com os generais e o vínculo com os americanos para
propiciar o golpe de estado, além de garantir com seu próprio dinheiro e
reputação as armas utilizadas12.

Finalmente, toda essa estratégia planejada pela direita chilena deriva no golpe que
derroca o governo socialista [CITATION lav13 \l 3082 ]. Os militares dominam a cena,
tanques, aviões de combate e soldados invadem a cidade, o exercito toma posse da
situação, enquanto milhares de civis são apanhados e privados da liberdade 13.

O noticiário informa que o governo eleito democraticamente está sendo atacado


pelos militares. Por sua vez, o Partido Conservador dá seu apoio ao golpe, e afirma
que assumirá o governo quando os militares tiverem imposto ordem no país. Uma
coisa é certa: o país está sendo controlado pelas Forças Armadas 14.

Considerados opositores ao novo regime, Pedro e Blanca são perseguidos. Pouco


tempo depois, ele consegue refugiar-se na embaixada de Canada 15, mas ela é
aprisionada e cruelmente torturada16.

Elementos do realismo maravilhoso

O realismo maravilhoso, também denominado fantástico ou mágico 17, é explicado

11
Ibid., 1:39:30
12
Ibid., 1:56:00
13
Ibid., 1:45:10
14
Ibid., 1:47:03
15
Ibid., 2:03:00
16
Ibid., 1:58:00 e 2:06:00

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por Follain de Figueiredo[CITATION FOL13 \p 19 \n \t \l 11274 ] como a vertente da ficção


latino-americana na qual “[...] tudo é possível: os elementos sobrenaturais não
provocam maiores reações nem nas personagens nem no leitor”. Para a professora,
esse gênero:

[...] consistiu numa afirmação identitária da América Latina e, ao mesmo


tempo, numa revisão crítica da modernidade ocidental. O “maravilhoso” foi
interpretado como elemento identificador da cultura latino-americana, como
traço característico que a distinguia do mundo europeu. [CITATION FOL13 \p
17 \n \l 11274 ]

Daí a importância de conhecer o contexto cultural para entender a natureza deste


gênero narrativo, pois:

[...] o realismo mágico floresceu com esplendor na literatura latino-


americana dos anos sessenta e setenta, enraizado nas discrepâncias
surgidas entre cultura da tecnologia e cultura da superstição, e em um
momento em que o auge das ditaduras políticas converteu a palavra numa
ferramenta infinitamente apreciada e manipulável. [ CITATION UNI00 \l
11274 ]

Conforme isso e comparando os processos históricos do Brasil e do Chile, é


possível reconhecer que as duas narrativas foram criadas em circunstâncias sócio-
políticas similares, as que definitivamente determinaram as respectivas escritas dos
autores.

Nas sinopses estão descritos os elementos sobrenaturais das duas estórias. Embora
sejam de diferente natureza, a presença do fantástico é assumida com total
naturalidade e se situa no mesmo plano da realidade cotidiana. De forma tal, que o
conceito do real se amplia para dar lugar a uma realidade mágica, assumida como
normal: os espíritos passeiam pelos quartos e os mortos se despedem de seus
seres queridos, enquanto convivem com os vivos influindo suas existências.

No romance de Veríssimo, o realismo maravilhoso se manifesta a partir da segunda


parte do livro, quando o “incidente” propriamente dito acontece. Ainda que, no início
antecipe o teor “fantástico” do ocorrido na sexta-feira, 13 de dezembro de 1963:

[...] tão fantásticos foram esses acontecimentos, que o Pe. Gerôncio chegou
a exclamar, dentro de seu templo, que aquilo era o começo do Juízo Final. 18

17
As noções de fantástico, mágico e maravilhoso não se restringem ao universo artístico e são usadas
indiscriminadamente na comunicação cotidiana, como se fossem sinônimos. Por outro lado, no campo da
literatura, ainda que se tenha tentado, não se conseguiu estabelecer um critério demarcatório objetivo que
permitisse identificar e catalogar as obras segundo cada uma dessas denominações. [CITATION FOL131 \p 24 \t
\l 11274 ]
18
VERÍSSIMO, 1995, p. 7-8

