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2020

Amazonia Latitude Review - Volume


1, Issue 1
Marcos Colón, Rob Nixon, Rogério Almeida, Felipe da Cunha Gomes,
Bruno Malheiros, Alfredo Wagner Berno de Almeida, Raimunda
Monteiro, Julian Machado Ramos, Chanelle Dupuis, João de Jesus Paes
Loureiro, Bruno Caporrino, Nick Kawa, Túlio Zille, Jeffrey Hoelle,
Leopoldo Bernucci, Antônio Carlos Witkoski, Luis Bolognesi, Lúcio
Flávio Pinto, Antonio A. R. Ioris, Joaquim Onésimo Barbosa and
Relivaldo Pinho

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L A T I T U D E
Review
Volume 1 Ano 1 Novembro 2020
h ps://doi.org/10.33009/amazonia2020.11

Lábrea,
“Terra de
Ninguém”
Photo: Menino Ashaninka de Barbara Veiga
L A T I T U D E
Review
Amazônia Latitude review (Print) - ISSN 2692-7446
Amazônia Latitude review (Online) - ISSN 2692-7462
https://doi.org/10.33009/amazonia2020.11
EDITORIAL BOARD
Founder and Editor-in-Chief
Marcos Colón / Florida State University
Managing Editor
Lucas Lacerda / Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Assistants to the Editors
Cecilia Pessoa / Universidade Federal Fluminense
Ricardo Chaves / Universidade Federal do Amazonas
Sandro Schu / Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Managing Designer
Fabrício Vinhas / Universidade Federal Fluminense
Editorial Board
Joaquim Barbosa / Universidade Federal do Amazonas
Leopoldo Bernucci / University of California, Davis
Jessica Carey-Webb / University of New Mexico
Je rey Hoelle / University of California, Santa Barbara
Bruno Malheiro / Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
Ana Pizarro / Universidade de Santiago do Chile
Advisory Board
Antoine Acker / University of Zurique
Marcos Barros / Universidade Federal do Amazonas
Iraildes Caldas / Universidade Federal do Amazonas
Alexandre Cardoso / Universidade Federal do Maranhão
Brian Deyo / Grand Valley State University
Juan Carlos Galeano / Florida State University
Milton Hatoum / Escritor
Antonio Ioris / Cardi University
Serenella Iovino / University of North Carolina at Chapel Hill
Erik Jennings / Universidade do Oeste do Pará
Nicholas C. Kawa / Ohio State University
Ailton Krenak / líder indígena e ativista ambiental brasileiro
Vinicius Mariano de Carvalho / King s College London
Rob Nixon / Princeton University
José Alcimar de Oliveira / Universidade Federal do Amazonas
João de Jesus de Paes Loureiro / Universidade Federal do Pará
Pedro Rapozo / Universidade do Estado do Amazonas
Anne Rapp Py-Daniel / Universidade Federal do Oeste do Pará
Alberto Vargas / University of Wisconsin, Madison
Paulo Vieira / Universidade Federal do Oeste do Pará
Josué Viera / Universidade do Estado do Amazonas

Editorial O ice
625 University Way, Tallahassee, FL 32304
+1-215-200-5090 / amazonialatitudeeditores@gmail.com
Amazônia Latitude Review is jointly published by Amazônia Latitude Press LLC
and the Portuguese Program at Florida State University /
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@revistaamazonialatitude @revistaamazonialatitude @amazonialatitud

@amazonialatitude @amazonialatitude
Revista Amazônia Latitude Review

Editorial

Na Amazônia, o novo normal é a desordem


Marcos Colón
O cenário da desordem institucional brasileira não revogam e implementam atos “aleatórios” do
deixa ninguém incólume. Acompanho a sensação de executivo, que busca fragmentar para governar
caos instalado na Amazônia brasileira com alguns desde o seu início. A mesma imprensa não vê
apos de suspeição. Caos, em grego e em espanhol, saída — ou não se dá conta — do problema de
é de nido simplesmente como desordem. esquentar a água quente que mata o sapo da
democracia, talvez por suas prerrogativas de
No entanto, a ciência moderna oferece uma visão reportar o que dizem os poderosos, reverberando
mais ampliada. “Caos”, diz o matemático Ian a estratégia de caos.
Stewart, “não é aleatório. É um comportamento
aparentemente aleatório resultante de regras É claro que desgraças como a pandemia chocam e
precisas. O caos é uma forma enigmática de ordem”. impressionam pela brutalidade. Nossa missão, que
de alguma forma está representada nesta primeira
O conceito de caos pode ser observado em muitos edição impressa, é tornar claro o outro lado desses
aspectos práticos da vida, incluindo nanças e processos.
clima. O governo brasileiro decidiu lidar com a
complexidade humana, cultural e socioambiental É olhar sob diferentes perspectivas, para além
da Amazônia brasileira implementando o caos dos traumas episódicos. ando reunimos os
como modus operandi. textos a seguir, pensamos em modi car o olhar,
desacelerá-lo, para que alcance outras mensagens,
Diariamente, a imprensa brasileira noticia ciências e culturas que circulam e dão a chave para
medidas governamentais que, via decretos, a proteção de um universo menos caótico.

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Nesta edição
04 Editorial 93 Je dentro de casa

O Antropoceno: vantagens e A terceira margem do texto: Euclides


06 desvantagens de uma ideia epocal 97 da Cunha e a Amazônia

10 Amazônias em tempos de incertezas


107 FOTOGALERIA
As queimadas em Lábrea, Terra de
A natureza selvagem do homem Ninguém”
13 civilizado

Conflitos socioambientais mediante 115 ENTREVISTA


Nós vamos ter que pensar outro
18 ação da empresa de papel e celulose processo civilizatório"
em Imperatriz, Maranhão

A floresta, o outro lado do que 122 Ex-Pajé: o etnocídio contra povos


27 indígenas
queremos ser?
128 Inquietudes ambientales, humanas y
30 Novos colonialismos: diálogos sociales: una entrevista con Enrique
evanescentes em uma fronteira em Le
movimento
138 O poeta na selva: aflito, mas vivo
42 Para entender o “dia do fogo”
142 RESENHAS
61
Integração e incorporação da Ideias para adiar o fim do mundo
Amazônia: perpetuação da
colonialidade
144 A voragem no paraíso suspeito: A
narrativa de José Eustasio Rivera na
Falar é existir: o caso de línguas leitura de Leopoldo Bernucci
70 ameaçadas no Brasil e no Equador

76 Cultura amazônica: uma diversidade 156 A cidade amazônica de Edyr Augusto


diversa

A virada ontológica e a amazônia, um


81 diálogo

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Revista Amazônia Latitude Review

O Antropoceno:
vantagens e desvantagens de
uma ideia epocal
Rob Nixon
Princeton University

A imagem apresentada é a escultura submersa Anthropocene , de Jason deCaires Taylor. Foto: Jason DeCaires Taylor.

C
omo seria imaginar o Homo sapiens não como Tais perguntas se tornam pertinentes com a viragem
mero ator histórico, mas sim geológico, uma para o Antropoceno, uma hipótese desenvolvida pelo
força de tamanha magnitude que resulta em químico atmosférico ganhador do prêmio Nobel Paul
nossos impactos serem de fato gravados em registros Crutzen e pelo ecologista Eugene Stoermer em 2000.
fósseis? Como seria reconhecer que, pela primeira Eles argumentam que o Holoceno já cou para a histó-
vez na história do planeta, uma espécie senciente, ria: a Terra entrou em uma nova época geológica sem
a nossa, abalou o sistema vital da Terra de tal for- precedentes, desencadeada pelas ações humanas.
ma que o paleontólogo Anthony Barnosky compara
esse feito a um impacto de asteroide? Como essas Crutzen e Stoermer datam essa ruptura ao começo
mudanças de perspectiva poderiam afetar premissas da revolução industrial no nal do século XVIII. As-
consolidadas sobre a nossa história, ética, poder e sim, de acordo com o domínio do roteiro antropocê-
responsabilidade? nico, ao longo de pouco mais de dois séculos um ar-

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quivo perene dos impactos das ações humanas sobre a saírem da bolha de suas especialidades para se
os sistemas geofísico e biofísico da Terra têm sido engajarem energicamente com interlocutores não
gravado em pedra por nós. Tais impactos de longo habituais. As humanidades e as artes, como era de
prazo se tornaram particularmente intensos desde se esperar, tiveram um papel vital nesse diálogo
os anos 50, durante a chamada Grande Aceleração. tão misto. Uma vez que a hipótese do Antropoceno
Nós alteramos radicalmente o ciclo do carbono, o ci- abala a própria ideia do que signi ca ser humano.
clo do nitrogênio e a taxa de extinção das espécies.
Criamos isótopos atômicos sem precedentes e plás- Se coletivamente somos um amontoado de rochas
ticos fossilizados. Erigimos megacidades cujos ras- que se move e sente, o que isso signi ca para as histó-
tros perdurarão ainda por muito tempo após deixa- rias que contamos sobre a nossa espécie e nosso lugar
rem de servir como cidades. Nós mudamos o pH dos na vida na Terra? O que isso signi ca para a ética nas
oceanos e alteramos tantas formas de vida ao redor ações humanas? ais seriam as pressões imagina-
do mundo —inad- tivas e emocionais
vertida e intencio- ao se introduzir o
nalmente— que humano em es-
estamos criando calas temporais
ecossistemas fora geológicas? Sim-
do comum por plesmente não es-
toda parte. Sobre tamos acostuma-
a vida terrestre dos —ou sequer
vertebrada, hu- preparados— a
manos e seus ani- conceber as con-
mais domésticos sequências das
constituem agora ações humanas
mais de 90%, sen- ao longo de tão
do menos de 10% vasto e expansivo
composto por ani- espaço de tempo.
mais selvagens. Como podemos
O derretimento da Groelândia. Foto: Anne McClintock.
começar a inter-
ando Crutzen nalizar nossa par-
e Stoermer desenvolveram essa hipótese, eles não te enquanto atores antropocênicos de modo a repre-
poderiam imaginar a ideia imensa e voraz que ela sentar esse papel satisfatoriamente?
se tornaria. Levou algum tempo, mas já na segunda
década do milênio aqueles que caram perplexos e Para tais conjecturas é necessário adicionar outras
fascinados pela ideia do Antropoceno foram engo- que são políticas. O Antropoceno —muitas vezes
lidos, massiva e pluralmente, por suas assombrosas com razão tem se provado signi cativamente con-
entranhas. troverso. Foquemos em algumas discordâncias cru-
ciais. Primeiramente, quais ganhos e perdas advém
Céticos e entusiastas reunidos em abundância vin- com a adoção da perspectiva de espécie global do
dos da paleobotânica e dos estudos pós-coloniais, Antropoceno sobre o ser humano? Pode esse ponto
da nanotecnologia e da bioética, da egiptologia, de vista épico correr o risco de suprimir —tanto his-
da robótica evolucionária, da psicologia feminista, toricamente quanto no presente— impactos huma-
geofísica, agronomia, pós-humanismo e estudos nos desiguais, atividade humana desigual e vulnera-
druídicos. Os classicistas lado a lado com os futu- bilidades humanas também desiguais? Colocar sob
ristas, juntando-se a estudantes de tudo o mais, de a marca humana do século XXI, na mesma medida,
plastiglomerados a prosódia romântica, de ruínas a um liberiano e um estadunidense regulares, enquan-
renaturalização. to agentes de mudanças a nível planetário, poderia
ocultar mais do que revelar?
Isso é seguramente o destaque mais profícuo da
virada antropocênica: a in nidade de trocas es- Eis o desafio crucial à nossa frente: como levar
timuladas ao redor do mundo, da vida cientí ca, em consideração duas histórias expressivas que
das ciências sociais, das humanidades e das artes, podem frequentemente se apresentar em confli-
convocando um diálogo entre estudiosos instigados to, uma convergente e outra divergente? A pri-

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Louisiana submersa. Foto: Anne McClintock.

meira, uma narrativa coletiva sobre os impactos Uma segunda controvérsia separa os que podem
da humanidade que ainda estarão visíveis nos ser chamados de otimistas de comando e contro-
mecanismos geofísicos do planeta a milênios le do Antropoceno de outros que são céticos desse
porvir. Já a segunda é uma narrativa muito mais pensamento. Juntamente com aqueles, encontra-se
fragmentada, uma vez que se emergiu o meme do o geógrafo Erle Ellis, que acredita que “nós não de-
Antropoceno durante o século XXI, um período vemos encarar o Antropoceno como um momento
em que a maioria das sociedades humanas ex- de crise, mas como o começo de uma nova época
perienciaram um aprofundamento no abismo en- geológica propícia a oportunidades de direciona-
tre os super-ricos e os ultrapobres. Em termos de mento humano”. Alinhados com ele estão os jor-
história das ideias, o que significa o Antropoce- nalistas cientí cos Mark Lynas (autor de The God
no, enquanto uma grande e explanatória história Species) e Ronald Bailey, este que insiste que “com
de espécies, passar-se durante uma era plutocrá- o passar do tempo, nós só podemos melhorar en-
tica? E de uma perspectiva criativa, como nós po- quanto deuses guardiões da Terra”. Como mantra,
demos contrapor a força centrípeta da trajetória esses otimistas antropocênicos citam a exortação
das espécies antropocênicas dominantes com a de Stewart Brand: “nós somos como deuses e preci-
trajetória centrífuga que assume tamanhas de- samos car bons nisso .
sigualdades no poderio que é capaz de provocar
mudanças no planeta (sem mencionar as desi- Mas para outros, falar do Homo sapiens enquanto
gualdades no acesso a recursos e a exposições ao uma espécie divina, substitutos para a divindade na
risco em tempos de disparidades tão profundas)? Terra, é preocupante. Não foi a arrogante menta-
Todos nós estamos no Antropoceno, mas não es- lidade de autoridade terrestre, de domínio sobre a
tamos todos da mesma maneira. natureza, que nos colocou na atual e problemática

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posição enquanto atores geológicos? Ademais, o do- Ao nal, estamos testemunhando a transição do
mínio terrestre invoca perturbadoras relações entre Antropoceno de uma ideia interdisciplinar vigoro-
raças, gênero e classes hierárquicas das parcelas es- samente disputada para uma que está se difun-
clarecidas. Para o climatologista Mike Hulme, existe dindo pela esfera pública. Podemos atestar isso
uma ligação direta entre tais pensamentos megalo- nas edições especiais sobre o Antropoceno das
maníacos e as irresponsáveis peripécias de um pe- revistas The Economist, Nature e The Smithsonian.
queno e poderoso grupo de geoengenheiros e seus Vemos isso na maneira como blogueiros, cineas-
bilionários nanciadores que ambicionam reiniciar tas, intelectuais de projeção e curadores tentam
o termostato global”. Ao que eu ainda gostaria de reimaginar, através do prisma do Antropoceno, o
adicionar: não devemos igualar impacto planetário que a geógrafa Doreen Massey denomina o pri-
humano a controle planetário humano, não como mitivo manejo da vida e da pedra”.
uma possibilidade nem como um ideal. Da mesma
forma, humildade diante das complexidades incal- Outorgar ao Antropoceno uma repercussão pública
culáveis de uma Terra modi cada aceleradamente envolve escolher objetos, imagens e histórias que
não é o mesmo que quietismo. tornarão viscerais os tumultuosos processos geoló-
gicos que atualmente ocorrem em escala temporal
A autora cientí ca Elizabeth Kolbert tuitou: duas humana. Nesse sentido, o Antropocene Cabinet of
palavras que provavelmente não devem ser usadas Curiosities Slam (ou O Gabinete de Curiosidades do
em sequência: bom e antropoceno. A lósofa am- Antropoceno, uma conferência realizada pelo Cen-
biental Kathleen Dean Moore vai mais a fundo e su- tro de Cultura, História e Meio Ambiente da Uni-
gere que o Antropoceno seria melhor se nomeado versidade de Wisconsin Madison) elaborou uma
“Imperdoável cena do crime”. variada gama de narrativas guiada por objetos. A
exibição tem por objetivo fornecer uma maior pro-
A preocupação quanto às prepotentes reações para ximidade do público com as imensas mudanças
com o Antropoceno nos leva a uma terceira contro- biomór cas e geomór cas. Coletivamente, essas
vérsia. Estaria a própria noção de Era dos Humanos narrativas antropocênicas têm o poder de inquie-
criando o risco de encorajar o narcisismo da espécie? tar e surpreender, com sorte nos incitando a novas
Uma coisa é reconhecer que o Homo sapiens obte- maneiras de pensar e perceber o planeta que nós
ve poderes biomór co e geomór co massivos. Mas é herdamos e o que nós legaremos.
inteiramente outra coisa xar a tutela humana em
um grau que minimiza o seu entendimento imperfei-
to de redes in nitamente elaboradas por ações não
humanas, desde o microbioma até o movimento das
placas tectônicas, que continuam moldando os sis- Este texto foi publicado com o título The Anthropocene:
temas vitais da Terra. Para ser mais exato, humanos The Promise and Pitfalls of an Epochal Idea, no site Edge
—especialmente os mais abastados— possuem sim o E ects em 6 de novembro de 2014. A tradução foi feita por
poderio de alterar o planeta, mas nós não exercemos Rafael Andrade, formado em Letras - Inglês pela Universi-
esse poder isoladamente de outras forças. dade Federal Rural do Rio de Janeiro.

“Geologicamente, o Antropoceno é um episódio mar-


cante na história do planeta”, diz o paleontólogo Jan Rob Nixon é detentor da cadeira Rachel Carson e Eliza-
Zalasiewicz. Mas o que começou como um debate beth Ritzmann de professor de inglês na Universidade de
Wisconsin-Madison. Ele é autor de quatro livros, sendo o
cientí co orientado por dados sobre como mensurar
mais recente Slow Violence and the Environmentalism of
e projetar as marcas humanas nos registros fósseis the Poor, ganhador do American Book Award e três outros
se propagou para praticamente todo campo acadê- prêmios. Contribui frequentemente com o jornal New York
mico possível. O poder do Antropoceno —por vezes Times. Seus textos já guraram no The New Yorker, Atlantic
esclarecedor, exasperante, alarmante— não é redutí- Monthly, The Guardian entre outros.
vel a métricas. Como observa a historiadora ambien-
tal Libby Robin, “a questão é como as pessoas podem
tomar responsabilidade e responder pelas suas ações Imagem apresentada é a escultura submersa Anthropoce-
no mundo. E a resposta não é simplesmente cien- ne , de Jason deCaires Taylor.
tí ca ou tecnológica, mas também social, cultural,
política e ecológica”. Foto de Jason de Caires Taylor.

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Encontro das águas dos rios Amazonas e Tapajós, em Santarém-PA. Foto: Erik Jennings

Amazônias em tempos
de incertezas
Rogério Almeida
Universidade Federal do Oeste do Pará

A
cidade de Santarém, município do Estado do tas, quilombos e áreas que fazem fronteira com
Pará, pertencente à mesorregião Baixa Ama- cidades urbanas. Neste cenário há pesca, artesa-
zônia, situa-se no encontro dos rios Tapa- nato e hortifrutigranjeiros.
jós e Amazonas. Os dois rios escoam na direção de
um mesmo curso d água e con guram a paisagem No outro extremo, a população do Baixo Amazonas
das gigantes bacias hidrográ cas homônimas cujas é refém da divisão de trabalho e do estilo de vida
águas não se misturam. instituído e/ou proporcionado pela multinacional
Cargill, empresa que oferece serviços e produtos
Duas formas distintas de pertencer ao espaço e alimentícios, agrícolas, nanceiros e industriais ao
de usufruir o que a localidade proporciona evi- mundo. Representa outra forma de utilizar os re-
denciam o contraste em que a população de San- cursos naturais, o espaço e o tempo. Ela conecta o
tarém está inserida. A Feira do Mercadão 2000 local ao global a partir da exportação de commodi-
e o entorno dela representam o lado em que o ties de grãos, soja especialmente.
comércio é alimentado pela produção local jun-
to a um rico e diverso campesinato de diferentes O trabalhador informal é típico da paisagem da
modalidades. São ocupações, projetos de assen- região. O homem ocupa o lugar do animal com o
tamento de reforma agrária, reservas extrativis- serviço braçal. Trabalho exaustivo, de baixa remu-
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neração, desprovido de contrato social e realizado Registros cientí cos advertem que o rico solo da
sob sol escaldante ou chuva. várzea possibilitou a extração das riquezas da o-
resta — cacau, castanha, cravo, drogas do sertão,
As embarcações nativas carregam mercadorias e pes- madeira, quelônios, peixes e o peixe-boi entre elas.
soas que viajam em redes. Rede é palavra-chave dos Gado e a criação de búfalo estiveram anteriormen-
circuitos paralelos. Enquanto o homem do trabalho te na área, mas hoje constituem uma ameaça aos
braçal coopera para a circulação de mercadorias do ciclos de vida do lugar. Por séculos, constituiu-se
circuito local, as esteiras mecanizadas da Cargill ati- como o principal vetor de colonização da Amazônia
vam o deslocamento dos grãos dos silos aos navios uma equação marcada pela lógica: rio-várzea- o-
que ganham os mares, até alcançarem o velho mundo, resta. Nos anos de 1960, inaugurou a racionalidade:
a Ásia e os EUA. As bolsas de valores internacionais rodovias-terra rme.
não fazem cotação dos produtos oriundos da cadeia
local, mas dos provenientes da modernização. O rio, que no século XIX materializava na cheia a
melhor oportunidade de fuga do povo negro para
No século XVII, os portugueses criaram os primei- a formação de seus mocambos, hoje é território de
ros núcleos de ocupação e penalizaram os povos remanescentes que combatem agendas desenvolvi-
indígenas com chagas, escravidão, guerras, cate- mentistas contrárias às suas práticas econômicas,
quese e o extermínio. Na delimitação do territó- políticas, sociais e culturais.
rio, fizeram germinar fortificações, aldeamentos
missionários, grandes fazendas com imigrantes. A modernização conservadora que aconteceu entre
Neste vasto mundo, igarapés, igapós, furos e pa- 1964 e 1985 relegou a várzea a um plano secundário,
ranás confluem na composição da civilização do o que é menos prejudicial. Mas a demanda seletiva
povo da várzea. do mercado por quelônios, peixes e árvores promo-
veu grande impacto e a extinção de algumas espé-
A sazonalidade é um elemento estruturante no pro- cies. Soma-se ao cenário a introdução de espécies
cesso de vida na Amazônia. Na várzea, as cheias e exóticas, como a Juta, especialmente em Parintins,
vazantes dos rios condicionam as rotinas, enquanto no Amazonas, trazida por imigrantes japoneses.
na terra rme recai sobre o período chuvoso o pro-
tagonismo. Tais diferenças também acentuam as dis-
tinções em relação ao modo de produção, ao acesso O rio é a vida e às vezes a morte dessa população.
e uso dos recursos naturais, à de nição da proprie- Numa parte do ano, invade ruas e causa danos ma-
dade da terra e, por consequência, à multiplicidade teriais. Promove migrações por conta do fenômeno
de identidades. das erosões uviais e, assim, constrói novas formas

Porto da multinacional Cargill, em Santarém-PA. Foto: Amazônia Latitude.


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Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, construida para barras as águas do rio Madeira na Amazônia Legal Rondoniense. Foto: divulgação.

de usos dos recursos, vivências e solidariedades. a expropriação numa escala continental. Porém, sob
Noutra época, recua e forma praias. a inspiração de balaios e cabanos, parte da popula-
ção luta pelo reconhecimento e pela defesa de seus
No mundo de rios da Amazônia brasileira pretende-se territórios na busca por um exercício da cidadania
erguer outro mundo, o do concreto, para a geração de na frágil democracia de um país desigual.
energia. Os planos do Governo Federal já realizaram
isso nos rios Tocantins, Madeira e Xingu. E impõem o As jornadas são marcadas por inúmeras mediações,
mesmo desfecho para o rio Tapajós, o rio Araguaia e nas quais despontam setores da Igreja católica, par-
tantos outros. O questionamento que ca é energia tidos políticos, ONGs e intelectuais, que resultaram
para quem? A sabedoria ancestral diz que barrar o rio na criação de interessantes fóruns e redes, como o Fó-
é barrar a vida, tanto pelo contexto político quanto rum Carajás, Fórum da Amazônia Oriental (FAOR),
o econômico, que colocam em xeque a sobrevivência Justiça nos Trilhos, Grupo de Trabalho Amazônico
dos povos ancestrais. No plano econômico atual, a (GTA), Xingu Vivo e o Tapajós Vivos. Tais coletivos/
ameaça recai sobre a recente agenda desenvolvimen- redes promovem variadas formas de enfrentamento
tista baseada em Eixos de Integração e Desenvolvi- em oposição a grandes projetos.
mento (EID), que tratam como estratégica a dinami-
zação de transporte, energia e comunicações. No campo da comunicação produzem livros, mani-
A Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Re- festos, documentários e cartilhas. No entanto, é a as-
gional Sul-americana (IIRSA), programa em que 12 simetria de forças que estrutura o combate entre os
países da América do Sul buscam integração com a interesses das grandes corporações e as populações
modernização da infraestrutura de transporte, ener- nativas. Nas arenas de lutas, os dias são marcados
gia e telecomunicações, tem como objetivo integrar por combates, negociações e acomodações, numa
e estimular politicamente, economicamente e cultu- constante e atribulada rede nição dos territórios e
ralmente a América do Sul. A circulação de das territorialidades físicas e simbólicas.
merca-dorias (commodities) é a grande meta —
uma saída para o Pacífico para atender a demanda
da China. O Estado autoritário, composto por Rogerio Almeida é docente do Curso de Gestão Pública no
megacorpora-ções e agências multilaterais, Instituto de Ciências da Sociedade na Universidade Federal do
ancorado a partir de meios técnicos, científicos e Oeste do Pará (UFOPA). Também é doutorando em Geogra a
informacionais promove Humana - Dinter - USP/UNIFESSPA/UFOPA/IFPA.

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A Natureza selvagem do
homem civilizado
Discurso de Ailton Krenak no CineEco, em Portugal,
abordou efeitos da exploração comercial da natureza em
comunidades nativas
Marcos Colón
Florida State University

E m 14 de outubro de 2018, Ailton Alves Lacer- Brasil, com reconhecimento nacional e


da, então convidado do CineEco (Festival de internacional. Nasceu em 1953 na região do vale
Cinema Ambiental da Serra da Estrela), festi- do Rio Doce (MG), território do povo Krenak,
val anual de cinema ecológico, sediado na cujo nome carrega, lugar atualmente destroçado
cidade de Seia, Portugal, discursou a pela mineração. Em sua trajetória, juntou forças
respeito da importância de eventos que com Chico Mendes pela defesa dos direitos
tratem de questões ambientais, que fogem da indígenas na Constituição de 1988 e vem
pauta da grande mídia. Ele é uma das mais desenvolvendo várias atividades no movimento
importantes lideranças do movimento indígena no socioambiental, como a promoção da Aliança dos
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Foto: The Local. h ps://www.thelocal.de/20181118/tip-of-the-week-the-german-supermarket-survival-guide

Povos da Floresta, que reúne comunidades indígenas se lembra da infância simples às margens do rio, que
e ribeirinhas na Amazônia. dava “para aquela pequena comunidade de onde eu
vim a boa vida, porque nós tínhamos água, tínhamos
No festival português, discursou sobre a opressão so- peixe, tínhamos, no corpo do rio, abundantes alimen-
frida pelos povos nativos, o descaso com a tos e muitas coisas que nós usávamos para construir
natureza e a importância da visibilidade dessas
o nosso mundo bom. Suficiente! Após a tragédia, 126
questões, para que essas agressões sejam notadas
famílias Krenak deixaram a vida simples que levavam,
e combatidas. Usou o desastre das barragens na
para sobreviver com dinheiro da Fundação Renova,
bacia do Rio Doce, seu local de origem, para
criada pela Samarco com o objetivo de indenizar pes-
mostrar como o interesse econômico sem controle
soas prejudicadas pela falha da empresa. Apesar de
prejudica comunidades na-tivas tradicionais. O rio,
parecer uma iniciativa benéfica, é a Renova que de-
denuncia, foi praticamente “posto em estado de
cide quem e como compensar pela destruição do rio.
suspensão de sua capacidade vital (…) ele está em
Enquanto isso, ninguém foi responsabilizado na justi-
coma!”. Segundo Ailton, 650 qui-lômetros do rio –
ça pelo rompimento da barragem.
dos seus 853 km – foram afetados, tornando o
afluente inutilizável para uma população de 1,6
milhão de pessoas. “Das altas serras de Mi-nas
Gerais até o litoral do Espírito Santo, esse corpo
A ilusão da abundância
d água inteiro ficou, por um longo tempo, impedido
Após serem submetidos a todo tipo de infortúnio, os
de contato com os animais e as pessoas, inviabilizan-
povos nativos brasileiros vivem a realidade moderna de
do uma boa vida para várias comunidades de ribeiri-
repressão sociocultural, uma vez que ainda são consi-
nhos – que não estão integradas neste sistema am-
derados, por grande parte da sociedade brasileira, um
plo em que operam as empresas, onde o capital atua
empecilho para o desenvolvimento. Nesse contexto,
de maneira franca e livre, afetando a base de
onde povos tradicionais sofrem pressão para aderir aos
vida de comunidades que ainda não foram
costumes do mundo globalizado e industrializado, os
integradas ao sistema global da economia, mas
Krenak veem seu estilo de vida ameaçado de extinção.
que são expulsas dessa possibilidade antes mesmo
dela se confirmar . A tribo Krenak, que sofreu com a
“Em muitas regiões do nosso planeta, milhões de pesso-
ditadura militar, as políticas nacionais de integração
as sequer têm escolha de buscar um caminho sustentá-
de povos indígenas à sociedade brasileira, os
vel, ou experimentar uma realidade cotidiana de perda
conflitos com outras tribos no território nacional e
das suas fontes de subsistência. Ainda tem muita gente
a migração forçada, acabou relegada a umterritório
na Terra que vive da coleta e da caça. Nós não somos
de 4.000 hectares ao leste do Rio Doce, em Minas
uma população planetária minimamente equalizada,
Gerais. Apesar de tudo, o ativista
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A Comunidade de Boa Esperança, em Santarém (PA), é um retrato do desmatamento na Amazônia. Foto: Amazônia Latitude.

no sentido do acesso e do consumo dos recursos que a refreável tudo aquilo que sustenta a vida no plane-
Terra propicia , a rmou Ailton. Para ele, a administra- ta água, alimento, orestas ou cultura. Para ele, a
ção dos recursos naturais em escala global, junto com abordagem da cultura ocidental sobre esses temas é
a ideia de que esses recursos são in nitos e voltados apenas uma forma de ilustrar os problemas e torná-
para o povo, criam uma ilusão de sustentabilidade e -los espetaculares, uma vez que o distanciamento do
segurança. “Na sua ingenuidade, vivem uma circunstân- homem branco da natureza impede que o mesmo
cia temporária de bem-estar e acreditam que vão poder sinta o efeito de suas ações e leve a questão a sé-
continuar compartilhando essa riqueza. Não sabem que rio. “Os povos que ainda têm memória, que guardam
as políticas globais são dirigidas a um circuito de in- alguma tradição, que sabem como tocar a terra, falar
teresse privado sobre os recursos da natureza, não de com um pássaro, ou uma árvore, podem ter muito para
interesse comum”, acrescenta. ensinar às novas gerações, especialmente as grandes
concentrações de populações que vivem em regiões ur-
Na ocasião, também trouxe um exemplo do Centro- banas e não têm mais esse contato com a natureza, que
-Oeste do país, no território da tribo Xavante. Segun- a percebem como alguma coisa governável”.
do seu relato, as atividades dessa tribo consistiam
em caça e coleta até os anos 70. Na década seguinte, O líder indígena falou com gravidade sobre a situação
seus representantes procuraram-no para falar sobre a que são submetidos os povos tradicionais e de como
a situação de suas terras. O plantio da soja, carro- esse fenômeno pode se alastrar por todo o mundo, caso
-chefe do agronegócio brasileiro, causou o desmata- não tenhamos cuidado com nosso planeta. Destacou a
mento de vastas áreas ao redor do território Xavante, necessidade de usar todos os meios possíveis para de-
impactando drasticamente a caça, a pesca e a coleta, senvolver uma consciência coletiva sobre o problema,
ao ponto de a tribo considerar a compra de armas incluindo as artes, principalmente o audiovisual, que
de fogo para caçar com mais eficiência. Mas vocês tem grande potencial de levar essa ideia às grandes
vão mudar a base da sua cultura? Vocês são caçadores massas. “Os extremos dos povos, que vivem a experiência
e coletores! Se vocês começarem a usar arma de fogo, real da migração, de terem que se deslocar de um conti-
vocês vão acabar mesmo, vão aniquilar as espécies que nente para o outro, são tão dramáticos, que não deveriam
sempre conviveram com vocês; vamos pensar em outra deixar dúvida da urgência que nós temos de usar todos
coisa que nós podemos fazer”, foi o argumento que os recursos de comunicação, de comoção mesmo (porque
usou para tentar dissuadir os Xavantes da ideia. é isso que a arte faz), para que as pessoas, em todos os
lugares, possam ter algum sinal da gravidade do tempo
Krenak expressa grande preocupação com o uso dos em que vivemos - em todos os continentes, em qualquer
recursos naturais pela sociedade moderna, que vive lugar do planeta; o que nos põe na condição de habitar
no limite, ao consumir de forma inconsciente e ir- uma casa comum”.

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Revista Amazônia Latitude Review

Na visão de Ailton, uma das formas de solucionar o la, da atenção desigual dada a fatos espetaculares
problema é transformar a forma de educar a popula- e fatos singelos. Numa época que venera o espetá-
ção. Lembra que educar é mais do que ensinar de um culo instantâneo, a violência lenta é de ciente nos
ponto de vista puramente cientí co, é preciso um efeitos especiais que lotam cinemas e impulsionam
envolvimento emocional, para se concretize o objeti- audiências televisivas” (Nixon, 2011, p.6).
vo de efetiva preservação da Terra. “A educação, que
às vezes é invocada como uma das armas que devemos A Samarco, ligada à Vale e à BHP Billiton, presente
usar nesse sentido, tem sido negligenciada por muitas na região do Rio Doce desde 1977, explorou miné-
agências, instituições e governo; a maioria das pessoas rios na bacia hidrográ ca mais importante da região
não considera que ela envolve algum sentido afetivo, Sudeste durante décadas, até que, em dezembro
acham que a educação é uma coisa que você vai fazer de 2015, por falha de cálculo de seus engenheiros e
com a cabeça do outro e não com o coração. Se não negligência da diretoria da empresa, contaminou a
mudarmos o coração das pessoas, suas cabeças não maior parte do corpo do rio com a lama tóxica, que
vão a lugar algum”. vazou de sua barragem de rejeitos. O desastre am-
biental, considerado o maior na história do país até
Com pesar, falou como a sociedade trata certos aquele momento, afetou todas as formas de vida às
lugares como sagrados para diferentes religiões margens do rio, prejudicando peixes, aves, micror-
e etnias, mas banaliza tudo aquilo que sustenta ganismos e milhões de pessoas que dependiam dele
a vida. “Para a maioria das pessoas, os povos nati-
vos vivem em lugares remotos da Terra por para sobreviver.
acidente. Não entendem que neles estão há muito
tempo e têm uma conexão profunda com cada um Tamanha tragédia atraiu a atenção dos principais
desses lugares. Há muito mais lugares sagrados na veículos de mídia do Brasil e do mundo, mas apenas
Terra do que (só) Jerusalém, Roma ou Atenas - que por poucos meses. Lentamente, a contaminação do
são maravilhosos; mas há muitos outros que
(também) deveríamos cul-tuar e cultivar, como esse rio e de tudo o que havia nele foi sumindo da pauta
que para mim sempre foi mítico [bacia do Rio popular. Hoje, passados apenas três anos, raramen-
Doce] e agora me dá a oportu-nidade de estar aqui te vemos algo a respeito do tema no noticiário. A
com vocês, a convite do CineE-co Seia e do Fórum”. mineradora Samarco ainda conta com recursos na
justiça, não sendo responsabilizada pela maioria das
consequências de seus atos.

O gigante invisível Ao refletir sobre esses fatos, Ailton disse que as


ações promovidas pela sociedade para preservação
da natureza, como tratados climáticos internacio-
O rompimento da barragem de rejeitos de nais e políticas socioambientais recomendadas pela
minérios da Samarco e o cerco vivido pelo povo Organização das Nações Unidas, não fazem sentido.
Xavante são exemplos claros do que Rob Nixon, Para ele, uma gestão dos recursos naturais “é
professor no de-partamento de Meio Ambiente e uma pretensão absurda, porque nós, (que) somos
natureza, não conseguimos fazer gestão nem de nós
Humanidades e as-sociado do Instituto Ambiental mesmos; en-tão como nós vamos fazer gestão da
de Princeton, chama de slow violence (violência natureza? A natu-reza é que faz nossa gestão. A
lenta, em tradução livre). O termo diz respeito a natureza nos gera, nos cria! , afirmou.
uma forma de violência pra-ticada em larga escala
por megaempreendimentos, invisível ao público em Segundo Krenak, os povos tradicionais indígenas
geral. Essa violência é cumu-lativa e ocorre ao foram os primeiros a notar as mudanças climáticas e
longo de décadas, de forma cada vez mais o com-portamento anormal da natureza, mas isso só
agressiva.No entanto, como uma forma tão foi acei-to pela sociedade, quando pesquisadores
terrível de vio-lência pode ser invisível ao montaram o Painel Intergovernamental sobre
público? No livro “Slow Violence and the Mudanças Climáticas (IPCC) e usaram evidências
Enviromentalism of the Poor (Violência Lenta científicas como forma de legitimar o discurso.
e o Ambientalismo dos Pobres, ainda sem “Mesmo assim, continuam sendo desprezadas por
edição em português), de 2011, Nixon explica algumas autoridades, pessoas que têm poder de
que essa invisibilidade é gerada pela socie-dade governança, de influenciar politicamente nossas decisões
do espetáculo. Segundo o autor “o traiçoeiro e que, de uma maneira absurdamente alienada, dizem
trabalho da violência lenta deriva, em larga esca- que não temos mudanças climáticas”.

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Jovem Xingu registra momentos da Semana dos Povos Indígenas, maior evento do gênero no estado do Pará. A celebração ocorreu no dia 19 de abril de 2018, na cidade
de São Félix do Xingu. Foto: blog Leila Dourado - h ps://lelia-dourado.blogspot.com/2018/04/todo-dia-e-dia-de-indio.html

Visibilidade obras que atendem ao critério estético, vão excluir his-


tórias que têm tanta importância quanto a compreen-
são de que há mudanças climáticas e que elas estão
Durante seu discurso, Ailton Krenak também abor-
fora do painel do clima. É claro que a arte tem o poder
dou a importância de eventos como festivais de ci-
de contagiar e criar mudanças, mas ela não precisa ser
nema com temática ambiental. Para ele, a explosão
tão autoritária no sentido de excluir mensagens que
de acesso às tecnologias de comunicação digital per-
não são só estéticas”.
mitiu que os povos tradicionais, antes incapazes de
documentar suas realidades por conta do aparato
Ailton subiu ao palanque sem ter ensaiado o dis-
necessário, hoje têm a oportunidade de registrar e
curso, sem rascunho e dentro de minutos abordou
denunciar crimes ambientais cometidos contra sua
questões de extrema relevância, principalmente
cultura. “A disseminação das tecnologias facilitou a
para o Brasil, que vê, a cada ano, a agressão aos
operação de transferir do lugar, quase que simbólico,
ecossistemas avançar a níveis alarmantes, ao mes-
privilegiado, se não tem outra palavra para dizer, da-
mo tempo em que o neoliberalismo consolida-se
quele realizador, autor da obra. Agora, o realizador
no poder. Durante os próximos anos de incerteza
pode ser qualquer pessoa que está em algum lugar que
quanto aos rumos da política ambiental brasileira,
tem uma história para contar”.
guras com Ailton Krenak serão mais importantes
do que nunca para a saúde e segurança da nature-
O ativista indígena não deixou de tecer elogios ao
za e seus povos nativos.
CineEco, que seleciona obras sob critérios além da
estética, joia cara do cinema, que acaba segregando
lmes que levantam questões importantes, registros Leia a íntegra do discurso de Ailton Krenak no CineEco, em
de peso sobre diversas culturas, povos e meio am- Portugal, clicando no link:
biente. Dirigindo-se aos organizadores do festival, https://amazonialatitude.com/2019/04/10/krenak- atureza-
disse que “se vocês, curadores, vão selecionar somente -selvagem-homem-civilizado-cine/

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Conflitos socioambientais
em Imperatriz, Maranhão
Felipe da Cunha Gomes
Universidade Estadual do Maranhão

Fábrica da empresa Suzano Papel e Celulose. Foto: Felipe da Cunha.

E
ste trabalho é um desdobramento da monogra- de acordo com a obra “Revolta da Ecologia Política:
a intitulada A noção de desenvolvimento e con itos socioambientais no Brasil (2004).
a implantação da Suzano Papel e Celulose em
Imperatriz2 (MA) (2016), que re etiu sobre a dinâ- Nesse sentido, os con itos socioambientais serão
mica do processo de implantação de uma fábrica de analisados a partir das interferências causadas aos
papel e celulose, relacionando a situação com gran- modos de vida de povos e comunidades tradicionais
des monoculturas de eucalipto instauradas a partir que se viram afetados pela implantação de projetos
da década de 90 e herança de uma lógica desenvol- de infraestrutura a uentes do Programa Grande
vimentista3 dos anos 1970. Considero os con itos so- Carajás (PGC): Projeto Celulose do Maranhão (CEL-
cioambientais nos termos de Henri Acselrad, aqueles MAR), de 1992, Ferro Gusa Carajás, em 2003, e Suza-
causados por “modos diferenciados de apropriação, no Papel e Celulose, 2011 — sendo este último o foco
uso e signi cação do território, tendo origem quan- da análise.
do pelo menos um dos grupos tem a continuidade
das formas sociais de apropriação do meio que de- Os con itos socioambientais são analisados confor-
senvolvem ameaçadas por impactos indesejáveis”, me a compreensão de que as circunstâncias de im-

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plantação dos empreendimentos são de nidas pelo de coco babaçu, posseiros e trabalhadores rurais, em
contexto de políticas neoliberais adotadas em mea- diferentes momentos da implantação das fábricas e
dos dos anos 90; ou seja, efetivando a execução de das mobilizações em resposta.
políticas defensoras da expansão e da modernização
da agricultura por meio de incentivos ao agronegó- A coleta de dados foi realizada por meio da obser-
cio. No Maranhão, essa força se materializa nas mo- vação direta e de entrevistas pautadas em questio-
noculturas de soja e de eucalipto, inseridas na dinâ- nários semi estruturados. Procurei problematizar a
mica de exportação de commodities. realização da pesquisa a partir de uma sociologia
re exiva, conceito de Bourdieu, tentando relativi-
A pesquisa identi cou intensos con itos, transfor- zar ofício do pesquisador e a pesquisa durante o
mados em prejuízos às categorias sociais afetadas seu processo de construção. Além do mais, reitero o
por empreendimentos ligados ao plantio homogê- rompimento com os obstáculos epistemológicos en-
neo de eucalipto. Os projetos impuseram uma lógica quanto exercício permanente ao processo de cons-
de apropriação do território distante daquelas ha- trução da mesma, possibilitando a problematização
bituais a povos tradicionais e suas territorialidades. contínua de eventuais pré-noções relacionadas às
Isso porque essas propostas acionam um discurso situações estudadas.
“desenvolvimentista”, que traz para si a responsa-
bilidade de levar os instrumentos para a “superação
do atraso às regiões em que se instalam, subjugan- Apontamentos sobre
do especí cas formas de apropriação do território a a implantação de
partir de uma ótica evolucionista.
megaempreendimentos de
Levando em consideração o período de realização
das pesquisas de campo, entre 2014 e 2016, quando
monocultura de eucalipto em
a operação da Suzano Papel e Celulose se estabe- Imperatriz (MA)
leceu e gerou intensas discussões nas comunidades
afetadas, a análise das representações de agentes As atividades de campo realizadas em junho de 2014,
sociais desses locais começou pelo contato de pes- agosto de 2015 e março de 2016 evidenciaram situa-
quisa com o trabalhador rural Daniel Nascimen- ções geradas a partir da instalação da fábrica da Su-
to e com a quebradeira de coco Maria erobina, zano Papel e Celulose nas comunidades Projeto de
em eventos do Projeto Nova Cartogra a Social da Assentamento Vila Conceição I, com acesso pela BR-
Amazônia (PNCSA). 010 (Belém-Brasília), e às comunidades Esperantina
I e II, Nova Bacaba e São José da Matança, locali-
O trabalho parte da compreensão de que a dinâmi- zadas nas proximidades das antigas fazendas5– aqui
ca representada por um modelo de desenvolvimento vale lembrar que representam concentração fundi-
defendido pelo agronegócio e alicerçado em estra- ária e determinam uma série de relações sociais no
tégias empresariais que se pretendem “modernizan- seu entorno – compradas para a construção da men-
tes”, gera relações de desigualdade. cionada unidade industrial.

Tais estratégias têm causado interrupção dos mo- Percebi que não seria possível dissociar essas situa-
dos de vida familiar e social, além de deslocamentos ções relacionadas à fábrica de um processo histórico
compulsórios nas comunidades próximas da sede do delineado por projetos monocultores de eucalipto na
município de Imperatriz, especi camente no Projeto região, também diversos entre si. Con itos que até
de Assentamento Vila Conceição I e nas comunida- então estavam associados a grilagem e concentra-
des Esperantina I e II, Nova Bacaba e São José da ção fundiária na pecuária foram intensi cados pela
Matança, também localizadas nas proximidades da especulação de preço e consequente concentração
chamada estrada do arroz 4 (MA-123). A via rece- da terra. Esse processo foi orientado por diferentes
beu esse nome por causa da utilização de produto- empreendimentos, que adquiriram pequenas e gran-
res para escoamento do grão, prática intensi cada a des propriedades para a implantação dos extensos
partir da década de 60. plantios homogêneos de eucalipto.

Portanto, a análise vai se desenrolar a partir dos Vale aprofundar a re exão sobre os con itos socio-
pontos de integrantes das classes de quebradeiras ambientais relacionados aos empreendimentos com

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Transporte das denominadas toras de eucaliptos pela BR 010, em direção à fábrica. Foto: Filipe Cunha.

implantação parcial, CELMAR e Ferro Gusa Carajás. restais com eucalipto na região, realizada pela CVRD,
Além disso, problematizarei a instalação da fábrica apresentam resultados excelentes para a produção de
da Suzano Papel e Celulose, observando con itos es- celulose; abundância de água (Rio Tocantins); de ener-
pecí cos desta última. gia (hidrelétrica de Tucuruí, no Pará); disponibilidade
de mão-de-obra barata; de serviços; transportes rodo-
viários e ferroviários. (p. 144).
O Projeto CELMAR
Além do mais, aponto que o processo de implanta-
No início da década de 80, o plantio de eucalipto já ção da CELMAR é compreendido como um braço da
era experienciado numa fazenda adquirida pela en- expansão orestal6 (de eucalipto), estendido a ou-
tão Companhia Vale do Rio Doce no município de tros municípios tais como Cidelândia, Vila Nova dos
Açailândia (MA). Contudo, a monocultura do euca- Martírios, São Pedro da Água Branca, Senador La
lipto só tomou forma com a criação do projeto CEL- Rocque e João Lisboa, uma vez que este movimen-
MAR, em 1992, em Imperatriz. Segundo Moisés Ma- to de expansão foi marcado pela compra de grandes
tias, em artigo para “Carajás: Desenvolvimento ou e pequenas propriedades agrárias. Narrativas obti-
Destruição?”, obra publicada por Francisco Concei- das na pesquisa de campo con rmam algumas es-
ção em 1995, o projeto teve como sócios “os grupos tratégias utilizadas pela CELMAR para as compras.
Risipar S.A (55% do capital), Companhia Vale do Rio Fora que, em meio à especulação impulsionada pela
Doce (30% do capital) e a empresa japonesa Nissho implantação do projeto, critérios para a compra de
Iwai Corporation (15% do capital)”. terras eram estabelecidos pela própria organização,
como descreve o agente social Valdinar Barros:
Pesquisas realizadas na década de 90 apontam que
o processo de implantação do projeto CELMAR Eles só compravam se tivesse documento legal; se ti-
foi norteado por ideias da região como “cenário vesse con ito não compravam. Eles tinham esse cri-
propício” para o desenvolvimento de suas ativida- tério, né, mas foram comprando, comprando e au-
des, passando, nesse sentido, a justi car a sua im- mentou a valorização do alqueire da terra aqui. Antes,
plantação na região de Imperatriz, como aponta as terras eram desvalorizadas. Passou a ser valorizada
Moisés Matias, em “A implantação da indústria de (sic), com essa especulação da CELMAR comprando
celulose no Maranhão”: terra. Eles botaram corretor pra andar de fazenda em
fazenda; fazendas que era (sic) plana, que era boa pra
A CELMAR encontra, portanto, na região tocantina o fazer plantio, eles foram e pronto. Então, chegaram a
cenário ideal à sua de nitiva implantação ( ) existên- comprar mais de um milhão de terras. . Valdinar Bar-
cia de extensas áreas degradadas, adequadas à implan- ros, 57 anos, morador do P.A Itacira I (Vila Conceição
tação do re orestamento com eucalipto; pesquisas o- I), em entrevista de 4 de agosto de 2015.

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Imagem de satélite do Programa Grande Carajás (PGC), da Vale. O complexo minerador se estende por 900 mil km², numa área que corresponde a um décimo do
território brasileiro, e que é cortada pelos rios Xingu, Tocantins e Araguaia, e engloba terras do sudeste do Pará, norte do Tocantins e sudoeste do Maranhão.
Foto: NASA (h ps://earthobservatory.nasa.gov/images/39581/carajas-mine-brazil)

É preciso considerar também a própria dinâmica re- mas a gente contou com gente do Pará, com gente de
gida pelos altos preços das commodities, que passa- outros estados que veio bater junto, de sindicalistas do
ram a gerenciar um movimento de “compra e venda Maranhão todo, provar, nessa audiência, que a CEL-
de terras, atos de arrendamento de imóveis rurais, MAR era exatamente ao contrário do que eles estavam
bem como (…) ações de apossamentos ilegítimos por dizendo. A gente pode não ter convencido a sociedade,
grupos empresariais interessados em extensas áreas”, mas o pessoal que estavam (sic) lá, viram que existiu
como relata Alfredo Almeida em “Guerra ecológica uma força né, que era contra a força da CELMAR. , dis-
nos babaçuais: o processo de devastação das palmei- se Luís Preto, morador do P.A Itacira I (Vila Conceição
ras, a elevação do preço de commodities e aquecimen- I) e vinculado ao MST, em 5 de agosto de 2015.
to do mercado de terras na Amazônia”, de 2005.
As mobilizações engendradas por movimentos so-
Durante as pesquisas de campo realizadas no P.A ciais e sindicais são compreendidas como um dos
Vila Conceição I, pude compreender que o projeto fatores ligados ao enfraquecimento da integraliza-
da CELMAR passou a enfrentar resistências articu- ção do projeto CELMAR. Classes de quebradeiras
ladas a movimentos sociais, como Cáritas, Comissão de coco, agricultores familiares, trabalhadores rurais
Pastoral da Terra (CPT), Movimento Interestadual e posseiros perceberam a desmobilização das ativi-
das ebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), Movi- dades agrícolas e extrativistas enquanto avançava a
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), operação do projeto orestal.
Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Ru-
ral (CENTRU) e Sindicato dos Trabalhadores e Tra-
balhadoras Rurais de Imperatriz (STTRI). Essas or-
A implantação de Ferro
ganizações buscavam confrontar a danosa ação aos Gusa Carajás
recursos naturais e barrar a construção de uma uni-
dade industrial em Imperatriz. Depois da implantação inacabada do projeto CEL-
MAR, cria-se em 2003 o projeto Ferro Gusa Carajás
Foi através de uma grande audiência para a aprova- pela Vale, que manteve a ampliação das plantações
ção disso aí [fábrica], tava convidado (sic) praticamen- de eucalipto, sob a proposta de produzir carvão ve-
te toda a sociedade ( ) a gente conseguiu, através das getal para suprir a demanda das siderúrgicas de fer-
organizações, que não foi só as forças de Imperatriz, ro gusa localizadas em Açailândia, no Maranhão.

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A atuação da Ferro Gusa Carajás acirra uma série


de con itos socioambientais motivados pelas for-
Sobre o projeto da Suzano
mas desiguais de apropriação dos recursos naturais. Papel e Celulose
Trabalhadores agroextrativistas, sobretudo quebra-
deiras de coco babaçu, viram suas atividades amea- A crise no setor das indústrias guseiras mudou o eixo
çadas pela expansão dos plantios de eucalipto e por para uma reestruturação do projeto de monocultura
outra prática utilizada no empreendimento: a quei- de eucalipto no oeste do estado do Maranhão. Esse
ma do coco babaçu inteiro para ser fonte de energia movimento ganhou forma com a criação de um pro-
nos fornos das siderúrgicas, ação adotada a partir da jeto para produção de celulose a partir do bene -
insu ciência do carvão de eucalipto. Não é preciso ciamento do eucalipto. Em Imperatriz, o contexto
dizer que isso atingiu frontalmente a lógica de bene- favoreceu a implantação do projeto da Suzano Papel
ciamento integral do coco babaçu, tradicionalmen- e Celulose. Primeiro, havia uma base orestal rema-
te realizada por mulheres. nescente dos antigos projetos Celmar e Ferro Gusa
Carajás. Segundo, a Estrada de Ferro Carajás (EFC)
Trabalhos realizados no âmbito da Nova Carto- e a Ferrovia Norte-sul, importantes meios para a co-
grafia Social, especificamente as pesquisas que mercialização internacional da celulose.
fundamentaram a construção do Fascículo 27,
publicado em 2008, descrevem as situações que O processo de implantação da fábrica de papel e
as quebradeiras passaram a enfrentar por causa celulose, iniciado em abril de 2011, fez surgir con-
da atuação das siderúrgicas de ferro gusa. Nele, centração fundiária. Esse processo desestabilizou os
Maria Querobina relata as situações vividas que- meios tradicionais para o roçado e, com as vendas de
bradeiras de coco babaçu em meio às interfe- terra, causou o deslocamento de famílias da comuni-
rências causadas pela operação do projeto Ferro dade Bacaba. O escoamento de toras7 de eucalipto
Gusa Carajás: para a fábrica por meio da estrada do arroz e da BR-
010 também impactou atividades locais.
De 75 a 80 por cento da renda dos pequenos vem
do babaçu. E hoje, se a gente fizer um levantamen-
to a bico de lápis, isso não é mais. Porque a Ferro As implicações da concentração
Gusa tá levando todo nosso babaçu (...) Olha, é in-
teressante essa coisa que a gente descobriu. Como
de terras
eles chegam nas pessoas. É praticamente uma com- O processo de concentração de terras motivado pela
pra do agricultor. Eles tão comprando o agricultor. expansão da base fundiária da empresa Suzano Pa-
Chega aí, eles diz: rapaz, tu vai quebrar cinco quilo pel e Celulose foi estruturado a partir de estratégias
de coco, tu passa o dia todo e aí tu não faz nada similares às usadas por megaempreendimentos que
no correr do dia, e correr do dia, se tu ir fazer car- antecederam a implantação da fábrica. Conforme
vão, tu faz de 10 a 15 sacos de carvão por dia, que aponta Daniel Nascimento, agente social da comu-
nós fica com esse carvão a 4,50. Tu tá perdendo nidade São José da Matança, o poder econômico,
teu tempo. No final do mês, tu tem dinheiro que tu vitrine da atuação da empresa, é percebido como
nunca viu. Então eles tão comprando os agriculto- sendo um dos principais elementos que avalizaram o
res (...) As quebradeiras hoje tão ficando sem essa processo de implantação da fábrica:
matéria prima (...) Tinha quebradeira que vendia,
por semana 60, 70 litro de óleo, hoje elas não tão Acarretou assim, porque aqui tinha mais fazendeiros,
mais fazendo isso. Porque hoje a matéria prima ta tinha mais emprego também, aí quando a CELMAR
difícil, tão cortando até os cachos das palmeiras veio e comprou as terras todas, comprou muita terra
antes de cair. Então tá ficando muito difícil pra nós e plantou o eucalipto, então desempregou muita gen-
quebradeira. , disse Querobina. te que trabalhava nessas fazendas. ( ) ando eles
chegaram aqui [o grupo Suzano], primeiro eles com-
Dessa maneira, é possível compreender que os con- praram as terras da CELMAR, que tinha plantação de
itos, também aqueles dentro das comunidades, fo- eucalipto, e compraram as outras que tinham restado,
ram intensi cados com a negociação do carvão por dos outros fazendeiros que não tinham vendido pra
agentes da empresa, sendo a “cooptação” uma das CELMAR. ( ) O valor da terra aqui girava em torno de
principais estratégias para garantir a produção do quatro a cinco mil reais o alqueire, então o que acon-
carvão vegetal. tecia, eles chegaram aqui colocando treze mil reais ( )

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dentro, se não tiver quem tire, eu não saio mais, porque


eu não sei nem o que foi que virou, bem ali onde tá
aqueles negócio grande, era local da gente botar roça,
aí eu não sei pra onde é que vai pro Alonso [fazendei-
ro], mas não sei mais nada ali dentro, tá tudo infeliz
do jeito que tá , disse Maria do Tibério no dia 10 de
junho de 2014, em entrevista realizada em sua casa
na comunidade Esperantina I.

Famílias que venderam as propriedades começaram


a chegar com maior intensidade no assentamento
Vila Conceição I, processo impactado pela especu-
lação fundiária em meio à implantação da Suzano
Ação empresarial - xação de placas informando o nome das comunidades. Papel e Celulose. De acordo com o agente social Luíz
Foto: Filipe Cunha. Vaz, o assentamento assume uma identidade de po-
Depois foi pra quinze, aí depois subiu pra vinte, aí foi voado dormitório”, uma vez que a falta dos chama-
subindo pra trinta, quarenta, isso para os mais ricos! dos lotes 12 — locais com espaço para atividades pro-
Os fazendeiros ricos, onde eles tinham mais interesse, dutivas características da região —, sobretudo por
que era onde ia instalar a fábrica, mas os pequenos aquelas famílias que chegaram no assentamento de-
produtores que tinha (sic) de dez alqueires, quinze, vin- pois da sua constituição, passa a motivar a busca por
te, esses a gente sabe os valores que foram comprados, emprego em setores comerciais do Imperatriz e nas
porque acharam muito dinheiro; aqui tava valorizado gatas 13 da Suzano. No local, as gatas são as empresas
em cinco mil reais, aí o cara chega botando vinte e cin- que prestam serviços terceirizados pela fábrica.
co, trinta , contou Daniel em entrevista feita na casa
de seus pais no dia 8 de junho de 2014. Além da desmobilização e desestruturação de ativida-
des produtivas, a pesquisa também identi cou a situ-
Em seu depoimento, Daniel relembra a atuação do ação das famílias pertencentes à comunidade nova 14
projeto CELMAR para apontar a continuidade do Bacaba, forçadas à mudança pela instalação da fábrica.
processo de concentração de terras, compreendido a
partir da força exercida pelo poder econômico repre-
sentado à época pela Suzano Papel e Celulose, que O deslocamento das famílias da
realizou a compra de pequenas e grandes proprieda- comunidade Bacaba
des rurais a partir de uma especulação intencional
do preço da terra. O agente social aponta ainda a De acordo com as entrevistas realizadas, as famílias
desmobilização das atividades que eram realizadas da antiga15 Bacaba já viviam há mais de cinquenta
nas chamadas fazendas 8, nas quais eram desempe- anos às margens da estrada do arroz (MA-123).
nhadas algumas funções, a exemplo de vaqueiro 9,
tratorista 10 [que dirige trator] e diarista 11, que se ar- A Bacaba era localizada na área da servidão da estra-
ticulavam na conquista de espaços cedidos por meio da, no coxão de alagação, cava entre a cerca do fazen-
de combinado verbal de arrendamento 11 — contrato deiro e a estrada do governo , lembrou o agente social
que estabelece contrapartida para a terra cedida — Jozivan Silva em entrevista no dia 9 de junho de 2014.
para a colocada de roças.
O processo de territorialização da comunidade
A opinião sobre os efeitos da concentração fundiá- Bacaba está associado a uma dinâmica de busca
ria é endossada por Maria do Tibério, agente social por espaços para roças, diretamente articulada às
da comunidade Esperantina I, diretamente inserida atividades desempenhadas nas fazendas, também
nesse processo: por meio de arrendamento, como nos locais cita-
dos acima. Além do mais, a prática da quebra do
Trabalhando nessas fazendas aí ó, cortando pé de coco babaçu e a produção de carvão vegetal para
mato mesmo, foi sofrido. ( ) ali onde tá aquela sede as siderúrgicas a partir da queima do fruto tam-
dela ali assentada [se refere à fábrica], nós moramos bém são referenciadas como práticas que assegu-
naquela fazenda ali, meu marido era vaqueiro, ali eu ravam a permanência e a reprodução das famílias
conhecia pé de pau por pé de pau. Agora se soltar eu lá no território.

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Revista Amazônia Latitude Review
Iniciado o processo de implantação da fábrica de O depoimento do agente social permite inferir que
papel e celulose, transformações ocorreram e foram seu ponto de vista parte de relações sociais estabe-
intensi cadas na comunidade. Isso foi materializado lecidas para descrever a sua relação com o território,
durante diversas reuniões organizadas por represen- ultrapassando os limites estabelecidos no discurso da
tantes da Suzano, que utilizaram diversos argumen- empresa, que desconsiderou as relações sociais com
tos para fundamentar a proposta de deslocamento. o território ao impor um processo de deslocamento.
De acordo com Francimar Moura, o deslocamento
era justi cado pelos impactos de construção e fun- É o que diz Alfredo Almeida, em “Refugiados do de-
cionamento da fábrica: senvolvimento: os deslocamentos compulsórios de
índios e camponeses e a ideologia da modernização”,
Eles começaram a fazer reunião com a gente, a Su- de 1996, quando fala em imposição para deixar suas
zano, começou a fazer reunião dizendo que nós ia moradias habituais, seus lugares históricos de ocupa-
sair né, eles falaram que era por causa dos impactos ção imemorial ou datada, mediante constrangimentos,
né, impacto ambiental, por causa da estrada que ia inclusive físicos, sem qualquer opção de se contrapor e
ser muito movimentada ia ter mil carros passando reverter os efeitos de tal decisão, ditada por interesses
diariamente e nós corria riscos de car na beira da circunstancialmente mais poderosos .
estrada, corria risco de se acidentar né, com os ca-
minhão (sic) e com a poluição da Suzano que ia ter. , Ainda com base no depoimento de Francimar, pode-
explicou Francimar Moura, 46 anos, em entrevista mos analisar que a empresa utilizou como estratégia
no seu bar, na comunidade nova Bacaba, em 9 de o discurso de que a condição em relação ao territó-
junho de 2014. rio, no caso dos posseiros, não garantia o atendimen-
to de suas reivindicações a curto prazo. Tal estratégia
Após investidas da Suzano Papel e Celulose, as ne- pode ser compreendida como uma tentativa de imo-
gociações de deslocamento seguiram e o processo bilizar iniciativas que pudessem barrar o processo de
aconteceu no dia 15 de julho de 2013, quando as deslocamento, mas o resultado não impediu a expo-
famílias receberam suas residências na nova Baca- sição das famílias ao impacto da operação.
ba, localizada nas proximidades da comunidade São
José da Matança, numa estrada vicinal à estrada do Não mudou nada não, tá incomodando tem hora
arroz” e que carregou o mesmo nome a partir de rei- que a gente acorda de noite, uns quinze dias atrás eu
vindicações feitas pelas famílias. acordei de noite com aquele cheiro mais ruim do mun-
do, um cheiro assim de esgoto, mais tarde vinha um
O processo de deslocamento das famílias não deve cheiro de foguete, foguete queimado, aí, assim, não
ser entendido como um consenso. É o que revela o achei que mudou não negócio de impacto não am-
depoimento de Francimar Moura, que foi contrário biental , contou Francimar Moura, na entrevista de 9
à proposta. de junho de 2014.

Eu mesmo falei, os outros não se importaram mui- O odor percebido pelas famílias da nova Bacaba foi
to não, só quem falou que não queria sair era eu e um dos diversos transtornos, apontado inclusive
a professora né, que era diretora da escolinha que como elemento que desa a o discurso de imunização
nós tinha lá né, eu e ela, nós falava (sic) que não ia dos impactos”, que fundamentou o processo de deslo-
sair de lá, lá eu não queria sair, já tava acostumado, camento das famílias. Além do cheiro, os impactos do
tinha meu ponto comercial, tinha meus colega (sic) transporte afetam, além das famílias de nova Bacaba,
que vinha todo dia que passava lá na porta da gente. as de Esperantina I e II e São José da Matança.
(Eu) achava que se mudasse de lá, eles não ia visitar
mais a gente né, pra comprar as coisinhas da gente.
Aí eu falava que não ia sair não. ( ) Resultou saindo, Mobilizações e resistência em
porque eles falavam que, eles chegaram a falar pra
mim, se você não sair, vamos entregar pro governo do
Imperatriz
estado, o governo do estado vai vim vai só lhe inde- Em face dos impactos da Suzano Papel e Celulose,
nizar, bote tempo pra você receber a indenização. A vale destacar algumas frentes de mobilização, como
indenização daquele tamanhozim, ele dizia [se refere as impulsionadas pelas autodesignadas quebradei-
a um agente da Suzano]. Aí foi a gente cou com ras de coco babaçu (MIQCB) e por trabalhadores,
medo , lembrou Francimar trabalhadoras rurais e moradores das comunidades

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afetadas. Essas pessoas também compõem o Fórum Assim, mesmo com a tensão e as tentativas de des-
de Defesa da Cidadania e do Desenvolvimento das mobilização geradas pela empresa, respostas da co-
Comunidades da Estrada do Arroz, conhecido como munidade continuam a surgir, seja no MIQCB ou
“Fórum da Estrada do Arroz”. Tais mobilizações en- pelo “Fórum da Estrada do Arroz”, ou por outros gru-
gendram processos de resistência que podem ser pos e segmentos inseridos no processo.
compreendidos a partir de práticas cotidianas, au-
diências públicas e reuniões com representantes da
empresa e do governo local para reivindicar direitos Repetições e respostas
e confrontar a atuação da empresa.
Como analisado, o pacote de ações formulado pelo
Como resposta, algumas estratégias são empreen- Programa Grande Carajás esteve diretamente li-
didas pela Suzano. A criação do “Conselho de De- gado a megaempreendimentos de monocultura do
senvolvimento Comunitário”, por exemplo, que reú- eucalipto no oeste do estado do Maranhão, espe-
ne quebradeiras de coco babaçu em espaços físicos ci camente no município de Imperatriz, palco de
construídos em algumas comunidades, a exemplo intervenções ocasionadas pelos empreendimentos
de Coquelândia e Petrolina. Tal situação gera alguns CELMAR, Ferro Gusa Carajás e atualmente pela
con itos internos, pois os incentivos que regem a fábrica da Suzano Papel e Celulose. Esse último
associação ao “Conselho da Suzano” são compreen- empreendimento, vale destacar, intensi cou lógi-
didos como uma tentativa de desmobilizar outros ca e ritmo dos primeiros, que não conseguiram se
movimentos já atuantes na região. Estes se negam a implantar integralmente.
receber os ditos “benefícios” apresentados em proje-
tos de compensação social e ambiental. A desestruturação dos modos de vida das famílias ca
evidente na escassez de espaço para implantação das
De acordo com a quebradeira Maria erobina, inte- roças, na situação de deslocamento compulsório das
grante do MIQCB, a atuação da Suzano cria con i- famílias da comunidade Bacaba e nos efeitos ocasio-
tos ao criar movimentos paralelos. nados pelo transporte das toras de eucalipto. Também
se desvela o processo na percepção e nos relatos dos
Está sendo muito pior do que o con ito da época que agentes sociais da Vila Conceição I sobre os efeitos do
a gente se escondia com medo da espingarda. Esse con- funcionamento da fábrica. Esses depoimentos permi-
ito, esse grande con ito político, que aí entra o social, tem compreender que os interesses empresariais são
entra tudo, esse daí é que é o problema sério e ideológi- estruturados a partir de aspectos que se colocam em
co. Os companheiros deixaram de acender a vela pra o contraposição às dinâmicas especí cas dos chamados
meio ambiente pra acender a vela da grande empresa. É povos e comunidades tradicionais.
uma das coisas que deixa a gente muito revoltada, que
eles estão tomando o espaço das organizações dos tra- Como apontado, diferentes mobilizações têm sido
balhadores aqui na região, o espaço do movimento das organizadas desde a implantação do projeto CEL-
quebradeiras, eles tomaram, criaram até um conselho MAR. Trabalhadores rurais, quebradeiras de coco,
das quebradeiras de coco aqui na estrada do arroz ( ) movimentos sociais, lideranças sindicais e de orga-
estava tratando de organizar grupo, implantando grupos nizações não governamentais se articulavam para o
de produção, e eles chegaram; pegaram aqui da Bacaba enfrentamento das situações impostas pela atuação
Nova, que a (Bacaba) velha eles acabaram, né? Pegaram dos empreendimentos. Entretanto, no caso da em-
da Bacaba Nova até Petrolina, criaram um conselho das presa Suzano Papel e Celulose, tais mobilizações vi-
quebradeiras. E quem é o carro chefe desse conselho? venciam recorrentemente estratégias de desmobili-
É o sujeito da Suzano, foram cadastrando e chamando, zação e de cooptação, criando e acirrando con itos
fazem festa hoje pras quebradeiras de coco, dão pre- entre os movimentos da região.
sente, fazem premiação, o conselho das quebradeiras .
(Maria erobina Silva Neta, entrevista realizada no
Filipe da Cunha é graduado em Ciências sociais com
Museu Casa Branca, hoje designado Centro de Ciências
licenciatura em Sociologia e Bacharelado em Ciências
e Saberes Museu Casa Branca, localizado no P.A Vila
Políticas pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
Conceição I, 04/03/16), disse Maria em entrevista no É integrante do Grupo de Estudos Socioeconômicos da
Museu da Casa Branca, hoje Centro de Ciências e Sa- Amazônia (GESEA). Atualmente é mestrando vinculado
beres Museu Casa Branca, no Projeto Vila Conceição ao Programa de Pós-Graduação em Cartogra a Social e
I, em 4 de março de 2016. Política da Amazônia (PPGCSPA).

