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TROVADORISMO

Um banquinho e um violão

A primeira das assim chamadas escolas literárias têm suas raízes (e sua duração
majoritária) na Idade Média. O Trovadorismo recebe esse nome por contar com os
chamados trovadores como seus maiores poetas. Os trovadores, hoje em dia sinônimo
de poeta, eram aqueles que recitavam poemas acompanhados de instrumentos enquanto
houvesse a recitação.

Sabe nos filmes medievais onde sempre tem um cara tocando um violão e
cantando coisas (o chamado bardo)? Então, esse rapaz também era conhecido como
trovador e era o principal poeta da época.

Essa forma poética teve origem na Provença, uma região meridional francesa
que era um grande epicentro cultural naqueles tempos. Por conta das Cruzadas, os fiéis
deveriam buscar o porto mais próximo para embarcar para a África: Lisboa. Com um
caminho bastante intenso, os trovadores se utilizavam desse caminho para chegar até
Portugal.

Nessa época, Portugal tinha uma certa unidade cultural lingüística com a Galiza
(ou Gália1) ainda que não existisse o país Portugal. Dessa forma, a língua falada (e,
portanto, utilizada nas obras literárias) era o galego-português.

Contextualização histórica

É importante ressaltar que o Trovadorismo é completamente medieval. Surgido


por volta do século XI, ainda que na Baixa Idade Média, teve forte influência de tudo o
que acompanhou a Idade das Trevas.

Esse nome utilizado para designar essa era da civilização é importante do ponto
de vista cultural. Ela era assim chamada porque o ser humano viveu numa época de
ignorância nunca vista desde que a civilização surgiu. Se pararmos pra pensar nos
grandes impérios que existiram e na grande produção cultural e científica que tiveram
antes dessa época, fica fácil percebermos isso: Egito, Grécia, Pérsia, Romanos. Todos
eles unificaram e promoveram grandes trocas culturais entre os povos que
conquistaram. Trocas essas, como todo mundo sabe, são essenciais para a construção de
conhecimento.

Portanto, essa Idade das Trevas recebe esse nome porque o ser humano vivia em
trevas intelectuais, vendado por uma sociedade fragmentada e, como nunca na história
do mundo, sem unidade estatal nenhuma. Quer dizer, é sabido que as civilizações eram
formadas por cidades-estado e províncias que brigavam entre si, porém eles detinham
1
Curiosidade: o símbolo da França é um galo (é possível reparar isso no uniforme da seleção de futebol).
Assim o é porque a Gália, a região que define a França, vem do prefixo “gali” que, por sua vez, vem do
latim “gallus” que, significa, galo.
uma unidade que permitia nomeá-los como gregos, egípcios ou persas. Em resumo: os
impérios foram a primeira forma que o ser humano conheceu de governo estabilizado.

Essa unidade política não fazia com que existisse uma unidade cultural e, como
a maioria das religiões e culturas antigas não via problemas em entender o mundo e
continuarem com suas crenças espirituais, a produção científica e cultural era imensa.

Aí que os Romanos conquistaram o mundo Ocidental praticamente inteiro e


resolveram brincar de Cristianismo. Mais do que isso: fundaram a Igreja Católica
Apostólica Romana e proibiram todas as outras formas de religião que antes existia em
suas terras (coisa que não acontecia anteriormente). Pela primeira vez o mundo ficou
unificado culturalmente e, com o enfraquecimento do Império Romano, ele foi
fragmentado em diversos pedaços pequenos que, por sua vez, se fragmentaram em mais
e mais pedaços pequenos: bem-vindos ao Feudalismo europeu.

Essa época extensa que foi o Feudalismo é o que nós chamamos de Idade das
Trevas: por conta da Igreja, as produções científicas e artísticas tinham que seguir
determinadas regras que, pra resumir, mantinha Deus como a única coisa a se referir em
obras artísticas.