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Porém, é a partir do momento em que os mortos insepultos foram acordando que o


elemento fantástico toma conta da narrativa:

Os olhos dela estavam abertos, seus lábios começaram a mover-se e deles


saiu primeiro um ronco e depois estas palavras, nítidas: “Senhor, em vossas
mãos entrego a minha alma”.
[...]
Agora, estendida no seu esquife, D. Quitéria está de olhos abertos e parece
contemplar um pedaço do firmamento da madrugada.19

Esse fato extraordinário irrompe no cotidiano, como parte do mundo natural, de tal
sorte que um dos defuntos:

[...] olha atentamente na direção da cidade, murmura:


– Já repararam? Não se vê nenhuma luzinha em Antares... Nem nas ruas
nem nas janelas.
[..]
– Ah! – exclama Barcelona de repente, dando uma palmada na própria
testa. – Já sei... Está tudo claro. A greve continua... 20

E esse morto esclarece o motivo pelo qual estavam insepultos:

[...] Pedi a palavra e sugeri que metessem os coveiros na greve geral e que
não permitissem nenhum sepultamento no cemitério enquanto os patrões
não dessem ganho de causa aos operários. Agora tudo está explicado! 21

Nesse contexto de normalidade, os sete defuntos decidem descer do cemitério à


cidade de Antares para reclamar pelo seu direito a ser sepultados.

E com igual naturalidade, cada um dos mortos terá conversas com diferentes
pessoas com quem mantinham algum tipo de relacionamento em vida – filhos,
esposa, amigos, conhecidos etc. Até mesmo, alguns deles ficaram esperando o
encontro, como é o caso da Rosinha que se arruma especialmente para a ocasião:

Quando lhe vêm contar que Erotildes voltou à cidade na companhia de


outros seis defuntos insepultos, Rosinha pensa assim: “Aposto que ela vem
me visitar...” Mas não diz nada a ninguém. Veste o seu melhor vestido,
calça os seus sapatos menos velhos, pinta-se e – tudo isso feito – senta-se
na cama de ferro que ambas por muito tempo partilharam [...] 22

Quando a Erotilde chega ao quarto da sua amiga mantem o seguinte dialogo:

– Como vais?
– Mais ou menos. E tu?

19
VERÍSSIMO, 1995, p. 344-345
20
Ibid., p. 361
21
Ibid., p. 362
22
Ibid., p 426-427

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– Morta.
– Como foi que voltaste?
– Não sei. Mas o Dr. Cícero está providenciando pra enterrar a gente. O
advogado, te lembras? E tu sabes quem está no nosso grupo? Uma grã-
fina, a D. Quitéria Campo-largo. Imagina só que chique!
Rosinha sacode a cabeça lentamente, imaginando... Depois baixa os olhos
e murmura:
– Tu me desculpas por eu ter ficado com o teu vestido, as tuas meias, o teu
sapato... e as outras bugigangas?
– Ora, que bobagem! Defunto não precisa mais dessas coisas.
– Tu não te ofendes se eu espalhar um pouco de perfume?
– Ora! Não me importo. Sei que estou fedendo. Mas que é que tu queres?
Morta há quase três dias... Ou dois? Nem me lembro. 23

De maneira similar, A casa dos espíritos também incursiona no realismo mágico,


embora apresente algumas diferenças com respeito ao romance brasileiro: o
elemento fantástico está ligado principalmente a uma das protagonistas principais,
Clara, e manifesta-se ao longo de toda a história, desde sua infância até mesmo
depois de morta.

Clara tem o dom da clarividência e da telecinesia, além de poder comunicar-se com


os espíritos. Suas faculdades sobrenaturais são aceitas pela comunidade com total
naturalidade, e não obstante seus pais tentassem mante-las em segredo, todo
mundo sabia delas e consultavam-na, clandestinamente, para pedir conselho 24.