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A floresta, o outro lado


do que queremos ser?
Bruno Malheiros
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará

D
escobri recentemente, lendo a coluna “Léxico” ventamos como nação, transformando-a, também,
do jornal Nexo, que o termo oresta, decifrado naquilo que não somos e não queremos ser.
por So a Nestrovski, vem da palavra latina fo-
resta”, que é uma combinação de foris, que signi ca Esse modo de jogar para fora a oresta, varrendo para
do lado de fora, e silva, que signi ca os bosques culti- um cantinho desprezível a Amazônia, transformou-
vados dentro dos muros dos castelos. A combinação, -se em uma engrenagem de destruição e morte, que
surgida na corte de Carlos Magno, entre os séculos 8 sempre sangrou territórios de múltiplos povos nessa
e 9, tinha um caráter jurídico de delimitar legalmen- região, através de hidrelétricas, extensas fazendas de
te um terreno fora dos muros do castelo que serviria gado, da exploração desenfreada de madeira, de plan-
como reserva de caça para uso exclusivo do rei. O ter- tações de soja e milho, de ferrovias e de projetos de
mo em francês “forêt” e em italiano “foresta” conser- mineração. Essa engrenagem, hoje, a cada novo co-
vam a mesma raiz anteriormente citada e o português mentário esdrúxulo daquele que nos preside, reativa-
acrescenta a ela um “l”, talvez para tornar o vocábulo -se e jorra fogo e sangue pelas mãos daqueles que
próximo a or e ora, o que não o desliga totalmente não conhecem outra forma de ganhar dinheiro senão
de sua signi cação anterior. pela violência e destruição. Não poderíamos esperar
outra coisa de um governo que corta recursos para
As palavras tornam-se atos por suas signi cações. prevenção de incêndios orestais, bloqueia dinheiro
Mesmo que naturalizemos ou nem saibamos de do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) in-
tais signi cados, eles estão em nós: em modos de viabilizando scalizações e incentiva o desmatamento
pensar, em modos de agir… não há como negar que e a violência no campo e na cidade.
sempre entendemos a oresta como um lado de
fora do que somos. Foi o que zemos por séculos: A síntese mais asquerosa que nossa sociedade po-
jogá-la para fora do que compreendemos como hu- deria dar, ao jogar a oresta para o lado de fora do
manidade. Conseguimos transformá-la em perigo, que inventamos por civilização, talvez tenha sido o
em símbolo do atraso, em algo homogêneo e pouco ato de fazendeiros e grileiros da BR-163 de queimar
complexo e demos o golpe de misericórdia ao torná- a mata para demonstrar trabalho ao presidente do
-la uma ameaça ao progresso, palavra que vem do Brasil. O que o “dia do fogo” (como foi chamado, na
latim progredi que signi ca avançar e ir para frente. Amazônia, o dia escolhido para as queimadas – 10
Assim, tornamos a oresta algo fora do que somos de agosto de 2019) queimou não foi só a oresta,
e bem atrás daquilo que queremos ser. mas também o relativo silêncio público que ainda
tampava os bueiros da economia de morte e des-
No Brasil, conseguimos transformar toda uma re- truição que sempre existiu como uma máquina a
gião com imensa diversidade étnica e complexidade drenar energias vitais da Amazônia. Chegamos, de-
humana, a Amazônia, na nossa expressão de ores- nitivamente, a uma bifurcação civilizatória quan-
ta. O imperativo natural, essa imagem sempre do do o que há de mais podre em nossa sociedade vira
alto a representar o que está abaixo de nós por um motivo de orgulho, quando o cheiro de queimado
verde homogêneo, levou uma região inteira para intoxica nossa consciência e, assim, conseguimos
fora das nossas grades de compreensão do que in- comemorar o fogo e o sangue. Ao ponto que che-

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A monocultura da soja, símbolo de lucro e properidade para o agronegócio brasileiro, varreu grandes porções da oresta amazônica nos arredores de Santarém-PA nas
últimas décadas. Foto: Amazônia Latitude.

gamos, ou mudamos nossas referências ou seremos construir a perspectiva do que até então reduzimos
cúmplices do nosso próprio massacre. ao vocábulo oresta: quando despersonalizamos o
rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sen-
Muito se tem dito em defesa da oresta e por exten- tidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos
são da Amazônia, mas algo há de se ter em conta humanos, liberamos esses lugares para que se tornem
antes de qualquer boa vontade de quem quer que resíduos da atividade industrial e extrativista .
seja: não há perspectiva de futuro para a Amazônia
sem considerarmos a sabedoria de seus povos, uma O pensamento de Ailton Krenak não constrói, como
vez que a oresta é, também, o saber-fazer daque- fazemos, uma rígida hierarquia entre homens, ani-
les que a habitam muito antes de nós. mais, plantas, terra, montanha, rio… o fato do rio e
das montanhas possuírem personalidade, signi ca
É pelo saber desses povos que começamos a mudar que carregam um discernimento, por isso não há
nossas referências. Em seu livro, cujo título já é um relação hierárquica entre o que convencionamos
presente, Ideias para adiar o m do mundo , Ail- chamar de racional (nós) e o que arrogamos o lugar
ton Krenak adverte: A ideia de nós, humanos, nos de irracional (a oresta), pois a humanidade não se
descolarmos da terra, vivendo uma abstração civiliza- restringe aos humanos. Então, descolarmo-nos da
tória, é absurda. Suprime a diversidade, nega a plu- terra é tornar nossa existência vazia, assim como
ralidade de existência . O mesmo Krenak, então, despersonalizar um rio ou uma montanha é trans-
oferece-nos outras referências para nos fazer re- formá-los em resíduos de atividades industriais.

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Talvez uma outra palavra nos ajude a entender Assim, na língua em que o movimento é dado pelas
a tamanha riqueza que Krenak nos oferece e, ao coisas, a história carrega cheiro, sabor, visualidade,
mesmo tempo, a perceber a tamanha pobreza de bem como os horizontes são concretos e expressi-
signi cação que oferecemos à oresta. A palavra vos, pois é o mundo das coisas que nos apresenta
é Hutukara, usada pelos xamãs Yanomami para o signi cado do tempo. Uma árvore, um rio, uma
denominar aquilo que talvez nossa língua enten- montanha, portanto, ao passo que carregam as
da por mundo. David Kopenawa Yanomami, que marcas de expressão do que foi, delineiam também,
também nos oferece um presente em seu livro com os horizonte do vir a ser! Impregnados por essa lín-
Bruce Albert “A queda do Céu”, ensina-nos que a gua do mundo, outras cosmologias, outros modos
Hutukara ca junto com a pedra, terra, com a areia, de pensar e agir trazem decisivamente a oresta
o rio, o mar, o sol, a chuva e o vento. Hutukara é para o lado de dentro do que somos e queremos ser.
um corpo, um corpo que é unido, ela não pode car
separada ( ). Ela é uma grande casa e nós estamos O alerta está sendo dado por aqueles que, por nossa
dentro do corpo dela ( ). Hutukara é nossa mãe, ela preguiça cognitiva, há tempos ignoramos. Um aler-
que deixa nascer . ta que, aliás, já foi até mesmo antevisto em canção:

Na defesa dos territórios Yanomami contra a mine-


ração, Kopenawa completa sua perspectiva dizen-
do: não pensamos as coisas de forma dividida, pen- Um índio descerá de uma estrela
samos na nossa terra- oresta como um todo. Se vocês
destruírem o que está abaixo do solo, tudo que está
colorida e brilhante
acima também sofrerá. Não somos apenas nós, povos De uma estrela que virá numa
indígenas, que vivemos na nossa terra. Vocês querem
perguntar a todos os moradores da oresta o que eles velocidade estonteante
acham sobre a mineração? Então perguntem aos ani-
mais, às plantas, ao trovão, ao vento, aos espíritos E pousará no coração do
Xapiri, pois todos eles vivem na oresta. A oresta
também pode se vingar de nós, quando ela é ferida .
hemisfério sul,
Na América, num claro instante.
O perspectivismo de Kopenawa nos faz lembrar
que devemos ouvir a oresta para compreendê-la, ( )
pois há uma unidade existencial entre ela e a nos-
sa terra. Assim, entendemos que homens, animais, E aquilo que nesse momento se
plantas, o trovão, o vento, os espíritos Xapiri com- revelará aos povos
põem a humanidade da natureza.
Surpreenderá a todos, não por ser
Krenak e Kopenawa invertem nossas referências,
desfazem as dicotomias que organizam nosso pen- exótico
samento, tiram a oresta do lado de fora e colo-
cam-na do lado de dentro, e esse deslocamento de
Mas pelo fato de poder ter sempre
sentido é, fundamentalmente, um alerta para adiar estado oculto
o m do mundo ou a queda do céu. Ver a oresta
no lado de dentro é colocar no centro de qualquer ando terá sido o óbvio.
perspectiva de futuro para todos nós, a perspectiva
de futuro dos povos que a habitam.

Nossa arrogante norma culta talvez não compreen-


Caetano Veloso
da exatamente o que os povos da oresta, hoje, nos
dizem sobre a oresta. em sabe se buscarmos
no Tupi, e não em nossas línguas coloniais, não en- Bruno Malheiros, geógrafo, mestre em Planejamento do
tendemos melhor. Toda língua é um mundo e no Desenvolvimento (NAEA/UFPA), doutor em Geogra a
mundo Tupi o tempo não é indicado por verbos, por pela UFF. Professor da Faculdade de Educação do Campo
ações, mas em su xos agregados a substantivos. da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.

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Novos colonialismos :
diálogos evanescentes
numa fronteira em
movimento
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Universidade do Estado do Amazonas

Esta ilustração busca captar três formas de colonialismos praticadas ao longo dos séculos - cristão, cientí co e econômico. Arte: Sandro Schu

C
onvido o leitor para uma re exão crítica sobre de outro, focalizando, notadamente, nos temas asso-
direitos territoriais, cultura e meio ambiente ciados à cultura e aos fatores ambientais. Os temas
nas relações internacionais referidas ao Bra- ganharam força a partir da Convenção sobre Diver-
sil nas últimas décadas. Um fator preponderante, sidade Biológica (CDB), promulgada durante a Rio-
no âmbito destas relações, refere-se aos chamados 92, realizada no Rio de Janeiro, no dia 05 de junho
“diálogos setoriais” entre o Brasil, que se encontra de 1992. A Declaração Universal sobre a Diversidade
de um lado e a União Européia e os Estados Unidos Cultural adotada, pela Unesco no dia 21 de maio de

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2001, também foi outro episódio importante para a os con itos sociais manifestos nas transforma-
discussão. Ambas em conformidade com as Nações ções sociais e econômicas nesta virada de século. A
Unidas (ONU) e acatadas pelo Brasil. transição tem sido também classi cada como uma
ruptura profunda com as medidas autoritárias ins-
O fortalecimento das iniciativas políticas, engen- piradas num projeto neocolonialista2. Semelhante
dradas no sentido “norte/sul” e cognominadas “diá- transição ainda não tem, entretanto, uma explica-
logos” estabelece linhas demarcatórias rigidamente ção acabada. Suas interpretações, mesmo as mais
traçadas em um pano de fundo de aparente entendi- aprimoradas, sublinham uma constante “perda de
mento. Dizemos aparente por estar diante de inter- rumo , evidenciando uma di culdade analítica e
pretações e posições divergentes face aos fenômenos de compreensão da dinâmica dos processos sociais
relativos à biodiversidade e a con itos socioambien- em curso. Importa revisar, portanto, intérpretes e
tais, como veremos adiante. interpretações que demonstram esta perplexidade,
considerando que constituem um pressuposto para
Recentemente, novas modalidades de re exão têm sua própria explicação.
se contraposto a essa tendência geográ ca , forta-
lecendo principalmente relações classi cadas como Com apoio neste pressuposto é que pretendo ex-
“sul/sul”, ou seja, corroboram para países asiáticos, por o tema de maneira aberta, convidando o leitor
africanos e sul e centro-americanos. Tais relações as- a re etir livre e acuradamente sobre as decisões de
sinalam interpretações mais próximas do ponto de política-cultural e ambiental e sobre os direitos terri-
vista das questões ambientais, ao contrário da citada toriais em pauta para povos e comunidades tradicio-
anteriormente. Para alguns intérpretes mais afeitos nais. Busco apresentar interpretações de diferentes
aos trabalhos localizados e às pesquisas de campo, autores, descrevendo condições de possibilidades
a biodiversidade é entendida como não se separan- para o acesso a dispositivos conceituais, argumentos
do da sociodiversidade, sobretudo, da emergência e esquemas explicativos capazes de propiciar uma
de novos “sujeitos sociais” que se apropriam dos re- tríplice ruptura: i) com as autoevidências3, ii) com
cursos naturais consoantes e podem ser entendidos os ditames evolucionistas e iii) com o senso-comum
como uma autoconsciência cultural acentuada. dos dualismos (tradicional X moderno, primitivo X
Eles constroem suas respectivas identidades coleti- vanguarda, rural X urbano, periferia X centro, ex-co-
vas, rede nindo os próprios signi cados de etnia , lônias X metrópoles, atrasado X avançado, matéria
“povos tradicionais” e mais fatores identitários. Os prima X indústria).
efeitos aparecem conjugados à preservação ambien-
tal articulada com rituais de passagem, que hierar- Uma advertência inicial é que as “histórias de dife-
quizam o tempo e os espaços físicos. Exemplo disto, renças culturais”, sempre sublinhadas, não devem
são as orestas amazônica e atlântica ou as orestas ser lidas apressadamente como sugerem os precei-
úmidas da bacia do Congo e do sudeste asiático, que tos evolucionistas. A nal, os conceitos de cultu-
não poderiam ser compreendidas enquanto disso- ras nacionais homogêneas”, “identidades étnicas” e
ciadas dos povos e comunidades. “processos de ambientalização”- bem como a noção
geral de “pós-colonialismo”- estão passando por re-
Outros intérpretes, que incorporam tal dissociação, de nições que di cultam exercícios comparativos e
mostram-se mais a nados com uma argumentação iniciativas de contraste. Assiste-se à perda da força
ambientalista radical. Prevalece uma preponderân- conceitual e da capacidade de persuasão destas no-
cia absoluta do quadro natural para explicar a vida ções até então hegemônicas. São a partir destes con-
social. Sob este aspecto, as características do meio fí- dicionantes atuais que se devem apreciar as relações
sico seriam determinantes para de nir os princípios “norte/sul” ou aquelas “sul/sul” aqui sublinhadas.
de qualquer política ambiental. Assim, a preservação
seria sempre entendida como “integral”, ou seja, sem Em “O Local da Cultura”, análise de Homi Bhabha4,
a presença de unidades sociais. impõe-se marcar uma distância crítica mediante os
historicismos e as ilusões de continuidade que fun-
A explicitação desta dupla fronteira revela mais que damentam interpretações o ciosas.
um con ito de interpretações. Ela coloca circuns-
tancialmente em suspenso a utilização do modelo O trabalho fronteiriço da cultura exige um encon-
usual de harmonia como uma técnica de “diálogo”, tro com o novo , que não seja parte do continuum
que silencia as diferenças e chama a atenção para de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo

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como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte tações estigmatizantes, tributárias da complexidade
não apenas retoma o passado como causa social ou da descolonização, avizinham-se de noções do deno-
precedente estético; ela renova o passado, re guran- minado “racismo ambiental”. Argumentos demogra-
do-o como um entre-lugar contingente, que inova e stas de fundamento malthusiano são tragicamente
interrompe a atuação do presente. reeditados. Bem ilustram isto as tensões e as tragé-
dias sucessivas na Ilha de Lampedusa, na Itália, com
Além disto, quando se relaciona direitos territoriais mais de 20 mil mortos, nas duas últimas décadas,
de povos e comunidades tradicionais, cultura e meio dentre os que tentam entrar clandestinamente com
ambiente, há distintas abordagens em jogo que não embarcações precárias na Europa. Acrescente-se a
podem ser elididas. isto as reivindicações dos chamados “sans-papiers”
e as di culdades crescentes no reconhecimento dos
Para intérpretes referentes às pesquisas de campo, direitos de povos ciganos, na França. Numa direção
a biodiversidade é entendida como não dissociável contrária, no Brasil, se assiste à emergência conco-
da sociodiversidade. A autoconsciência cultural mitante de uma pluralidade de identidades coleti-
constrói suas respectivas identidades coletivas (in- vas com o pleno reconhecimento de seus direitos
dígenas, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, quebra- territoriais5 (Dec. nº 6.040/2007) e culturais, inclusive
deiras de coco babaçu, faxinalenses, piaçabeiros, co- linguísticos6 (Dec. nº 7.387/2010), e veri cam-se leis
munidades de fundos de pasto, vazanteiros) e suas de imigração mais abertas e relativamente exíveis,
territorialidades especí cas. Trata-se de identidades face aos rígidos dispositivos jurídicos adotados nos
coletivas objetivadas em movimentos sociais, com Estados Unidos e pela União Europeia.
consciência ambiental profunda e mobilização ex-
pressiva em torno de direitos territoriais. A rede ni- A explicitação das múltiplas fronteiras e de seus des-
ção de cultura tem implicações sobre a reorganização dobramentos traduz situações sociais contrastantes.
do espaço físico e as modalidades de apropriação. Os Colocam circunstancialmente em suspenso a utiliza-
efeitos pertinentes desta construção apontam para ção do modelo usual de harmonia como uma técnica
uma preservação ambiental conjugada com rituais de diálogo entre países, causando o silenciamento
de passagem que hierarquizam o tempo e os espaços das diferenças. Além disso, chama-se a atenção para
físicos. As orestas tropicais, úmidas, não poderiam antagonismos sociais, manifestos nas transforma-
ser compreendidas em sua plenitude, enquanto dis- ções sociais e econômicas nesta “virada de século”,
sociadas dos povos e comunidades que tradicional- que afetam de maneira desigual países e continen-
mente as ocupam. A reorganização do espaço, neste tes, blocos econômicos e “comunidades internacio-
sentido, consistiria num reconhecimento das formas nais”. Sob este prisma, os “diálogos setoriais” de-
intrínsecas de uso comum dos recursos naturais. mandam uma análise crítica, dissociando a pauta de
reivindicações dos movimentos sociais daqueles atos
Ao contrário, para outros intérpretes mais a nados de Estado.
com uma argumentação ambientalista radical, ins-
pirada nos preceitos das antigas metrópoles, preva-
lece a preponderância absoluta do quadro natural
que seria determinante para de nir os princípios
As implicações de
de qualquer política o cial. Sob este ponto de vista,
conforme já foi sublinhada, a preservação é classi - uma perda de rumo
cada como “integral”, ou seja, dissociada de quais-
quer unidades ou agentes sociais que passam a ser
considerados como predadores ou “intrusos”. Tem-se
Nous sommes entrés dans le
uma ilegitimidade das formas tradicionais de uso nouveau siécle sans bussole.
dos recursos, evidenciando con itos sociais. (Amin Maalouf, em Le dérègle-
Articulada com esta ilegitimidade veri ca-se que, na ment du monde )
União Europeia, avoluma-se as restrições à sociodi-
versidade e agravam-se estigmas face às ex-colônias, Há um consenso no debate entre as interpretações
com leis de imigração cada vez mais severas e com eruditas sobre a passagem do século XX ao XXI,
restrições às identidades étnicas e ao livre desloca- que enfatiza uma “perda de rumo” e uma “desorien-
mento dos agentes sociais a elas referidos. As orien- tação” generalizadas sobre que direções tomar na

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economia, na produção de conhecimentos ou na mento para servir de guia a uma localização certeira
vida cultural. As decisões políticas e os circuitos de e nem mesmo de uma velha bússola para indicar o
mercado delimitam o campo da produção de bens caminho a ser seguido. O pensador a rma que se
simbólicos, decidindo que bens e serviços culturais entra no novo século com um passo em falso. A “per-
serão nanciados e o que deve ou não ser produzido. da de rumo” estaria vinculada, consoante o próprio
Em um quadro de crises profundas, constata-se uma título de seu livro, à crise da desregulação geral ou
complexa situação de passagem em que se assomam ao m das regras que disciplinariam as atividades
incertezas e di culdades de previsão ou de estimati- mercantis e as políticas das agencias multilaterais.
vas con áveis face ao futuro próximo. Assomam-se “Nous sommes entrés dans le nouveau siècle sans bus-
indagações acerca do “para onde vamos?” e de per- sole , a rma Maalouf.
guntas avizinhadas: o espaço se sobrepõe ao tempo?
Há um encurtamento do tempo frente aos espaços A crise nanceira e o colapso das políticas triunfalis-
físicos que se tornam rigidamente hierarquizados? tas de inspiração neoliberal, a partir de 2008 e 2009,
geraram uma descon ança face às ideias de desregu-
Os discursos explicativos destas incertezas, contamina- lação”. Isso facilitou a disseminação de suspeita geral
dos de metáforas, recorrem não a dispositivos econômicos do seu propósito de “libertar” o crescimento das forças
ou de natureza cultural, mas à ausência dos instrumentos produtivas, que “naturalmente” ocorreria com a neu-
de exatidão, precisão, localização geográ ca e medição, tralização da ação do Estado. Com o fracasso genera-
para evidenciar a magnitude das múltiplas dimensões lizado das políticas neoliberais de “desregulação” e os
de uma “desorientação” profunda e sem o sentido usual- sinais de prolongação da crise econômica, as cabeças
mente dado pelas direções marcadas na rosa dos ventos. pensantes do multilateralismo estão propondo estabe-
Territórios e identidades coletivas conhecem rede nições lecer internacionalmente um “diálogo” em “novas” ba-
de sentido. As fronteiras do presente não são, de modo ses. Em outras palavras, a iniciativa de “diálogo” ocorre
algum, autoevidentes. O mapa já não sucede ao terri- num momento de transição e de incertezas em que os
tório como diria Baudrillard, em “Cultura y Simulacro”7. efeitos de uma descolonização tardia são repensados e
recolocados, com desdobramentos imprevisíveis.
Para o historiador Amin Maalouf8, em 2009, na en-
trada do novo século, não se dispunha de um instru- O prefácio de “Tempos Fraturados – Cultura e So-

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ciedade no século XXI , livro póstumo de Eric Hobs- da arte”, remontando a Hegel. Ambos situam as
bawm9, lançado em 2013, logo após a morte do his- últimas décadas do século passado como uma era
toriador inglês, elabora uma argumentação análoga, de grandes encenações e de um trágico teatro de
mas colocando o foco no que estaria implícito na au- operações de guerra com efeitos sobre a manei-
sência do velho instrumento e não nele próprio. “( ) ra de se pensar as transformações sociais. Com
este livro também se refere a uma época da história o pós-modernismo, ocorreria uma recolocação de
que perdeu o rumo e que, nos primeiros anos do novo categorias de pensamento, tanto em termos po-
milênio, com mais perplexidade do que lembro ter vis- líticos quanto em termos da produção cientí ca.
to numa já longa vida, aguarda desgovernada e deso- Razão, ciência, tempo e espaço conhecem res-
rientada, um futuro irreconhecível”, diz Hobsbawm. semantizações, ou passam a ser relativizadas de
igual modo que as categorias políticas: soberania,
Embora a propalada “perda de rumo” remeta, apa- cidadania e território; propiciando o advento de
rentemente, a espaço físico tem-se uma noção de novas categorias. Jameson11, em “A virada cultu-
tempo e de cultura. O que deixa à mostra que a ral: re exões sobre o pós-modernismo , capta, in-
crise tem uma tripla dimensão frente a categorias clusive, neologismos como “desterritorialização”,
fundamentais e permanentes nos sistemas de pen- tomado a Deleuze, articulando-o com a crise da
samento. especulação imobiliária. A situação de passagem,
enquanto transição incerta, implica no abandono
No capítulo inicial de “O Local da Cultura”, de determinadas categorias em proveito de outras
Homi K.Bhabha, em consonância com os intér- que causa modi cação completa nos esquemas
pretes anteriores, descreve com pormenor seu interpretativos ou na modalidade de perceber os
ponto de vista: fenômenos.

É o tropo dos nossos tempos colocar a questão da Mediante a “falta de rumo”, os autores procuram al-
cultura na esfera do além. Na virada do século, ternativas. O caminho encontrado tem convergido
preocupa-nos menos a aniquilação – a morte para uma formação acadêmica capaz de propiciar
do autor – ou a epifania – o nascimento do coordenadas precisas para um tipo de pro ssional,
‘sujeito’. Nossa existência hoje é marcada por cujos critérios de competência e saber possibilitam
uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de imprimir “direção” ou mesmo inverter “rumos”.
viver nas fronteiras do ‘presente’ para as quais
não parece haver nome próprio além do atual e con- O pensador argentino Tomás Eloy Martinez12, em
trovertido deslizamento do pre xo pós : pós-mo- “Purgatório”, sintetiza esta convergência. Ele con-
dernismo, pós-colonialismo, pós-feminino sidera a cartogra a como uma ciência que, ideal-
mente, pode desvendar “caminhos” e propiciar a
O “além” não é nem um novo horizonte e nem um orientação adequada em momento de crise, do-
abandono do passado. Inícios e ns podem ser os brando as “incertezas” e reencontrando o “rumo”:
mitos de sustentação dos anos no meio do século, “Um cartógrafo, se quiser, pode inverter os rumos
mas neste n-de-siècle, encontramo-nos no mo- do mundo”.
mento de trânsito em que espaço e tempo se cru-
zam para produzir guras complexas de diferença No compasso das perplexidades recentes, po-
e identidade. Isso porque há uma sensação de de- der-se-ia colocar uma interrogação nesta afir-
sorientação no “além”: um movimento explorató- mativa de Martinez, pontuando que, ao mesmo
rio incessante, que o termo francês au-delà capta tempo em que a cartografia empresta uma ideia
tão bem – aqui e lá, de todos os lados, fort/da, de completa objetividade a situações de transi-
para lá e para cá, para frente e para trás. ção, ela também é marcada por obstáculos ana-
líticos e dificuldades interpretativas na compre-
Fredric Jameson10, em “Le postmodernisme, ou la ensão das subjetividades. Para superação deste
logique culturelle du capitalisme tardif”, pensador impasse é que, a partir de relações de pesquisa,
norte-americano com doutorado em Yale, fala es- começamos a construir os pressupostos de aná-
peci camente de uma guinada cultural ou da di- lise concernentes ao que denominamos de “nova
nâmica de uma cultura pós-moderna a partir dos cartografia social” contrastando com a carto-
efeitos das sucessivas guerras e de um “capitalis- grafia oficial e de base geográfica, como tenta-
mo tardio . Circunstancia a polêmica sobre o m remos expor a seguir.

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Uma Transição Incerta e de Verso la ne degli anni Venti o l inizio degli anni
Trenta dei secolo scorso Antonio Gramsci scriveva in
Risco: o novo ainda não nasceu uno dei molti quaderni che riempi durante la sua lunga
prigonia nel cárcere di Turi: La crisi consiste precisa-
e o velho ainda não morreu mente nel fato che il vecchio sta morendo ed il nuovo
non più ancora nascere; in questo interregno appaiono
Um outro grupo de pensadores formula uma inter- molti sintomi morbosi.
pretação da “virada do século” em torno dos riscos
deste tipo de transição, que além de “perder o rumo” Mais adiante, continua: Propongo di riconosce-
encontrar-se-ia numa situação de liminaridade en- re la condizione planetária odierna come um caso
tre rituais de separação que não se completam e se di interregno. Davvero, próprio come postulato da
encontram inconclusos. Tais rituais de separação es- Gramsci, il vecchio sta morendo . Il vecchio ordi-
tão relacionados à preparação e espera de cerimô- ne fondato no a poco tempo fa su um principio
nias de nascimento e de morte. anch esso trinitario di território, stato e nazione
come chiave ala distribuzio-
O lósofo D. Bensaid13, em ne planetária dela sovrani-
“ Os irredutíveis. Teoremas
da resistência para o tempo
Na virada do século, tá e sul potere sposato ala
politica dello stato nazione
presente”, assinala essa con-
dição marginal de uma pas-
preocupa-nos menos a territoriale come sua uni-
ca agenzia ativa, sta ormai
sagem não-concluída ou de aniquilação morendo la sovranitá non
uma sequência cerimonial in- essendo più collegata ad al-
completa de um rito de pas- a morte do autor cuno degli elementi dele en-
sagem que, ao contrário das tità e del principio trinitari, o
previsões, não se efetuou de ou a epifania o essendo comunque collegata
maneira completa na “virada
de século”. Este movimento nascimento do sujeito . ad essi in una parte che si ri-
duce constantemente, mentre
inacabado é assim descri-
to: “Eis que embarcamos em
Nossa existência hoje il matrimonio aparentemente
indestru ibile di potere e po-
uma transição incerta, em que
o velho agoniza sem ser
é marcada por uma litica si sta risolvendo in uma
separazione e forse in um
abolido, o novo pena para tenebrosa sensação divorzio. La sovranitá è per
eclodir, entre um passado cosi, dire, disancorata e libe-
não ultrapassado e a des- de sobrevivência, de ramente utuante. I critério
coberta balbuciante de um dela sua allocazione tendo-
novo mundo em gestação”. viver nas fronteiras do no a essere fortemente con-

Bensaid também diz: “Sob o presente . testati, mentre la sucessione


di uma regola di allocazione
choque da globalização ca- e la sua applicazione in um
pitalista, as noções de nação, gran numero di casi rovescia-
território, povo, soberania e cidadania foram abaladas, ta (ossia, la regola è rido a a chiosa retrospe iva di
assim como os parâmetros do direito internacional in- uno stato di fato già compiuto).
terestatal. Abaladas, mas não ultrapassadas. Vivemos
essa grande transição, esse grande intervalo en- Em consonância com Bauman, o jornalista Serge
tre dois extremos, entre o “não mais” e o “ainda Halimi15, diretor do Le Monde Diplomatique, nos
não”, em que o antigo não acabou de morrer, en- convida a re etir numa mesma direção, abrindo seu
quanto o novo pena para nascer e corre o risco artigo na edição de maio de 2013, “Para preparar a
de perecer antes mesmo de ter vivido”. reconquista”, com um verso indagativo de Poésie
Ininterrompue de Paul Éluard: “Eu quero saber de
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman14 partilha onde estou partindo / Para manter tanta esperança”.
desse esquema interpretativo e bem de ne sua ins-
piração em A. Gramsci num artigo publicado no pe- Na formulação mais acabada de Halimi, tem-se o
riódico italiano “Il Manifesto”: seguinte:

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nas últimas décadas, a transformação do mun- sa intitulado “Il Ga opardo”, cuja adaptação cine-
do tem sido tão rápida que superou em velocidade matográ ca foi realizada por Luchino Visconti. No
nossa capacidade de analisá-la. A queda do Muro de romance, tal como acomete hoje na ilha do mesmo
Berlim, o surgimento dos BRICS (Brasil, Rússia, Ín- nome ou mais uma vez em torno de Lampedusa,
dia, China e África do Sul), as novas tecnologias, as sucede transformações e o mecanismo explicativo
crises nanceiras, as revoltas árabes, o declínio eu- delas pode ser sintetizado no que cou conhecido
ropeu: a cada vez, especialistas se revezam para como gatopardismo e que pode ser resumido em:
nos anunciar o im da história ou o nascimento “Se queremos que tudo permaneça como está, faz-se
de uma nova ordem mundial. necessário que tudo se transforme ou mude”.

Além destes prematuros enterros ou desses partos


incertos, três grandes tendências surgiram, mais ou Rumo Leste, Rumo Sul :
menos universais, das quais, num primeiro momento,
é importante fazer um balanço: crescentes desigual- Velhas Certezas Desfeitas
dades sociais, decomposição da democracia política e
encolhimento da soberania nacional. Durante séculos, até duas décadas passadas, não ha-
via dúvida de que o curso do mundo se manteria o
As metáforas vinculadas ao tempo biológico e sua mesmo. O Oeste seria sempre o “rumo” do processo
nitude funcionam uma vez mais como mecanismo civilizatório. Uma acurada síntese do literato portu-
explicativo das transformações sociais. Constata-se guês Eça de eiroz16 rea rmava esta verdade irre-
que, nos desdobramentos desta explicação, alguns torquível” nas “Cartas de Inglaterra”, 1878. Tratava-se
de seus resultados convergem para guras literárias de uma correspondência enviada por Eça regularmen-
e uma delas, em especial, merece destaque, aquela te ao jornal brasileiro “Gazeta de Notícias” e ao jornal
que se refere ao romance de Tomasi de Lampedu- portuense “A Actualidade”, durante os anos de 1878

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a 1882. O autor reproduz uma das certezas da era de levantamento documental em que procura descons-
expansão imperialista, que hoje nos parece absoluta- truir o discurso eurocêntrico produzido a partir do
mente abalada, senão completamente desfeita: a da Renascimento clássico. Goody18, em “Renascimentos
dinâmica constante do “ocidente”. : um ou muitos?”, constata a perda da informação
cientí ca sob a hegemonia do cristianismo. Analisa
Como a civilização caminha para o oeste, isto pas- seus efeitos negativos sobre o pensamento cientí co
sar-se-á aí para o século XXVIII, na Nova Zelândia e, em especial, sobre a cartogra a:
ou na Nova Austrália, quando nós, por nosso turno,
formos as velhas raças do Oriente, as nossas línguas Por exemplo, no que diz respeito à cartogra a, os
idiomas mortos, e Paris e Londres montões de colu- mapas cristãos regrediram em relação aos minucio-
nas truncadas como hoje Palmira e Babilônia, que o sos mapas gregos e romanos e, de algum modo, em
zelandês e o australiano virão visitar em balão, com relação aos mapas islâmicos, como os de Al-Idrisi no
bilhete de ida e volta livro de Rogério (1154) e mais tarde no século XVI,
no norte da Europa, os mapas de Mercator. O mapa
A expectativa da ruinaria pode até ser a mesma, mas cristão do início do século VVII ( T-O ) foi chamado
as projeções e estimativas de “rumo” mudaram radi- de diagrama bastante parco . Ptolomeu teve de ser
calmente neste início do século XXI. A problemati- redescoberto, assim como a maioria das ciências teve
zação da representação espacial tende acentuar-se de renascer. Esse é outro exemplo de perda de infor-
uma vez que, do ponto de vista econômico, o centro mações sob o cristianismo.
de gravidade do mundo estaria mudando. Para Ho-
bsbawm, com a atual depressão econômica, o mundo As críticas ao eurocentrismo se estendem ao proces-
não se move para Oeste, mas do Oeste (América do so de produção artística - mapas e atlas - que privi-
Norte e Europa) para o Sul (África e América Central legia desmatamentos de orestas tropicais, poluição
e América do Sul) e para o Leste asiático. Tal movi- de rios e mares, deserti cação e devastação de cam-
mento é de um tempo largo, já que as velhas regiões pos naturais e savanas e mantém os povos e comuni-
metropolitanas e hegemônicas têm um acúmulo de dades tradicionais ausentes de suas representações
riquezas que lhes permitem garantir ainda por déca- cartográ cas. A cartogra a nesta situação se mante-
das um padrão de vida superior ao dos países emer- ria distante da pesquisa etnográ ca ao contrário do
gentes, como, por exemplo, os BRICS (Brasil, Rússia, que começa a prevalecer atualmente na América do
Índia e China). Sul, na África e na Ásia. Neste contexto, os olhares
críticos também se voltam para os “novos cartógra-
Uma das deduções poderia indicar que não teremos fos” de que nos fala Deleuze19, como aqueles que po-
grandes alterações cartográ cas nos mapas-múndi deriam redesenhar mapas segundo o sistema de re-
em curto prazo, embora a tensão social nos “países presentação dos próprios agentes sociais, fortalecer
centrais” (EUA e Europa) mantenha uma tendência o processo de autoconsciência cultural e reorientar
ascendente. Não tem faltado, entretanto, exercícios os “novos rumos” da vida social.
de geógrafos, historiadores e antropólogos que colo-
cam a África, a Ásia e a América do Sul na parte su- As artes eruditas, ainda com Hobsbawm, permane-
perior do mapa-múndi e os países do hoje chamado cem eurocêntricas. Elas, assim, se mantêm mesmo
“Hemisfério Norte” na sua parte inferior17. diante de um planeta globalizado, em que as cadeias
de museus e as sequências programadas de exposi-
ções, de “bienais” e de “grandes coleções” transmitem
Crítica ao Eurocentrismo ordinariamente uma ampla ideia de difusão cultural,
em vista de condições de possibilidades idealmente
Os principais intérpretes dos efeitos da eurocentri- facultadas pela produção intelectual e artística. O
cidade sobre a vida intelectual das antigas colônias desenvolvimento econômico, nos termos de Hobsba-
são os pensadores de universidades da União Eu- wm, possibilitaria uma cena cultural fundada na crí-
ropeia. Para o historiador britânico Jeremy Black, a tica de “sociedades coloniais”, em que a instituição
ruptura com o eurocentrismo consiste numa ques- do repatriamento de coleções passaria a funcionar
tão proeminente nesta quadra de reconceituação como uma medida “natural” de compensação.
intelectual e política. Os resultados da relação da Este tema da repatriação das peças obtidas nas
cartogra a com a religião são recuperados histori- guerras de conquista, que remetem ao colonialis-
camente pelo antropólogo Jack Goody no acurado mo, começou a ganhar corpo nas últimas décadas,

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quando grandes museus europeus vêm fragilizando tura de inspiração nacionalista que reivindica aqueles
o seu signi cado nacional e quando países emer- bens usurpados como “patrimônio nacional”. Em ou-
gentes buscam, ao contrário, consolidar “projetos tros termos, como sublinha Hobsbawm: “Isso provo-
nacionalistas” em termos de política cultural. Um cou uma demanda pela repatriação dessas obras, como
capítulo de tensões se descortina, inaugurando in- na Grécia, na Turquia e na África Ocidental”.
tensas polêmicas.
Mediante as di culdades implícitas nessas ditas
A Repatriação de Coleções e “compensações”, que precisariam ser mais bem apre-
ciadas, tem-se um exercício contrastante que clama
Suas Di culdades por uma relativização do eurocentrismo como pré-
-condição para se iniciar estes chamados “diálogos
Na análise circunstanciada de Hobsbawm, “Os conte- setoriais” e isso não parece simples, nem tampouco
údos desses museus (com referência aos dois museus de fácil. Não depende só da vontade política e nem da
Oskar Reinhardt de Wintesthrue) ( ) não são nacionais, soma de desejos individuais. Mesmo que se proceda
apesar de sua localização em certos lugares, e não per- a uma distinção criteriosa entre “cultura nacional”
tencem a nenhum patrimônio cultural nacional, qual- e “cultura universal”, é necessário atentar para um
quer que tenha sido sua forma original de acumulação exercício histórico, rediscutindo a revolução indus-
(roubo, conquista, monarquia, dinheiro ou patrocínio). trial, o orescimento do colecionismo e suas va-
Coleções deste tipo podem ou não vir a ser o alicerce de riantes no nal do século XX.
museus o cialmente designados como nacionais, mas
de todo modo sua intenção é supranacional.” O antropólogo brasileiro Castro Faria21, em “An-
tropologia: duas ciências. Notas para uma histó-
O Musée du ai Branly, em Paris, um espetáculo ria da antropologia no Brasi”, pondera que, neste
da colonização mesclado com pós-modernismo, se- m de século, foram repensadas as classi cações
ria uma ilustração extrema disso ao expor de modo “biológicas”, “botânicas” e “geológicas” orquestra-
tardio as coleções de “povos selvagens”, obtidas nas das pelos naturalistas que reescreveram a relação
grandes expedições cientí cas20, como “a missão” entre natureza e cultura desde ns do século XVIII.
Dakar-Djibouti de 1931. Esse exemplo mais acabado Exempli ca com a leitura de Foucault sobre clas-
e tardio simbolizam os efeitos possíveis e profundos si cação e mostra que, da mesma maneira, foram
do colecionismo sobre a autoconsciência cultural colocados em suspenso os critérios dos mecenas e
de povos e comunidades tradicionais. Museus des- colecionadores, que levaram museus e galerias a se
ta ordem tornaram-se modelos do neocolonialismo especializarem nas “escolas de arte” produzidas por
e funcionam articulando livrarias, galerias, lojas de preceitos estéticos instituidores de periodizações
artesanato dos “nativos”, a produção de peças exóti- complexas: pinacotecas, museus de arte moderna,
cas e de consumo de massa; assim, revelando a força galerias e jardins botânicos.
dos diferentes circuitos mercantis que compõem o
mercado de bens simbólicos nos dias de hoje. A “aceitação nacional” como etiqueta tornou-se
fragilizada, esvaziando muitas vezes o sentido de
Pode-se asseverar ainda com Hobsbawm: certas reivindicações de repatriamento de bens
culturais. Não há, por exemplo, quem reivindique
Porém, um novo problema surgiu no mundo da desco- as coleções de Curt Nimuendaju, encomendadas
lonização e do moderno turismo globalizado, a saber, por E.Nordeskiold no nal do século XIX e inicio
a concentração do corpus de grande arte de aceitação do século XX, que estão expostas no Museu de
universal quase sempre em museus e coleções de an- Gotemburgo (Suécia). Não há também quem rei-
tigas potências imperiais ocidentais (quer dizer até o vindique coleções de artefatos de povos indígenas
século XX basicamente europeias) e nas acumulações montadas por clérigos e missionários de ordens
de seus governantes e dos ricos. religiosas que, hoje, se encontram em Turim, na
Itália. Caso alguma delas demonstre propósito de
Um dos efeitos mais pertinentes deste tipo de circuito repatriar as coleções que mantém, haveria di cul-
mercantil aquecido e motivado que combina inova- dade em aqui conservá-las.
ção tecnológica e consumo de massa com “comoditi- Com a ideia de repatriação sendo difundida, tem-
zação” de bens culturais, valorizando-os e acentuando -se um repertório de relações que conjuga passado e
seu valor de troca, concerne à reedição de uma pos- presente ao reverter hierarquias entre nações. Para

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isso, é necessário indicar que os conceitos usuais de OIT reconhecida pelo Brasil em 2002/2003.
“cultura nacional” se mostram em profundo processo
de rede nição. Alguns autores chegam a falar numa No bojo destas transformações alguns autores che-
nova modalidade de “internacionalismo” com o ad- gam a falar, no plano jurídico, de um “novo constitu-
vento de relações simétricas. Neste ponto, de suposi- cionalismo sul americano”. Para isso, as experiências
ção de igualdade entre nações, a ideia de “diálogo” se de Bolívia, Equador, Venezuela e Brasil servem para
transforma em indagações sucessivas e em mobiliza- ilustrar o que estão discutindo intensamente, em
ções intelectuais e políticas. Esse movimento tanto meio a mobilizações de rua e protestos. As media-
procede a uma leitura crítica do “pós-colonialismo”, ções políticas usuais, instrumentos democráticos de
quanto do “neocolonialismo”, e consiste num fator participação direta, estão sendo colocadas em xeque.
de imprevisibilidade que merece ser examinado com
acuro e de maneira detida para além do que uma As discussões sobre as formas gerais de participação
simples palestra. política, atreladas a uma ideia ampla de “consulta”,
encontram-se na ordem do dia da vida social bra-
sileira desde junho de 2013. Embora difusas e dei-
Uma Ruptura Radical no xando de considerar a relevância do poder estatal,
tais mobilizações, em virtude de sua proclamada
Padrão de Relações Políticas autonomia, da heterogeneidade de sua composição
e da dispersão de suas reivindicações, apontam não
No plano político, por outro lado, assiste-se a trans- somente para novos signi cados de política , mas
formações que rede nem a relação da política com principalmente para novos padrões de relação polí-
o direito . Se forem veri cadas crises e ameaças à tica. Elas conjugam reivindicações econômicas com
democracia, assiste-se também à construção social a rmações identitárias e princípios éticos. Associam
desta própria democracia. Nesta primeira década também “atos culturais irreverentes” com consig-
do século XXI, o continente sul-americano e, em es- nas radicais de defesa do meio ambiente, sinalizan-
pecial, o Brasil, está passando por profundas trans- do para a incorporação de ações diretas e práticas
formações sociais e descrevendo uma ruptura radi- efêmeras de ação coletiva não previstas nos dispo-
cal face aos acontecimentos de décadas anteriores. sitivos eleitorais e partidários. Em resposta a estas
Economistas têm pontuado que o crescimento dos reivindicações, colocadas cada vez com maior vigor,
países do Mercosul, em especial os países da Pan- pela persistência, pela força e pela intensidade das
-Amazônia, nos últimos dez anos, foi muito mais ele- mobilizações, o principal ponto da agenda elaborada
vado do que aquele ocorrido entre o Consenso de pelos poderes executivo e legislativo passou a ser a
Washington, em 1989, e o início do século XXI. chamada “reforma política”. No âmbito do judiciário
estaria ocorrendo uma atualização de dispositivos
Tem-se, além disto, uma situação de progresso so- de participação ampla, em que se destaca a efetiva-
cial e econômico com governos democráticos eleitos ção da Convenção 169 da OIT. Essa atualidade, de
e sensíveis às reivindicações populares, ao contrário certo modo, transcende à política nacional e começa
do cenário de recessão e desemprego de outras regi- a fortalecer as relações “sul/sul”.
ões do globo. Um dos principais fatores responsáveis
por estes resultados pode ser atribuído ao mérito Cabe destacar que dos vinte e dois países que a ra-
das políticas governamentais por terem rompido ti caram até junho de 2013, em termos da Conven-
com os princípios neoliberais que “destruíram me- ção 169, quinze deles encontram-se no continente
todicamente os coletivos”, como analisa Bourdieu22, americano. Oito países pertencem a América do
em “Contrafogos - Táticas para enfrentar a invasão Sul e os demais a América Central com exceção do
neoliberal”. México. Apenas Noruega, Dinamarca, Espanha e
Holanda, no continente europeu, a rati caram. Na
Além de estar consolidando uma experiência demo- África, o primeiro e único país a reconhecê-la foi a
crática com mobilização social, subscrevendo, inclu- República Centro-Africana. ênia, Moçambique e
sive, declarações tal como a Declaração das Nações Zâmbia estão iniciando uma discussão em torno da
Unidas sobre os Direitos Humanos dos Povos Indíge- defesa dos direitos territoriais dos povos tribais. No
nas, em 2007, e rati cando Convenções internacio- caso da Pan-Amazônia, apenas dois países não são
nais que asseguram o reconhecimento da diversida- signatários da Convenção 169, quais sejam: Surina-
de cultural, como, por exemplo, a Convenção 169 da me e República da Guiana. Pode-se a rmar que 24

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anos depois de adotada pela OIT a Convenção 169 nidades Tradicionais. Nas reuniões da Comissão,
se mantém como um instrumento atual nas pautas entre 2007 e 2013, os representantes estreitaram
de reivindicações relativas a direitos humanos de laços, ao rmar pactos tácitos de solidariedade. A
povos e comunidades tradicionais. Isto não signi - garantia da sociodiversidade está no próprio ins-
ca que ela estaria sendo acionada tardiamente, mas trumento, de característica plural que movimenta
sim que este é o tempo em que ela está sendo per- a Comissão. Embora ainda não tenham acionado
cebida pelos agentes sociais como um instrumento todo o potencial político desta Comissão de ma-
de resistência. A consciência da possibilidade de neira apropriada, pode-se dizer que tem apoiado as
uso deste dispositivo jurídico, que privilegia agen- Comissões Estaduais e as Câmaras Técnicas (vide
tes sociais com consciência de si mesmos, torna-se Projeto de Lei 7.447). A relevância de um banco de
um capítulo sempre coetâneo de determinado grau dados sobre povos e comunidades tradicionais e a
de percepção política. ampliação da representação da Comissão Nacional
em vários Conselhos consistem em produtos desta
No caso brasileiro, a rati cação por si só não tem ser- capacidade política.
vido de garantia para a efetivação dos direitos territo-
riais de povos e comunidades tradicionais atrelados Não é simples, ou fácil, conjugar representações
ao direito de consulta prévia; haja vista que sucessi- nacionais com a diversidade de representações que
vos governos têm privilegiado um modelo de desen- caracterizam as entidades locais. A questão da re-
volvimento apoiado na economia agro-exportadora presentatividade diferenciada e suas implicações
de commodities, que sacri ca a economia campone- encontram-se na ordem do dia das discussões dos
sa de base familiar e os territórios de uso comum de movimentos sociais, mediante a di culdade de apro-
povos tradicionais. A exibilização dos direitos terri- ximar o que se coloca sob o signo de diferenças. Um
toriais tem sido recorrente, o que tem resultado em novo padrão de relações políticas teria que superar
situações de graves con itos sociais. De igual modo, este tipo de obstáculo, conforme sugerem as pautas
tem-se o negligenciamento dos mecanismos de par- reivindicatórias dos movimentos sociais.
ticipação direta de povos e comunidades atingidos
pela implantação de megaprojetos de infraestrutura Há, entretanto, obstáculos de difícil superação. O
(rodovias, portos, aeroportos, hidrovias, barragens), enaltecimento desmesurado dos resultados esta-
de grandes plantações homogêneas com ns indus- tísticos de exportação de produtos primários tem
triais (soja, dendê, cana-de-açúcar, pinus, eucalipto levado a um triunfalismo dos agronegócios, a uma
e acácia), de pastagens arti ciais de grandes empre- retórica ufanista com críticas duras e condena-
endimentos agropecuários e de extração madeireira, ções: i) à demarcação das terras indígenas, ii) à
mineral e petrolífera. titulação dos territórios quilombolas, iii) à peque-
na agricultura de base familiar e a iv) todas as for-
As terras tradicionalmente ocupadas pelas comu- mas de extrativismo que envolvam agentes sociais
nidades tradicionais (cf. Art.14 da Convenção 169), denominados: seringueiros, castanheiros, quebra-
ao serem mantidas sob regime de uso comum dos deiras de coco babaçu, faxinalenses, comunidades
recursos naturais, contrariam a regra básica do mer- de fundos de pasto, piaçabeiros, peconheiros, ci-
cado de terras. Porquanto não são passíveis de atos pozeiros, vazanteiros, caiçaras, pescadores artesa-
de compra e venda e não fazem parte dos diferentes nais e artesãos.
circuitos mercantis de troca. O usufruto exclusivo -
caso dos povos indígenas - e o título de nitivo da A CNA (Confederação Nacional de Agricultura), ar-
terra - caso das comunidades remanescentes de qui- tí ce principal do tipo de retórica e de tratamento
lombos - são detidos pelas formas organizativas co- midiático hiperbolizante, mobilizou produtores e in-
munitárias e não pelos indivíduos, o que impede sua telectuais que fazem o registro encomiástico do pre-
“livre” aquisição ou venda. A violação de dispositivos tenso sucesso, bem como um pseudo-elogio fúnebre
da Convenção 169 tem sido registrada no caso da da agricultura familiar e do extrativismo. Arautos
implantação da hidrelétrica de Belo Monte, da base do m do campesinato e do m do extrativismo
de lançamento de foguetes de Alcântara e de inúme- esposam esta linguagem redentorista, que louva os
ras outras ocorrências. grandes empreendimentos agropecuários, os agro-
O reconhecimento da sociodiversidade, pelo Decre- negócios, a “reprimarização da economia” e a con-
to nº 6.040/2007, foi consolidado a partir do funcio- centração fundiária e eliminando os con itos sociais
namento da Comissão Nacional de Povos e Comu- e as contradições que marcam a vida econômica.

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A tendência concentracionista, com reestrutura- com ênfase nas mobilizações por territórios. Tais mo-
ção forma do mercado de terras em escala global, bilizações transcendem as particularidades geográ -
transcende aos elevados preços da terra e conduz cas e perpassam diferentes ecossistemas, que podem
as discussões aos meandros de um fator próprio se referir tanto ao bioma amazônico quanto ao pla-
do “desenvolvimento sustentável”, qual seja a de- nalto meridional ou à região sertaneja do semi-árido.
nominada “soberania alimentar”, que se mostra
seriamente ameaçada, numa quadra histórica em Poder-se-ia dizer, acrescentando argumentos de
que existem sete empresas que produzem 70% das Edward Said25, que os critérios político-organiza-
sementes no mundo23. A pressão sobre as terras tra- tivos das mobilizações étnicas não deixam mais
dicionalmente ocupadas, que se destinam à produ- o mundo político à metafísica das essências . As
ção de culturas alimentares, objetiva exibilizar os ações coletivas se oporiam ao rígido repertório
direitos territoriais de povos e comunidades tradi- de procedimentos que frigorificam identidades
cionais para propiciar condições para uma expan- étnicas, cristalizam seus componentes e que po-
são do mercado de terras diretamente atrelado às deriam instaurar uma cizânia permanente entre
commodities agrícolas. os movimentos sociais, fragilizando qualquer
tentativa de resistência. Paoliello se dispõe a en-
frentar tais desafios, bem cmo produz uma críti-
Cultura de resistência ca a essas visões estereotipadas, mitos políticos e
animosidades. Para isso, seria preciso analisar as
Há diferença de interpretações evolucionistas. As es- pautas de reivindicações de movimentos sociais,
colhas teóricas no sentido de uma nova cartogra a os programas de resistência étnica e distinguir as
social”, fazem-se críticas de qualquer essencialização estratégias de quem se autodefine como indígena
de povos e comunidades tradicionais, a rmando uma ou como quilombola.
contra-narrativa dinâmica no plano identitário e na
construção do território, em oposição à xidez da car- Os movimentos sociais conjugam uma consci-
togra a o cial e das classi cações dela decorrentes. ência ecológica com raízes locais profundas e
Ao se opor a essa imutabilidade, as escolhas demons- reivindicações por territórios e identidades co-
tram que as proclamações em defesa do reconheci- letivas, consubstanciando um processo cada vez
mento de direitos, ressaltando determinados sinais mais intenso de autoconsciência cultural, atra-
diacríticos, rea rmando fatos históricos e uma certa vés de mobilizações intensas, que bem descrevem
“origem”, não podem ser entendidas como se fossem contornos desta fronteira. Ser autoconsciente
as principais opções para movimentos de resistência. também significa ter autoconfiança. O respei-
to a si mesmo requer a confirmação por outros
Segundo Paoliello24, aceitar isso acriticamente sig- que permite estabelecer estreitos laços de solida-
ni ca correr o risco de coonestar os efeitos do au- riedade, configurando uma “arte de resistência”
toritarismo da sociedade colonial com suas divisões construída cotidianamente26 com símbolos e prá-
raciais, religiosas e identitárias impostas histori- ticas expressas.
camente através de dispositivos, como os censos
demográ cos desde 1872, data do primeiro recen- As experiências de pesquisa do Projeto Nova Car-
seamento do Brasil. Reiterando a abordagem de togra a Social, apresentadas neste evento, em pelo
Paoliello, não seriam necessariamente as demandas menos quatro palestras, emergem, portanto, numa
pelo reconhecimento, mas as reivindicações de posse situação de profunda ruptura teórica com aborda-
de um território, feitas de maneira coletiva no tempo gens geogra zantes e biologizantes, o que contribui
presente, que constituiriam “o gatilho que dispara o para o fortalecimento das reivindicações territoriais
processo de etnogênese”. e identitárias de povos e comunidades tradicionais.

A metáfora do “disparador”, que alavanca a passa-


gem de uma condição a outra, concerne a uma pro-
posição que se mostra em consonância com o pres- Alfredo Wagner Berno de Almeida é antropólogo, professor
suposto de que a etnologia, ao conceituar as “novas da Universidade do Estado do Amazonas e pesquisador
etnias e os critérios de autode nição dos agentes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí co e
sociais, abriu as portas para um instrumento crítico Tecnológico (CNPq).
de compreensão dos con itos por recursos naturais

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Amazônia: para entender


o Dia do Fogo
Raimunda Monteiro
Universidade Federal do Oeste do Pará

No dia 10 de agosto, produtores do sul do Pará realizaram queimadas ao longo da região em apoio às políticas ambientaos do Presidente Jair Bolsonaro. A data, que
cou conhecida como Dia do Fogo , ganhou os noticiários por conta das dimensões que as queimadas tomaram em meio a crise internacional em torno da Amazônia.
Foto: Agência Brasil.

A
Amazônia vive uma situação crítica desde A partir de 2016, todo o sistema de proteção ambien-
2016. Esta a rmação remete a uma visão tal, dos territórios indígenas, dos povos e populações
histórica das políticas ambientais e ao or- tradicionais, dos agricultores familiares e dos proje-
denamento territorial que fechou a fronteira das tos de assentamentos agrícolas e orestais está sob
terras públicas e territórios coletivos pelos setores ataque de setores refratários à regulação, que, his-
mais agressivos dos segmentos do agronegócio e toricamente, se bene ciaram da apropriação de ter-
madeireiros do país desde a década passada. ras públicas e da ausência do Estado como política

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de governo. É uma reprodução local do que ocorre


com o patrimônio público, a partir de um conjun-
to de ações decorrentes da captura do Estado e do
orçamento público do Brasil pelos setores rentistas.
No caso da Amazônia, há uma corrida dos setores
vinculados às commodities internacionais para uma
nova onda de estocagem de ativos: terra, orestas,
água, minérios, entre outros.

Do ponto de vista histórico, não há novidades en-


tre o atual comportamento dos agentes que ditam
a conjuntura da região e as dinâmicas de ocupação
que marcam a história da Amazônia há 60 anos, des-
de que o sistema viário2 conectou o Centro-Sul do
país à primeira capital amazônica, Belém, por meio
da rodovia Belém-Brasília. Os estoques de riquezas
locais tiveram alcance e infraestrutura de suporte à
exploração garantidos com a construção de grandes
rodovias federais, planejadas para integrar a região
aos mercados nacionais e globais com a exploração
de commodities cada vez mais pesadas na balança Mapa retirado do I Anuário Mineral Brasileiro , publicado pelo Ministério de
comercial brasileira. Minas e Energia em 1972.

Um exemplo do impacto do tipo de integração subordi-


nada ao estoque de commodities está no setor mineral.
No I Anual Brasileiro de Mineração, de 1972, o diagnós-
tico do potencial mineral do país demonstra que a con-
centração das explorações está situada no Centro-Oes-
te, Sul e Nordeste, com raras incidências na Amazônia.
Este Anuário utilizou dados do DNPM — Departamen-
to Nacional de Produção Mineral, mas principalmente
as informações das empresas privadas que atuavam no
ramo. Até então, o Amapá era o principal produtor de
minérios, liderando a produção nacional de manganês
e caulim. Rondônia era indicada como portadora de
66% das reservas de estanho do país.

Em 1971, o Pará não aparecia entre os estados deten-


tores de reservas de ferro, apesar das minas de Ca-
rajás terem sido identi cadas no nal dos anos 1960.
As jazidas de Carajás, que viriam a se tornar o maior
complexo de exploração deste minério do mundo na
década seguinte, já estavam com pesquisa de lavra
em curso, inclusive com a United Steel colocando
aviões para sobrevoar as aldeias indígenas da região
em apoio das frentes de atração da FUNAI. Mapa retirado do I Anuário Mineral Brasileiro , publicado pelo Ministério de
Minas e Energia em 1972.

O mapa 1 mostra os projetos de estudos do DNPM


concluídos até 1971 e também da Petrobrás. A Ama- Nos dois primeiros anos da década de 1970, houve
zônia passava, então, à ordem do dia nos planos dos um súbito aumento da atuação das mineradoras na
governos militares como um estoque de ativos mi- Amazônia e a transferência de parques mineradores
nerais, cujos primeiros resultados indicavam um po- até então situados no sul para a região. atro mi-
tencial em expansão. nérios são mostrados como exemplo, por terem se

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constituído líderes do ranking nacional a partir das


explorações na Amazônia nos últimos 48 anos. Prati-
Ouro
camente todas essas empreitadas se relacionaram de
Estado 1970 1971
alguma forma a con itos em Terras Indígenas.
Amapá 01 01
Amazonas 35 06
Cassiterita Mato Grosso 13 130
Pará 20 118
Estado 1970 1971
Rondônia 16 18
Amapá 03 01
Roraima 02
Acre 00 00
Total Brasil 124 339
Amazonas 32 39
Fonte: DNPM, I Anuário Mineral Brasileiro Rio de Janeiro, 1972.
Mato Grosso 61 117
Pará 43 113 Com incidência em praticamente todos os estados
Rondônia 489 195 da região Norte, o ouro também se torna um minério
Roraima 01 00 cujas explorações se expandem na Amazônia, com
Total Brasil 660 538 destaque para o boom nos estados do Mato Grosso e
Pará, mais especi camente na bacia do rio Tapajós.
Fonte: DNPM, I Anuário Mineral Brasileiro Rio de Janeiro, 1972.

A exploração deste minério se desloca em um ano Em termos nacionais, o minério com maior número
de uma concentração em Rondônia, se expandindo de pesquisas formalizadas nos estados da Amazônia
para o Pará e Mato Grosso. em 1970 era a cassiterita, com 660 pedidos, o maior
do país. Em segundo era o calcário, com 253 pedi-
dos; em terceiro, a argila, com 251 projetos; e o ouro
Ferro em quarto, com 124.

Estado 1970 1971 Em 1971, a cassiterita passou para o segundo lugar


Pará 01 14 no país, com 538 projetos, ultrapassada pelo cobre,
Mato Grosso 04 14 que pulou de 143 projetos de pesquisa em 1970,
para 569 no ano seguinte — 26 em Mato Grosso
Total Brasil 36 120
(Amazônia). A bauxita, que apresentava 90 pro-
Fonte: Fonte: DNPM, I Anuário Mineral Brasileiro Rio de Janeiro, 1972 jetos de pesquisa em 1970, salta para o segundo
minério mais demandado em 1971, com 441 proje-
Somente três estados da Amazônia aparecem como de- tos de pesquisa, seguida do calcário, com 360, cuja
tentores de projetos, mas o salto é súbito em um ano, maior concentração era fora da Amazônia; o ouro
tanto nos percentuais individuais dos estados, como no salta de 124 projetos em 1970, para 339 em 1971,
total de projetos de exploração de ferro no país. tendo no Pará e no Mato Grosso a nova fronteira,
enquanto a argila cai para a quarta posição, com
279 projetos.
Bauxita
Na sequência da integração nacional, promovida
Estado 1970 1971 pela malha rodoviária construída a partir de 1970, os
Amazonas 17 10 estados da Amazônia se tornaram os principais for-
Amapá 01 16 necedores de minérios do país e o Pará se tornou um
Pará 58 331 dos territórios com mais destaque nas exportações
Total Brasil 90 441 de ferro, bauxita, diamantes, cobre, ouro, cassiterita
e vários outros minerais. O Amapá, primeiro estado
Fonte: DNPM, I Anuário Mineral Brasileiro Rio de Janeiro, 1972.
minerador formal da Amazônia, esgotou logo suas
A bauxita apresenta um salto gigantesco de des- reservas de manganês e caulim. O Amazonas entrou
locamento de projetos em um ano, sendo o Pará na rota da exploração de petróleo, e assim cada esta-
o estado que passa a concentrar o maior número do foi encontrando seu lão de exploração mineral e
de projetos ao longo do médio e baixo Amazonas. fazendo suas trajetórias de boom-colapso.

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Porto de escoamento de soja da Cargill, em Santarém-PA. A multinacional norte americana está presente nos cinco continentes do mundo, e é a maior exportadora de
soja no Brasil. Através da instalação do porto, deu vazão para a produção de soja no Mato Grosso, posteriormente possibilitando a expansão da fronteira agrícola para
o território amazônico. Foto: Amazônia Latitude.

No início do século XX, existem, ainda, imensos ga- antes concentrado em Minas Gerais. O Pará lidera
rimpos de ouro a céu aberto no Mato Grosso e no as exportações minerais da Amazônia.
Pará, na bacia do Tapajós, maior aurífera do país, bem O relatório aponta que, no Pará, o peso da minera-
como em Roraima, Rondônia, Amapá e no território ção na economia é ainda maior. A Vale responde por
das Guianas. Ao lado das empresas multinacionais, 65% de tudo que foi exportado pelo estado: US$ 8,45
que aumentam sua territorialização na Amazônia bilhões em minério de ferro extraídos em Carajás
com projetos formais, ainda se proliferam garimpos (59% das exportações); US$ 668,60 milhões em cobre
manuais. Cada vez menos em áreas públicas, porém, extraídos da mina Salobo (5% das exportações); US$
como predominou até meados da década passada. 140,37 milhões em manganês da mina do Azul (1%
das exportações3).
Nesses 50 anos, rios, lagos, igarapés, lençóis freáticos
e orestas foram afetados por escavações e aterra- O exemplo da mineração pode ser aplicado a todas
mentos, derrubadas de matas e contaminação com as commodities agrícolas e agropecuárias, que mi-
mercúrio em toda a Amazônia. Povos indígenas de graram para a Amazônia nos últimos 50 anos, atra-
Roraima, Pará, Amapá, Rondônia e Amazonas tive- ídos por benefícios scais, ausência de scalização
ram suas terras invadidas por garimpeiros e empre- trabalhista, tributária e ambiental. Um paraíso para
sas, desestruturando seus meios de vida. os menos competitivos nos setores rentistas, indis-
postos à agregação de valor às matérias-primas e aos
De acordo com o estudo publicado em 2015 pelo setores refratários à regulação.
INESC — Instituto de Estudos Socioeconômicos, o
ferro representa 75% da produção mineral brasileira. No caso do setor agropecuário, à medida que enca-
Para aprofundamento no tema, se verá que além do recem terra e insumos nos estados mais desenvol-
ferro, bauxita, cassiterita e ouro, a Amazônia se des- vidos, há uma seleção natural entre os produtores
taca nas exportações de vários outros itens minerais rurais das regiões mais capitalizadas. Frentes de ex-
e se torna a bola da vez para a exploração do nióbio, pansão de todos os segmentos (pecuária, produto-

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Os garimpos clandestinos se multiplicaram na Amazônia em 2019. Populações locais, impresna e ONGs atribuem isso ao discurso anti-ambiental adotado pelo governo.
Foto: Notícias do Minnuto.

res agrícolas, madeireiros, mineradores etc.) migram baixa produtividade, em geral com desperdício e alto
para a Amazônia em busca de terras públicas (free custo ambiental, é uma das razões da migração das
lands), orestas e minas para incorporação informal. atividades em busca de novos estoques e áreas.
A informalidade predominou como motor da ocupa- Em “Atores sociais na fronteira mais avançada do
ção da Amazônia até a primeira década deste século. Pará: São Félix do Xingu e a Terra do Meio , de 2004,
A região tornou-se destino dos setores mais atra- os autores identi caram, em São Félix do Xingu e
sados do agrário brasileiro. No m dos anos 1990, BR-163, que a racionalidade de boom-colapso pre-
parte desses setores, associados ao que passou a se side a decisão dos atores que promovem o desma-
autodenominar “agronegócio”, ou seja, as cadeias de tamento na Amazônia, assim como a ocorrência de
produção de grãos vinculadas às multinacionais de diferenciações internas: i) quanto aos ramos de ati-
fornecimento de insumos e de comercialização de vidades das famílias (grãos, pecuária, madeira…) e ii)
alimentos, também demandaram as terras agricul- quanto aos espaços de sequência migratória dos es-
táveis da Amazônia. Estimavam 90 milhões de hec- tados, em geral acompanhando a disponibilidade de
tares a serem convertidos em produção de grãos. A recursos. anto ao ramo, há tradição das famílias
partir dos anos 1990, começa a marcha do agronegó- nas atividades, raramente havendo substituição de
cio rumo à Amazônia. ramos, pois as práticas e capitais são repassados ge-
racionalmente. Por exemplo, famílias de pecuaristas
A sequência da ocupação deu-se como nas fronteiras perfazem rotas migratórias geracionais desde Minas
anteriores do Mato Grosso, Goiás e Tocantins: apo- Gerais – Goiás – Tocantins – sul do Pará e avançam
deramento de terras públicas por meio de grilagem4, dentro dos municípios paraenses também numa se-
expulsão de pequenos agricultores, populações tra- quência de esgotamento dos pastos.
dicionais e indígenas, que porventura habitassem
essas áreas. Em seguida, plantação de arroz, milho e, Um pecuarista, que em 2001 possuía cerca de 20 mil
por último, soja — a principal commodity. A violência cabeças de gado em São Félix do Xingu, cuja famí-
como método de apropriação faz parte da história. lia começara a atividade há três gerações em Minas
Gerais e as gerações seguintes passaram por Goiás
Há uma racionalidade de apropriação de terras públi- e Tocantins, disse em entrevista que projetava para
cas, mais baratas pela distância dos centros dinâmi- a Terra do Meio7 (compreendida entre o rio Xingu
cos, devido ao esgotamento da fertilidade das terras paraense ao sul, a BR-163 a sudoeste e a Transa-
e pastos e ao encarecimento dos insumos fornecidos mazônica ao norte) os primeiros lotes de rebanho.
pelas tradings do agronegócio5. O uso extensivo e com Perguntado até onde iria, respondeu brincando, mas

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assertivo, sobre a racionalidade de sua atividade: “até suas atividades pelos municípios matogrossenses,
Lima! . Esses setores zeram de São Félix do Xingu passando da fronteira com o Paraguai e a Bolívia, até
o maior produtor de gado no início deste século. Se- chegarem à Amazônia, há cerca de 20 anos. Muitos
guindo essa racionalidade de uso da terra, “o municí- produtores de soja que passaram uma temporada na
pio de São Félix do Xingu, no Pará, liderou o ranking Bolívia deram calote nos bancos bolivianos e vieram
brasileiro em termos de rebanho bovino em 2014. O se instalar na BR-163, no Pará, a partir de 2000. Com
efetivo chegou a 2,213 milhões de cabeças, 1% do total a venda de terras à R$40 mil por hectare no Mato
nacional, segundo dados da pesquisa Produção da Pe- Grosso, compravam terras, no nal dos anos 1990, a
cuária Municipal (PPM) referente ao ano passado 8”, R$ 100, R$ 200 o hectare, dos agricultores familiares
diz reportagem do Globo Rural de outubro de 2015. de Santarém, no Pará.
Publicados pelo Instituto Brasileiro de Geogra a e
Estatística (IBGE) em 2015, os dados revelam que Desta forma, a Cargill formou um pool de produto-
54% do rebanho de mais de 220 milhões de cabeças res, que justi cou a construção de um porto dentro
de gado do país estão concentrados em cinco esta- da cidade de Santarém. Estruturou sua rede de -
dos: Mato Grosso, líder com 28,592 milhões de cabe- nanciamento aos produtores de soja, que chegaram
ças (13,5% do gado nacional), Minas Gerais, Goiás, do Mato Grosso plantando arroz e hoje produzem
Mato Grosso do Sul e Pará. Com a inclusão de Ron- milho, milheto, girassóis e soja, conseguindo até
dônia neste ranking, a participação da Amazônia na quatro safras anuais em mais 200 mil hectares con-
produção agropecuária passa de 60%. vertidos em plantations (sistema de monocultivos).