Independente da crença de cada um, vale lembrar que Religião é um bem


cultural e, portanto, quando esse bem cultural é unificado (visto que as identidades
nacionais ainda estavam engatinhando e não havia nenhum monarca poderoso ou coisas
assim), nós temos um desequilíbrio grosseiro: um Estado manter a soberania unificando,
sob uma mesma bandeira, diversas culturas (como acontece atualmente com os países) é
uma coisa até que interessante, ter uma cultura unificando diversos Estados fracos que
tinham que se manterem vassalos a uma instituição religiosa extremamente poderosa é
algo inerentemente ruim.

Liberdade religiosa é liberdade cultural. Sem liberdade cultural, não há muita


produção cultural, ou, então, ela segue apenas uma linha. Além disso, a produção
cultural era censurada conforme a vontade da Igreja (além de escolher territórios, reis e
afins).

Com esse controle ferrenho da identidade cultural européia pela Igreja, o mundo
acabou por ser teocêntrico2 e, assim, ser completamente delineado pelo temor da
danação eterna que, tinha como seu maior juiz, a Igreja. Vale, mais uma vez, a
recomendação do livro (e filme) de Umberto Eco O Nome da Rosa: uma trama policial
passada num mosteiro italiano em que mostra bem a identidade cultural da época.

Enquanto que todo mundo abaixava a cabeça pra Igreja, a população comum (a
imensa maioria analfabeta) abaixava a cabeça pros senhores feudais, os donos dos
pequenos territórios. Ao fazerem isso, eles assumiam a vassalagem de parte de sua
produção ir para o senhor feudal e, em troca, o senhor feudal oferecia segurança com

2
que tem Deus como o ponto de convergência de tudo.
seu exército particular formado por cavaleiros além de poderem permanecer em suas
terras produzindo.

Essa relação de vassalagem presente em todos os cantos da sociedade medieval é


essencial para a produção poética da época: a produção principal da poesia trovadoresca
é a subserviência completa de alguém em relação a outro. Finalmente, vamos para a
parte que interessa.

O Nascimento da Poesia Portuguesa

Agora já contextualizados, podemos prosseguir com a explanação da poesia da


época. A primeira diferença do resto da poesia produzida pela história (exceto a da
Antiguidade) é o acompanhamento instrumental. Vale lembrar que as poesias dessa
época eram feitas para serem cantadas com o acompanhamento dos instrumentos (como
era feito na Grécia antiga) e, portanto, receberam o nome de cantigas.

Podemos dividir a poesia trovadoresca em dois tipos: a lírico-amorosa e a


satírica. Da lírico-amorosa podemos dividir em cantigas de amor e amigo, enquanto
que a satírica dividimos em cantigas de escárnio e maldizer. Vamos defini-las:

Cantiga de Amor: este tipo de cantiga define-se, de acordo com a “Arte de Trovar” que
precede o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, pela circunstância de que “eles falam na
primeira cobra” (estrofe). Nela, o trovador empreende a confissão, dolorosa e quase
elegíaca, de sua angustiante experiência passional frente a uma dama que parece
indiferente, inacessível aos seus apelos, entre outras razões porque de superior estirpe
social, enquanto ele era, quando muito, fidalgo decaído. Uma atmosfera plangente,
suplicante, de litania, varre a cantiga de ponta a ponta. Os apelos do trovador colocam-
se alto, num plano de espiritualidade, de idealidade ou contemplação platônica, mas que
se entranham no mais fundo dos sentidos.

À custa de “fingidos” ou não correspondidos, os apelos amorosos ganham aura


de transcendência: repassa-os um torturante sofrimento interior que se segue à certeza
da inútil súplica e da espera dum bem que nunca chega ou parece impossível. É a coita
(sofrimento) de amor que, afinal, ele confessa.

O trovador sempre manifestava extremo respeito pela dama, sempre se referindo


a ela como “mia senhor” ou “mia dona”. Além disso, ele fazia o culto amoroso com
todas as regras impostas de “amor cortês” recebidas de Provença: o trovador teria de
mencionar comedidamente o seu sentimento (mesura), a fim de não incorrer no
desagrado (sanha) da bem-amada. Não podia, também, falar seu nome: teria que usar
um pseudônimo (senhal). Além disso, deveria seguir uma rígida estrutura de quatro
fases: a primeira era de fenhedor, de quem se consome em suspiros; a segunda de
precador, de quem ousa declarar os seus sentimentos; entendedor é o namorado; drut,
o amante.