A seguir, alguns exemplos:

 Clarividência

Clara podia responder consultas sobre o futuro, mas também experimentava


visões de acontecimentos futuros involuntárias, como quando a morte da irmã
25
ou o acidente fatal dos pais 26.

 Comunicação com espíritos

Clara sempre esteve em contato com os espíritos do além 27. Numa ocasião,
Clara começa a sentir frio e certo desconforto, para surpresa de todos os
presentes, Férula, a irmã de Esteban, apresenta-se, sem falar beija a testa de
Clara e vai embora tão silenciosamente como apareceu. Clara diz, entre

23
VERÍSSIMO, 1995, p. 428
24
A CASA…, 1993, 00:05:29
25
Ibid., 00:06:28
26
Ibid., 00:37:00
27
Ibid., 01:41:19

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soluços, “Férula morreu”. 28

 Telecinesia

Quando Esteban se apresenta para pedir a mão de Rosa, Clara, ainda uma
criança, se entretém movendo com a sua mente um vaso com flores. Sem
demostrar estranheza alguma, Esteban pega o vaso em movimento para
evitar sua caída ao chão. 29

Muitos anos depois e em plena lua de mel, Clara eleva uma mesinha só com
olha-la, nesse momento seu marido a retorna a seu lugar, como quem
concerta a travessura de uma criança.30

Metaliteratura como recurso narrativo

Helder Macedo [CITATION Mac93 \p 199 \n \t \l 11274 ] afirma que há uma:

[...] crescente tendência para memorialismo, autobiografia e ficção


convergirem em romances e novelas que chamam atenção para a sua
própria natureza e processos de composição, ou seja, que incluem as
estratégias de auto-referenciação textual – quando não intertextual – a que
se convencionou chamar de ‘metaliteratura’.

Em Incidente em Antares, os fatos são relatados por um narrador onisciente e


onipresente. Contudo, ao longo do romance, faz uso dos escritos de diversos
personagens. Entre eles há documentos históricos como o diário de viagem de
Gaston Gontran d’Auberville31 e a carta do Padre Juan Bautista Otero 32; também
estão os diários intimos do Padre Pedro-Paulo 33 e do Prof. Martim Francisco Terra 34;
artigos jornalisticos de Lucas Faia 35; e fragmentos da “obra intitulada Anatomia duma
cidade gaúcha de fronteira, da autoria dum grupo de professores e alunos do Centro
36
de Pesquisas Sociais, da Universidade do Rio Grande do Sul”.

A modo de exemplo, se transcrevem os seguintes trechos:

[...] Escreveu o ilustre cientista [Gaston Gontran d’Auberville ] em seu diário

28
Ibid., 01:05:20
29
A CASA…, 1993, 00:03:54
30
Ibid., 00:29:30
31
VERÍSSIMO, 1995, p. 8-14
32
Ibid., p. 14-15
33
Ibid., p. 197; 438-444; 657-664
34
Ibid., p. 223-284
35
Ibid., p. 388-396; 492-494; 518-519
36
Ibid., p. 187; 205-213

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de viagem :
24 de abril. – Cruzamos esta manhã o Rio Uruguai, numa balsa, e entramos
em território do Brasil. [...]37

Essa marcha dos mortos [...] seria descrita [...] por Lucas Faia: Foi na última
sexta-feira 13 deste cálido e, já agora, trágico dezembro. O dia amanheceu
luminoso, de céu limpo e translúcido [...]38

Do diário íntimo do Pe. Pedro-Paulo :


13 de dezembro. Cinco e quinze da tarde. Confusão de espírito ante os
fantásticos acontecimentos do dia. [...]39

De modo similar, no filme, a narradora, Blanca, se baseia no diário de sua mãe para
contar a história da sua família.

No princípio, Blanca explica que a sua mãe escreveu seus cadernos “de guardar a
vida” para poder seguir o transcurso do tempo 40.

Desde criança, Clara escrevia tudo, segundo ela para poder ver as coisas em sua
dimensão real. E é escrevendo no seu caderno como a menina aparece na cena em
que Esteban vá a pedir a mão da sua irmã Rosa 41.