Considerando que a maior parte da produção ainda Essa dinâmica social e econômica também envolveu,
se dá com a média de uma cabeça de gado por hec- no início deste século, famílias de pequenos e médios
tare, a relação de cabeças de gado corresponde qua- produtores agrícolas dos estados do Rio Grande do
se igualmente à quantidade de orestas convertidas Sul e Santa Catarina, que haviam permanecido em
em pastagens. suas propriedades durante o ciclo de apropriação das
propriedades rurais pela soja a partir dos anos 1970.
No caso da produção de grãos, a racionalidade dos Com a indisponibilidade de terras para seus descen-
atores que atuam nas cadeias do agronegócio é a dentes por causa do custo alto, associações de peque-
mesma. Os menos competitivos foram expandindo nos produtores rurais articularam uma nova frente de

eimada é vista em fazenda da BR 230 na cidade de Lábrea (AM), na tarde de 30 de agosto. Lábrea é uma das cidades do Amazonas em estado de emergência, devido
as queimadas e desmatamentos. Foto: Edmar Barros/ Amazônia Latitude.

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ocupações de terras públicas no Pará. Na época, ten- tra a regulação ambiental instituída nos últimos 30
taram se instalar em Novo Progresso (de onde partiu anos e ao ordenamento territorial promovido entre
o comando do “Dia do Fogo”, em agosto de 2019). 2005 e 2007, como resposta ao quadro de apropriação
e destruição ambiental brevemente descrito acima.
Com a promessa de terras feita pelo governo estadu-
al, esses agricultores formaram associações para co-
lonizar áreas públicas. Ocorre que Novo Progresso,
O Extrativismo como
desde a abertura da rodovia BR-163, foi uma cidade projeto econômico
destinada à ocupação de médios e grandes produto-
res rurais, com loteamentos de pelo menos 500 hec- O termo extrativismo tem contribuído para deno-
tares. Frustrados em seus planos de assentamento minar a exploração de recursos naturais em uma
em Novo Progresso, foram deslocados 700 quilôme- lógica primário-exportadora colonial, em geral vin-
tros adiante, para o município de Jacareacanga, nas culada a intervenções tópicas nos territórios para
proximidades da Transamazônica. extração de riquezas minerais ou da agricultura
empresarial em larga escala, tendo na exportação
Alguns deles se aliaram a outras frentes de especula- de bens primários e semielaborados e nos grandes
ção, que avançavam no trecho entre Itaituba (PA) e impactos socioambientais sua principal caracterís-
Apuí (AM) entre 2005 e 2006. Naqueles dois anos, pro- tica. É assim que está de nido o extrativismo na
tagonizaram a queima de cerca de 500 quilômetros de obra de Gudynas de 2015, “Extractivismos, Ecologia,
ambos os lados da Transamazônica como forma de Economia e Politica de un modo de entender el desa-
apossamento das áreas. Florestas queimadas vivas. rollo y la naturaleza”11.
Placas de propriedades com tarjas do governo federal
falsas. Proibições de acesso a propriedades públicas De acordo com o autor, o extrativismo também é
feitas por entes privados clandestinos onde não havia identi cado pela intensidade dos impactos, desde a
habitantes. Essas frentes de apropriação por grileiros obtenção dos recursos até a forma como os sítios ex-
e empresários com atividades informais criaram áreas propriados são devolvidos à natureza. Desta forma,
de violência contra comunidades tradicionais, como a propõe que a orientação exploradora está presente
Gleba Nova Olinda, em Santarém\Juruti. A matriz da quando pelo menos metade do recurso extraído é
ação é a mesma: marcação da terra pretendida com destinado ao comércio exterior.
placas, construção de estradas e pontes9, queimada da
oresta como bene ciamento das áreas (como se fos- A orientação exportadora norteia o conceito, mesmo
sem investimento). ando têm pressa para consolidar quando se trata de minerações com amplo envolvi-
as posses e não há tempo para explorar ou vender a mento social como os garimpos de ouro, cuja extra-
madeira, queimam toda a madeira junto, como em São ção se dá por pequenos empreendedores individuais
Félix do Xingu, numa região chamada de Estrada do ou pequenas empresas, pelo destino nal do produ-
Boi, em que só o mogno foi retirado. Todo o resto de to ser a exportação. Também podemos estendê-lo à
mata foi incendiado e transformado em pasto. produção de grãos que, vinculada às cadeias multi-
nacionais de insumos agroindustriais, fazem um uso
Essas dinâmicas de dez anos atrás são essenciais temporário, exaustivo e anômico dos territórios.
para compreender a racionalidade de parte dos pro-
tagonistas do maior crime ambiental organizado da A ênfase na exportação que este conceito carrega
história da ocupação contemporânea da Amazônia. embute uma visão metodológica que capta os olha-
Há 50 anos, os governos autorizaram a derrubada de res das populações locais. O conceito de extrativis-
orestas públicas e sua transformação em espaço mo está fortemente associado à imposição de subal-
de produção agropecuária, prometendo terra e mo- ternidades às populações afetadas nos espaços que
dernização, por meio de políticas de colonização e habitam, cujos processos de apropriação externa
de incentivos scais a grandes empresas. Na época, desestruturam seus meios de vida de forma irrever-
essas práticas eram abrigadas na legislação e nas po- sível. Os meios de vida, ao contrário da exploração
líticas de ocupação o ciais. Cinquenta anos depois, tópica de um recurso, são interdependentes. Estão
o governo atual, do qual os militares fazem parte e sempre associados a sistemas culturais e territoriais
respondem pelas principais estratégias que recaem nos quais as intervenções tópicas da exploração
sobre a sustentabilidade da Amazônia10, assume pu- econômica extrativista acarretam danos extensivos
blicamente um discurso de estímulo à rebeldia con- e não valorados, mesmo com o avanço das normas e

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procedimentos de compensação. Nesse contexto, o São muitos os estudos que descreveram como a Ama-
extrativismo como lógica capitalista na relação en- zônia foi incorporada no sistema mundial de apro-
tre países industrializados e detentores de matérias- priação capitalista moderno, com destaque para Otá-
-primas, ainda segundo Gudynas, no livro de 2015, vio Ianni, em “A Ditadura do Grande Capital, Rio de
Janeiro”12, Jean Hebe e, em Cruzando a fronteira: 30
( ) articula al menos dos miradas. Por un lado, anos de estudo do campesinato na Amazônia”13, Fer-
siempre parte de una mirada local, ya que se enfoca nando Henrique Cardoso e Geraldo Muller, em “Ama-
en la actividad de extraer los recursos naturales que zônia: expansão do Capitalismo”14, Elmar Altvater, em
ocurre en territorios especí cos, con sus comunida- “O preço da riqueza: Pilhagem ambiental e a nova
des afectadas y ecosistemas alterados. Los extracti- (des)ordem mundial”15, Stephen Bunker, em “Under-
vismos están enraizados en territorios precisos. Por developing the Amazon: extraction, unequal exchange,
otro lado, también contiene una dimensión global, and failure of the modern State”16, Bertha Becker, em
ya que reconoce que esa apropiación tiene un desti- “Relações de Trabalho e Mobilidade na Amazônia
no que se orienta al comercio exterior Brasileira: Uma Contribuição”17, Violeta Loureiro, em
“Amazônia: Estado, Homem, Natureza”18, J. M. M.
O extrativismo empresarial de alto impacto ambien- Costa, em “Ocupação, Integração e Desenvolvimento
tal determinado por relações econômicas antidemo- da Amazônia: 60 anos de ação federal”19, entre outros.
cráticas permeia este tipo de dinâmica econômica,
política, ambiental, social e cultural que está na ma-
triz de desenvolvimento tradicional das elites brasi- A emergência territorial
leiras. Um estudo da racionalidade dos atores e de
como agem no comando do Estado em relação à per-
a rmativa da diversidade
petuação de economias extrativistas pode ajudar a
compreender a visão imediatista das elites na Ama- O projeto de ocupação territorial da Amazônia por
zônia. A maldição da abundância referida por Acosta meio da colonização foi planejado para assentar uma
é uma via interessante para explicar o comodismo população excedente de agricultores e trabalhadores
da condição de vendedores da natureza sobre a qual rurais de vários espectros, que o capitalismo agrário
não incorporam trabalho e riscos. moderno expulsava dos territórios melhor localiza-
dos do Centro-Sul e Nordeste do país. Estes seriam
Ainda sobre a racionalidade das economias extrati- os desbravadores das orestas, arcando com traba-
vistas, Bunker aborda em “Underdeveloping the Ama- lho e com os custos de “amansamento da terra” que,
zon: extraction, unequal exchange, and failure of the depois de domesticadas, seriam integradas ao mer-
modern State”, de 1985, o problema particular das cado. Ao nal, as melhores terras seriam compradas
regiões de economias de exportação extrativistas por agricultores capitalizados que chegariam mais
que, ao mesmo tempo, respondem à demanda inter- tarde.
nacional por commodities extrativistas especí cas,
tornam-se suscetíveis à perda da sua utilidade quan- O projeto também destinou grandes glebas ao fundo
do a fonte de extração está esgotada. das estradas vicinais na escala de 500, 1.000 e 3.000
hectares, destinadas aos grandes proprietários, que
Economias predominantemente extrativistas per- deveriam ser transformadas em fazendas. Teorica-
turbam os padrões de assentamento humano e o mente, esses setores mais capitalizados teriam es-
ambiente natural de maneiras adaptáveis apenas a trutura e nanciamentos públicos para desenvolver
relativamente curto prazo e mal adaptados a longo suas atividades em localidades mais distantes dos
prazo. Na ausência de sistemas produtivos autos- centros consumidores e dos serviços públicos.
sustentáveis e exíveis, há pouca ou nenhuma base
econômica para a oposição local ou resistência aos A assistência inicial aos colonos pobres só durou
empresários ou aos estados nacionais dependentes quatro anos (1970-1974), sendo que a maioria das fa-
que procuram organizar a população e o meio am- mílias sofreu com necessidades básicas, como falta
biente de modo a explorar o potencial de lucro rá- de alimentos, perda de parentes por doenças e fal-
pido. Assim, economias extrativistas tendem a even- ta de assistência e de transporte. Porém, no traçado
tual estagnação, quebrada apenas por novos ciclos esquadrinhado de propriedades individuais, as áre-
de extração de novas demandas, novos recursos ma- as destinadas às agrovilas deveriam permanecer de
teriais disponíveis na região emergem , diz o autor. acordo com o que previram os planejadores. Houve,

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Revista Amazônia Latitude Review

no entanto, insurgências contra esse planejamento. bém das áreas limítrofes ao sul e ao norte, e que o ob-
Um motivo foi o reconhecimento de territórios de jetivo era a implantação da pecuária e de plantios de
uso coletivo pelas comunidades tradicionais que ha- grãos extensivos sobre os últimos espaços orestais
bitavam os rios cortados pelas rodovias. ainda intactos ou com impacto reduzido na região,
Pelo plano governamental, a apropriação privada os movimentos sociais propuseram a destinação
desses territórios seria só uma questão de tempo e dessas áreas para unidades de conservação e uso de
de valorização mercantil de seus recursos. Contudo, comunidades tradicionais que as habitavam. Seriam
essas populações resistiram contra a apropriação de dois maciços de conservação denominados inicial-
sua madeira e suas terras. Os fundos das vicinais mente Pulmão Norte e Pulmão Sul. Essa proposta
também foram reivindicados pelos colonos como foi incluída na pauta do Grito da Terra Brasil de 2000
espaço de reprodução social de seus descendentes, e apresentada à equipe do Ministério do Meio Am-
propondo assentamentos de propriedade coletiva biente21, ocasião em que estavam presentes a autora
como os Projetos de Desenvolvimento Sustentável. e Ana Lange, ambas representando a Secretaria de
Coordenação da Amazônia, do referido ministério.
Nos últimos trinta anos, territórios de povos e po- A Secretaria de Coordenação da Amazônia, subordi-
pulações tradicionais — Reservas Extrativistas Fe- nada ao Ministério do Meio Ambiente, contratou o
derais e Estaduais, Terras Indígenas, Unidades de ISA (Instituto Socioambiental) para fazer os estudos
Conservação, Terras ilombolas, assentamentos que viriam a ser o mosaico de Unidades de Conser-
de reforma agrária em modalidades individuais vação da Terra do Meio, garantindo os territórios das
e coletivas, entre outras formas de propriedades populações tradicionais em Reservas Extrativistas e
públicas de usufruto comunitário — foram rei- fortalecendo a proteção de Terras Indígenas e das
vindicadas e instituídas em toda a Amazônia. As áreas de proteção integral. Uma massa sociocultural,
articulações de movimentos sociais amazônicos herdada dos remanescentes de povos indígenas, das
contribuíram para que as ideias de Chico Mendes relações econômicas de extrativismo da borracha, da
prosperassem nas áreas de colonização e houve, na castanha, das peles de gato e do controle de usos
Transamazônica paraense, uma adesão política às sobre áreas oriundas de várias intervenções minera-
propostas de sustentabilidade em larga escala, tra- doras de cassiterita, ouro e outros minérios, assim
duzida em projetos de agroecologia, educação do como de pretensões minerais extensivas à toda a re-
campo, produção orgânica, manejo orestal comu- gião por grandes mineradoras multinacionais.
nitário e gestão ambiental comunitária.
Do ponto de vista ecológico, o rio Xingu, sob vigilân-
No caso da Transamazônica paraense, Sindicatos cia dos povos indígenas xinguanos no Mato Grosso
de Trabalhadores Rurais (STR) e outros movimen- e no Pará, cou melhor protegido das frentes de ex-
tos sociais, como o Movimento pela Sobrevivência pansão que, se fossem abandonadas às dinâmicas da
na Transamazônica (MPST)20, que depois incorpo- época, teriam se transformado em pastos e soja. Do
rou as populações do rio Xingu, virando Movimento ponto de vista fundiário, a Terra do Meio era forma-
pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu da por 19 glebas pertencentes ao Estado. As unida-
(MDTX), perceberam a onda de procura externa por des estavam todas negociadas com grandes latifun-
terras na região na transição dos anos 1990 para os diários dos estados do Centro-Sul do país, políticos
2000. Àquela altura, a segunda geração, formada pe- e artistas de grande in uência entre eles. Em 2003,
los lhos dos colonos, estava se instalando nos fun- a autora deste trabalho foi tomada como refém em
dos das vicinais, cada vez mais distantes da precária Guarantã do Norte22, limites do Mato Grosso com o
infraestrutura da região. Foi então que decidiram se Pará, pelos líderes de uma cooperativa de produtores
antecipar numa proposta de reordenamento fundi- que a rmaram ter o consentimento do governo do
ário da colonização para abrigar seus descendentes. estado o Pará para ocupar lotes de 500 hectares nas
Chegaram a propor uma nova divisão dos lotes mais glebas da Terra do Meio. O sequestro ocorreu como
próximos da rodovia principal em chácaras de 10 forma de pressionar o prefeito do município a não
hectares, considerando fortalecimento da infraes- criar nenhuma Unidade de Conservação, razão que
trutura de atendimento à saúde, educação e assis- eles atribuíam à presença da minha pessoa como di-
tência técnica. A proposta não vingou. retora do Fundo Nacional do Meio Ambiente.

A partir da percepção de que os novos especuladores A Terra do Meio, também conhecida como Corre-
não só compravam lotes da colonização, mas tam- dor Xingu de Diversidade Socioambiental, guarda

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uma diversidade ecológica das mais ricas da Amé- tas queimando, dos animais morrendo queimados
rica do Sul, pouquíssimo estudada. Abriga cerca de ou fugindo desesperados. Dorothy Stang tornou-se
28 milhões de hectares de extensão, contendo em mártir feminina da luta ambiental na Amazônia, mo-
seu interior 21 Terras Indígenas e nove Unidades de tivou ganhos nas políticas de conservação no Brasil
Conservação, que adicionam componentes culturais, e segue como inspiração para os camponeses, que
linguísticos e sociais ao corredor orestal. continuam lutando pelas orestas, sua causa de vida.

A criação das Unidades de Conservação no Pará e na Em Castelo de Sonhos, distrito de Altamira próxi-
Amazônia não se deu de forma tranquila. A violência mo de Novo Progresso, na BR-163, o sindicalista
contra líderes religiosos, sindicalistas e ativistas am- conhecido por Brasília foi entrevistado em abril de
bientais faz parte da história, concomitante com os 2002 por mim e pela professora Edna Castro. Ele des-
ganhos na institucionalização do marco normativo creveu as ameaças de morte que vinha sofrendo. A
ambiental e territorial que protege povos e ambien- equipe de pesquisa chegou a entrevistar o fazendeiro
tes naturais na Amazônia paraense. incriminado. Oferecemos ajuda para buscar prote-
ção judicial, mas Brasília não aceitou porque estava
Em 2001, o brutal assassinato do líder sindical Ade- profundamente envolvido com a recepção de famí-
mir Federicci, conhecido como Dema, se deu num lias de trabalhadores rurais que chegavam do norte
contexto em que ele e outros líderes de organizações do Mato Grosso em busca de terras no Pará. Vários
da sociedade civil assinaram uma série de documen- ônibus eram pagos pelas prefeituras dos municípios
tos: denúncias de roubo de madeira da Terra Indíge- ricos, produtores de grãos, que mandavam em frente
na Arara, solicitação de providências na investigação a força de trabalho excedente.
dos desvios de recursos das empresas agropecuárias
que operavam na Transamazônica com recursos da Brasília, no papel de delegado do Sindicato dos Tra-
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia balhadores Rurais de Altamira, se via na obrigação
(SUDAM). O líder sindical e ativista liderava a luta de buscar terras para assentar essas famílias, mas
contra a Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Dema as terras de Castelo de Sonhos já haviam sido in-
havia desa ado os poderosos da economia extrati- corporadas pelos latifundiários do Mato Grosso. Os
vista23. Era um ativista sindical e socioambientalista lotes de 4, 10 e 18 quilômetros de extensão na rodo-
e foi um dos dirigentes do MDTX. Em sua homena- via eram o padrão das propriedades. Brasília queria
gem foi criado o Fundo Dema, com recursos da ven- dividir parte dessas terras em posse de grandes de-
da do mogno roubado da Terra do Meio que nan- tentores das áreas públicas com os agricultores sem-
ciam projetos comunitários de sustentabilidade24. -terra que chegavam à BR-163 (Cuiabá-Santarém).
Como mandava a tradição contra os inimigos dos
Como Ademir Federicci, a Irmã Dorothy Stang, poderosos locais, foi degolado.
freira norte-americana radicada na Amazônia des-
de 1967, enfrentou o latifúndio e lutou por décadas São três casos de líderes assassinados na coloniza-
para que as glebas griladas por grupos poderosos da ção por encampar lutas socioambientais e propor
região fossem destinadas aos pequenos agricultores modelos de uso coletivo e democráticos da terra,
com modalidade socioambiental de uso coletivo de orestas e águas. Em quatro anos, três vidas ceifa-
assentamento de reforma agrária, combinando agri- das por partidários do extrativismo predatório dos
cultura e manejo orestal comunitário. Os Projetos recursos naturais. Trajetórias insurgentes contra
de de Desenvolvimento Sustentável foram a solução as desigualdades sociais que se agudizam com a
e se tornaram política pública, intensi cando o con- apropriação territorial por setores que demandam
ito com latifundiários e empresas madeireiras, no a Amazônia como estoque pelo uso irregular e ex-
município de Anapú, no Pará. tensivo de seus recursos.

Em 12 de fevereiro de 2005, a caminho de um culto Esses fatos ocorreram antes e depois da primeira
em uma comunidade, aos 73 anos, Irmã Dorothy foi eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e
assassinada com cinco tiros numa estrada solitária. se repetem invariavelmente antes e depois de todas
Os pistoleiros estavam in ltrados entre as famílias as eleições presidenciais, testando e desa ando os
camponesas. Seu corpo foi encontrado debaixo de sistemas de controle. A diferença, com o bolsonaris-
chuva intensa por amigos. Tinha uma bíblia na mão mo, é que o próprio presidente encorajou os setores
e a cena de morte lembrava o tormento das ores- delinquentes da economia rural do país a agirem na

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base da força e paralisou a ação de controle e media- tradicionais. Os índices de desmatamento e queima-
ção do Estado. Os três presidentes anteriores coloca- das se elevaram, desa ando o Estado e as leis.
ram em maior ou menor medida o Estado na posi-
ção de mediação dos con itos, liderando os avanços O governo, em fevereiro de 2005, baixou uma Por-
possíveis nas disputas territoriais. O bolsonarismo taria estabelecendo a Área de Administração Provi-
colocou o Estado em um dos polos do con ito, ao sória (ALAP), interditando 8,2 milhões de hectares e
lado dos setores mais violentos e destruidores dos destinando-os para a concepção de Mosaico de usos
ambientes e culturas. e de conservação. Em seguida, o governo federal
lançou um amplo processo de debate com todos os
setores interessados na questão agrária, fundiária e
A ira contra o ambiental, do qual esta foi instituída como Região
ordenamento territorial de In uência do Plano de Desenvolvimento Susten-
tável da BR-16326. Mais de 1.000 organizações foram
ouvidas. O Plano resultante era avançado em termos
Importante observar que o governo federal inter- metodológicos e em conteúdo, mas as bases políti-
veio, na década passada, fechando a fronteira de cas para a execução não davam sustentação para a
ocupação das terras e orestas por meio do Macro governança, pois a hegemonia política das ideias de
Ordenamento Territorial, inibindo o acesso às terras sustentabilidade nunca estivera dada.
públicas, às terras indígenas e de populações tradi-
cionais. Um efeito imediato foi o encarecimento das A con guração territorial do Plano envolve o oes-
terras disponíveis no mercado. te do Pará, o sul do Amazonas e o norte do Mato
Grosso, porque as dinâmicas são interligadas e in-
Na contramão da histórica ocupação da Amazônia terdependentes.
pelo viés militar, miliciano e extrativista, o período
dos dois governos do ex-presidente Lula deu sequên-
cia à tendência que os movimentos sociais vinham Mapa - A região do Plano
imprimindo na governança ambiental desde o se-
gundo governo Fernando Henrique Cardoso para BR-163 Sustentável
a região. Por iniciativa de setores do Ministério do
Meio Ambiente e dos movimentos sociais da Ama- Por meio do Plano BR-163 Sustentável, o planeja-
zônia, foi proposto em 2001 o PAS (Plano Amazônia mento da região oeste do Pará teve o suporte de
Sustentável), uma pactuação ampla, envolvendo go- um Zoneamento Ecológico e Econômico (ZEE)27
vernadores, ONGs, movimentos sociais e governo com participação social, partindo de um diagnósti-
federal em torno de uma agenda de sustentabilidade co profundo das características naturais, humanas,
para a Amazônia25. O princípio da governança pas- econômicas, de urbanização e de infraestrutura. O
sou a orientar as políticas ambientais e territoriais zoneamento gerou os parâmetros de uso territo-
para a economia e meio ambiente. riais com base uma concepção de sustentabilidade
entre as atividades econômicas e a presença multi-
Sob os auspícios do PAS, mas sobretudo com a hege- cultural dos povos.
monia política momentânea do governo, foi possível
ao primeiro governo Lula mobilizar a sociedade em Sob os auspícios do PAS, o Plano BR-163 partia do
torno da ideia de que o asfaltamento da BR-163 de- pressuposto de que a Amazônia concentra dinâmi-
veria ser precedido de um ordenamento territorial cas estruturais da economia dos recursos naturais
que combinasse desenvolvimento com conservação em multiescalas e multisetoriais. Pretendia dar su-
ambiental e horizontalização de infraestrutura eco- porte para que a infraestrutura, a economia e socie-
nômica e social. dades locais pudessem ser incluídas nos benefícios
O asfaltamento da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santa- de uma integração nacional mais isonômica.
rém) era impulsionado politicamente pela pujança
da produção de grãos do Centro-Oeste, e as frentes O Plano BR-163 Sustentável inspirou o PDRSX-Xingu,
de especulação fundiária (agricultores, madeireiros, reproduzindo em parte a metodologia de construção
mineradores, entre outros) avançaram sobre as terras das condicionantes e mitigações dos impactos. Os
públicas da região, corrompendo assentamentos ru- dois planos têm uma diferença central. No Plano BR-
rais desassistidos, demarcando lotes de centenas de 163 Sustentável, os setores econômicos dominantes
hectares e invadindo terras indígenas e de populações são difusos, não são investidores diretos e nem todos

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Mapa - A região do Plano BR-163 Sustentável. Fonte: Ministério do Meio Ambiente.

dependiam do Plano para o andamento dos seus ne- bém a enquadramentos de suas atividades em pla-
gócios. O PDRX tem o consórcio de empresas cons- nejamentos. O asfaltamento da BR-163 ainda está
trutoras da barragem de Belo Monte como agente em curso, mas a orla direita do rio Tapajós está to-
nanciador. Guardadas as particularidades, as duas talmente apropriada pelas tradings do agronegócio,
experiências de governança territorial, no âmbito de pois a rodovia se transformou no principal eixo de
projetos de infraestrutura associados à construção exportações de grãos do Mato Grosso, com portos
das rodovias Transamazônica e BR-163, são ensaios privados alternativos ao Porto de Paranaguá, no Pa-
democráticos numa história marcada pelo autorita- raná. Uma ferrovia está planejada (Ferrogrão), com
rismo, pelas relações políticas desiguais e pela luta protagonismo do agronegócio do Mato Grosso e ex-
permanente pelo controle dos recursos. pectativas de nanciamento da China.

A partir de 2010, o Plano BR-163 Sustentável foi ig- Ainda na esteira do Plano BR-163 Sustentável, o
norado como norteador da tomada de decisões do segundo governo Lula instituiu, por decreto, o con-
Estado para a região, voltando a predominar o pro- ceito de gestão de complexo geoeconômico e social,
tagonismo dos setores econômicos refratários tam- denominado Distrito Florestal Sustentável (DFS) da

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Mapa - Con guração territorial das Unidades de Conservação Brasileiras atuais.


Fonte: MMA/ICMBIO, 2019.
h p://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/servicos/geoprocessamento/DCOL/dados_vetoriais/MapaUCS_junho_2019_web.pdf

BR-16328. Com o DFS e a Lei de Gestão de Florestas dades de Conservação, dos mais de 255 milhões
Públicas29 (Lei nº 11.284/2006), que determinou que de hectares das Unidades de Conservação bra-
todas as orestas públicas deveriam continuar pú- sileiras, o bioma Amazônia detém 120,4 milhões,
blicas e orestas, o Estado brasileiro tomava as réde- quase a metade, protegidos por ação firme do
as da governança das áreas, últimos estoques e sob Estado brasileiro durante três décadas de con-
ataque em toda a Amazônia. Era uma concepção de flito entre as persistentes práticas destruidoras
uso sustentável e inclusivo de orestas com medidas do capitalismo extrativista e a resistência de se-
estruturais para uma gestão orestal sob governan- tores da sociedade organizada e de instituições
ça entre sociedade e Estado. governamentais e não-governamentais brasilei-
ros para que houvesse governança e marcos nor-
mativos de conservação.
Mapa - Con guração territorial
das Unidades de Conservação No mapa a seguir, que retrata o Sistema Nacio-
nal de Florestas Públicas, instituído pela Lei nº
Brasileiras atuais 11.284/2006, as Reservas Extrativistas compõem o
mosaico de territórios conquistados pelo protago-
O mapa acima mostra o produto do macroor- nismo dos povos e populações tradicionais da Ama-
denamento territorial da Amazônia. Segundo zônia, junto com Terras Indígenas e outras modali-
dados publicados no Cadastro Nacional de Uni- dades de uso coletivo.

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Mapa - Cadastro Nacional de Florestas Públicas - Atualização 2016.


Fonte: Ministério da Agricultura.
h p://www. orestal.gov.br/component/content/article/127-informacoes- orestais/cadastro-nacional-de- orestas-publicas-cnfp/1098-cadastro-nacional-
-de- orestas-publicas-atualizacao-2016b

Cadastro Nacional de Florestas dades de Conservação sob as categorias Reserva de


Desenvolvimento Sustentável (RDS) e Reserva Ex-
Públicas - Atualização 2016 30 trativista (Resex), assim como aos assentamentos
sustentáveis federais dos tipos Projeto de Desen-
A parcela de Florestas Públicas por tipo de uso volvimento Sustentável (PDS), Projeto de Assen-
da oresta, inserida no Cadastro Nacional de Flo- tamento Florestal (PAF) e Projeto Agroextrativista
restas Públicas (CNFP) no ano de 2016, encontra- (PAE)31 . O extrato é do CNPF em publicação de
-se dividida entre as categorias: Uso Comunitário 2017 do Instituto Chico Mendes de Conservação
50,29%, Proteção a Biodiversidade 26,2%, Uso Mi- da Biodiversidade (ICMBIO).
litar 0,95% e não destinadas 22,3% e outros 0,26%.
De acordo com o CNFP, as orestas de uso comu- De acordo com o órgão, um recorte territorial ama-
nitário correspondem às terras indígenas, às Uni- zônico da região Norte detém 88,7% das orestas pú-

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Área desmatada e queimada na zona rural de Humaitá (AM) na manhã de 29 de agosto. Humaitá pe umas das cidades do Amazonas que está em estado de emergência
devido aos desmatamentos e queimada. Foto: Edmar Barros/ Amazônia Latitude.

blicas. Pouco mais da metade é de uso comunitário gresso Nacional e por dentro dos governos estadu-
institucionalizado. São alvos de competição, porque ais e federal. Em toda a extensão do norte do Mato
além das orestas e seus ativos da biodiversidade, Grosso, sul e sudoeste paraense, Tocantins, sul do
guardam ativos minerais de grande valor econômico. Amazonas e Rondônia foram e cientes na propa-
ganda de que as maiores fazendas nessas regiões
pertenceriam ao presidente Lula e aos seus lhos. Ao
O encorajamento das forças mesmo tempo em que identi cavam os sistemas de
regulação e controle como obstáculos aos seus pro-
refratárias à regulação jetos de “desenvolvimento econômico e geração de
empregos”. Produziram uma revolta contra as uni-
Passados mais de dez anos da ação de governo, ana- dades de conservação.
lisando o comportamento dos setores refratários à
governança e à regulação, é possível a rmar que a A contrainformação surgiu nas organizações de gran-
proposta era avançada para a composição hegemô- des produtores rurais e aliados, mas ecoou nas exposi-
nica da sociedade. ções agropecuárias, nas associações comerciais locais
e nas redes de pro ssionais liberais, como os médicos
O marco territorial e regulatório que instituiu regra- que, em geral, aplicam seu dinheiro em gado e tam-
mentos fundiários, de uso da terra e de gestão de o- bém se bene ciam de terras baratas para os sistemas
restas teve a adesão voluntária ou por contingências extensivos nas regiões periféricas da região.
de setores que aceitaram a inserção nos mercados de
produtos identi cados com responsabilidade social e Os grandes produtores rurais na Amazônia não são
ambiental. Empresas madeireiras e do agronegócio da Amazônia. Com exceção das oligarquias do Marajó
aderiram a programas de controle ambiental e contri- e de raros remanescentes dos sistemas de aviamento
buíram para a adoção de práticas de sustentabilidade, de castanhais e seringais, os setores capitalistas que
mas não são maioria. Uma sociologia dos agentes que detêm a maior fatia do capital fundiário dos estados
atuam na economia agrária na Amazônia precisa ser da Amazônia são famílias do Centro-Sul do país, com
desenvolvida para compreender racionalidades, pen- poder político sobre parlamentares de seus estados
samento social e redes de in uência política. e dos estados que abrigam seus negócios. A maioria
não vive, nem investe nos Estados que os abrigam,
Os setores refratários cresceram em in uência nos não estabelecendo laços de conhecimento, nem las-
governos subsequentes, fazendo pressão pelo Con- tros de compromissos com as sociedades locais.

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Não importa que suas atividades sequem e poluam o Congresso, é o próprio esvaziamento desse Estado
rios, pois vivem nas capitais melhor estruturadas do como agente regulador das desigualdades decorren-
país. Muitos têm propriedades também nos estados tes privatização voraz de bens comuns. A regulação
onde o custo ambiental é mais rigoroso. As proprie- se torna obstáculo ao retrocesso desejado pelas novas
dades dos estados da Amazônia, onde a burla da hordas capitalistas. Boaventura Sousa Santos diz que
legislação é mais fácil, servem para compensar os à medida que estatizou a regulação, o Estado fez dela
custos dos mais exigentes. Portanto, incendiar as o- um campo de luta política e nessa medida ele próprio
restas vivas faz parte de um comportamento de seto- se politizou. O Estado como moderador perde função
res marginais da economia, assim como queimar sua e ganha força um Estado exclusivo dos setores mais
biodiversidade - de valor ecológico não compreendi- poderosos”. O trecho é de “A Gramática do Tempo”.
do como tangível para esses setores, mesmo quando
são empresários modernos nos estados desenvolvi- Nesses trinta anos, a institucionalização de vastos
dos. Sua relação com a Amazônia é de extrativismo territórios sob dominialidade coletiva na Amazônia
de espaços-estoque. expressa um protagonismo de grande envergadura
das populações locais, conscientes de que a exclu-
Por m, há um traço comum aos processos de im- são territorial reverbera na exclusão econômica e
plantação de todos os grandes projetos extrativis- social. Daí a insurgência pela a rmação identitá-
tas na Amazônia, que se observa nos demais países ria como um tênue, mas efetivo, recurso de poder.
detentores de matérias-primas de valor industrial. Considerando o grau de invisibilidade e o obstáculo
ando os estoques de ativos são demandados pelo que as populações rurais da Amazônia representam
mercado, os Estados são capturados, os orçamentos ao avanço do capital e à exploração de ativos, suas
públicos nanciam a infraestrutura dos empreendi- lutas identitárias são necessárias e foram e cientes
mentos e as populações locais são funcionalizadas na luta contra desigualdades e desterritorializações
no apoio e legitimação do saque. Há uma corrida ao num ambiente democrático. Esse é o motivo da rea-
butim, do qual grupos econômicos locais, apadrinha- ção violenta para ter esses territórios livres.
dos do poder, se bene ciam com migalhas ou com
enriquecimento rápido. É uma lógica de garimpo. A Amazônia Legal concentra 98,6% das terras, mas
apenas a metade da população de 800 mil habitan-
Re etindo sobre a questão do espaço-tempo na con- tes nacionais indígenas vive nela, pois cerca de 52%
temporaneidade, Boaventura Sousa Santos fala, em vivem nos estados fora da Amazônia.
“Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-
-Modernidade”, de multiplicidade dilemática, entre as O discurso de que há muita terra para poucos índios
quais destaca a questão ambiental e a democracia. oculta essa realidade. Os sistemas de sobrevivência
Sobre a questão ambiental, considero interessante a de recursos da oresta são extensivos e de difícil ob-
constatação de que a agenda global da economia deu: tenção pela dispersão natural das espécies animais e
vegetais utilizados pelas comunidades indígenas. No
( ) uma proeminência sem precedentes a sujei- Centro-Sul do país, os povos indígenas lutam para se
tos econômicos poderosíssimos que não se sentem manter nas precárias terras que disputam com lati-
devedores de lealdade ou de responsabilidade para fundiários; con itos aguçados com o encorajamento
com nenhum país, região ou localidade do sistema institucional que os grandes proprietários recebem
mundial. Lealdade e responsabilidade, só a assu- do governo instalado em 2019.
mem perante os acionistas e, mesmo assim, dentro
de alguns limites. ( ) os processos políticos dos No senso comum, o discurso dos setores refratários
Estados que compõem o sistema interestatal estão à regulação, entre eles as empresas e o Estado que
cada vez mais dominados por lógicas, cálculos e as ampara, trilha pela via da estigmatização dos
compromissos de curto prazo, avessos, por natureza padrões moderno versus atrasado. A grande empre-
a objetivos intergeracionais ou de longo prazo . sa rural, as mineradoras, a logística de transporte
que destrói ecossistemas são a modernidade. Terri-
O ataque à regulação em curso e aos direitos terri- tório de uso comunitário ou de agricultura familiar
toriais e a ousadia das companhias vinculadas ao são o atraso. Na base desse confronto, diferente de
grande capital extrativista mundial re etem esse des- 30 anos atrás, os setores extrativistas empresariais
compromisso com a natureza e com a humanidade. É encontram, agora, muitas das matérias-primas sob
um imediatismo dos grupos que dominam o Estado e domínio de territórios coletivos e de assentamentos

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O presidente Jair Bolsaro participa de almoço com artistas sertanejos, no Clube do Exército, em Brasília. Cruz/ Agência Brasil.

de agricultores familiares, na condição de colonos ou Com a reemergência das forças ultraconservado-


bene ciados pela reforma agrária. ras que resultaram na eleição do ex-militar Jair
Bolsonaro, governo e Congresso Nacional forma-
A fúria contra limites ram uma maioria decidida a impulsionar as pau-
tas de retrocesso fundiário, ambiental, trabalhis-
e regulação ta e social, tendo na Bancada BBB (Boi, Bíblia e
Bala)34 seu principal suporte político. Esses setores
Em 2018, o noticiário sobre a Amazônia foi frenético e são explicitamente contrários ao marco regula-
aterrador para quem conhece as fragilidades de seus tório de proteção ambiental e territórios de uso
ecossistemas. A maior parte, de alguma forma, foi afe- coletivos, bem como defendem o armamento da
tada por garimpos poluidores, pela extração de um rol população, inclusive dos fazendeiros, na proteção
extenso de minérios para exportação32, por usinas hi- das propriedades.
drelétricas, por plantações extensivas de grãos à base
de agrotóxicos, pela volta ao descontrole dos desmata- Pelo menos 323 deputados federais, ou 63% da Câ-
mentos e pela eliminação sumária de extensas redes de mara, têm atuação parlamentar desfavorável à agenda
microbacias hidrográ cas. A tormenta não é inciden- socioambiental. Eles votam e elaboram projetos que
tal; faz parte de uma estratégia de guerra, mantendo os têm impacto negativo para o meio ambiente, povos in-
inimigos (populações, Organizações não Governamen- dígenas e trabalhadores do campo. , diz a reportagem
tais, ambientalistas, movimentos sociais, entre outros) Em cada 10 deputados federais, 6 têm atuação desfa-
sob fogo cerrado. vorável ao meio ambiente, indígenas e trabalhadores
rurais , publicada em 30 de janeiro de 2018 no site Re-
No início de agosto de 2019, a Agência Nacional de Vigi- pórter Brasil.
lância Sanitária (ANVISA) publicou a reclassi cação de
1.924 agrotóxicos33 sob o pretexto de padronização in- O desmonte das instituições de gestão ambiental faz
ternacional e reduziu de 698 para 43 os produtos classi- parte da tormenta. O presidente exigiu do ministro do
cados como mais perigosos, ou seja aqueles com risco Meio Ambiente uma “limpa” no Instituto Brasileiro de
de morte com contato direto e imediato, relativizando Meio Ambiente (IBAMA) e no Instituto Chico Mendes
outras formas de contaminação que também podem de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO). O siste-
resultar em doenças graves e mortes. Com o avanço ma de participação social instituído em todas as esferas
da produção agrícola em larga escala na Amazônia, a da gestão ambiental do país foi dissolvido ou reduzido
contaminação ambiental avança sobre a região. aos setores considerados con áveis pelo governo.
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Desfaça tudo essas reservas . Esse brado, repercutido Projetos de Emendas Constitucionais (PECs) são cri-
pelo jornalista Ciro Bastos, do site Agência Pública35, ticados pelas lideranças do movimento indigenista.
sintetiza a fúria dos setores refratários à regulação A PEC nº 187/2016 libera a atividade agropecuária
aos limites territoriais para a expansão de suas ati- em terras indígenas, a PEC nº 343/2017 retrocede na
vidades extensivas. A reunião realizada em abril de tutela dos povos pela FUNAI, estabelecendo que os
2019 entre o Secretário Especial de Assuntos Fun- contratos devem ser feitos entre o órgão e as empre-
diários do Ministério da Agricultura, Pecuária e do sas e/ou pessoas que desenvolverão essas atividades.
Abastecimento e ex-presidente da UDR — União De- A Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos
mocrática Ruralista, Luiz Antônio Nabhan Garcia e dos Povos Indígenas, grupo liderado pela deputada
líderes e parlamentares do Pará, com destaque para Joênia Wapichana, eleita por Roraima em 2019, lan-
o grito, exempli ca a mentalidade desses segmentos. çou documento de contestação dessas PECs.

Nessa reunião, os representantes dos “produtores ru- Esse cenário é hostil aos setores que defendem a sus-
rais do Pará” exigiram a demissão da superintenden- tentabilidade, o planejamento territorial com parti-
te do IBAMA que está atrapalhando seus interesses. cipação social, a gestão ambiental por meio de Zone-
Para o IBAMA, não fazer nada em relação às scali- amentos Econômicos e Ecológicos, o licenciamento
zações. Depois da reunião, a superintendente foi exo- ambiental de obras por órgãos públicos, assim como a
nerada e não houve substituição até agosto, quando simples existência de Terras Indígenas, ilombolas e
chegou o “Dia do Fogo”. A acefalia institucional é uma de agricultores familiares.
forma de agir diante de derrubadas por tratores com
correntões, roubo de madeiras de unidades de conser- O Projeto Jornalismo Latente, que vem acompanhando
vação e terras indígenas, bem como de não respon- os novos con itos socioambientais no Brasil38, denun-
sabilizar os autores dos incêndios propositais que se ciou a existência de 4.536 pontos de con itos huma-
alastram no estado do Pará e na Amazônia inteira. nitários e choques ambientais” no país. O estudo se
baseia em informações o ciais da Agência Nacional de
No Congresso tramitam dezenas de proposições de Mineração e situa os con itos no universo socioam-
medidas legislativas de retrocesso socioambiental36. biental da seguinte maneira:
Entre tais demandas, os ruralistas pretendem remover
os supostos obstáculos socioambientais para a ativida- indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais e áre-
de agropecuária brasileira. Em particular, entre outras as verdes protegidas são vizinhos de atividades legali-
medidas, pretendem: zadas de mineração. São 245 áreas indígenas (40% do
total), 183 comunidades remanescentes de quilombo-
(i) desobrigar a atividade agropecuária do licenciamen- las (46%), 1.079 unidades de conservação (61%) e 3.029
to ambiental; assentamentos (43%) classi cados como locais de pos-
(ii) reduzir o tamanho e alterar as categorias das Uni- sível con ito socioambiental .
dades de Conservação, exibilizando as normas de pro-
teção, legitimando ocupações irregulares e liberando A contribuição das emissões de CO por desmatamen-
áreas protegidas para usos da agropecuária e outras tos da Amazônia se tornaram objeto de uma guerra de
explorações; informações. O Instituto Nacional de Pesquisas Espa-
(iii) reduzir as áreas indígenas por meio da xação do ciais (INPE) foi questionado publicamente pelo minis-
marco temporal de 1988 e da extensão para todas as de- tro do Meio Ambiente e pelo próprio presidente da Re-
marcações das terras indígenas das 19 condicionalidades
pública sobre o violento aumento dos desmatamentos
de nidas pelo Supremo para a Raposa Terra do Sol ;
encorajados pelo governo.
(iv) transferir para o mercado as terras obtidas pelo pro-
grama de reforma agrária, de novo, com vistas a disponi-
bilizar mais terras para a exploração capitalista;
Segundo o presidente, “as informações do órgão não
(v) liberalizar ainda mais o uso dos venenos agrícolas; correspondem à realidade” e o governo “não pode ter
(vi) legitimar as ocupações de terras da União, o que, além órgãos aparelhados com pessoas que têm delidade às
de chancelar a grilagem, fará avançar ainda mais a ativida- Organizações não Governamentais (ONGs) internacio-
de agropecuária sobre as comunidades tradicionais e bio- nais39”. O presidente do INPE foi demitido por sus-
mas sensíveis e estratégicos como Amazônia e cerrados37. tentar a elevação de mais 250% dos indicadores de
desmatamento entre 2018 e 2019, monitorados pela
Entre as medidas de exibilização do acesso de ati- instituição, dados publicados desde os anos 199040.
vidades extrativas dentro de Terra Indígenas, dois Um militar o sucede.
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Revista Amazônia Latitude Review

Da parte das organizações sociais, em junho, foi for- o cialmente as ideias mais furiosas contra o siste-
mada uma ampla coalizão na defesa dos marcos regu- ma nacional de meio ambiente, direitos humanos e
latórios agrários e ambientais, lançando uma carta41. A direitos indígenas com uma retórica ufanista. O dis-
Carta Terra e Território é uma das ações uni cadas, que curso projeta para a Amazônia o mesmo tipo de pro-
tendem a se ampliar entre as organizações sociais para gresso que causou impactos em escala nas regiões
barrar retrocessos, mas com uma característica inédita desenvolvidas do país.
até nos governos civis-militares: não são endereçadas
ao governo e sim à sociedade. As mulheres indígenas A Amazônia não sobreviverá à escalada de ataque
marcharam sobre Brasília em agosto e entregaram em curso, caso não seja interrompida essa reedição
um documento ao Congresso. Assim como zeram das piores caçadas sobre seus recursos e as popu-
as mulheres trabalhadoras rurais, em sua Marcha das lações que contribuem para a conservação de seus
Margaridas, que reuniu cerca de 100 mil mulheres, e serviços ambientais.
também entregaram suas reivindicações aos parlamen-
tares. O Congresso e o Judiciário se tornaram os únicos Nesse cenário, o Brasil e a Amazônia estão ameaça-
interlocutores dos apelos da sociedade. dos por uma nova onda de autoritarismo e violência
em função do capitalismo extrativista. Volta o esca-
Na última semana de agosto, foi criado o Fórum em moteamento das condições de exploração do recur-
Defesa da Amazônia, no Congresso Nacional, por ini- sos naturais por meio da propaganda falsamente na-
ciativa de partidos de esquerda, envolvendo as Frentes cionalista, a subsunção do valor da biodiversidade e
Parlamentares de Meio Ambiente e Indígena e orga- demais recursos ambientais, a quebra da soberania,
nizações da sociedade civil. Entregaram uma carta ao o sofrimento humano e deterioração ambiental, que
presidente da Câmara, exigindo a resolução de pautas poderá, considerando a intensidade da desregula-
legislativas que contribuam para uma agenda a rma- mentação em curso, ser irreversível.
tiva da integridade do ambiente, dos territórios e dos
povos da Amazônia. O governo federal colocou o Exér- A solução passa por respeitar o marco regulatório
cito e a Força Nacional para combater as queimadas. e ordenamento territorial vigentes, avançando em
Os movimentos do governo são erráticos: a negação projetos que valorizem os recursos orestais e siste-
do apoio de países que cooperam com a Amazônia há mas de produção agrícolas sustentáveis para elevar
muitos anos e a solicitação de apoio exclusivo do gover- a produtividade e a diversidade de recursos, poten-
no Trump e de Israel. A Amazônia se torna hotspot da cializando os sistemas de manejo cujas tecnologias
geopolítica internacional. socioculturais e cientí cas já têm validade compro-
vada. Assim como também deve ser construída uma
Considerações nais política de industrialização diferenciada para a re-
gião, compatível com o mosaico de oportunidades e
O impeachment presidencial de 2016 teve nos seto- saberes de suas populações.
res refratários à regulação um apoio político fun-
damental, com a esperança de desfazer os marcos Os custos da produção limpa são maiores, por isso
regulatórios ambientais, fundiários e territoriais que os recursos públicos devem apoiar os setores que
os impedem de acessar áreas protegidas da Amazô- aceitam a regulação, desestimulando os refratários
nia. A racionalidade do uso de recursos naturais a e marginais. Deve ser criado um sistema de nan-
baixo custo ou às custas dos bens públicos preside as ciamento para a produção sustentável, que inclua
decisões de amplos segmentos que competem pelos o pagamento de serviços ambientais e o avanço de
espaços, migrando para as áreas públicas, onde são parcerias com mercados de consumo de alimentos,
mais competitivos na base da informalidade. fármacos e outros itens produzidos por uma Amazô-
nia limpa e perene.
Setores refratários à regulação se aliaram aos ultrali-
berais, para pautar retrocessos legislativos e institu-
cionais, promovendo uma revisão dos instrumentos
de monitoramento e controle ambientais e da gestão Raimunda Monteiro é professora do Instituto de Ciências
dos territórios indígenas e da política fundiária. da Sociedade da UFOPA Universidade Federal do Oeste do
Pará (Reitora 2014-2018); Pós-Doutoranda em Ciências So-
ciais, Universidade de Coimbra; PHD em Ciências: Desenvol-
Os retrocessos foram iniciados com Michel Temer vimento Socioambiental, Mestre em Planejamento de Desen-
e intensi cados com Jair Bolsonaro, que verbalizou volvimento Regional, Graduada em Jornalismo (UFPA).

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Incorporação e integração da
Amazônia: perpetuação da
colonialidade
Julyan Machado Ramos
Universidade Federal do Amazonas

V
erde é a primeira cor que vem à cabeça quan- zimos com naturalidade. Assim, a Amazônia virou a
do falamos em Amazônia. Instantaneamente, grande oresta , o pulmão do mundo de fauna e
nos vêm imagens mentais da grande oresta, ora exuberantes mas, a nal, não é isso mesmo?
sua imensidão e ermidade, mas, ao analisar os pro- Na verdade, o termo Amazônia surge mais como uma
cessos de construção histórica da Amazônia, suas referência ao território do vale amazônico do que ao
imagens e múltiplas dimensões internas, percebe- próprio bioma da região. O emprego generalizado
mos que o que parece natural, na verdade, não é tão e reconhecido dessa expressão faz sentido a partir
natural assim. do momento em que o Grão-Pará deixa de existir,
dando origem aos estados do Amazonas e do Pará.
O surgimento do Instituto Histórico e Geográ co O termo funcionou perfeitamente para denominar a
Brasileiro na metade do século XIX, as primeiras pro- região das duas províncias, cortadas pelo Rio Ama-
duções cientí cas sobre a Amazônia, as expedições zonas que, em grande medida, foi o caminho para se
de demarcação territorial, entre outras, foram fun- formar a sociedade local a partir de 1616. Segundo
damentais para o início da construção das imagens a professora Auricléa das Neves, durante o período
da região. Um exemplo é Euclides da Cunha; a partir das primeiras expedições europeias pela região no
de sua passagem pela Amazônia no início do século século XVI, o rio foi rebatizado pelos espanhóis, es-
XX, deixou uma signi cativa produção textual que, peci camente pelo frei Gaspar de Carvajal, quando
ao mesmo tempo em que re etiu uma percepção acreditaram ter visto uma nação de índias guerrei-
contemporânea sobre esta terra, também contribuiu ras, as quais atribuíram o epíteto de amazonas em
para criar paradigmas interpretativos sobre a região, referência à mitologia grega. Assim surgiu a deno-
in uenciando de alguma forma o pensamento na- minação río de las Amazonas, que mais tarde serviria
cional sobre a região, a rma o professor Jonas Mar- como sinônimo para denominar a terra do grande
çal de eiroz. rio, o Grão-Pará.

Ao realizar um trabalho detalhado para compreender Por esta razão, não podemos reduzir o termo Ama-
a construção do imaginário popular brasileiro sobre zônia à oresta equatorial. Na verdade, essa con-
a Amazônia, Magali Bueno, em “A representação da versão aconteceu justamente na construção concei-
Amazônia”, destaca a predominância de imagens da tual da região no nal do século XIX talvez pelo
grande oresta verde ou do lugar do atraso , que perigo que o termo pudesse representar. Mais do
nos remetem aos primeiros esforços de construção que uma referência ao território, precisamos ver a
conceitual do Brasil e da região amazônica. O fato Amazônia como um conjunto entre a terra e o povo,
é que essas imagens, mais do que uma representa- pois pensar na história da região só faz sentido se
ção de uma realidade concreta, foram também uma considerarmos o fator humano. O que à primeira
construção – não linear, unilateral e estática. Mais do vista pode parecer óbvio, como dizer que a Ama-
que uma construção, são imagens vindas de fora para zônia se trata mais do território do que do bioma,
dentro, absorvidas pelos amazônidas e que reprodu- na verdade, pode não ser tão óbvio assim, se con-

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Revista Amazônia Latitude Review

siderarmos toda a carga de imagens e preconceitos Sua história diz respeito diretamente ao processo
construídos sobre a região, que ainda são capazes que se iniciou com a implantação do domínio colo-
de fazer um indivíduo do século XXI se impressio- nial pelos europeus na região, pois foi a partir daí
nar ao saber que ali existe “civilização”. que se formulou a sociedade ocidentalizada da Ama-
zônia, do período da colonização e do tempo presen-
O objetivo deste ensaio é empreender uma re exão te. Portanto, em grande parte é a história do Esta-
ampla sobre os processos da sua incorporação e in- do do Grão-Pará, iniciando efetivamente em 1616
tegração ao Estado brasileiro, assim como as impli- com a presença xa portuguesa no extremo norte
cações e signi cados desses processos, destacando a da América portuguesa, adentrando, na verdade,
inserção a partir da a rmação da ordem imperial em em territórios o cialmente pertencentes à Espanha
1823 e sua rea rmação em 1840, com o m da Ca- naquele momento. A experiência colonial na Ama-
banagem. A incorporação (ou inserção) é o processo zônia percorreu uma trajetória própria, construindo
de anexação do Grão-Pará, rea rmando o poder do dinâmicas históricas especí cas da região, mas que
Império do Brasil sobre a Amazônia. Já o processo de certamente não foi alheia do contexto geral da colo-
integração refere-se ao estabelecimento institucio- nização europeia do continente americano.
nal do Estado brasileiro na Amazônia, com a cons-
trução de infraestrutura de conexão com as demais A Coroa portuguesa criou duas colônias no con-
regiões e a a rmação de uma relação de subordina- tinente americano: o Estado Brasil e o Estado do
ção e dependência comercial e econômica, que ocor- Grão-Pará. Embora o conhecimento deste fato tenha
rem a partir da segunda metade do século XX. se disseminado progressivamente, inclusive na edu-
cação básica, é um dado ignorado por grande parte
A proposta aqui é fazer uma análise panorâmica da nossa sociedade. Essa região, que aqui denomi-
(sem esgotar os assuntos mencionados) de um pro- naremos Grão-Pará , teve uma nomenclatura o cial
cesso que se prolonga por quase duzentos anos e que variou ao longo dos séculos XVII e XVIII. A abre-
que, apesar da evolução dos estudos acadêmicos na viação é usada para simpli car nomenclaturas mais
Amazônia, parece ser incompreendido ou ignorado, extensas, como “Estado do Grão-Pará e Maranhão”
inclusive pela comunidade acadêmica. É um esfor- ou “Estado do Grão-Pará e Rio Negro”, sendo possí-
ço preliminar para desnaturalizar o que entendemos vel também usar o termo Amazônia, ainda que este
como natural, combater os silêncios historicamente último tenha surgido somente no século XIX.
construídos e desenvolver uma perspectiva realmen-
te local sobre a Amazônia, a colonialidade contínua A colonização no Grão-Pará seguiu padrões ora ob-
onde estamos imersos, além de provocar inquietação serváveis em outros espaços coloniais, ora exclusivos
para a necessidade de se construir uma nova pers- da região, mas são bastante evidentes as distinções
pectiva sobre o passado, presente e, sobretudo, sobre entre os sistemas das duas colônias portuguesas.
o futuro dos amazônidas. Enquanto no Brasil a sociedade colonial se sobrepôs
majoritariamente às populações indígenas, seja por
Portanto, apresentaremos os aspectos mais gerais da genocídio direto, indireto ou somente pela supera-
formação histórica e política da Amazônia, com o in- ção quantitativa da imigração (dentre outros fato-
tuito de compreender esses processos de incorporação res), na Amazônia, a sociedade colonial era essen-
e integração da região ao Brasil. Para iniciar a discus- cialmente indígena, mesmo que a maior parte desta
são sobre a incorporação, é necessário retomar breve- população já tivesse sofrido o processo da destribali-
mente o processo de construção geral da Amazônia, zação. Dessa forma, a presença indígena – tapuya ou
de nindo-a a partir da experiência histórica concreta. mestiça – na sociedade ocidentalizada permaneceu
por muito tempo hegemônica em relação aos demais
grupos que também estiveram presentes na região.
Incorporação Ainda hoje, mesmo com a população indígena etni-
camente reconhecida sendo extremamente reduzi-
A primeira coisa que precisamos dizer é que Amazônia da e com processos massivos de imigração, a larga
também tem história e esta não se confunde com a his- maioria da população da Amazônia apresenta uma
tória do Brasil ou com a história das nações indígenas evidente in uência (cultural ou genética) indígena,
da América. Talvez este seja um dos motivos que a faz expressa inclusive na sionomia. A colonização na
ser ignorada ou abordada de forma extremamente su- Amazônia assumiu mais um caráter de expansão e
per cial no decorrer do estudo da História Nacional . ocupação militar e religiosa do que de estabelecimen-

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Mapa do Grão-Pará feita para o livro Em Tempos Cabanos (2013), de Antônio Pinheiro Cabral. Arte: Filipe Bara a.

to de uma economia agroexportadora, tendo a força ção do Império, em 1822, o país sequer existia: nem
de trabalho negra como base, na proporção observa- como unidade territorial e menos ainda como nação.
da no litoral brasileiro. Mesmo nas regiões que compunham o Estado colo-
nial do Brasil, a noção de unidade-identidade brasi-
Esta breve retomada evita pensarmos que a unidade leira era muito vaga ou inexistente. Após a fundação
nacional brasileira, sua con guração territorial e a do Império, inicia-se um esforço efetivo para cons-
presença da Amazônia no Brasil vêm da colonização truir a unidade territorial. Dessa forma, as demais
portuguesa, como uma herança adquirida após a in- capitanias ou comarcas que faziam parte do Brasil
dependência de 1822. Contudo, é preciso clareza sobre passaram pelo processo de “adesão ao Império”, que,
esses detalhes, dados simples, mas ignorados pela lar- na verdade e na maioria dos casos, eram anexações
ga maioria da população. A Amazônia, antigo Grão- forçadas. Existe, no entanto, uma diferença signi ca-
-Pará, foi um Estado colonial português autônomo, tiva entre a “adesão” de uma região, como a Bahia ou
sem relação política com o Brasil durante toda a épo- São Paulo e a “adesão” do Grão-Pará. As demais re-
ca colonial, explica Francisco Jorge dos Santos na obra giões faziam parte do Estado do Brasil praticamente
“Além da Conquista: guerras e rebeliões indígenas na desde o início da construção da colônia, enquanto o
Amazônia pombalina”, de 2002. Esses dois séculos de Grão-Pará era um outro Estado colonial, ao invés de
autonomia em relação ao Brasil resultaram em duas uma comarca ou capitania brasileira. Além disso, a
sociedades drasticamente diferentes na primeira me- ausência de vínculos era tão grande que mesmo anos
tade do século XIX. Isto demonstra que a rmações após a anexação, o contato entre Belém e Rio de Ja-
como “estamos no Brasil desde 1500” são infundadas, e neiro permaneceu extremamente reduzido, quase
muito menos é possível pensar nacionalidade ou iden- inexistente, quando comparado com as relações que
tidade brasileira na Amazônia em 1823 – na verdade, existiam entre Belém e outros portos da Europa e da
em grande parte, nem nas demais regiões do Brasil. América, especialmente na região caribenha, como
relata Magda Ricci em “Pátria minha: portugueses e
ando acontece a independência do Brasil e funda- brasileiros no Grão-Pará”. Curiosamente, existe uma

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tendência por parte da historiogra a brasileira em da radicalização. Principalmente após a retomada


considerar que a uni cação das duas colônias ocor- de Belém pelas forças legalistas, a guerra se alastrou
reu em 1774, ou após a criação do Reino Unido do por todo o vale amazônico, subindo os rios da região
Brasil, em 1815. Contudo, isso parece ignorar o grau até as fronteiras com os países vizinhos, resistindo
de desconexão existente entre a Amazônia e o Brasil até 1840, quando houve a rendição de nitiva dos
e a historiogra a amazônida tem se esforçado para cabanos. Os 252 mortos em 1823 aumentaram logo
superar a perspectiva unilateral convencional. para, aproximadamente, 30 mil com a repressão à
Cabanagem em uma rea rmação da ordem imperial
A Amazônia começa a fazer parte do Brasil em agos- brasileira na Amazônia, diz a autora Magda Ricci.
to de 1823, com o episódio que cou conhecido como Essa rea rmação teve altos custos para a população
“Adesão do Pará”, uma anexação negociada com a do Grão-Pará, com uma mortandade jamais vista
classe política de Belém, coagida a aderir ao Império e com prejuízos materiais e imateriais incontáveis.
pela ameaça de bombardeio e bloqueio. Logo, apesar Dessa forma, a Amazônia passou a fazer parte do
de chamada assim, não foi realmente uma “adesão”. Brasil. Desde a Cabanagem, os amazônidas jamais
No Grão-Pará, havia partidários da adesão ao Bra- puderam reunir forças para, mais uma vez, contestar
sil, mas a anexação aconteceu à revelia da vontade a ordem imposta de fora para dentro. Pelo contrário,
local. Na verdade, estes partidários, a princípio, al- a partir daí, se inicia a fragmentação e o enfraqueci-
mejavam mais a transformação social do que a par- mento empreendido pelo Estado através da divisão
ticipação no Império do Brasil, pois antes aderiram territorial e política. A a rmação da ordem nacional
à revolução do Porto. Houve até quem vislumbrasse brasileira também implica na a rmação moral e ide-
adesão à Revolução Pernambucana de 1817. O trági- ológica sobre o povo amazônida, que tem implica-
co episódio da anexação precedeu uma série de ou- ções na cultura e na forma como o povo percebe a si
tras tragédias a curto, médio e longo prazo na região próprio. Assim, se inicia o processo de imposição da
amazônica. nacionalidade brasileira na região.