O refrão (que nomeava esse tipo de cantiga) era um recurso típico da poesia
popular que, assim como hoje, tinha como objetivo fixar e tornar mais palatável as
trovas para o público geral. Quando não tinha o refrão, a cantiga receberia o nome de
maestria por, justamente, ter um esquema estrófico mais complexo, intelectualizado,
sem o suporte facilitador.

Cantiga de Amigo: este tipo de cantiga foca o outro lado da relação amorosa: o poema
agora representa o sofrimento amoroso da mulher, pertencente às camadas populares
(pastoras, camponesas, etc). O trovador, amado incondicionalmente pela moça humilde
e ingênua do campo ou da zona ribeirinha, projeta-se no seu íntimo e desvenda-lhe o
desgosto de amar e ser abandonada, em razão da guerra ou de outra mulher. O drama é
o da mulher, mas quem ainda compõe a cantiga é o trovador: seja porque é o próprio
trovador que é o alvo do amor não correspondido, seja porque a jovem é analfabeta, o
que era bem comum.

No geral, quem ergue a voz é a própria mulher, dirigindo-se em confissão à


qualquer coisa que ela encontrar pela frente mãe, às amigas, aos pássaros, aos
arvoredos, às fontes, aos riachos. O conteúdo da confissão é sempre formado duma
paixão intransitiva ou incompreendida, mas a que ela se entrega de corpo e Elma. Ao
passo que a cantiga de amor é idealista, a de amigo é realista, veiculando um sentimento
espontâneo, natural e primitivo por parte da mulher e um sentimento donjuanesco e
egoísta por parte do homem, que lembra o “amor livre” dos nossos dias.

Tal paixão haveria de ter sua história: as cantigas registram os “momentos” do


namoro, desde as primeiras horas da corte até as dores do abandono, ou da ausência,
pelo fato de o bem-amado estar no fossado ou no bafordo, isto é, no serviço militar ou
no exercício das armas. Por isso a palavra amigo pode significar namorado e amante.

A cantiga de amigo possui caráter mais narrativo e descritivo que a de amor, de


feição analítica e discursiva. E classifica-se de acordo com o lugar geográfico e as
circunstâncias em que decorrem os encontros amorosos: serranilha3, pastorela4,
barcarola5, bailada6, romaria7, alba ou alva8. A moça do povo geralmente era solteira,
pouquíssimas cantigas se dedicavam às casadas.

Cantiga de Escárnio e Maldizer: como os nomes já definem, não é boa coisa. A de


escárnio é aquela em que a sátira se constrói de modo indireto, por meio da ironia e do
sarcasmo, usando palavras cobertas, que hajam dois entendimentos para não entenderem
diretamente. Na cantiga de maldizer, a sátira é feita diretamente, com agressividade,
mais descobertamente, com palavras que querem dizer mal e não haverão outro
entendimento senão aquele que querem dizer claramente.

3
contém um diálogo entre um cavaleiro e uma camponesa num ambiente bucólico.
4
Veja “Écloga”.
5
o coito refere-se a ida para navegações. O amante era um marinheiro.
6
musicada, servia de fundo à dança.
7
de completa devoção ao seu amado com certo fundo religioso.
8
composições que aludem à despedida de dois amantes ao romper da aurora.
Essas duas formas de cantiga satírica, não raro escritos pelos próprios trovadores
que compunham as lírico-amorosas, expressavam o modo de sentir e de viver peculiares
de ambientes dissolutos e acabaram por se canções de vida boêmia e marginal. A
linguagem em que eram compostas admitia, por isso, expressões licenciosas ou de
baixo-calão: poesia “maldita”, descambando para a pornografia ou o mau gosto, possui
escasso valor estético, mas em contrapartida documenta os meios populares do tempo,
na sua linguagem e nos seus costumes, uma espécie de reportagem.

Era comum que, nas tabernas, a cantoria fosse acompanhada por prostitutas, cuja
vida de arruaças fazia coro com as grosserias proferidas nos versos e nas canções.

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