Em outra ocasião, Clara, já adulta, está escrevendo seu diário quando o marido a
interrompe para tentar congraçar-se depois de brigar com ela 42.

Já no final do filme, vemos a Blanca folheando os cadernos da mãe enquanto refletia


sobre a inutilidade da vingança e sobre que o mais importante de tudo é a vida
mesma43.

Além de ser utilizada a metaliteratura como estratégia de composição nas duas


obras, também transmite uma mensagem que, a modo de moral, encerra um
ensinamento: a história deve ser escrita para que não seja esquecida e poder
aprender dela para não repetir os erros do passado.

É importante ressaltar o papel que joga a escritura nas duas obras como ferramenta
para manter viva a memória e contrapesar a intenção, própria dos regímenes
autoritários, de silenciar a verdade crítica.

É por isso mesmo que o professor Martim Francisco disse a seus amigos quando se

37
Ibid., p. 8
38
VERÍSSIMO, 1995,, p. 388
39
Ibid., p. 438-439
40
A CASA…, 1993, 0:02:00
41
Ibid., 0:03:02
42
Ibid., 0:56:20
43
Ibid., 2:15:39

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despedia:

– Acho que no Brasil devemos ser pessimistas a prazo curto e otimistas a


prazo longo. Até mais ver, Pedro-Paulo! Até março, Xisto! Escrevam!
Escrevam!44 (grifo nosso)

Esse pedido é um claro e desesperado intento por remediar os efeitos da chamada


“Operação Borracha”, cujo objetivo era “[...] apagar esse fato não só dos anais de
Antares como também da memória de seus habitantes.”45

E assim, como Martim Francisco redige seus diários íntimos, Clara escreve seus
cadernos de vida, Com a mesma intenção com que de que sirvam para resgatar as
coisas do passado e ajudem a sobreviver ao próprio espanto 46.

Ideologemas indicadores do conservadorismo47

Ambas as estórias, concebidas durante regimes autoritários, manifestam uma


severa crítica à repressão das ditaduras.

Atravessadas por um forte conteúdo político e crítica social, cada uma das obras
encerra um grande leque de ideologemas que caracterizam diversas posições
ideológicas.

De todos os ideologemas presentes nas duas obras, analisa-se aquele que


representa as ideias ou atitudes próprias do conservadorismo, isto é, de quem
postula a defesa da manutenção dos valores tradicionais da moral, dos costumes,
da autoridade estabelecida:

Em Antares, quem melhor representa os conservadores é “[...] o Cel. Tibério


Vacariano, flor do patriciado rural de Antares [...]”48. É o típico fazendeiro que não
admite que ninguém o contradissesse, tanto assim que trata todo mundo como a
seus peões que baixam a cabeça e o obedecem 49:

[...] Tibério punha-se a caminho do Rio Grande do Sul, de Antares e das


suas terras, onde tornava a ser o estancieiro, o patrão, o homem que

44
VERÍSSIMO, 1995, p. 715
45
VERÍSSIMO, 1995, p. 695
46
A CASA…, 1993, 2:15:30
47
"conservadorismo", in iDicionário Aulete: online, 2008. Disponível em
<http://aulete.uol.com.br/conservadorismo > Acesso em: 28 jun. 2014.
48
VERÍSSIMO, 1995, p. 88
49
Ibid., p. 71

13
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manda, desmanda e grita.50

No filme, seu equivalente é Esteban Trueba, quem trata aos trabalhadores da


fazenda com a mesma severidade. Como todo “patrão”, ele considera que os
camponeses são como crianças que necessitam serem cuidados por alguém e
tratados com mão de ferro, pois essa é a única linguagem que entendem 51.

Os dois fazendeiros não duvidam em usar a força das armas para impor seu poder:

[O] Cel. Vacariano [...] propôs voltar para a cidade, reunir os seus
“caboclos”, armá-los, tornar à esplanada e romper as fileiras proletárias
usando da maior violência possível, “pra que isso sirva de escarmento a
esses bandidos comunistas”.52

Também Trueba se mostra disposto a utilizar a força para manter sua autoridade.
Como na cena em que ele se topa com o Pedro exortando aos camponeses para
lutar pelos seus direitos. Perante semelhante situação, o patrão os ameaça com um
rifle para que voltarem ao trabalho e termina açoitando o Pedro por seu desaforo 53.