Ainda em 1823, uma revolta popular resultou num Ao contrário dos demais países da América, que
episódio que cou conhecido como Massacre do Bri- surgiram através da luta intensa contra o colonialis-
gue Palhaço. Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro explica, mo, tendo ampla participação popular nas guerras
em artigo de 2012, publicado na “Revista de Estudos e grandes movimentações espaciais, o Estado bra-
Amazônicos”, que o episódio foi uma revolta desdo- sileiro independente surge mais como continuidade
brada da anexação, onde os revoltosos que se levan- do que como ruptura. De acordo com Maria Odila
taram contra os portugueses de Belém foram apri- Silva Dias, nosso processo de independência não foi
sionados no porão de um navio e mortos por as xia empreendido com a participação da população, bem
com cal virgem. Foram estas 252 mortes que inaugu- como sua unidade não foi construída pela “vonta-
raram a ordem imperial brasileira na Amazônia. Este de” dos povos aglomerados na unidade nacional. O
massacre gerou um grande trauma para a popula- Brasil surge como uma costura de povos. Somente a
ção, que, ano após ano, relembrava o acontecido. O partir do segundo reinado é que se inicia, de fato, o
ressentimento gerado pelo episódio em questão aca- processo de construção da nação brasileira, da na-
bou por ser vinculado à Cabanagem. cionalidade que deveria promover a uni cação e in-
tegração do país.
A partir de 1823, os con itos sociais e políticos se
acirraram no Grão-Pará e a tirania dos presidentes Para um amazônida do início do século XIX, a ane-
enviados pelo Império, junto à negligência com as xação ao Império pode ter sido sentida de forma
demandas da província, causaram frequentes revol- muito diferente do que o foi para um mineiro ou
tas e agitações, principalmente em Belém. Esta pri- para um baiano, em razão da longa trajetória colo-
meira fase de a rmação da ordem imperial brasilei- nial. Na verdade, nem a língua portuguesa era fala-
ra na Amazônia culminou na eclosão da Cabanagem da pela população comum, que até a segunda me-
em 1835, a maior guerra popular ocorrida no Brasil. tade do século XIX tinha o nheengatu (Língua Geral
Esta guerra teve início em Belém no dia 7 de janei- da Amazônia) como língua franca e hegemônica. A
ro, com a tomada do poder político pelo exército ca- língua portuguesa somente se torna hegemônica
bano, formado pela população pobre da Amazônia com a chegada massiva de imigrantes nordestinos,
– índios, mestiços e negros – e alguns membros da conforme registra o professor José Ribamar Bessa
elite, que logo abandonaram o movimento em razão Freire. Do ponto de vista político, a adesão a um

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Império unitário signi cou uma verdadeira perda e psicológica – o que é intrínseco ao colonialismo e
de poder político e de território para as elites locais, à colonialidade.
que passaram ver sua província ser governada por
“estrangeiros” desconhecidos. Além das perdas humanas e materiais, a incorpo-
ração da Amazônia ao Brasil também se traduz em
De toda forma, a anexação do Grão-Pará ao Brasil perda cultural, especialmente a partir do segun-
não signi cou uma ruptura com o colonialismo e do reinado, quando a intelectualidade brasileira se
uma superação das contradições sociais montadas propõe a construir o Brasil, a imagem do país e da
pela experiência colonialista e não foi, portanto, nacionalidade – marcada pelo eurocentrismo e ra-
uma independência. A incorporação da Amazônia cismo – e a própria história nacional. É essa ideolo-
é marcada pela continuidade da condição colonial gia da nação brasileira que começa a ser irradiada,
e pela conversão do colonialismo português pelo a partir do Rio de Janeiro, às periferias. Para além
colonialismo interno brasileiro. O episódio de 1823 da imposição da nacionalidade, o processo de re-
signi cou uma troca de metrópole: de Lisboa para o pressão à Cabanagem e de enquadramento da po-
Rio de Janeiro. A continuidade desta condição colo- pulação amazônida tiveram um efeito traumático
nial se traduz na lógica da relação estabelecida en- que resultou também desmoralização da sociedade
tre Amazônia e Brasil e, posteriormente, na forma formada por índios, mestiços e negros. Esses pro-
como o Estado vai perceber e atuar sobre este terri- cessos e a divisão do Grão-Pará em duas províncias
tório. Na verdade, mais do que uma troca de metró- – Amazonas e Pará – contribuíram igualmente, so-
pole ou conversão, o que ocorre é um acirramento bretudo no ocidente, para a perda do vínculo com o
da exploração colonialista, que ganhou proporções próprio passado. Logo, sem a consciência histórica,
muito maiores e trágicas na Amazônia nas últimas a consciência cultural e a autoconsciência do povo
décadas do século XX, a partir da Ditadura Mili- enquanto povo cam gravemente comprometidas.
tar. É justamente nestas últimas décadas que um
Estado nacional, neste caso o brasileiro, consegue
de nitivamente implantar um regime de explora- Integração
ção colonialista na Amazônia, em proporção muito
maior que a sonhada pelos portugueses. Como vimos, a Amazônia foi anexada ao Brasil em
1823. O Estado do Grão-Pará passou a ser uma pro-
A continuidade da colonialidade na Amazônia não víncia de um império unitarista, onde o poder cen-
foi marcada somente pela relação de subalterni- tral tem um poder muito maior sobre suas subdivi-
zação empreendida pelo Estado. Na verdade, a es- sões do que em um regime federalista. Desta forma,
trutura social permaneceu intacta quando houve o próprio imperador do Brasil articulava o governo
a anexação do Grão-Pará. Como não houve uma das províncias através dos presidentes, que eram no-
guerra patriótica, como nos países vizinhos, não meados para exercer o cargo em qualquer província.
houve ruptura ou transformações mais profundas Assim, o Grão-Pará passou a ser governado direta-
na hierarquia social e na distribuição das proprie- mente por brasileiros de outras províncias e, às ve-
dades. Em larga medida, os portugueses permane- zes, até mesmo por portugueses.
ceram no poder, visto que o Estado brasileiro foi
fundado por portugueses que não viam Portugal Vale lembrar que as noções de identidade ainda são
como uma nação opressora, como aconteceu na signi cativamente vagas para esse período. Logo,
América espanhola. A própria intelectualidade do os adjetivos como “brasileiro” ou “amazônida” são
Império tentou reforçar a perspectiva da indepen- usados, nesse momento, mais como referências ge-
dência pací ca, sem rupturas com a pátria mãe. ográ cas do que identitárias. Além disso, no Grão-
-Pará, assim como nas regiões da colônia brasilei-
O processo de incorporação do Grão-Pará, além da ra, os homens que participavam do jogo político da
continuidade, também foi marcado pela intensi ca- sociedade se consideravam portugueses da América:
ção dos con itos sociais internos, repressão e vio- portugueses do Pará ou portugueses de Belém e as-
lência. Assim como no período colonial português, sim sucessivamente.
esses processos de anexação e rea rmação da ordem
nacional brasileira na Amazônia são marcados pela Entretanto, com o m do Império do Brasil, também
violência, às vezes individual, às vezes coletiva; e que se encerra o unitarismo do Estado. O federalismo da
nem sempre foi física, mas também simbólica, moral Primeira República signi cou uma signi cativa re-

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tomada” do poder para a classe política da região, cebido como uma estratégia desresponsabilização do
atendendo aos anseios de autonomia administrativa. Estado sobre as unidades federativas, especialmen-
O contexto do advento do federalismo, no entanto, te nos estados mais pobres, pois, ao mesmo em que
era ligeiramente diferente do período da anexação: dava maior liberdade para a governança local, dei-
agora não existia mais o Grão-Pará. Este fora divi- xava o estado mais desassistido – podendo ser cul-
dido em duas províncias em 1850, Amazonas e Pará, pabilizado pela sua pobreza ou fracasso diante dos
em razão da necessidade de o Império fortalecer sua estados que prosperavam.
presença no ocidente amazônico diante das ameaças No contexto federalista da Primeira República, acon-
de invasão da região. tece a maior expansão territorial da Amazônia desde
o tratado de Madri. O desenvolvimento da economia
A divisão teve um signi cado ambíguo para a Ama- da goma e a imigração nordestina que avançava em
zônia, pois, ao mesmo tempo em que a elevação da massa para o oeste resultaram na ocupação de ter-
comarca à condição de província teve resultados re- ras até então pertencentes à Bolívia. A consequên-
lativamente positivos, também serviu para impedir cia desse processo foi a anexação da região que hoje
a formação de uma consciência amazônida de iden- corresponde ao Acre e ao sudoeste do Amazonas em
tidade, história e cultura comuns e compartilhadas. 1903, após um con ito que, antes da anexação ao
A cisão da província dividiu um povo que estava em Brasil, permitiu o surgimento da República Acreana,
formação há mais de duzentos anos (sem considerar proclamada duas vezes.
a herança indígena milenar), que tinha uma língua
própria, o nheengatu, e que tinha na guerra da Ca- Dentro do regime republicano, o Estado Novo, ins-
banagem experimentado uma unidade de luta para taurado por Getúlio Vargas, pode ser entendido como
enfrentar as forças estrangeiras – a guerra também uma ruptura com o federalismo da Primeira Repú-
constrói identidades. Essa divisão teve consequên- blica, retomando características unitárias, como no
cias mais trágicas (em termos de consciência) no período imperial. Segundo João Camilo de Oliveira
Amazonas, na medida em que a quebra do vínculo Torres em “Nacionalismo e centralização”, com o ob-
com o Pará não foi somente política: o amazonen- jetivo de empreender uma verdadeira uni cação da
se desvinculou-se do próprio passado. Essa ruptura nação, que após cem anos da independência ainda
com o passado determina a forma como um amazo- se encontrava fragmentada, Vargas promove uma
nense (e depois um roraimense) se enxerga e como intensa campanha para construir e fortalecer a na-
enxerga a Amazônia. cionalidade brasileira e combater as identidades re-
gionais. É neste período que a ideologia nacional se
Segundo Luís Aberto Costa em re exão publicada instala efetivamente na Amazônia, em um momento
na Revista da Faculdade Mineira de Direito, o regi- de integração ideológica. Ainda durante a vigência
me federalista, ao conceder autonomia aos estados, do Estado Novo, na Segunda Guerra Mundial, acon-
contribuiu para viabilizar a continuidade da unidade tece nova fragmentação territorial na Amazônia com
nacional construída pelo Império, visto que atendia a criação dos territórios federais do Amapá, Rondô-
signi cativamente aos interesses e demandas das nia e Rio Branco (Roraima) em 1943. Estes territó-
elites particularistas. A concessão de autonomia aos rios passaram a ser administrados diretamente pelo
estados amortizou as tendências centrífugas regio- Governo Federal, conforme apontam os professores
nais, mais evidentes durante o período regencial, evi- Murilo Mendonça Souza e Vera Lúcia Pessôa em ar-
tando novas contestações sérias da unidade nacional tigo publicado na revista Acta Geográ ca, da Uni-
e, consequentemente, evitando sua fragmentação, versidade Federal de Roraima (UFRR) em 2010.
como aconteceu na América hispânica. Na verdade,
juntamente com o desenvolvimento cada vez mais A partir da metade do século XX, a Amazônia come-
desproporcional entre as regiões, os estados das re- ça a se con gurar progressivamente como um pro-
giões mais periféricas estariam, gradualmente, em blema para o estado nacional – como apontavam os
maior desvantagem e com menor chance de promo- intelectuais brasileiros desde a segunda metade do
ver um movimento de ruptura com a unidade na- século XIX. Dessa forma, vemos as primeiras medi-
cional. A integração política, ao mesmo tempo em das do governo nacional para lidar com a Amazônia
que reforçou indiretamente o poder e a presença do enquanto região. Contudo, a ação do Estado só co-
Estado nacional na Amazônia, serviu também para meçará a ser mais efetiva a partir da Ditadura Mili-
aumentar a dependência e a subalternização dos es- tar. O slogan “integrar para não entregar” sintetiza
tados à união. O federalismo também pode ser per- bem a intenção dos governos militares em empreen-

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Obras tiradas do famoso Spix & Martius . O botânico alemão Carl von Martius, o zoólogo J. B. von Spix, são considerados uns dos maiores cientistas a explorar o Brasil
no século XIX. Reproduzido nos livros Brasiliana Itaú , páginas 178-181.

der um verdadeiro programa de colonização e inte- na Revista Tempo Amazônico, em 2016. Mesmo nos
gração infraestrutural da Amazônia ao Brasil. Com governos supostamente progressistas, o que se vê é a
os governos militares, o integracionismo brasileiro continuidade. Foi assim que a Amazônia brasileira se
se intensi ca de forma nunca vista anteriormente. constituiu historicamente dentro da unidade nacio-
É neste momento que se inicia a montagem de uma nal. Os danos e prejuízos deste processo não caram
verdadeira estrutura colonialista de exploração eco- restritos ao passado, pois também fazem parte do
nômica e ocupação territorial. tempo presente.

Não pretendemos abordar aqui as consequências O nacionalismo brasileiro, na medida em que pos-
trágicas que o integracionismo brasileiro promo- sui uma face progressista diante do contexto in-
veu na Amazônia. Convém ressaltar que o discurso ternacional, quando assume um caráter anti-im-
desenvolvimentista, con gurado como o interesse perialista, também possui uma face reacionária
nacional pelo progresso, serviu e continua a servir diante das contradições e desigualdades regionais
para justi car a imposição dos grandes projetos na- internas do Brasil. A própria construção e manu-
cionais de desenvolvimento, que até hoje têm pro- tenção da unidade territorial foi conquistada atra-
duzido subdesenvolvimento e prejuízos ambientais e vés da repressão violenta de todas as tendências e
sociais na região Norte. Dessa forma, percebe-se que forças centrífugas da América portuguesa, junto à
tanto o integracionismo e quanto o desenvolvimen- imposição da ideologia da nação brasileira, de ca-
tismo não caram restritos ao período da Ditadura ráter igualmente autoritário sobre os povos peri-
Militar (na verdade, nem foram invenção dos mili- féricos do Brasil, suprimindo as identidades regio-
tares), mas continuam ativos até hoje, como aponta nais. Como este tipo de processo sempre pesa mais
Eduardo Gomes da Silva Filho em artigo publicado para o lado mais fraco, a Amazônia foi a região que

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mais sentiu o peso da construção da unidade na- tivesse sido incorporada à Espanha há muito mais
cional – para não falar dos povos indígenas, muito tempo que a Amazônia ao Brasil, por que os ama-
mais frágeis do que o Estado e o povo amazônida. zônidas, com mais tempo de desconexão do que
de anexação com o Brasil, não poderiam também
formular uma consciência nacional amazônida – ou
Signi cados da brasilidade ao menos uma consciência cultural regional mais
forte, integrada e sólida?
Esta discussão sobre o processo de incorporação
e integração da Amazônia ao Brasil, além de nos O que aconteceu com a sobreposição da nacionali-
ajudar a ter uma compreensão mais abrangente e dade brasileira na região foi também uma amputa-
geral sobre os próprios processos de formação de ção cultural e identitária. Além da absorção de uma
identidade nacional, ajuda, principalmente, a re e- identidade nacional forjada de fora para dentro,
tir sobre seus custos e signi cados mais profundos houve a progressiva negação do que vinha da própria
para os amazônidas de hoje. terra. Talvez o caso mais signi cativo seja o abando-
no da Língua Geral, onde um dos fatores para o seu
Como citado inicialmente, trata-se de um esforço declínio foi justamente a negação do que vinha da
para desnaturalizar noções e imagens que temos própria terra e remetia ao passado indígena, que de-
como naturais, justamente por termos, na Amazô- veria ser esquecido. Por outro lado, a fragmentação
nia, uma consciência histórica muito vaga ou total- do Grão-Pará reduziu a cultura e a identidade ama-
mente inexistente (o que gradualmente tem muda- zônida, que estavam em formação há mais de du-
do). Uma dessas naturalizações se refere à presença zentos anos, em culturas e identidades provinciais/
da Amazônia na unidade territorial e nacional bra- estaduais. Uma das consequências mais lamentáveis
sileira. Ficou claro, entretanto, que a Amazônia só são as rixas e rivalidades entre amazonenses e para-
passa a fazer parte do Brasil em 1823 a partir da sua enses, populações que compartilham a mesma uni-
anexação imperial. Outra naturalização diz respei- dade histórica, linguística, cultural, etc. Felizmente,
to à nacionalidade brasileira na Amazônia. Sem que isso não é algo generalizado, mas realmente existe,
se conheça os processos de anexação e integração, como consequência da divisão.
a tendência é que um amazonense, por exemplo,
entenda a nacionalidade brasileira na Amazônia De qualquer forma, a instalação da identidade bra-
como natural e perene, como uma herança direta sileira foi bem sucedida, sobretudo em meados do
da colonização portuguesa, ou como se fôssemos século XX, onde a sociedade amazônida estava cada
brasileiros desde 1500. Na verdade, como vimos vez mais integrada à vida política e econômica na-
brevemente neste trabalho, a nacionalidade bra- cional, embora sempre de forma limitada. O fato é
sileira, como toda nacionalidade, é também uma que a aceitação da nacionalidade foi útil para a ma-
construção histórica, mas a sua expansão para a nutenção da ordem estabelecida pelo processo de
Amazônia foi signi cativamente diferente do que incorporação, evitando que a contestação ganhasse
foi a expansão para as outras regiões que faziam mais uma vez tendências à desagregação nacional.
parte do estado colonial brasileiro. Na Amazônia, isso se traduz na aceitação da rela-
ção endocolonialista ou neocolonialista, que, além
Falar sobre brasilidade e construção da nacionali- de ser percebida de forma bastante vaga pela popu-
dade brasileira na Amazônia demanda justamente lação, parece insu ciente para promover a contes-
a consideração desses processos de incorporação e tação que ponha em risco mais uma vez a unidade
integração e suas implicações diretas e indiretas, territorial. No entanto, a colonialidade faz parte da
de curto e longo prazo. Tanto processos como a re- realidade amazônica, mesmo que seja percebida de
pressão à Cabanagem, quanto a gradual inserção forma vaga. Não é mais jurídica, como no perío-
da Amazônia no jogo político e econômico do país do da colonização portuguesa ou mesmo no perío-
contribuíram para a instalação da nacionalidade do imperial, já que, hoje, os cidadãos e os estados
brasileira na região, bem como para suprimir a pos- estão em um regime de igualdade – ao menos na
sibilidade do desenvolvimento de uma consciência lei. Entretanto, é econômica, infraestrutural, ideo-
nacional amazônida. A nal, se povos como os ca- lógica e moral. Ela é intrínseca à ação do Estado
talães ainda no século XIX podiam contestar a le- nacional, na medida em que este impõe os grandes
gitimidade da soberania espanhola sobre a Catalu- projetos nacionais de desenvolvimento e integração
nha e a rmar a identidade catalã, mesmo que esta na região, à revelia das populações locais e dos po-

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vos indígenas, onde o interesse nacional prevalece Amazônia, entretanto, demanda esforço da própria
sobre o interesse regional/local. comunidade acadêmica para construir novos parâ-
metros interpretativos. Isto para que a região seja
Este é o preço que pagamos pela adesão ao Império cada vez mais amazônida – e não amazônica, com-
e é o preço que continuaremos a pagar enquanto não preendida de dentro para fora e não ao contrário,
houver uma verdadeira descolonização da Amazô- como acontece desde o século XIX. Construir uma
nia. Caso contrário, permaneceremos a pagar muito amazonidade pode ser a única alternativa realmente
caro pela continuidade da nossa condição de subal- e ciente para a superação real e de nitiva dos para-
ternidade, afogados na colonialidade e incapazes digmas da subalternização e do colonialismo – para
de reagir e reverter esta situação de forma efetiva. que também a oresta amazônica sobreviva. Falar
em amazonidade é vislumbrar novas possibilidades
no horizonte, mesmo que distante, que estejam além
Aspirações da perpetuação da colonialidade.
Propor uma abordagem humanizada e descolonial
sobre a Amazônia não signi ca negar questões am- Julyan Machado Ramos é graduado em História pela
bientais. Contudo é, antes de tudo, um combate aos Universidade Federal do Amazonas, em Manaus. Tem
graves estigmas produzidos pela relação endoco- como foco de pesquisa temas relacionados à História da
lonialista estabelecida no processo de anexação da Amazônia e América Latina, além de História Social da
mesma e integração à nação. Falar em descoloniza- Língua. É fundador da Associação Cultural dos Povos da
ção da consciência histórica e cultural popular na Amazônia e busca promover a Língua Geral da Amazônia.

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Falar é existir: o caso de


línguas ameaçadas no Brasil
e no Equador
Chanelle Dupuis
Florida State University

M
etade das sete mil línguas faladas hoje será Este artigo compara as políticas governamentais e
extinta dentro de 50 a 100 anos. e isso se educacionais promovidas para preservar as línguas
torne uma verdade ou não depende do tra- ameaçadas de extinção no Brasil e no Equador. Os
balho e da pesquisa feita para reconhecer e preservar dois países estão sendo comparados, porque fazem
essas línguas ameaçadas. parte da região amazônica, assim como possuem

Arte: Sandro Schu .

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grande diversidade linguística. Da mesma forma, am- gua é perdida, há um vazio cultural, onde conheci-
bos têm populações indígenas consideráveis. A maio- mentos valiosos são esquecidos. O desaparecimento
ria das línguas ameaçadas são indígenas, o que prova de uma língua diminui a nossa compreensão cientí-
que discutir maneiras de preservá-las também deve ca de formas e formatos que a linguagem humana
incluir a discussão de maneiras pelas quais as comu- pode assumir. Se uma língua possuidora de deter-
nidades indígenas podem obter acesso à autorrepre- minada característica linguística rara desaparecer,
sentação e à autonomia da comunidade. O objetivo os linguistas podem nunca descobrir que tal recurso
nesta análise comparativa é re etir sobre a quantida- possa existir em uma linguagem humana. As línguas
de de línguas ameaçadas e como os dois países po- também carregam conhecimento e informação sobre
dem aprender com os programas e políticas um do o mundo natural, que podem ser perdidos quando a
outro. Primeiro explicaremos o que é uma língua em língua é extinta.
extinção e por que as línguas ameaçadas devem ser
protegidas; logo discutiremos as leis e políticas cons- O conhecimento de plantas medicinais ou de espé-
titucionais e educacionais de ambos os países; e nal- cies de aves, por exemplo, podem estar contidos em
mente faremos uma defesa pela autorrepresentação uma língua e se perder quando o sistema linguístico
indígena e seu papel vital em ajudar a preservar as deixa de ser transmitido. En m, a língua é um di-
línguas ameaçadas. reito humano. Nenhuma pessoa deveria ser forçada
a parar de falar sua língua e ninguém deveria ouvir
que sua língua não é valiosa ou não é digna de ser
Línguas ameaçadas e sua falada. As línguas podem ser preservadas de muitas
importância maneiras e a maior parte do trabalho de preservação
depende de leis e programas governamentais,
apoio e participação da comunidade e da ênfase na
Uma língua ameaçada é a língua que possui uma
impor-tância e valor cultural dessas línguas.
base de falantes cada vez menor e geralmente não é
mais a língua materna das crianças da região. A Or-
ganização das Nações Unidas para a Educação, a Ci-
ência e a Cultura (Unesco) classi ca as línguas como O caso de línguas ameaçadas
seguras, vulneráveis, de nitivamente ameaçadas,
severamente ameaçadas, criticamente ameaçadas no Brasil
ou extintas. Essas classi cações ajudam os linguistas
a decidir em que ponto uma língua está ameaçada. O Brasil possui mais de 200 línguas faladas no país
e cerca de 180 são indígenas. Por indígena, me re-
Isso levanta as seguintes questões: como as línguas ro a uma língua que é nativa da região e falada
se tornam ameaçadas? E como esse problema sur- geralmente por povos indígenas. O número exato
ge? O Manual de Cambridge de Línguas de línguas ameaçadas é incerto, porque frequente-
Ameaçadas (The Cambridge Handbook of mente há imprecisão na documentação de línguas
Endangered Languages) afirma que o indígenas e falta de clareza entre o que constitui um
comprometimento das línguas é afetado pelo seu dialeto e uma língua. Esta pesquisa usa os sites ELP
número de falantes, os locais onde se pode utilizá- (Endangered Languages Project), o Ethnologue e
la e o apoio a favor ou contra a língua. É claro que, às o Atlas Unesco das Línguas do Mundo em Perigo
vezes, mais fatores surgem e é difícil identificar a para saber quantas línguas estão ameaçadas no
razão exata que leva ao declínio de uma língua. Brasil. Essas três bases de dados mostram que
Outros fatores que ocasionam prejuízos à lín-gua existem 172 línguas ameaçadas no Brasil.
incluem situações de colonialismo (e variações),
pressões econômicas, imigração, políticas linguísti-
cas, atitudes a favor ou contra determinada língua
e padronizações. Seja política, econômica, social ou
cultural, há muitos aspectos que podem afetar uma
língua e ocasionar a perda da sua base de falantes.
Línguas ameaçadas no Brasil. Foto: Amazônia Latitude.
De fato, por que línguas ameaçadas deveriam ser
preservadas? Certamente, a perda de uma língua é A partir dos dados acima, veri camos que a maioria
uma preocupação humana. A língua é importante das línguas no Brasil são de fato indígenas. Muitas
para a cultura de um indivíduo e, quando uma lín-
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estão ameaçadas, devido à sua pequena base de fa- país. Portanto, esse grupo não deve ser desconside-
lantes. A maioria é usada por menos de mil pessoas e rado, quando legisladores deliberarem sobre política
algumas até por menos de 100 indivíduos. Essa base linguística e o ensino das línguas.
reduzida torna essas línguas particularmente vulne-
ráveis. É evidente que o Brasil é um país linguisti-
camente diverso, mas infelizmente a maioria dessa O caso das línguas ameaçadas
diversidade encontra-se em estado precário.
Analisaremos, agora, o tamanho da população brasi-
no Equador
leira em comparação ao tamanho da população indí-
gena do Brasil, dado que ajuda a revelar informações
sobre quem fala essas línguas ameaçadas e se essa
população é visível ou não em estatísticas e docu-
mentação do censo.

De acordo com o censo demográfico de 2010, a Línguas ameaçadas no Equador. Foto: Amazônia Latitude.
população do Brasil era de 190.755.799 pessoas. A
população indígena, de acordo com esse censo, era
de 817.963. Isso signi ca que ela representa apenas No Equador, existem 25 línguas faladas, sendo 21
0,43% da população total do Brasil – grupo popula- in-dígenas, das quais 13 estão ameaçadas de
cional estatisticamente insigni cante. É importan- extinção. Assim como no caso do Brasil, a maioria
te notar, naturalmente, que há margem de erro nes- das línguas ameaçadas do Equador são de povos
sas estatísticas, dependendo de quem escolheu se originários; e o país possui um número significativo
delas.
identi car como indígena na pesquisa, assim como
quem não participou do censo. Os dados estão no Comparado com o Brasil, o Equador possui ape-
grá co abaixo. nas 13 línguas ameaçadas de extinção, enquanto
o primeiro possui 172. O tamanho da população
do Equador é outro contraste interessante. O
Equador, de acordo com o censo demográfico de
2010, pos-suía uma população total de 14.483.499
pessoas. Já a população indígena em 2010 era de
1.013.845 indiví-duos, representando 7% da
população total do país, conforme constatado no
gráfico a seguir:

Porporção da população indígena no Brasil.


Foto: Amazônia Latitude.

Portanto, as comunidades indígenas compõem uma


pequena porcentagem da população total do Brasil.
Embora sejam uma estatística pequena, elas são res-
ponsáveis pela grande diversidade linguística bra- Proporção da população indígena no Equador.
Foto: Amazônia Latitude.
sileira e falam a maioria das línguas ameaçadas do

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A população indígena do Equador detém uma por- como essa educação bilíngue deve ocorrer, nem as
centagem muito maior em relação à população total maneiras pelas quais as línguas indígenas devem ser
que a do Brasil. A menor dimensão territorial do país protegidas. A língua é um direito reconhecido, mas a
pode in uenciar esses dados ou, possivelmente, a sua preservação e transmissão não são esclarecidas
forma como os cidadãos decidiram se identi car no na constituição.
censo. Independentemente disso, a população indí-
gena é mais presente no Equador do que no Brasil e A Constituição do Equador, elaborada em 2008, in-
é mais difícil negligenciá-la. A numerosa população clui elementos semelhantes. Sua língua o cial, ex-
de falantes de quíchua no Equador, por exemplo, in- pressa no artigo 2, é o espanhol; o quíchua e o shuar
uencia na responsabilidade do governo em relação são reconhecidos como línguas o ciais das relações
a programas e leis bilíngues. Já o Brasil não dispõe interculturais. O artigo também a rma que outras
do mesmo tipo de situação, pois as múltiplos línguas línguas ancestrais são de uso o cial em aldeias indí-
do país são falados por grupos muito pequenos. Ve- genas e que o Estado respeitará e estimulará a con-
remos agora se isso in uencia ou não os programas servação e o uso de línguas ancestrais. É realmente
e políticas governamentais em vigor para a preserva- fundamental que o Estado reconheça duas línguas
ção de línguas ameaçadas. indígenas para as relações interculturais o ciais e o
fato de a rmar isso diretamente ajuda na conserva-
ção das mesmas. Em termos de reconhecimento de
Constituições e terra, o artigo 242 separa as terras indígenas sob o
preservação linguística título de regimes especiais. Os artigos 29 e 347 refe-
rem-se à educação. Estes conferem a todos no Equa-
Esta seção analisa as políticas constitucionais do dor o direito à educação em sua própria língua e aos
Brasil e do Equador. Uma constituição evidencia seus respectivos costumes. Além disso, esses artigos
os principais objetivos, valores e governança de um a rmam que a educação bilíngue é permitida, bem
país, além de enfatizar suas línguas o ciais, políti- como detalha a forma como será realizada. Muitos
cas educacionais e indígenas. Políticas constitucio- outros artigos referem-se aos direitos indígenas, mas
nais nos ajudam a entender como os governos pla- esses são os mais importantes. É interessante que o
nejam e reagem a línguas ameaçadas e vulneráveis. Equador pondere extensivamente sobre as línguas
É importante notar, ainda, que as constituições não indígenas e ancestrais e que um sistema de educa-
mostram a realidade, mas simplesmente destacam o ção bilíngue seja especi camente estabelecido.
tratamento ideal para os indivíduos.
Comparando as duas constituições, a equatoria-
A constituição brasileira mais recente foi promul- na é mais especí ca e menciona as populações
gada em 1988. Nela, há vários artigos importantes indígenas muito mais do que a brasileira. As co-
relacionados aos direitos indígenas, língua e edu- munidades indígenas representam uma porcenta-
cação. No que diz respeito à língua oficial, o artigo gem maior da população total do Equador e certas
13 afirma que é o português. No entanto, o artigo línguas, como quíchua e shuar, possuem bases de
210 garante às comunidades indígenas o direito falantes maiores que as línguas presentes no Bra-
de educar seus filhos na sua língua de origem, sil. Essa pode ser uma das razões pelas quais as
usando seus próprios métodos. Assim, mesmo que constituições diferem em seu foco sobre a língua.
as línguas indígenas não sejam as oficiais do país, O Equador também inclui certas línguas indígenas
elas podem ser usadas como a língua de ensino. como o ciais interculturais e a a rmação direta
Também impor-tante para as comunidades disso ajuda a conservar e preservar outras línguas
indígenas é o artigo 231, que afirma que a língua, ancestrais. O Brasil, um país com um número
os costumes e as tradições dos grupos são muito maior de línguas ameaçadas, não possui as
reconhecidos e estes são os donos das terras que mesmas pretensões. Essas são diferenças interes-
tradicionalmente ocupam. Esses são os principais santes que retratam os diferentes níveis de impor-
trechos da Constituição Federal que se relacionam tância estabelecidos por cada país na preservação
aos direitos linguísticos e representação indígenas. de línguas e conhecimentos indígenas. É impor-
Como demonstrado, ela confere aos po-vos tante que seja dado o devido valor cultural às lín-
indígenas direitos sobre suas terras, costumes e guas das minorias e as constituições reconheçam
línguas. A educação bilíngue também é prevista os direitos dos grupos indígenas.
pela mesma. O documento não detalha, no entanto,

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Revista Amazônia Latitude Review

Alunos de séries diferentes dividem a mesma sala de aula na Escola Estadual Indígena Itapó, da tribo Karapotó Plak-ô.
Foto: G1 (h p://g1.globo.com/al/alagoas/fotos/2015/06/fotos-veja-imagens-das-escolas-indigenas-em-alagoas.html#F1660943)

Educação em cursos de graduação e pós-graduação. Embora


existam várias leis e programas em vigor para a edu-
Atualmente, no âmbito dos Ministérios da Educação cação de grupos indígenas (e sua educação bilíngue),
e Cultura do Brasil e do Equador, tentamos ainda há pontos a melhorar. Os maiores problemas
entender como os Estados usam a pasta para apoiar, são que os membros da comunidade precisam ter
documen-tar ou revitalizar línguas ameaçadas. acesso a um nível mais alto de educação para se-
Usaremos es-pecificamente os relatórios de Dados rem formados como linguistas e poderem ensinar
Mundiais sobre Educação do Departamento suas próprias línguas com êxito. Como aponta Silva
Internacional de Educa-ção (IBE) e da Unesco para Sinha, em “Políticas de línguas indígenas no Brasil:
entender que tipo de polí-ticas educacionais são treinando o povo indígena como professores e pes-
promovidas por esses Estados. quisadores” (tradução livre de “Indigenous langua-
Como mostra o relatório da Unesco (2010), o ges policies in Brazil: training indigenous people as
Brasil possui diretrizes nacionais para a educação teachers and reseachers”), também é preciso maior
indíge-na. No país, as escolas indígenas oferecem colaboração entre grupos indígenas, pesquisadores
educação intercultural bilíngue. Em 2005, havia e professores em termos de promoção da educação
2.323 escolas indígenas e 46,6% delas eram indígena e treinamento linguístico. No geral, ainda
mantidas pelo Estado. Assim, os grupos têm o que o Brasil possua diretrizes para a educação indí-
direito de serem educados em sua própria língua. gena, poderia ser feito mais para melhorar capacita-
O Projeto Interação, finan-ciado pelo Estado, ção das pessoas para documentar e ensinar línguas
também fez com que professores indígenas fossem ameaçadas de extinção.
contratados – pela primeira vez – pelo governo
para ensinar em escolas indígenas. Co-meçou em O Equador possui políticas educacionais semelhantes
1987, após a ditadura, e continuou desde então. Em às do Brasil. Aquele se de ne como um país multilíngue
2004, mais leis foram aprovadas para ga-rantir a e plurinacional, que respeita as diferentes línguas fala-
educação superior de professores indígenas e das dentro de suas fronteiras. O país também possui
financiar programas públicos para a educação in- uma população de 7% de indígenas, que está crescendo
dígena. O país também passou a disponibilizar em ritmo acelerado – o que torna a educação indígena
cotas para estimular o ingresso de estudantes uma prioridade. O Relatório da Educação Mundial da
indígenas
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Unesco-IBM de 2010 mostra que o Equador criou um Organizações Indígenas da Bacia Amazônica
plano de educação bilíngue bem detalhado, mostrando (COI-CA) apontam os problemas ainda enfrentados
que os programas priorizam o método antes do con- pelas comunidades indígenas, que não são
teúdo que está sendo ensinado. Isso também tornou destacados em documentos governamentais. As
o programa mais flexível e faz com que ele venha duas organizações reivindicam leis autônomas e
sendo eficaz em várias partes do país não apenas lutam pela terra e pelo reconhecimento legal dos
nas cida-des. O país andino também possui uma grupos indígenas. Em uma época onde o presidente
Diretriz Nacio-nal de Educação Indígena Bilíngue do Brasil já fez mudanças como atribuir a
Intercultural, que cria e monitora esta educação. No demarcação de terras ao Ministério da Agricultura,
ano de 2007, de acor-do com o relatório, houve um em vez da Fundação Nacional do Ín-dio (FUNAI), é
índice de matrícula de 107.694 alunos em programas necessário entender como as popula-ções indígenas
de bacharelado bilíngue. A maioria desses estudantes enfrentam questões além da simples preservação
falam a língua quíchua. Esses programas têm sido das suas línguas. No contexto das lín-guas
muito eficazes e resultaram em mais indígenas ameaçadas, proteger uma língua é muito mais do
ingressando no ensino superior. A discriminação, no que isso estende-se à proteção do modo de vida
entanto, ainda é um problema. Ain-da há alguns pais de uma comunidade e o direito ao seu legado.
que escolhem não ensinar quíchua a seus filhos por Essas duas organizações exemplificam isso.
medo de que sejam discriminados. No geral, os
programas bilíngues do Equador são um su-cesso e Em geral, as línguas ameaçadas são vulneráveis
promovem, além do diálogo, o uso de línguas em um mundo cada vez mais global. Governos
indígenas ameaçadas. como o do Brasil e do Equador estão aprovando
leis para proteger e dar suporte às línguas
A maior diferença entre os programas bilíngues ameaçadas. Esta pesquisa mostra que existe uma
de educação no Brasil e no Equador é a diversidade conexão entre a re-presentação indígena e as
lin-guística. O Brasil se depara com uma línguas ameaçadas e que as línguas mais
diversidade linguística tão grande que é um ameaçadas são, de fato, línguas indí-genas. Essa
desafio documen-tar e criar oportunidades discussão pretende trazer à luz o grande número de
educacionais para todas as línguas existentes. O línguas ameaçadas no Brasil e no Equa-dor e as
Equador possui uma popula-ção tão grande de razões pelas quais a proteção das mesmas, seja por
falantes de quíchua que é possível criar meio da educação, seja por outros meios, é
oportunidades bilíngues mais facilmente para importante por razões científicas, sociais e
esses cidadãos, apesar de enfrentarem dificuldades culturais. O conhecimento indígena está ligado à
em acomodar os vários dialetos presentes no país. língua e as questões sobre representação indígena
Por outro lado, com a grande quantidade de são também uma questão de diversidade
línguas ameaçadas no Brasil, é vital que os futuros linguística. O Equador e o Brasil aprovaram leis
legislado-res promovam e conservem essas línguas. que protegem o direito das comunidades de falar
As popula-ções indígenas precisam ter o direito de suas línguas minoritárias, mas ainda há espaço para
educar suas comunidades em sua própria língua e melhorias em termos de finan-ciamento e
ter acesso à autorrepresentação, para que esses treinamento. Falar línguas indígenas precisa ser
direitos não lhes sejam negados. mais valorizado e mais políticos precisam entender a
Representação e língua importância de se proteger a diversidade linguística.
A autorrepresenta-ção dos grupos indígenas e a
Há laços estreitos entre questões de língua, autonomia das comunida-des podem ajudá-las a
identida-de, cidadania e meio ambiente que tornam obter e defender a preservação de suas línguas
esta uma discussão multifacetada. Por essa indígenas e ancestrais. A diversidade linguística
razão, é importante observar como a discussão de torna o mundo um lugar mais promissor e seria
línguas ameaçadas coincide com discussões lamentável viver sem essa diversidade.
sobre direitos e representações indígenas. Muitas
das políticas educacionais e direitos Chanelle Dupuis é aluna de graduação da Florida State Uni-
constitucionais em vigor são leis e políticas versity em Tallahassee, Flórida. Estuda literatura e linguísti-
que afetam a conservação dos modos de ca francesa e espanhola, com especial interesse em línguas
vida e conhecimento indígenas. A língua é ameaçadas. Completou a parte inicial desta pesquisa com a
apenas uma parte desse esforço de ajuda da Drª. Tanu Kohli Bagwe, no Centro de Engajamen-
conservação. Por esse motivo, organizações to Global da Universidade Estadual da Flórida (Center for
Global Engagement - FSU).
como a Confederação de Nacionalidades
Indígenas (CONAIE) e a Coordenadoria das ISNN 2692-7446 (Print) / ISSN 2692-7462 (Online) 75
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Cultura amazônica:
uma diversidade diversa
João de Jesus Paes Loureiro
Universidade Federal do Pará

A ilustração retrata duas crianças indígenas trajadas para festividades tradicionais. Arte: Sandro Schu

O qual posto na linha do con ito mais na simples convivência complementar, como
há de sobreviver: o Homem ou o Mito? acontecia anteriormente. Para esse quadro, a concep-
(In, Porantim, de Paes Loureiro. Poema. Excerto) ção política foi fundamental, já que antes as políticas
visavam preservar a Amazônia da cobiça internacio-

A
Amazônia saiu do isolamento por um movi- nal. A partir desta nova fase, o objetivo passou a ser
mento centrípeto, e não centrífugo. Uma re- o de explorá-la produtivamente, integrando-a ao con-
corrente e paradoxal situação de fronteira, em texto nacional e eliminando o caráter “primitivo” da
que o alargamento se faz de fora para dentro, con i- região. É daí que o novo tenta esmagar e substituir o
tando a cultura. Ela vem sendo incorporada por uma anterior, tornando a relação antagônica.
estratégia de ocupação, sem que possa de nir um
horizonte que seja de iniciativa de sua sociedade. O A especulação fundiária tem sido o gatilho da con-
resultado é a paisagem de cobiça, violência e saque, centração da terra que, à medida que esta vai para as
que têm sido as bússolas que orientam a expansão a mãos de poucos, expulsando centenas de milhares de
ela dirigida pelo grande capital. agricultores, pescadores ou índios de suas terras. São
legiões de pessoas que passam a vagar pelos campos,
No caso da Amazônia brasileira, a partir da década de garimpos e cidades em busca de sobrevivência, pros-
60 a relação entre o novo e o antigo passa a se esta- tituindo-se, trabalhando em condições de escravidão
belecer com base na oposição entre um e outro, e não ou semi-escravidão e inchando de miséria populacio-

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nal as pequenas cidades, onde faltam saneamento bá- políticas públicas; a progressiva perda da identidade
sico, moradia, escola, emprego e comida. cultural e desenraizamento de grupos.

As profundas alterações na sociedade amazônica, De fato, as políticas de desenvolvimento que vêm


certamente geradoras de impactos culturais irrecu- sendo aplicadas à Amazônia mostram menosprezo
peráveis, advêm de fatores que estão no conheci- evidente pelas culturas de caboclos, indígenas e das
mento já repertoriado em estudos sobre a região: a comunidades negras, simpli cando-as a expressões
ocupação concentrada da terra, há tempos em curso; ingênuas, primitivas e pobres, próprias de um tempo
a não delimitação das áreas apropriadas ao sistema social que deve ser substituído. É uma visão clara ou
de produção; as injustiças do modo de expansão da disfarçada, mas perceptível nos planos econômicos
fronteira agrícola, sem atenção a uma agricultura e culturais – consideram que essa espécie de subs-
autossustentável; o processo acelerado de desma- tituição cultural não signi ca nenhuma perda. Pelo
tamento; a destruição de seringais; o consumo con- contrário, abandonar a cultura tradicional da terra
siderável da oresta como carvão vegetal; a usura representa espírito de renovação, modernidade e ci-
dos projetos mínero-metalúrgicos quanto à multipli- vilização. Um processo de conversão dos atores des-
cação de empregos, agregação de valor à matéria- sa cultura em coadjuvantes ou espectadores de um
-prima e danos ao meio ambiente; o sucessivo plan- novo processo alienígena, uma vez que, segundo esse
tio de desertos; a falta de garantia às condições de tipo de ideologia, eles não representam o novo, nem
saúde, de resguardo da terra indígena e das áreas o moderno ou mesmo o civilizado.
de preservação ecológica; a presença de trabalho es-
cravo; a não observação de procedimentos no uso de Parece evidente que o problema atual da cultura
aparelhos condensadores na queima de amálgama amazônica contém uma dimensão pública funda-
de mercúrio na mineração, envenenando homens, mental, que se re ete não apenas na situação atu-
peixes e rios; a entrada desordenada de capitais na- al, mas também no seu futuro. O papel do Estado
cionais e internacionais, promovendo a violência, brasileiro, pela grande concentração de poder e de
con itos, migração interna e atração da externa de- decisão que acumulou, tornou-se de nidor desta
sorientada e sem condições de aculturação, na maio- dimensão. A contradição está no fato de que, afas-
ria dos casos gerando nomadismo populacional em tando a sociedade nas suas decisões e sem valorizar
busca de um destino; a destribalização do indígena; a cultura popular, o Estado imprimiu uma política
a desestruturação da vida e economia dos habitan- desenvolvimentista, que tem sido considerada uma
tes da gleba; a deterioração das relações sociais; o das principais causas das agressões a esta cultura.
menosprezo e o desrespeito pela diversidade, com- A história tem demonstrado que as culturas têm um
plexidade, fragilidade e superabundância da nature- substrato capaz de fazê-las resistir a situações dano-
za; o caráter frequentemente autoritário e lesivo das sas, mesmo sem sucumbirem. Assim, podemos espe-

Extração de madeira nativa da oresta amazônica. Arte: Sandro Schu

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Revista Amazônia Latitude Review

Onça-pintada caça jacaré no pantanal paraense. Arte: Sandro Schu

rar que a ação do Estado não seja tão determinante ção especial, que deve ser tratada com estratégias e
no futuro da cultura amazônica. Em primeiro lugar, cuidados especiais – no sentido de respeitar sua di-
vale considerar que a sociedade regional amazônica versidade e reconhecimento à imanência de sua di-
apresenta uma relativa capacidade de organização e ferença. e compreendam a fala amazônica como
de reação; e é nessa qualidade que tem repousado a um grande gesto de amor à toda a humanidade.
resistência que até agora a resguarda. A cultura amazônica é um manguezal cultural de si
mesma e do mundo.
No entanto, os impactos que essa cultura vem so-
frendo, corolário da ação das políticas que a ela se A visão hiperbólica sobre a região, desde os primei-
destinam, ainda não deram tempo e fôlego para que ros cronistas viajantes, e anterior a eles, assim como
o segmento caboclo/indígena – que é majoritário, a dos intérpretes da atualidade, tem sua razão de ser
mas não hegemônico – reelabore sua capacidade decorrente das reais grandezas da Pan-Amazônia.
de organização num nível crítico e político que a Nela estavam, segundo o que a literatura universal
situação atual exige. E como o progresso tem sido consagra, El Dorado, o reino do ouro; a civilização
con itivo, envolvendo a perda da posse da terra, a fantástica de El Paititi, secreta sociedade continua-
desorganização do sistema de vida, a violência, o ba- dora dos Incas; o País das Amazonas, lugar da re-
nimento, a migração forçada e até a morte, a socie- encarnação de mitos ancestrais e universais; uma
dade permaneceu atônita após os anos 60, perdendo selva majestosa; uma oresta tropical exuberante e
os referenciais de sua história e sem apresentar uma impenetrável; uma oresta virgem onde reina uma
reação proporcional à necessidade que essas trans- natureza insubmissa; uma paisagem mágica de obs-
formações exigiam. Assim, houve uma perda cultu- táculos mitológicos, habitada por seres prodigiosos;
ral considerável decorrente dessa fase. o refúgio de reinos maravilhosos; síntese contradi-
tória de inferno e éden; pulmão do mundo; espaço
Tudo tem me levado a crer que a cultura das Ama- de riquezas incalculáveis; natureza cheia de cidades
zônias, especialmente a brasileira, onde nasci, vivo e encantadas; realidade onde acontece a coincidência
mergulhei meu coração e minha poesia, não é ape- de opostos entre o real e o imaginário, onde a vida
nas mais um caso de diversidade a ser defendida e visível convive com as encantarias, que são as mora-
preservada como vida na voracidade globalizadora e das dos deuses das crenças indígena e cabocla; há-
mercadológica do mundo atual, mas a cultura ama- bitat de homens cobertos de ouro; signo verbal dos
zônica é uma diversidade diversa no conjunto das mais universalmente conhecidos; palavra individu-
diversidades do mundo. Isso lhe confere uma situa- ada como valor de sonho e utopia, consagrada pelo

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Ribeirinho rema próximo à sua comunidade. Arte: Sandro Schu

marketing; sedução recorrente no imaginário dos Octávio Ianni. Diante dela não se tem a sensação do
habitantes do mundo. todo acabado. Há o reconhecimento de se estar em
face de algo que aparece diante de nós como uma
Além de todas essas referências magní cas na cultu- concreta quimera, o kantiano sublime da natureza.
ra dos homens, muitas coisas também são desmedi-
das nos planos cientí co e geográ co. O Amazonas é A cultura amazônica é uma rara reminiscência de cul-
o maior rio do mundo, tanto em comprimento como tura mítica marcada pela dominante poética do ima-
em volume d’água; a bacia amazônica é a maior rede ginário, como eu a venho caracterizando em outros
de rios do Planeta Terra; Marajó é a maior ilha u- estudos. Original cultura mítica sobrevivente neste
vial do mundo; essa mesma bacia concentra grande terceiro milênio, onde ainda se constata uma inces-
parte da água doce que existe, sendo 20% do mun- sante produção de narrativas fabulosas na oralidade
do e 80% do Brasil; contém o maior volume de água que caracteriza a sociedade regional amazônica. São
doce disponível no globo; nela está situada a mais os deuses de uma teogonia cotidiana e operativa.
extensa e a mais rica oresta tropical do planeta; Para abrigá-los, os caboclos ribeirinhos inventaram
contém de 4 a 5 mil espécies de árvores; em apenas uma singular paisagem ideal, um lugar ameno situ-
um hectare são encontrados entre 100 e 300 espécies ado no fundo dos rios ou nas brenhas das orestas.
vegetais diferenciadas; há em média 300 mamíferos Trata-se das encantarias, lugar onde moram os seres
diferentes; mais de 2 mil tipos de peixes; mais de 60 encantados, os deuses e personagens do imaginário
mil espécies vegetais; as reservas de ferro chegam a amazônico, decorrente do fertilíssimo devaneio do
18 bilhões de toneladas, e as de manganês também homem do lugar, diante do correr das águas doces
são estimadas em 60 mil bilhões de toneladas; já as de seus rios. A convivência cotidiana com seres fabu-
de cobre montam a 2 bilhões de toneladas; as reser- losos de seu imaginário passa a condicionar um sen-
vas de ouro estão entre as maiores do mundo; além tido contemplativo de beleza na convivência dessa
de sal-gema, caulim, calcário, diamante, cassiterita, relação dos homens entre si e deles com a natureza,
gás natural e petróleo. que, inclusive, estudei especi camente em Cultura
Amazônica – Uma poética do imaginário”. Percebo
Diante de tantos dados incomensuráveis, até será nos fatos dessa cultura todo um universo imaginal
cabível dizer-se: a Amazônia é uma hipérbole de que aciona, além de uma estética, uma ética que re-
Deus! Ninguém, diante dela, pode se deixar afundar ordena as relações sociais, a partir da maior ou me-
nas areias movediças da indiferença. A região é um nor relação de crença com essa realidade. Uma rea-
mito ainda não estruturado, segundo o sociólogo lidade diante da qual a melhor forma de agir é fazer

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uma suspensão da descrença. Além disso, é uma cul- de diferenças; e é por força desse caráter diverso de
tura que tem produzido amplos e originais processos sua realidade intercorrente entre o real e imaginário,
de conhecimentos no campo da medicina natural, de das lutas, experiências e do destino dos homens nela
formas alternativas de trabalho, amor, sonho, cama- con gurados, que lhe reivindico a condição de um
radagem, solidariedade, compreensão do homem e caso especial de diversidade.
da vida. E quase tudo isso ainda continua à espera
de fortalecimento concreto, reconhecimento concei- À medida que ela for encarada como uma diversidade
tual, recriações literárias, con gurações plásticas, re- diversa, com suas diferenças internas e em relação ao
gistros re exivos, sentimentos de mundo. Permane- mundo, passando a ser sustentada por um amplo pro-
ce à espera de reconhecimento e respeito como fonte jeto político-cientí co que a reconheça como tal, pode
de saber e sentimento, e não apenas como matéria haver uma saída. Não como manutenção de seu isola-
a ser consumida ou riqueza expropriada. Diante do mento nem passadismo, mas como integração ou re-
processo globalizador e mercadológico que avança lação transacional com o planeta, processo pelo qual
pelo mundo, tudo na Amazônia parece estar em ris- existirão trocas sem que um desapareça no outro. O
co de perecer, não mais destruído por mãos bárbaras sentido transacional que aqui se coloca é o sentido de
de guerreiros conquistadores, mas como consequên- transação que se encontra em uma das notas de aula
cia da racionalíssima decisão de ampliação merca- do professor Juan de Mairena, heterônimo do poeta
dológica globalizadora, acionada pelo grande capital espanhol Antonio Machado, “Lo inevitable es ir de lo
e pela comunicação, de um lado, e pela permanente uno a lo otro, en esto como en todo”. Transacional é o
ausência de projetos políticos que sustentem a sua movimento de ir e vir de um lado a outro, sem que
diversidade, de outro. cada qual esteja acima ou abaixo de sua parceria.

Todos esses exemplos repertoriados sem preocu- Talvez o sentido transacional de trocas sem anulações
pação sistemática é que tornaram a Amazônia au- de um pelo outro, em face da fatalidade globalizadora
reolada na con guração mítica de uma verdadeira e mercadológica do mundo atual, seja a possibilidade
ilha de sonho no mundo, conferindo-lhe um sen- de a Amazônia garantir a sua diversidade diferente.
tido aurático. A aura, como sabemos desde Wal- Desse modo, ela poderá manter-se, como diversidade
ter Benjamim, impregna a realidade de um caráter diversa que é, na relação diferenciada de uma digna
único, irrepetível, insubstituível, riqueza íntegra e transação com a globalização comunicacional e mer-
auto-con gurada, imagem que oscila entre o próxi- cadológica, mantendo a integridade duradoura da
mo e o distante, na medida em que dá ao próximo cultura, sustentada por um projeto político a partir de
um sentido de distância e ao distante a dimensão sua diversidade. Uma fala da Amazônia e não apenas
de proximidade. Sendo assim, a percepção de uma uma fala sobre a Amazônia. E que a Amazônia seja o
Amazônia auratizada pelo imaginário dos homens locus de enunciação dessa fala.
ou acionada politicamente pelas organizações não-
-governamentais que tentam defendê-la, por exem- Só pela a rmação e consagração do pluralismo no
plo, contribui na reivindicação para ela o respeito e a mundo é que a Amazônia – componente desse plu-
atitude exigida a tudo o que tem a dimensão essen- ralismo, na condição de uma diversidade diversa –
cial da aura. Torna-se uma espécie de obra-prima do poderá deixar de ser vista como campo de martírios
mundo. Nessa dimensão, a Amazônia assemelha-se na vida ribeirinha, no espaço agrário, da terra dos
a uma Capela Sistina a céu aberto, objeto que pos- índios, olhada na condição de permanente estado
sui aura de culto devocional. Porém, vista de outro comatoso, como quem contempla um velório anteci-
ângulo, permanece como o eterno El Dorado da ri- pado. No entanto, ao contrário, que ela possa conti-
queza, objeto explícito do desejo e da cobiça. Sendo nuar tendo a consagração de sua vida e da vida que
assim, creio que a cultura amazônica, entendendo a ela pode multiplicar na humanidade do mundo.
cultura como patrimônio construído e construtor do
homem em seu trajeto antropológico, não é apenas João de Jesus Paes Loureiro é poeta e professor de Estética, Fi-
gurante em um quadro geral das diversidades no loso a da Arte e Cultura Amazônica, na Universidade Federal
mundo globalizado; é a cultura que representa uma do Pará. Mestre em Teoria da Literatura e Semiótica pela PUC/
diversidade de integridade única em seu universo UNICAMP, São Paulo e Doutor em Sociologia da Cultura pela
Sorbonne Paris, França. Também exerceu as funções de Secre-
complexo e seminal, razão pela qual eu a considero tário de Estado da Cultura, Superintendente da Fundação Cul-
uma diversidade diversa. Uma diversidade diferen- tural do Pará, Secretário de Estado da Educação e Secretário de
te pela particularidade de seu conjunto integrado Educação e Cultura de Belém, capital do Estado.

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Darcy Ribeiro, renomado antropólogo, escritor e político brasileiro, com integrantes do povo indígena Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul, em 1947. Foto: Berta Ribeiro

A virada ontológica e
a Amazônia: um diálogo
Bruno Caporrino - Universidade Federal do Amazonas
Nick Kawa - Ohio State University
Túlio Zille - John Hopkins University
O diálogo abaixo, entre os pesquisadores Bruno Caporrino, Nick Kawa, e
Túlio Zille, ocorreu ao longo de várias semanas do segundo semestre de 2017.
Nele, os pesquisadores discutem não só a relevância da virada ontológica nas
ciências humanas para o meio acadêmico, como também suas possíveis conse-
quências para a política, com especial atenção para a Amazônia.

T
úlio: Caro Nick, há alguns meses, entrei em “corpus ontológico?”). Então, começamos um diálo-
contato com o Bruno por causa de uma en- go, que espero manter por muito tempo. Bruno me
trevista que ele deu há dois anos sobre desen- falou recentemente da sua palestra na UFAM “Ama-
volvimento e cosmovisão na Amazônia. Achei muito zônia no Antropoceno - Observações, questões e de-
interessante a maneira como ele aborda os conheci- sa os e quando vi que você a postou em seu blog,
mentos locais como “corpus epistemológicos” (acho li e mandei alguns comentários pra ele, os quais ex-
que, agora, talvez diríamos que fazem parte de um ponho aqui.

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Primeira Missa no Brasil, quadro de Victor Meirelles (1860). Foto: Divulgação

Alguns dos argumentos que você propõe são mui- entrevistados que moram na região falam dos seres
to importantes, principalmente para pesquisadores da natureza como agentes com os quais é, inclusive,
como eu, que estão fora [do país] e tendem a man- difícil lidar), mas também é parte do problema que
ter visões equivocadas sobre a região. Por exemplo, criou a crise ambiental em que vivemos, que é essa
você ressalta que a Amazônia, antes de ser e ter sido mentalidade moderna cega às agências não-huma-
periférica ao desenvolvimento capitalista, participou nas. Concordo plenamente com esse argumento.
ativamente dele - vide o ciclo da borracha e como
foi indispensável para esse desenvolvimento. Outro Na verdade, acho que muitos dos trabalhos que en-
ponto importante é a ideia, também errônea, de que, volvem o Antropoceno nas Ciências Humanas já es-
na amazônia, as pessoas são ou guardiãs do meio tão caminhando para esse lado, que é o de reconhe-
ambiente ou destruidoras dele. Por último, um dos cer que se trata de um período em os seres humanos
mitos mais duradouros é o de que há pouca urba- ampliaram “a capacidade de alterar a vida no planeta,
nização na região e, por isso, às vezes se concentra mas não necessariamente o domínio sobre ela”. Assim
mais na degradação do meio ambiente pelos grandes sendo, (re)conhecer, aprender e/ou valorizar outras
projetos de mineração, hidrelétricas, agronegócios, formas de se relacionar com o não-humano será útil,
etc., do que nos problemas trazidos pela expansão para deixarmos o antropocentrismo moderno, que
urbana desordenada. sustenta os modos de vida que originaram a crise
em que estamos.
Pelo que eu entendi, seu principal argumento é de
que há formas distintas de conhecimento ecológico Uma pergunta que eu gostaria de fazer é a seguinte:
na amazônia, devido ao contato direto da popula- você fala de levarmos a sério as mitologias e metá-
ção com o meio ambiente e que estes conhecimen- foras dos povos da região, para podermos visualizar
tos sustentam uma visão mais ou menos oposta uma ecologia alternativa e necessária no momento
à do Antropoceno. Na visão deste, os homens são atual (por exemplo, você diz “embora a cobra grande
agentes, que têm quase total poder de manipulação (serpente do folclore amazônico) possa não existir da
sobre a natureza. Você sugere que essa visão não é maneira biológica como o sucuriju, é uma metáfora po-
somente equivocada (por exemplo, muitos de seus derosa da contínua evolução da paisagem amazônica e

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sua agência”). Na medida em que começamos a levar o que Foucault, Latour (também tenho culpa, veja
a sério a virada ontológica nas Ciências Humanas, aí em cima!) ou Deleuze conseguem explicar sobre a
como evitamos a desvalorização que certos termos vida. A loso a da vida vem de muitas fontes, e por
como “mitologias” e “crenças” costumam criar (ouve- que não dos ribeirinhos da Amazônia?
-se dizer que mitos “não são cientí cos o su ciente”,
“são a visão de uma cultura em particular e não faz Bruno: Eu ousaria arriscar uma resposta [à pergun-
sentido fora de seu contexto”, etc.)? Em outras pala- ta de Túlio]. Na verdade, ela já foi construída, e de
vras, é possível falarmos da cobra grande, no meio maneira magistral, por Claude Lévi-Strauss ao longo
acadêmico, sem explicá-la como mito? Acho que ain- de toda sua obra e encontra-se, na forma de um co-
da não consigo formular essa pergunta adequada- rolário, nos quatro tomos das Mitológicas. Mais do
mente, pois a linguagem que temos ao nosso alcance que o relativismo proposto por Franz Boas e levado
tende a recriar essas separações. ao grau máximo por Cli ord Geertz, que são muito
importantes, acredito que a tese de Lévi-Strauss é
Nick: Confesso que eu ainda estou lidando com o mais profunda e abrangente, sobretudo, porque ela
mesmo problema. Até esse trecho que escrevi sobre refuta, por assim dizer, a noção de cultura, na forma
a cobra grande me deixa um pouco inquieto. an- como o senso comum a entende e maneja.
do falo que a cobra grande é uma metáfora, parece A polaridade natureza/cultura constitui pedra de
que estou tentando traduzir esse conceito para um toque da epistemologia ocidental moderna. A no-
público que tem di culdade de aceitar a cobra gran- ção de cultura é muito associada, especialmente no
de como uma realidade em si e pronto. Tem gente, bojo do pensamento ocidental moderno, àquilo que
como Bruno Latour, que fala que devemos adotar os homens criam em sua passagem da natureza à
uma “ontologia plana” ( at ontology), no qual tudo humanidade. Assim, há algumas homologias decor-
existe, não importa se estamos falando do papai rentes das intersecções dessa polaridade no seio do
noel, uma gota de sangue, o neoliberalismo, ou o pensamento ocidental:
aquecimento global. Do que eu entendi desse ponto
de Latour, mesmo se não tem um cara que se chama
papai noel que mora no polo norte, não podemos ne-
Cultura versus Natureza
gar que existem bilhões de imagens dele nesse mun- =
do, contos sobre o que ele faz e como se veste, etc.
Não é uma questão de existir ou não… talvez seja
Civilização versus barbárie
melhor perguntar: quais são os efeitos dessas várias Agente (ativo) versus inerte (passivo)
formas de papai noel no mundo?
Consciente versus inconsciente
Voltando pro assunto, cobra grande é uma coisa nes- Evoluído versus primitivo
se mundo, ou desse mundo. Biodiversidade também
é. Poucas pessoas nos Estados Unidos, onde moro, Racional versus irracional
negariam a realidade da biodiversidade; mas por Dominante versus dominado
quê? A biodiversidade também é um certo tipo de
cção, no sentido original do latim uma coisa in-
ventada, criada, formada. Desde que as revoluções epistemológicas advindas
com a renascença ganharam contornos, como bem
A virada ontológica está me ajudando a reconhecer ilustra a passagem do cânone do regime de conhe-
o grande problema que existe, quando a gente nega cimento ocidental moderno, proposto por Bacon
a existência da cobra grande, mas aceita a existência (1651-1629) em seu “Novum Organum” (publicado
da biodiversidade, ou, em outras palavras, quando a em 1620), passando por Giamba ista Vico (1668-
gente insiste em distinguir entre “conhecimento” e 1744) e sendo relido e retomado de maneira radical
“crença”. “Crença” é, muitas vezes, uma forma pejo- pelo racionalismo de René Descartes (1596-1650),
rativa de falar dos conhecimentos, a sabedoria, dos a polaridade (até então equilibrada no seio das so-
outros. Acho que precisamos elevar os conceitos “dos ciedades vetero ocidentais) passa a uma crescente
outros” e colocá-los no mesmo nível dos conceitos radicalização.
ou teorias acadêmicas – este é um passo importan-
te para começarmos a mudar a conversa; ou, pelo É importante que compreendamos isso, ao observar-
menos, ampliá-la. Na antropologia, canso de ouvir mos o percurso histórico da epistemologia ocidental

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ganhando novos contornos com a instituição do re- classe social, seja dito) no lugar antes ocupado por
gime de conhecimentos cientí co, desde que Bacon deus. Paulatinamente, os regimes de conhecimen-
assenta a pedra fundamental. tos cientí co e losó co (sempre muito próximos e
quase indiferenciáveis) passam a ser usados politica-
Todavia, é crucial pontuar que a pretensão de Ba- mente para legitimar a Conquista etnocida do conti-
con não era inaugurar um novo regime de conhe- nente americano. Junto ao “discurso do método para
cimentos, fazendo, como se pensa, com que a Ra- conduzir à Razão e encontrar a Verdade nas ciências”,
zão triunfasse aos mitos, à religião, às crenças e ao título da magna opus de Descartes, operam-se as de-
pensamento anímico. Esta foi, na verdade, a leitura corrências dos intensos debates entre Las Casas e
que se fez de sua obra, que consiste basicamente Sepúlveda, conhecida como controvérsia de Vallado-
na fundamentação dos regimes de verdade na ex- lid: teriam os povos ameríndios Razão, Consciência
periência controlada e passível de reprodução (para e, portanto, seriam eles humanos?
que fosse possível a contestação dos dados) e do
método, que deveria ser meticulosamente descrito, Era interessante, política e economicamente, provar
a m de assegurar o estatuto de verdade do conhe- que não, de modo que o regime epistemológico oci-
cimento cientí co. dental foi colocado, uma vez mais, à serviço do deba-
te e manipulado para atender a interesses políticos
Bacon, que se arriscava frequentemente no terreno e econômicos, impetrando não um genocídio contra
da alquimia, não a renega, nem à religião e aos mi- os povos ameríndios, mas um longo e sistemático et-
tos: não é isso que importa, mas sim conduzir um nocídio. Como bem de ne Pierre Clastres:
experimento de maneira controlada, descrevendo
metodicamente cada etapa do processo, de maneira O etnocídio é a destruição sistemática dos modos
a torná-lo reprodutível e, por meio da repetição, che- de vida e pensamento de povos diferentes daqueles
gando-se aos mesmos resultados, auferir a verdade. que empreendem essa destruição. Em suma, o geno-
cídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio
Entretanto, a revolução copernicana acabou colo- os mata em seu espírito [ ] O etnocida, em contra-
cando o ideal renascentista de homem ocidental partida, admite a relatividade do mal na diferen-
(simbolizado por um homem de uma determinada ça: os outros são maus, mas pode-se melhorá-los

O casarão conhecido como Aldeia Maracanã já foi o Muse do Índio, coordenado por Darcy Ribeiro. Abandonado por cerca de 30 anos, foi reocuoado por índios vindos
de todo o Brasil, fazendo dali um centro cultural de resistência simbólica indígena. Foto: Elisa Mendes

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obrigando-os a se transformar até que se tornem, se ponto do fazer-se humano consistir, epistemologica-
possível, idênticos ao modelo que lhes é proposto, mente, num negar-se animal e, portanto, dominar a
que lhes é imposto. natureza (à qual os povos ameríndios estão associa-
dos), encontra seu paroxismo: a teleologia de Georg
A “descoberta” da América não teria ocorrido sem Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831) serve aos in-
a Revolução Copernicana e sem a Renascença. Mu- teresses coloniais que, por sua vez, alimentam a fera
danças na episteme permitiram radicais transforma- da Revolução Industrial.
ções na organização social e, consequentemente, a
primeira Revolução Industrial eclodiu. O que hoje é O movimento positivista retoma os os de Ariadne
a Europa, até então repleta de pequenas populações lançados por Bacon, retorcidos por Descartes e re-
diferentes que, à moda dos povos ameríndios, te- tesados por Immanuel Kant (1724 1804) a m de
ciam alianças e consorciavam guerras, cultuavam o proceder a uma revolução epistemológica que era,
equinócio e festejavam, cada qual a seu modo, a che- de certa forma, clamada pelo ocidente moderno: a
gada da primavera, realizando pensamento anímico, m de suprir a demanda europeia durante a Revo-
sucumbe às trevas medievais e renasce racional. lução Industrial, colonizar era preciso, mais do que
Rios passam a ser canalizados. Barrados. Colheitas navegar. No entanto, após os avanços no que tangia
passam a ser feitas sem os rituais. Então, logo após o à querela de Valladolid quanto à alma (e cultura) dos
triunfo desse movimento epistemológico, o contato povos ameríndios e africanos, como justi car, epis-
com os povos ameríndios fornece às potências políti- temologicamente, a colonização e, portanto, o etno-
cas e econômicas em cena o poder elemento a subju- cídio e o genocídio, sendo que, dotados de cultura e
gar: animistas ora endêmicos, ora pecaminosos, mas alma, agora esses povos eram humanos?
sempre primitivos, sempre associados ao passado do
próprio Ocidente. Ainda, como fazer isso de maneira cientí ca, já
que o paroxismo positivista almejava, de maneira
O triunfo da Razão sobre as Trevas, a negação do doentia, uma objetividade e um grau de Verdade
pensamento religioso e do poderio da Igreja Católi- por meio da ciência, que sequer Bacon e Descartes
ca que ocupam o ocidente durante o Renascimento almejaram, sobretudo porque saber era, mais do
encontrará no sistema político emergente, nos no- que nunca, poder? Ao clamar para si a imagem de
vos modos de produção e nos efeitos da revolução seres superiores, os homens ocidentais precisavam
industrial, elementos para continuar esse processo fazê-lo cienti camente. Foi acionando a polarida-
em busca da Razão, custeada com a exploração et- de natureza versus cultura, justamente, de maneira
nocida dos povos ameríndios, sendo o etnocídio pe- objetiva e portanto cientí ca, que surge mas te-
renemente impetrado contra os povos ameríndios o orias evolucionistas e racistas cujo sentido estava
sustentáculo dessa revolução epistemológica. em produzir um estatuto de verdade cientí co e ob-
O triunfo da Razão sobre as trevas encontra no Ilu- jetivo a valores morais e culturais: a teleologia, que
minismo seu auge. Acompanhado de fortes convul- não se encontra na obra de Charles Darwin (1809-
sões sociopolíticas, que eclodem de maneira inegá- 1882), pressupunha que a evolução consistisse em
vel quando das revoluções burguesas. O Iluminismo aperfeiçoamento, melhoramento.
visa dissociar os povos ameríndios do polo passivo:
natureza. Mas, com a melhor das intenções, falha Teleológica, essa acepção pressupunha a evolução
porque não consegue-se enxergar o mundo para como um caminhar rumo a um modelo de huma-
fora dos valores que o moldam: emerge um Bom Sel- no. Já sabemos de que modelo lançaram mão as
vagem que, embora tenha cultura, é ainda afeito à empreitadas evolucionistas. O neocolonialismo, que
natureza, dela dependente, e, em todo caso, ainda retalha o continente africano, parecia demandar te-
primitivo, involuído. orias calcadas em raça e que permitissem à Razão, à
consciência ocidental moderna, colonizar, subjugar,
Atribuir-lhes cultura, que é um movimento que co- assassinar, sem culpa, pois o neocolonialismo não
meça aí, não é descolonizante e nem emancipatório: assumia-se como um movimento aniquilador, mas
não poupa aos povos ameríndios o infortúnio terrí- sim civilizatório. Era, basicamente, um favor presta-
vel de serem vítimas do etnocídio. É no século XIX, do pelo Ocidente aos povos que, na escala evolutiva
no entanto, que essa busca pela Razão, enquanto ne- e teleológica, ainda estavam no plano da natureza e,
gação da natureza, que passa a ser inerte e inanima- portanto, do irracional, do infantil, do involuído, do
da e, por isso mesmo, dócil, passiva e dominável, ao bárbaro, do passivo, dominável, domesticável.

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Todavia, a disputa com esses povos, nesse contexto, Parece, portanto, que a cultura (roupas, penas colo-
confrontou uma vez mais a episteme ocidental com ridas, pinturas, cultura material, basicamente) seria
questionamentos e tais questionamentos passam a uma dadivosa concessão que o Ocidente moderno
confrontar a empreitada neocolonial com incômo- faz a esses povos que, até os dias atuais, devem ser
das dúvidas. Resulta disso a necessidade de operar civilizados, humanizados, integrados, educados: de-
como eminência parda e, portanto, compreender vem ser resgatados do passado, que representam tal
os con itos internos e a organização social desses qual fósseis vivos, para o presente. Devem ser edu-
povos, a m de hipertro á-los e acirrá-los, de modo cados, pois nada sabem, já que cultura signi ca um
que, digladiando-se uns contra os outros, divididos, marcador “politicamente correto” de diferenças acei-
fosse possível imperar. Emerge, nesse cenário, a an- tas em nome do politicamente correto.
tropologia enquanto ciência (pois carecia-se de uma
ciência para justi car esses atos). Há uma expressão popular, muito usada pelas crian-
ças em suas brincadeiras, em algumas regiões do
Primitivos, embora agraciados com o estatuto de hu- Brasil: “esse menino é café com leite”. Aquele meni-
manos, os povos tribais foram enquadrados na escala no, geralmente mais novo ou frágil que os demais do
evolutiva, tiveram seus costumes primitivos estuda- grupo, é por este aceito. Todavia, devido à sua pouca
dos a m de melhor encaixá-los nos devidos estágios idade, ou pouca capacidade de interagir adequada-
dos escaninhos da saga ocidental rumo a seu próprio mente como os outros, é reputado como café com
ideal de si mesma. Dotou-se, com a emergência da leite: pode ser pego no jogo de pega-pega, mas isso
antropologia, os povos tribais de cultura. Contudo, não implicará em multa ou prenda, pois ele é “café
dado o mau uso que se deu à esses pares no bojo da com leite”.
onda positivista, este processo que culminou com a
ciência servindo aos interesses do colonialismo. Por Basicamente, inimputável, que é como são conside-
isso, há um problema com esse conceito; a meu ver, rados os povos indígenas pelo Estatuto do Índio, Lei
ele ainda é carregado de acepção folk. 6.001/1973, essa aberração ainda em vigor, a despeito
de ser legislação ordinária, portanto, infraconstitu-
Índios têm cultura. Ribeirinhos têm cultura. e cional, e de a Constituição Federal ter sido promul-
bonitinho não? Mas nós, Ocidente Moderno, des- gada faz 30 anos. Epistemologicamente, isso é mui-
de Francis Bacon, Descartes e Darwin, temos cul- to forte. É estrutural, mais do que contingencial. Ao
tura e ciência. Epistemologia e conhecimento para conceder que povos tradicionais têm cultura, estes
além da cultura. Isso não é algo inerente ao con- são considerados humanos. Humanos café com leite,
ceito de cultura de Geertz, mas é que, como o ter- vá lá, mas humanos. Batem seus tambores, fazem
mo é partilhado pelo “senso comum”, o conceito suas danças… é meigo vê-los, uma vez ao ano, tocan-
de Geertz perde força, porque a acepção comum do. Usam tangas, e isso é valorado positivamente,
para o termo é essa: índios têm cultura. Certa vez, até que suas terras quem a meio do caminho do
em um debate com professores da rede pública de Progresso, da evolução. Então, esse fóssil vivo, que
ensino em Macapá, Amapá, ouvi a seguinte decla- já não usa tangas, mas sim calções, e tem smartpho-
ração: “temos que respeitar os índios, suas lendas, nes, deve ser eliminado, pois era um humano café
mitos, trajes diferentes, tradições ”; “mas”, comple- com leite, que parece ter perdido toda sua graça ao
tei ironicamente, “nós nós levamos o homem à lua tirar a cultura - sobretudo material.
e fazemos ssão nuclear”, ao que a interlocutora
concordou prontamente, com um feliz sorriso de Tais operações epistemológicas não são prerrogativa
satisfação, para meu desespero. de políticos mal intencionados, ou do homem da rua
que opera com o senso comum. Com tudo isso, o que
Parece-me que, atualmente, a acepção que se dá ao eu gostaria de dizer é que o etnocídio é sistemático e
termo cultura tem sido benevolente e caridosa e, por encontra-se fundamentado nos tijolos mais íntimos
isso mesmo, não menos malé ca. Cultura seria, hoje, e primitivos do construto epistêmico ocidental, o que
algo como um verniz, uma camada de pálida huma- traz para a antropologia um desa o muito maior do
nidade: iguais à nós , os indígenas seriam diferentes que aquele previsto por Claude Lévi-Strauss, em seu
por usarem roupas e pinturas corporais diferentes. clássico “Raça e História”, de 1952.
Iguais em essência, diferentes em aparência mas, ao
mesmo tempo, inferiores quando se trata de direitos O grau de alojamento epistêmico disso ca um pou-
políticos ou de conhecimentos. co mais claro, quando consideramos o que se tem

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Manifesto de resistência nas paredes da Aldeia Maracanã. Foto: Elisa Mendes

feito, ultimamente, no campo das ciências biológi- Conte-nos sobre onde há açaí e onde há bacaba,
cas. Como estamos em uma conversa meio informal, apontando no mapa.
acho que posso fazer uma provocação: há o termo
etno , conhecido de todos. É um pre xo que os ecó- Lévi-Strauss, de braços dados com Latour, ajudam a
logos, geógrafos e biólogos adoram empregar e é percebermos melhor o grau de enraizamento disso,
muito curioso, para mim, ver como se usa. Etnoma- se conseguirmos balancear a relação. Não adianta
peamento. Etnozoneamento. Etnobiologia. Etnoeco- tentarmos elevar os regimes de conhecimento in-
logia. O “etno” está associado ao folk (folk taxono- dígenas ao estatuto de verdade do conhecimento
mies, gosta de dizer a biologia). cientí co, se não seguirmos Latour, que nos per-
mite “baixar um pouco a crista” da epistemologia
No entanto, cultura é algo que todos têm. Ciência… ocidental, que sempre foi tão bela e poética, míti-
ah, ciência, só nós, ocidentais. Ao fazer etnomape- ca e mitológica, até a chatice do surto positivista
amentos, ensinam (verticalmente transferindo sa- esvaziar tudo isso. O primeiro caminho seria livrar
beres e técnicas) aos índios a usarem seus saberes a epistemologia ocidental dos traços positivistas: a
(e não sua ciência, sua cartogra a, sua geogra a). despeito das críticas que jocosamente teci aqui, à
Bons selvagens são também bons mateiros. Bons guisa de exemplos quanto às etno , tais movimen-
conhecedores, tradicionais, das matas, das ores- tos são muito relevantes no que se refere a postular
tas, geralmente associados a uma imagem new age e almejar um novo paradigma para o fazer cientí -
de exóticos avós, que muito conhecem por experi- co, que passa a tornar-se mais e mais simpático aos
ência. Têm cultura, mas não têm ciência. Como os regimes de conhecimentos não-ocidentais.
avós dos próprios pesquisadores, conhecem lendas
e mitos, não a verdade. Não possuem de si mesmos Para tal, bastará, acredito, continuar fortalecendo o
um regime de conhecimento, uma epistemologia diálogo entre as hard sciences ocidentais, de maneira
própria. É necessário dar-lhes ferramentas que só rigorosa, cientí ca mesmo, e os regimes de conheci-
a Ciência e, portanto, só o Ocidente teriam: GPSs, mentos indígenas, com foco na superação dessa assi-
sistemas de informação geográ ca, satélites vovô, metria, que teima em existir por recair nos recônditos
não ligue para isso, pois o senhor não entenderia. desvãos do pensamento cientí co desde o positivis-

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mo. A Filoso a da Ciência, de mãos dadas à etnologia, antropologia se impôs ao longo de sua crise por ser
pode muito contribuir por possibilitar uma avaliação mais so do que hard science e se entender, precon-
antropológica (distanciada) do pensamento cientí co ceituosamente, como menos cientí ca ou menos
ocidental, tomando-o como fruto de construtos histó- rigorosa”. Seguir a pauta dos índios, pensar segundo
rica e politicamente desenvolvidos. seus próprios termos, eis a missão da Virada Ontoló-
gica. O interessante é que nesse processo, justamente
Feitas essas pontes e superadas essas barreiras, acre- a cisão natureza versus cultura, fundante da episteme
dito que serão potencializados os imensos e verti- ocidental, foi a primeira a ser virada de ponta cabeça.
ginosos avanços, que a etnologia ameríndia atingiu
com a Virada Ontológica. É no tema das Mitológicas, Nesse sentido, avalio que o seminal artigo intitu-
do Pensamento Selvagem, da antropologia estrutural lado “Atualização e contra-efetuação do virtual na
de Lévi-Strauss, que calcam-se as investigações e socialidade amazônica: o processo de parentesco”,
resultados mais avançados da etnologia ameríndia, publicado por Eduardo Viveiros de Castro em 2000,
que encontram na tese do Perspectivismo Ameríndio torna-se ainda mais ilustrativo, pois é no processo
seu o condutor. de a nização que se foca nessa síntese de todos os
avanços que compõem a Virada Ontológica, e não
Associada ao brilhante movimento que a antropolo- propriamente na cosmologia, permitindo in nitos
gia pós-moderna idealizou e realizou quanto à au- desdobramentos a partir de uma poderosa síntese,
toridade etnográ ca (e a discussão de George Mar- que possibilitam uma compreensão ainda mais acu-
cus, James Cli ord, Renato Rosaldo ainda continua rada do que Viveiros de Castro e Déborah Danowski
a surtir maravilhosos efeitos), a Virada Ontológica é propõem em “Há mundo por vir? Ensaio sobre os
o único caminho para a compreensão dos regimes de medos e os ns .
conhecimento e verdade ameríndios e não-indígenas
segundo seus próprios termos, superando os limites Creio, en m, que o movimento vem nos dois senti-
impostos pelo regime de conhecimento ocidental. dos: de um lado, elevar os regimes de conhecimen-
to tradicionais à Regimes de Verdade, libertando os
Entender os índios por seus próprios termos, seguir povos não-indígenas do pesado e caritativo jugo da
os dados dos índios, e não os nossos: eis a pedra de cultura, de um lado e, de outro, livrar a antropologia
toque da Virada Ontológica. Isso só será possível me- desta busca residual por um “estatuto de verdade”,
diante a superação da pauta, da agenda, que a própria que seria chancelado por uma visão bastante arcai-
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ca, inclusive, do que seja regime de conhecimento questiona a relação de dominância de um deles com o
ocidental moderno. É em torno de uma disputa epis- resto. Outro problema é que, talvez, o mundo de uma
temológica, uma guerra silente, como soam as guer- “ at ontology” continue um só, unidimensional.
ras xamânicas, de que se trata, a nal.
Nesse movimento crítico de elevar outros conheci-
Túlio: Trocando em miúdos, entendi o seguinte: Nick mentos e/ou de aplacar o conhecimento moderno,
propõe um diálogo sobre a importância de se elevar acho que podem ocorrer duas coisas que merecem
outros conhecimentos ao mesmo patamar ontológico debate. No primeiro caso, o da elevação, corremos
do meio acadêmico, inspirado na ideia de “ at ontolo- o risco de simplesmente demonstrar, por exemplo,
gy” de Latour (preciso urgentemente me familiarizar como tal e tal conhecimento também possuem co-
mais com o trabalho de Latour). Já Bruno argumenta erência epistêmica nos moldes da ciência moderna
que não basta elevar os outros conhecimentos ao ní- (quer dizer, nos moldes da narrativa que a ciência
vel de regimes de verdade, pois é necessário continu- moderna cria de si); no segundo caso, procura-se
armos a “baixar a bola” das ciências/Academia. demonstrar como a ciência moderna também pos-
sui incoerências e subjetividades da qual ela mesma
Estou plenamente de acordo com ambos, mas talvez se diz isenta. Nos dois casos, temos uma aproxima-
precisemos re nar um pouco o que está em jogo nes- ção desses conhecimentos, mas “subjetividade” e
se processo, para não corrermos o risco de a “onto- “incoerência” continuam a ser fatores indesejáveis.
logia ocidental” continuar sendo o padrão de medi- Esse movimento crítico não deixa de ser politica-
da do nosso imaginário. O que exatamente signi ca mente importante (nesse sentido, “traduzir” a cobra
estar no mesmo patamar ontológico que as ciências grande como metáfora para certo público tem seu
ocidentais? Como se de ne isso? Nick, você disse valor), mas como recriamos, paralelamente, os ter-
algo sobre a loso a de vida ter muitas fontes. Seria mos de legitimidade e validade de um mundo ou
nesse sentido? Como se dá exatamente o “baixar a conhecimento? O que acham?
bola” dos saberes ocidentais?
Eu tinha em mente algo como o argumento sobre
Será preciso ter cuidado com os critérios usados para tradução no livro ”Provincializing Europe” de Dipesh
reconhecer a igual validade de um outro mundo, para Chakrabarty, por exemplo. Lá, ele mostra casos de
que não caiamos num relativismo super cial: aque- tradução cultural que não necessariamente recor-
le que diz que todo conhecimento é válido, mas não rem a um modelo baseado na ciência (inclusive so-
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Revista Amazônia Latitude Review

cial) europeia moderna, que usa um denominador tentando criar um entendimento comum; sempre
comum, universal e abstrato ( cientí co ) e que se incompleto, sempre imperfeito.
diz capaz de capturar toda a essência de um con-
ceito. Por exemplo, há casos históricos na Índia em Embora as nossas cosmologias possam ser bem di-
que divindades (olha eu usando um desses abstra- ferentes, um soco na cara não deixa de ser um soco
tos!) islâmicas foram traduzidas como certas divin- na cara. Violência e certas formas de poder não vão
dades hindus e vice-versa, sem apelo ao meio termo distinguir muito bem entre diferenças ontológicas.
universalizante “divindade”, ou “deuses”, mas usando Talvez sejam interpretados de variadas formas, mas
outros critérios que os povos locais achavam mais esses mundos diversos estão interligados de formas
persuasivos, com recurso a aliterações ou retórica. que são bem importantes e consequentes. Lucas
Bessire escreveu uma etnogra a fascinante, titulada
Nick: Essa tendência de aplicar o pre xo etno (men- “Behold the Black Caiman”, que critica a virada on-
cionando por Bruno) é uma das coisas que também tológica por ignorar os circuitos de poder global, que
sofri por um tempo, até pensar bem no absurdo de in- tem impactos marcantes – materiais, físicas, eco-
sistir que o conhecimento, as práticas, até a “ciência”, lógicas, econômicas. Ele é da opinião que a virada
de algumas pessoas é o produto de cultura enquanto ontológica acaba sendo um debate losó co entre
o conhecimento de outras (dos “modernos” no voca- acadêmicos, em vez de enfrentar os desa os de criar
bulário do Latour) não é! Ainda bem que os estudos espaços comuns para acomodar as pessoas, que mui-
sociais da ciência e tecnologia estão ajudando a aca- tas vezes são negadas um lugar na mesa. Acho que
bar com essa mentalidade: ou tudo é etno ou nada é! a virada ontológica pode ter consequências políticas
Um problema com a virada ontológica, que faz parte importantes, mas também reconheço essa crítica –
do debate atual, é o jeito que a gente entende on- as lições da virada ontológica nem sempre acabam
tologias diferentes. Será que são mundos distintos sendo aplicadas de formas bem óbvias.
que ocupamos, ou é mais uma questão de entender
a realidade de diferentes perspectivas, devido a di- Por último, quais são as consequências políticas de
ferentes contextos, hábitos e idéias que adotamos? aceitar ontologias que têm diferentes noções sobre
Se for o segundo caso, tem alguma diferença entre o o que constitui fatos, provas, evidências, etc., sem
conceito de cultura e o conceito de ontologia nesse abrir espaço para outras ontologias que considera-
discurso todo? Têm algumas pessoas que acham que mos extremamente perigosas? Estou pensando nes-
a “ontologia” da virada ontológica é simplesmente se momento da política do Trump e a ontologia dos
outro jeito de falar de cultura. fãs dele, que estão ganhando cada vez mais atenção
e poder na arena pública nos Estados Unidos. Como
Se distintas ontologias são baseadas em algumas Túlio já falou: “Será preciso ter cuidado com os crité-
diferenças radicais, de que são feitas essas diferen- rios que se usa para reconhecer a igual validade de um
ças (se não simplesmente hábitos, práticas, valores outro mundo, para que não caiamos num relativismo
ou idéias)? No momento, estou lendo a etnogra a super cial: aquele que diz que todo conhecimento é
“Earth Beings” por Marisol de la Cadena. Ela é mais válido, mas não questiona a relação de dominância de
uma pessoa que está contribuindo para o debate um deles com o resto.”
sobre a virada ontológica aqui nos EUA e também
no Peru e acho que o livro dela tem umas re e- Eu também tinha algumas re exões sobre o proble-
xões importantes. Marisol diz que etnogra a não ma de considerar a ontologia “dos modernos” uma
só ajuda a entender a vida (ou mundo) dos nossos coisa monolítica. Por exemplo, Matei Candea tem
interlocutores, mas também ajuda a descobrir o uma observações bem interessantes sobre a maneira
que não entendemos da vida dos outros e esse não- com que pesquisadores trabalhando com meerkats
-entendimento não é só baseado em diferenças de falam da vida mental desses animais no trabalho de
hábitos ou idéias (ou cultura). Ela fala que, quando campo, que é bem diferente do jeito que escrevem
detectamos uma diferença radical (ou uma diferen- para um público cientí co o que sugere que a on-
ça ontológica) no percurso de trabalho etnográ co, tologia naturalista não é bem como a gente pensava.
muitas vezes a gente nem entende o que é a raiz
dessa diferença, porque ultrapassa ou excede nosso Túlio: Concordo plenamente que a virada ontológi-
entendimento. Sentimos que existe, mas não sabe- ca corre o risco de acabar sendo um debate losó -
mos do que é feito. O mesmo acontece com os nos- co entre acadêmicos e eu também sinto uma certa
sos interlocutores, claro. No processo, acabamos resistência em aceitar debates que estão “na moda”,

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digamos, pois tendem a deixar de lado as vozes e que se constituem as diferenças radicais entre
as vidas daqueles que os inspiraram. Entretanto, ao nossa ontologia e as outras, do que habituar os
mesmo tempo, me parece que esse debate não se re- nossos sentidos a não domesticar essas diferen-
duz a uma conversa entre intelectuais. Pelo contrá- ças através dos nossos conceitos, os quais pres-
rio, acredito que esse debate está enraizado em con- supomos universais ou objetivos.
itos políticos, que estão inevitavelmente atrelados
ao material. Em geral, eu acho que se está recorrendo à ideia de
“outros mundos” nesse debate, sejam eles mundos
Um exemplo que vi recentemente na minha pesquisa humanos e/ou não-humanos, para podermos cons-
sobre Belo Monte é o da resposta de uma secretária truir uma alternativa à divisão entre mente e corpo,
executiva do consórcio de construtoras da represa à cultura e natureza, e todas suas rami cações, que
insinuação de um jornalista de que a obra ia “matar operam no cerne do mundo moderno, e que legiti-
a cultura do índio”: mam a instrumentalização de tudo que faz parte do
lado “natureza” dessa dicotomia.
Nós não estamos matando a cultura do índio, a cul-
tura não morre, a cultura vai continuar a mesma. Só Concordo com sua sugestão, Nick, de que talvez não
precisamos reassentar essas pessoas o que a gente seria uma questão de ontologias/mundos/realidades
precisa? Tirar eles de um lugar e dar a eles outro de diferentes, mas sim de entender a realidade de di-
igual valor. A cultura está aqui [apontando pro cora- ferentes perspectivas, devido a diferentes histórias,
ção], a cultura não tá onde vivo. (Do documentário, À hábitos e ideias que adotamos. No entanto, cultura,
margem do rio Xingu) ao m e ao cabo, recria a dicotomia entre o material
e o ideal, que permite o tipo de violência que vemos
Essa resposta me deixou indignado, pela facilida- nessas remoções forçadas de pessoas e, também, a
de com que as autoridades falam em remover pes- violência contra tudo que é não-humano. Um soco
soas. Não acho, no entanto, que seja uma questão na cara é um soco na cara, não há sombra de dúvida,
de más ou boas intenções por parte das autorida- mas é importante estarmos abertos ao fato de que
des; até acredito na sinceridade da resposta da se- necessidades materiais podem abarcar mais do que
cretária. Na verdade, penso que o problema maior simplesmente a integridade física, individual. O que
está no fato de aceitarmos a divisão entre cultu- ocorre quando passamos a entender o espaço como
ra e espaço no nosso modo de viver, nas nossas extensão do corpo, por exemplo?
políticas. Não só as construtoras e o Estado, mas
também muitos daqueles que foram críticos de Mundos, realidades ou ontologias múltiplas são
Belo Monte aceitaram a remoção de pessoas com ideias que parecem meio birutas mesmo. Tem algo
a condição de que indenizações justas fossem ga- aí que me deixa insatisfeito, talvez seja o fato de
rantidas (o que, infelizmente, também não acon- ser uma linguagem meio simplista, não sei. Mes-
teceu). Então, a gente pergunta: como se de ne mo que não sejam ideias adequadas, acho que são
o que é justo? Houve vários casos de pescadores um passo na direção de tirarmos da posição hege-
que foram deslocados para periferias da cidade, mônica esse modo de viver o mundo tão habituado
receberam um salário de indenização por um tem- à violência contra entidades que se considera ou-
po, mas perderam a possibilidade de manter seus tras”. Claro que há muitas questões aí de disputa
modos de vida. de poder, capitalismo e economia, etc, que também
fazem parte do cerne da questão, com as quais não
Acho o trabalho de Marisol de la Cadena, que sei exatamente como lidar.
você mencionou, muito interessante, porque ela
tenta escrever de uma maneira que leva em con- Um ponto rápido sobre o problema de tratarmos a
sideração o perigo de recriarmos essas divisões ontologia moderna como monolítica: também con-
entre espaço e cultura. Por exemplo, ela põe o cordo plenamente. Contudo, acredito que é uma
“Ausangate” no meio do texto dela, como uma en- reação, talvez politicamente estratégica, tratar a
tidade, um ser da terra (earth being), de acordo modernidade assim. Gosto muito da explicação do
com a cosmovisão andina, e não como uma mon- antropólogo Talal Asad sobre esse ponto. Ele não
tanha (assim descreveríamos Ausangate na nossa discorda do fato de a modernidade também ser
cosmovisão moderna). Pelo o que eu entendi do múltipla, mas diz que ela tende a se apresentar com
trabalho dela, é menos importante sabermos do uma face só onde se impõe.

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Nick: Gostei muito desse comentário sobre o traba- dos povos da Amazônia serem reduzidas a uma só
lho de Marisol de la Cadena. Ainda estou lendo o essência, que é contraposta à cosmologia ocidental.
livro dela, mas essa re exão do Túlio é essencial: é O próprio Viveiros de Castro reconhece esse fato
menos importante sabermos do que se constituem as nas suas notas de pé. Esse reducionismo é justi -
diferenças radicais entre nossa ontologia e as outras, cável, ou será que ver isso como reducionismo é
do que habituar os nossos sentidos a não domesticar perder de vista um objetivo maior, sendo um deles,
essas diferenças através dos nossos conceitos, os quais talvez, o de reconhecer e trabalhar com as contri-
pressupomos universais ou objetivos.” buições losó cas dos povos indígenas, como diria
Viveiros de Castro? Nesse sentido, gostaria de per-
Essa observação leva a gente para o início das nossas guntar: qual é o papel da antropologia para vocês?
conversas sobre a necessidade de reconhecer outras
formas de entender o mundo (e viver no mundo) sem Nick, concordo que precisamos urgentemente de mais
reduzi-las numa linguagem da ciência moderna, da artistas ontológicos! Parte do problema é a rigidez do
loso a ocidental, ou até o linguajar dos antropólo- meio acadêmico e talvez seja impossível transformá-
gos bem intencionados, mas meio tolos, como eu. Por -lo, a ponto dele deixar de ser instrumento coloniza-
exemplo, estou pensando nessa tendência de insistir dor de alteridades, se mantivermos o formato atual.
que curupira é um mito que serve como “um sistema Li uma reportagem na semana passada sobre a pri-
de manejo sustentável ou alguma coisa assim. an- meira tese de doutorado em formato de história em
do os modernos não negam a realidade dos outros, quadrinhos aprovada nos EUA há poucos anos e que
muitas vezes insistem que obedece a lógica deles! lida, justamente, com a necessidade de flexibilizar a
linguagem da produção acadêmica, para podermos
Adicionaria, que o livro “Earth Beings” ensina sobre transmitir realidades mais complexas.
os problemas de domesticar essas diferenças com os
nossos conceitos, mas também oferece a possibilida- Esperamos ter contribuído um pouco com a pro-
de de experimentar com essas formas de pensar e posta de conectarmos, enquanto pesquisadores,
ser no mundo, não adotando-as como nossas – apro- debates acadêmicos com questões cotidianas, atra-
priação cultural – mas cultivando outras formas de vés de um formato menos rígido do que aqueles
sentir, outras formas de sensatez. que são dados como formas válidas de produção de
conhecimento no nosso meio. No entanto, os cami-
Também gostei muito desse comentário: “O que nhos para descolonizarmos o meio acadêmico são
ocorre quando passamos a entender o espaço como longos. Concluímos este diálogo, temporariamente,
extensão do corpo, por exemplo?” Acho que a vira- sugerindo que é necessário fazermos uma virada
da ontológica está abrindo espaço para reconhecer ontológica nas nossas formas de discutir, represen-
a legitimidade de uma diversidade de ontologias. O tar e compartilhar conhecimento. O que você e eu
desa o agora é de criar condições para que mais dos podemos fazer diferente?
“modernos” possam experimentar outros mundos
ontológicos sem colonizá-los, ou como os Zapatis-
tas costumam dizer: “um mundo onde caibam muitos Bruno Caporrino é mestrando em antropologia pela Uni-
mundos”. A questão é: como é que a gente faz isso? versidade Federal do Amazonas, Brasil.
ais são as condições que precisamos criar ou cul- Graduado em ciências sociais pela Universidade de São
tivar? Estou achando que vamos precisar de mais ar- Paulo, USP. Assim que graduou-se, atuou como indige-
tistas ontólogicos do que cientistas sociais. nista no Amazonas, pela Operação Amazônia Nativa.

Túlio: Sobre a necessidade de se reconhecer outras Nick Kawa é professor de antropologia da Ohio State
formas de entender e viver o (ou um?) mundo, sem University, USA. Os seus temas centrais de pesquisa são
colonizá-los e reduzi-los a termos ocidentais, eu etnogra a da Amazônia rural e urbana, paisagens antro-
pogênicas, manejo de agrobiodiversidade e o Antropoceno.
mesmo me pergunto, todos os dias, se é possível
evitar ser cúmplice desse processo. Outro dia parti- Túlio Zille é doutorando em ciência política pela Universi-
cipei de um seminário em que lemos o livro recente dade Johns Hopkins, USA. Seu projeto de pesquisa atual se
de Danowski e Viveiros de Castro, Há mundo por concentra no con ito entre os discursos de desenvolvimento
vir? (“The Ends of the World”, em inglês), que o pró- em torno da construção da hidrelétrica de Belo Monte e os
prio Bruno tinha me indicado, e uma das críticas modos de vida que esses discursos não reconhecem como
que se levantou foi o fato de cosmologias diversas válidos ou existentes.

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Jeff dentro de casa


Jeffrey Hoelle
University of California, Santa Bárbara

M
e chamo Je . Sou um humano e um antro- e não humanos. Nos últimos anos, cheguei a uma
pólogo. ampla percepção sobre como a população rural não
indígena da Amazônia se distingue, física e concei-
Algumas das informações a seguir podem parecer ex- tualmente, dos animais; no entanto, no decorrer de
tensivas, mas cada uma desempenha um importante apenas alguns dias de agosto de 2016, um cachorro
papel no desnorteante episódio que aqui relato. perturbou meu consenso.

Meu objeto de pesquisa, enquanto antropólogo, são Cheguei ao Seringal São João ansioso de encontrar
as relações entre o ser humano e o meio ambien- os seringueiros com quem eu trabalhei entre 2007
te no contexto da Amazônia brasileira. A região é e 2010. Logo constatei que a família que então me
bem conhecida por pesquisas que abordam o vín- recebeu não mais morava ali. As outras famílias que
culo dos humanos e as formas e espíritos animais, eu conhecia residiam espalhadas pela oresta, de
mas recentemente eu tenho estudado os limites modo que seria muito difícil encontrá-las antes do
das fronteiras, relativamente xas, entre humanos anoitecer. Por sorte, havia uma morada no centro

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Je andando pela oresta amazônica. Acre, Brasil

cujos proprietários, dona Maria e seu Rocha, con- fora alertam os moradores sobre quaisquer intrusos,
vidaram-me a car com eles. Da última vez em que animais selvagens ou mesmo domesticados, bem
visitei a comunidade, dona Maria morava na cidade, como servir para que visitantes, à distância, anun-
mas ela ouviu falar de mim pelos seus irmãos, cujos ciem sua presença. Se um visitante ou estranho fosse
quais acompanhei em viagens para extrair borracha considerado bem-vindo pelos moradores, eles acal-
das seringueiras e lavrar seus terrenos. Dona Maria mam os cachorros e convidam a pessoa a subir para
e seu Rocha se mudaram para cá alguns anos atrás e a casa. O visitante, então, deixa seu calçado nos de-
construíram essa casa. graus, próximo ao cachorro e às galinhas a ciscar,
antes de prosseguir para a varanda passando por um
ando eu entrei na casa, deparei-me com algo que eu pequeno portão através de um muro de sarrafos de
nunca havia visto nas áreas rurais da Amazônia. Um pouco mais de meio metro de altura. O âmbito estri-
cachorro. Não me entenda mal – há muitos cachorros tamente humano no outro lado do muro era subdi-
por aqui, mas estes sempre cavam fora das casas. vidido de acordo com quem poderia entrar, desde a
varanda aberta e quase pública, passando pelas ha-
Contemplei o animal doméstico enquanto sentáva- bituais sala de estar e cozinha, até o quarto privado.
mos na varanda e bebíamos um café melado, cando
a par dos últimos avanços em São João. À medida em Apesar das breves invasões de galinhas e de ocasio-
que conversávamos, eu examinava o quintal de chão nais araras ou gatos de estimação, a separação entre
batido com porções de grama em volta da casa. Pa- humanos e animais era mantida em quase todas as
tos e galinhas circulavam entre árvores frutíferas e casas que eu já visitei na Amazônia rural. Mas eis
plantas esparsas. Esse descampado, rodeado de o- que havia um cachorro dentro dessa casa. Este, no
resta e protegido por pastagens, era o espaço des- entanto, era diferente. Era um poodle de raça pura,
tinado a plantas cultivadas e animais domésticos. como me contaram. Possuía mechas elegantes e fel-
O asseio regular garantia que cobras peçonhentas e pudas e um focinho preto e úmido. É algo raro que
outros animais indesejáveis não tivessem lugar para cães fossem banhados com xampu perfumado ou
se esconder e propagar, além do quintal ainda prover mesmo afeto, mas nesse caso tais comportamentos
uma boa visão de quem estivesse se aproximando. são apropriados, pois esse não era apenas um ca-
chorro. O poodle pertencia a uma nova categoria: o
Outro cachorro estava deitado enrolado em frente “animal de estimação”. Dona Maria ganhou o poodle
aos degraus da entrada da casa. Tais cachorros de quando morava na cidade e ao se mudarem, ela e

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Je se despedindo de dona Maria e Je . Ao fundo, pode-se ver parte do quintal, portão, o cercado da varanda e a rede citada no texto

seu Rocha trouxeram consigo uma nova forma de se esqueci disso. Eu estava sentado em um banco na va-
relacionar com os animais. Gradualmente, fui enten- randa, conversando com seu Rocha, quando Je veio
dendo como aquilo fazia sentido - uma transferên- da sala de estar. Eu não pensei ou sequer olhei em
cia de categorias e relações apreendidas na cidade. sua direção quando alcancei a sua cabeça fazendo ca-
rinho. A expectativa dos seus cachinhos em formato
Então, dona Maria me disse o nome do de nuvem encostando nos meus dedos foi substituída
cachorro: Je . pelos dentes pontiagudos da boca de Je .

Je humano: Sério? Esse é o meu nome . Nos dias chuvosos que se seguiram camos con na-
dos na casa por horas a o. Eu mantive uma distân-
Dona Maria me assegurou que isso foi uma coinci- cia segura de Je . Em uma cinzenta e úmida tarde,
dência. Para reforçar e acalmar minha apreensão, ela estava em minha rede na varanda escrevendo algu-
acrescentou: “eu nem sabia que esse nome é de gen- mas observações e lentamente pegando no sono. A
te . ando mais tarde eu relatei essa coincidência palavra Je gentilmente utuou de dentro da casa
” para outras pessoas no Brasil, eles se perguntaram em minha direção. Dona Maria continuou com voz
o que eu poderia ter feito para ofender dona Maria. de mel e um tom carinhoso “venha deitar no quarto”.
Contudo, como disse antes, nós não nos conhecía- Após um momento petri cado, quei aliviado ao ou-
mos e quei imaginando se alguém em São João po- vir o bater das garras bem cuidadas de Je no chão
deria conhecer o meu nome o su ciente para repro- em direção ao quarto de dona Maria.
duzi-lo. Normalmente, eu era chamado por palavras
iniciadas com o J que era familiar ou suscetível à Em outra ocasião, Je extrapolou (acho que ele rou-
pronúncia do português brasileiro: “Jersi”, “Jerson”, bou alguma comida dos donos). Dona Maria se lan-
“Jeferson”, ou “Jerski”. Ao se referirem a mim, as pes- çou contra ele como faria com um cachorro qual-
soas poderiam dizer “o americano” e isso bastava na quer ou uma das galinhas: Je , sai daqui seu lho
maioria das vezes, mas reconhecimento efetivo era da mãe! Eu sabia que essas palavras in amadas
alcançado quando características eram dadas: “care- não eram direcionadas a mim, mas não pude evitar
ca”, “gordo” ou “grande”. sentir que deveria sair também. Tais palavras são as-
sustadoras de se ouvir se dirigidas a você, mas é o
Eles me avisaram, no primeiro dia, que Je era bravo tom de voz de acuar animais que desencadeia uma
e eu não deveria tentar tocá-lo. No segundo dia, me reação visceral. A voz soa como as palavras de exor-

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pedirem. Dona Maria pegou o Je em seus braços


(ela e especialmente seu Rocha inclusive se diri-
giam ao Je usando uma voz de bebê que eu tam-
bém nunca havia visto ser usada com animais, ou
bebês mesmo, em comunidades rurais). Ao ten-
tar um último abraço de adeus, Je investiu con-
tra mim mais uma vez e eu recolhi os meus dedos
enfaixados, bem como o meu corpo todo, a uma
distância que permitisse o cachorro parar de ros-
nar e voltar a um estado mais calmo. Acenei, en-
tão, um adeus para dona Maria, seu Rocha e Je .

Post Scriptum:
Do Acre, cheguei a Belém, onde daria um discurso
na universidade. Do outro lado da bacia amazôni-
ca, ainda penso em Je , meu xará. Fico imaginando
o que ele poderia signi car para a minha pesquisa
sobre categorias e espaços, mas também em termos
de quem eu sou enquanto indivíduo. Pergunto-me se
nossos destinos estavam de alguma forma interliga-
dos e se uma parte de mim – além do pedaço de pele
que ele arrancou do meu dedo - também cou com
ele. De forma mesquinha, desejei a ele longevidade e
conforto ininterrupto; embora também tenha imagi-
nado um dia em que Je , imprudentemente, pudesse
se desgarrar de seu espaço seguro e dos seus prote-
tores e se ver rodeado por um grupo de cachorros de
porta afora ou animais selvagens.

Ponderei sobre essas coisas agora que estava so-


zinho, no meu próprio espaço - o único Je den-
tro de casa. Na verdade, eu estava em um hotel
Manifesto de resistência nas paredes da Aldeia Maracanã. Foto: Elisa Mendes. e, uma tarde, desci as escadas do décimo segun-
do andar: 15 degraus abaixo, virava 180 graus, 15
cizar demônios nos lmes, só que com o demônio degraus abaixo e assim sucessivamente. A cada
pronunciando-as. Palavras lançadas em um murmú- andar, havia um reparo feito e coberto com tinta
rio-chiado que demanda ação imediata. A voz não é branca, realçando o contorno de múltiplas man-
acostumada com humanos ou os animais selvagens, chas aleatórias de tinta. Je ? Estaria ele dançando
mas apenas com os domesticados, animais versados sem entusiasmo ou performando por um mimo?
em entender o tom e o seu signi cado, assim como Alternando para a forma bípede? Ainda hoje eu
também entendem o gesto quando o dono nge pe- me deparo com os traços do poodle doméstico da
gar e jogar pedras neles. Esse conjunto de voz que Amazônia e toda vez me pergunto: quem ou o quê
acua e teatro com pedras despacha os cachorros a exatamente é o Je ?
correr desenfreados e como que em cima de chão de
gelo. Frequentemente, após chegar a uma distância
segura, eles olham para trás com a cabeça baixa e
Je rey Hoelle é professor associado de Antropologia na
olhos franzidos, em algum momento desacelerando Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. Estuda a
para um trotar mais natural e calmo que, honesta- interação entre seres humanos e meio ambiente na Ama-
mente, parece forçado. zônia brasileira, com foco nos usos da terra, estratégias de
manutenção da vida e des orestamento. Ele é autor do livro
No dia em que fui embora, dona Maria e seu Ro- Rainforest Cowboys: the rise of ranching and ca le culture
cha me acompanharam até o quintal para se des- in western Amazonia (2015).
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A terceira margem do texto:


Euclides da Cunha e a
Amazônia
Leopoldo Bernucci
University of California, Davis

Quanto aos céus, ó Terra, te pareces, Se o não excedes!


(John Milton, Paraíso perdido

Arte: Fabrício Vinhas

E
uclides é um enigma, e sua obra, uma es nge secundário do qual até hoje não puderam sair com-
ainda a ser decifrada. Todos os esforços dos pletamente. Aqui, não me re ro nem a Contrastes e
críticos em mais de um século não bastaram, confrontos”, nem a “Peru versus Bolívia”, livros que
ainda, para penetrar as camadas profundas de sig- primam pelo rigor histórico e técnico, escritos com
ni cado de seus textos. Os sertões , obra ímpar na semelhante paixão e força poética àquelas encon-
história da literatura latino-americana, já rendeu tradas no livro de estreia do autor. Penso, principal-
milhares de páginas de comentários, ajuizando os mente, em “À margem da história”, a meu ver, obra
méritos e os desacertos do livro. Contudo, os de- maior de Euclides depois de “Os sertões”. Para nossa
mais textos de Euclides caram relegados a lugar sorte, em regime de exceção, está claro, começam a
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surgir estudos luminosos que têm-se adentrado com Nada te direi da terra e da gente. Depois aí, e num
grandes acertos críticos no universo de “À margem livro: Um paraíso perdido, onde procurarei vingar
da história . Re ro-me às abordagens do professor e a Hylea maravilhosa de todas as brutalidades das
colega Francisco Foot Hardman na primeira parte do gentes adoidadas que a maculam desde o século
seu mais recente livro “A vingança da Hileia” (2009). XVIII. e tarefa e que ideal! Decididamente nas-
ci para Jeremias destes tempos. Faltam-me, apenas
Concebida de modo estruturalmente multifaceta- umas barbas brancas, emaranhadas e trágicas. Va-
da, essa última e póstuma obra de Euclides se divide mos a outro assunto. 4
em quatro partes. A primeira, dedicada à Amazônia;
a segunda, a questões continentais de transporte Nesse mesmo ano de 1905, Euclides estabelece a co-
ferroviário e de fronteiras; a terceira, como reza o nhecida analogia entre sua ansiada obra e a de John
próprio título, é um esboço político “Da Independência Milton, “Paraíso perdido”, em carta a Artur Lemos,
à República ; e, nalmente, a quarta é um ensaio ab- outro amigo da Amazônia paraense:
solutamente original, “Estrelas indecifráveis”, no qual
Euclides consorcia e espraia seus conhecimentos Além disso, esta Amazônia recorda a genial
cientí cos de astronomia com os de arte e de história de nição do espaço de Milton: esconde-se em si
bíblica. Dessas quatro partes, a primeira é a que aqui mesma. O forasteiro contempla-a sem a ver através
nos interessa, porque nos possibilitará tecer alguns de uma vertigem. Ela só lhe aparece aos poucos, va-
comentários em torno de sua gênese textual. Os sete garosamente, torturantemente. 5
ensaios que se enfeixam na Parte I de “À margem da
história” foram, provavelmente, redações prelimina- Euclides deve ter visto na obra de Milton não só uma
res de capítulos de um livro planejado e que, por força analogia temática, mas algo mais profundo, para
do destino, Euclides nunca pôde concluir1. Trata-se de além da observação de espaço que ele faz: “esconde-
“Um paraíso perdido”, obra sobre a Amazônia, que foi -se em si mesma . Façamos uma pausa para re etir
bastante aludida por ele em cartas a seus amigos. Este sobre essa de nição. Da impossibilidade de se pensar
projeto, seu segundo mais importante em densidade em “Paraíso perdido” num espaço linear, horizontal
crítica e escopo histórico, teve o início de sua gestão somente, indo de A a B, somos obrigados a contem-
em 1906, como pode-se constatar pela carta do escri- plar, através da poderosa metáfora do caos do poeta
tor enviado ao amigo Francisco Escobar em 13 de ju- inglês, movimentos verticais e uma tridimensionali-
nho do mesmo ano: dade, que ao mesmo tempo extravasa a concepção
vulgar de pontos estruturados num plano. Conse-
Em paz, portanto, esta rude pena de caboclo la- quentemente, os espaços Céu e Terra se confundem
dino. Ou melhor, que vá alinhando as primeiras nesse poema e na sua contiguidade, sempre empur-
páginas de Um paraíso perdido, o meu segun- rando suas fronteiras estaria o Inferno, como à
do livro vingador. Se o zer, como o imagino, [ ] espera de seu momento de aglutinação? Enquanto
(perdoe-me a incorrigível vaidade) hei de ser para isso, Satã viaja através do Cosmos.
a posteridade um ser enigmático, verdadeiramente
incompreensível entre estes homens2. Neste cataclismo cósmico surgem as noções de
abismo, caos e imensurabilidade. Milton na sua ce-
Em correspondência de 30 de setembro de 1906, gueira, portanto, criou um espaço barroco que so-
Euclides voltará ao tema, contando agora a esse mente ele pôde “ver”. “No light, but rather darkness
outro amigo, Firmo Dutra, com o qual tinha passa- visible (Vertem somente escuridão visível, em tra-
do considerável tempo em Manaus depois de sua dução livre)6 diz o poeta na versão original, saindo
expedição para o Alto Purus, que ele, sim, tinha das margens da linguagem convencional e lógica
realmente começado a escrever o tal livro na Vila para arriscar outros oximoros7. A bem da verdade, é
Glicínia, residência de Alberto Rangel, antes da sua um espaço que viola as leis da geometria, mas que
partida para o Purus3. Se ainda for necessário rastre- se encaixa perfeitamente nas da poesia. Se pensar-
ar anteriormente a 1906 outra menção do livro, ela mos, ainda, que a sua linguagem pudesse ser orto-
aparecerá numa missiva de 10 de março de 1905 ao doxa, segundo as normas do século XVII, bastaria
amigo e con dente Coelho Neto como prova incon- notar com que liberdade Milton utilizou versos não
teste desse ardente desejo: rimados, em acrósticos, forjando seu poema ora
como um hino, ora como uma epopeia. O poeta
Vivo sem luz, meio apagado e num estonteamento. inglês, portanto, criou uma linguagem que termi-

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A caminho do Alto Purus, como chefe da comissão brasileira de limites com a Bolívia, Euclides enviou a um amigo esta foto, com um soneto autografado (reprodução
original). Foto: Revista Dom Casmurro, 1946.

nou captando a atenção de Euclides e coincidindo so, a novos procedimentos: “o enquadramento, o foco
com suas preferências poéticas. narrativo, a divisão temática e o jogo de vozes já não se
podiam estruturar como outrora”.9 Esta fugaz quali-
Não poderia o nosso escritor o ter feito de outra for- dade que Euclides imprime à sua visão da Amazônia
ma: “para os novos quadros e os novos dramas, que termina por contaminar também a sua escritura.
se nos antolham, um novo estilo , a rma Euclides a O “claro-escuro do desconhecido” apontado por ele,
propósito do “Inferno verde” de Alberto Rangel, pa- por exemplo, aliás de raiz barroca, vem em última
lavras essas que também cabem perfeitamente a instância dar conta do seu estilo retorcido e todo ele
Euclides. “Sua literatura”, observa Foot Hardman feito de engenho e agudezas.
no prefácio de “Inferno verde”, é “alheia às escolas
estéticas fechadas”, e “cavava espaços na luta contra Opulenta desordem, sinistra catequese, caçadores
os limites extremos do habitat humano”8. Tal qual a de árvores, civilizado sinistro, estranhos civilizados,
natureza amazônica portentosa que Euclides descre- civilização caduca, castelo de palha, claro-escuro,
ve, em constante estado de mutação, perdendo os profecias retrospectivas, “inferno orido dos serin-
rios às suas margens para ganhar outras, ou forman- gais . Vimos acima como a própria sintaxe de Eucli-
do novos acidentes geográ cos, seus textos sobre des causa um certo estranhamento ao desviar-se o
a Amazônia também buscam essa terceira margem, autor das normas bem comportadas do português:
como outro lugar simplesmente, ou um entre-lugar, “a terra que está em ser”, procedimento que rompe o
em todo o caso um locus do qual se escreve sobre o nexo lógico normativo da sintaxe e que mais tarde
inusitado, ou sobre uma realidade fantástica, que na encontrará em Guimarães Rosa o seu mais hábil cul-
manhã seguinte poderá deixar de existir, como a ge- tor: “cê vai, ocê que, você nunca volte”, são as pala-
ogra a amazônica depois das terras caídas. Por isso, vras da personagem feminina de um dos seus contos
a escritura desse livro, que re ete ainda algumas mais famosos: “A terceira margem do rio.” “Tem tudo,
soluções composicionais e estilísticas de “Os sertões”, falta-lhe tudo” são as de Euclides, criando uma en-
teve que fugir de seu antigo leito, como aqueles rios, tre tantas antíteses que redundam em paradoxos ao
transbordando-se e apegando-se, durante o proces- tentar de nir o objeto estudado.

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turo livro e falasse sobre ele várias vezes no ano de


1905, ele já havia de algum modo re etido sobre o
vasto território amazônico a partir de 1898, quatro
anos antes da publicação de “Os sertões”, em rese-
nha crítica sobre o livro de Manuel Tapajós, “Frontei-
ra sul do Amazonas . estão de limites . Esta foi
talvez a sua primeira incursão em assuntos ligados à
grande oresta11. Curiosamente, a partir de outubro
de 1906, Euclides deixara de tocar no assunto de “Um
paraíso perdido”. Este silêncio tem intrigado mais de
um crítico no encalço de suas razões12. Todavia não
é preciso escavar muito a fundo para descobrir que
estas estão dadas nos próprios comentários que Eu-
clides oferece no livro. Um deles, particularmente re-
levante, é aquele sobre a representação e o estudo da
Amazônia, trazendo à baila novamente as discussões
em torno do consórcio entre ciência e arte.

Não é de se admirar que, enquanto Euclides dis-


serta sobre a di culdade de se apreender o univer-
so amazônico, ele esteja falando metatextualmente
também sobre a sua própria di culdade discursiva
de dar conta de seus mais variados aspectos. Porque,
escrever uma história da Amazônia, convenhamos,
Mapa do trajeto de Euclides da Cunha pelo Brasil. não é tarefa para comuns letrados. Este desa o, Eu-
Foto: Revista Dom Casmurro, 1946.
clides o tinha claramente articulado:

Se o “Paraíso perdido” lhe criou o ensejo para de- É uma grandeza que exige a penetração sutil dos
senvolver a grande metáfora que daria título ao li- microscópicos e a visão apertadinha e breve dos
vro nunca terminado de Euclides, uma peça das analistas: é um in nito que deve ser dosado. [ ]
mais belas ali contida, “Judas-Asvero”, reforçando o Escreverei Um paraíso perdido, por exemplo, ou
sentido de castigo que o seringueiro carrega consi- qualquer outro em cuja amplitude eu me forre de
go ao longo da vida, nos obriga a retornar a Milton. uma de nição positiva dos aspectos de uma terra
Como diz Euclides, “o homem ali é ainda um intruso que, para ser compreendida, requer o trato perma-
impertinente” e poderíamos expandir este modo de nente de uma vida inteira.13
caracterizá-lo, concluindo que, por essa violação, ele
está condenado a um castigo. Já se notou esta ana- Em uma palavra: quanto mais se pensa que a conhe-
logia da punição entre o “Paraíso perdido” e “Judas- cemos, a Amazônia se torna menos conhecida. “É de
-Asvero”,10 mas é útil ainda insistir sobre seu possível toda a América”, diz ele, “a paragem mais perlustrada
destaque no conto de Guimarães Rosa. Vago, miste- dos sábios e é a menos conhecida”. Indaguemos esta
rioso, ambíguo, o pai deixa a família, sem explicar o a rmação sobre tal di culdade e lancemos algumas
porquê desse abandono e passa a viver na terceira hipóteses sobre esse inconcluso projeto, verdadeiro
margem do rio, a qual poderá ser também ocupada work-in-progress, abandonado por razões que só po-
um dia pelo lho-narrador. Autopunição, penitência, demos conjeturar.
visão fantasmagórica oscilando com a da realidade, é
assim como nos dois relatos, a imagem do punido se Digamos que Euclides teve que enfrentar-se a dois
nos apresenta. É um castigo sinistro que em Euclides tipos de di culdades: uma moral e outra técnica. A
recai sobre o intruso em sua “ambição maldita” e que primeira, como Foot Hardman bem assinalou, pode-
em Guimarães Rosa ele é apenas sugerido, anulando ria ser con itiva para o nosso escritor, arranhando a
qualquer possibilidade de se conhecer a verdadeira sua ética intelectual porque, “enquanto que na frente
causa do abandono do lar pelo pai. diplomática ele se mantinha como el servidor da causa
do Estado nacional [como funcionário do Ministério das
Embora Euclides estivesse obcecado pela ideia do fu- Relações Exteriores], já na condição de escritor parecia

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Em camapanha em 1894. Rara fotogra a onde se vê Euclides (o primeiro à direita) sentado ao lado de João Luiz Alves. Foto: Revista Dom Casmurro, 1946.

duvidar, amargurado, das possiblidades de emergência seus versos. De idêntica forma, Euclides reconheceu
de uma sociedade nacional estável.”14 A segunda, como tal desa o e esteve consciente de que [t]hings un-at-
o próprio Euclides explica na sua correspondência e tempted yet in prose or rhyme” (De assuntos ocupado
em ensaio, tem a ver com a dimensão e complexidade que inda o Mundo / Tratados não ouviu em prosa ou
do espaço estudado. Uma vez mais é o crítico quem verso)16 tinham que ser interpretadas e registradas pela
elabora esta ideia: força espetacular da sua prosa. Eis aqui o autor:

Mas a própria extensão continental e internacio- em terá envergadura para tanto? Por mim não
nal da Amazônia, a biodiversidade indescritível dos a terei. A notícia que aqui chegou num telegrama
espaços, o traçado oculto e cindido de suas vozes de meu novo livro [Contrastes e confrontos], tem
em confronto tornavam difícil a estruturação de fundamento: escrevo, como fumo, por vício. Mas
uma forma narrativa capaz de dar conta dessa fu- irei dar a impressão de um escritor esmagado pelo
gacidade do tempo histórico.15 assunto. E, se realmente conseguir escrever o livro
anunciado, não lhe darei título que se relacione
Poderíamos acrescentar que tal di culdade não é demais com a paragem onde Humboldt aventurou
somente de ordem estrutural, mas também cogniti- as suas profecias e onde Agassiz cometeu os seus
va, já que –assim pensava Euclides– para se conhe- maiores erros.17
cer a Amazônia é preciso muitas vidas, numa clara
expressão da impossibilidade então de apreendê-la, Mas que tipo de história quis Euclides realmente
exceto por parcelas, fragmentos, pequenas unidades, escrever? Por estranho que possa parecer Eucli-
sem nunca chegar ao seu conhecimento total. des não acreditava que ele ou ninguém pudesse
escrever uma história definitiva da Amazônia, já
Mais surpreendente ainda é o fato de Euclides, inspira- que para ele a Amazônia é uma “terra sem história”
do pelo poema heroico de Milton, terminar absorvendo como ele a caracteriza em ensaio introdutório em
na sua visão do Amazonas o espírito épico, colocando “À margem da história”. Todavia, sob este aspec-
na sua prosa o seringueiro e o Índio, principalmente, to, o manuscrito original desse importante ensaio
como heróis ou protagonistas principais. Ademais, quis revela uma concepção absolutamente contrária
ele em termos estruturais e composicionais imitar os da versão final, posto que depois de algumas no-
desa os encontrados por Milton, que não perde tempo tas preliminares, o escritor introduz uma seção
no exórdio de seu poema, em invocar a Musa, pedindo- intitulada O Vale Amazônico: História da Terra
-lhe inspiração e forças antes de começar a compor os e dos Homens”.

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Euclides não era do tipo que se contentasse com


qualquer petite histoire. A história que ele queria es-
crever tinha que ser forçosamente grandiosa e he-
roica. Além disso, que se afeiçoasse a um desenho
complexo e completo de nossa nacionalidade:

[ ] não temos ainda uma história. Não aventu-


ro um paradoxo. Temos anais como os chineses. À
nossa história, reduzida aos múltiplos sucessos da
existência político-administrativa, falta inteiramen-
te a pintura sugestiva dos homens e das coisas, ou
os travamentos de relações e costumes que são a
imprimadura indispensável ao desenho dos aconte-
cimentos. Está como a da França antes de Thiérry.
Não lhe escasseiam fatos, episódios empolgantes e
alguns atores esculturais que embalem o nosso or-
gulho. Mas o seu discurso é obscuro.18

Ironicamente, embora reconhecendo a condição


marginal da terra e dos povos amazônicos a ser es-
tudada, daí o título “À margem da história”, ele tinha
que empurrar este majestoso território e seus pro-
tagonistas para o centro da historiogra a brasileira.
Não deixa de ser acidental que margem e centro se
transformem na dicotomia que orientará seus en-
saios amazônicos, da mesma forma que assim guiou À margem da história (1909).
Euclides na representação do território marginaliza-
do do nordeste brasileiro enfatizando o esquecimen- na Bahia durante o período nal da guerra. É sabi-
to e o abandono dos sertanejos de “Os sertões”. do também que ele pôde escrever sobre aspectos da
natureza e dos homens do sertão, sem haver estado
Firmada em princípios básicos de organização discur- em contato direto com eles até os últimos dias da
siva, a historiogra a do século XIX à qual se aderia campanha militar. De forma semelhante, para es-
Euclides – ponderou também, com muito mais rigor e crever “À margem da história”, nosso escritor se ar-
recato, os riscos a que ela se submetia, se o historiador mou de um cabedal historiográ co impressionante
não estivesse atento à noção de verdade; porque toda e equipou-se de livros dos melhores naturalistas
narração considerada histórica se modelava até então europeus. Soma-se a esse enorme apoio livresco a
a partir de dois princípios fundamentais: a coleta dos experiência do escritor uminense, que viveu apro-
dados históricos e a busca de um discurso convenien- ximadamente um ano na Amazônia. A exemplo de
te à noção de verdade. Mas é forçoso reconhecer que, Tucídides, Euclides realizará de novo o consórcio
independentemente de quaisquer épocas, imaginar entre arte e ciência, utilizando o mesmo tom sin-
uma história que forjasse mentiras ou, irresponsavel- cero do narrador que modelara para “Os sertões”,
mente, cometesse erros grosseiros de interpretação como história ao gosto do Romantismo. Patriótico,
dos fatos – comprometendo de forma aviltante o con- artístico, infatigável perseguidor de uma expressão
ceito de verdade – seria o mesmo que vislumbrar o justa, embora subjetiva, da verdade, Euclides como
m da própria atividade historiográ ca.19 Tucídides, na correta descrição que faz deste Mo-
migliano, transmite-nos a sua preocupação social
Arnaldo Momigliano a rma que os historiadores do de modo dramático e vibrante.21
século XIX estavam menos preocupados com a coleta
de material que com a narração de uma estória e a Assim, o modelo historiográ co adotado requer do
compreensão adequada desta estória”.20 Assim pare- historiador uma disposição mental e ética que não
ce ser também o caso de Euclides quando escreveu existe no campo da cção. Sua razão é relativamente
Os sertões, que não prescindiu da pesquisa nos ar- simples, porque o romance, por exemplo, lida com o
quivos e da coleta de testemunhos, enquanto esteve conceito de verossimilhança e não de veracidade; e

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Retornemos à pergunta de por que Euclides teria


abandonado “Um paraíso perdido” como projeto
de livro no nal de 1906? A resposta não deve es-
tar relacionada somente com a monumentalidade e
complexidade do objeto em estudo. A Amazônia em
seu estado de constante transformação, é também
resvaladiça, instável e devastadora aos sentidos. É
assim como ele descreve essa visão no discurso apre-
sentado na Academia Brasileira de Letras em 1906:

Com efeito, a nova impressão verdadeiramente


artística, que eu levava, não ma tinham inspirado
os períodos de um estilista. O poeta que a sugeria
não tinha metro, nem rimas: a eloquência e o brilho
dava-lhos o só mostrar algumas aparências novas
que a rodeavam, escrevendo candidamente a verda-
de. O que eu, lho da terra e perdidamente ena-
morado dela, não conseguira demasiando-me em
escolher vocábulos, zera-o ele [o poeta] usando
um idioma estranho agravado do áspero dos dizeres
técnicos. Avaliei então quanto é difícil uma coisa
Retrato de Euclides da Cunha feito por Cândido Portinari. trivialíssima, nestes tempos, em que os livros estão
Foto: Revista Dom Casmurro, 1946.
atulhando a terra, escrever 23

se por acaso os elementos de uma representação c- Este território tão particular que ele inteligentemen-
cional dos fatos coincidirem com os de uma narração te de niu em termos quase heideggerianos (a terra
de sucessos históricos, não se deverá pensar que o que está em ser ou que está no seu estado de ser)24 é
romancista quis aderir a um preceito verdadeiro da uma terra que de fato existe, mas só e precisamente
mesma maneira como o faz o historiador. Aliás, na isto acontece graças à condição ímpar de ela con-
eventualidade de que a preocupação do romancis- tinuamente brotar em busca de sua existência. É
ta seja realmente com a realidade, esta é admissível um território que nunca termina de ser, vivendo sua
somente quando considerada como categoria das condição de vida anfíbia, em processo de ainda estar
coisas possíveis do mundo da cção. Portanto, mes- sendo; em uma palavra Euclides, o poeta, a chama “a
mo se a comunicação do verdadeiro ou do verídico última página, ainda a escrever-se, do Gênese”25, train-
for prioridade do ccionista, esta só será concebida do a sua própria crença na teoria evolucionista para
como representação e jamais como narração veraz criar uma imagem poderosíssima arrancada das fan-
de acontecimentos. tasias do criacionismo.

Já se discutia entre os antigos lósofos da história Apesar disso, agora como cientista, Euclides não va-
a questão da verdade de re (dos fatos) e de dicto (da cila na descrição daquela paisagem inconstante, re-
narração)22. Cícero abordou o problema da verdade jeitando verbos como terminar, completar que a ela
moral que concerne à narração do fatos, enquanto que não se aplicam, já que também terminar e completar
Plínio se interessou pelo conceito da verdade natural são, de nitivamente, noções alheias à interpretação
que afeta as próprias coisas. São duas maneiras de lidar euclidiana da Amazônia, na qual ele busca combi-
com um único conceito resultante de dois métodos: um nar poesia e ciência, em forma de ensaio, fazendo
empírico, porque necessita a veri cação dos dados na dele um dos seus melhores intérpretes. Claro que é
arqueologia que a atividade historiográ ca pressupõe; possível arguir sobre as implicações ontológicas no
e outro de maior densidade moral, porque implica uma ele chamar um “paraíso tenebroso” ou o que é pior
articulação da linguagem que não somente possa con- um “paraíso diabólico”,26 duzentos e setenta anos de-
vencer, do ponto de vista retórico, mas que também lo- pois de Cristóbal de Acuña (1639) ter dito que “[y]
gre comunicar com grande e ciência, e de forma ética, à no tener la plaga de mosquitos, de que abunda en
a verdade dos fatos tal como esta é concebida através muchos parajes, se pudiera llamar á boca llena vn dila-
da pena de cada historiador. tado Paraiso”.27 Observem com que destreza Euclides

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Euclides, com a cabeça tapada, assina o termo da expedição, no Alto Purús. Foto: Revista Dom Casmurro, 1946.

caminhava no dédalo das representações utópicas e mover. Vale dizer, o acasalamento do olho do cientis-
distópicas da grande oresta, procurando equilibrá- ta com o do artista, neste caso o poeta.
los em seus ensaios.
Como veremos mais adiante nas suas descrições, as
Precisava ainda superar a ansiedade de ter que categorias do Belo e do Feio não são simples de se-
harmonizar conhecimento cientí co com a visão rem aplicadas à majestosa oresta, e quando Eucli-
artística do objeto que ele estudava ou representava, des o faz, o resultado é, novamente, oximórico. Se o
eis aí o repto a que deveria enfretar-se o autor: quadro que ele descreve é de uma natureza morta,
esta também se agita; se sua intenção é representar
Se desde sempre duvidara da e cácia de cciona- a duplicidade de um componente da oresta, isto só
lizar a história sem pôr em risco a veracidade do é possível de modo paradoxal, quando ele o chama,
relato, agora era como se esbarrasse em obstáculo por exemplo, de o “inferno orido dos seringais”.30
maior: a Amazônia, de brutalidades inauditas e
violências atrozes, vingava-se de todas as tentativas Consideremos a maneira como o nosso escritor fala
de pô-la em prosa, seja na ordenação cronológica das tentativas de se querer conhecer e estudar o
de relatos falhos, seja na pintura de paisagens entre imenso território. O seu porte é tão vasto e desco-
extremos de monotonia e caos. 28 munal que

Não haveria exagero em a rmar que, em sua [ ] impossibilita o descortino desafogado do conjun-
descrição da Amazônia, Euclides se debate entre to [ ] e à medida que [distinguimos melhor as in -
adotar um “processo obrigatoriamente analítico”29 e nitas faces da Amazônia], vai-se-nos turvando, mais
uma visão artística do grande território. O seu dile- e mais, o conspecto da sionomia geral. Restam-nos
ma está em conciliar uma descrição da natureza que muitos traços vigorosos e nítidos, mas largamente de-
seja cienti camente correta e precisa, com aquela da sunidos. Escapa-se-nos, de todo a enormidade que só
paisagem tropical, cuja qualidade estética possa nos se pode medir, repartida: a amplitude, que se tem de
transmitir a fulguração de uma inteligência superior diminuir, para avaliar-se; a grandeza, que só se deixa
e sensível e que, ao mesmo tempo, consiga nos co- ver, apequenando-se, através dos microscópios [ ] 31

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Assim, para Euclides, a natureza portentosa deixa Tem tudo e falta-lhe tudo, porque lhe falta esse en-
muito a desejar porque, seguindo a lógica aristotélica cadeamento de fenômenos desdobrados num ritmo
empregada por ele, ela “não pode ser bela, sendo enor- vigoroso, de onde ressaltam, nítidas, as verdades da
me, porque faltaria a visão de conjunto, escapando à arte e da ciência [ ] 39 o que ali está sob o disfarce
vista dos espectadores a unidade e a totalidade.” 32 das matas, é uma ruína. 40

Além disto, sob o conceito estreitamente artístico, Uma vez que Euclides decidira escrever “Um paraíso
isto é, como um trecho da terra desabrochando em perdido”, ele estava também preparado para denun-
imagens capazes de se fundirem harmoniosamente ciar veementemente o que ele alcunhou como “a
na síntese de uma impressão empolgante, é de todo mais criminosa organização do trabalho que ainda en-
em todo inferior a um sem-número de outros luga- genhou o mais desaçamado egoísmo”41 dos barões da
res do nosso país . 33 borracha, muito antes de que outros iniciassem uma
onda de protestos contra os crimes perpetrados no
Di cilmente para Euclides as partes do todo, estas território peruano do Putumayo e do Caquetá. No
que ele denomina “fragmentos”, “aspectos parcela- seu ensaio de 1906, “Entre os seringais”,42 ele delata
dos”, poderiam estar em plena harmonia e ordem as condições de escravidão do emigrante nordestino,
nessa oresta tropical. Melhor sorte teria tido ele se o cearense principalmente, o qual, depois de fugir da
se aderisse minimamente ao conceito neoplatônico seca da sua região, sonhava com uma vida melhor
de Plotino sobre a Beleza porque, ao contrário de na oresta; porém, uma vez estando lá, via o seu so-
Aristóteles, viu o Belo na autonomia de cada uma de nho se esvanecer. Este ensaio antecede por um ano
suas partes e não na estrita relação de dependência as acusações de Benjamín Saldaña Rocca em seus
entre elas e o todo. Porém, o Euclides que se aferra artigos para os jornais de Iquitos “La Sanción e La
à lógica aristotélica despreza terminantemente tal Felpa” de agosto de 1907. Antecipa-se ainda Euclides
idealismo: 34 em suas acusações aos seguintes autores e suas res-
pectivas obras: “Por América del Sur” (1908) de Rafael
Amazônia, ainda sob o aspecto estritamente Uribe Uribe, as denúncias de Walter H. Hardenburg
físico, conhecemo-la aos fragmentos. Mais de um no periódico britânico “Truth” (1909) e em seu livro
século de perseverantes pesquisas, e uma literatu- “The Putumayo The Devil s Paradise” (1912), “Las
ra inestimável, de numerosas monogra as, mos- crueldades en el Putumayo y en el Caqueta (1910)
tram-no-la sob incontáveis aspectos parcelados. O de Vicente Olarte Camacho, Blue Book of the Putu-
espírito humano, deparando o maior dos problemas mayo (1912) de Roger Casement e, nalmente, The
siográ cos, e versando-o, tem-se atido a um pro- Putumayo Red Book” (1913) de Norman Thomson.
cesso obrigatoriamente analítico, que se, por um
lado, é o único apto a facultar elementos seguros de- Ao revelar as atrocidades cometidas contra os índios
terminantes de uma síntese ulterior, por outro, im- e seringueiros, Euclides procurou modular sua voz
possibilita o descortino desafogado do conjunto. 35 de tal maneira que estivesse nos interstícios das
disciplinas. Como poeta, ele fez uso da linguagem
Já podemos medir as consequências de, sendo as literária do seu tempo e como cientista utilizou
partes ou fragmentos feios ou imperfeitos (“a ora as ferramentas do racionalismo, realizando assim
ostenta a mesma imperfeita grandeza”, a “fauna sin- uma perfeita, se não rara, combinação de saberes e
gular” é “monstruosa”37), não serem “capazes de se técnicas, di cilmente encontrada em outros escrito-
fundirem na síntese de uma impressão empolgante” e res, mas que nele constitui precisa e naturalmente a
de se aproximarem do conceito de Beleza dado por essência de sua poética narrativa.
Aristóteles, que privilegia as noções de harmonia
e unidade como uma das características essenciais Seria difícil imaginar um escritor brasileiro que esti-
daquela38. Portanto, se “a Beleza consiste em unidade vesse tão mais intimamente ligado à sua terra pelas
na variedade”, como quer o grego, a Amazônia serve suas forças telúricas que Euclides da Cunha. Além de
para provar a tese da sua face mais horrenda: sua curiosidade intelectual, que fez dele mais do que
um mero observador, tornando-o um arguto e since-
Destarte a natureza é portentosa, mas incomple- ro intérprete do Brasil e do seu povo, Euclides tinha
ta. É uma construção estupenda a que falta toda a uma missão social a cumprir. Se não fosse assim,
decoração interior. [ ] como entender que a ideia de voltar à Amazônia, a
despeito das pressões familiares e dos reais danos à

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sua saúde já tão abalada, estivesse uma vez mais se É assim como camos sabendo da reação paterna
formando nele? O seu genuíno interesse inicial pela através de outra carta a Dutra, enviada do Rio de
vida con itiva e perigosa dos povos que viviam nas Janeiro em 7 de julho de 1906:
fronteiras entre o Peru e o Brasil obrigou-o a escrever
dois excelentes ensaios em maio de 1904: Con ito Não sei se aí chegou a notícia de que eu ia ser no-
inevitável” e “Contra os caucheiros”.43 Nestes dois meado chefe da scalização da Madeira-Mamoré.
textos, Euclides adverte seus leitores e as autorida- Realmente as coisas se encaminham para isso e, se
des brasileiras para o perigo de uma luta armada imi- obstáculo sério que encontro a oposição de meu
nente entre peruanos e brasileiros nessas fronteiras pai for desviado, aí estarei em breve, calçando de
devido à crescente tensão diplomática entre os dois novo as minhas botas de sete léguas. 46
países vizinhos. Sendo a causa principal do con ito as
incursões cada vez mais frequentes dos caucheros pe- Em grande escala existencial, a vida trágica de Eu-
ruanos nessa zona litigiosa (do atual estado do Acre), clides da Cunha não foi muito diferente daquela
Euclides a comunica a seus leitores, com seu salu- dos seringueiros que ele tanto defendeu. A des-
tar pessimismo, através de uma linguagem menos tes foi invisível, distante, irreal para seus leitores
técnica que a da prosa mais tarde empregada para e sinistramente ignorada pelas luxuosas, porém
dirigir-se ao Barão de Rio Branco, porque o nosso es- inúteis leis brasileiras. A de Euclides começou a
critor estava muito mais interessado em penetrar na se fazer notar por sua família, amigos e colegas,
vida e no âmago dos nossos seringueiros que querer já que se tornara impossível encobri-la. Ele tinha
simplesmente descrevê-los como anônimos atores de excelentes razões para não fazê-lo: tudo andava
um mero quadro sinóptico ou estatístico feito para a espantosamente errado no seu matrimônio e a
história brasileira. 44 malária –a única coisa duradoura que trouxera
da oresta para casa provou ser o seu pior sou-
O fascínio que sentia Euclides pelo deserto, assim venir. O Rio de Janeiro que ele encontrou na sua
era como ele preferia chamar o interior do Brasil de volta da Amazônia em princípios de 1906 tornara-
modo geral e em estrita oposição à cidade, tornou- -se mais abjeto ainda e o outro quadro familiar
-se um lugar comum na sua correspondência com e pro ssional, com o seu casamento literalmen-
amigos e colegas mais para o nal de sua turbulenta te destruído e as possibilidades de um emprego
vida. A cidade continuava a perturbá-lo. Detestava- estável cada vez menores, não era menos desalen-
-a e anatematizava-a na conhecida crítica que fa- tador. Tivesse ele tido tempo, conforto espiritual e
zia à rua do Ouvidor do Rio de Janeiro ou àquela saúde, Euclides indubitavelmente teria escrito ou-
Manaus da belle époque caracterizada por ele como tro livro extraordinário sobre a Amazônia e o seu
meio-europeia, meio-rural. Todavia, o deserto era a esforço, então, de ressigni car a complexidade de
sua glória, mas infeliz dele, a sua maldição também, seu paraíso perdido não teria sido em vão. É assim
como lugar que Euclides vislumbrava para talvez como sugerem seus impecáveis ensaios sobre o
morrer e descansar em paz, tal como sugere em carta tema e é assim como devemos aceitá-lo, tal como
de 22 de janeiro de 1905 a Edgar Jordão: ele foi: brilhante, contraditório, vulneravelmente
humano e pateticamente trágico.
Estou a dois passos do deserto e nas vésperas de
uma viagem, inçada de tropeços, dessas que a gen-
te leva carta de prego para o Desconhecido. Talvez,
não volte. Falo, portanto, como quem se confessa. 45

Sem sombra de dúvida, há em suas palavras um dese- Leopoldo Bernucci atualmente é professor na University
jo de escapar de uma existência que se tornara cada of California-Davis (USA). Euclidianista reconhecido in-
ternacionalmente, ocupa a Cátedra Russel F. and Jean H.
vez mais insuportável. Bem observada, essa carta foi
Fiddyment de Estudos Latino-americanos na Uniesity of
a maneira tão peculiar de Euclides de se despedir
California-Davis, onde leciona literatura brasileira e his-
dos amigos como se ele estivesse pressentindo o seu pano-americana. Principais obras: edição comentada de Os
m. E, uma vez mais, ele foge como sabemos, em- Sertões; (Ateliê Editorial, 2018); A Imitação dos Sentidos;
preendendo uma jornada pela Amazônia em 1905 e (Edusp, 1995); Discurso, Ciência e Controvérsia em Eucli-
tenta de novo outra escapada no ano seguinte, abor- des da Cunha; (Edusp, 2008); Paraíso Suspeito: a Voragem
tada somente pela autoridade implacável de seu pai, Amazônica; (Edusp, 2017); Ensaios Inéditos; (Edusp, 2018),
que tinha se tornado o seu crítico mais veemente. e À margem da história; (Unesp, 2019).