Em outra ocasião, Trueba, lembrando essa situação, assevera que houvesse


matado o Pedro aí mesmo54.

Outra particularidade dos conservadores é a sua atitude aguerrida para resguardar


suas propriedades caso estiverem ameaçadas pela intervenção do governo.

Para mostrar sua determinação, o Cel. Vacariano afirma que:

[...] enquanto eu estiver vivo, hei de espernear, gritar, queimar até o último
cartucho defendendo o que me pertence, o que herdei de meu pai (tanto
terras e títulos e gado, como tradições) [...] Ninguém põe a mão no que é
meu sem a minha licença. Não aceito essas idéias modernas de socialismo,
comunismo e sei lá quê mais55.

Por sua vez, Trueba receia que o governo socialista aproprie sua fazenda e a
entregue ao povo, para prevenir isso acha conveniente fazer alguma coisa e
depressa. Ao igual que o coronel gaúcho, o senador não dispensa o uso a força para
defender sua propriedade, mas ele reclama a intervenção dos militares para que
instaurem a ordem no país56.

50
Ibid., p. 74
51
A CASA…, 1993, 1:04:30
52
VERÍSSIMO, 1995, p. 336
53
A CASA…, 1993, 1:01:56
54
Ibid., 1:04:22
55
VERÍSSIMO, 1995, p. 155-156
56
A CASA…, 1993, 1:39:30

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Marcelo Levit
Literatura Brasileira

Esse mesmo tipo de ordem imposta pelos militares é a reclamada pelo Cnel.
Vacariano quando diz:

– As Forças Armadas, moço, um dia vão apertar os parafusos frouxos deste


país. Precisamos, antes de mais nada, de ordem.57

Como podemos avaliar, tudo isso traz à colação a propensão desses grupos
conservadores para aliar-se com as forças armadas para derrocar os governos
populares:

– O velho Tibério (ele próprio me confessou isso claramente) é a favor duma


ditadura militar como último recurso para salvar o que ele chama de
“democracia brasileira”58.

De fato, tanto o fazendeiro chileno como seu colega brasileiro aderem à desejada
intervenção militar:

Quando chegou a Antares a notícia de que as Forças Armadas, sob o


comando do Ministro da Guerra, tinham acabado de dar um golpe de
Estado, Tibério Vacariano exultou, saiu para a rua, fez um comício mirim na
praça, e bravateou durante o chimarrão das dez. O país estava salvo! 59

Trueba também festeja a caída do governo democrático. Sentado sozinho na sala,


frente da tevê, o jornalista informa que as Forças Armadas estavam perpetrando um
golpe de estado. Sorridente, abre uma garrafa de champanha e brinda pelo triunfo 60.

Conclusão

A análise comparativa destas obras nos permite observar uma série de traços
comuns, tanto no formato narrativo quanto na maneira de retratar a sociedade, como
ser a inclusão de fatos históricos para encenar a ficção, elementos sobrenaturais
para recriar uma realidade maravilhosa e, finalmente, a estratégia narrativa da
metaliteratura a modo de moral. Tudo isso põe em destaque as relações
intertextuais que se estabelecem entre os dois discursos examinados.

Outra questão interessante de destacar é maneira como são expostas a violência e


a opressão vividas sob governos ditatoriais, embora se situem em momentos e

57
VERÍSSIMO, 1995, p. 710-711
58
VERÍSSIMO, 1995, p. 280
59
Ibid., p. 144
60
A CASA..., 1:47:03

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Marcelo Levit
Literatura Brasileira

lugares distintos, dá conta do engajamento político de seus criadores e revela como,


ainda sendo obras de diferente natureza, se aproximam de modo apreciável.

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Marcelo Levit
Literatura Brasileira

REFERENCIAS

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