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Lábrea,
Terra de Ninguém

E
ntre o nal de agosto e início de setembro, Ed- únicos órgãos que scalizava a região. Hoje, os prin-
mar Barros, fotojornalista e colaborador da cipais cargos do IBAMA no Acre e no Amazonas
Amazônia Latitude, registrou a situação das estão desocupados - seguindo a política de desapa-
queimadas no município de Lábrea, localizado no relhamento dos órgãos de scalização adota pelo
extremo sul do estado do Amazonas, na divisa com governo, um dos fatores agravantes no aumento da
Acre e Rondônia. Coberta de vegetação nativa, o destruição da Amazônia.
município impopular e pouco comentado na mídia,
expressa os resultados das atividades fundiárias. O ambiente encontrado em Lábrea é de colonização
em curso. O texto da Repórter Brasil evidencia que os
Hoje, o município de Lábrea é a quarta área com relatos ouvidos na cidade envolvem principalmente
maior índice de desmatamento na Amazônia - e re- casos de grilagem, onde as terras são ocupadas por
pete a colocação no ranking quando o assunto é a grileiros de diferentes partes do país, sobretudo da
concentração de focos de incêndios. A relação en- região Sul e Sudeste e dos estados do Mato Grasso,
tre área desmatada e queimada não é coincidência. Acre e Rondônia. O principal atrativo é a detenção
De acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental de madeira e a possibilidade de criação de pastos.
(Ipam), os dez municípios que mais registraram fo-
cos de incêndio também apresentaram elevado índi- A situação do município é parecida com outros pontos
ce de desmatamento. da Amazônia que também estão envolvidos com a úl-
tima onda de incêndios que assustou e alertou o Bra-
A extração de madeira move a cidade que, com a sil e o mundo. Na atual gestão, órgãos voltados para
ausência do Estado, facilita o autoritarismo fundiá- o monitoramento e scalização ambiental perderam
rio. Além de extração de madeira e incêndios, diver- credibilidade, voz e autonomia. Com o enfraquecimen-
sos casos de assassinato nunca foram esclarecidos. to das políticas ambientais, grupos de fazendeiros, ma-
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), deireiros e garimpeiros passaram a possuir ainda mais
através da superintendência do Acre, era um dos liberdade na exploração ambiental e humana.

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1 - Os cargos de che a das superintendências do Ibama do Amazonas e do Acre 2 - Devido à ausência de atuação do estado brasileiro, o município de Lábrea é
estão desocupados. No período de esvaziamento da autonomia dos órgãos, houve conhecido popularmente como terra de ninguém . Edmar Barros, colaborador da
queda nos registros de denuncias ambientais. De acordo com a Repórter Brasil, o Amazônia Latitude, foi ao local durante o período de concentração de focos de
número de infrações noti cadas em Lábrea diminuiu aproximadamente 60%. Foto: incêndio. Nos oito dias em que esteve na cidade, nenhum órgão de scalização
Edmar Barros/Amazônia Latitude. apareceu no local. O corpo de bombeiro que costumeiramente está presente nes-
ses episódios, também não assistiu a população durante o período. Foto: Edmar
Barros/Amazônia Latitude.

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3 - No município, o número de pontos de incêndio subiu de 10 para 119 entre junho 4 - Este ano, a situação de Lábrea piorou devido à falta de scalização do úni-
e julho. Mas de julho até o dia 26 de agosto, foram identi cados 1512 focos. Foto: co órgão que atuava na região. A Operação Ojuara, da Polícia Federal, apon-
Edmar Barros/Amazônia Latitude. tou irregularidades na superintendência do Acre. As denúncias dizem respeito à
corrupção, constituição de milícia privada e lavagem de dinheiro. O ex-chefe da
superintendência, Carlos Gadelha, é um dos julgados por facilitar crimes ambien-
tais na região da Lábrea e, por isso, foi afastado do cargo. Foto: Edmar Barros/
Amazônia Latitude.

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5 - Ao relacionar o aumento das queimadas, o desmatamento e o estudo de con i- 6 - O desmatamento ilegal no Brasil não pertence a crimes isolados, está atrelado
tos territoriais na Amazônia, a principal hipótese de especialistas sobre o assunto ao sistema econômico formado por corrupção, formação de quadrilha, trabalho
para explicar o aumento dos focos de incêndio é a limpeza da área para criação escravo, grilagem e roubo de madeira. O Ministério Público, através da investiga-
de pastos - o madeireiro corta as árvores do terreno e, em seguida, a terra é quei- ção da força-tarefa Amazônia, evidencia organizações criminosas e outras infra-
mada para a limpeza e o preparo. Essa área servirá para atividades da pecuária e ções por trás das queimadas. Foto: Edmar Barros/Amazônia Latitude.
agricultura. Foto: Edmar Barros/Amazônia Latitude.

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7 - Para Joel Bogo, procurador estadual no Amazonas, o trecho de área desmatada 8 - Os incêndios, que assustaram o mundo por conta do papel de regulação climá-
no sul do Amazonas corresponde de 200 a 1 mil hectares, o que indica um des- tica promovida pela oresta amazônica, afetam a população local diretamente. O
matamento de grandes proporções. O procurador a rma que esse tipo de atuação número de atendimento médicos em Lábrea aumentou - a Secretaria de Saúde do
vem de fazendeiros que possuem grandes rebanhos e visam ampliar a produção município a rma que Há um impacto em torno de 15% com aumento do custo
tomando terras públicas por vias ilegais, contornando a lei e os altos preços da da saúde nesse período de verão e queimadas . Foto: Edmar Barros/Amazônia
terra. Foto: Edmar Barros/Amazônia Latitude. Latitude.

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9 - A fumaça contém diversos elementos tóxicos e por isso, afeta a saúde humana. 11 - Segundo matéria da BBC Brasil, o estudo eima de biomassa na Amazônia
Dentre todos os problemas de saúde ocasionados pela fumaça, os mais comuns são causa danos no DNA e morte celular em células pulmonares humanas , publicado
dor e ardência na garganta, tosse, cansaço, falta de ar, di culdade na respiração, dor de em 2017, revelou que a fumaça pode causar danos genéticos nas células do pul-
cabeça, rouquidão e vermelhidão nos olhos. Foto: Edmar Barros/Amazônia Latitude. mão. Com isso, a célula pode se enfraquecer ou perder o controle de reprodução
ao crescer desordenadamente e evoluir para um câncer de pulmão. Foto: Edmar
10 - Além disso, a fumaça também pode piorar crises alérgicas como rinite e bron- Barros/Amazônia Latitude.
quite. Como afeta as vias respiratórias, é possível que o ser humano exposto a ela
possa desenvolver Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica. Os grupos mais afetados
são crianças e idosos. Foto: Edmar Barros/Amazônia Latitude.

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12 - A fumaça percorre quilômetros de distancia e agride pessoas que estão geo- 13 - alquer tipo de vida passa a ser vítima do crime ambiental. O relatório de es-
gra camente distantes quando em situações de incêndio intenso, como é o caso da pécies ameaçadas na Amazônia devido ao fogo, elaborado pela organização WWF
última onda de queimadas vivida pelo país. Foto: Edmar Barros/Amazônia Latitude. Brasil e divulgado pela revista ÉPOCA, mostra que 180 espécies da fauna e 85 da
ora estão comprometidas. Acima, os corpos de um tamanduá e seu lhote foram
encontrados na BR-230. Vítimas de atropelamento, os animais tentavam escapar
do fogo. Foto: Edmar Barros/Amazônia Latitude.

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14 - O resultado do relatório faz parte de uma análise das áreas mais atingidas 15 - Em outra região da Amazônia, que vivencia uma realidade próxima de Lá-
pelas queimadas. Para tal, os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais brea em relação aos con itos fundiários, José Candido Primo disse à ÉPOCA que
(Inpe) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) encontrou no trecho entre Aripuanã e Colniza algo nunca visto antes. Na nossa
foram imprescindíveis. Para Gabriela Viana, gerente de projetos da WWF Brasil, região, a economia é movida pela madeira e a pecuária vem logo em seguida. En-
é preciso resgatar os recursos nanceiros retirados da Amazônia que eram para tão, camos muito prejudicados, sem condições de passar isso para as entidades
ns de combate e prevenção de incêndios. Foto: Edmar Barros/Amazônia Latitude. responsáveis porque aqui quem fala mais alto é o madeireiro, é a extração da
madeira , explica. Foto: Edmar Barros/Amazônia Latitude.

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Nós vamos ter que pensar


outro processo civilizatório
Entrevista com Antônio Carlos Witkoski

A
ntonio Carlos Witkoski, convidado do segun- ria da Sociedade Brasileira de Sociologia entre 2007 e
do Latitude Podcast, é Dr. em Sociologia pela 2009, e é autor de oito livros, sendo “Território e ter-
Universidade Federal do Ceará e professor ti- ritorialidades na Amazônia”, publicado pela editora
tular no Departamento de Ciências Sociais da UFAM, Valer em 2014, o mais recente.
onde atua em diversos programas de Pós-Graduação.
O professor Witkoski desenvolve pesquisas na área da Con ra aqui a íntegra da entrevista realizada com o
Sociologia, Sociologia Ambiental e Rural nos temas: professor Witkoski durante o Seminário Internacional
sustentabilidade, ecodesenvolvimento, etnoconheci- de Ecologia Política, realizado cidade de Tabatinga-AM
mento, entre outros. Além disso, fez parte da Direto- no início de junho.

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- Professor, na sua apresentação no Seminá- numa calha de água preta você tem uma densida-
rio Internacional de Ecologia Política, você fa- de demográ ca diferente de quando você está numa
lou sobre um modo de extrativismo vegetal e calha de água barrenta (que a gente chama de água
animal completamente sustentável feito pelos branca). Então perceberam claramente que havia
povos ameríndios antes da chegada dos colo- densidades diferentes - e claro, o primeiro contato
nizadores. Considerando o contexto da racio- do colonizador foi com os ameríndios das águas. E,
nalidade econômica em que vivemos, você esse contato, não foi feito sem dor. Ele foi feito com
considera possível um regresso a esse modelo? muita dor, porque o projeto colonial é um projeto de
poder dos europeus, de uma maneira em geral, e dos
Não considero possível um regresso a esse modelo, portugueses em particular. Claro que nós estamos
mas a gente tem que colocar a coisas nos devidos na fase do capitalismo mercantilista, e o Brasil vai
lugares. O que eu comecei apresentar no evento, era se inserir na dinâmica desse capitalismo. Não só o
uma comunicação que pretendia mostrar primeiro Brasil, os países em geral que ainda não foram des-
algo que é extremamente importante e que a gente cobertos passam a ser mapeados e, claro, quando os
não pode desconsiderar quando olhar para os povos portugueses chegam na Amazônia cam encantados
tradicionais, particularmente, para os chamados ri- com o que encontram aqui. E ao entrar pela calha
beirinhos amazônicos, caboclos amazônicos ou até eles vão produzir aquilo que eu chamo no meu livro
mesmo caboclos ribeirinhos amazônicos. A nomen- de “fricção Interétnica”, que é o contato entre aquela
clatura varia um pouco, e aí tem toda uma discussão perspectiva antro eurocêntrica com as populações
na academia se essa nomenclatura é uma autorrepre- que habitavam a calha do rio que são os ameríndios
sentação dessas populações que moram na várzea ou das águas. E esse contato foi biológico também. Por-
se é uma atribuição antropológica (sócio/antropológi- que os colonizadores praticavam atos sexuais com
ca) da academia. Esse é o primeiro aspecto que temos as indígenas e isso acabou criando outra gura. O
que considerar. Então, tem uma discussão teórica que produto desse encontro, que é biológico e é cultural
não termina e é importante. ao mesmo tempo, vai acabar formando esse sujeito
social que é chamado de caboclo, caboclo ribeirinho
A pesquisa é uma grande cozinha onde você faz tudo ou ribeirinho simplesmente, que são os moradores
ao mesmo tempo. Você faz coleta de dados, você lê, das várzeas. Como eu disse na minha apresentação,
faz monogra as temáticas, você faz tudo ao mesmo eu não trabalho com populações indígenas, mas esse
tempo. Na hora que chega o momento de expor o ribeirinho é produto dessa fricção e eles são habitan-
resultado do trabalho, você precisa necessariamen- tes extremamente importantes. Porque quando você
te adotar um ponto de partida para a sua exposição apanha os dados do censo - e os dados do censo são
para tornar claro, inteligível o trabalho que pretende diferentes na Amazônia, porque não dá para pensar
apresentar para o público. E quando eu fui fazer o 80% vivendo na cidade e 20% no campo - a Amazônia
primeiro capítulo, eu falei “tenho um ponto de parti- tem singularidades. Mas se você efetua as popula-
da aqui que é extremamente importante”. E qual é o ções do Estado do Amazonas, a população que mora
ponto de partida? É o encontro da civilização euro- no mundo rural, a grande maioria está na área de
peia, os ameríndios e a Amazônia. Num primeiro mo- várzea porque morar ali tem a ver com esse processo
mento é a Amazônia. Mas, nesse primeiro contato, o histórico. Então tem uma dimensão diacrónica. Ela é
que acontece quando eu começo a trabalhar com a histórica e marcada por continuidades, mas também
documentação existente? Eu percebo claramente que por descontinuidades. A gente tem que entender
durante o projeto colonizador do período, eles en- esse sujeito como sendo resultado dessa fricção.
tram primeiramente em contato com os ameríndios
da água por motivos óbvios. Nós estamos em um pe- ando os portugueses chegam, quando há esse con-
ríodo histórico que a navegação é importante e o uso tato, ca muito evidente, nos documentos, que eu
da energia eólica é importante na navegação. Eles manejei duas racionalidades absolutamente distintas.
vão fazer todo o caminho exploratório na Amazônia Uma racionalidade é o projeto colonizador que tem o
por cima ou entrando pela foz do Rio Amazonas. Se arcabuz na mão direita e o cruci xo na mão esquerda,
eles sobem pela foz, quando se chega na cidade de e eles entram triturando os ameríndios de várzea. E
Manaus, tem o encontro das águas do rio Amazonas eu diria que, nesse processo, a cruz se faz mais im-
e o Rio Solimões. E você sobe para calhas diferentes. portante do que o arcabuz. Porque a cruz tem a ver
Mas independente da cor da água… e a cor da água é com a dominação do poder simbólico, ideológico. E o
extremamente importante, porque quando você está arcabuz tem a ver com o poder físico e com o poder

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material. Você pode aniquilar o outro, matar o outro, da forma que esse racionalismo foi se desenvolvendo,
mas com a religião você domestica as subjetividades que tem a ver com um conjunto bem diverso de lóso-
humanas dos ameríndios das várzeas e, na medida em fos que zeram a fundação do racionalismo moderno
que você vai domesticando e produzindo esse outro - esse racionalismo moderno está nas entranhas do
sujeito social (que é resultado dessa fricção Interét- sistema capitalista na forma de racionalização. Aí o
nica) você vai ter algumas situações que são assim: professor Enrique Le fala da racionalização teórica,
primeiro, tem ameríndios que vão trabalhar para o da razão instrumental, da razão substantiva que são
projeto colonial; têm ameríndios que vão lutar até dimensões importantes da razão para se contrapor a
morrer contra esse projeto colonial; e tem ameríndios essa razão. Então se a natureza da crise ambiental não
que vão migrar para a terra rme, fugindo da calha é uma crise do ambiente, mas é uma crise da razão, a
do rio e indo para a terra rme, que é o lugar mais gente precisa pensar qual é o papel histórico social e
inacessível, ou muito inacessível, para aquele momen- político que essas populações, que a gente chama de
to do processo civilizatório. Mas algo que ca muito tradicionais, qual é a contribuição que elas podem dar
claro nesse encontro é que os ameríndios das várzeas já que não é possível universalizar essa concepção de
já tinham uma maneira de manejar os recursos na- sociedade na qual nós vivemos. Não há! Há um con-
turais e de viver de uma maneira muito própria dos senso na literatura a respeito disso. O representante
ribeirinhos. Os ribeirinhos não são ameríndios, mas da ONU que veio da Bolívia falou muito claro, não são
eles herdaram (do ponto de vista cultural) muitos dos possíveis duas sociedades norte-americanas, porque
hábitos que essa população ameríndia tinha nesse não há recursos naturais pra isso. Então esse estilo de
momento do contato. civilização, essa sociedade, essa cosmologia de socie-
dade tem que ser repensada. E aí entra o papel estra-
A segunda parte da argumentação é que (para além do tégico e histórico que tem as populações tradicionais.
bem e do mal), hoje nós vivemos, como eu disse na mi- Veja bem, vocês devem ter percebido isso, as popula-
nha apresentação de maneira muito breve, mas o pro- ções indígenas não tem que car prisioneiras só da
fessor Enrique Le foi na medula óssea do problema tradição, que é uma coisa extremamente importante.
porque ele teve um tempo muito legal para falar e ele Eu não vi um indígena sem o aparelho de celular na
é um intelectual extremamente importante an- mão. Isso quer dizer que ela deixou de ser indígena
do a gente lê a obra dele, a gente percebe o interes- porque ela usa essa tecnologia? Se ela começa a usar
se dele em entender os fundamentos ontológicos das uma tecnologia de lmagem - [para registrar] os pro-
populações tradicionais. E qual é a ideia que eu tentei blemas sociais, educacionais, de degradação ambien-
passar? O atual processo civilizatório é extremamen- tal - se eles estão se vestindo, eles estão deixando de
te avassalador. Eu lembro que um dos comunicadores ser indígenas? Eu acredito que não. A gente vai ter
falou “ hoje o problema não é mais os EUA, é a China, que achar uma nova equação e acho que isso já está
porque a China é a primeira potência do Mundo.” É posto, a gente já está fazendo isso.
bem verdade, a China é a primeira potência do Mun-
do. Provavelmente hoje é. A gente acha que precisa Em trabalhar com as populações tradicionais, os ri-
de mais dados empíricos para isso, mas tudo indica beirinhos são populações tradicionais também. Só
que ela realmente seja a primeira economia do Mun- que numa outra perspectiva. Eu vou relatar um fato
do. Mas não podemos negar a força espiritual, vamos extremamente modelar que eu não falei na minha
dizer assim, que a sociedade norte-americana tem em exposição. Tem uma experiência na reserva de desen-
função da hegemonia que ela exerce sobre o mundo. A volvimento sustentável extremante importante, eles
presença dos Estados Unidos está nos quatro cantos tem um programa de manejo de pirarucu e ele foi
da Terra, e onde há recursos naturais que lhes inte- se estendendo para outras unidades de conservação.
ressam eles fazem da tripa coração para se apropriar Mas como eles chegaram nesse manejo? Os cientistas
desse recurso. Então esse processo civilizatório é ex- perceberam algumas impossibilidade de fazer a con-
tremamente degradante do ambiente. Mas uma das tagem demográ ca dos pirarucus (e o tamanho dos
discussões que nós fazemos (e está muito presente na pirarucus e aquela coisa toda). Então ali aconteceu o
narrativa do Enrique Le ) é que a natureza da crise encontro entre o conhecimento moderno e os saberes
ambiental no mundo não é uma crise do ambiente, é tradicionais que permitiu pela primeira vez essa con-
uma crise da civilização e da racionalidade que está tabilidade e manejasse essa espécie para fazer com
por trás desse processo civilizatório. Então se a gente que as comunidades zessem do manejo do pirarucu
não questionar a natureza dessa racionalidade - que uma fonte de renda. E é extremamente importante,
tem a ver com o advento do racionalismo moderno e porque o pirarucu, hoje, a gente só pode consumir

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os que vierem com selo de unidades de conservação de uma nova dinâmica do capitalismo mundial - e os
ou de manejo de pirarucu, porque é uma espécie que militares resolveram criar a Zona Franca de Manaus,
está extremamente ameaçada. Só para vocês terem o que parece um paradoxo inicialmente. Porque criar
uma noção, quando um pescador e o ribeirinho fa- uma Zona Franca de Manaus no meio (no olho) da
zem isso porque ele tem uma concepção diferente… Amazônia? Se você olhar onde está Manaus, ela ca
quando alguém pescar o pirarucu que não chegou ao num lugar muito central da Amazônia, e a gente sabe
quinto ano de idade, ele ainda não fez lhotes, ele não que o sistema capitalista é extremamente poderoso
reproduziu a espécie. Então tem uma questão de co- tanto no ponto de vista material como no ponto de
nhecimento e é extremamente importante que você vista simbólico. Não dá para gente ver a dinâmica do
só possa pescar o pirarucu depois que ele reproduziu. capitalismo sem entender o papel da indústria cultu-
A racionalidade econômica não está preocupada com ral. A indústria cultural tem um peso fundamental na
isso, mas a racionalidade ribeirinha está, porque ela reprodução material e simbólica do próprio sistema
trabalha com a dimensão do tempo ecológico, que é capitalista. É só você pegar uma novela das oito e ver
outro tempo. Não é o nosso tempo. É um tempo em qual é o universo de coisas que circula no universo
que entender o tempo de produção da natureza é ab- daquela novela. A hora da novela é a hora que as co-
solutamente importante para você fazer um bom usu- munidades se reúnem.
fruto dos bens da natureza que fornece a você. Então
essa mentalidade, essa cosmologia, essa visão está Nós temos a Primeira Economia da Borracha, que foi
muito presente nas populações ribeirinhas, só que as no nal do século XIX e começo do século XX, aí ti-
populações ribeirinhas que não estão dentro das uni- vemos uma pequena depressão. Tivemos a Segunda
dades de conservação. Porque se você zer um mapa Economia da Borracha, que foi na Segunda Guerra
das unidades de conservação, todas elas têm popula- Mundial. Nas duas quem fez a economia da borracha
ções ribeirinhas. Isso é líquido e certo. Você percebe foram os nordestinos. A migração veio do nordeste
que as populações ribeirinhas que estão dentro das para cá. Problemas da seca lá. Então há uma migra-
unidades de conservação fazem isso porque elas têm ção na primeira Economia da Borracha. Imagine você
um plano de gestão da unidade numa outra perspec- nordestino chegando à Amazônia e contrapondo os
tiva. Os ribeirinhos que estão fora não, eles estão mais dois biomas - é o bioma da caatinga e o bioma da
à mercê das regras do mercado, por exemplo. Nós te- oresta tropical; lá uma ausência de água no solo e
mos um conjunto de agentes da comercialização que aqui você chega com essa imensidão de água. Então
são uma verdadeira instituição no sentido sociológico imagine os mecanismos de adaptação dessa popu-
do termo que faz a transação econômica dos exceden- lação quando chega aqui. Na Segunda Economia da
tes da economia camponesa “varzeana”. Borracha, foi uma economia induzida pelo governo de
Getúlio, porque tinha a ver com dinâmica da Segunda
- Uma das suas recomendações na apresentação Guerra Mundial. Terminou a guerra, as demandas por
foi dizer que os povos da região da várzea desen- látex terminaram. Lógico, a Amazônia sempre esteve
volvessem um modelo de vida seguinte o ciclo imersa dentro da dinâmica do capitalismo interna-
das águas, de forma a não agredir a natureza e cional desde o começo. Depois da Segunda Economia
permitir a sua recuperação. Como essas popu- da Borracha há uma nova depressão da economia do
lações podem conciliar esse tipo de vida com a Amazonas.
formalidade e a pressão social contra cultura tra-
dicionais e sustentáveis? Então, a Zona Franca vem aparecer como salvação
para economia local. E quando ela vem, com uma for-
Esse é um grande paradoxo que a gente tem que re- ça poderosa, passa a ser um polo de atração da vida
solver. Aí eu vejo a questão mais ou menos assim. Não urbana. O processo de urbanização não ocorreu como
sei se vocês lembram, mas eu z uma crítica ao mo- um todo - ainda está ocorrendo. Mas na região Cen-
delo da Zona Franca de Manaus. O projeto tem a ver tro-Sul já ocorreu de maneira mais determinante, e
com uma geopolítica que foi criada no âmbito de um esse processo se repete aqui. Então uma parte subs-
regime autoritário. É a primeira realidade que a gente tantiva das pessoas que moram em Manaus é oriunda
não pode negar. A Zona Franca foi pensada um pouco do interior do Estado do Amazonas. É claro que na
antes, mas foi a partir do Regime Militar de 64, prin- cidade de Manaus, hoje, você tem coreano, japonês,
cipalmente depois de 68 que começa a implantação americano, paulista, gaúcho, mas a parte substantiva
da Zona Franca de Manaus, que não foi só implanta- é a população local. E aí existe uma estrutura de clas-
da aqui, foi implantada no mundo, porque faz parte se muito complexa, tem uma singularidade também.

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de ferro e vidro e, do ladinho, uma casa desa ando


a lei da gravidade, aonde você tem o carro de última
geração parado no sinal e você tem (metaforicamente
falando) uma carroça puxada por um cavalo magro
com duas rodas de Volkswagen. O projeto idealizado
era para ter o projeto urbano-industrial, mas era para
ter também o distrito agropecuário e isso nunca saiu
do papel. Tem apenas o distrito agropecuário próximo
de Manaus que é no município de Rio Preto da Eva.
Então como isso não foi criado em outros municípios,
o desenvolvimento rural no estado dos amazonas
sempre foi deixado a sua própria sorte. Foi criado em
certo momento o Zona Franca Verde, e isso aconteceu
em algumas áreas, mas foi uma iniciativa que aconte-
ceu e “desaconteceu” quase que imediatamente.

O que eu estou dizendo aqui tem a ver com a ques-


tão de um projeto de desenvolvimento nacional. Eu
acho que Brasil precisa de um projeto de desenvol-
vimento nacional e a crítica vai até o governo do PT,
antes do governo do PT… Porque as demandas que
nós temos foram se acumulando historicamente. Va-
mos pensar. atro séculos de escravidão no Brasil,
como a gente resolve a inserção do negro na socieda-
de moderna, por exemplo? E a gente sabe como é a
sociedade brasileira em relação a esse ponto de vista.
Mas o importante é dizer que a Zona Franca surgiu Mas nós tivemos quatro séculos de escravidão, foi
com a ideia de trazer o desenvolvimento e, como eu um dos países que mais usou a força de trabalho do
disse antes, ela é um modelo que utilizou de um a for- homem negro. É uma dívida que a gente tem. Mas
ça de trabalho farta, barata e desorganizada. como a gente vai fazer inclusão? Mas não são só os
Então vocês imaginem…. O ribeirinho tem uma ca- negros. São os indígenas… Há uma diversidade mui-
pacidade muito grande de manejar as coisas. Então to grande de camponeses no Brasil. E são pessoas
era um trabalhador do campo que tinha destreza nas que tem um modo de vida em que eles produzem
mãos para trabalhar na zona franca, o capital perce- não só para eles, mas também para as pessoas que
beu isso claramente. Então, essa é uma leitura que eu comem na cidade e não cultivam. Porque o agrone-
tenho. E claro, os trabalhadores vão sendo incorpo- gócio exporta, como foi dito no Seminário.
rados e a relação campo-cidade vai se dar de forma
diferente. Tanto é que nós temos em torno de quatro Primeiro falta um projeto de desenvolvimento nacio-
milhões de pessoas no estado do Amazonas e dois mi- nal. E, na minha opinião, ele não pode ser um projeto
lhões moram em Manaus. que imite qualquer outro de outro país do mundo.
Não dá certo. Não é assim que funcionam as coisas.
Então é um estado diferente quando comparo com ou- E claro nós somos muito colonizados - e colonizados
tros estados. É claro que o Estado do Amazonas tem pela sociedade norte-americana. Manaus tem qua-
uma série de cidades [com populações estimadas] en- se um milhão de automóveis. A última vez que eu vi
tre 70 e 100 mil habitantes, em grosso modo, vamos os dados era 850 mil. Como vocês explicam isso? E o
dizer assim. Então a Zona Franca veio como salvação. transporte coletivo onde está? Então nós cultivamos
E ela realmente, de certa maneira, e eu tenho que con- muito, quase que conscientemente, que o automóvel é
cordar, atrai a população para a cidade e cria uma me- uma alternativa. E eu acho que não é. Nunca foi e não
nor pressão sobre os recursos naturais. Só que, como é. Mas isso está na nossa medula óssea. Todo mundo
eu falei na apresentação, tem uma externalidade ne- quer um automóvel e a indústria do automóvel é mui-
gativa produzida pela Zona Franca de Manaus que to poderosa e está desempregando cada vez mais por
é impagável. A cidade representa a estética terceiro causa da inteligência arti cial. ando eu falo de um
mundista, onde você tem um edifício com estrutura projeto de desenvolvimento nacional, uma coisa que

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Juscelino kubitschek fez (e eu achei devastador) foi processo, essa noção de eco região é extremamente
exatamente abrir o Brasil para o capital internacional importante porque você tem que promover o que a o
e abrir para o capital das montadoras. Nós tínhamos Enrique Le chama de ecodesenvolvimento. Cada eco
que fazer isso de uma outra maneira. E eu sou de uma região você terá uma perspectiva de ecodesenvolvil-
época que andava muito de trem no Sul do país. Eu mento, o que você vai desenvolver naquela região em
sou paranaense, viajava muito de trem e com a má- função do potencial dos recursos naturais, do solo, das
quina de vapor. Então havia toda uma malha ferroviá- populações que ali estão - você tem que considerar o
ria no Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, e bioma como um todo, tanto a dimensão natural do
essa malha ferroviária foi para o espaço. E a gente fez bioma quando a cultural. E fazer isso é extremamente
a opção pelo automóvel. difícil. Nós temos certos paradigmas na nossa cabeça
que são eles que informam o que é desenvolvimento
E vão falar que o Antônio Carlos está sonhando. Claro e o que não é. Então o Enrique Le trabalha com três
que eu sonho. Eu sou um animal que cultiva a utopia. noções que é a noção de eco região, ecotecnologia e
E a utopia não tem aquele sentido de ser o inatingí- ecodesenvolvimento. Vou dar um exemplo para vocês.
vel não, a revolução francesa foi feita por pessoas que Na Várzea, por exemplo, não é possível trabalhar com
acreditaram que seria possível. A revolução industrial trator. Ponto nal. Não tem discussão.
foi feita com homens que achavam que a revolução
industrial era possível. Então a coisa está posta no- - Professor, você gostaria de deixar algum recado?
vamente. Não admito esse raciocínio que as revolu-
ções aconteceram e nunca mais acontecerão. Isso é Eu sou pessoa meio prolixa, eu sei disso. Mas as
um absurdo para mim. A história é muito dinâmica questões que vocês estão me perguntando não são
e há possibilidades de transformar o mundo em um muito fáceis de responder. Mas eu queria rea rmar
mundo melhor. a seguinte ideia: todos nós somos contemporâneos
do nosso tempo. A palavra contemporâneo signi -
E aí eu entro com um conceito que é o de Eco Região. ca ser “do seu tempo”, né? Nós somos homens situ-
A gente tem quantos biomas no Brasil? A gente tem ados e datados. Vocês que tem vinte anos cada um
o cerrado, caatinga, pampa, orestas tropicais, litoral e vão viver o século XXI todo, eu não vou. Eu não
brasileiro - uma diversidade de biomas. Cada bioma tenho esse horizonte. Meu horizonte é mais estrei-
tem uma dimensão física diferente. em chega a to, é natural, faz parte do ciclo da vida isso. Mas o
Brasília e vê o cerrado diz “nossa coisa feia o cerrado”. que eu quero dizer é que esse encontro de gerações
Não. O cerrado tem uma estética muito bonita. em é muito importante. Eu acho que a juventude de
morou lá sabe disso. Numa época do ano, as coisas certa maneira está muito desconectada de questões
nascem de maneira fantástica. Como é que nasceu? que são extremamente importantes para seu mun-
Tem a ver com a natureza da relação das plantas com do. Mas isso tem a ver com uma construção social
o solo. Na Amazônia, essa conversa é diferente. Nós também. Essa desconexão não é natural, ela é so-
temos outra singularidade aqui. O solo da Amazônia cialmente construída. E, talvez, pela primeira vez na
depende da oresta e ela precisa do solo. Existe uma história da humanidade, a gente se encontre de fato
relação simbiótica. Imagina um campo de futebol com na beira do abismo. Todos nós estamos à beira do
a chuva que temos aqui, a capacidade de erodir o solo mesmo abismo. Claro que nem todo mundo perce-
é poderosa. Não dá para pensar num projeto homo- be que estamos na beira do abismo. Teve um senhor
gêneo. Sim. Eu estou pensando no campo da utopia, que deu um depoimento no lme do Fordlândia que
mas é isso que está posto pra gente. Ou a gente faz representa o protótipo do colonizador que vem dos
isso ou a soja vencerá a oresta tropical e provavel- sul. Ele diz “esse mato não tem nada. Esse mato tem
mente a gente vai para as “cucuias”. Ou a gente pensa que ser derrubado, a gente tem que colocar soja”.
o processo civilizatório de maneira integral. Em Humaitá tem um con ito muito acentuado entre
essa corrente migratória que veio do sul e os cam-
O que acontece na China é importante. Nós temos poneses do Amazonas que são de racionalidades di-
outra situação. Porque lá tem o partido único, nós te- ferentes. Uma é da racionalidade da oresta derru-
mos uma economia de estado e de mercado ao mes- bada e a outra é a racionalidade da oresta em pé.
mo tempo. É outra história. Mas se a gente não se Nem todo mundo acha que nós estamos na beira do
atinar para que as coisas sejam pensadas de maneira abismo. Mas nós estamos, independentemente se as
global. O nosso futuro é muito estreito. Nós vamos ter pessoas têm consciência disso ou não. E quem tem
que pensar outro processo civilizatório. E, nesse outro uma consciência relativa que nós estamos na beira

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do abismo precisa fazer alguma coisa para não nos criticando, como a gente faz uma internalização dos
precipitarmos para o abismo. Eu quero que a gen- saberes tradicionais?
te saia do abismo e faça uma in exão histórica. Por
que eu acho que a presença do homem na terra é E aí outra coisa importante é que as ciências sociais e
importante. A verdade é que o homem é também é as ciências naturais não podem mais trabalhar de ma-
um animal, está na terra e está na ponta da cadeia neira separada. A gente precisa produzir o encontro
e come todos os animais e a natureza. Mas é preciso entre as ciências, ou a gente vai continuar produzindo
pensar sobre isso. Não dá mais para ser antropocêni- o pensamento simpli cador. É o homem especialista.
co. A gente não pode achar que o homem é o animal É aquele homem que não consegue compreender a
mais importante. Ele também é importante, mas os complexidade do mundo. A gente precisa historica-
insetos também são. Um dado que me deixa extre- mente aproximá-las para fazermos uma ciência consi-
mamente triste é a morte social das abelhas. A morte derando o planeta que nós temos. Se a gente não con-
social das abelhas é causada pelo homem. Ora, mas sidera isso, não vai dar certo. Não tem como dar certo.
como será o mundo em dez anos com a morte social Os recursos naturais estão sendo dilapidados, inclusi-
das abelhas? As abelhas fazem um trabalho gratuito ve de ciências em força produtivas. Não pensem vocês
para a gente, que é a polinização. O Brasil recente- que a ciência não está dentro disso. Ela está dentro
mente liberou os mais diferentes tipos de venenos. até o pescoço. Uma parte substantiva da ciência é em-
As multinacionais e o agronegócio estão muito feli- pregada, por exemplo, na produção dos transgênicos.
zes. Esses dias eu vi uma matéria de uns vinicultores Como eu vou pensar transgênicos sem ciências? Mas
do Rio Grande do Sul dizendo “olha, minhas videiras precisamos fazer uma ressigni cação desse paradig-
não estão dando mais uvas”, porque o veneno tam- ma hegemônico aproximando ciências da natureza
bém migra e vai para outros lugares também. Assim com as ciências sociais - e se aproximando também e
como os rios voadores. Toda a produção da chuva muito na articulação com essa diversidade do mundo.
que cai no Centro-Sul, uma parte dela é produzida Porque, para nalizar, o que o Boaventura de Souza
na Amazônia. Então está tudo conectado. Estamos Santos diz quando ele escreve a epistemologia do Sul,
na beira do abismo e precisamos começar a fazer ele diz que a epistemologia do Sul se contrapõe a epis-
uma crítica sobre esse modelo de civilização. Eu não temologia do Norte, que é hegemônica. Mas quando
preciso adjetivar o que vai ser a nova sociedade. O ele está desenvolvendo esse programa de ciência, ele
que eu preciso ter clareza é que esse modelo que está fala algo que eu considero extremamente importante,
aí não é inclusivo e é devastador para a humanidade que é a gente não pode na altura desse processo civili-
e para a natureza, tem evidências disso e tem dado zatório colocar na lata de lixo as mais diferentes expe-
evidências disso. Eu acho que a Universidade tem riências que nós temos que acontecem no Sul ainda e
um papel importante na produção de outras epis- que são experiências muito interessantes para pensar
temologias. Por isso, eu me aproximo de Boaven- numa sociedade inclusiva. Porque o capitalismo é por
tura de Sousa Santos, Edgar Morgan, Enrique Le , natureza excludente. O camponês que sai da Amazô-
porque são intelectuais que estão pensando numa nia, sai da várzea e vai para a cidade de Manaus, a
outra teoria do conhecimento. Numa outra maneira primeira coisa que ele vai precisar é daquilo que todo
de pensar o mundo. A maioria das pessoas não se mundo corre atrás - a mercadoria dinheiro. Sem isso
dá conta que nós estamos vivendo um momento de ele não faz nada na cidade e, no campo, faz. Uma das
esgotamento da razão. Nós estamos no momento de dimensões do nosso abismo é fazer essa articulação
crise da razão. E para reinventar essa razão a gente e tornar ela um pouco universal. Eu acredito que a
vai ter que se articular com outras que tem outras gente possa conseguir salvar a terra, salvar a gaia e
epistemologias. Os indígenas têm outra cosmolo- nos salvar.
gia, uma outra epistemologia. Se você falar isso na É isso.
academia, você é colocado no paredão. Mas é outra
epistemologia. Porque tem a ver com uma concep-
ção de natureza, trabalho, política, sobrenatural - Antonio CarlosWitkoski, Dr. em Sociologia pela Universidade
tem a ver com a compreensão do mundo. Então tem federal do Ceará e professor titular do Departamento de
Ciências Sociais da UFAM, onde atua em diversos programas
uma epistemologia aí. A grande questão para mim
de Pós-Graduação. O professor desenvolve pesquisas na
hoje é: como a gente desconstrói essa racionalidade? área da Sociologia, Sociologia Rural e Sociologia Ambiental
E não é jogar ela toda no lixo não. É ressigni car ela dentro dos seguintes temas: desenvolvimento sustentável,
por dentro tanto quanto é possível. E como a gente ecodesenvolvimento, etnoconhecimento, adaptabilidade à
incorpora esse novo conhecimento que a gente está várzea amazônica, labor, trabalho, política, entre outros.

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Ex-Pajé: o etnocídio dos


Povos Indígenas
Em entrevista, Luis Bolognesi fala sobre etnocídio, apropriação
cultural e cinema ambiental

N
o primeiro Amazônia Latitude Podcast! dade do índio em relação aos espíritos da oresta se
conversamos com Luis Bolognesi, rotei- mostra indispensável.
rista e diretor de cinema conhecido por
seu trabalho em Bicho de Sete Cabeças (2001), Como você entrou em contato com a questão
Uma história de amor e fúria (2013), a cinebio- do etnocídio, particularmente da tribo Paiter
gra a de Ellis (2016), e Bingo: o rei das manhãs. Suruí?
Na, Luis falou sobre Ex-Pajé (2018), documentário
que trata do etnocídio praticado contra povos indí- Primeiro, eu estudei antropologia na juventude, e
genas no Brasil. Na trama do lme, o pajé Perpara esse tema aparecia muito claramente porque faz par-
Suruí passa a questionar sua fé depois de seu pri- te da história das Américas. O etnocídio é diferente
meiro contato com os brancos, que alegam que sua do genocídio. O genocído é quando uma cultura ata-
religião é demoníaca. A missão evangelizadora co- ca e destrói a outra cultura matando as pessoas. Já
mandada por um pastor intolerante é questionada o etnocídio é quando uma cultura ataca e destrói a
quando a morte passa a rondar a aldeia e a sensibili- outra cultura destruindo a base cultural desse ou-

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tro povo, mas deixando as pessoas vivas. Então você questão com uma mulher como Damares Alves
destrói a cultura do outro. E essa foi à história das no Ministério da Mulher, dos Direitos Humanos
Américas. A gente teve aqui genocídio e etnocídio. e da Família? Como isso pode afetar a evangeli-
Desde o século XVI, seja na América do Norte e na zação dos índios?
América do Sul, vários povos foram massacrados e
tantos outros têm sido vítimas do etnocídio, que sig- A princípio eu preciso dizer que eu não tenho nada
ni ca que a cultura deles, ou seja, a língua, a religio- contra nenhuma religiosidade nenhum tipo de fé,
sidade, a losó ca e o conhecimento cientí co são pelo contrário. Todo respeito. E eu acho que uma
destruídos, e os corpos cam à deriva virando mão característica do Brasil é a diversidade cultural e a
de obra barata ou gente que está mendigando nas diversidade religiosa, e isso é muito saudável. Mas,
ruas das nossas cidades. eu tenho tudo contra quando uma determinada reli-
gião e uma determinada igreja tenta destruir as ou-
Eu estudei um pouco na época da faculdade em Ci- tras e se tornar a única igreja. É o fundamentalismo
ências Sociais. As faculdades que o presidente da religioso, que é o que massacra alguns países árabes
república do Brasil quer acabar, loso a e ciências e que destruiu alguns países ocidentais através de
sociais , que ele diz que não servem para nada, nos uma violência da igreja católica. Isso é muito ruim.
trazem consciência. E parece que essa turma aí não E, é quando uma determinada igreja tenta tomar
quer saber de consciência, não quer que as pessoas controle do Estado, que é o que está acontecendo
tenham o verdadeiro conhecimento sobre a nossa no Brasil. Isso é ruim. Isso é ruim para a diversidade.
história. Eu estudei um pouco isso. E, mais ou me- Isso é ruim para a característica do Brasil que é um
nos, 20 anos depois da universidade, trabalhando povo multiétnico, né? De muitas culturas diferentes,
com algumas comunidades indígenas, eu pude co- sejam dos povos indígenas, sejam dos povos afri-
nhecer os Paiter Suruí, e ali tive conhecimento de canos, sejam dos povos europeus, que se juntaram
um processo muito violento que está sendo feito para construir essa noção de Brasil que a gente tem.
hoje em várias tribos no Brasil, que são as igrejas
evangélicas entrando nessas aldeias e perseguindo Então quando a gente tem um governo que apoia o
os sacerdotes e os líderes cientí co e espirituais que objetivo fundamentalista de uma religião, que ata-
são os Pajés. E, quando eu vi esse processo extre- ca as outras, que diz que candomblé é coisa do dia-
mamente violento, em Paiter Suruí, de Rondônia, bo, que diz que as religiões indígenas são coisas do
eu decidi me dedicar à esse assunto e decidi fazer diabo, e passa a perseguir, eu tenho que me colocar
esse lme, Ex Pajé. contra isso.

Você entrou em uma questão que iríamos abor- Como cidadão, como artista, tenho que me colocar
dar, que é a evangelização dos povos indígenas. denunciando, trazendo re exão, para a gente enten-
Eu não tinha conhecimento de como esse fato der que isso é muito perigoso e nocivo. Isso vem acon-
funciona e de que um pajé poderia perder sua tecendo muito fortemente nos templos religiosos dos
autoridade para um pastor. Como você vê essa afrodescendentes que é o candomblé, umbanda, por

Foto: Divulgação

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exemplo, e outras religiões vêm sendo atacadas por catapora, varíola, gripe, etc. E esses pastores chegam
pastores evangélicos, inclusive com apedrejamento, dizendo que tudo o que o pajé faz é coisa do diabo.
inclusive botando fogo em templos religiosos onde E eles cam divididos. Eles têm se tornado, em gran-
tem vários acontecimentos em Minas, São Paulo e de parte, evangelizados. Muitos resistem. Muitas
Bahia. E o que as pessoas não sabem muito é que isso tribos resistem. No caso dos Paiter Suruí se tornam
vem acontecendo também nas aldeias indígenas. Os evangélicos, mas eles continuam respeitando o pajé
evangélicos chegam dizendo que vão ajudar - o que de forma escondida. Na medida em que os pastores
é ótimo - trazendo remédios, trazendo presentes e, evangélicos se tornam hegemônicos na região, co-
no segundo momento, eles passam a destruir o pajé, meça a comandar a vida deles e dizer que os pajés e
o líder religioso, o sacerdote e líder cientí co. Porque as coisas que os pajés fazem são do demônio. A gen-
o pajé tem todo um conhecimento sobre a ciência da te nota que esses povos indígenas acabam pedindo
oresta que é muito importante para aquele povo. E ajuda dos pajés para buscar as plantas medicinais,
eles passam a dizer que tudo o que o pajé faz é coisa para buscar as tradições de cura deles, os cantos, as
do diabo e vai virando a comunidade contra os pajés. autas, quando eles estão no aperto, mas escondida
Isso é terrível! Isso é realmente um ato monstruoso. do pastor. Porque o pastor condena esse ato. Então,
E é o objeto do lme Ex Pajé. É essa história que a eles vivem ali uma ambiguidade, uma situação muito
gente lma e põe na frente das câmeras e vê isso complexa. E os pajés vivem uma situação terrível que
acontecendo. é uma perseguição muito violenta, no sentido de não
receberem remédios, alimentos, ajudas, transportes
Entrando na questão da perda de autoridade quando precisam ir para a cidade, porque, hoje, os
do pajé para o pastor evangélico, que é o mote povos indígenas têm relação com o mundo dos bran-
do lme, ainda vemos que os personagens são cos. São muito poucos povos que conseguem viver
apegados à tradição, tanto que falam sua língua isolados. E aí nessa conexão os pajés acabam sendo
nativa. Isso faz com que o lme pareça estran- muito prejudicados, são perseguidos, são persegui-
geiro, por ser uma língua tão estranha para o dos pelos evangélicos das cidades. Então é uma rede
público brasileiro muito violenta de destruição de uma cultura.

Exato. Ele acaba para nós, homens brancos e tal, Outro aspecto cultural que vi nesse lme foi o
sendo um lme estrangeiro em uma certa medida. uso desse povo - que só fala a língua portuguesa
Na medida em que ele se passa dentro do território para se comunicar com o homem branco - de
Paiter Suruí que ainda mantém muito forte a cultura tecnologias como câmeras fotográ cas, smar-
deles, eles ainda falam a língua deles, eles mantêm tphones, Facebook, e até armas de fogo, que
as roças da mesma maneira que os antecipados de- você já mencionou, preterindo armas tradicio-
les mantinham, e estamos falando de uma cultura nais de povos indígenas. Isso é alguma forma de
de quatro mil anos, mais antigo que o cristianismo, o indígena se integrar à sociedade ou eles estão
ou seja, não é pouca tradição que existe ali. E eles cedendo à pressão?
mantêm também a cultura deles de caça. Os povos
americanos não criavam gados. A madeira deles de Esse é um debate muito rico que é difícil de esgotar
obter proteína animal é caçando, e eles têm todo um ele aqui, né? Mas nessa troca com os brancos tem o
conhecimento que é mitológico-cientí co de modo lado do etnocídio em que é quando a cultura deles
que eles fazem a caça sem extinguir os animais ca- é destruída, mas tem o lado que é quando eles se
çados, seja a tartaruga que eles comem, seja a capi- apropriarem dos nossos objetos e dos nossos valores
vara, a anta, o tatu, macacos, porco do mato, javalis, culturais que interessam a eles mantendo a cultura
eles tem métodos de caça em que permitem que os deles. Isso é legítimo. Não tem como o indígena que
ciclos de vida continuem. Então eles estão há quatro tem contato com a nossa cultura não querer um ce-
mil anos caçando e não extinguem esse animais, di- lular para se comunicar entre eles, para documentar
ferente de nós que para nos alimentar botamos uma e fotografar um animal que ele caçou, para trocar
plantação de soja ou gado e extinguimos todos os informação entre eles, inclusive para informar que
tipos de vida que existem naquele lugar. Então esse tem garimpeiro invadindo a terra deles, para poder
povo Paiter Suruí tem a cultura muito viva e man- resistir ao madeireiro que entrou lá dentro ou para
tém o universo religioso-mitológico muito vivo. Aí se comunicar na cidade, pedir uma ajuda médica
chegam os pastores com presentes, remédios para quando tem alguém doente. Então há muita coisa do
doenças que eles não conheciam, como, sarampo, universo branco que eles valorizam e que eles consi-

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deram que é positivo para a cultura deles. Então eles aí esses povos se fragilizam, e aí eles precisam contar
querem ter uma moto para poder se deslocar, eles com coisas que vem da cultura branca para se defen-
querem ter uma roçadeira elétrica, uma espingarda, der dessa própria invasão.
uma arma de fogo para poder resistir aos fazendeiros
que matam eles, aos madeireiros que matam eles, e Outra coisa da cultura branca muito interessante,
também para caçar. Os Paiter Suruí continuam fabri- que é abordada logo no começo do lme - e agora
cando arcos e echas, eles fazem arcos e echas, eles sabendo que você tem um conhecimento antropo-
gostam dessa tradição, as crianças indígenas amam lógico - a primeira aparição do Perpara é quando o
brincar com arcos e echas, mas eles também usam sobrinho dele vem da cidade trazendo uma pesquisa
armas para enfrentar madeireiros que invadem as do Cedric (um antropólogo francês) sobre eles. Dois
terras deles, né? Terra documentada deles. Terra le- calhamaços de livros escritos em francês, e os perso-
gitimamente concebida a eles vem sida constante- nagens olham aquilo e acabam ignorando o estudo.
mente invadida por garimpeiros e por madeireiros e, Tendo isso em mente, qual a importância da antro-
às vezes, eles têm que pegar em armas. 20 a 30 guer- pologia para esses povos indígenas? Como ela pode
reiros se juntam e vão tentar expulsar, na troca de colaborar com a causa dos povos indígenas?
tiros mesmo, madeireiros que estão lá dentro. Então
eles acabam utilizando e se apropriando de várias Eu acho que a antropologia é muito importante na
coisas que nós sabemos que não são apenas objetos, defesa dos povos indígenas porque é uma ciência dos
mas também conhecimentos. Música, por exemplo. brancos que passou a respeitar a diversidade cultural
Os jovens indígenas que gostam de ouvir hip-hop e de outras civilizações. É o oposto do fundamentalismo
funk. Então quando eles se apropriam dos valores da religioso que fala que o outro é o inimigo e quem não é
nossa cultura e colocam isso a serviço da cultura de- igual deve ser eliminado, que é presente no cristianis-
les parece-nos uma apropriação cultural muito legí- mo de maneira muito forte e mesmo em parte do isla-
tima e feliz. ando a nossa cultura invade destruin- mismo. Uma parcela do islamismo também tem esse
do o conhecimento cultural que eles têm de quatro olhar de matar e destruir o outro. A priori, só porque
mil anos, aí passa a ser nocivo, porque são culturas não é islâmico, ou só porque não é cristão, é meu inimi-
que tem muito valor e que tem muita potência. Tanto go. A antropologia é o oposto disso. É uma ciência dos
que são povos que estão vivendo sem bolsa-família, brancos que diz “aquele que não sou eu merece ser res-
sem ajuda do Estado, sem ajuda de ninguém a qua- peitado e agente tem que entendê-lo” e compreender é
tro mil anos da maneira deles, caçando, plantando, a melhor maneira de se relacionar, ao invés de destruir.
fabricando os próprios remédios e conseguindo vi- Então, nesse aspecto, a antropologia, nos últimos 150
ver com uma certa fatura de alimentação, de saúde. anos, tem sido uma aliada dos povos indígenas no sen-
Claro quando a gente começa a invadir a terra deles, tido de procurar entender a maneira em que eles vivem
tacar fogo em tudo, eliminar a caça, jogar mercúrio e através daí procurar estabelecer pontes de compreen-
nos rios deles e levar doenças que eles não tinham e são entre o mundo branco e o mundo deles. Por outro

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lado, o que o lme mostra é que, muitas das vezes, a Eu acho que ele ca bem nessa fronteira entre do-
prática antropológica acaba sendo cruel com eles, por- cumentário e cção. e é uma fronteira que vem
que vai lá, estuda, produz conhecimento sobre eles, sendo quebrada recentemente. Na hora que a gen-
absorve o conhecimento que eles têm sobre o mundo, te começa a querer de nir o que é documentário e
transforma isso numa tese, vende os livros, deixa isso o que é a cção, a gente percebe que as coisas se
na biblioteca da universidade e não dá nenhum retorno embaralham bastante. Porque, muitas das vezes, o
para eles, que é o que a gente mostra no lme. Um an- documentário é uma construção do diretor que está
tropólogo vai lá reúne todo o conhecimento que o nos- construído. Então ele não deixa de ser um ponto de
so personagem pajé tem sobre mitos, sobre lendas, so- vista do contador daquela história. Não existe uma
bre fábulas e produz uma tese em francês – muito bem verdade pura. O que existe é um olhar sobre a verda-
escrita e muito importante – mas não tem nem a preo- de. E quando a gente encena uma situação, a gente
cupação de traduzir isso para o Português e tornar isso pode estar encenando uma situação que ela é verí-
palatável para os próprios dica. Então é uma cção
Paiter Suruí. Essa maneira com pé no documentário.
da antropologia agir tem E o Ex Pajé, na maneira
sido muito criticada pelos de ser feito, ele trafega pe-
próprios antropólogos. Hoje, los dois territórios. Porque
quando eu faço um estudo, muita cena, a gente lmou
uma pesquisa para a minha quando elas estavam acon-
universidade, em contrapar- tecendo, como documen-
tida eu estou deixando para tário. Mas, muitas cenas,
eles, como esse conhecimen- nós reconstruímos como
to pode ser útil para eles. E lme de cção. Eles nos
é importante que os antro- contaram histórias que já
pólogos façam essa crítica. tinham acontecido, como
O lme embute essa crítica, a picada da cobra, e tudo
porque é de fato o que acon- aquilo foi reconstruindo
teceu ali. Tem lá duas mil pá- com a colaboração deles, e
ginas de conhecimento que eles atuando como atores.
foi produzido sobre eles, com E reconstruindo para do-
eles, e que não se volta para cumentário as cenas que já
eles porque está em francês. tinham acontecido, mas a
Então o lme traz essa críti- gente atuando no disposi-
ca, mas é muito importante tivo de um lme de cção.
esclarecer que é uma crítica Realmente o lme é uma
a essa conduta dentro de um fronteira entre documentá-
âmbito muito grande que rio e cção. E o lme par-
os próprios povos indígenas Fotos: Divulgação ticipou de alguns festivais
têm e que eu, como cineasta, como documentário, mas
tenho pelos antropólogos e pela importância da antro- ele foi convidado para festivais de cção, como, na
pologia para os povos indígenas. Armênia. Ele participou em competição em um festi-
val que só tinha lme cção e ele foi encarado como
Vamos entrar em outro mérito agora, falando cção. Por que, de fato, ele não faz entrevistas. O
mais de cinema e cinema ambiental. Uma coi- lme é uma série de acontecimentos. Alguns deles
sa que percebi em Ex-Pajé é que em muitos lmados como documentário, outros deles encena-
lugares o lme é descrito como documentário. dos como cção, mas a serviço de uma narrativa de
Vendo o lme, pela estética dele, parece que os documentário. Mas as coisas se misturam bastante.
personagens, mesmo que eles sejam de fato per- E eu gosto que o lme crie essa confusão de terri-
tencentes àquela tribo, tem diálogos ensaiados, tórios de de nição o que é documentário e o que é
existe uma certa poesia por trás dos fatos docu- cção. Os indígenas, às vezes, eles estão ali como
mentados ali. Até que ponto o lme é documen- personagens de documentário sendo eles mesmos,
tal? E até que ponto é um lme mais descom- mas, às vezes, eles estão interpretando uma cena
prometido com a linguagem de documentário? que eles interpretam eles mesmos, mas eles estão

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vivendo um diálogo que não está acontecendo na- mes indígenas, os documentários de re exão, que
quele momento que a gente inventou, reconstruiu, não sejam apenas os documentários que tem um
reelaborou coisas que aconteceram semanas antes e impacto mais sensacionalista, que beiram entreteni-
eles estão posando para a câmera e atuando como mento por serem mais sensacionalista no seu tema,
bons atores. Aliás, ótimos atores. Ninguém sabe di- e aí esses eles disponibilizam.
zer, quando eu pergunto, o que foi ccionado, o que
foi construído com uma dramaturgia e com inter- Então como os produtos audiovisuais estão majori-
pretação, do que estava acontecendo naturalmente tariamente sendo oferecidos por essas empresas de
na frente da câmera. Porque eles atuam muito bem. streaming, a gente vai ter que pressionar essas em-
Aliás, os indígenas são atores muito sutis, muito mi- presas como consumidores para que elas também
nimalistas e muito versáteis. Eu gosto de trabalhar tenham esse tipo de lme. O Ex - Pajé, por exemplo,
com eles como atores também. a Net ix não quis o lme, apesar de o lme ter sido
premiado no Festival de Berlim, que é um dos mais
E a cção tem um apelo maior com o público, importantes do mundo, ser premiado em Chicago,
acho que é mais fácil transmitir essa questão a que é um dos festivais mais importantes dos EUA,
um público com uma linguagem mais ccional ser premiado no festival Tudo é Verdade, que é um
do que documental dos festivais mais importantes do Brasil, nem assim
a Net ix quis o lme dizendo o lme é muito bom, a
Exatamente. Os lmes de cção tem muito mais pú- gente gosta do lme, mas não é nosso tipo de entre-
blico do que os lmes de documentários. Os festivais tenimento”. Erro. Em minha opinião um grave erro
de cção têm muito mais público do que os festivais da Net ix. Então lme como Piripkura e Beyond
de documentário. Então transitar pelo território da Fordlândia deveria estar nesses canais de streaming,
cção abre uma conexão maior com o público, sem porque as pessoas que já tem conhecimento tem
dúvidas nenhuma. acesso, uma vai falando para a outra. E esse lme,
claro que ele não vai ter a visibilidade de um Vinga-
E agora, falando sobre cinema ambiental, há dores, que é entretenimento puro, que vai falar com
uma produção de cinema ambiental brasileiro cinco bilhões de pessoas. A gente vai poder ver esses
e muitos desses lmes não chegam ao público. lmes de re exão ambiental, de re exão política e
Ex-Pajé , por exemplo, é um lme di cílimo de cidadania, que hoje são vistos por 50 mil pessoas,
se encontrar por aí, e ele levanta questões tão passem a serem vistos por cinco milhões e, daqui a
importantes para as políticas indigenistas no pouco, por 50 milhões. Então a gente vai ampliando
Brasil, assim como tantos outros lmes. As pes- quando as pessoas tem acesso. É uma briga política
soas não têm acesso a esse tipo de lme, não se sempre. E uma briga da frente do consumo. E, se a
vê eles disponíveis em um serviço de streaming, Net ix não tem Ex Pajé, e ele está na Imazon e eu
estão muito fechados em circuitos de festivais. vou comprar Imazon, então daqui a pouco a Net ix
Como você acha que o cinema ambiental, que vai querer comprar um lme que é menor, disponibi-
levanta questões que, talvez, sejam a principal lizar um documentário ambiental que é menor, por-
pauta da próxima década, pode chegar a se co- que ela sabe que tem uma parcela do seu público que
municar com as pessoas? E se ele não chega, está interessado nesse assunto. Eu acho que essa bri-
porque isso acontece? ga vem aí e ela vai ser favorável para o lme político,
para o lme ambiental, para o lme de consciência.
Eu acho que a gente tem que pressionar as empresas
de streaming que estão se tornando dominantes do A tendência, eu acho, é o mundo consumir cada vez
mercado de distribuição a ter esses lmes. Porque se mais isso. E esses canais de streaming começar a
as pessoas não tem acesso para poder ver, como elas disponibilizar. É importante dizer que o Ex Pajé está
vão ter acesso ao conteúdo? E você oferece o lme disponível no Now, no Itune, na Apple Tv e n Vi-
nas empresas de streaming e elas não querem, elas voPlay. Mas, de fato, os canais mais populares ele
falam que não é entretenimento. E é esse conceito não está sendo disponibilizado, ainda porque esses
que a gente tem que ampliar. Nós cidadãos e consu- canais ainda têm uma visão de entretenimento mui-
midores de produto audiovisual temos que começar to restrita, muito cruel, muito pouco democrática e
exigir das empresas de streaming que elas também muito pouca contemporânea. É uma visão que eu te-
forneçam a opção das pessoas poderem ver lmes nho certeza que eles vão mudar nos próximos anos.
que buscam a re exão. Os lmes ambientais, os l-

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Inquietudes ambientales,
humanas y sociales:
una entrevista con Enrique Le
Marcos Colón
Florida State University

L
a producción intelectual del lósofo y ambien- fundamentos de nuestra mediación con el mundo y
talista mexicano Enrique Le 1 está fuerte- redescubrir el valor del conocimiento tradicional en
mente marcada por el rigor del pensamiento diálogo con la academia.
crítico aunque puede confundirse con la poesía.
Es un trabajo con alma que desborda la vida en su Enrique Le 2 ha desempeñado un papel esencial en
más amplia concepción y cuyo abandono por parte el desarrollo del pensamiento, la epistemología y la
de la racionalidad económica dio lugar a la crisis investigación ambiental. Sus trabajos se consideran
ambiental. Para Le , el desarrollo sostenible está claves como precursores referenciales en investiga-
lejos de ser una salida. Necesitamos repensar los ciones emergentes como el ecomarxismo, la ecología

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política latinoamericana, la losofía y la educación de ahí es una captura de la problemática ambiental,


ambiental. Estas contribuciones trazan miradas crí- de la criticidad de la crisis ambiental por la racio-
ticas y radicales basadas, estrictamente, en diálogos nalidad económica, buscando reincorporarla en esos
heterodoxos a partir de los cuales convergen cono- términos al mismo proceso económico”.
cimientos provenientes de diversas disciplinas. La
conjunción de estos campos de estudio conforma lo El sociólogo también analiza a la elite que toma deci-
que él llama “una racionalidad ambiental en el cam- siones en nuestra sociedad. Para él, nuestros gober-
po sociecológico”. nantes no pueden promover medidas efectivas para
resolver la crisis ambiental, puesto que están suje-
El trabajo de Le analiza críticamente los efectos tos al régimen ontológico del capital que gobierna al
de la racionalidad económica en la vida del plane- mundo. De esta manera, los políticos no pueden ver
ta, la realidad de los valores de mercado, así como salidas críticas al problema, ya que sus mentes solo
el conocimiento humano como un instrumento de piensan en soluciones dentro de la lógica de la racio-
subyugación y apropiación de la naturaleza. nalidad económica y jurídica que establece los dere-
chos de propiedad sobre el capital y sobre la tierra.
En una entrevista en Tabatinga-AM, durante el Semi- Para Le Hay un orden supremo que se ha apropia-
nário Internacional de Ecologia Política, Enrique Le do del planeta para trastocarlo. Se trata de un orden
discute el escenario de la crisis ambiental en América de racionalidad que funciona, que crece y se expande
Latina. El investigador argumenta que este no es un dentro de la impronta de la acumulación del capital
problema local, sino una crisis dentro de la sociedad que no reconoce las condiciones de la vida; donde su
humana que se presenta de diferentes maneras en único imperativo es el crecimiento, la ganancia eco-
cada región y que, en el caso de América Latina, se nómica y una voluntad de poder y de dominio sobre
mani esta en una serie de con ictos socioambienta- la naturaleza, sobre todas las cosas, y que a través de
les generados por la racionalidad del mercado. una lógica utilitarista se apodera de la productividad
ecológica de la Amazonía, degradando así el orden
“El problema de América Latina no es solamente salir de la vida en el planeta”.
de la dependencia de la globalización, sino entender
cómo reorientar los procesos económicos y sociales El ecologista mexicano también de ende, como Pau-
en el sentido de la sustentabilidad de la vida. No es lo Freire, que la educación debe ser un proceso de
una cuestión única de la región, pero tiene particu- emancipación, y esto incluye a las poblaciones tra-
laridades muy propias por sus ecosistemas, por su dicionales que reclaman un aprendizaje vinculado a
diversidad cultural, por las oportunidades que tiene sus tradiciones, a sus modos y derechos de “ser-en-
América Latina para construir la sustentabilidad”, -el-mundo”, que hoy encarnan un proceso de reexis-
a rma el pensador. tencia ante el dominio del capital. Como ejemplo,
Le dice que estas poblaciones no necesitan estudiar
Enrique Le cree que la crisis ambiental, identi ca- los con ictos sociales y ambientales, pues ya están
da en las décadas de 1960 y 1970, fue entendida de inscritos en su realidad de una manera “muy ruda,
forma errónea y desviada de su sentido crítico. En muy agresiva”. Aún así, tienen mucho que reapren-
la medida que la sociedad civil, los académicos y los der, y la educación ambiental debe servir como un
políticos comenzaron a re exionar sobre los efectos proceso de re exión y de formación para sensibilizar
del crecimiento económico bajo los modelos de pro- a los humanos y para llegar a habitar el planeta en
ducción capitalista y la sociedad de consumo en la mejores condiciones de vida.
degradación de la naturaleza y sus impactos en la
vida humana, inmediatamente buscaron formas de Al extenderse sobre la educación, Le a rma que la
salir del problema dentro de los dispositivos de la universidad necesita trascender la lógica de la racio-
racionalidad que lo produjeron. nalidad cientí ca, del logocentrismo de la ciencia; lo
que implica el respeto por el conocimiento tradicional,
“Para decirlo de otra manera, si el problema era la que no pasa por el riguroso proceso de validación aca-
destrucción del ambiente como efecto de las diná- démica. En este diálogo entre el conocimiento cientí-
micas de crecimiento económico, tecnológico y de- co y otros saberes, que son otras formas de entender
mográ co, se postuló que la manera de gobernar el qué es la vida y cuáles son sus procesos de trabajo, su
ambiente y la destrucción ecológica era valorizando relación con la naturaleza y con otras sociedades, es
el ambiente en términos económicos. Lo que surgió necesario adoptar una ética de la otredad que implica

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dar la bienvenida y recibir al otro. Es necesario llevar cos. Mi inquietud fundamental es la responsabilidad
esta ética a la universidad para aprender a reconocer humana ante la crisis ambiental, la crisis civilizatoria
las otras formas de conocimiento; es decir, el saber por la que atraviesa la humanidad, por los destinos
simbólico y el conocimiento práctico que conecta a las de la vida, por el dilema sobre la manera de revertir
poblaciones con el metabolismo de la naturaleza y los un proceso que se ha instaurado en la lógica y la
sentidos de la vida. racionalidad de la modernidad; por comprender los
modos de reinscribirnos en el orden y el devenir de
Re exionando sobre su estadía en la Amazonía, En- la vida para habitar el planeta dentro de las condi-
rique Le dice que lleva en su equipaje esta expe- ciones de la vida.
riencia: “Mucho amor, amistad, mucha energía, pla-
cer de ver las nubes, de correr por el río, de penetrar MC: ¿Cómo se ven esas inquietudes con res-
en la selva, de subir a las frondas, a los canopys de pecto a la vida cuando pensamos en el contex-
los árboles, los amigos, las charlas, las pasiones mu- to del diseño ambiental que vivimos hoy en
tuas, el diálogo de saberes, la esperanza de la vida. América Latina?
Voy cargado de cosas muy buenas .
EL: El diseño ambiental de América Latina deriva del
Marcos Colón: Para empezar esta charla, me gus- diseño del orden mundial en sus efectos sobre Amé-
taría preguntarle cuáles son las inquietudes am- rica Latina. Son las formas que adopta el régimen
bientales que más le motivan en la actualidad. del capital que gobierna al mundo, y que lo afecta de
manera diferenciada dependiendo de la localización
Enrique Le : Yo diría que mi mayor inquietud am- diferenciada de los ecosistemas en el planeta, depen-
biental es mi inquietud por la vida: por la degradaci- diendo de la historia de la región y de cada uno de
ón ambiental que sufre el planeta y por la degrada- los países, de la conducción de sus procesos de de-
ción de la vida humana. La cuestión ambiental no es sarrollo, de las condiciones ecológicas y ambientales,
un tema, un objeto de estudio, un proceso interesan- de los procesos culturales y políticos; el de su inser-
te que los antropólogos podrían estudiar como la re- ción en la geopolítica de la globalización y del “de-
lación de la cultura con la naturaleza o los ecólogos o sarrollo sostennible”; de los procesos de resistencia y
los biólogos sobre la relación de lor organismos vivos rexistencia de sus pueblos y comunidades. América
con su medio ambiente y con los procesos ecológi- Latina se debate ante el dilema de cómo enfrentar la

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crisis ambiental. Pues justamente en el momento en hasta el diseño de los objetivos del desarrollo soste-
que estaba en boga la re exión sobre la dependen- nible en la Cumbre de Johanesburgo, siguiendo esa
cia que atrapó el pensamiento político, económico y vía que parece ser ineluctable de desarrollo y creci-
social de los años sesenta y setenta, irrumpe la crisis miento, pretendiendo que sea menos perversa, me-
ambiental. Entonces el problema de América Latina nos desigual, menos insustentable. Pero el tema es
no es solamente salir de la dependencia de la globa- que por esas vías de racionalización de la raciona-
lización, de descolonizar los saberes sojuzgados por lidad tecno-económica no se ha logrado resolver la
el conocimiento eurocéntrico, sino entender cómo crisis ambiental.
reorientar los procesos sociales, económicos, en el
sentido de la sustentabilidad ecológica y cultural de MC: ¿Usted cree entonces que podemos hablar
la región. No es una cuestión única de América Lati- de un gran error político en cuanto a la respues-
na, pero tiene particularidades y oportunidades muy ta ante la crisis ambiental en América Latina?
propias por la productividad de sus ecosistemas por
la gran creatividad de su diversidad cultural. Améri- EL: Si queremos hablar de las políticas públicas ins-
ca Latina tiene condiciones privilegiadas para pen- tituidas y desarrolladas dentro del esquema y las
sar en otro modo de vida, otro modo de producción, estrategias del desarrollo sostenible , podemos a r-
otro modo de habitar el planeta. Tiene, por ejemplo, mar que están inscritas dentro de un error ontoló-
la Amazonía, la enorme productividad ecológica de gico que es el origen y causa de la crisis ambiental.
esta zona del planeta para producir desde la poten- Eso nos lleva a pensar cómo desde la constitución
cia de la naturaleza misma. Y todo esto asociado al del logos humano se instauró un modo de compren-
rescate de prácticas de conocimientos, de sus sabe- sión del ser que se volvió la razón dominante sobre
res tradicionales, de la resistencia de los pueblos a el mundo; desde esa tradición del pensamiento oc-
seguir siendo invadidos y diezmados por la lógica cidental se con guró la racionalidad de la moder-
expropiadora del capital y su capacidad para rein- nidad. De esta manera, los llamados tomadores de
ventar sus modos de vida dentro de sus condiciones decisiones están ya inscritos, determinados por esa
ecológicas de vida. racionalidad que gobierna el orden y desorden del
mundo. Sus mentes están atrapadas dentro de esa
MC: Se estaba buscando una solución en los lógica que dirige sus comportamientos, sus propósi-
años sesenta y setenta, pero ¿qué pasó, a qué tos y sus decisiones; incluso sus mejores propósitos
punto llegamos? — hay peores propósitos también — están atrapados
en esa lógica, no miran ni comprenden otra manera
EL: La crisis ambiental irrumpió en el mundo en ese de dirigir al mundo. Los “dirigentes” están atrapados
momento como un acontecimiento inesperado para por este error metafísico que viene desde los orígenes
la humanidad. El desarrollo de la humanidad estaba del pensamiento ontológico centrado en una re exi-
encaminado hacia el progreso, hacia el crecimien- ón sobre el ser que ha dejado en el olvido la vida. La
to económico. Lo que pasó, para decirlo de manera historia de la metafísica, su violencia hacia la vida,
muy suscinta, es que el poder de la racionalidad que se fue codi cando, construyendo e instituyendo en
gobierna al mundo buscó la manera de reapropiarse términos de una racionalidad económica y de una
esta problemática, de incorporarla y resolverla den- racionalidad jurídica que establecen los derechos de
tro de sus propios ejes de racionalidad. Para decir- propiedad sobre la tierra, sobre la naturaleza, sobre
lo de otra manera, si el problema era la destrucción el ambiente y sobre el mundo. Esta racionalidad ha
ecológica del planeta, la respuesta desde los poderes conducido la tendencia del devenir de la historia y
hegemónicos ha sido la de gobernar el ambiente va- destinación del mundo y de la vida, hacia la muerte
lorizando la naturaleza en términos económicos. Lo entrópica del planeta.
que surgió de ahí fue un proceso de simulación, la
captura y cooptación de la criticidad de la problemá- MC: La ontología de la diferencia partiría en-
tica ambiental, por la racionalidad económica que tonces de una disfunción originaria entre el or-
ha buscado reincorporarla en sus propios términos den de lo real y el orden de lo simbólico, que
al mismo proceso económico, reduciendo la susten- hoy reclama una ética de la otredad y a la vez
tabilidad en términos de un crecimiento económico una política de la diferencia?
que pretende ser ecológicamente sustentable, más
igualitario y justo. Desde la Agenda 21 que se con- EL: Correcto. El desconocimiento de esa diferencia
guró luego de la Comisión Brundtland en Río 92, radical ha conducido al pensamiento metafísico ha-

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cia la construcción forzada de un mundo fundado


en la ontología de lo Uno, de lo Universal, que han
conducido al “pensamiento unidimensional” y hacia
la reducción ontológica de la diversidad conducida
por la unidad del valor del mercado.

MC: ¿Cómo podemos pensar los imaginarios


culturales de la sustentabilidad una vez que ne-
cesitamos del imaginario simbólico para poder
sublimar la realidad?

EL: Debemos traducir la tópica del inconsciente la-


caniano, llevándolo de la comprensión del funcio-
namiento del orden inconsciente hacia los modos
de comprensión del orden y del metabolismo de la
vida, allí donde el orden de lo real se mani esta en
el comportamiento y la dinámica de la vida misma,
en el metabolismo de la naturaleza, en la captación
de energía solar y su traducción en biomasa, en la
producción de la historia natural de la biosfera, de
este gran ecosistema planetario donde ha evolucio-
nado la vida hacia la diversidad de especies y que ha
constituido la biodiversidad en la que se mani esta
lo real de la vida. El orden simbólico que irrumpe
de la diferencia originaria con el orden simbólico no
está en las plantas, ni en el sol; está con gurado en
los imaginarios de los seres humanos que han ha-
bitado e intervenido los ecosistemas de la biosfera
desde su orden simbólico, o sea de su lenguaje, sus
cosmovisiones, sus mitos y sus rituales de vida. Los
imaginarios de la vida son los complejos de modos
de comprensión de la vida de los pueblos, asociados
a sus prácticas concretas de vida: a sus mundos de
vida y sus modos de ser en el mundo. Los imagina-
rios culturales guían las prácticas que enactúan el
metabolismo de sus territorios de vida, adaptándose
y transformando sus procesos ecológicos, domesti-
cando especies, dirigiendo la evolución biológica a
través de su orden simbólico, de los modos de signi-
cación de la naturaleza que habitan; conduciendo
de esa manera la dinámica del ecosistema, sus con-
diciones de resiliencia; es decir, insertándose y trans-
formando las condiciones de la vida.

MC: ¿De qué modo estos otros órdenes ontoló-


gicos, estos otros horizontes de sustentabilidad
afectan el orden de la vida?

EL: Lo que tenemos que entender es la manera como


esa diferencia originaria entre lo Real y lo Simbólico
se conjuga en los modos de actuación de los pueblos
de la tierra, en los destinos del planeta a través de la
manera como inciden en el metabolismo propio de la
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vida. Eso en cuanto a los modos de vida propios de y la educación como un proceso de re exión sirve
los pueblos. Pero hay un orden supremo que se ha para formar seres humanos que aprendan a vivir en
instaurado en el planeta, que se ha apropiado y que las condiciones de la vida; que aprendan no solamen-
domina al mundo trastocando el orden de la vida de te en la escuela sino en sus prácticas culturales, allí
la biosfera; es un orden de racionalidad que funcio- donde la escuela sea la vida cotidiana. Es allí donde
na, que crece siguiendo una impronta que no reco- la educación pasa de ser simplemente un proceso de
noce las condiciones de la vida; donde su imperativo re exión crítica hacia una práctica reconstructiva de
categórico es el crecimiento, la ganancia económica la vida, donde se construyen las estrategias de de-
y una voluntad de poder y dominio sobre la natura- fensa, de resistencia y de re-existencia, de vida. Más
leza, sobre todas las cosas; que a través del meca- allá de la escuela como institución que enseña a los
nismo instaurado en la racionalidad económica, en niños, jóvenes y adultos a leer, a escribir, en n, ese
el proceso económico del capital, se extiende por la tipo de aprendizajes que son esenciales para la vida,
tierra, por la Amazonía, trastocando su complejidad se transforma en una educación como un proceso de
ecológica y el orden de la vida; degradando las con- emancipación de la vida.
diciones de resiliencia, de reproducción, de estabili-
dad capaces de dar soporte para reconducir la vida MC: ¿De que manera usted ve cómo la acade-
hacia otros horizontes de sustentabilidad de la vida; mia, así como otros grupos de interés respon-
donde el orden simbólico pueda restaurar una vida den a la realidad indígena, y la manera como
sustentable en nuestro planeta. puedan abrirse a una re exión sistémica entre
esos grupos y la sociedad en su conjunto?
MC: ¿De qué manera la educación ambiental po-
dría ser un proceso de emancipación de la vida? EL: La posibilidad de abrir el encuentro entre la aca-
demia y los mundos indígenas depende de los aca-
EL: La educación no debería ser un aparato ideoló- démicos que formamos en las universidades, de la
gico del Estado, como lo pensaba Althusser, un dis- posibilidad de romper el esquema de la universidad
positivo de poder o un mecanismo de dominación de tradicional que está muy llevada por la racionalidad
la población, sino un proceso de emancipación como cientí ca hacia un diálogo de saberes. Eso implica
lo pensaba Paulo Freire. Y esa emancipación la en- que la universidad salga de la universidad hacia los
tienden bien los pueblos de la tierra. Reclaman su pueblos, que establezca un respeto a y una dispo-
derecho de ser en el mundo, de ser como son, de ser sición a dialogar con esos otros saberes que no se
amazónidas, de ser negros, de ser desde sus raíces, legitiman a través del método cientí co, de la verdad
sus razas, sus orígenes; del derecho a reconstituir sus cientí ca; es decir, que sólo reconocen a sus pares
identidades desde la reinvención de su relación con académicos y a las instituciones que valoran sola-
la naturaleza y sus relaciones sociales. Entonces la mente el conocimiento objetivo, la publicación en
educación se vuelve un modo de apoyar ese proceso revistas cientí cas, y muchas veces sólo aquellas en
de emancipación en el sentido de que todos los se- ingés como lengua franca de mla ciencia universal,
res humanos, todas las culturas que han aprendido que mantiene un dominio colonial sobre los otros
y que han convivido con la naturaleza, hoy en día saberes en los que se fundan otros mundos de vida.
reclaman un reaprendizaje de la vida. Abrirse a un diálogo de saberes implica un compro-
miso, una voluntad de los académicos de las univer-
Hoy estamos insertos en un proceso histórico que sidades para abrirse y conectarse con el mundo de
nos conduce a pensar el estado del mundo, la crisis afuera y con los otros saberes. Eso está generando,
ambiental y el cambio climático que afecta las con- en los casos que se están dando, que todavía son
diciones de resiliencia de los ecosistemas y las con- pocos, una riqueza enorme de recreación de cono-
diciones de existencia de la gente. Hoy precisamos cimientos. En este encuentro entre el saber cientí-
comprender cómo el narcotrá co, cómo el extracti- co, el saber intelectualizado, racionalizado, y esos
vismo minero, cómo las siembras transgénicas están otros saberes que son otros modos de comprensión,
están invadiendo, afectando y trastocando las condi- de sensibilidad, de comprensión de lo que es la vida
ciones de sustentabilidad de sus territorios de vida de y lo que son sus procesos de trabajo, sus procesos de
los Pueblos de la Tierra. Los pueblos que viven en sus relacionamiento con la naturaleza y con otras socie-
territorios ancestrales no necesitan un profesor que dades. La convivencia con otros grupos sociales se
les enseñe; ellos lo saben porque lo viven de manera funda en una ética de la otredad, en la disposición de
muy agresiva. Pero hay muchas cosas que aprender, recibir al otro, de acoger lo otro, de dar derecho de

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existencia a lo que no puedo yo traducir en términos EL: Absolutamente. Es otra manera de comprender
de lo uno, del yo, de lo mismo, del saber cientí co. la ética de la otredad. La violencia hacia el otro es
Esa ética de la otredad hay que llevarla a la univer- una violencia hacia nosotros mismos.
sidad para aprender a reconocer y a respetar esos
otros modos de ser y de saber, que son las cosmo- MC: ¿ é impacto simbólico tiene el discurso
visiones, los imaginarios, los modos de cognición y de un jefe de estado, en este caso especí ca-
los saberes prácticos que conectan a las poblaciones mente Brasil, sobre nosotros?
con el metabolismo de la naturaleza.
EL: Efectivamente el discurso de un jefe de estado
La antropología estudia la racionalidad de la conexión tiene un impacto simbólico sobre nuestras vidas
entre el mundo simbólico e imaginario de los pueblos cuando atenta contra nuestra libertad y nuestros
con su ambiente, pero la realidad del cambio global, modos de vida. Pero lo más terrible es que se trata
de la sustentabilidad del mundo se moviliza a través de un discurso perverso, cuyo impacto no es mera-
de la relación que tienen los procesos de intervención mente simbólico, sino que es muy real porque afecta
directa de los procesos productivos sobre el metabolis- nuestras condiciones materiales de existencia. Por-
mo ecológico de sus territorios movilizados por dife- que al negar el derecho de existencia de los pueblos
rentes imaginarios y racionalidades; ya sea a través de y a sus territorios de vida, como está ocurriendo ac-
los modos de explotación, los procesos de extracción tualmente en relación a la Amazonia y los amazóni-
y transformación de la naturaleza movilizados por el das, la falta de respeto a los derechos de ser de estos
capital, o los procesos extractivistas en sentido ecológi- pueblos, a sus modos de vida, desencadena las fuer-
co, sustentable, fundados en el reconocimiento de los zas del mercado y de la tecnología que expropian y
ciclos de la naturaleza, asociados a los mitos y los ima- degradan sus territorios de vida. No sólo desencade-
ginarios de los pueblos, a la relación con el cosmos, con na esas fuerzas que destruyen la complejidad ecoló-
sus dioses, con la tierra y con sus otros, a través de sus gica de la Amazonia y la desposesión de sus tierras,
prácticas productivas y sus modos de vida. sino que desatan las fuerzas de los poderes fácticos
que atentan contra la vida misma de sus líderes y
MC: ¿ é sería la ética de la otredad? pobladores, defensores de las orestas. O sea, les da
licencia para matar directamente. Cuando los jefes
EL: La ética de la otredad va más allá de conocer, de de estado que no han re exionado sobre estas cues-
pensar la verdad de las cosas, o la realidad del mundo, tiones llegan a las instancias de máximo poder en su
a través de una relación de representación entre el país, sea Estados Unidos, sea Brasil, o sea cualquier
concepto abstracto y un mundo objetivado. La rela- otro -estamos hablando de estos enormes países- y
ción de otredad es una relación ética que Emmanuel un presidente se expresa de esa manera, está dando
Levinas entiende como la “Epifanía del Rostro”. Esta licencia para matar al otro; una licencia que se han
relación no es entre dos entes objetivados, no de tra- dado los poderes fácticos y el crimen organizado aún
duce a través del lenguaje, no reduce tu ser y tu co- en países con gobiernos más democráticos, donde
nocimiento al mío. Implica un respeto de algo que es prevalece la impunidad y la victimización de los acti-
otro que yo, algo absolutamente otro; que para com- vistas ambientalistas, porque no tienen la capacidad
prenderlo no debo tratar de traducirlo a mi yo, a mi y los medios para hacer valer la justicia ambiental y
esquema de saber o de conocimiento. La ética de la el respeto a la vida. Donde la vida no se respeta por-
otredad busca sí, hasta donde sea posible, compren- que cualquier terrateniente va y mata a un caboclo
der, entender al otro y lo. Pero sobre todo es la dispo- que está defendiendo su tierra, su bosque, su modo
sición a darle derecho de existencia al otro y a lo otro; de vida, en la Amazonía y fuera de la Amazonía, en
respetar aquello que no puede ser traducido, incluso cualquier lugar del mundo.
comprendido por mí. Es el derecho de existencia de
algo que no remite al logos, a lo uno, al yo. Es pues terrible cuando llegan al poder personas que
no tienen que desconocen los derechos humanos y
MC: Pienso que el impacto del discurso que ambientales, cuando lo único que comprenden es su
muchas veces los líderes políticos mantienen voluntad de poder. Cuando Trump declara inexisten-
se opone a la búsqueda de una libertad huma- te el cambio climático y creen que el mundo debe ser
na más amplia, porque cuando atacamos la li- dirigido por la libre competencia; o más aún, cuando
bertad de los indígenas nos estamos atacando decide que no es el libre mercado el que debe gober-
a nosotros mismos. nar sino su voluntad de decidir qué se comercia, qué

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Foto: Amazônia Latitude

impuestos pone, qué aranceles coloca para erigirse al a través de mi pensamiento es a la palabra pri-
en el dios del mercado y de la biosfera. Vivimos en un migenia de Heráclito. El Fuego de la Vida no es sólo
mundo de una paradójica democracia, en la que los una metáfora, sino es una mención de la palabra
presidentes siguen teniendo un poder supremo en el de Heráclito. Lo que estoy mencionando es su ma-
mundo, en el que se sienten y operan como dioses ravillosa, su deslumbrante y fogosa intuición de la
con el derecho de decidir los destinos de la vida en Physis como el ser de la vida. Busco rescatar del
el planeta. Su efecto no es nada más simbólico, sino olvido metafísico esa primera gran comprensión so-
que moviliza procesos económicos, tecnológicos, po- bre todo lo que emerge en el mundo, esa potencia
líticos, ecológicos, que van asediando y destruyendo emergencial de todo lo que existe, que él denomina
vidas humanas y la vida en el planeta. Physis. Ese es el Fuego de la Vida, eso es lo que
quiero traer ahora al frente de la discusión. Para
MC: Cuando escuché su ponencia recordé a este mundo que no reconoce, que no acredita que la
Gadamer que escribió su Verdad y método, un naturaleza es productiva, que hay una potencia de
libro que era un legado de toda su vida, su ex- vida en la propia naturaleza y que ven la naturaleza
periencia, estaba cargado de todo su horizonte como algo que hay que objetivar, que hay que apro-
de perspectiva. De la misma forma, pensé que piarse, que hay que dominar y reducir a un recurso
su libro El Fuego de la Vida es algo así como un natural, a una materia prima, a un valor económico.
legado suyo. Atraer esa primera intuición al campo de la cues-
tión ambiental rea rma la comprensión de que la
EL: Espero que así sea, pues es el libro en el que bus- vida proviene del cosmos, de la auto-organización
co deconstruir las causas metafísicas de la crisis am- de la materia, de la evolución complejizante de la
biental, así como repensar y recomprender la vida: vida en términos de la actual bio-termodinámica,
reivindicar, instaurar y dar curso a la potencia de la que Heráclito mencionó simplemente como Physis.
vida y a los derechos de la vida en nuestro planeta. Esa emergencia diversi cante es la fuente de la di-
versidad de todas las cosas que existen en el mundo
MC: Entonces, ¿a qué nos invita El Fuego de la y es el fundamento de lo que hoy podemos pensar
Vida? Es tan fuerte el título, pero ¿qué metáfo- como una ontología de la vida. La ontología de la
ras trae entre líneas esta invitación? diversidad está ahí inscrita y escrita en la Physis
de Heráclito; y eso es lo que quiero revivir con El
EL: Realmente a quien busco atraer al mundo actu- Fuego de la Vida.

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MC: Y cuando pensamos esto, regreso a su char- están aniquilando la vida en el planeta.
la y la lectura sobre los otros posibles , ¿qué MC: ¿Cómo usted ve la importancia de la con-
otros posibles de vida usted vislumbra aquí, a tribución cientí ca de los pueblos originarios
partir de lo que usted habló, para los pueblos en contrapartida al modelo que tenemos actu-
originarios de Amazonía? almente en rigor del capitalismo racional?

EL: Lo que viuslumbro es el hecho de que la Physis, EL: Hoy no sólo se da una confrontación entre
al ser emergencia de diversidad, abre la posibilidad el capitalismo racional y los saberes y modos de
de otros posibles, del posible de la emergencia de ser con la naturaleza de los pueblos originarios
la vida misma hacia la emergencia de otros mun- como dos racionalidades y dos estrategias con-
dos posibles. La vida genera lo posible, otros mun- trapuestas de apropiación de la naturaleza y de
dos posibles que no sabemos de antemano lo que construcción de territorios de vida. Yo no llamaría
van a ser, pero lo que genera es esa potencia vital conocimiento cientí co a los saberes de los pue-
de muchas posibilidades de la vida. El régimen del blos de la tierra. No por menospreciar sus saberes
capital, de lo uno, de lo universal, de la racionali- sino porque no están regidos por el método, por el
dad que domina ontológicamente al mundo, busca modo de producción o validación del conocimien-
to cientí co. Pero eso no deslegitima ni desconoce
reducir esa diversidad a un pensamiento único y
la potencia y sentido de sus saberes, de los cuales
unidimensional: reduce la diversidad ontológica del
depende su vida. Esos saberes han conducido la
mundo a la ontología del valor económico, valori-
coevolución de los pueblos con sus territorios de
za todo en términos de valor económico y a través
vida. La confrontación que se da hoy en día con
de valorizarlo como valor económico, conduce los el capital es el hecho de que el capitalismo, que
destinos de la vida en ese sentido de uni cación por un lado puede despreciarlos por no ser cien-
y de la objetivación del mundo que van matando tí cos, por otro lado los reconoce como fuente de
los posibles de la vida. La ontología de la vida que ganancia a través de las estrategias del “desarrollo
viene de la Physis abre el mundo a la diversidad, a sostenible” que buscan penetrar, dominar y trans-
los posibles, a muchos posibles. No a todo lo po- formar a la naturaleza a través de los procesos de
sible, porque están siempre las leyes límites de la etno-bio-prospección de las riquezas genéticas de
naturaleza, de la entropía por ejemplo. Pero una la biodiversidad. A través del saber cientí co se
cosa es entender que la diversidad se enfrenta a la orientan para saber qué plantas tienen elementos
entropía como una ley límite de la naturaleza; otra que pueden ser útiles y capitalizables. El saber de
cosa es comprender que no es la entropía per se, los pueblos les da pistas que orientan un proceso
sino la ley del mercado lo que está transforman- de prospección tecnológica y económica para va-
do la biodiversidad de la Amazonía en plantaciones lorizar los recursos que han sido fuente de vida
forestales y cultivos transgénicos que incrementan de los pueblos, y que el capital se reapropia a tra-
la ganancia del capital pero reduciendo la biodiver- vés de los “derechos de propiedad intelectual”. La
sidad, matándola incluso, para producir monoculti- industria alimenticia o la industria farmacéutica
vos de celulosa, de acaí, o de soja. O como lo fuera hoy en día se orienta muy fuertemente a través de
en su momento la industria del caucho, es decir, esos modos de apropiación de los saberes tradicio-
el uso de la tierra y del ecosistema para producir nales hacia la capitalización de la biodiversidad.
aquellas especies que producen más ganancias se-
MC: Para nalizar, usted ha pasado unos días con
gún lo determina el mercado. Eso es ir en contra
nosotros aquí. Mi pregunta es ¿qué carga en su
de las leyes de la propia vida, y eso genera algunos
mochila de regreso a casa, de aquí del Amazonas?
posibles, pero unos posibles muy perversos, que
desmatan la oresta , que matan la posibilidad
EL: De regreso a casa voy cargado de mucho
mucho más amplia de la vida misma y la creati- amor, de mucha amistad, de mucha energía; del
vidad de los pueblos que actúa dentro de esa on- placer de ver las nubes, de correr por el río, de
tología de la vida. Esa es la mayor riqueza de la penetrar en la selva, de subir a las frondas, a los
vida para la humanidad. Y cuando no se respeta canopys de los árboles; de los amigos, las charlas,
esa riqueza de la humanidad que proviene de las el diálogo de saberes; de las pasiones comparti-
condiciones de la vida, se llega a matar la vida de das y las esperanzas mutuas. Voy cargado de co-
la gente que se opone a los emprendimientos que sas muy buenas.

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MC: De acuerdo a la perspectiva de lo que us- sistencia y rexistencia. e son la mayor esperanza
ted vio aquí en la triple frontera, ¿qué mensaje que tiene el planeta y que están llamados a ocu-
dejaría a este conjunto ecléctico de vida, de fue- par esa responsabilidad con la vida. La humanidad
go, que es de verdad una combinación de vida y depende de su capacidad de resistir, de rexistir, de
fuego, aquí en Brasil, Perú, Colombia, qué men- combatir, de revivir, de in amarse con el fuego de
saje daría de esa simbiosis de vida? la vida que ellos conocen, de su propia energía y del
erotismo de la vida de la Amazonía; que se fecunda
EL: e es una magní ca oportunidad para pro- y orece en sus orestas; que se concentra y vibra
vocar un diálogo de saberes entre diferentes cultu- en esta región del planeta; que late con fuerza en el
ras, pueblos y comunidades, más allá de que sean corazón de sus pueblos. Y decirles que estaremos
peruanos, colombianos y brasileños. La diversidad con ellos, acompañando solidariamente este proce-
de culturas que ya hay aquí, junto con las acade- so de resistencia y creatividad de la vida.
mias, con los intelectuales de las universidades,
sobre todo las amazónicas, pero en general en las
universidades de Brasil y Colombia que tienen esa Doctor en estudios culturales por la Universidad de
voluntad de abrirse al diálogo con los pueblos ama- Wisconsin-Madison, profesor en el Departamento de
zónicos y con los pueblos de la tierra. Decirles que Lenguas y Lingüística Modernas de la Universidad Estatal
tomen conciencia, que los pueblos ya saben, de que de Florida, fundador y redactor jefe de la Revista Digital
viven en el lugar privilegiado de este planeta. e Amazônia Latitude y director y produtor del documental
resistan a los embates del narcotrá co, de la narco- Beyond Fordlândia: An Environmental Account of Henry
-economía, del extractivismo minero y de los cul- Ford s Adventures in the Amazon.
tivos transgénicos, de las industrias madereras, de Una versión de esta entrevista fue publicado en la revista de
todas esos procesos que matan la vida; que confíen Historia Ambiental Latinoamericana y Caribeña (HALAC):
en que pueden generar una sinergia positiva de re- h ps://www.halacsolcha.org/index.php/halac/article/view/452

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O poeta na selva:
aflito, mas vivo
Lúcio Flávio Pinto

Como o menino Pablo vê o Xingu. Foto: Divulgação / Pablo Vieira

P
oetas se tornaram aves raras no mundo atual. Paulo Vieira nasceu em 1978, em São Miguel do
Ainda mais numa capital de fronteira como Be- Guamá, Pará, mudando-se para Belém em 1980,
lém. E, sobretudo, produzindo na própria fron- onde viveu até 2011. É Engenheiro Florestal e Pro-
teira, como Altamira, a principal cidade sob in uên- fessor de Literatura na UFPa, Campus Altamira.
cia da quarta maior hidroelétrica do mundo. Paulo Publicou Infância Vegetal (IAP, 2004), Orquíde-
Vieira é esse poeta fessor de literatura, observador as Anarquistas” (IAP, 2007), “Livro para distração
da natureza e intérprete de uma poesia de vanguar- na tragédia” (FCP, 2008), “Livro para pescaria com
da, que chega a maturidade com seu novo livro, Be- linha de horizonte” (Embrapa, 2009), “Retruque /
lembrada, que está sendo lançado agora. Retoque, Livro-CD (Vieiranembeira, 2010), Peso

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Vero (Vieiranembeira, 2011), Pablo no mundo coré, Humaitá, Apuí, Boca do Acre, Lábrea. Também
das nuvens” (FCP, 2017), “Arte, erotismo, nature- z trabalhos em Rondônia, na Resex Cuniã. No lado
za e amizade: os diários de Max Martins” (Inter- oriental da Amazônia brasileira, já havia atuado em
meios, 2017). diferentes projetos e instituições, percorrendo muni-
cípios do nordeste paraense. E tantas outras cidades
Publicou poemas na revista Poesia Sempre da Fun- e rios de Santarém a Belém. Mas àquela altura, por
dação Biblioteca Nacional – RJ, na Revista de Es- muitas razões que aqui não cabe citar, eu dei o fora
tudos Avançados da USP (Dossiê Amazônia I) e na da oresta.
Revista Cult, entre outras impressas e digitais. Parti-
cipa da coleção Roteiro da Poesia Brasileira - Volume Gira-mundo, e veja onde vim parar, na terra do
Anos 2000, Ed. Global. Recebeu duas vezes o Prêmio meio, exatamente onde, ainda mais na atualidade,
de Literatura do Instituto de Artes do Pará (IAP). a questão socioambiental explode a cada dia. So-
Também duas vezes o Prêmio Dalcídio Jurandir de bre como vejo Altamira? Eu co com a de nição
Literatura. Recebeu ainda o prêmio de Livro Desta- de Eliane Brum, a outra jornalista brasileira que,
que no 4º Prêmio Literário Internacional da Casa de como você, se concentra em denunciar as agres-
Cultura Mário intana e o Prêmio Bolsa Funarte sões contra a Amazônia. Ela nos conta, no recente
de Criação Literária. artigo, A notícia é esta: o Xingu vai morrer , que
Altamira é o epicentro dos con itos amazônicos,
Paulo respondeu ao questionário que lhe enviei. redescoberta periodicamente para, em seguida,
ser esquecida.
Como um poeta engenheiro- orestal vê
Altamira de perto? Como as duas especialidades Já quanto à segunda pergunta, minha resposta é a
se conjugam? descrição da vida que levo como professor de lite-
ratura em Altamira no curso de Educação do Cam-
Eu estive em Altamira pela primeira vez há cerca de po, na Faculdade de Etnodiversidade da UFPa. Aqui
dez anos, em uma expedição como pesquisador do dou aulas sobre poesia, prosa e arte para um público
Instituto de Educação do Brasil (IEB), enquanto vi- muito especí co, lhos de agricultores, de extrativis-
sitava áreas de oresta em municípios ao longo das tas, ribeirinhos, porque o curso é inteiramente dedi-
rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá. Lem- cado a eles.
bro que esse era um trabalho tenso, pois tratava de
investigar os tipos de contratos estabelecidos entre er dizer, se antes eu trabalhava principalmente
madeireiros ilegais e famílias de agricultores. Em Al- com os agricultores, hoje trabalho mormente com
tamira, depois de encarar o esverdeado rio Xingu, vi- os lhos dos agricultores de Altamira, Brasil Novo,
sitamos a UFPa, entrevistando alguns professores e Uruará, Medicilândia, Placas, Anapu, Gurupá, Porto
também famílias de agricultores em algumas viciais. de Moz, Souzel. Se antes falava sobre a importância
da oresta em pé. Hoje, também.
O curioso é que embora eu soubesse que aquele era
meu último grande trabalho como engenheiro o- Agora, penso que se tivesse me tornado professor de
restal – ideia a qual eu já começava a me habituar, uma Faculdade de Letras aqui na capital da tran-
pois era uma opção pessoal – por outro lado, algo samazônica, seria, talvez, um tédio, considerando o
que eu sequer suspeitava é que Altamira e a UFPa orestal que sou. E, por outro lado, se me tornasse
se tornariam a minha casa tempos depois. Assim, professor de uma Faculdade de Engenharia Flores-
alguns meses após essa extenuante e quase intermi- tal, aí eu nem seria eu mesmo, porque nunca quis
nável viagem eu deixaria a pro ssão de engenheiro atuar nessas frentes cheias das Stihl e dos Cater-
orestal de lado para embarcar numa outra expedi- pillar. Tudo posto, eu saí da oresta, mas a oresta
ção – a de um doutoramento em literatura brasileira me puxou de volta.
na Universidade de São Paulo.
A sua poesia tem raízes? ais? E os seus enlaces?
Eu estava cansado da vida de orestal. Já havia tra-
balhado por muitos anos em frentes que buscavam Desde cedo tive muita disposição e curiosidade crí-
construir e consolidar a quase utopia do manejo o- tica pra pensar poesia. Nessa acepção mesmo, das
restal comunitário e familiar. Estive no sul do Ama- raízes, dos enlaces, isso tudo sempre me interessou
zonas, naveguei pelo rio Madeira, andei por Mani- e animou, o que hoje em dia me ajuda a ser profes-

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sor de literatura. Portanto, em certo sentido, sempre mim uma temporada de viagens, inclusive, no livro,
fui um poeta-crítico de literatura mesmo antes de registrei, em certos poemas, os lugares onde foram
escrever um livro de crítica literária como é o meu escritos. Assim, Belembrada é um livro quase total-
“Arte, erotismo, natureza e amizade: os diários de mente escrito fora de Belém.
Max Martins (Intermeios, 2017)”.
al o signi cado para você de nascido na
Me lembro que, no começo, eu lia Baudelaire, Drum- Amazônia?
mond, Rimbaud, João Cabral, Rilke e divagava (para
além das belezas e das desgraças brotando daqueles Na foto da capa de Belembrada, feita num m de
versos) de onde vem isso? al a origem? an- tarde pelo menino Pablo, se pode vislumbrar parte
tos mistérios…”. Muito bem, mas se me entretenho de uma embarcação naufragada. É a minha metá-
buscando re etir sobre a minha própria poesia não fora de Belém, onde cresci, engolida pelo violentado
consigo ir muito longe, porque me vem o óbvio (ou o rio Xingu, num enlace impossível se não fosse oní-
supostamente óbvio). rico, mas sem colorido, porque há muito de nossa
grave e dura realidade nessa fotogra a. Aqui estou,
Por outro lado, não quero deixar você sem respos- longe e perto de casa. Longe de casa e em casa, ao
ta… A morte sempre foi minha principal compa- mesmo tempo, pois a Amazônia também é, entre
nheira de viagem poética, um erte muito sério tantos símbolos, esse sentimento de distância com
desde cedo, até bastante exasperador, em meio a gosto vegetal.
uma natureza não situada, não declaradamente
amazônica, mas inelutavelmente desse lugar. No Um poeta que nasceu, cresceu e escreveu na
fundo, talvez, entre contemplação (rios, árvores, Amazônia pode sentir, na leitura, de modo muito
mar, noite, solidão, sóis, silêncios, tardes) e buscas, mais íntimo, familiar, por exemplo, os versos de
uma desmedida vontade de viver é o que se deixa um poema como “Batuque” de Bruno de Menezes
ver num olhar mais detido sobre esses versos, a boa do que os versos de “Essa negra Fulô”, de Jorge de
e velha contradição da poesia. Mas aí já estou me Lima. É, naturalmente, um sentir diferente que
apropriando um pouco das opiniões de certos críti- por vezes nos abisma e pode aparece na criação
cos que leram meus livros anteriores. literária. Embora não seja um imperativo a apro-
priação dos elementos da natureza e da cultura
Creio que, em muitos aspectos, Belembrada, edi- do lugar, como nos ensinava Benedito Nunes, à
tado pela Intermeios, graças à sensibilidade do consciência artística vale mais o ser “na” Ama-
poeta e editor Joaquim Antônio Pereira, é um livro zônia e menos o ser “da” Amazônia. Nessa dire-
bastante diferente dos demais que já publiquei. É ção, duas obras contemporâneas, uma em prosa
o livro sobre o qual me debrucei mais tempo entre e outra em poesia, ilustram bem esse viver/nas-
o escrever e o reescrever, o substituir, o moldar, cer “na” Amazônia mais do que “da” Amazônia, o
o remoldar e o resubstituir para de novo reescre- alucinante romance “Pssica”, de Edyr Augusto, e
ver. Tentei levar ao grau máximo a autocrítica na o lirismo poderoso do belo livro de poemas, “Há
construção e reconstrução dos poemas. Deixei pra horas”, de Rosângela Darwich.
trás as peripécias exibicionistas formais, nem um
pouco condenáveis (não condenemos a juventu- al a sua avaliação da hidrelétrica de Belo
de), e me agarrei ainda mais ao discurso, sem, no Monte?
entanto – viva os paradoxos! –, abandonar de todo
meu apego ao caligrama, ao verso mais ou menos Entendi, primeiro lendo o Jornal Pessoal, e agora vi-
desenhado, ao vício da forma. vendo em Altamira, que Belo Monte foi um dos gran-
des erros dos governos Lula-Dilma. Um erro que caiu
Comecei a escrever esse livro no ano que me des- no colo do atual governo, o governo do ódio. Ódio
pedi de Belém quase de vez, em 2010, pouco antes a tudo, ódio a natureza, ódio à cultura, ódio ao di-
de ir viver em São Paulo, depois, em 2016, estive ferente. Os moradores de Altamira, principalmente
de volta a Belém, por pouco tempo, e desde o nal os dos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUC),
daquele ano vivo em Altamira, onde a parte nal vivem no limite e a coisa só tem piorado.
do livro, espécie de bônus, Altamiracles, foi escri-
ta. Como se vê, os poemas foram tramados em di- anto à distribuição de água e ao tratamento de
ferentes lugares, porque a última década foi para esgoto, por exemplo, que são extremamente proble-

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máticos nos RUC Laranjeiras, Jatobá, Água Azul e al a repercussão e o efeito do trabalho que
nos demais, a Prefeitura e a Norte Energia já falam você fez sobre o poeta?
em privatizar o serviço. E quem vai pagar a conta?
É o que o Movimento do Atingidos por Barragens Eu não sei responder a essa pergunta. Lancei o
(MAB) e outras organização sociais denunciaram livro sobre ele, “Arte, erotismo, natureza e ami-
recentemente num debate na UFPa. zade: os diários de Max Martins”, em Belém, em
2018, e revi tanta gente querida, celebramos a po-
De um lado temos Altamira que se tornou uma es- esia e a vida do poeta de “Caminhos de Marahu”,
pécie de garimpo em termos de superfaturamento foi uma noite inesquecível, mas depois disso não
de preços para quem paga aluguel, energia elétri- participei de mais nada sobre o Max. Embora
ca (talvez a mais cara do planeta!), vai ao super- saibamos que sempre esteve muito bem cuidado
mercado, precisa de médico, escola, etc. De outro pelos amigos e amantes da poesia dele, o que é
lado, os impactos ambientais devastadores sobre uma felicidade à memória do poeta, além de mo-
gigantescas áreas do rio Xingu, afetando indígenas, bilizar a obra, como se viu na reedição da poesia
ribeirinhos, extrativistas, ora e fauna de forma ir- completa e nas leituras críticas importantes que
reversível. Além disso, mais do mesmo, a violência recebeu nos últimos anos.
na região se expandiu enormemente.
Agora, se você me perguntar qual o efeito e o im-
O que as queimadas representam para a pacto sobre mim dessa pesquisa que durou cerca de
Amazônia? cinco anos, sobre um poeta que só conheci de fato na
leitura de seus quase 50 diários inéditos, na investi-
Eu estava na Resex Rio Iriri quando começou aque- gação detida da poesia, das pinturas, e no contato
la onda de incêndios pra além das já conhecidas com os familiares e os amigos dele, aí, sim, eu sabe-
ondas de incêndios na Amazônia. Por isso não - rei responder.
quei sabendo em tempo real. ando cheguei a
Altamira, semanas depois, o noticiário brasileiro já Por conta dessa pesquisa, só para car em dois
se ocupava de outras barbaridades relacionadas ao exemplos marcantes, pude conhecer e estudar a
governo do ódio. Mas o noticiário pelo mundo ainda obra inédita do paraense Jurandyr Bezerra, outro
estava em polvorosa. Essas queimadas são um tro- poeta sobre quem ainda há muito a dizer, e me tor-
féu da ignorância, uma violência a mais no tempo nei amigo de Jim Bogan, o poeta e cineasta norte-
da barbárie brasileira. em diria, no Brasil nunca -americano que desde a década de 1980 passou a
foram tão atuais os livros “1984”, de George Orwell, frequentar e a assimilar a vida amazônica na arte.
e “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, curiosamente, Jim inclusive já me visitou mais de uma vez em
ambos relidos por mim recentemente, numa rede Altamira onde celebramos os encontros com boas
pênsil, no terreiro da comunidade São Francisco, no conversas, poesia e Cerpinha (a eterna professora
interior da Resex Iriri, onde a única maneira de se de língua portuguesa do diretor do clássico curta
comunicar com o mundo exterior é por meio de um metragem Variações da rede). O livro Belembrada é
rádio amador, sem internet, celular ou noticiários dedicado a Jim Bogan.
pra estragar a leitura.

Como você situa Max Martins e a sua obra?

Max é um dos poetas brasileiros mais importantes


do século XX, o que signi ca dizer da literatura bra-
sileira desde sua origem. A nal, são apenas dois sé- Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado
culos os mais relevantes em termos de poesia nossa, pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973.
à parte um Gregório de Ma os, claro. A originalida- Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula
de inimitável da poesia de Max (e quantos tentaram em Belém (PA) desde 1987. Em 2005 recebeu o prêmio anual
e tentam imitá-lo) reside especialmente na relação do Comi ee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York,
erótica dela com a natureza trans gurada em mu- pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. É o único
lher, Eros e Gaia, numa perversão violenta, medida, jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade
alinhada a certos preceitos que ele assimilou da cul- de imprensa, pela organização internacional Repórteres
tura oriental e transpôs para sua poesia. Sem Fronteiras em 2014.

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Resenha

Ideias para adiar


o fim do mundo
Antonio A R Ioris
Cardi University

Q
uase no centenário da morte
de Franz Kafka, ocorrida em
1924, a população mundial
continua a sofrer de uma profun-
da angústia existencial e segue sem
compreender muito bem o funcio-
namento das burocracias poderosas
e da globalização dos mercados. As
primeiras frases do documentário
Bi er Lake (2015) de Adam Curtis
são muito ilustrativas: “Cada vez
mais, vivemos em um mundo onde
nada parece fazer sentido. Os even-
tos passam como ondas de uma febre
e nos deixam confusos e inseguros.”
Ainda assim, os impactos terríveis
do poder estatal e das pressões eco-
nômicas são sentidos todo dia pela
grande maioria das pessoas. O dra-
ma aumenta quando economistas
e líderes políticos insistem em di-
zer que o problema somos “nós”, os
“outros”, aqueles do andar de baixo
da pirâmide social, que temos que
ganhar menos, trabalhar mais, que-
rer pouco e não reclamar. Estamos
sempre errados apenas por existir e
“eles”, inexoravelmente certos.

Um dos grupos sociais que mais per-


deram, e continuam perdendo, nesse
labirinto político-econômico e ideoló-
gico, são os nossos irmãos indígenas.
A história das Américas pode ser resu-
mida pelos mais de cinco séculos de práticas genocidas, telectuais, pesquisadores e lideranças indígenas repre-
etnocídas e ecocidas, assim como a experiência brasi- sentam o que há de mais so sticado, agudo e proposi-
leira como nação independente encerra quase duzen- tivo entre todos que hoje habitam este vasto território
tos anos de desprezo, violência e tentativa de calar os chamado Brasil. Basta ouvi-los para termos lições de
povos ancestrais. Mas, para nossa grande alegria, eles grande sabedoria e recebermos de presente uma carga
não se calaram. Muito pelo contrário: as vozes de in- generosa de palavras, sentimentos e conselhos.

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Ailton Krenak, conhecido nacionalmente desde o a estupidez generalizada e a possibilidade concreta


campo de batalha da assembleia constituinte, é um de, ao m e ao cabo, virmos todos a ser apenas uma
desses grandes mestres a cativar indígenas e não- nota de rodapé, um episódio passageiro na história
-indígenas. Krenak é uma combinação rara de mente biogeológica da Terra. Nesse sentido, a contribuição
a ada, oratória carismática e escrita inspirada e ins- de pensadores como Ailton Krenak é extremamente
tigadora. Seu último livro “Ideias para Adiar o Fim do oportuna e pertinente. Há aqui um paradoxo sabo-
Mundo” foi recebido com enorme satisfação por lei- roso, mas que não pode ser ignorado: a chamada ou
tores e comentaristas – uma luz de lucidez no “meio” o convite para uma humanidade nova vindo daque-
do túnel – ainda mais considerando que este foi um les grupos sociais considerados por muitos como a
“ano-kafkaniano” difícil de entender e de explicar. humanidade obsoleta e redundante… Claro que de
Basta lembrarmos as desventuras do (des)governo passivo e obsoleto os indígenas não têm nada.
brasileiro, a crescente insatisfação no campo e nas
cidades, o ataque a tudo que funcione ou que pense Um dos debates mais interesses nas ciências sociais
no país, e as revoltas e derrotas das classes populares hoje está justamente relacionado ao pensamento
nos países vizinhos (como a rasteira que levaram os vivo e à agência política dos povos indígenas, bus-
indígenas na Bolívia, o enfrentamento que mantive- cando por um lado reconhecer e respeitar caracterís-
ram no Equador e a sublevação no Chile, culminando ticas que são únicas e idiossincráticas e, por outro,
com a linda bandeira colorida Mapuche desfraldada entender processos político-econômicos e sócio-
sobre a estátua de um general vetusto e esquecido). -culturais comuns a todos os grupos inseridos de
forma subordinada na globalização dos mercados.
O livro foi um grande sucesso na FLIP 2019 e en- Geográfos, antropólogos e outros pro ssionais estão
trou, de forma meritória, na lista dos melhores do batendo cabeça para discernir as conexões ontoló-
ano. Muito bem humorado e com um argumento gicas entre o especí co/étnico/local e o geral/com-
irônico e profundo, a obra reproduz uma entrevista partilhado/global. Proliferam conceitos como plura-
e duas pelestras proferidas pelo autor. O texto co- lidade de mundos, interespeci cidade e pluriverso,
meça com re exões pessoais sobre sua primeira ida entre tantos outros. Essa conversa vai continuar e
a Portugal, o velho império colonizador, e a surpre- seguramente cará cada vez mais interessante.
sa de encontrar graves problemas sociais que não
diferiam tanto dos dilemas enfrentados pelos in- Portanto, é bom que todos saibam que as provoca-
dígenas na antiga colônia. Há também lembranças ções trazidas por Ailton Krenak são da maior rele-
preciosas da aldeia Krenak, no Vale do Rio Doce, vância intelectual e os poderão ajudar muito na sua
uma região tão impressionante, mas também tão investigação teórica, ética e metodológica. Além de
degradada pelos equívocos da extração mineral e tudo, chama a atenção seu desprendimento e von-
da expansão agrícola desatinada. O livro descreve tade de ajudar, como nessa a rmação excepcional:
a percepção indígena das questões contemporâne- “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo,
as e oferece uma crítica amistosa, mas incisiva, de eu estou preocupado é com os brancos, como vão
conceitos e práticas reducionistas. Há ainda refe- fazer para escapar dessa” (página 31). Joias como
rências ao trabalho de outros intelectuais e líderes essa nos ajudam a perceber que o problema central
religiosos indígenas, e à contribuição das universi- dos “brancos”, ou não-indígenas, são aqueles “mais
dades e de organizações envolvidas na reparação brancos que os outros” que se arvoram o direito
de injustiças, eliminação do racismo e respeito à de explorar, controlar e seguir mandando. Também
autonomia irrestrita dos povos originários. provam como a manutenção de desigualdades e in-
justiças estruturais é uma condenação antecipada e
A temática central é, naturalmente, o risco cada vez ineludível ao m do mundo. Considerando tudo que
mais palpável de autodestruição da vida humana foi dito acima, não resta dúvida que esse livro, além
nesse planetinha azul, uma vez que a sociedade glo- de prazeroso, é indispensável para re etirmos sobre
balizada e alienada insiste em seguir parasitando a começo, m e, com sorte, algum recomeço.
natureza e explorando a força de trabalho da maio-
ria subalterna. Parece evidente que não é uma boa
ideia insistir na dupla exploração sociedade-nature-
za para manter padrões injustos e suicidas de produ- Antonio A R Ioris, professor da School of Geography
ção, consumo, desperdício e acumulação de capital. and Planning, Cardi University, coordenador da Rede
Mas, por ser algo tão óbvio, poucos levam em conta Agrocultures.

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A voragem no paraíso
suspeito: a narrativa de José
Eustasio Rivera na leitura de
Leopoldo Bernucci
Joaquim Onésimo Barbosa
Universidade Federal do Amazonas

Arquivo Pessoal / Amazônia Latitude

T
alvez, das páginas mais fascinantes que já brasileiro, até mesmo mundial. A Amazônia que se
se escreveram sobre a Amazônia, principal- mostrava pelo embelezamento das duas maiores
mente a Amazônia brasileira, estão aquelas cidades parecia negar sua outra face, assim como
que relatam sobre o auge da borracha. Ainda fas- a Lua nos nega a sua. Uma face marcada pelo so-
cinam e explicam-se: a riqueza que a seringueira frimento e pelo derramamento do sangue de ho-
permitiu a Belém e Manaus hoje re etida nos Te- mens e mulheres, sejam eles barbadianos, brasilei-
atros Amazonas e da Paz, nas largas avenidas e ros, colombianos, peruanos ou venezuelanos, que
nos suntuosos casarões e palacetes, erguidos no foram escravizados e afastados dos seus direitos
nal do século XIX e início do século XX, parecem humanos, como nos revela Roger Casement1, em
esconder a outra face da história, ainda mal con- “Diário da Amazônia” (2016), nos seus escritos ain-
tada e talvez ocultada pelo glamour que a borra- da pouco conhecidos, tanto na Academias quanto
cha ajudou a construir no imaginário amazônico e na sociedade em geral.

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Dentro da Amazônia, havia uma outra Amazônia cha e mesmo da empresa estrangeira Peruvian Ama-
percorrida por homens sem rostos – se aqui nos cabe zon Company (PAC). Ao colocar-se como advogado
um precário paralelo, Os lhos de Caim vistos por e funcionário do governo, Rivera encontra-se com a
Bronislaw Geremek2, “Os esquecidos por Deus”, al- literatura e torna-se o romancista de uma das narrati-
çados por Mary del Priore3, ou “Os excluídos da his- vas mais fascinantes e emblemáticas para a época, em
tória”, tecidos pelas lembranças de Michelle Perrot4. cujo enredo, conforme informa Leopoldo Bernucci,
É justamente sobre essa outra Amazônia, com suas tecem-se aventura, romance, etnogra a, curiosidades
histórias poucos contadas e de certo modo esque- de literatura e viagem, biogra a e uma poderosa críti-
cidas, desses homens marcados pela invisibilidade, ca social ao trabalho forçado e aos crimes cometidos
que José Eustasio Rivera, em espécie de jogo ambí- contra os seringueiros da Amazônia durante o apogeu
guo entre criador/criatura, autor/obra, engatados da extração e do comércio da borracha no início do
no personagem Arturo Cova, vai construir o seu século XX, conforme mostra Bernucci.
“romance da terra”, a narrativa denúncia que cons-
titui “La Vorágine , publicada em 1924, o condutor Toda essa variedade exposta em “La Vorágine” não
do trabalho do pesquisador Leopoldo Bernucci em é de tal modo gratuita. ando de sua expedição
“Paraíso suspeito: a voragem amazônica”, publica- para a averiguação das fronteiras, Rivera percorreu
do no Brasil pela Editora da longos trechos de terras e
Universidade de São Paulo rios e, nesse longo percur-
(EDUSP) em 2017. so, mantinha contato com
arrendatários brasileiros,
Em 1922, Rivera é enviado trabalhadores, indígenas, lí-
como advogado da Comis- deres comunitários, e deles
são do governo colombiano colhia informações diversas
para demarcação das fron- e anotações – dos costu-
teiras entre Colômbia e Ve- mes, da geogra a, da histó-
nezuela, uma região rica em ria, da fauna e da ora as
borracha – produto que já quais guardava em anota-
não era tão atraente na épo- ções, que mais tarde iriam
ca, haja vista o baixo preço constituir o mosaico do ro-
no mercado internacional mance que já fora traduzi-
em decorrência da Primei- do em mais de uma dúzia
ra Guerra Mundial e devido de idiomas e considerado
ao substituto sintético de- um dos mais importantes
senvolvido pelos alemães, da literatura latino-ame-
quando então tem contato ricana, dado o seu caráter
com caucheiros e conhece a histórico, investigativo e de
realidade deplorável dos ho- denúncia sobre a crueldade
mens que viviam embrenha- a que eram submetidos os
dos nas matas amazônicas, caucheiros amazônicos do
em situação de exploração e lado boliviano, colombiano,
escravidão. Busca resposta aos crimes junto ao gover- venezuelano e não menos diferente os seringueiros
no colombiano, porém não obtém o pretendido. Em no território brasileiro.
1924, após a publicação de “La Vorágine”, é que se tem
a real dimensão dos crimes que se cometiam contra Euclides da Cunha, que a exemplo de Rivera fez um
os trabalhadores da borracha: barbadianos, índios e percurso pela Amazônia no início do século XX para
mestiços nos con ns dos seringais amazônicos. analisar problemas de limites entre o Brasil e Bolívia
na questão do Acre, traça um breve per l dos ho-
Talvez, como advogado de formação, Rivera tentasse, mens sem rosto que viviam nos rincões ignorados
no arranjo da pro ssão, encontrar um caminho no das brenhas selvagens amazônicas. Conhecedores
qual pudesse ajudar os homens que ouvira e vira na da região, esses homens desciam e subiam rios e
miséria da condição humana embrenhados nas matas montanhas, desa ando as matas e perigos, vagando
colombianas nas fronteiras com a Venezuela e o Bra- em largos anos, para aventurar-se nos seringais das
sil, vítimas das explorações de comerciantes da borra- cabeceiras dos rios; alguns deles no trato do caucho,

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outros, da seringueira. Euclides os via como homens as principais narrativas latino-americanas escritas
nômades, dadas as circunstâncias que os faziam de- entre 1908 a 1929, de escritores considerados poli-
votados ao combate, dispersos nas matas e mergu- ticamente engajados, ao lado de obras importantes
lhados na luta pela sobrevivência, muitos deles sem como “La gloria de don Ramiro” (1908), “Los de abajo”
ter a sorte de voltar para junto dos seus, cavam (1915) e “El hermano asno” (1922), que focalizam seus
para sempre no seio da oresta, como aconteceu olhares para a situação social e política dos seus pa-
com muitos deles no auge da extração da borracha. íses de origem, espécie de narrativas patrióticas, que
Certamente, essa era uma realidade que se repetia visam denunciar intervenções estrangeiras e a explo-
com tantos outros homens cuja sina nas brenhas da ração da mão de obra barata do homem interiorano
oresta era a mesma e cambiava para o mesmo m. e permitindo de tal modo a denúncia da intervenção
estrangeira, que começava em solo colombiano e,
Se o olhar de Euclides da Cunha não alcançou, atra- principalmente, sobre a realidade da exploração do
vés de suas narrativas, a atenção devida e a sensi- homem que vivia do trabalho da terra, no caso dos
bilidade dos seus leitores e autoridades sobre as colombianos, aqueles explorados nos seringais com
atrocidades que tomavam os seringueiros amazôni- serviço de baixo custo.
cos brasileiros, principalmente aqueles do rio Purus,
Eustasio Rivera captou as atrocidades sem fazer Rivera, assim como outros romancistas de sua épo-
vistas grossas e tomou-as em notas sobre o que se ca, busca denunciar essa situação de violência em
passava nos llanos colombianos, pondo-as em desta- suas narrativas com o intuito de conscientizar a so-
que no seu romance. O llano não era só uma extensa ciedade sobre os mais diversos problemas sociais. No
planície, um espaço bucólico, como tenderia pensar início do romance, Rivera desperta o leitor para o
Arturo Cova – o personagem que conduz a narrativa caminho da sua narrativa, não tanto o amor, mas a
de “La Vorágine” – ao fugir da cidade para aventu- violência, que impõe na fala de Cova: “Antes que me
rar-se pelas paragens longínquas na companhia de tivesse apaixonado por qualquer mulher, joguei o meu
uma mulher por quem não sabe que sentimento nu- coração à sorte, e ganhei a Violência” (“A voragem”).
trir, quando seu coração alimenta a certeza de que Essa violência é apresentada não apenas pelo traba-
a busca deve ser por Alicia, com quem poderia viver lho forçado e escravo dos corpos dos seringueiros,
nos lugares aprazíveis da Amazônia. “Tive desejos de mas também pela prostituição comercializada pelos
con nar-me para sempre nessas planícies fascinantes, magnatas da borracha, que aportavam nas frontei-
vivendo com Alicia [ ] Ali, pela tarde o gado seria ras do Brasil, Colômbia e Venezuela, sedentos pelo
reunido e eu, fumando no umbral, como um patriarca dinheiro que escorria das seringueiras e dos cau-
primitivo de peito suavizado pela melancolia da pai- chos, de tal modo famintos por sexo, também o mis-
sagem, veria os pores-do-sol no horizonte longínquo to da violência a que se submetiam na oresta, prin-
onde nasce a noite [ ]. Para que as cidades?”5. É nes- cipalmente na derrubada do caucho. As observações
sa busca entre a paz do bucolismo e o amor, entre a que vai colhendo dá a Covas, na voz de quem Rivera
miséria e a escravidão, que Rivera também constrói se metamorfoseia, um conjunto de documentos de
a sua narrativa de “La Vorágine”. denúncias, informações de alguns personagens que,
ao cabo da história, realmente existiram, como é o
Como fora escrito no correr na segunda década do caso do peruano Julio César Arana e Barrera, ambos
século XX, o romance de Eustasio Rivera consolida- malfeitores, cuja existência, segundo Sommer, pode
-se, no ver da crítica das décadas posteriores a sua ser comprovada, e a quem Roger Casement, no seu
publicação, como um romance colombiano de cos- Diário da Amazônia, faz referência como homens de
tumes – numa etiqueta corrente, romance da terra coração mau, perversos e bandidos.
– e o mais importante até Gabriel García Márquez
despontar com o seu “Cem anos de solidão”, quando Sommer vê em Cova não um herói como parece ser,
se dá o que Doris Sommer considera o boom da lite- mas um narrador desnorteado, um homem mais
ratura na América Latina a partir dos anos 60. Antes sedutor do que um amante, mais violento do que
disso, quão pouco de cção latino-americana que valente, um viciado em aventuras que precisa de
valia a pena ser lido, lembra Sommer, reportando a novas emoções para continuar a escrever sua poe-
Carlos Fuentes, na leitura do seu “La nueva novela sia decadente. A propósito da escrita de Rivera, que
hispanoamericana”. Para Donald L. Shaw, em “Nue- se metamorfoseia na escrita de Cova, os críticos do
va narrativa hispanoamericana: boom, posboom, romancista colombiano – que não foram e nem são
posmodernismo” (2008)6, “La Vorágine” está entre poucos – têm lá suas reservas. Bernucci lembra que

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o romance, quando do seu lançamento, foi mal com- sem visibilidade, vítimas da escravidão e da violência
preendido por grande parte da crítica, que não com- de toda sorte. Essa Amazônia que devora o homem –
preendera o seu sentido histórico e de denúncia – e como fez com Arturo Cova e no espelho que re ete
continua sendo mal entendido, apesar das possíveis em “La Vorágine” parece um espaço estranho, aterra-
releituras já feitas com intento de corrigir injusti- dor, ameaçador, lugar de horrores, ao mesmo tempo
ças. Considera, ainda, que essas várias leituras que em que se mostra sublime, lugar de paz, paraíso até
se têm feito do romance não foram su cientemen- – para além dos conceitos, o lugar do fantástico –
te capazes de reconhecer o esforço pleno do autor paraíso e inferno; é uma metáfora da Amazônia real
para tecer artisticamente história e imaginação do que muito bem poderia ser encontrada nos espaços
princípio ao m do livro, ao mesmo tempo em que onde ela chega com seus arremedos.
protesta contra esses crimes na Amazônia, conforme
salienta Bernucci. Rivera põe em evidência uma Amazônia voraz e
tranquila, domesticável e selvagem, ao mesmo tem-
Se Euclides da Cunha em “A margem da história”, po em que coloca em juízo o Estado colombiano dos
assim como Ferreira de Castro com o seu “A Selva”, anos 20 nas vozes de suas personagens, em que tece
contemplam a Amazônia brasileira nos seus escritos, a distância entre o governo que assiste uma minoria
José Eustasio Rivera apresenta a Amazônia além- rica e exploradora e o governo que deixa à escravi-
-fronteiras, no início do século XX e ainda desco- dão e às atrocidades uma maioria diversa sem voz e
nhecida das gentes brasileiras. Apesar disso, havia rosto. Seu desconforto com a indiferença do governo
grande semelhança entre as duas Amazônias que se colombiano da época o fez escrever vários documen-
separam por fronteiras políticas, mas não por for- tos às autoridades da Colômbia. Há, inclusive, em
mações sedimentares e realidade econômica e so- “La Vorágine”, referência a documentos e relatos em
cial, a contar a sua dependência do extrativismo da que o autor descreve às autoridades situações que
borracha. A Amazônia de Euclides desenhava-se no presenciara nos seringais colombianos, o que coloca
“Paraíso Perdido”, dos seringais, dos Judas-Asveros, o romance além do caráter ctício. Por isso, Sylvia
dos rios na sua plenitude da vida, em uma região Molloy considera que é preciso releituras do roman-
desabitada, onde caucheiros e seringueiros se encon- ce de Rivera, que devem ser feitas para além das
travam. A Amazônia de Rivera, não só a pujança lhe classi cações tão ferrenhas quanto ingênuas que
entretinha, mas também o abandono dos homens ao texto têm sido lançadas, haja vista sua polifonia,
que vagavam nas matas, escravizados, sem rostos, seu caráter histórico-documental, suas característi-

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cas peculiares dos romances escritos nas primeiras “La Vorágine” como romance sociopolítico e poste-
décadas do século XX. Considerando as palavras de riormente considera o olhar Naturalista do escritor,
Umberto Eco, La Vorágine exige do leitor a iniciativa fechando com o que identi ca como os infortúnios
interpretativa, mesmo que deseje ser interpretado da cção.
com uma margem de univocidade, ainda assim ele
precisa de alguém que o ajude a fazer sentido para O título “Paraíso suspeito: a voragem amazônica”,
além do que as ordens canônicas parecem exigir. no ver do autor, carece de uma explicação. Explica-
ção essa, para quem conhece o trabalho de Bernucci
sobre Euclides da Cunha, não seria tão necessária,
A Voragem no Paraíso suspeito: embora, na sua gentileza democrática, o autor não
se furte a apresentá-la:
uma leitura de Leopoldo
Bernucci Historicamente, a Amazônia sempre esteve associa-
da à noção de Paraíso, embora de maneira questioná-
É correto a rmar que não é nada simples conjugar vel. A suspeita nasce da ideia de que essa selva tropi-
uma obra no início do século XX de tamanha im- cal é também um Inferno Verde , como foi sugerido
portância em páginas de um livro, embora se possa por alguns daqueles que ali estiveram como cou
dizer que Leopoldo Bernucci o faz de maneira insti- plasmado na cção do escritor Alberto Rangel. Ra-
gante, informativa, sem deixar aquela sensação de zões de ordem histórica, cientí ca e estética zeram
que há algo a dizer, cumprindo, de tal modo, o que com que viajantes e naturalistas ao longo dos séculos
se propõe, conforme indica no texto introdutório do descrevessem a grande oresta de modo paradoxal.
livro. Na leitura de “Paraíso suspeito”, Bernucci situa [ ] Esse paraíso suspeito situa-se num vórtice, um
a narrativa de Rivera em cinco seções. No primeiro lugar de destruição contínua e natural, provocando
momento, identi ca os que considera os leitores de a lenta e incansável devoração da matéria, não só do
Rivera, a crítica, e em seguida destaca as in uências seu mundo vegetal, mas também do reino animal, in-
das leituras de autores brasileiros, inclusive de Eu- clusive do homem que nele habita. [ ] Ao escrever
clides da Cunha, na produção do escritor colombia- sobre a majestosa oresta, tivemos nós também que
no; num o de conexão, condiciona a narrativa de lidar com este ponto de vista problemático.[ ]
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Demos ainda à oresta amazônica a denominação palmente para o espaço político e da justiça social
de paraíso suspeito por sua capacidade de escon- colombiana, no contexto literário do início do século
der ou disfarçar seus perigos. Uma visão algo com- XX, quando temas relacionados ao patriótico e à re-
placente desse vasto território verde poderia de- alidade social eram bastante debatidos, numa socie-
monstrar que suas densas matas, seu difícil acesso, dade que começava a sair dos estrados românticos.
sua malária e outras árduas condições ambientais Alguns excertos das resenhas são apresentados na
ajudam a manter de longe dele os curiosos ou in- segunda edição, em que Rivera apresenta ao público
trusos. . as considerações dos leitores sobre a obra. No ver de
Saul de Navarro, crítico da década de 1920, “La Vo-
rágine” não se apresentava como um romance vão,
Há, em “Paraíso suspeito: a voragem Amazônia”, um era como um pedaço de carne que sangra e treme nas
lete do que a história ainda não explicou por com- mãos da pessoa , conforme cita Bernucci.
pleto em nossos tempos. Bernucci nos lembra de que
o genocídio de índios nas três primeiras décadas do Na década de 1930 são poucas as referências à obra
século passado continua hoje, não apenas na Ama- de Rivera; já em 1940, as críticas parecem se voltar
zônia, mas também em outras partes do mundo com contra o romance, sendo considerado desimportan-
grupos étnicos, como aconteceu em Bangladesh, em te e inferior, como o classi cou Otis H. Green; visto
Ruanda e vem ocorrendo em outros países do conti- como um romance de um escritor confuso, no ver
nente africano, assim como também em países latino- de William E. Bul, e até mesmo excluído da lista
-americanos, inclusive no Brasil, em terras amazôni- dos grandes romances do seu tempo, como zera
cas. A crueldade com os invisíveis que Eustasio Rivera Antonio Torres-Ríoseco. Já, na década de 50, segun-
aponta no seu “La Vorágine não ca nas páginas da do Bernucci, a crítica parecia haver perdido o inte-
cção se bem que a cção expressa na narrativa ri- resse por “La Vorágine”, vendo-o como irrelevante.
veriana confunde-se com a realidade. Constata-se, em Na década de 60 e 70, com o que se chamou boom
pleno século XXI, inúmeros casos de trabalho escravo, latino-americano, capitaneado pelos escritores que
principalmente no Estado do Pará, o campeão nesse faziam parte desse novo momento da literatura la-
tipo de atrocidade – uma busca no site da Justiça do tina, a crítica retorna ao romance de Rivera, algu-
Trabalho pode dar a dimensão dessa situação. Os Ara- mas com tom de censura, adjetivando-o até mesmo
nas e Funes de outros tempos metamorfoseiam-se em como ingenuamente autoritário e demagógico, de-
peles de senhores do agronegócio brasileiros, afron- masiadamente telúrico, como o classi caram Car-
tando a Lei e o senso humanos em solo paraense e em los Funtes, Gabriel García Márquez e Mario Vargas
outras terras brasileiras. Llosa. Para Llosa, como um romance de cunho re-
gionalista, “La Vorágine” constituía-se extremamen-
De acordo com Bernucci, é diverso o número de rese- te pobre pela sua rudimentar estreiteza provincia-
nhas que se tem sobre a produção romanesca de Ri- na. Fuentes chegou a considerar o romance mais
vera, visto que “La Vorágine” foi traduzido em vários próximo da geogra a do que da literatura, como
idiomas. A maioria dos leitores do escritor colom- se escrito fosse pelas mãos de exploradores do sé-
biano tece críticas favoráveis à obra, embora, quan- culo XVI, dado o seu caráter, no ver dos críticos,
do de seu lançamento, em 1924, as resenhas que se regionalista, principalmente pelo uso exagerado de
escreveram sobre o romance tenham sido parcas e, vocabulário regional e até mesmo de mau gosto, ou
de tal modo equivocadas, pela incompreensão dos maniqueísta ao cabo das caracterizações da perso-
objetivos do autor, outras focalizando as discussões nagem Arturo Cova.
nas questões regionalistas e linguísticas, estas de
certo modo secundárias, o que, no ver de Bernucci, Para Bernucci, as críticas de alguns escritores do
obscureceu as extraordinárias qualidades estética e boom causam de tal modo surpresa e soam um tanto
histórica do romance. [ ] um número muito reduzi- estranhas no que diz respeito ao caráter histórico,
do de leitores, inclusive críticos conseguem apreciar a documental e de denúncia de “La Vorágine”, uma vez
forma como Rivera usa as fontes históricas ligadas a que muitos desses escritores escreveram romances
essas atrocidades, fontes que emprestaram ao romance sobre a ditadura e violência no continente sul-ame-
um realismo único, visto que através delas o autor as- ricano e, a exemplo da obra de Rivera, também se
sim pôde encontrar uma solução para chegar à verdade ocuparam de temas sociais e políticos.
por meio da cção . Apesar disso, a crítica reconhecia Apesar das críticas – tantas delas injustas – hou-
a importância que “La Vorágine” apresentava, princi- ve os que aplaudiram o romance, tomando-o como
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uma narrativa que não se ajustava às cópias e aos ricano, principalmente pelo fato de colocarem a na-
modelos a que o público se acostumou, fazendo-se tureza mais forte que os homens, além disso “La Vo-
um romance de caráter latino-americano, de de- rágine” põe no centro de sua narrativa as questões
núncia contra os crimes cometidos nas brenhas da trabalhistas e os negócios escusos dos investidores
selva contra caucheiros, indígenas, jovens, mulhe- britânicos, embora não tenha sido contundente
res e idosos, até mesmo crianças, para cujo aconte- com relação ao regime de escravidão de Putumayo.
cimento as autoridades pareciam fechar os olhos;
e talvez por isso as duras críticas daqueles que ig- A partir da década de 70, segundo Bernucci, outros
noravam as atrocidades descritas no romance, in- críticos passaram a fazer uma releitura de “La Vo-
clusive sob o silêncio de autoridades do governo rágine” com viés positivo, abordando as diferentes
colombiano, de quem Rivera sente a falta de defesa facetas do romance, outros adensando os argumen-
e a quem faz observações nada amistosas, como a tos de Carpentier, com vistas a desfazer o rótulo
enviada ao ex-cônsul Luis Trigueros: Como você que fora dado a La Vorágine de “romance primitivo”.
pode não mover uma ação o cial para quebrar-lhe as Entre os leitores destacam Doris Sommer, Sylvia
correntes? Deus sabe que, ao compor meu livro, não Molloy, Monteserrat Ordóñez Vila e Carlos Alonso,
obedeci a nenhum outro motivo senão o de buscar a entre outros.
redenção para esses infelizes que têm a selva como
cárcere . Alejo Carpentier fora um dos que saíram Conforme analisa Bernucci, no segundo capítulo “Ri-
em defesa de Rivera e seu “La Vorágine”, buscando vera e o Brasil”, a relação de Eustasio Rivera com o
desfazer as injustiças que cambiavam contra Rive- Brasil e escritores brasileiros, na in uência da escri-
ra e seu romance, no trato dos argumentos sobre ta da narrativa de “La Vorágine”, é estreita, a consi-
o maniqueísmo com que alguns escritores adje- derar sua passagem pela Amazônia brasileira e por
tivavam a personagem Arturo Cova. Além disso, cidades como São Gabriel da Cachoeira, Manaus e
Carpentier compara o romance do escritor Rivera Belém quando do seu trabalho como membro da
a outros “Don Segundo Sombra e Dona Bárbara”, Comissão de observação de fronteira admitida pelo
considerados pelo escritor cubano como os três ro- governo colombiano. Em sua estada no Brasil, Rivera
mances ditos “romances da terra” que mudaram teve contato com obras e leituras de escritores como
radicalmente o panorama do romance latino-ame- Alberto Rangel, Inferno Verde , Euclides da Cunha,

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“Os Sertões” e “À margem da história”, Mário Gue- via a Amazônia de um modo paradoxal, aos frag-
des, “Os Seringaes”, além de ter adquirido obras de mentos e num todo, aproximando do pensamento
outros poetas e escritores, como Graça Aranha, Sil- Heideggeriano, um estar em ser. A Amazônia, para
vio Romero, Casimiro de Abreu, José Veríssimo, José Euclides, estava evoluindo continuamente e sempre
de Alencar, Olavo Bilac e Raimundo Correa. Os três adiando a sua completude.
primeiros romancistas, Rangel, da Cunha e Guedes
in uenciam, no ver de Bernucci, a narrativa de Rive- Não diferente era o olhar de Rivera ao de Euclides.
ra, o que o leva a ser acusado, por alguns dos seus Para o escritor colombiano, a Amazônia era diferen-
críticos, de plágio, principalmente de trechos de “Os te daquela que imaginara, num primeiro momento
Sertões” e até mesmo de artigos do livro “À margem de potencial utópico, como celebrada em Terra de
da história”, de Euclides da Cunha. Promissión , depois como desencanto, quando, a
exemplo de Euclides, vislumbra o homem em suas
Para Bernucci, se há indícios de plágios da obra de lutas diante da natureza. A selva tropical, para Rive-
Euclides da Cunha no romance de Rivera – na análi- ra, seria como a hidra mitológica, uma vez abatida,
se, o ensaísta apresenta alguns quadros comparativos deve-se cortar-lhe a cabeça imediatamente; porque,
de trechos de “Os Sertões” e “La Vorágine” em que se do contrário, ela ressuscitará com maior força; tra-
percebem claras semelhanças – entre esses dois escri- duzindo-se, assim, não numa descrição imaginativa,
tores há grande proximidade de caráter, cargos exerci- mas numa de nição real e objetiva, com dotes po-
dos e idade de morte, além dos problemas enfrentados éticos, com valor gurativo que se pode nomear e
quando de seus deslocamentos pelas terras amazôni- sentir. Aliás, numa comparação simplista até, mas
cas onde teriam que resolver questões ligadas a inte- não menos signi cativa, a Amazônia, nos escritos
resses de seus países, também seus interesses pelos de Euclides e Rivera, era, como também a via Rafael
estudos da Amazônia e pela escrita sobre os proble- Reyes, o resultado das metáforas con itantes de El
mas que, àquela época, perturbavam os trabalhadores Dorado e do inferno verde.
dos seringais amazônicos. Euclides pensava escrever
o seu “Paraíso perdido” para vingar a Hileia amazôni- Esse valor gurativo, que Rivera advoga, e não esca-
ca, certamente onde denunciaria as brutalidades da pa do olhar de Euclides, quando se percebe a selva
escravidão e outras arbitrariedades dos seringais da tropical num transe entre o real e o mítico, permite o
Amazônia brasileira. Eustasio Rivera planejava seu que Paes Loureiro chama de criação da teogonia coti-
La Mancha Negra , em que prometia denunciar as diana, num espaço in nito em que a visão e o repou-
arbitrariedades dos magnatas dos campos petrolíferos, so do espírito são desfeitos pela encantaria do olhar
a exploração do trabalhador, [ ] os modos sujos como e da diversidade da imaginação. Enquanto o olhar
os contratos foram redigidos, enriquecendo mais um contempla em repouso, o espírito trabalha incansá-
grande número de patifes do que a nação . Ao m das vel nas minas subjacentes da imaginação, quando
contas, os dois morreram antes de pôr em prática seus o equilíbrio inquieto da solidão leva o homem que
projetos de escrita de narrativas. observa a buscar a realidade além da superfície,
transferindo a profundidade da alma para a natu-
No ver de Leopoldo Bernucci, interpretar a visão que reza. Essa trans guração do real pela viscosidade ou
Euclides e Rivera tiveram da Amazônia torna-se uma impregnação do imaginário poético acentua uma pas-
tarefa um tanto difícil, se levarmos em conta tão sagem entre o cotidiano e sua estetização na cultura.
somente Euclides como engenheiro e Rivera como [ ] Interesse que direciona o prazer da contemplação
advogado, pelo risco de perder de vista o poeta al- à forma das coisas marcadas pela ambiguidade signi-
tamente imaginativo que viveu em cada um. Assim cante própria do que é estético 7, a rma Loureiro.
como se torna complicado considerar os dois escri-
tores apenas como poetas, uma vez que suas ideias Os críticos também associavam a escrita de “La Vo-
estão baseadas em observações pessoais, impressões rágine à de Inferno Verde , de Alberto Rangel. As
subjetivas e menos em evidências históricas. O olhar semelhanças, embora super ciais, em sutis intertex-
de Euclides, no ver de Bernucci, aparece numa abran- tualidades no ver de Bernucci, ocorrem na gura, prá-
gência de larga amplitude em relação ao de Rivera, ticas e atitudes de alguns personagens ou de infor-
pois oscila da natureza à paisagem representada e é mações sobre a ora, até mesmo numa relação entre
impossível separar o Euclides, homem da ciência, do a heroína Maiby, do romance de Rangel, e Alicia, de
Euclides artista, posto que seu modo de raciocinar personagem de Rivera, no que diz respeito à cena de
é produto dessa dualidade, e o modo como Euclides tortura; Maiby é torturada com o corpo sangrando

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atado a uma árvore; Alicia é a própria árvore; ambas por trás da saga de Cova, lemos uma segunda his-
constituem-se metáforas da seringueira, já que seus tória, a do autor, na qual Rivera se expressa, uma
corpos, retalhados em torturas, sangram, embora Ali- aposta no que Bernucci considera intensidade de
cia tenha sido transformada numa araucária. O pró- ilusão por meio da qual visa apresentar uma histó-
prio título do romance de Rivera, “La Vorágine”, no ver ria ccional que seja verdadeira ao coração humano
de Bernucci, poderia ter sido uma ideia da leitura de e desfazer ao mesmo tempo esse poderoso efeito de
um conto de Rangel, na adaptação da palavra portu- ilusão por meio de uma extraordinária semelhança
guesa “voragem”, com sentido de velocidade brutal, de registro histórico . O próprio prólogo de “La Vorá-
ou vórtice, da oresta tropical. Entretanto, como o gine” é uma espécie de carta formal, em linguagem
próprio Bernucci considera, o título do romance de ambígua, escrita pelo Rivera ccionalizado, e diri-
Rivera fora sugestão de Policarpo Neira Martínez, a gida a uma autoridade de governo, um “Ministro”.
cuja referência Rivera faz em dedicatória escrita em O caráter ambíguo da carta é, segundo Bernucci,
um exemplar do romance. Com relação à obra Os Se- um lembrete ao leitor de que a história de Cova
ringaes” de Mário Guedes, Bernucci considera que é é uma cção, embora queira persuadir o leitor da
necessárias uma análise profunda para que se possa veracidade da história; persuasão que, de tal modo,
identi car as in uências que se podem perceber em se faz com fatos reais colhidos pelo próprio Rivera
“La Vorágine”, principalmente as informações que o li- de jornais colombianos da época, ou aqueles lidos
vro de Guedes oferece sobre a extração da borracha e inclusive dos relatos publicados por Roger Case-
a indústria do produto na Amazônia. Deve-se, porém, ment, em que descreve locais, instrumentos e cenas
considerar as anotações que Rivera faz num exemplar de torturas que vira ou ouvira em seus interroga-
de “Os Seringaes” sobre algumas palavras que podem tório como chefe da Comissão britânica para ave-
ter ajudado a constar de espécie de um longo vocabu- riguar as denúncias de crimes cometidos na região
lário que se encontra no nal de La Vorágine”. de Putumayo e Caquetá. Rivera era leitor atento
dos relatos de Casement, os quais entremeia na sua
Eustasio Rivera, ao escrever “La Vorágine”, propunha narrativa ccional.
iniciar um debate sobre os problemas sociais e políti-
cos que aconteciam na região de Putumayo e Caque- Apropriando-se também dos escritos de Euclides de
tá – que teria continuidade com o seu “La Mancha Cunha e do romance “Os Seringaes” de Mário Gue-
Negra”, que não chegara a escrever. Por isso, no ver des, Rivera, no seu romance sociopolítico, revela a
de Leopoldo Bernucci, “La Vorágine” é um romance complexidade de um sistema comercial selvagem,
que se assegura como arma sociopolítica: o roman- espoliativo, escravocrata e destinado a bene ciar
cista colombiano sempre considerou o seu livro como somente os comerciantes de Manaus, Belém e Iqui-
uma poderosa arma sociopolítica e que podia empare- tos, onde cavam as poderosas casas de comércio
lhar-se a outras publicações contemporâneas de não e seus ricos proprietários. O sistema em forma de
cção onde se denunciam os terríveis maus-tratos e pirâmide socioeconômica funcionava de modo ins-
mortes perpetrados nos seringais da Amazônia . Nes- tável, pois dependia da exploração dos mestiços,
se sentido, não há como questionar as considerações que começavam como trabalhadores livres e depois
de Bernucci sobre isso, uma vez que o próprio Rivera tornavam-se escravos devido às dívidas que con-
faz questão de demarcar suas orientações de denún- traíam e não conseguiam saldar, além dos índios,
cias sobre aquilo que vira ou ouvira enquanto esteve estes capturados nas correrías, eram a maioria es-
como enviado do governo colombiano nas fronteiras crava, explorada e castigada nas matas. O o que
do Brasil, Colômbia e Venezuela, permitindo, na sua Rivera encontra para revelar o intercâmbio entre a
narrativa, situações que envolveram pessoas reais cção e a realidade sobre o comércio da borracha
postas no romance como personagens ctícias. e seus métodos exploratórios e violentos nas matas
amazônicas são os índios, mas principalmente Cle-
O discurso dialógico, no ver de Bernucci, ajuda a mente Silva, velho seringueiro que conhecia muito
ter em conta o caráter quase autobiográ co do au- bem a região dos seringais e, por isso, era visto com
tor com que se atribui ao personagem Arturo Cova. respeito e con ança. Era um verdadeiro mateiro,
Além disso, Rivera também emite seu ponto de vis- “rumbero”, aquele que sabe orientar-se na selva –
ta não só por meio de Cova, o principal narrador Clemente, clemência; Silva, selva. Foi feito escravo
do romance, mas também no próprio assunto do quanto procurava seu lho que fugira com os serin-
romance, como um ponto de vista que difere da- gueiros, e dele o que encontra são os ossos, que os
quele do narrador. Lembra-nos Bernucci de que, leva para onde quer que prossiga.

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É também através da fala de Clemente que Rivera que brota leite, colando suas ávidas bocas ao córtex
mostra, como em retalhos, as condições de depen- para, na falta de água, acalmar a sede da febre com
dência dos homens dos seringais: a borracha líquida, e ali apodrecem como folhas,
roídos por ratos e formigas, únicos milhões que lhe
A ânsia por riquezas convalesce o corpo já desfa- chegaram ao morrer , revela Clemente enquanto
lecido e o cheiro da borracha produz a loucura dos lava as pernas cheias de úlceras e vermes.
milhões. O peão sofre e trabalha com o desejo de
virar empresário que possa um dia sair para a capi- Outro elemento que torna A Vorágine um roman-
tal para esbanjar a borracha que está levando, para ce sociopolítico, no ver de Bernucci, é a referência
gozar das mulheres brancas e para embebedar-se a personagens que retomam funcionários da PAC,
meses inteiros, sustentado pela evidência de que contatos da região de Putumayo e Caquetá. Em-
nos montes há mil escravos que dão sua vida em bora não se detenha de forma aprofundada, Rivera
troca da procura desses prazeres [ ] Só que a reali- menciona os irmãos colombianos Calderón, Benja-
dade anda mais devagar que a ambição e o beribéri mín Larrañaga e Hipólito Pérez, que fazem parte de
é mau amigo. No desamparo de veigas e estradas, um grupo dos primeiros colombianos a explorar a
muitos sucumbem de febres, abraçados à árvore borracha nessa região da Amazônia. Larrañaga, jun-

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tamente com um lho de Rafael Reyes e um grupo “diversidade diversa”, que constitui uma constelação
de exploradores de borracha fundaram La Chorrera, de conceitos reveladores do reconhecimento de que
depois El Encanto, dois grandes redutos produtores há culturas diferentes e a possibilidade de absorção
de borracha, que depois passaram às mãos do peru- desse pluralismo por um processo globalizador 8.
ano vendedor ambulante que se tornou um grande Esse processo globalizador, ao cabo do romance de
proprietário de negócios, Julio César Arana, devido Rivera, se percebe pelas retomadas que o romancista
às dívidas contraídas por Larranãga. La Chorrera foi faz com outras narrativas com que tivera contato e
local de inspeção de Roger Casement, cujos relatos, atualiza-as ou adapta-as às cores do cenário amazô-
de certo modo, serviram de aporte para Rivera aden- nico disposto em “La Vorágine”. Assim, não escapam
sar suas narrativas. Arana foi um dos mais cruéis ad- os mais diversos componentes da selva: espécies ve-
ministradores, conforme relatos de Rivera e de Ca- getais, animais, aves, insetos, doenças, meios de sub-
sement. Casement descreve Arana como um homem sistência, em conjunto com um misto do vocabulário
cruel, covarde, sanguinário, maldoso, assassino, boliviano, brasileiro, colombiano, peruano.
chefe de um grupo de homens – muchachos – que
castigavam e assassinavam seringueiros mestiços e O caráter panteísta das crenças de tal modo compri-
índios que não apresentavam a seringa segundo a me-se no viés monoteísta dos espanhóis e portugue-
meta estabelecida para o mês. ses colonizadores da América Latina principalmente
que apresentaram um Deus único e criador de todas
O caráter naturalista de Rivera está expresso em “La as coisas e sob cujo nome impuseram a sua fé. A pro-
Vorágine” por meio de diversos elementos que en- pagação da fé católica não foi su ciente para apagar
trecruzam todo o romance, alguns em consonância as crendices do homem que vive em contato direto
com a realidade da região, outros, ainda que distante com a natureza e dela busca respostas para os seus
da imagem real, adaptados pelo Rivera ccionista, males. As superstições diversas – entre elas aquela
adensam a paisagem imaginária do leitor. Para Ber- que se liga ao poder mágico do pássaro piapoco, a
nucci, esse caráter dialógico que percorre toda a nar- cura pelas plantas, pelos poderes sobrenaturais das
rativa do escritor colombiano atesta de tal modo o orações, rati ca, no ver de Bernucci, o caráter me-
seu esforço de mostrar todo um conjunto do que vira tafísico de “La Vorágine”, além de permitir aos seus
ou ouvira quando em suas viagens pela região. Mais leitores uma variedade de informações sobre os ele-
que isso, revela o papel do Rivera cronista, pesquisa- mentos culturais da região de Tupumayo, Caquetá
dor e etnógrafo da vida e da variedade amazônicas. e de toda a grande região amazônica. Ao destacar
Não escapam do olhar riveriano as várias facetas do crendices e mitos amazônicos no seu romance, Rive-
mundo amazônico: a cultura, a fauna, a ora, os cos- ra permite entender que o mito, quando transforma-
tumes, as crendices, além daquelas já vistas, como do em literatura, não se dirige à provocação de um
as mazelas, as lutas no meio das matas, os proble- acontecer, mas ao mistério gozoso da poesia ou ao
mas sociais e econômicos. Rivera, ao mesmo tempo desfrute desse vago estado de crispação suspensa de
em que toma emprestadas as informações dos rela- alma a que denominamos estética, como nos lembra
tos dos viajantes e naturalistas, assim como de ro- Paes Loureiro na mesma obra9.
mancistas com cujos escritos tivera contato, faz-se
também um deles, um com eles, quando enaltece a Os poderes sobrenaturais da oresta parecem em
paisagem amazônica na sua variedade incontável. A sincronia com os poderes dos homens que demons-
oresta, no ver de Arturo Cova, ao mesmo tempo em tram habilidades nas práticas de feitiçarias ou adivi-
que dá abrigo e alimento, destrói e mata. É amiga e nhações, como Rivera nos faz vermos nas práticas do
inimiga ao mesmo tempo. Devora. personagem Mauco, que se vale dos seus poderes so-
brenaturais para aliviar as dores e proporcionar a cura
Se, ao olhar estrangeiro, as crendices minaram com dos enfermos. Laura de Mello e Souza10, em “O diabo e
sua estranheza de um território que ia sendo revela- a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popu-
do ao mundo civilizado – o europeu principalmente lar no Brasil colonial”, ao pesquisar sobre a feitiçaria
– pelas crônicas de viagem, no romance de Rivera no Brasil colonial, considera que bruxaria e a magia
elas preenchem o cenário aberto, porque fazem par- devem ser entendidas a partir de suas práticas e con-
te do repertório cotidiano do homem amazônico, textos, pois não se pode pensar que as práticas de adi-
num universo em que crenças e costumes são ele- vinhações, feitiçarias e outros poderes sobrenaturais
mentos coesivos e perfazem o que Paes Loureiro, em sejam particularidades dos indígenas da Amazônia,
“A arte como encantaria da linguagem”, chama de como as que são citadas nos relatos do Santo Ofício

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sobre o Pará, haja vista o fato de que, na Europa, era A preocupação de apresentar uma narrativa que con-
uma prática costumeira, inclusive na Inglaterra e na vencesse os leitores sobre os horrores de Putumayo e
Espanha, o que levou a ocorrência da Inquisição pelo Caquetá levou Rivera a usar recursos visuais de que
Santo Ofício na caça aos feiticeiros e bruxos, inclusive dispunha fotogra as e mapas para adensar aqui-
no Brasil. Enquanto a bruxaria tem um caráter cole- lo que apresenta nas vozes de seus personagens. A
tivo, a magia limita-se ao espaço pessoal, no trato de confusão dos leitores decorre principalmente porque
que uma pessoa usa de poderes sobrenaturais para Rivera usa, nas primeiras edições de “La Vorágine”,
questões bené cas, como é o caso de Mauco. Rivera, fotogra as as quais referencia como sendo das per-
assim como zera Mário de Andrade no seu Macu- sonagens do romance. Numa das fotogra as, indica
naíma”, faz um apanhado de elementos das cultu- ser Arturo Cova e em outra, o seringueiro Clemente
ras amazônicas para tecer o seu “La Vorágine”, que é, Silva. Com o uso desses artifícios, Rivera esperava não
pode-se dizer, um mosaico da vida, da cultura e dos só deixar mais evidente o que narra em “La Vorágine”
costumes da vida do homem amazônico. mas também desconstruir – ou ao menos tornar me-
nos ácidas – as críticas de seus leitores e resenhistas, o
Bernucci considera, na última parte de “Paraíso que nem sempre lhe fora possível, haja vista que gran-
suspeito”, que Eustasio Rivera metamorfoseia-se de parte de seus leitores se bene ciara da indústria da
entre o Rivera formalista, alinhado ao Modernismo borracha que, de tal modo, direta ou indiretamente,
hispano-americano em ebulição no início do século compactuavam com o regime torpe que Rivera busca-
XX, mas, em caráter pessoal, continha-se como um va denunciar numa postura de escritor que apresen-
Rivera romântico, enquanto alguns dos seus críti- tava aos leitores um romance de cunho sociopolítico
cos põem-no nas esteiras do Rivera neonaturalista, em que o Rivera escritor mescla-se ao Rivera cidadão
este cujos traços são visíveis em “La Vorágine”. Essa e político combativo como sempre fora e que usava a
espécie de mimetismo riveriano é vista no persona- literatura como veículo de protesto.
gem Arturo Cova, que encarnam a combinação bio-
grá ca do Rivera colombiano, e alarga-se na cons- A leitura de “Paraíso suspeito: a voragem amazônica”
trução de outras personagens, que, para alguns, que Leopoldo M. Bernucci nos oferece ajuda a pre-
são caricaturas de pessoas reais; para outros, não encher uma lacuna, por tanto tempo deixada, sobre
passam de personagem de cção. Esse caráter dú- um dos mais importantes romances escritos nas duas
bio que Rivera deixa escapar no romance em suas primeiras décadas do século XX, sobre a Amazônia.
personagens, como é o caso de Arturo Cova, Alicia Não porque fala sobre a Amazônia fora do territó-
e Clemente Silva, prega peças ao leitor desavisa- rio brasileiro, embora a Amazônia no seu conjunto,
do, que tende a crer que o romance não é bem um principalmente com cenas brasileiras, não lhe escape,
romance, mas uma narrativa naturalista de cunho mas porque se trata do romance de um escritor ainda
histórico, e Arturo Cova é o el autor do romance. pouco conhecido do leitor brasileiro e pouco debatido
Para Bernucci, “Rivera estabelece para seus leitores nas nossas academias, principalmente nos batentes
um protocolo de leitura que faz com que eles acredi- dos estudos literários e da crítica brasileiros. Além do
tem que de fato Cova poderia ser Rivera. Esta última tema que “La Vorágine” põe em evidência, quase apa-
possibilidade não é de todo descartável. Há muitas gado da nossa memória um século depois, a impor-
passagens no romance que poderiam ser uma direta tância que José Eustasio Rivera tem para a literatura
transposição da biogra a ou do diário de Rivera, se latino-americana exige que suas duas obras – além
estes textos realmente tivessem sido escritos”. A dú- de seus tantos outros textos desconhecidos do público
vida e até mesmo a confusão da parte de alguns brasileiro – seja posto ao escrutínio da sociedade e
leitores levaram estudiosos dos trabalhos de Rivera seja revisto pela crítica atual.
a buscarem esclarecer as dúvidas. Neale-Silva, um
dos críticos que melhor podem ser considerados
quando o assunto é José Eustasio Rivera, segun- Joaquim Barbosa é Licenciado Pleno em Letras, Língua Por-
do Leopoldo Bernucci, considera que La Vorágine tuguesa, pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre
em Sociedade e Cultura na Amazônia, pela Universidade
utiliza informações e personagens históricas, mas,
Federal do Amazonas (UFAM). Professor de Língua Portu-
como qualquer outro romancista que opera dentro
guesa e Comunicação e Português Jurídico, do Centro de
desse tipo de realismo, Rivera os ccionaliza, sendo, Estudos Sociais Aplicados - CESA, das Faculdades Integra-
portanto, um romance de cção, não uma narrativa das do Tapajós. Joaquim também é editor responsável pela
autobiográ ca como tendem acreditar alguns dos Revista Somanlu - Revista do Programa de Pós-Graduação
leitores do romance de Rivera. em Sociedade e Cultura na Amazônia.

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A cidade amazônica
de Edyr Augusto
Relivaldo Pinho
Faculdade Faci Wyden

Uma kombi com vidros negros encosta. O coroa e Dionete a seguram


pelos braços. Abrem a porta. Ela está dentro da kombi. O que é isso?
Leva um murrão nos seios e cai. Alguém diz: Valeu! O carro arranca,
balançando nos buracos. O que é isso? Um chute na bunda. Cala a boca.
Mas. Cala a boca, caralho! Não dava para ver pelos vidros aonde estava
indo. Fechou os olhos, se encolheu e chorou (Edyr Augusto, em Pssica .1

A
trama do último livro de Edyr Augusto, Ps- te em seus centros urbanos, mais especi icamente,
sica, começa com o rapto da protagonista, em Belém do Pará. É com “Os Éguas”, de 1998,
Janalice, próximo ao centro comercial de Be- pri-meiro romance do autor, que essa trajetória e
lém do Pará. A cidade por onde ela vagava será, essa narrativa começam a se desenvolver. Nesse
depois, uma mera lembrança. É exatamente assim, roman-ce, já está presente uma caracterização
como uma imagem borrada e inde nida, que a ur- da região que destoa radicalmente das imagens
banidade da região amazônica surge nos livros do consagradas pelos discursos regionalistas e
escritor belenense. Janalice, nessa literatura, é só midiáticos. A Be-lém que surge é povoada pela
um fotograma de uma narrativa sem heróis, na degeneração de seu ambiente. A cidade se faz
qual todos parecem raptados, sem saber aonde ir. presente pela violência, pela corrupção, pelas
drogas, pela simulação e pelo medo. Através do
Edyr Augusto é hoje um dos nomes mais proemi- Personagem Gil, um investigador de polícia, a
nentes da literatura contemporânea brasileira. capital do Pará e seus “tipos” saltam para fora,
Seus livros, editados a partir da década de 1990, fo- agônica e doente, como um instinto re-presado
ram pouco a pouco ganhando destaque da crítica pela dor.
e, já se pode dizer, do público leitor. Alguns deles Essa caracterização se seguirá nos livros posterio-
foram traduzidos para a língua inglesa, como “Casa res, como “Moscow” (2001),“Casa de caba” (2004),
de caba (Hornet s Nest. Editora A ame Books, “Um sol para cada um” (2008), “Selva
2007), e francesa, como “Os Éguas” e “Moscow” (Be- concreta” (2013) e “Pssica” (2015). Sobre “Selva
lém, Moscow. Editora Points, 2015). Desde então, o concreta”, es-crevi: “com uma escrita de parágrafos
escritor paraense tornou-se um dos principais per- curtos, entre-meados por ações simultâneas e
sonagens que representam a complexa contempo- linguagem coloquial, vamos passando pela Belém
raneidade da urbanidade amazônica 2. que, de certa forma, é aquela que surgiu nos
últimos vinte anos. As histó-rias são típicas, mas
Longe de ser um porta voz de uma única e imutável de uma tipicidade do cotidiano contemporâneo, dos
identidade regional, sua literatura está muito mais fatos que enchem os jornais, da decrepitude de uma
ligada às últimas três décadas da realidade urbana cidade que já se quis a Paris dos trópicos. É
da região. Essa realidade está situada especialmen- lamentável? É. Mas a literatura de Proen-ça não
lamenta a cidade, ela a representa. Repleta de gente
156 ISNN 2692-7446 (Print) / ISSN 2692-7462 (Online) e do mal. É claro que Belém não é apenas isso,
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trânsito cada vez mais desordenado; e um aumento


vertiginoso de crimes, violência e corrupção.5 Essa
caracterização que alimenta o noticiário “mundo
cão” das capitais é também o tema dos livros de
Edyr, mas neles não demonstra apenas uma ima-
gem aterradora em fragmentos, mas sim um pro-
jeto de escrita que formaliza a contemporaneidade
decrépita que a todo dia cintila e obscurece nossos
olhos. Do ponto de vista mais subjetivo (do ponto
de vista do espírito citadino), vale a pena citar a
análise de Edna Castro sobre essa urbanização:

Belém e Manaus, grandes metrópoles, receberam,


ao longo desses anos, pessoas de tantos lugares
do Brasil, vindos de cidades ou de vilas, ou ain-
da do campo mas num movimento contínuo de
busca de outros lugares e de sentidos. As cidades
transformaram-se e não podem mais ser iguais
aos anos de 1960, ainda que permaneça uma cer-
ta nostalgia que é encontrada em gerações e tra-
duzidas em textos literários. Essas cidades estão
inseridas num contexto de mudanças econômicas,
sociais, políticas e territoriais. Ao de nir o sen-
tido do lugar mostra a dimensão profunda desse
universo subjetivo, e sua universalidade encontra-
da na condição humana e certamente constitui o
cerne da alma das cidades que precisamos captar
para podermos entender suas sínteses e univer-
Capa do livro Pissica (2015), de Edyr Augusto. salidades. [ ] Essa dimensão subjetiva que está
nos pequenos processos do cotidiano, do espaço
mas esse isso não é mera invenção literária” 3. Sobre vivido, ou também suas angústias por recorrer ao
Pssica: “Pssica é uma faca que entra no bucho de vivido, ao sentido na experiência, tem também
to-dos. Há outra região que os postais e as notícias sua universalidade. Essa percepção do lugar, lugar
não contemplam. Não há mais nada para ser enquanto singularidade e ao mesmo tempo lugar
contempla-do [...]. Não há justificativas morais como universalidade da condição humana nos in-
redentoras para explicar essa existência vil. terroga sobre o que muda, e o que se transforma
Justificativas não servem para essa escrita do ponto de vista das relações entre as pessoas;
expressionista e, propositalmente, mundana. e a noção de lugar enquanto território da subje-
Pulsões determinam ações, como as linhas tividade. As cidades expressam esses vínculos em
indomáveis que descrevem essas vidas”.4 escalas diversas, nacional e localmente. Re etem
as relações econômicas de produção no mercado
Essa obra está, do ponto de vista temático, ligada de trabalho e as racionalidades produzidas pela
a essas transformações pelas quais a região e sua experiência social 6.
urbanidade passaram. A riqueza proveniente dos
grandes projetos não se transformou em benefícios O que está em jogo aqui é a possibilidade de vis-
para as populações das cidades, as intervenções es- lumbrarmos essas outras faces da contemporanei-
tatais propiciaram poucas melhorias nas condições dade urbana amazônica, não apenas para atestar
sociais, pelo contrário, um quadro que se anunciava esses aspectos desoladores, mas, fundamentalmen-
já na década de 1960, tornou-se um retrato desola- te, compreender que não os reconhecer, ignorá-los,
dor. Os últimos 30 anos da Amazônia são marcados é também ignorar essa história, essa con guração
por, dentre outros aspectos, o inchaço das cidades, social, essa realidade e, por conseguinte, uma das
motivado pelos deslocamentos do interior do es- mais importantes formalizações estéticas que se
tado e de outras regiões para a capital; problemas encarregam de representá-la. Não é apenas negar,
econômicos e sociais, desemprego, moradia; um
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como reação, uma Belém idealizada veiculada ain- decifração de um crime de maneira lógica, precisa,
da hoje por vários discursos (midiáticos, sociais, implacável (por uma representação da cidade onde
institucionais), mas é – sob pena de virarmos as o criminoso é ainda um elemento que se esconde na
costas para o contemporâneo e sua decisiva impor- multidão e nela gura como um homem da multi-
tância que, gostemos ou não, transformaram parte dão”), a literatura de Augusto está muito mais pró-
do ethos do ser amazônico, belenense – dar visi- xima do gênero Noir/Pulp, no qual o crime é parte
bilidade de modo esteticamente construído, a uma essencial da grande cidade que, se não a de ne, a
formalização que dialoga decisivamente com essa constitui de maneira inquestionável, como nas ci-
experiência. dades norte-americanas povoadas pelo crime das
primeiras décadas do século XX. Nesse ambiente,
Mais do que uma outra face da Amazônia, de suas o detetive é alcoólatra, a violência é um de seus re-
cidades, essa caracterização surge como uma pos- cursos, ele não é excepcional e a cidade que passa
sibilidade de reconhecermos que, se a arte não é, diante dele lhe parece como um acúmulo de seres e
obrigatoriamente, um sucedâneo da realidade, ela paisagens decaídos.
não é apenas uma manifestação extemporânea. No
caso da literatura de Edyr Augusto, isso é ainda É desse modo que as linhas de Edyr Augusto se
mais revelador. Exatamente porque ela pode nos apresentam. De um lado, com uma ligação mui-
proporcionar uma representação da realidade que to próxima à realidade que representa e, de outro,
está, ao mesmo tempo, próxima demais do leitor com uma forma, uma estética, que seria, em al-
e distante demais (o jornalismo a aproxima pelo guns aspectos, a única capaz de representá-la. A
fragmento, pelo fait divers) de uma representação vida contemporânea em uma capital da Amazônia
estética que a formalize, que a reúna em um corpo será representada pelas histórias das vidas que são
discursivo que tem, nessa realidade, seu substrato. descritas no livro como histórias ora próximas, ora
separadas, para, no nal, elas se colidirem (essa
Vejam, por exemplo, a abertura do conto Sujou ,
é a palavra correta) em um epílogo que, mais do
do livro “Um sol para cada um”, que integrou, em
que desvendar um crime, traz à tona uma cidade
2010, a “Antologia Pan-Americana: 48 contos con-
na qual uma experiência decadente dos sujeitos é
temporâneos do nosso continente”:
a imagem do lugar; olha-se para a cidade através
dos personagens, olha-se para a cidade através da
Eu já sacava o cara. A gente ca ali na esquina e
vida que não se pode mais deixar de ver. Vidas visí-
vai vendo as guras da vizinhança. Basta qualquer
veis por palavras impactantes, por frases comuns,
barulho e eles chegam na janela dos prédios. Fica
pela super cialidade rápida e fugaz da construção
tudo lá, olhando. Mas parece que tem uma fron- imagética, como se observa as imagens super -
teira, sabe? Daqui para lá e de lá pra cá. Lá pra ciais e rápidas de um ambiente contemporâneo 8.
frente os barões. Aqui pra trás a zona. Mas é que
às vezes tá roça mesmo. Ele chegou com o carrão Assim é a representação de Augusto. Sua narrati-
e cou esperando abrir o portão da garagem. En- va, preenchida por essas características, adota uma
costei, disse oi, pedi uma ponta, cigarro qualquer série de imagens que remetem a lugares físicos, às
coisa. Disse que dava chupada, essas porras. Me caracterizações profundamente imagéticas de si-
deu uma banda. A Maricélia disse que podia dar tuações e focalizações de seus “tipos” urbanos que,
propositalmente, contrastam com um romantismo
merda, o cara se queixar, sei lá, segurança do edi-
discursivo acostumado e atro ado sobre a região,
fício. Não deu. Disse que outro dia, tava de nóia, possibilitando uma percepção “distanciada” e ne-
rolou discussão e mandaram chamar a polícia por cessária sobre o lugar.
causa do barulho 7
Eis a cidade que sua literatura representa e se rela-
Percebam como esse estilo e essa temática são es- ciona. Sua forma, que em ritmo vertiginoso, mime-
teticamente construídos em estreita relação com o tiza o diálogo coloquial, o ritmo da cidade, a frag-
gênero de literatura policial. Mas ao contrário do mentação dos jornais, o choque, a indiferença. Uma
clássico romance policial, que primava pela cons- representação que tem por temática o urbano e sua
tituição do seu personagem principal (um deteti- contemporaneidade, uma escrita que é realizada
ve) como um sujeito sóbrio, talentoso, genial e pela como um roteiro cinematográ co, repleta de ima-

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gens que nos levam diretamente para sionomias


imagéticas/fílmicas de Belém do Pará.

De 2013 a 2015 tive a oportunidade de coordenar


um projeto de pesquisa chamado Fisionomia Be-
lém9, que realizou, dentre outras atividades, banco
de imagens sobre Belém do Pará, seminário temá-
tico, exposição fotográ ca, produção de artigos,
monogra as e dissertações de mestrado. Também
realizamos a produção do documentário “Fisiono-
mia Belém” (2015- 50 min.)10. Esse documentário,
que visou “pensar” Belém sobre a perspectiva de
sua realidade contemporânea e, mais especi ca-
mente, através de temáticas artísticas que tem essa
nalidade, trazia essas inquietações sobre a con-
temporaneidade da cidade. Edyr Augusto foi um de
nossos entrevistados e seu depoimento, do ponto
de vista imagético, foi o mais instigante.

No documentário, Edyr comenta sobre uma expe-


riência con ituosa presente na cidade. Uma expe-
riência que denotava uma falta de sentido de per-
tencimento daqueles que nela habitam. A cidade
do passado, a petit Paris, como se almejava na vi-
rada do Século XIX para o XX, como sonho de fu-
turo”11, acabou, na contemporaneidade, realmente,
PODCAST
tornando-se pequena. Na pequenez dos propósitos
de cidade que não se realizam, na vida que nela se
experiencia.

Augusta não é a cidade amazônica de Edyr. Nela


https://amazonialatitude.com/
pode-se caminhar pelo centro histórico da cidade, category/latitude-talks/
não para contemplar as calçadas de pedra de lioz,
os antigos casarões da época da borracha, ou ver
a praça que ainda resiste. Nela se caminha, a todo
momento, sob o signo do medo, raptados do senti-
do histórico e sem saber aonde ir.

Relivaldo Pinho é doutor em Ciências Sociais (Antropo-


logia) pela UFPA. É autor do capítulo Cli ord Geertz
(1926-2006), do livro Os antropólogos: clássicos das ci-
ências sociais (Vozes; PUC-RIO, 2015). Foi Coordenador
Adjunto do Curso de Comunicação Social da Universidade
da Amazônia (UNAMA), e Coordenador da especialização
em Jornalismo, Cidadania e Políticas Públicas. Foi profes-
sor do Curso de Comunicação Social e do Mestrado em
Comunicação, Linguagens e Cultura da UNAMA e coorde-
nou o Projeto de Pesquisa Fisionomia Belém .

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Revista Amazônia Latitude Review

Referências
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Almeida, Alfredo W. B. de. Guerra ecológica nos babaçuais: o processo de Faculdade de Filoso a, Letras e
devastação das palmeiras, a
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 221.
elevação do preço de commodities e aquecimento do mercado de terras na
Amazônia/ Alfredo W. B de 1 - Graduado em Ciências sociais com licenciatura em Sociologia e
Bacharelado em Ciências Políticas pela Universidade Estadual do
Almeida, Joaquim Shiraishi Neto, Cynthia Carvalho Martins. – São Maranhão (UEMA). É integrante do Grupo de Estudos Socioeconômicos
Luís, Lithograf, 2005. da Amazônia (GESEA). Atualmente é mestrando vinculado ao Programa
de Pós-Graduação em Cartogra a Social e Política da Amazônia
Almeida, Alfredo W. B. de. Refugiados do desenvolvimento: os (PPGCSPA).
deslocamentos compulsórios de índios e camponeses e a ideologia da
modernização. In: Travessia, 1996. 2 - Sob a orientação da Profa. Dra. Cynthia Carvalho Martins, foi
apresentada ao curso de Ciências Sociais da UEMA no ano de 2016.
Asselin, Victor. Grilagem: corrupção e Violência em terras do Carajás.
Editora Ética: Imperatriz, 2009. 3 - Considera-se lógica desenvolvimentista enquanto “política
de industrialização favorável ao capital monopolista privado, um
Bachelard, G. O primeiro obstáculo: a experiência primeira. In: A formação capitalismo orientado politicamente” (Becker, Egler, 2003, p. 82 apud
do espírito cientí co. Ribeiro Júnior, 2014, p. 121).

Tradução Esteia dos Santos Abreu. - Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, 4 - Tal denominação passa a ser consolidada mediante a intensa
p. 29-68. utilização desta rodovia por produtores de arroz referidos às unidades
sociais territorializadas em estradas vicinais ou mesmo às margens da
Barbosa, Zulene Muniz. Lutas de classes e reestruturação produtiva em
uma nova rodada de mencionada estrada. A sua utilização, intensi cada sobretudo na
década de 60, assumia a função de escoar o excedente que era vendido
transnacionalização do capitalismo. São Luís: UEMA, 2006. para comerciantes e usinas de arroz localizadas em Imperatriz (Franklin,
2008).
Bordieu, Pierre. Introdução a uma sociologia re exiva In: O Poder
Simbólico; tradução Fernando 5 - Universo social no qual diversas atividades são desempenhadas.
As representações em torno da fazenda, reportam a sua relação com o
Tomaz– 2.ed. Rio de Janeiro, ed. Bertrand Brasil 1998, p. 17-58. processo de concentração fundiária, o qual é engendrado mediante suas
extensas dimensões.
Carneiro, Marcelo Sampaio. Mineração, Siderurgia e Desenvolvimento na
Amazônia Oriental: um 6 - A CELMAR passou a dinamizar o plantio do eucalipto em diversas
áreas que cam no entorno da sede do município de Imperatriz, como
balanço da experiência do programa grande carajás. In:Terra, Trabalho e também se estendeu a outros municípios tais como Cidelândia, Vila
Poder: con itos e lutas sociais no Maranhão contemporâneo. São Paulo: Nova dos Martírios, São Pedro da Água Branca, Senador La Rocque e
Annablume, 2013, p. 41-61. João Lisboa (Franklin, 2008).

Franklin, Adalberto. Apontamentos e fontes para a história econômica de 7 - A denominação tora é utilizada para nomear a madeira do eucalipto
Imperatriz. Imperatriz: Ética, 2008. que é transportada, por caminhões da espécie bi-trem, das áreas de
plantio até a fábrica de papel e celulose.
Loureiro, Violeta Refkalefsky. A Amazônia no Século XXI: Novas Formas
de Desenvolvimento. São 8 - Na fazenda, o vaqueiro desempenha a função de scalizar os
rebanhos de gado bovino, os quais são diariamente direcionados do
Paulo, Ed. Empório do Livro, 2009. curral, que é uma área cercada onde cam em repouso, para as áreas
de pasto, as quais são entendidas como sendo a base da produção dos
Matias, Moisés. A implantação da indústria de celulose no Maranhão. In: rebanhos, dentre outras atividades que relacionam-se à manutenção do
CONCEIÇÃO, Francisco rebanho bovino.

Gonçalves da. Carajás: Desenvolvimento ou Destruição?. 1ª Ed. 1995. 9 - O tratorista é o responsável por dirigir o trator, um veículo utilizado
em atividades agrícolas.
Mesquita, Benjamin Alvino de. O desenvolvimento desigual da agricultura:
a dinâmica do agronegócio e da agricultura familiar. São Luís, EDUFMA, 10 - O diarista pode desempenhar diversas funções na fazenda, seu
2011. 110 p. pagamento é feito pelo dia trabalhado.

Miranda, Syderlan Bezerra. A monocultura do eucalipto alterando o 11 - De acordo com entrevistas realizadas, o arrendamento é uma
espaço agrário no oeste espécie de contrato que estabelece uma contrapartida pela utilização
da terra. O pagamento pode ser feito por meio do plantio do capim após
maranhense. Uberlândia, 2012. Disponível em: <h p://www.lagea. a colheita da roça ou por meio da divisão da colheita com o proprietário
ig.ufu.br/xx1enga/ da terra na qual o plantio foi realizado.

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12 - Os designados lotes consistem em um universo social onde são UNESP. 1995.


asseguradas atividades referidas à roça, criação de animais, coleta do
coco babaçu, dentre outras atividades produtivas. 19 - Cf. Deleuze, Gilles. Um novo cartógrafo in Foucault. São Paulo:
Editora Brasiliense. 2005 pp. 33-56.
13 - No P.A Vila Conceição, a categoria gata é utilizada para se referir às
empresas prestadoras de serviços terceirizados para a empresa Suzano 20 - Vide Griaule, Marce. Dieu d eau. Entretiens avec Ogotemmêli. Paris:
Papel e Celulose. Librairie Arthème Fayard. 1966.

14 - A categoria nova é utilizada como forma de referenciar a localidade 21 - Castro Faria, Luiz de. Antropologia: duas ciências. Notas para uma
para onde as famílias foram deslocadas. história da antropologia no Brasil. Rio de Janeiro. CNPq/MAST. 2006
(org. por Alfredo Wagner e Heloisa M. B. Domingues).
15 - A categoria antiga é utilizada em referência à área anteriormente
habitada pelas famílias da comunidade. 22 - Pierre Bourdieu fala explicitamente num “programa de destruição
metódica dos coletivos”. In Contrafogos.Táticas para enfrentar a invasão
neoliberal. Rio de Janeiro: J .Zahar Editor. 1998, pág. 137.
Novos colonialismos: diálogos evanescentes numa fronteira em
movimento (pg 30) 23 - Está-se diante de uma tendência oligopolista que, no caso brasileiro,
coexiste com um agravante: o país está importando arroz e feijão no
1 - Antropólogo. Professor da Universidade do Estado do Amazonas. exato momento em que forças conservadoras buscam exibilizar
Pesquisador CNPq. os direitos territoriais de indígenas, quilombolas e demais povos e
comunidades tradicionais e enfraquecer os pequenos produtores rurais
2 - Esta análise remete também à re exão de Laura Nader e Ugo Ma ei referidos a circuitos especí cos do mercado de terras. Complementa
sobre a pilhagem e o estado de direito. Vide: Pilhagem. ando o esta informação o fato do preço da farinha estar atingindo níveis
Estado de Direito é Ilegal. São Paulo: Martins Fontes. 2013. elevadíssimos neste segundo semestre de 2013, comprometendo a dieta
básica da população das regiões norte e nordeste.
3 - Re ro-me aqui aos estudos sociológicos sobre o pós-colonialismo,
cuja crítica encontra-se sintetizada em Vivek Chibber, Postcolonial 24 - Paoliello, Tomas Pacheco de Oliveira. Revitalização étnica e dinâmica
Studies as Analysis and Critique in Postcolonial Theory and the Specter of territorial- alternativas contemporâneas à crise da economia sertaneja. Rio
Capital. London/New York. Verso. 201,3 pp.1-27. de Janeiro: Contracapa, 2012.

4 - Cf. Bhabha, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora 25 - Said trabalha com a expressão “cultura de resistência”, advertindo
UFMG. 2010. que a lenta recuperação do território, que se encontraria no cerne
do processo de descolonização “foi precedida – como no caso do
5 - Cf.Decreto nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que institui a Política imperialismo- do mapeamento do território cultural. Depois do período
Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades de “resistência primária”, literalmente lutando contra a intromissão
Tradicionais. externa, vem o período da resistência secundária, isto é, ideológica,
quando se tenta reconstituir uma “comunidade estilhaçada, salvar
6 - Cf. Decreto nº7.387, de 09 de dezembro de 2010, que institui o ou restaurar o sentido e a concretude da comunidade contra todas
Inventário Nacional de Diversidade Linguística e dá outras providências. as pressões do sistema colonial”, como diz Brasil Davidson.” (Said,
2011: p.328). Para maiores informações consulte-se: Said, E., Cultura e
7 - Baudrillard, Jean F. Cultura y Simulacro. Barcelona: Editorial Kairós. Imperialismo. São Paulo: Companhia de Bolso. 2011.
2012, pp. 9-11.
26 - Vide Sco , James C. Weapons of the Weak.Everyday forms of peasant
8 - Cf. Maalouf, Amin. Le Dérèglement du Monde. Éditions Grasset & resistance. New Haven and London: Yale University Press. 1985.
Fasquelle. 2009.

9 - Cf. Hobsbawm, Eric. Tempos Fraturados. Cultura e Sociedade no Amazônia: Para entender o dia do fogo (pg 42)
século XXI. São Paulo: Companhia das Letras. 2013.
1 - Professora do Instituto de Ciências da Sociedade da UFOPA –
10 - Jameson, Fredric. Le postmodernisme, ou la logique culturelle du Universidade Federal do Oeste do Pará; Pós-Doutoranda em Ciências
capitalisme tardif. Paris: ENSBA. 2007. Sociais, Universidade de Coimbra; PHD em Ciências: Desenvolvimento
Socioambiental, Mestre em Planejamento de Desenvolvimento
11 - Jameson, Fredric. A virada cultural: re exões sobre o pós-modernismo. Regional, Graduada em Jornalismo (UFPA).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2006, pp. 227-245.
2 - O Plano Nacional de Viação criou o sistema rodoviário federal,
12 - Cf. Martinez, Tomás Eloy - Purgatório. São Paulo: Cia. das Letras. composto de 150 rodovias federais, interligando a capital federal a
2009. outras capitais, estados e municípios, obedecendo ao conceito de
planejamento classi cadas como: a) Rodovias Radiais: as que partem da
13 - Bensaid, Daniel. Os irredutíveis. Teoremas da resistência para o Capital Federal, em qualquer direção, para ligá-la a Capitais Estaduais
tempo presente. São Paulo: Editorial Boitempo. 2008. ou a pontos periféricos importantes do País; b) Rodovias Longitudinais:
as que se orientam na direção geral Norte-Sul;c) Rodovias Transversais:
14 - Bauman, Z. Non più e non ancora. Transizione di um continente as que se orientam na direção geral Leste-Oeste; d) Rodovias Diagonais:
a rischio di paralisi . Il Manifesto. Anno XL. N.74, 28 marzo de 2010. as que se orientam nas direções gerais Nordeste-Sudoeste e Noroeste-
(Traduzione Marina Impallomeni). Sudeste; LEI No 5.917, DE 10 DE SETEMBRO DE 1973). Ver também a
sequência do planejamento do sistema viário nacional construído sob
15 - Vide Serge Halimi, Para preparar a reconquista . Le Monde os auspícios da Política de Integração Nacional que marca a conexão da
Diplomatique. Brasil, de maio de 2013 pp. 20,21). Amazônia brasileira ao país na LEI Nº 4.592, DE 29 DE DEZEMBRO DE
1964. DECRETO-LEI Nº 451, DE 4 DE FEVEREIRO DE 1969., DECRETO-
16 - Cf. eiroz, Eça de. Cartas de Inglaterra e Crônicas de Londres. LEI Nº 1.197, DE 23 DE DEZEMBRO DE 1971. LEI No 5.917, DE 10 DE
Lisboa: Edição “Livros do Brasil”. 2000 p. 63. SETEMBRO DE 1973.
17 - Vide Black,Jeremy. Mapas e História. Construindo Imagens do 3 - Cardoso. Alessandra. Amazônia: paraíso extrativista e tributário das
Passado. São Paulo: Edusc. 2005. transnacionais da mineração . INESC. Disponível em: h p://amazonia.
inesc.org.br/artigos-inesc/amazonia-paraiso-extrativista-e-tributario-
18 - Cf. Goody, Jack. Renascimentos: um ou muitos? São Paulo: Editorial
das-transnacionais-da-mineracao/.
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Revista Amazônia Latitude Review
4 - Ato de forjar documentos de posse e títulos falsos de propriedade. 21 - Presentes, a autora e Ana Lange, ambas representando a
Secretaria de Coordenação da Amazônia, do Ministério do Meio
5 - Amaggi, BUNGE, TDM, Cargill, as principais. Ambiente;

6 - Castro, Edna et al. Atores sociais na fronteira mais avançada do 22 - Castro, E. M. et al. Atores Sociais na Fronteira Mais Avançada
Pará: São Félix do Xingu e a Terra do Meio (Social Actors on the Most do Pará: São Félix do Xingu e a Terra Do Meio. Papers NAEA, nº 180.
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abstract=3731715.
23 - Ademir Fredericci. Sínodo Pan-Amazônico - Assembleia Especial
7 - Região compreendida entre o rio Xingu paraense ao Sul, a BR-163 do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica. Disponível em
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8 - São Félix do Xingu (PA) tem maior rebanho bovino do País, revela 24 - História e luta de Delma. Fundo Dema Somos a Floresta. 01 de
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pais-revela-ibge.html. 25 - Plano Amazônia Sustentável. Governo Federal. Disponível em
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32 - Ver números do Pará, nos últimos três anos, no link: h p://
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(Coleção Amazoniana, no. 1). 1992. jan2019.pdf. Acesso em 02/07/2019. Ver também Soares, J. Bolsonaro
diz que pretende criar ‘pequenas Serras Peladas’ Brasil afora. O Globo.
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33 - Ver em: h ps://g1.globo.com/economia/agronegocios/
20 - O MPST- Movimento pela Sobrevivência na Transamazônica, noticia/2019/08/02/anvisa-reclassi ca-mais-de-1900-agrotoxicos-e-tira-
antes formado pelos colonos agricultores familiares e professores, 600-produtos-dos-rotulos-de-maior-risco.ghtml.
desde o nal da década de 1990 passou por adaptações em sua agenda
de lutas. A partir do nal dos anos 1990, as populações do rio Xingu 34 - h p://www.diap.org.br/index.php/publicacoes/ nish/99-
passaram a integrar o movimento, que passou a ser denominado diagnostico-das-eleicoes-2018/3889-diagnostico-das-eleicoes-2018-
MDTX-Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e versao-completa e h ps://www.brasildefato.com.br/2019/02/12/
Xingu, englobando os rios e a colonização da rodovia. A aliança bancada-bbb-se-recon gura-e-pode-ampliar-in uencia-nos-proximos-
entre colonos e ribeirinhos resultou no enriquecimento da perspectiva quatro-anos/, ambos acessados em 02.08.2019;
ambiental nas formulações de políticas para ambos;

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3 - Firmo Dutra, “Euclydes e a Amazônia”. Correio da Manhã, 1/1/1939, vol. I (ed. 1966), p. 446;
p. 4. 4 Correspondência, p. 266;
32 - Suassuna, p. 53;
5 - Correspondência, p. 268-69. Utilizar a citação de Inferno verde, p.
447; 33 - “Terra sem história (Amazônia) – Impressões gerais”, ̀ margem da
história. In: Obra completa, vol. I (ed. 1966), p. 223;
6 - O paraíso perdido, I, 63;
34 - Suassuna, p. 61;
7 - Ver Paradise Lost 1.692: “the precious bane”; Paradise Lost 2.6: “that
bad eminence”; 35 - Prefácio ao Inferno verde, de Alberto Rangel. In: Obra completa, vol.
I (ed. 1966), p. 446;
8 - Prefácio de Inferno verde (452); A vingança da Hileia (49);
36 - “Terra sem história (Amazônia) – Impressões gerais”, ̀ margem da
9 - Foot Hardman, p. 62; história. In: Obra completa, vol. I (ed. 1966), p. 223;

10 - Foot Hardman (75); 37 - “Terra sem história (Amazônia) – Impressões gerais”, ̀ margem da
história. In: Obra completa, vol. I (ed. 1966), p. 224;
11 - A resenha se publica em O Estado de S. Paulo no dia 14 de
novembro de 1898; 38 - Suassuna, p. 52;

12 - Foot Hardman, p. 56; 39 - “Terra sem história (Amazônia) – Impressões gerais”, ̀ margem da
história. In: Obra completa, vol. I (ed. 1966), p. 224;
13 - Correspondência, p. 269;
40 - “Terra sem história (Amazônia) – Impressões gerais”, ̀ margem da
14 - Foot Hardman, p. 48; história. In: Obra completa, vol. I (ed. 1966), p. 226;

15 - Foot Hardman, p. 57; 41 - “Terra sem história (Amazônia) – Impressões gerais”, ̀ margem da
história. In: Obra completa, vol. I (ed. 1966), p. 232;
16 - Milton, John. O paraíso perdido. Trad. de Antônio José de Lima
Leitão. Notas de Xavier da Cunha. Ilustrações de Gustavo Doré. São 42 - Originalmente publicado na revista Kosmos, ano III, no. 1, Rio de
Paulo: Grá ca e Editora Edigraf Ltda., s/d/; p. 9 17 Correspondência, Janeiro. In: Obra completa, vol. I (ed. 1966), p. 508-511;
p. 269;
43 - Ver Contrastes e confrontos. In: Obra completa, vol. I (ed. 1966), p.
18 - “Discurso de Recepção na Academia Brasileira de Letras”. In: Obra 155-159 e 159- 162;
completa, vol. I (ed. 1966), p. 208;
44 - De outra perspectiva, Euclides testemunhou o rancor dos
19 - Igual fortuna teriam a loso a e a lógica porque dependem do peruanos contra os seringueiros brasileiros em comentário feito
conceito de verdade para justi car-se como áreas importantes de ao Barão do Rio Branco, quando da passagem da Comissão Mista
conhecimento. Ver Mignolo, op. cit., p. 368; Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus pelo seringal do
Funil. Ver Obra completa, vol. I (ed. 2009), p. 826-840;
20 - A. Momigliano, p. 218.
45 - Correspondência, p. 258;
21 Idem, ibidem;
46 - Correspondência, p. 307;
22 - Cf. M. Kneale, Modality De Dicto and De Re , in Nagel, Suppes
and Tarski (eds.), Logic, Methodology and Philosophy of Science,
Stanford: Stanford UP, 1962; Inquietudes ambientales, humanas y sociales: una entrevista
con Enrique Le (pg 128)
23 - OC, p. 206;
Althusser, Louis. Ideología y Aparatos Ideológicos de Estado; Freud y
24 - Ver “Um clima caluniado”, OC, p. 244; Prefácio de Inferno verde, p. Lacan, 1ª. ed., 5ª. reimp ed. Teoría e Investigación en las Ciencias del
449; Hombre. Buenos Aires: Nueva Visión, 2008

25 - […] “uma página inédita e contemporânea do Gênesis” (Discurso Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 67° Edição ed. Rio de Janeiro: Paz
à ABL, 1906: 205); “Realmente a Amazônia é a última página, ainda a e Terra, 2019.
escrever-se, do Gênese.” (Prefácio de Inferno verde, 1908, p. 449). Em
Rangel (“O Tapará”, Inferno verde, 1908: “[…] a animação da fauna Gadamer, Hans Georg. Verdad y Método: Fundamentos de una
aparece como na gravura que representasse um pedaço da terra, na Hermenéutica Filosó ca, Colección Hermeneia, 7. Salamanca: Ediciones
parte última do capítulo primeiro do Gênesis [sexto dia], ilustrado Sígueme, 1977.
pelo buril ingênuo dos gravadores.” (p. 36);
Lacan, Jacques. Le Symbolique, l Imaginaire et le Réel (1953) en: Bulletin
26 - “Um clima caluniado” (244); “Impressões gerais” (232); de l’Association freudienne, Nº 1, 1982, pp. 4-13.

27 - P. Christoval de Acuña, Nuevo descubrimiento del gran río de las Le , Enrique. Ecología Política: de la Deconstrucción del Capital a la
Amazonas. Madrid, 1891; Territorialización de la Vida, Siglo XXI Editores, México, 2019.

28 - Foot Hardman (61); Le , Enrique. El Fuego de la Vida. Heidegger ante la Cuestión Ambiental,
Siglo XXI Editores, México, 2018.
29 - Prefácio ao Inferno verde, de Alberto Rangel. In: Obra completa,
vol. I (ed. 1966), p. 446; Le , Enrique. A Apuesta pela Vida. Imaginación Sociológica e
Imaginarios Sociais em os Territorios Ambientais do Sul, Vozes Editora,
30 - Prefácio ao Inferno verde, de Alberto Rangel. In: Obra completa, Petrópolis, 2016.
vol. I (ed. 1966), p. 452;
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31 - Prefácio ao Inferno verde, de Alberto Rangel. In: Obra completa, Complejidade, Poder, Editorial Vozes, Petrópolis, Brasil, 2001 (3a edición

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8 - Pinho, Relivaldo. Antropologia e loso a: experiência e estética no
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9 - O projeto realizou dentre outras atividades, como Banco de
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reimpresión, 2011; 2a y 3a reimpresión 2014; 4a reimpresión 2018). 11 - Benjamin, Walter. Cidade de Sonho e morada de sonho, sonhos de
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Imprensa o cial do Estado de São Paulo, 2006. p. 433-448;

1 - Ingeniero ímico de la Universidad Nacional Autónoma de


México (UNAM), Doctor en Economía del Desarrollo por la École A voragem no paraíso suspeito: A narrativa de José Eustasio
Pratique des Hautes Études de Paris, y Doctor en Filosofía de la Rivera na leitura de Leopoldo Bernucci (pg 144)
Ciencia por la UNAM. Es un investigador de nivel III en el Sistema
Nacional de Investigadores en México, que trabaja en el Instituto de 1 - Casement, Roger. Diário da Amazônia de Roger Casement. Ed.
Investigaciones Sociales de la UNAM. de Laura P. Z. Izarra e Mariana Bolfarine. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2016.
2 - En su carrera, Le ha producido una vasta bibliografía, escribiendo
libros como Epistemología ambiental (2001); A complexidade ambiental 2 - Geremek, Bronislaw. Os lhos de Caim: vagabundos e miseráveis
(2003); Racionalidade Ambiental: A Reapropriação Social da Natureza na literatura europeia 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras,
(2006); Ecología, capital e cultura: a territorializaçao da racionalidade 1995.
ambiental (2009); Discursos Sustentables (2010); Saber Ambiental:
Sustentabilidade, Racionalidade, Complexidade, Poder (2011); A 3 - Priore, Mary del. Esquecidos por Deus: monstros no mundo
Apuesta pela Vida. Imaginación Sociológica e Imaginarios Sociais em os europeu e ibero-americano (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia
Territorios Ambientais do Sul (2016); El fuego de la vida: Heidegger ante das Letras, 2000.
la cuestión ambiental (2018); y su libro más reciente, Ecología política:
de la deconstrucción del capital a la territorialización de la vida (2019). 4 - Perrot, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e
prisioneiros. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2018.

A cidade amazônica de Edyr Augusto (pg 134) 5 - Rivera, José Eustasio. A voragem. Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves Editora S/A, 1982.
1 - Augusto, Edyr. Pssica. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 11;
6 - Shaw, Donald L. Nueva narrativa hispanoamericana: boom,
2 - As referências bibliográ cas dessas obras são: Os Éguas. São Paulo: posboom, posmodernismo. Madrid: Cátedra, 2008.
Boitempo, 1998; Moscow. São Paulo: Boitempo, 2001, Casa de caba.
São Paulo: Boitempo, 2004; Um sol para cada um. São Paulo: Boitempo, 7 - Paes Loureiro, João de Jesus. Meditação e devaneio: entre o rio e
2008. O conto Sujou, desse último livro, integra o livro organizado por oresta. In Somanlu Revista de Estudos Amazônicos. Ano 1, n. 1, 2000,
Stéphane Chao. Antologia Pan-Americana: 48 contos contemporâneos p. 28.
de nosso continente. Rio de Janeiro: Record, 2010. Selva concreta. São
Paulo: Boitempo, 2013. As publicações internacionais são: Hornet’s 8 - Paes Loureiro, João de Jesus. A arte como encantaria da linguagem.
Nest. Wiltshire, UK: A ame Books, 2007; Belém et Moscow. Paris: São Paulo: Escrituras, 2008.
Points, 2015. Nid de Vipères. Paris: Asphalte, 2015;
9 - Ibidem
3 - Pinho, Relivaldo. Selva concreta. Disponível em: h ps://
relivaldopinho.word-press.com/2013/02/28/158/ . Acesso em 04 out 10 - Souza, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria
2019; e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
4 - Pinho, Relivaldo. Le Monde Diplomatique Brasil, n. out. de
2015. Disponível em: h ps://www.digestivocultural.com/blogs/post.
asp?codigo=5505&titulo=Pssica,_de_Edyr_Augusto;

5 - Ver: Como anda RM Belém. Disponível em: h p://www.


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de Educação. Estudos e problemas amazônicos: História social e
ISNN 2692-7446 (Print) / ISSN 2692-7462 (Online) 165
L A T I T U D E
Review

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